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A UNIVERSIDADE MEDIEVAL E A PRODUÇÃO DO
CONHECIMENTO: ASPECTOS DA GNOSEOLOGIA DE
BOAVENTURA DE BAGNOREGIO1
SOUZA, Rodrigo Augusto de (UEM)
MACHADO, Maria Cristina Gomes (UEM)
Considerações Iniciais
O conhecimento produzido na Idade Média nos parece prejudicado por um tipo de
historiografia que insiste em considerar de maneira inadequada o medievo. A Universidade
Medieval viveu uma grande efervescência cultural, científica e teológica desconhecida por
muitos. Análises que se referem à Idade Média como “idade das trevas ou da ignorância”,
revelam uma compreensão da história de tendência iluminista. Essa perspectiva procura
romper com a tradição clássica do pensamento faz “tábula rasa” com o passado. O pensar
teológico, muito difundido na Universidade Medieval, é visto com muitas reservas pela
modernidade. A teologia é sinônimo de “ingenuidade ou ignorância”, para os adeptos desta
historiografia moderna que desconsidera a tradição clássica. Aliado a isso, há o forte
sentimento “anti-religioso” ou “anti-eclesiástico”, inspirado pelos ideais burgueses da
Revolução Francesa.
O objetivo desse trabalho é afirmar outra leitura possível da produção do
conhecimento medieval. Procura discutir a questão do pensamento científico e do pensamento
teológico a partir dos grandes mestres medievais. A intenção é apresentar uma face pouco
conhecida da Idade Média, isto é, a racionalidade e a produção do conhecimento nesse
período histórico. Por valorizar a teologia, a Universidade Medieval não era “anti-científica”.
Que ciência produziu a Idade Média? Como se articulavam a ciência experimental e a
teologia no medievo? São essas questões que o nosso estudo buscará responder.
A produção do conhecimento na Universidade Medieval decorre de duas fontes
fundamentais: a filosofia grega e a Bíblia. Afirmamos que a ciência emergiu do próprio
1 Esse texto é síntese das reflexões, leituras e discussões da disciplina “Universidade, História e Política”, sob
orientação da Profa. Dra. Terezinha Oliveira e do Prof. Dr. Mário Azevedo, no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá – UEM.
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pensamento teológico. Ao lado da especulação espiritual e mística, outras áreas do saber
foram se configurando, não de maneira fragmentada, mas articulada com os outros
conhecimentos. Nossa preocupação é entender como a ciência proveniente da teologia foi
tratada por seus estudiosos. Como a teologia não negou a ciência e as coisas do seu tempo.
Recorreremos ao pensamento franciscano, especialmente do século XIII. Faremos uso
da obra de Boaventura de Bagnoregio (1221-1274), Itinerário da Mente para Deus (1999);
na tentativa de compreender a racionalidade e o conhecimento próprios do medievo, segundo
essa perspectiva. Buscamos também entender o diálogo de Boaventura de Bagnoregio com o
pensamento antigo, com a Bíblia e as fontes cristãs.
Redescobrindo a Idade Média: Entre o Passado e o Presente
O pensamento Jacques Le Goff aborda a discussão sobre os conceitos de “passado e
presente” e “antigo e moderno” ao longo do pensamento historiográfico. A abordagem
utilizada pelo autor evita posturas simplistas de interpretação das épocas históricas anteriores
à modernidade. Aliás, ele põe em questão a divisão tradicional da historiografia, que procura
ver o tempo histórico em uma perspectiva linear e progressiva. Para Le Goff, é muito difícil
precisar o início de um período histórico e o término de outro. A história é feita de rupturas e
as ideologias marcam decisivamente o pensamento historiográfico. O passado é muito mais
complexo do que parece. Considera o historiador francês que os “cortes” históricos são
ideológicos, isto é, que a definição de um período da história atende interesses dos grupos
humanos detentores do poder.
De acordo com o pensamento de Le Goff, a tradição histórico-medieval foi
prejudicada pela influência dos ideais burgueses no pensamento historiográfico. Ao definir a
Revolução Francesa ou Burguesa (1789), como marco da fundação da idade contemporânea
houve um desprezo pelos temas antigos e medievais, principalmente nos países europeus que
tinham que carregar o “fardo da história”. Segundo a historiografia proposta pelo autor, não
faz sentido estudar a história em si mesma. A história está a serviço daquilo que ele chama de
definição de “presente histórico”, ou seja, a possibilidade de compreender o presente a partir
do recurso à história. Nesse intento a história não está sozinha, mas conta com o auxílio das
“ciências históricas”, da antropologia cultural ou etnografia, dos estudos lingüísticos,
sociológicos, entre outros.
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Uma determinada concepção de “tempo” é tomada por análise no pensamento de Le
Goff. O autor se põe a investigar novas relações entre passado e presente. Procura igualmente
analisar as concepções de passado e de presente, para isso, faz uso da memória coletiva e da
história dos povos. O pensamento historiográfico de Le Goff está imbuído da “nova história”,
uma vertente da história contemporânea que procura rever a nossa apropriação do passado.
Tradicionalmente o passado foi estudado em si mesmo, quer dizer, como forma de “libertação
do presente”. A história não é um simples “olhar para trás”, um “aprender com o passado”, ela
é uma forma de compreensão do presente e do real. A história é eminentemente transformação
e não repetição do passado. É preciso saber ler e interpretar a história.
O desenvolvimento das categorias de “tempo histórico”, passado, presente e futuro,
quando analisadas pela memória social, histórica e pelos estudos lingüísticos mostram a
construção de uma identidade cultural baseada em uma noção de tempo. É o que o autor
chama de desenvolvimento de nossas perspectivas temporais. Contudo, para Le Goff, há uma
polarização da história no futuro, em detrimento do passado e do presente. O autor chega a
sustentar a chamada “aceleração da história”, característica dos nossos dias, marcados por
sucessivas transformações histórico-culturais. O entendimento adequado da história estaria no
equilíbrio entre passado, presente e futuro.
O tempo histórico deve ser uma referência constante ao presente. Por sua vez, o
presente é entendido em função do futuro. Uma idéia é acentuada por Le Goff, presente e
passado são construções históricas e o autor recorre a autores como Piaget, cujo marco
teórico é o construtivismo, para justificar sua afirmação. Em sua incursão etnográfica, Le
Goff cita o estudo de tribos e povos “primitivos” que demonstram uma “confusão entre os
tempos”. Para esses povos não há muita distinção entre “passado, presente e futuro”. Por isso
afirma a ambigüidade dos discursos históricos em relação ao tempo.
A perspectiva do tempo “cíclico” deve prevalecer sobre o tempo “linear”, para Le
Goff. Desse modo, a oposição entre moderno e medieval deve ser objeto de reflexão do
historiador. Principalmente a investigação das atitudes dos indivíduos perante o passado e o
moderno com a consciência da modernidade. O texto de Le Goff faz uma incursão nos
estudos da religião, procurando entender o antigo e o novo, a partir dos estudos bíblicos do
antigo e do novo testamento. O antigo é visto pelos modernos do velho e ultrapassado. Por
outro lado, há uma valorização demasiada do passado, um culto ao passado, que ignora a
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força de transformação do presente. Cabe, portanto, reconsiderar os tempos históricos e tomar
o devido cuidado com a delimitação de fronteiras entre os respectivos períodos históricos.
Origens da Universidade Medieval: Problemas Historiográficos
O pesquisador Walter Rüegg há uma análise reflexiva da história da Universidade. O
autor se preocupa em mostrar a apropriação pela historiografia da origem das Universidades a
partir da Idade Média. Construir uma história social das Universidades é a intenção de Rüegg.
Segundo suas idéias, a história da Universidade está articulada a partir dos mitos. Entender a
Universidade considerando o seu início na Idade Média favorece uma compreensão histórica
da Instituição, além de fomentar novas discussões para a organização da Universidade no
presente.
Para Rüegg, o entendimento da história das três mais antigas Universidades
Medievais: Bolonha, Paris e Oxford, é fundamental para identificar as raízes da organização
institucional da Universidade e também do trabalho pedagógico. De acordo com seu
pensamento, a mitologia é muito importante para uma historiografia das origens da
Universidade. Rüegg cita o caso da Universidade Paris, que procura apresentar Pedro
Abelardo como seu fundador. Mais do que identificar um fundador, é preciso reconstruir a
composição e estrutura de grupos intelectuais que dão origem à Universidade. Outro aspecto é
reconhecer a importância dos seguintes elementos: o Aristotelismo no século XIII, o Direito
Romano no século XIV, o Humanismo no século XV e a Reforma no século XVI.
Outra idéia que Rüegg desmistifica é a afirmação de que Bolonha é a “mãe” das
Universidades Européias. Afirmar isso seria um problema, para o autor. Rüegg entende que
não existe uma “causa” para o surgimento das Universidades, mas sim, um conjunto de
fatores que levaram à sua constituição. A origem se daria assim a partir da tensão entre:
escolas religiosas e os professores independentes. No século XI já é possível identificar o
surgimento de “escolas livres” para o ensino do Direito. Essas escolas que se originam a partir
dos séculos XI e XIII são imprescindíveis para compreender a formação das Universidades.
As bases da Universidade estão, para Rüegg, nas corporações dos ofícios, de mestres e
estudantes, e nos Studium Generalis. Não é possível também ignorar a relação entre cidade
medieval e Universidade. É no contexto da urbanização da vida social que surge a instituição
universitária. Já na Idade Média se organizavam comunidades acadêmicas. A história da
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Universidade medieval não é homogênea e linear, é possível identificar enfrentamentos,
embates e tensões entre os estudantes e os mestres. Sabe-se que no século XI o mundo
medieval recebe uma grande influência da cultura islâmica. Essa influência tem impacto
também sobre a organização do trabalho pedagógico na Universidade. Rüegg fala de dois
modelos de organização das escolas medievais: o modelo islâmico e o modelo cristão.
Não se deve, na perspectiva de Rüegg, separar a Universidade medieval da sociedade
que lhe dá origem. Uma afirmação do autor nos chama a atenção: “A Universidade não é
fruto do progresso do espírito histórico”. Apesar dos inúmeros trabalhos e pesquisas sobre a
origem medieval da Universidade, ainda há uma historiografia que defende a Universidade
como “filha” da Modernidade, com dois modelos hegemônicos: o francês, advindo dos ideais
burgueses da Revolução Francesa e o alemão, proveniente do iluminismo filosófico.
O aparecimento da Universidade na sociedade medieval atende também às
necessidades das classes dirigentes. Daí é possível fazer a conexão entre Universidade e
Capitalismo. Afirma Rüegg: “A nova instituição social, a universidade, apenas poderia ter
surgido nas circunstâncias econômicas, políticas e sociais particulares de certas cidades
européias no início da Idade Média”.
A organização do trabalho pedagógico no interior das Universidades medievais seguia
a disposição de privilegiar os saberes teóricos, como a teologia, em detrimento dos saberes
práticos, como a medicina. Influência essa que vem da educação na Grécia antiga. Não se
pode negar que a Universidade estava a serviço dos monarcas e do papa. Sob a forte
influência da fé cristã, o conhecimento era compreendido como luz. Interessante notar o papel
do papado medieval, os papas eram doutos e muitos deles eram universitários. Há, portanto,
uma proximidade do papa e da Universidade, que era utilizada muitas vezes como
instrumento de refutação das heresias.
Ao lado do surgimento da Universidade medieval há o aparecimento do livro, como
instrumento de aprendizagem. Aparece também uma “indústria” livreira. Na segunda parte do
texto, Jacques Verger, analisa o trabalho docente. E sinaliza que certas discussões como: a
carreira, a corrupção e as disputas no interior Universidade já marcavam a docência desde a
Idade Média.
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Boaventura de Bagnoregio: Mestre do Pensamento Franciscano e da Universidade
Medieval
O pensamento de Boaventura de Bagnoregio deve ser entendido a partir do seu
contexto histórico, isto é, do século XIII, período da baixa Idade Média. Alguns fatores são
importantes: o surgimento do Movimento Mendicante, procurando afirmar o valor da pobreza
evangélica frente a uma igreja cristã extremamente rica, a ambiência citadina, a transformação
das relações humanas pela vida urbana e o nascimento das Universidades, particularmente da
Universidade de Paris, palco das principais disputas teológicas na Idade Média.
Podemos afirmar que o cristianismo do século XIII é fecundo e inovador. Seu caráter
reformador estava muito presente. No período da baixa Idade Média a igreja cristã
experimentava uma riqueza e um poder sem precedentes em sua história. Frente a essa
situação há o aparecimento das chamadas Ordens Mendicantes, que buscavam promover uma
reforma no cristianismo do período. Cabe ressaltar que o Movimento Mendicante, responsável
pelo surgimento dessas novas Ordens religiosas, não tinha uma característica apenas
espiritual. Os aspectos intelectual, sócio-cultural e econômico também tinham importância
bastante acentuada.
As Ordens Mendicantes, no século XIII, não representaram um avanço apenas a igreja
cristã, voltando seus princípios religiosos ao cristianismo originário, mas promoveram novas
relações e, por que não dizer, novas racionalidades, ou novos processos do conhecer.
Destacam-se os franciscanos e os dominicanos. Na mesma igreja cristã, encontramos
posturas diferenciadas em relação ao próprio cristianismo. Essa disputa entre a ordem dos
franciscanos e dominicanos ficará muito visível na Universidade de Paris, nas discussões de
Boaventura de Bagnoregio (1221-1274) e Tomás de Aquino (1225-1274). Na teologia da
época havia uma diversidade de posturas e esses dois mestres da Universidade Medieval
ilustram muito bem isso.
O século XIII é marcado pela vida urbana, e as Ordens mendicantes são fruto desse
processo de urbanização e do impacto disso sobre as relações humanas. O mesmo se pode
sustentar em relação às Universidades surgidas no medievo. A Universidade é provém da vida
na cidade. As Ordens mendicantes também representam essa mudança do campo para a
cidade. Os mosteiros das primeiras Ordens religiosas eram caracterizados pela espiritualidade
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da “fuga do mundo”, por isso, seus edifícios eram construídos fora das cidades. Já as Ordens
do século XIII defendiam o contrário, a inserção na ambiência da cidade.
Essa urbanização levou a uma adequação da igreja cristã, mas também ao
aparecimento da Universidade. A redescoberta do pensamento clássico, a leitura de
Aristóteles e as transformações sociais do período levaram ao surgimento da Universidade
Medieval, com feições diferenciadas da Universidade Moderna, mas que conferiu uma
identidade à instituição. A identidade da Universidade remonta necessariamente à Idade
Média, especialmente ao século XIII.
O mestre do pensamento franciscano e da Universidade Medieval, Boaventura de
Bagnoregio, possuía uma notável inteligência. Em Paris, estudou Artes entre 1235-1243 e
Teologia entre 1243 a 1254. Como o seu mestre, Alexandre de Hales, fez-se franciscano, por
volta do ano 1243. Na Ordem franciscana se destacou muito, ao ponto de ser considerado o
seu segundo fundador, ao lado de Francisco de Assis. Foi eleito para o cargo de ministro geral
da Ordem, governando-a até 1273, quando foi nomeado cardeal. Sua morte se deu durante o
IV Concílio de Lyon, do qual ajudou na preparação, vindo a falecer por excesso de trabalho,
durante as sessões conciliares. (DE BONI, 2005, p. 197).
O Pensamento Franciscano
Para compreendermos o pensamento franciscano, devemos considerar alguns aspectos
fundamentais na sua constituição. O primeiro deles é a influência platônico-agostiniana. As
fontes franciscanas estão em diálogo com essa matriz filosófica. Essa nos parece uma
consideração importante a ser feita. A pobreza evangélica é outra característica do
pensamento franciscano. O conhecimento é visto como um “dom” ou uma “graça” de Deus.
Disso vem a idéia de “iluminação”, tal como Agostinho de Hipona, o conhecimento se dá por
essa “iluminação divina”.
A importância da natureza é outro ponto que precisa ser ressaltado. O franciscanismo,
como movimento espiritual e forma de racionalidade, insiste no valor da imanência. Isso não
significa abdicar a transcendência, ao contrário, mas sustentar que se chega ao transcendente
pelo imanente. O mundo, a natureza, o cosmos, o universo das coisas criadas, alcançam, no
pensamento franciscano um valor sagrado. Esses elementos são formas na manifestação do
próprio Deus, na visão franciscana.
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Tamanha era a importância da natureza, atribuída pelo franciscanismo, que seu
pensamento foi acusado de ser um “paganismo cristão”. No entendimento de alguns
pensadores e líderes eclesiais do período, o pensamento franciscano negava a dimensão de
transcendência, ou, em termos teológicos, a escatologia, ao defender o caráter sagrado das
criaturas e defender a presença de Deus nas próprias criaturas. Essa foi uma contenda no seio
da igreja cristã no período do surgimento da Ordem franciscana.
A mística é outro elemento significativo do pensamento franciscano. Sua
espiritualidade é muito mais mística do que ascética, isto é, insiste mais na revelação como
“dom gratuito de Deus”, do que no esforço humano, via conduta moral, para chegar até Deus.
Isso mostra mais uma diferença entre franciscanos e dominicanos. O pensamento franciscano
é mais otimista, por ser mais místico. Não insiste tanto em temas como o pecado ou o inferno.
Já entre os dominicanos o aspecto ascético parece ser mais importante. A retidão moral, a
ascese, em um abnegado espírito de sacrifício fundamenta, de certo modo, o pensamento
dominicano.
Podemos confirmar isso no pensamento de Tomás de Aquino, quando ele dedica a
segunda parte da “Suma Teológica”, ao tema do pecado, originando o que se chama em
teologia de “moral casuística”. Ao afirmarmos que o pensamento franciscano é mais místico
do que ascético, não defendemos a idéia de que ele nega a dimensão do pecado, pelo
contrário. Em sua obra “Itinerário da Mente para Deus”, Boaventura de Bagnoregio entende
que o pecado deforma a nossa possibilidade de conhecer. O pecado é um obstáculo para o
conhecimento, no entanto, a graça de Deus sempre é maior que o pecado, e vem em socorro
da fraqueza humana, corrigindo assim o pecado do homem e levando-o ao estado de graça e à
possibilidade de conhecer. O otimismo do pensamento franciscano está justamente nessa
afirmação da vitória da “graça divina” sobre o pecado, a deformação da possibilidade de
conhecer. Conhecer só é possível por que Deus oferece seu auxílio à natureza humana,
quando no pecado. Dessa maneira, conhecer é um “dom de Deus”.
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O Método “Espiritual” de Boaventura de Bagnoregio
Inserido no contexto do pensamento franciscano, como mestre da Universidade
medieval no século XIII, Boaventura de Bagnoregio, mostra sua visão de conhecimento como
um método “espiritual”, que une o conhecimento da natureza à teologia. Nesse sentido ele é
fiel ao aspecto místico do pensamento franciscano. Na mesma tradição filosófica de Platão e
Agostinho de Hipona, o mestre medieval defende o conhecimento como iluminação. No
início de sua obra mais importante: “Itinerário da Mente para Deus”, Boaventura de
Bagnoregio faz uma oração ao “Pai das luzes”, mostrando assim, que o conhecimento é um
“dom de Deus”, uma espécie de “revelação divina”. De acordo com o seu pensamento, o
conhecimento é uma dádiva de Deus, sinal da atuação da graça divina na natureza humana.
O processo de conhecer, para Boaventura de Bagnoregio, tem um caráter místico ou
espiritual bastante acentuado. Sua intenção é elevar o homem, pelo correto uso de sua
racionalidade, até Deus. Partindo da natureza, do conhecimento racional, Boaventura quer
chegar ao sobrenatural e ao místico, uma dimensão de profunda contemplação. Nesse estágio,
a razão humana cessaria sua busca, poderia descansar em paz, pois experimentaria a plenitude
da contemplação. O pensamento de Boaventura de Bagnoregio propõe um método, um
caminho para se chegar até Deus, a verdade definitiva.
O diálogo com a Bíblia é constante. Apresenta seu método como uma “escada”,
partindo da interpretação do número sete no livro do Gênesis, que afirma que Deus teria
criado todas as coisas em sete dias e no último teria descansado. Esse esquema teológico é
utilizado por Boaventura de Bagnoregio como caminho do homem, via uso da racionalidade,
para chegar até Deus. Uma “escada espiritual” de sete degraus. É um itinerário progressivo da
“alma” humana, do intelecto, para se chegar até Deus, à contemplação definitiva. Boaventura
define seu método como “caminho para a paz”, por isso, descreve as sucessivas elevações da
“alma” até se encontrar definitivamente com Deus. Nesse caminho espiritual, que é também
racional, e, é interessante notar como esses elementos aparecem articulados no pensamento de
Boaventura de Bagnoregio, o homem aparece inteiro, isto é, com seus afetos, desejos e
emoções. A subjetividade ou os afetos não são obstáculos para conhecer, tal como veremos a
partir gnoseologia do século XVI. Não há dicotomia entre racional e espiritual, essas
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dimensões são indissociáveis, inseparáveis no ato de conhecer, na visão do mestre
franciscano.
Que não venha a crer que baste a leitura sem unção, a meditação sem a devoção, a indagação sem a admiração, a atenção profunda sem a alegria do coração, a atividade sem a piedade, a ciência sem a caridade, a inteligência sem a humildade, o estudo sem a graça divina, o espelho sem a luz sobrenatural da divina sabedoria. (BAGNOREGIO, 1999, p. 293).
O método “espiritual” de Boaventura Bagnoregio supõe uma preparação, antes é
preciso que o homem escute as “censuras de sua consciência”. O pecado, na visão
bonaventuriana, é um obstáculo para o conhecimento. Só possível conhecer pela graça divina
e por nossa própria natureza. De acordo com essas idéias, o pecado é a deformação da
natureza humana, impossibilitando nossa faculdade de conhecer. Por isso, Boaventura reza no
início da apresentação seu método, para que os “espelhos de nossos espíritos estejam
purificados e polidos” e possam assim refletir a luz da verdade. A verdade do que somos, de
nossa própria natureza e a verdade de Deus.
O itinerário sugerido por Boaventura é um caminho que conjuga mística e
contemplação. O elemento intelectual deve conduzir à visão de Deus, que por sua vez, está
presente tanto na ordem natural quanto na sobrenatural. O primeiro estágio para chegar à
Deus é pelo universo criado, pelo dado natural, a partir disso, nos elevamos, buscamos a
divindade e a graça por sua vez, age em nós, nos ajudando nessa busca para chegar a Deus.
Boaventura de Bagnoregio descreve três fases distintas ao longo do itinerário: o intelecto, a
mística e o arrebatamento. O estágio do arrebatamento é o mais difícil de ser alcançado.
Há um apelo para “deixar-se conduzir pelo Senhor”, no início do itinerário. A
“escada” visa ascender ao Criador. No entendimento de Boaventura, o mundo não é
empecilho para conhecer a Deus. Ele fala de dois mundos: o interior (a subjetividade humana
ou sua consciência) e o exterior (a natureza criada). É possível chegar ao Criador pelo
universo, mais uma característica do pensamento franciscano. O aspecto místico se ressalta
quando Boaventura de Bagnoregio afirma que é possível chegar a Deus pelas criaturas. Isso
mostra como seu método “espiritual” é otimista em relação à natureza humana, às coisas
criadas e ao mundo. Boaventura compara a aplicação de seu método a três dias de solidão.
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Tal viagem é de três dias de solidão. Esse é o tríplice esplendor de um só dia, dos quais o primeiro pode ser comparado ao anoitecer, o segundo a manhã, o terceiro ao meio-dia. Isso ainda representa a tríplice existência das coisas: na matéria, na inteligência e na arte divina (existência das coisas em Deus). [...] Isso tem relação com a tríplice substância de Jesus Cristo, nossa verdadeira escada, isto é, com seu corpo, com sua alma e sua divindade. (Ibid., p. 297).
Em seu método “espiritual” de conhecer, Boaventura de Bagnoregio expõe três vias
pra o conhecimento de Deus: “a animalidade”, “o espírito” e “a mente”. O que pode ser
entendido de um modo mais simples como: coração, alma e mente. A primeira via parte das
“coisas corporais e exteriores”, pelo dado da “animalidade e sensitividade”. A segunda, o
“espírito”, é o “olhar sobre si mesmo”. Na terceira via, pela mente, olhamos acima de nós
mesmos, o horizonte de transcendência, a eternidade.
O pensamento de Boaventura de Bagnoregio possui teologia bastante elaborada. Ela se
divide em: teologia simbólica, que parte das coisas sensíveis, a teologia própria, produzida
pela razão humana e a teologia mística, própria do espírito. Só é possível conhecer a Deus
pela graça que nos é concedida.
Ninguém chega à sabedoria sem a graça, sem a justiça e sem a ciência, assim também ninguém pode chegar à contemplação sem a meditação profunda, sem uma vida pura e sem uma oração fervorosa. Ora, a graça é princípio da retidão da vontade e da iluminação da inteligência. Por conseguinte, devemos antes de tudo orar, depois viver santamente e, enfim, aplicar nosso espírito ás belezas da verdade e nos elevar gradativamente, contemplando-as até chegarmos à montanha excelsa “onde se vê o sumo Deus, no esplendor de sua glória” [Sl. 83,8]. (Ibid., p. 300).
Essa articulação entre razão e fé, natural e sobrenatural, no pensamento de Boaventura
de Bagnoregio, supõe que podemos ter acesso a Deus de três modos: através da razão, da fé e
da contemplação (que envolve também os sentidos). Em visão de mundo, Boaventura vê uma
hierarquia entre os seres, partindo dos seres irracionais, ou ligados às coisas terrestres, para se
chegar aos seres mais elevados, cuja consciência consegue contemplar a Deus. Dessa
experiência mística decorre também um princípio de moralidade, baseado em três leis:
natural, a escrita (elaborada pelos homens) e a graça (a lei da liberdade).
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Não há distinção entre sagrado e profano no pensamento de Boaventura de
Bagnoregio. Tudo é sagrado, reflexo da cosmologia franciscana que permeia o seu
pensamento. Ao defender sua hierarquia dos seres, considera que Deus está presente nas
criaturas de duas formas fundamentais: como “vestígios do criador”, aplicado às coisas
materiais, que possuem os atributos de Deus e como “imagens de Deus”, onde a presença de
Deus é explícita e inegável, tendo Deus como objeto. O homem é imagem de Deus, temos em
Boaventura uma antropologia cristã otimista.
Cego é, por conseguinte, quem não é iluminado por tantos e tão vivos resplendores espalhados na criação. É surdo, quem não acorda por tão fortes vozes. É mudo quem, em presença de tantas maravilhas, não louva o Senhor. É insensato, enfim, quem, com tantos e tão luminosos sinais, não reconhece o primeiro Princípio. (Ibid., p.303).
No pensamento de Boaventura de Bagnoregio, não há um pessimismo da matéria,
como em outros pensadores cristãos, de influência platônico-agotiniana. Ao contrário,
podemos chegar ao conhecimento e a Deus através da natureza. Boaventura põe a natureza
como estágio primeiro do acesso ao conhecer. Ele afirma que a trindade mora no homem e
avança ainda mais ao comparar as faculdades cognitivas do homem a Deus. Refletindo sobre
a trindade, ele defende que Deus se mostra ao homem pela: memória, a inteligência e a
vontade. A teologia é aplicada á compreensão dessas dimensões humanas. Ainda na
investigação sobre a trindade, o “Doutor Seráfico”, relaciona o conhecimento racional e
natural à natureza divina. Ele afirma que o Pai é a metafísica, o Filho é a matemática e o
Espírito Santo é a física.
Essa três coisas – a mente que gera, o verbo e o amor, existem na alma como memória, inteligência e vontade, as quais são consubstanciais, coexistentes, coiguais e se compenetram mutuamente. Se, portanto, Deus é perfeito espírito, tem então uma memória, uma inteligência e uma vontade, as quais necessariamente se distinguem, porque uma procede da outra. Distinguem-se, porém, não essencialmente nem acidentalmente, mas pessoalmente. (Ibid., p. 323).
Para Boaventura de Bagnoregio, raciocinar é buscar a luz e a verdade. Nesse sentido,
pensar é buscar a Deus. Nesse processo todo, a vontade não está excluída, muito menos os
afetos. Eles se unem em uma experiência de conhecimento a partir da totalidade do homem.
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Ao tratar do conhecimento, Boaventura trata das quatro luzes: a luz exterior, da arte mecânica,
a luz inferior, do conhecimento sensitivo, a luz do conhecimento filosófico, da especulação
racional e a luz superior, da compreensão da sagrada escritura e de Deus. Essa é a hierarquia
do conhecimento para Boaventura de Bagnorégio, e, assim, apresenta seu método de
conhecer, que conjuga razão e espiritualidade, mística e natureza, fé e especulação científica.
Considerações Finais
Nossa intenção com esse trabalho foi mostrar aspectos da produção do conhecimento
na Universidade medieval, em particular no pensamento de Boaventura de Bagnoregio, no
século XIII. Com isso, procuramos fomentar, em sintonia com outros estudiosos, um novo
olhar sobre a Idade Média. Rejeitando a idéia, um tanto simplista, de que esse período da
história foi infértil à racionalidade humana. A Idade Média produziu conhecimento sob
pressupostos racionais e experimentais, como nos atesta o pensamento de Boaventura de
Bagnoregio. As expressões “ciência experimental” e “conhecimento racional ou da natureza”
aparecem com freqüencia os escritos dos mestres medievais, especialmente na baixa Idade
Média.
Preservar a memória da Universidade, enquanto instituição é uma necessidade atual. O
recurso à história é uma forma de compreender o presente, as questões que estão colocadas
em nossos dias. Assim, ir ao encontro da Universidade medieval é buscar as raízes de nossas
instituições de hoje. Analisar a organização do trabalho pedagógico, a atuação dos mestres e
de seus discípulos, o processo do conhecimento, no seio da Universidade medieval, pode
projetar luzes sobre a compreensão de nossa realidade presente.
A Idade Média foi um período intenso de produção de saberes e conhecimentos. A
leitura dos clássicos era constante, a inquietação estava presente no pensamento através dos
debates travados no seio da Universidade nascente. No século XIII se destacam Aberto
Magno, Tomás de Aquino e Boaventura de Bagnoregio, nas disputas teológicas da
Universidade de Paris. O surgimento das cidades, as novas relações surgidas daí originaram
uma nova forma de organização da vida social e também uma nova racionalidade.
Representante do pensamento franciscano, Boaventura de Bagnoregio, desenvolve um
método “espiritual”, como proposta de conhecimento. Ele articula em sua gnoseologia dois
planos do conhecimento: a mística e a razão, o natural e o sobrenatural. Por ser teológico, seu
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método, como sugestão do processo do conhecer, não é “irracional”. A racionalidade humana
tem um lugar muito importante no “Itinerário da Mente para Deus”, obra fundamental do
pensamento bonaventuriano. Nessa obra, Boaventura defende um caminho que vai da razão
para a mística, isto é, do homem a Deus, na forma de uma “escada”, de um movimento de
ascendência.
A teologia de Boaventura de Bagnoregio compara Deus a uma mente, a um “logos
criador”. Faz afirmações como: “Deus está presente por imagens e vestígios nas criaturas”,
“Deus mora dentro do homem”, “o homem pode conhecer a Deus pela bondade da graça
divina”. Há um otimismo em relação ao homem e ao mundo. Não se trata de uma
“espiritualidade de fuga do mundo”, mas ao contrário, de inserção no mundo. A razão não
chega à sua plenitude se não alcançar a mística.
REFERÊNCIAS
BAGNOREGIO, Boaventura. Escritos Filosóficos e Teológicos. Porto Alegre: Edipucrs,
1999.
_______. Itinerário da Mente para Deus. Porto Alegre: Edipucrs, 1999.
_______. Redução das Ciências à Teologia. In: DE BONI, Luis Alberto (Org.). Filosofia
Medieval. Porto Alegre: Edipucrs, 2005, p. 197-213.
CHARLE, Christophe & VERGER, Jacques. História das Universidades. São Paulo: Editora
Unesp, 1996.
DE BONI, Luis Alberto (Org.). Filosofia Medieval. Porto Alegre: Edipucrs, 2005.
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