Download - A Sombra Que Me Move Pdf2
A SOMBRA QUE ME MOVE – ensaios sobre ficção e
produção de sentido (cinema, literatura, tv)
Luiz Antonio Mousinho
Para meus filhos Bia e Luizinho,
força violenta, comoções da minha
vida;
e em memória de meu pai, Antonio,
que não veio para jantar; e de meu
avô, o velho José Mousinho, que
tocava fogo no mundo, sem perder a
ternura.
Agradeço:
- especialmente ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, pela concessão de bolsa de Produtividade em Pesquisa – PQ, em projeto que está em andamento (2010-2012) junto à área de Comunicação e a partir do qual foram produzidos boa parte dos artigos reunidos neste livro, além das condições para promover a costura teórica que possibilitou reuni-los em um livro;
- ao departamento Departamento de Comunicação e Turismo da UFPB – DECOMTUR, meu principal ambiente de atuação profissional, pelo apoio em termos de carga horária e conteúdos ofertados que me permitem desenvolver projetos de Iniciação Científica junto aos alunos do departamento, bem como atuação junto a alunos de mestrado e doutorado na pós em Letras para a qual têm confluído muitos alunos de Comunicação, sempre trabalhando nas interfaces entre os campos da Comunicação e da Literatura;
- Ao Programa de Pós-graduação em Letras (PPGL) da Universidade Federal da Paraíba, pelo total apoio e espaço que recebo para trabalhar em seus cursos de Mestrado e Doutorado e também pelo financiamento deste livro, publicado a convite do PPGL; o agradecimento especial fica aqui para as professoras Ana Marinho, Liane Schneider e Sandra Luna.
- Agradeço à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, FAPESP, pelos 4 anos de bolsa de doutorado; três dos quatro capítulos incluídos neste livro que se referem à obra de Clarice Lispector foram produzidos em versão inicial na tese Clarice Lispector e os jardins da razão, defendida em janeiro de 2003 na UNICAMP, trabalho produzido com financiamento da referida fundação. Agradeço também à UNICAMP, pela acolhida.
- A Suzi Frankl Sperber, da UNICAMP, pela competente, detida e cuidadosa orientação da referida tese, pelas várias lições e pelo apoio pessoal em momentos difíceis de minha passagem por São Paulo; a Suzi, cuja orientação resultou, entre várias outras coisas, em três capítulos deste livro. Novamente a Suzi, pela generosa (e surpreendente) revisão final deste livro, além, é claro, do generoso prefácio.
- Aos professores Francisco Foot Hardman e Vilma Arêas, ambos da UNICAMP, pelas lições e também pela recepção quando cheguei a São Paulo, em 1998.
- A Sônia Ramalho, hoje na UFPE, que fez toda minha formação de base no PIBIC e mestrado da UFPB, juntamente com aqueles professores que compunham o corpo docente do PPGL na década de 90 e formaram gerações na melhor tradição da pesquisa brasileira (e lembro aqui os cursos de Idelette Muzart, Sônia van Dijck, João Batista de Brito, Maurice Von Woensel e Neroaldo Pontes); pelo acompanhamento, pelos ensinamentos e incentivo pessoal não poderia deixar de reforçar meu agradecimento a Idelette Muzart, minha professora na graduação e no mestrado da UFPB, hoje na Université Paris Ouest Nanterre La Défense.
- A Roberto Corrêa dos Santos (UERJ/ UFRJ), pela atenção à distância e também pela admiração ao ensaísta, cujas frases me perseguem.
- aos que continuaram acreditando na pesquisa e no ensino superior no Brasil e persistiram, mesmo durante os oito longos anos da equivocada, incompetente e mesquinha gestão de ambos os setores levada adiante pelos professores doutores Fernando Henrique Cardoso e Paulo Renato de Souza, que quase enterraram uma tradição dura e longamente construída.
- À universidade pública brasileira, em especial à Universidade Federal da Paraíba, onde fiz toda minha formação de base, na graduação em Comunicação social e no mestrado em Literatura brasileira e hoje é minha oficina de trabalho.
Alguns querem um texto (uma arte, uma pintura) sem sombra,
cortada da ‘ideologia dominante’; mas é querer um texto sem
fecundidade, sem produtividade, um texto estéril (...) O texto tem
necessidade de sua sombra; essa sombra é um pouco de ideologia,
um pouco de representação, um pouco de sujeito; fantasmas, bolsos,
rastos, nuvens necessárias; a subversão deve produzir seu próprio
claro-escuro.
O prazer do texto - Roland Barthes
Antes de começar a estrada que se perdia em suspensa poeira de sol,
apenas o jardim nada mais que contemplável; compreensível e simétrico
do alto da sacada; emaranhado quando se fazia parte dele (...) e de noite o
jardim era ocupado pela secreta urdidura com que o escuro se mantém,
num trabalho cuja existência os vaga-lumes inesperadamente traem.
Certa umidade também denunciava o labor. E a noite era um elemento
em que a vida, por se tornar estranha, era reconhecível.
A maçã no escuro – Clarice Lispector
Ó amor, enquanto puderes, não te
percas de mim
(da contra-capa de um disco
brasileiro dos anos 80)
a sombra que me move
também me ilumina
(Zé Ramalho)
ADVERTÊNCIA
Cada capítulo deste livro foi concebido para poder ser lido isoladamente e
em qualquer ordem. Ao mesmo tempo, descrições teóricas e mesmo alguns trechos
analíticos circulam entre alguns textos, se repetem. Isso também reflete o fato de
que há um fio teórico comum entre os vários textos. Artigos e ensaios partem da
narratologia e procuram articular várias áreas de conhecimento afins, envolvendo
o campo da Comunicação, Crítica e Teoria da literatura, Teorias do cinema,
Teoria crítica, aspectos da Antropologia, da Sociologia e da Psicanálise, etc,
buscando analisar e interpretar dados do discurso ficcional, em interface com a
série social.
SUMÁRIO
1 - O telespectador confortado, deslocado: o programa Cena aberta e o seriado Cidade
dos homens.................. 11
2 – Megacidade, conta teus meninos: anotações sobre a adaptação do livro Uólace e
João Victor para o seriado Cidade dos homens.................27
3 – Tem que ser agora: focalização e dialogismo no seriado Cidade dos
homens................35
4 - A verdade entrevista: a cena aberta de Jorge Furtado, Guel Arraes e Regina Casé ......
45
5 - Nem pensar a gente quer, a gente quer é viver – focalização e dialogismo em Houve
uma vez dois verões e Meu tio matou um cara, de Jorge Furtado .............. 57
6-A sombra que me move, também me ilumina – sobre alguns curtas da Casa de cinema
de Porto Alegre .................. 64
7 - Uma narrativa em pedaços - O jardineiro fiel, de Fernando Meirelles ............ 72
8 - O plano perfeito de Spike Lee ............................. 79
9 - Narrativa e experiência: a marca das mãos do oleiro ............... 86
10 - Ficção e experiência: o particular, o fragmento, o instante ………… 98
11 – A imagem de si mesmo: narrativa, dialogismo e intersubjetividade em A maçã no
escuro.........................117
12 - Clarice Lispector e a sombra da palavra ................ 130
13 - O círculo dos homens: Kafka e a família ...................... 137
14- Os sertões e a confissão de culpa de um repórter ................... 144
15 - Um certo encantamento táctil: outros Machados de Assis .................. 151
16 – Na conta da dor do mundo: o romance Rita no Pomar ...................... 155
Entre subverter e alienar: contradições em narrativas contemporâneas
Suzi Frankl Sperber
UNICAMP
Os textos de Luiz Antonio Mousinho, a serem lidos como unidades em si, cada um,
razão pela qual o leitor pode até reencontrar reflexões de um texto em outro, têm duas
tônicas fortes: a voz narrativa e suas dimensões e variações, confrontadas ou divergidas
da voz narrativa na tela, em over, ou em off, ou direta, de cada personagem, produzindo
efeitos de consenso ou dissenso com a imagem. Esta é uma das tônicas que abarcam o
fazer artístico - literário e cinematográfico, seja um filme, seja um seriado de TV. A
outra tônica reside na desigualdade social brasileira e na maneira como os discursos
literário e cinematográfico lidam que ela. Subsidiário a esta tônica existe o correlato de
que as vozes são jovens. Como as obras observadas abrangem um leque de um século, e
de diversos mundos, as personagens repercutem características que marcam o espaço, o
correr do tempo, a ação e reflexão, a linguagem criada.
Dentre as séries de TV e narrativas estudadas por Mousinho, com linguagem
extremamente fluida e agradável, o autor estuda obras em que se confrontam a “ralé”, os
despossuídos brasileiros jovens, nas praias do Rio de Janeiro e os que provêm de outros
estratos sociais. Aí acaba havendo uma curiosa mescla de exclusão social, de tentativa
de diálogo entre pessoas de classes diferentes, e, como se trata de jovens, estes são
apresentados não como trabalhadores, não como estudantes, mas como ‘jovens’, em
certa medida igualados pelos sonhos de futuro, pela sensualidade, pela busca do prazer.
Até mesmo as diferentes origens esmaecem diante de um mesmo impulso para a
curtição das personagens jovens nestas narrativas literárias, cinematográficas ou de
seriados de TV. Estamos diante de uma representação correspondente à verdade social e
econômica? Trata-se de uma violência simbólica por abstrair a possibilidade de se
perceber as verdadeiras e mais profundas marcas das desigualdades no Rio de Janeiro?
Teriam sido desvirtuadas as verdadeiras causas que permitiriam perceber os conflitos
sociais reais? Foram eles apagados ou naturalizados? Poderíamos ver as personagens,
com o olhar de Jessé de Souza, como pertencentes a “uma classe que sofre, trabalha 14
horas por dia, não tem férias, não tem lazer, está endividada com o banco por 10 anos e
pensa que é livre”? Esta afirmação final é fundamental. E não deixa de ser abordada
tanto nas obras analisadas por Mousinho, como por sua própria análise. Isto é: teria sido
infundida a ideia de liberdade a pessoas cuja cidadania é comprometida pela opressão,
pela exploração?
Este problema percorre os diferentes artigos, explicitamente ou não.
Ao abordar o recurso do narrador Mousinho se refere a Walter Benjamin e à leitura de
sua obra feita por Silviano Santiago. A referência filosófica é a da experiência como
valor maior. O contraponto é feito com a desorientação do romancista ou contista
contemporâneos e com o jornalista, que transmite informações. Coloca-se, então, para
nós, a aporia: a experiência esgotou-se? Não há mais experiência no mundo atual?
Quando o próprio Walter Benjamin observava seu mundo, ele mesmo já se tornara
incapaz de viver o vivido sem dele inferir experiência alguma? Mousinho postula que
para Silviano Santiago, o narrador pós-moderno é o que transmite
uma ‘sabedoria’ que é decorrência da observação de uma vivência alheia a ele, visto que a ação que narra não foi tecida na substância viva da sua existência. Nesse sentido, ele é o puro ficcionista, pois tem de dar ‘autenticidade’ a uma ação que, por não ter o respaldo da vivência, estaria desprovida de autenticidade. Esta advém da verossimilhança que é produto da lógica interna do relato. O narrador pós-moderno sabe que o ‘real’ e o ‘autêntico’ são construções de linguagem. (SANTIAGO, 1989, p. 40)
De fato, a mais forte consciência contemporânea é a de que a linguagem, de toda e
qualquer criação, é um constructo feito de arbítrio e magia – ou violência – um jogo que
interrompe temporariamente a percepção viciada, produzindo desorientação, vertigem,
estas, sim, facultadoras de experiências não do narrador, mas no e do receptor. Isto
ocorre tanto nas grandes obras de narrativas da palavra, como da imagem, ou das
expressões do corpo, obras do espaço e do tempo. O artefato se coloca num entre-
caminho, lugar entre experiências, entre tempos passados e futuros, captável num
momento dado, imprevisto, imprevisível. Então podemos entender bem o que diz
Santiago, apud Mousinho:
Nesse ensaio do final dos anos de 1980, o autor nota ainda que, no contexto da narrativa pós-moderna, a “vivência do mais experiente é de pouca valia”, pois a “ação pós-moderna é jovem, inexperiente [...] De que valem as glórias épicas da narrativa de um velho diante do ardor lírico da experiência do mais jovem — eis o problema pós-moderno” (SANTIAGO, 1988, p. 46-47).
De que maneira proponho, aqui, a compreensão deste trecho? “A vivência do mais
experiente é de pouca valia”, se for entendida como absoluta, definitiva e a única e
última verdade. Se a experiência do mais experiente for verdadeira, uma das verdades
será reconhecer a relatividade e o relativismo de todas as verdades. A experiência é
válida e necessária se for entendida a intensidade do vivido. Então, a intensidade do
vivido se abre para a intensidade do ouvido, do vivido por outrem, i.é, para a
intensidade da alteridade. Não há uma só experiência, mas muitas, infinitas. O “ardor
lírico da experiência do mais jovem” pode ter intensidade paralela à da “glória épica da
narrativa de um velho”. Daí que a absolutização da palavra experiência pode levar à
confusão, eliminando tanto a diversidade como as alteridades.
Certamente o reconhecimento da intensidade como fundamento da descoberta, da
reflexão, da apreensão de novos níveis de consciência não corresponde ao comentário,
muito justo, de Maria Rita Kehl, citado por Mousinho: “Descartado o passado, em nome
de uma eterna juventude, produz-se um vazio difícil de suportar.” (KEHL, 2003, p.4). A
“eterna juventude” mencionada por Kehl corresponde ao esvaziamento da memória
pessoal e coletiva, ao apagamento das percepções e à construção de uma idolatria: a
dessa “eterna juventude”, que nega a mortalidade, desconhece trajetórias e impede
qualquer ascese – ou caminho. Valeria o que permanecesse congelado, imobilizado,
sempre jovem. Corresponde também a negar a realidade circundante, a história
econômica, social e psíquica. Quando os jovens “esquecem” sua origem e transformam
suas vidas e as praias do Rio de Janeiro em lugares desprovidos de limites, “criam” uma
espécie de novo estado, de estado sem fronteiras, sem dores, restrições, onde tudo seria
possível e cabível. É esta a liberdade, ou a alienação? Como é tênue a fronteira que
separa a ambas! Diria que ela é definida não apenas pelo desejo de “pertencer” ao outro
lado, mas pelo reconhecimento do valor do outro como paralelo ao melhor de si, como
alguém cujos valores e intensidade são vistos com olhos igualitários, libertários e com
base em princípios universais (entendidos, aqui, segundo postula Norberto Bobbio).
Assim é que mesmo considerações estéticas talvez possam ser veladas pelo
desprestígio. Mousinho, ao estudar Clarice Lispector, apresenta ao leitor, diferentes
posições. Uma é a de Arnaldo Franco Jr. sobre A paixão segundo GH (FRANCO JR.,
1993, p.77) e a outra é a de Berta Waldman e Vilma Arêas (WALDMAN & ARÊAS,
1992, p.144). O ponto de ligação gira em torno do lugar-comum. Arnaldo Franco Jr.
“questiona a supremacia dos valores médios, apontando para a sua alienação e
violência” (FRANCO JR., 1993, p.77), enquanto WALDMAN & ARÊAS questionam a
linguagem ‘“empurrada para uma materialidade de coisa, de corpo, que ela não tem”. E
acrescentam especulando que, talvez, “como diz Sartre, essa materialidade de
linguagem se encontre no lugar-comum’”. A materialidade da palavra existe tanto física
como sonoramente (significante); o lugar-comum tem função fática (cf. SPERBER
2009), exprimindo o fundamental e forte desejo de estabelecer uma relação com seu
receptor, e a visão do desenho de um casal nu na parede do quarto de empregada,
surpreendentemente limpo, claro, iluminado pelo sol, estabelece uma relação com a
“patroa”, i.é, GH, criando um point de capiton (cf. Lacan), isto é, uma relação entre o
significante e o significado, não de forma simplificada e ligeira, mas como “une masse
amorphe et toujours flottante des significations”1. A desconstrução do horizonte de
expectativas de GH desmonta qualquer atribuição de um significado ‘lugar-comum’ ao
significante ‘empregada’, ‘corpos nus’, ‘arrogância de classe’, ‘superioridade’.
Nas anotações da estenógrafa que anotava as palavras de Lacan neste dia de aula de 06
de junho de 1956, Lacan estabelece uma relação com a criação do medo de Deus, visto
que o tema abordado no momento da aula era uma obra de Racine. Segundo as
anotações da estenógrafa, neste dia:
La crainte de Dieu est un signifiant qui ne traîne pas partout. Il a fallu quelqu'un pour l'inventer, et proposer aux hommes, comme remède à un monde fait de terreurs multiples, de redouter un être qui ne peut, après tout, exercer ses sévices que par les maux qui sont là, multiplement présents, dans la vie humaine. Remplacer les craintes innombrables par la crainte d'un être unique qui n'a d'autre moyen de manifester sa puissance que par ce qui est craint derrière ces innombrables craintes, c'est fort2.
GH não sente o temor de Deus – ou o sente. O que é referido no romance de Clarice
Lispector é a surpresa, a desnaturalização de tudo que cerca GH, atirando-a para um
mundo novo, ela mesma a ser reinventada, renascida, precisando passar por uma morte
simbólica, que lhe dá uma dimensão paralela ao nó de Borromeo (cf. Lacan), capaz de
estabelecer a intersecção entre o simbólico, o real e o imaginário, criando outros
significantes e outros significados, criando outra vida e outras dimensões, distantes do
lugar-comum, da violência contra o outro, da alienação. As intersecções criam nuances
que se interpenetram. Corresponde ao que cita Mousinho: “a subversão deve produzir
seu próprio claro-escuro” (BARTHES, 1996, p.44)
1 http://www.ecole-lacanienne.net/forums-msg.php?forum=gen&num=199 Acesso em 02/06/2011. 2 O temor de Deus é um significante que não se arrasta por todo lado. Foi preciso que alguém o inventasse e o propusesse aos homens, como um remédio para um mundo de múltiplos terrores. Ter medo de um ser que não pode, afinal de contas, exercer as suas sevícias a não ser através dos males que existem no mundo, multiplemente presentes na vida humana. Substituir a miríade de temores pelo medo de um ser único que não tem outro meio de manifestar seu poder a não ser pelo que se teme por trás desses inumeráveis medos, isto é muito forte.
A desnaturalização provocada pelo confronto com a diferença, tema que percorre
contos, romances e filmes tratados por Mousinho, no mínimo nos faz entender o que é
citado por Luiz Antonio e que vem de Tristes trópicos (s/d), de Claude Lévi-Strauss. A
esse respeito diz Mousinho:
Sobre a culpa originada na colonização das Américas, ele (Lévi-
Strauss) sente que
para nós, Europeus e terrenos, a aventura no coração do Novo Mundo significa em primeiro lugar que ele não é o nosso e que transportamos conosco o crime de sua destruição; e em seguida que não voltará a haver outro: regressando a nós próprios por esta confrontação, saibamos, pelo menos, exprimi-la nos seus termos iniciais – num local, e referindo-nos a um tempo em que o nosso mundo perdeu a oportunidade que lhe era oferecida de escolher entre as suas missões (s/d, p.494).
Entendendo que as trajetórias das personagens clariceanas – pungentes, fortes –
obrigam-nas a mudanças consideráveis, e que isto é capaz de ser expresso com um sutil
humor, Mousinho aproveita certos títulos clariceanos para compreender melhor A
Metamorfose, de Kafka. Daí falar sobre o corpo, cuja consciência é ponto de partida
para todas as transformações, (ainda que diferentemente) tanto em Clarice como em
Kafka , ou ironizar, como ironiza Kafka, os ‘Laços de família’, ou ainda um dos
subtítulos de A hora da estrela: “Quanto ao futuro”. É um bom achado, que interessará
os leitores, assim como os leitores se interessarão pelos demais textos, a fim de acolhê-
los, ou discuti-los. Que não fiquem indiferentes, este é o objetivo deste volume.
1 – O telespectador confortado, deslocado: o programa Cena aberta e o
seriado Cidade dos homens
Entre 2002 e 2006 foram produzidas, veiculadas e lançados em dvd dois projetos
de ficção audiovisual realizados pela O2 Filmes e a Casa de Cinema de Porto Alegre,
em parceria com a Central Globo de Produção. O primeiro projeto resultou no seriado
Cidade dos homens, concebido por Fernando Meirelles e o segundo no programa Cena
aberta, projeto de Jorge Furtado, dois dos mais importantes cineastas brasileiros
contemporâneos.
Em 2003 foram ao ar os quatro episódios do Cena aberta, roteirizados por Guel
Arraes e Jorge Furtado, dirigido pelos dois e por Regina Casé, todos com direção geral
de Furtado. Lançado em dvd em 2004, o programa adaptou o conto Negro Bonifácio, de
Simões Lopes Neto, A hora da estrela, novela de Clarice Lispector, o conto As três
palavras divinas, de Tolstói, e Ópera do sabão, romance de Marcos Rey, intitulado
Folhetim. No programa, há a presença de uma forte levada de entretenimento televisivo,
mesclado a telejornalismo, ficção televisiva e opção predominante pelo elemento
cômico.
Filmado e veiculado entre 2002 e 2005, Cidade dos homens foi encerrado em
quarta temporada, com último dvd lançado em 2006. Ao todo foram 19 episódios,
protagonizados por Acerola e Laranjinha, personagens criados por Bráulio Mantovani
(roteirista de Cidade de Deus), a partir do romance de Paulo Lins. O projeto foi
encerrado em 2007 com o lançamento do longa-metragem Cidade dos homens – o filme,
dirigido por Paulo Morelli.
O seriado Cidade dos homens dialoga com vários textos audiovisuais e literários
que o precederam. O romance Cidade de Deus, de Paulo Lins, gerou um curta-
metragem que serviu como ensaio para as filmagens de Cidade de Deus. Intitulado
Palace II, o curta foi veiculado na série Brava Gente, da Globo, com direção de
Fernando Meirelles. Nele, os personagens Acerola e Laranjinha foram delineados (a
partir de personagens secundários do romance de Paulo Lins). No curta-metragem, no
plano do enredo vêem-se os dois garotos evitando transgredir, se envolver em assaltos
ou narcotráfico, mas seguindo num fio de navalha, oscilando ante a possibilidade
avaliada de se envolver com o crime (o que quase acontece em algumas situações), num
ambiente de carência total.
Já em Cidade dos homens, eles não delinqüem, se postam bem afastados do
narcotráfico, mas são vistos em meio às complexas relações entre a comunidade, os
traficantes e as estruturas de poder dentro e fora dos morros. A ênfase, no entanto, é
para a vida comunitária, tendo como elemento central o cotidiano dos dois garotos.
Cena aberta: ficção, adaptação, telejornalismo, entretenimento
Revelando os bastidores de produção, apontando abertamente as manipulações
de tempo, espaço, personagem, etc, Cena Aberta parece se valer de conquistas
metalingüísticas instauradas pela tv brasileira nos anos 80, em programas específicos,
inspiradas em procedimentos de vanguardas no cinema de décadas anteriores, mas
correndo em faixa própria, dentro de um ambiente de consumo para grandes audiências.
E com feições próprias também na mescla entre ficção e telejornalismo, incorporando-
se fortemente o gênero jornalístico entrevista à narrativa, bem como o gênero
reportagem.
Um dos episódios do Cena aberta, As três palavras divinas, é baseado num
conto de Tolstói, dirigido por Jorge Furtado, Guel Arraes e Regina Casé, que
protagoniza o programa, juntamente com o ator Luís Carlos Vasconcelos. No episódio é
narrada uma situação de carência total de uma família -- um sapateiro, sua mulher e seus
filhos. Minguando seus recursos para evitar a fome e o frio, o sapateiro de uma zona
rural russa vai à cidade cobrar várias dívidas que lhe são devidas por trabalhos que
realizou e pelos quais não recebeu. Logo de início, os bastidores da produção do
audiovisual baseado no conto são de certa forma revelados, conforme delineado no
roteiro de Furtado e Arraes.
A atriz e diretora Regina Casé faz o papel de narradora, diretora e entrevistadora,
na tela e em off/ over. O texto audiovisual, pela fala dela, vai revelando algo do seu
fazer, situando a narrativa de Tolstói, falando de seus laços com a religião e os pobres
da Rússia, colocando as falas do narrador ficcional e matizando-a, comentando-a,
acrescentando à fatura ficcional procedimentos do telejornalismo e do cinema
documentário.
Colando imagens de filmes como Ivan, o Terrível e Deus e o diabo na terra do
sol, o episódio traz numa das cenas iniciais uma analogia entre pobreza e religiosidade
dos povos russo e brasileiro dos interiores, transferindo a narrativa para o frio do Rio
Grande do Sul, numa pequena cidade. O personagem é visto migrando da neve russa,
com cenários e maquinário de filmagem expostos, e adentrando agasalhado num
verdejante e esfumaçado campo gaúcho.
Em cena, Regina Casé aparece interagindo em frente à câmera como
entrevistadora; noutros momentos, se faz uma contadora de histórias, lendo trechos do
conto num galpão para os moradores do lugarejo, por vezes entrecruzando a narrativa
com a experiência deles; ainda noutros instantes, vemos Regina acompanhando o
trabalho amador de atuação cênica dos moradores da região e do ator Luiz Carlos
Vasconcelos. Humor e entretenimento televisivo se alternam com o desenvolvimento
dramático, quando o episódio mergulha na ficção e vai acompanhar a dor do
personagem Simão, visto em uma das primeiras cenas do episódio, em sua errância de
incerteza, embriaguez e fome, numa noite desesperada e fria, onde encontra um rapaz
desmaiado e nu, Miguel.
Anjo caído por ter desobedecido a Deus por pena de levar a alma de uma mãe
que agonizava junto ao filho recém nascido, Miguel assume a precariedade da condição
humana e sente sede e frio e fome até cumprir a missão que lhe foi dada: aprender, em
sendo humano, o sentido das três palavras divinas, conforme revelará ao final o conto,
como a narradora do audiovisual antecipará. As palavras divinas responderiam aos
mistérios sobre “o que existe nos homens, o que não sabem os homens e o que faz viver
os homens”, como está no texto audiovisual.
Duas manipulações de ponto de vista explicitamente assinaladas enquanto tais
no roteiro vão iconizar o entendimento de algo dessa condição, do enigma humano.
Numa delas, conforme sugere o roteiro (mas não é integrado ao episódio) é repetida a
cena de Simão sofrendo no fim da noite fria, agora visto pelo olhar do anjo.
Noutra situação, incluída no episódio, a visão comovida do anjo mira a
arrogância extremada de um coronel que adentra no casebre de Simão e encomenda
ameaçadoramente botas especiais que durem dois anos, sem saber que irá morrer antes
de usá-las, na revelação, no episódio, da segunda palavra divina – a ignorância dos
homens quanto às suas necessidades, quanto ao futuro.
Em As três palavras divinas há um uso bastante efetivo da entrevista enquanto
experimentação da percepção do texto literário pelos atores amadores da comunidade de
Linha Bonita. Isto se dá na maneira como esses atores interagem com as situações
narrativas, atuando, sugerindo, refletindo sobre o processo. Dessa maneira, a
experiência da comunidade onde ocorrem as locações é fortemente incorporada ao fazer
ficcional e ao processo de adaptação do texto literário para o audiovisual.
A edição explicitada de uma entrevista com o dono de um armazém potencializa
a revelação do texto audiovisual, enquanto produtor de sentidos. A conversa de Regina
Casé sobre fome, frio e vender fiado para ricos e pobres é repetida na conversa do
bodegueiro local com o personagem Simão. Ou seja, as respostas dadas pelo bodegueiro
a Casé são apresentadas e em seguida editadas como respostas a perguntas gravadas
posteriormente pelo ator Luiz Carlos Vasconcelos, em respostas a Simão. E as duas
versões são apresentadas no episódio.
O processo de realização de As três palavras divinas incorpora o ponto de vista
da comunidade, que se apropria do conto natalino e participa da construção da versão,
conforme mesmo sugestão do roteiro. Além das entrevistas e esboços de reportagem
integrados ao programa, certas respostas dos moradores dão conta de outras entrevistas
não editadas, como quando, perguntada sobre a imagem de Deus, uma senhora lembra
que “ontem e também no domingo” isso foi perguntado a várias pessoas, “aqui, lá em
cima”.
O ponto de vista da comunidade é incorporado ao processo de produção, como
já dissemos. E também – por vezes, no texto audiovisual --, o ponto de vista no sentido
de focalização (ou seja, qual é o personagem cujo ponto de vista orienta a perspectiva
narrativa; quem vê, para falar com G. Genette). No caso da incorporação, em certos
momentos, do ponto de vista de membros da comunidade, isso configuraria uma
focalização interna múltipla, ou seja, aquela que “consiste no aproveitamento (quase
sempre momentâneo e episódico) da capacidade de conhecimento de um grupo de
personagens da história” (Reis; Lopes, p. 251)3.
Na cena final o que seria a subida dos anjos aos céus é substituído por uma
sondagem feita pelos atores Regina Casé e Luiz Carlos Vasconcelos, junto à
comunidade, sobre como representar a imagem de Deus. Os moradores de Linha Bonita,
no Rio Grande do Sul, afirmam perceber o divino como imerso nas coisas, nas pessoas,
nos elementos da natureza. Tais dados apontados são incluídos no texto fílmico. Isso
sem que se deixe de perceber que vários dos encaminhamentos da fala dos personagens
são pré-concebidos pelo roteiro. Ou seja, que tal espontaneidade e amarração de
elementos captados se integram a um constructo discursivo consciente e bem disposto.
O programa coloca a questão da representação de Deus e termina indicando a
possibilidade de se encontrar o divino nas pessoas. A câmera se ocupa então em
focalizar as pessoas sendo encontradas em primeiro plano, os créditos nomeando os
atores amadores que representam os papéis na adaptação do conto de Tolstói,
adicionando ao final a informação da participação de “todos os moradores de Linha
Bonita”, numa cena final com presença marcada de trilha melódica.
O episódio As três palavras divinas faz uma adaptação produtiva do texto
literário, aclimatando-o de forma estimulante ao ambiente da tv contemporânea e à
percepção do espectador de televisão, sem se acomodar às rotinas de linguagem desse
mesmo ambiente. Ao mesmo tempo, investindo nas “virtudes dialógicas da entrevista”
(Medina, p. 7) As três palavras divinas se aproxima de uma comunidade, mergulhando
em sua experiência, reativando nela e na espectação, a capacidade de contar e ouvir
histórias, tecendo numa mesma peça discursiva a voz da narrativa oral e literária, além
de ampliar as possibilidades do cinema e da televisão contemporâneos.
No episódio Negro Bonifácio, baseado em Simões Lopes Neto, a relação dos
atores com a comunidade aposta nas diferenças e construções prosódicas, com as
entonações e falares gaúchos, a tradução de palavras e costumes, costurando a relação
de Carolina Dieckmann e Lázaro Ramos com a comunidade jovem de uma cidadezinha
3 “A focalização interna corresponde à instituição do ponto de vista de uma personagem inserida na ficção, o que normalmente resulta na restrição dos elementos informativos a relatar, em função da capacidade de conhecimento dessa personagem. (...) O que está em causa não é, pois, estritamente aquilo que a personagem vê, mas de um modo geral o que cabe dentro do alcance do seu campo de consciência, ou seja, o que é alcançado por outros sentidos, além da visão, bem como o que é já conhecido previamente e o que é objeto de reflexão interiorizada” (Reis; Lopes, p.251).
gaúcha. Boa parte do tempo narrativo é dedicada a essa convivência, com porção bem
menor do tempo do discurso sendo dedicado à encenação ficcional propriamente dita.
Já o episódio Folhetim é adaptado do livro Ópera de Sabão, de Marcos Rey.
Nele há uma paródia das radionovelas e também do melodrama apresentado nas
telenovelas. Dessa vez não é uma comunidade que participa da construção do episódio,
como em As três palavras divinas e Negro Bonifácio, nem mesmo um grupo de atrizes
selecionadas. Funcionários do núcleo de dramaturgia da Globo – câmeras, figurinistas,
maquiadores, etc – se apóiam em sua participação de bastidores nas novelas globais e
opinam na construção da trama e dos personagens, em diálogo com Regina Casé. O star
system também é parodiado, com Márcio Garcia em papel canastrão e direito até a uma
ponta de Xuxa, numa alusão ao filme conto-de-fadas que os dois fizeram no cinema.
Um outro texto literário adaptado no Cena aberta é A hora da estrela. O
episódio se constrói de cenas de ensaios, de representações do texto, depoimentos da
vida pessoal de várias candidatas amadoras que tentam interpretar a protagonista
Macabéa, conduzidas por Regina Casé (que faz algumas personagens, inclusive ela
mesma). A exibição editada de momentos de construção da personagem e os offs
retirados do texto clariceano e que servem de fio condutor em trechos da narrativa,
parecem resgatar dados do narrador da novela clariceana e da discussão assumida em
torno dos impasses do processo mimético. Inclusive de seus impasses, mostrados nas
vacilações da direção e das moças que representam. Elas que titubeiam no instante de
entendimento do personagem, nos momentos em que a narrativa vacila, nas várias
possibilidades de manipulação, de ordenação e desfecho. Dessa maneira, nesse aspecto
metaficcional, A hora da estrela do Cena Aberta se faz mais próxima da obra de Clarice
Lispector do que o filme de Suzana Amaral, como assinala em texto recente o crítico
Jean-Claude Bernadet4.
À sua maneira, aqui estão presentes procedimentos metalingüísticos que,
ousados e até agressivos no passado, por desconstruírem a mímesis clássica,
comparecem ao cinema e à televisão contemporâneos como dados viáveis nas várias
possibilidades de representação ficcional. São procedimentos específicos de narrativas
para grandes audiências e que, ao contrário da novela literária adaptada, não apontam
uma crise nas maneiras de representar. Apresentam, sim, procedimentos ampla e
4 Cf. BERNADET, Jean-Claude. Caminhos de Kiarostami. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
intuitivamente percebidos e aceitos pela recepção como possibilidades viáveis e
criativas de ativação do jogo de luzes e sombras acenado pela representação ficcional.
Mas que se postam em patamar diverso da média de ficção televisiva, tendo veiculação
em horários específicos.
Cidade dos homens: amizade, vida comunitária, violência
O seriado Cidade dos homens tem forte intertexto audiovisual com Palace II e
Cidade de Deus. Porém, a representação do banditismo social nele é apenas lateral, com
as várias possibilidades de vida comunitária sendo exploradas sobretudo a partir da
convivência entre os amigos Acerola e Laranjinha e pelo olhar dos dois garotos, numa
trama ficcional onde amizade e relações familiares sobrevivem em meio ao fogo
cruzado do narcotráfico e das precárias condições de sobrevivência. O mentor e
produtor do seriado, Fernando Meirelles, que também dirigiu episódios da série, define
Cidade dos homens como um desdobramento do filme Cidade de Deus. Mesmos
criadores, mesma equipe, mesmos atores. Mas podemos dizer também, como consta na
sinopse do DVD, que “esse projeto é o avesso do outro: Cidade de Deus é um drama
com um toque de comédia sobre traficantes no Rio, a comunidade aparece apenas como
pano de fundo. Cidade dos homens é uma comédia, com um toque de drama sobre uma
comunidade do Rio de Janeiro; os traficantes aparecem apenas como pano de fundo”
(MEIRELLES, 2002).
Porém em alguns episódios, a questão do banditismo social, do narcotráfico,
assume papel importante (embora não exatamente central), a exemplo de A cora do
imperador e Correio (1ª temporada), Buraco quente (2ª temporada), Vacilo é um só (3ª
temporada) e A fila (4ª temporada).
Em A coroa do imperador é feito um paralelo entre as estruturas do Império
Napoleônico e as estruturas de poder do narcotráfico, isso a partir do ponto de vista de
Acerola, ativado nas aulas de História da escola pública. Em uma de suas seqüências, o
episódio, ao explicar didaticamente o funcionamento do narcotráfico nos morros do Rio,
também traça um paralelo entre a estrutura do comércio legal no capitalismo e a
estrutura do comércio ilegal, no narcotráfico.
O seriado também tematiza o apoio assistencial dado pelo narcotráfico em
termos de remédios e afins, ocupando o papel da sociedade organizada, como forma
política de boa vizinhança5. A coroa do imperador também incorpora um trecho
documental onde, em meio à representação ficcional, o tom, a movimentação de câmera
e a textura da imagem se modificam, e os atores, com seus nomes em legenda, dão
depoimentos sobre o que presenciaram em termos de ultra-brutalidade na sua
convivência pessoal com a violência nos morros.
Mas uma das seqüências mais bem trabalhadas do mesmo episódio é a da saída
de Acerola do prédio do patrão da mãe (empregada doméstica), um prédio de classe
média. Enquanto aguarda serem lentamente abertas grades e mais grades que darão
acesso à rua, a voz over do personagem, em tom baixo e reflexivo, revela sua visão
sobre aquela estranha forma de vida, entre grades, guaritas, guardas pessoais6. “Pelo
dinheiro que eles gastam para não ser roubados, você pode imaginar o dinheiro que eles
têm para ser roubado”, percebe e também fantasia um pouco o garoto (não parece se
tratar de um prédio de luxo). De toda forma, na fala, há um desvelamento fortíssimo da
crueldade da trama social brasileira.
Pelo dinheiro que eles acham que não é nada, vocês imaginam o
dinheiro que eles acham que é muito. Eles ganham muito, mas
pagam pouco. Eles pagam pouco, e por isso ganham muito. Mas
eu nunca ia querer morar num lugar assim. Parece uma prisão. O
problema daqui é falta de segurança. Eles vivem com grade,
câmera, porteiro – que ficam te vigiando. E mesmo assim aqui
tem muito assalto (MEIRELLES, 2002).
Nessa cena do filme a tela é dividida em quatro partes, a partir do monitor da
segurança do prédio. As imagens parecem típicas do sistema de segurança, mas o são
5 Tal política de boa vizinhança, com traços de justiçamento social, é tematizada no contexto do cangaço em romances como Fogo Morto, Pedra Bonita e Cangaceiros, de José Lins do Rego. Paulo Lins, autor de Cidade de Deus, aponta a obra de Zé Lins como uma das matrizes narrativas de seu romance, que tematiza igualmente o banditismo social. 6 Grosso modo, chamamos de voz over quando o som não é diegético, a fala do personagem que está ou não fora da tela não corresponde à fala ou ao diálogo de uma ação que se desenrola naquele momento. O off daria conta de uma situação onde o personagem fala, durante uma ação, mas sem estar na tela, por um afastamento da câmera ou algo assim. Mais generalizadamente se usa a expressão off para as duas situações.
apenas parcialmente. Elas extrapolam esse dado realista, comentando a voz over em
ângulos e enquadramentos que nem sempre confirmam referencialmente a imagem de
um monitor de vigilância, potencializando assim a ativação de sentidos em articulação
com a fala do personagem. Caminhando entre as fronteiras urbanas e entrando no
ambiente da favela, Acerola continua percebendo e analisando os contrastes.
Na favela não tem porteiro, nem câmera e nem assalto. Aqui é a
fronteira entre lá e aqui. Lá é um país, aqui é outro. Esses aqui,
são os guardas da fronteira de lá [apontando policiais]. E esses
daqui [apontando traficantes armados], são os guardas da
fronteira de cá. Lá eles escolhem quem manda neles. Aqui eles
já estão escolhidos. Os playboys gostam de ver o morro na
televisão, para ver como é ruim aqui e achar melhor morar lá.
Eles só passam daqui para comprar drogas, filmar e fazer
reportagem. Eu acho que se eles gostam de drogas, não deve ser
tão bom morar lá: porque é cheio de grade, porteiro, câmera. A
droga para eles é que nem tempero, que eles pagam para achar
melhor viver na prisão.
Esses dois mundos vizinhos vão freqüentemente ser vistos em tensão no seriado.
Em três episódios, inspirados em narrativa literária infanto-juvenil, haverá o aceno de
uma possibilidade de aproximação e encontro entre os protagonistas do seriado e
garotos de classe média.
Tem que ser agora: pegar o instante
O episódio Tem que ser agora, da segunda temporada do seriado Cidade dos
homens, dá continuidade às aproximações e tensões entre classe média e morro, com
mais forte presença no episódio Uólace e João Victor, da temporada anterior. Este
episódio, baseado no livro homônimo de Rosa Strausz, traz à cena João Victor,
personagem de classe média baixa que vai co-protagonizar Tem que ser agora,
roteirizado por Jorge Furtado, Regina Casé e Rosa Strausz, dirigido por Regina Casé.
Em Tem que ser agora, o espaço principal da ação é a praia, espaço bastante
explorado como ambiente gerador de encontros, catalisador de tensões na cidade do Rio
de Janeiro, emblemática dos contrastes sociais brasileiros. A praia é o espaço aonde vai
se desenrolar a maior parte da história. Na mistura da areia, o povo do morro comparece
chegando a pé, brancos, pretos e mulatos descendo aos montes dos ônibus, ocupando a
praia decantada nas canções e nas telenovelas, enquanto a moçada de classe média se vê
meio perplexa em frente de casa no eixo Leblon-Ipanema.
Essa mistura, algo tensa algo distensa no misturado das areias e das ondas e na
possibilidade de convivência sagrada num tipo de vida litorânea é explorada no episódio
nos diálogos e planos rápidos que costuram as pequenas histórias, as várias conversas,
os flertes, as evitações, os interesses, olhares abertos naquele espaço -- espaço, por outro
lado, demarcadíssimo.
Os diálogos aparentemente simples de Cidade dos homens têm a força das
linguagens vivas das ruas e se constroem em roteiros muito bem amarrados, ativados
por um auscultar os atores nos ensaios e um retrabalhar as falas novamente7. As falas
soam com um poder de germinação que habita na esperteza da levada do uso diário da
língua, dos discursos da vida prática, nos acentos que desvelam as relações sociais.
Nessas falas, há com freqüência graça e humor e sempre um revelar de conflitos que
confere muito do vigor discursivo do seriado.
Os diálogos dos personagens assinalam a assunção ou o negacear no assumir
interesses, preconceitos, divergências, diferenças, marcação dos espaços na areia. Uma
fala de duas meninas da zona sul, enquadradas em primeiro plano, com expressão
desanimada e perplexa, define a situação de desconforto ante a invasão da praia.
Duda - Carooolll...
Carol - Duda, o que é que tem essa praia...
7 Movimento que remete ao processo de produção de Cidade de Deus e mostra o quanto esses audiovisuais elevaram o padrão de exigência do cinema e da tv no Brasil.
Duda - Cê sabe que eu não sou racista, Carol. Não, cê sabe... Eu
não tenho o menor preconceito contra preto... Mas, peraí! Mora
no Vidigal, vai na prainha do Vidigal; mora em São Conrado,
vai no Cantão de São Conrado. Agora, com uma praia tão
grande dessas vem em frente à minha casa...
Carol -Fizeram até aquela piscina lá para eles... Eu não tenho o
menor preconceito. Eu sou madrinha do filho da minha
empregada...
Duda - Não, eu só acho que não tem necessidade...
Nesse diálogo inicial, muito do que se afirma denuncia imediatamente o que se
cala, numa co-presença de vozes sociais, para falar com Mikhail Bakhtin, que vai
trazendo à tona, pela estilização e pela paródia, o dado social recalcado, revelado pela
linguagem e aqui me refiro tanto aos diálogos quanto aos demais elementos do discurso
audiovisual (BAKHTIN, 1981, p.13). A objetivização e deformação da linguagem
média na entonação afetada e falseada (“eu não tenho o menor preconceito...”), “revela
de maneira abrupta sua inadequação ao objeto” (BAKHTIN, 1993, p.108), pela
expressão de repulsa da personagem, pela alusão deslocada do compadrio com a
empregada, ou com a expressão “lá para eles”, que demarca a distância e contrasta com
a possibilidade de intimidade assinalada antes. O etnocentrismo enrustido e as
hierarquias abissais de um Brasil que amontoa Vieira Souto e Rocinha são revelados aí.
Em Tem que ser agora, um casal já está formado, Acerola e a namorada, cuja
iniciação amorosa quase ocorre após a praia, mas é interrompida por um tiroteio no
morro8. Outros dois casais vão se formando. O surfista João Victor e uma menina,
evitada por Laranjinha por parecer burguesinha, mas que na verdade mora na Rocinha;
ela, que é amiga de Camila, moradora da zona sul, que vai terminar quase ficando com
Laranjinha. Em pauta, a urgência da vida e a vergonha da virgindade, eles que pensam
na primeira transa para aquele dia, na vida para aquela hora: tem que ser agora.
8 O namoro e a transa de Acerola com a menina Lidiane irá progredir em gravidez e casamento, rendendo motivos explorados em vários outros episódios do seriado.
Antes do encontro, em várias ocorrências de voz over, Laranjinha assinala a
praia como um “espaço confuso”, em angústia que gera várias das sacadas de humor no
seriado, nos diálogos com Acerola. Laranjinha assinala a ambigüidade daquela
convivência na praia e o faz mirando as meninas, tentando adivinhar suas classes
sociais, olhando as pessoas, suas roupas e percebendo como as aparências enganam.
Evitando quem ele pensa ser inviável para ele.
O espaço narrativo é demarcado pelo entrecruzamento de pontos de vista. Os
grupos se observam e se comentam. A perspectiva narrativa é delineada por esses
olhares, fragmentos de imagens e situações formadas pelas personagens e suas falas que
especulam sobre o tipo de vida, sobre o status social, sobre as possibilidades afetivas
dos outros, e, em alguns casos, sobre as vantagens que podem ser tiradas de uma
aproximação e as possíveis perdas9. No rito de beira-mar, o espaço permite intercursos,
passagens, mistura -- mas ao mesmo tempo cada um sabe seu lugar na areia.
Mikhail Bakhtin assinala que “classe social e comunidade semiótica não se
confundem”. Ou seja, classes sociais diferentes usam uma só e mesma língua, onde
“confrontam índices de valor contraditório” (BAKHTIN, 1988, p.46). No episódio,
essa linguagem compartilhada se mostra em discursos que expõem suas contradições,
sua repulsão e seu desejo. As palavras são compartilhadas assim como os espaços da
areia da praia, convivência geradora da história que vai sendo construída
discursivamente, dialogicamente.
A incorporação do discurso da diferença como moda vai estar inscrita na fala da
menina Camila (“meu pai vai amar, meu pai é antropólogo...”), que termina levando
Laranjinha para o apartamento da família, quando fogem de uma briga generalizada
entre surfistas de classe média e favelados, confronto que inviabiliza a praia.
Percebendo a intenção dela, Laranjinha recusa o convite para subir ao apartamento,
quando já está na portaria do prédio, o que se dá num diálogo tenso.
Laranjinha: -- Já sei. Quer ficar com um neguinho do morro só
para tirar onda com as tuas amiguinhas, né?
9 A personagem Andressa, moradora da favela, de olho nos gringos; Duda se afastando dos meninos da favela.
Camila: -- Não, cara, não me importo mesmo...
Laranjinha: -- Mas eu me importo. Não vou subir para tu ficar
tirando onda comigo lá em cima não [silêncio] Ah, quer tirar
onda, vai namorar bandido, moleque do movimento, aí sim tu
vai tirar onda!
A briga na praia vai precipitar o surfista João Victor e sua paquerinha
aparentemente classe média (mas que mora no morro), que fogem numa prancha para o
mar e terminam quase se afogando. Salvos pela rede do salva-vidas, suspensos no ar, se
beijam e terminam confessando um para o outro -- urgente e timidamente, a virgindade
deles, de maneira ansiosa, envergonhada, e por fim enternecida. Indecisos quanto a si e
quanto ao outro, sobre de que forma a inexperiência de cada um seria aceita pelo outro.
Quebrando estereótipos masculinos, é ele quem prefere adiar o ato, “para evitar fazer
tudo na pilha, na pressão”. Tranqüilizando ela, que especula sobre o risco de correrem o
risco de morrerem antes, virgens, como quase acontecera no espaço do mar. Ele:
“depois de tudo que a gente viveu hoje, a gente não morre tão cedo”.
Tal diálogo descrito acima acontece com os dois girando no ar, em plano
fechado, tremendo de frio dentro de uma rede e sem que o espectador visualize
completamente a situação espacial, o que acontece só após a câmera ir abrindo o campo
e o helicóptero que puxa a cesta salva-vidas ser enquadrado. O roteiro e a direção
assinalam de maneira extremamente bem entramada silêncios, avanços e recuos na fala
dos dois.
Na seqüência final Laranjinha é visto voltando sem perspectiva ao espaço já sem
sentido da praia, após o atrito com Camila que o levara ao apartamento como uma
“atração” a ser exibida a primos e pais. O personagem aparece na mesma seqüência do
início do episódio, de bicicleta na ciclovia à beira-mar, voz e ar abafados, especulando
sobre a possibilidade de dormir na praia por conta do morro ter sido “fechado” pelo
tráfico, a praia migrando de um espaço vivo para assumir um ar totalmente hostil.
“Cara, que dia comprido. Parece que eu já acordei há uma semana”. Em segundo plano,
ao longe, no mar, vê-se João Victor e a menina pendurados na rede do salva-vidas,
alçados pelo helicóptero.
Onde coincide o corte da seqüência inicial, é o ponto de pegar o instante que
estala no personagem. Ele toma de assalto (“tem que ser agora”) o celular de uma
senhora, pedala rapidamente, checa o telefone de Camila, disca, diz que já ficou com
saudade, reata o contato. Retorna com a bicicleta, vemos o grupo de banhistas de classe
média especulando nervosamente em torno de algum lugar-comum verbal e gestual
sobre onde-vamos-bater-com-essa-onda-de-assalto. Laranjinha retorna, freia, explica
que foi só uma ligação local, devolve o celular, deixa um beijo levemente agressivo e
irônico para a mulher perplexa e vagarosamente se afasta de bicicleta. A câmera
estaciona e o enquadra se distanciando, braços abertos no rumo do Morro Dois Irmãos,
pedalando tranqüilamente, quando o espaço deixa de ser hostil e passa novamente a
fazer sentido. Na trilha, O vencedor, da banda Los Hermanos, cuja letra relativiza o
sentido finalista de vitória (“Eu que já não quero mais/ser um vencedor/ levo a vida
devagar/ pra não faltar amor”). Na narrativa, os três casais adolescentes terminam
deslocando, assim, o sentido de urgência.
A imagem habitada
Diana Luz Pessoa distingue dialogismo e polifonia, assinalando que o termo
“dialogismo recobre o princípio dialógico constitutivo da linguagem e de todo
discurso”. Enquanto isso, “a polifonia caracterizaria um certo tipo de texto, aquele em
que o dialogismo se deixa ver, aquele em que são percebidas muitas vozes, por oposição
aos textos monofônicos que escondem os diálogos que os constituem” (BARROS, 1997,
p.35).
Em Bakhtin, a palavra é percebida como terreno habitado (BAKHTIN, 1981,
p.176) como arena de luta retórica10 e nela há, poderíamos dizer, uma co-habitação de
vozes múltiplas onde não só há oposições como complementaridades, onde as posições
mesmo radicalmente opostas levam em conta e se constituem mesmo levando em conta
a palavra do outro. “O nosso discurso da vida prática está cheio de palavras de outros”
(BAKHTIN, 1981, 168).
Esse dado constituinte da alteridade será tema e construção de linguagem em
boa parte dos episódios de Cidade dos homens, onde diferenças culturais e sociais e 10 Tomando a expressão aqui obviamente em sentido amplo.
diferenças de expectativas e de públicos de cinema e televisão se fazem presentes. Isso
de maneira consciente, com os dados discursivos ressaltando as recamadas vozes que
convivem em ligação vital, ressaltando contradições e pontos de contato, como vimos
nesse Tem que ser agora, que desenha um olhar generoso sobre o universo
adolescente11.
Da temporada anterior, o episódio Uólace e João Victor é o que adapta
diretamente o livro de Rosa Strauzs. Neste episódio, a violência e ou a agressividade
como resposta para resolver os conflitos não é sentida como possibilidade única. É
contraposta a uma outra possibilidade: a de se desenhar certa generosidade na
convivência, reunindo os cacos de humor e solidariedade partilhada ainda possíveis nas
ruas dos grandes centros urbanos brasileiros. Isso sem abrir mão de dar a visão de um
país exacerbadamente injusto e da solidão que termina minando as relações entre as
pessoas, dentro e fora de cada extrato social.
A narrativa tem, para citar a síntese de G. Genette, focalização interna, onde o
narrador apenas diz o que certa personagem sabe (GENETTE, s/d, 187). Mas aqui a
focalização é interna múltipla, com os focos se alternando. Genette lembra que “uma
focalização externa em relação a uma personagem, pode, por vezes, igualmente bem,
deixar-se definir como uma focalização interna sobre outro” (GENETTE, s/d, 190). No
caso do filme e do livro, há a alternância entre as visões de mundo dos dois garotos,
cujas mentes filtram a informação diegética12. E muito do que tais narrativas revelam
advém dessa alternância, quando pontos de vista e de cegueira dos narradores se
contradizem, desconstruindo estereótipos, assumindo diferenças e revelando
insuspeitáveis semelhanças nas dores e no desejo dos dois garotos.
No mesmo episódio, a câmera instável que acompanha e recorta a luta nas ruas
do cotidiano de Acerola e Laranjinha se alterna com a imagem estável da câmera no
apartamento de classe média baixa de João Victor. Tal estabilidade iconiza -- incrusta
na linguagem, outro tipo de tensão, na ansiedade sufocante da classe média, construindo
um olhar sobre a convivência entre o garoto e sua mãe.
A possibilidade de encontro entre adolescentes de dois grupos sociais distintos
vai ser celebrada em tensão, leveza, amizade e humor ainda na segunda temporada. No
11 Olhar esse também presente em duas comédias românticas à brasileira assinadas por Jorge Furtado (co-roteirista de Tem que ser agora e diretor geral do Cena Aberta): Houve uma vez dois verões e Meu tio matou um cara. 12 Aqui utilizo a distinção entre história ou diegese (o que se conta) e discurso (como se conta).Cf. Genette, s/d, p.27).
episódio Os ordinários, onde o surfista classe média João Victor, morador na área que
faz limite com o morro, vai travar amizade de férias como Uólace (Laranjinha) e
Acerola, depois da desconfiança e repulsa entre eles, exibida nos outros episódios. A
aproximação vai ser mediada e possibilitada na praia pelo trânsito descompromissado
de dois garotos “japoneses”-paulistas, filhos de empresário, que se divertem pelas praias
do Rio. A subida deles ao morro – percebido como zona neutra (sem assaltos) e espaço
vital de convivência comunitária, vai ser feita pela mediação do motorista negro que
está responsável pelos garotos nissei de São Paulo. Aqui se afirma no seriado a intenção
em tematizar a favela mostrando que nela co-existem várias formas de vida e
organização social e que boa parte da comunidade não se relaciona com o mundo do
crime, rompendo com a aproximação estereotipada entre favelado e bandido.
No último episódio da quarta e última temporada de Cidade dos homens, os
protagonistas são substituídos na vinheta de abertura por bonecos de animação, pretos.
A história contada é a simulação de desemprego dos dois atores que fazem Acerola e
Laranjinha, Douglas Silva e Darlan Cunha, após o término do seriado. Em alguns
momentos usando animação, especula-se sobre as saídas possíveis para a vida dos
garotos. A ascensão social parodia fatos tematizados pelo jornalismo no momento de
produção do episódio, como o caso mensalão e afins, mostrando como membros de
classes subalternas podem ascender ao poder ratificando as relações sociais injustas,
locupletando-se.
Tornando aos atores, eles são vistos desanimados vagando por um PROJAC em
ruínas, sem nenhum glamour e comentando que aquele cenário seria de uma gravação
de apenas um ano atrás, o que reforça neles – agora interpretando simuladamente a si
mesmos – uma sensação de obsolência, de serem peças já usadas e descartáveis no
mundo do espetáculo televisivo.
A TV Globo é parodiada, nos clichês de seus programas de auditório e de
entretenimento (Faustão e Fantástico) e na dificuldade de empregos para negros em
telenovelas. Ao fim, a vinheta de encerramento, já familiar ao telespectador, produz
outro dado de desfamiliarização, substituindo os dois heróis da série por vários garotos
negros e mulatos, esquálidos e anônimos, correndo em aflição e urgência entre os
barracos estilizados. Aparece aí certo sentido de desconforto no espectador.
O telespectador deslocado
Além do essencial de dar uma contribuição estética interessantíssima à rotina da
tv brasileira, o seriado parece não se enquadrar num modelo de diluição de tensões,
como certa crítica chegou a afirmar. Cidade dos homens representa muito mais um
ruído positivo dentro da programação normal de tevê13. Trabalho audiovisual filmado
em 16 mm, com um tratamento narrativo esteticamente maduro, o seriado traz
narrativas que se recusam a desenhar uma falsa redenção, mostrando claramente “o
imenso desamparo dos jovens que não querem aderir ao crime organizado”, como
assinala Maria Rita Kehl. Ao comentar o episódio Buraco quente, dirigido e roteirizado
por Paulo Morelli, a autora ressalta que, nele,
os atores que representavam traficantes foram filmados de modo
a parecer medonhos, assustadores, detonados. Comecei a me
incomodar com a presença daquelas imagens dentro da minha
casa. O episódio não terminou mal, mas não ofereceu nenhuma
grande esperança de redenção; nenhuma perspectiva se abria no
horizonte do protagonista. Fiquei enclausurada, junto com o
adolescente Espeto – ele na tela, eu na frente da tevê. Concluí
que Cidade dos homens abre um precedente importantíssimo na
teledramaturgia brasileira. Não se trata da inclusão dos negros
da favela no mundo do espetáculo (...) Mas o mal-estar que o
episódio me causou mostra que um programa de televisão ainda
pode deslocar o espectador de sua sonolência enfastiada (KEHL,
2006, p.2).
Apontando e incorporando as dores dos becos-sem-saída nos quais
historicamente o Brasil meteu boa parte de sua população, o seriado ao mesmo tempo
13 Sigo aqui Hildeberto Barbosa Filho, no que o autor pensa o ruído como uma maneira de interferência na comunicação que pode vir a gerar novidade e despertar a percepção e a causar o estranhamento13. E estranhamento como efeito de sentido que provoca “uma percepção renovada do objeto, uma maneira especial de conhecimento (...) um reconhecimento essencial das coisas”, e o autor está se referindo aos formalistas russos, em especial a Chklovski.. Cf. BARBOSA FILHO, Hildeberto. “Ruído, estranhamento, comunicação”. In: O giz e a letra. João Pesoa: Manufatura, 2003.
não espera o dia em que todas as questões se resolvam, mas aposta em diversas
harmonias bonitas e possíveis, vendo a vivacidade e a força da vida comunitária, com
dados muitas vezes perdidos na vida aburguesada (já dizia Walter Benjamin, o
“comfort” isola...)14.
E o gênero escolhido para dar as cores dessa vitalidade é a comédia. Newton
Cannito e Leandro Saraiva ressaltam que “a comédia diferencia-se da tragédia por não
‘bater de frente’, ‘buscar as contradições irreconciliáveis’ da época, mas, ao contrário,
por buscar ‘driblar’ essas contradições, estabelecendo pactos que permitem à vida
prosseguir”. Como destacam os autores,
Uma comédia tem que acabar na festa de conciliação, porque, se
ela durar até o dia seguinte, a impressão de ‘solução’ se desfaz.
(...) Northrop Frye [afirma] que na comédia costuma haver um
ponto (em geral o desenlace) no qual tudo está por um fio, sendo
o fim trágico afastado, em geral, por uma reviravolta na história
(...) A ‘comédia séria’ (...) é aquela em que não rimos ou rimos
só às vezes. Acompanhamos os personagens resolvendo seus
problemas, o que, neste caso, deve ser feito com todas as
preocupações de preparação e lógica. (...) Neste tipo de comédia
temos uma narrativa baseada na compreensão de todos os pontos
de vista envolvidos (...) Não se trata nem de ridicularizar (farsa),
nem de confrontar em bloco (tragédia), nem de entregar-se à
comiseração (melodrama). Trata-se de tomar os pontos de vista
em questão e agir para harmonizá-los (CANNITO; SARAIVA,
pp.94-95).
Cannito e Saraiva destacam ainda que, nesse caso, a progressão dramática se faz
freqüentemente através do “entrecruzamento de focos narrativos ou, pelo menos, pelo
deciframento das perspectivas alheias, a partir de um foco situado, nunca absolutizado.
Os personagens da comédia serão apresentados sempre ‘em situação’, agindo em função
14 “Eu não espero pelo dia em que todos os homens concordem/ apenas sei de diversas harmonias bonitas possíveis sem juízo/ final”. Cf. CAETANO Veloso. [Rio de Janeiro] Polygram, 1991. 1 CD.
da ação e do olhar alheios” (CANNITO; SARAIVA, p.95).
Sem querer forçar a mão em relação a projetos bem específicos, podemos
perceber, tanto no programa Cena aberta como em Cidade dos homens, esse viés, que
muitas vezes vem do elemento cômico, no que se refere ao movimento de assinalar
diferentes pontos de vista. Quebrando estereótipos, delineando a compreensão do outro
nas sem escamotear tensões, os dois conjuntos de textos audiovisuais permitem e
sugerem um deslocamento do olhar, o redesenho da paisagem interior dos
telespectadores. O que se realiza seja por onde e quando o tempo se entretém, a reflexão
se instaura, o desconforto assoma, o riso se espraia.
2 – Megacidade, conta teus meninos: anotações sobre a adaptação do
livro Uólace e João Victor para o seriado Cidade dos homens
O seriado Cidade dos homens teve três episódios inspirados no texto infanto-
juvenil Uólace e João Victor, de Rosa Amanda Strausz15. Vamos tratar aqui do
episódio propriamente adaptado, que tem o mesmo nome do livro e foi dirigido por
Fernando Meirelles e Regina Casé, roteirizado por Guel Arraes, Jorge Furtado e
novamente Regina Casé16.
Na versão televisiva, a história e os dados discursivos do texto literário são
aclimatados ao ambiente do seriado. Uólace, na versão audiovisual, é encarnado pelo
personagem Laranjinha, que faz dupla com Acerola como protagonista no seriado, mas
que, neste episódio, aparece como coadjuvante. João Victor, o outro protagonista, é um
garoto de classe média baixa da zona sul carioca. Mora em um prédio em frente à favela
onde habitam Laranjinha que, no livro de Rosa Strausz, é um menino de rua, mas no
seriado tem família na favela.
A rotina de vida de cada um é delimitada pelas fronteiras urbanas contrastantes,
tão características do Brasil, tão explícitas na situação geográfica do Rio. A informação
narrativa de um modo geral é filtrada pelo que eles vêem, pelo que percebem, pela
maneira como interpretam o mundo. A voz em off sumariza as suas respectivas rotinas
de vida, suas expectativas diante do dia, perante o futuro, aliás, futuro este que é uma
obsessão dos personagens do filme e do livro.
Nos dois textos, o literário e o audiovisual, a construção é feita em paralelos,
com capítulos dedicados a cada um dos dois protagonistas. Logo no início do filme, um
rap assinala os conflitos da grande cidade, mostrando imagens da zona sul urbanizada e
de uma sua favela vizinha (“essa cidade que tem esgoto/ se chama Rio de Janeiro/ essa
cidade que não tem esgoto/ se chama Rio de Janeiro”).
Na seqüência seguinte há uma concentração de dados do texto escrito. O acordar
dos dois meninos se dá pelo barulho da mesma sirene de polícia, o que não ocorre no
15
STRAUSZ, Rosa Amanda. Uólace e João Victor.Rio de Janeiro: Objetiva, 2003. O livro de Rosa Amanda inspirou ainda um outros dois episódios, Tem que ser agora, na qual a escritora participa também como co-roteirista, em parceria com Jorge Furtado e Regina Casé (que também dirige o episódio), além do episódio que fecha a trilogia, Os ordinários, dirigido por Kátia Lund e Eduardo Tripa, com roteiro dos dois e de Melanie Dimantas. Cf. DVD Cidade dos Homens. 2ª temporada.Globo vídeo, 2003. 16 “Megacidade/ conta teus meninos” são versos de VELOSO, Caetano. Aboio. Disponível em http://www.letras.com.br/caetano-veloso/aboio
livro e é bem eficaz por conferir unidade e ressaltar esses mundos contrastantes17. Na
fala em voz over dos dois, há uma das muitas confluências em suas vidas: a ansiedade
da mãe de cada um deles por um “bom futuro” para os filhos. Cito abaixo
respectivamente trechos do livro e do episódio.
Mamãe me botou esse nome porque é um nome nobre. Cada vez
que diz ‘João Victor’, é como se estivesse prevendo um futuro
glorioso para mim. E é claro que o futuro João Victor glorioso
será um homem educadíssimo, culto, charmoso e rico
(STRAUSZ, 2003, p.8).
Meu nome é Uólace mas todo mundo diz Uó. Minha mãe quis
me botar um nome importante, americano feito tênis novo. Mas
como aqui ninguém fala americano, virei Laranjinha mesmo
(MEIRELLES, 2003).
Numa trama ficcional aonde os dois personagens vão se evitar, se postando a
uma distância que se mede à base de uma gradação que vai da desconfiança ao ódio pela
diferença do outro, essas recorrências vão marcando a força das narrativas, com extremo
aproveitamento do gestual e do silêncio no texto audiovisual.
No segundo capítulo do livro e numa das primeiras sequências do episódio a fala
dos dois meninos reafirma a construção em paralelo, começando com a mesma frase:
“café com leite, pão com manteiga? Comida de velho!”, reclama João Victor, clamando
por hambúrguer na lanchonete da esquina. No livro uma resposta da mãe, dizendo
preferir uma mesa farta com iguarias que descreve e a lembrança para o filho de que o
dinheiro está curto, é substituída por gestos e por frases curtas como “hambúrguer nem
é comida”. E é completada por um hilário resmungo de palavrões na boca cheia do
garoto, quase chorando enquanto mastiga o pão com voz chorosa e revoltada no café da
manhã rotineiro.
O café da manhã de Uólace é pago por um senhor de terno e gravata na padaria
17 Unidade mesmo no sentido aristotélico; e também no sentido de unidade de tom, proposto por Edgar Allan Poe. Cf. Aristóteles. Poética. Trad. Eudoro de Souza.Porto Alegre: Globo, 1966. POE, Edgar Allan. “A filosofia da composição”. In: ______ Poemas e ensaios. 2ª ed. Trad. Oscar Mendes, Milton Amado. Rio de Janeiro: Globo, 1987.
da esquina. A cena, rápida, troca uma justificativa mais didática e irritada do homem
que paga o café, no livro, por um tom mais compreensivo e bem-humorado, no filme.
No livro, lê-se:
Café com leite pão com manteiga? – desanimo./ O homem já
está com a mão no bolso. Pára e me olha, meio invocado/ -- O
que tem de errado com isso? Não estou pagando um lanche para
você? – Mas não dava para ser um hambúrguer?/ -- Dava nada!
Hambúrguer é muito caro. Além disso, não é bom para a saúde.
Olha aqui, ô, moleque, estou lhe fazendo um favor. Se não quer,
azar o seu (STRAUSZ, p.13).
No episódio, o diálogo fica assim:
Uólace: Café com leite, pão com manteiga?/ Homem de terno: --
Tá reclamando de quê?/ Uólace: Isso é comida de velho...!/
Homem de terno: Eu não acredito...! (rindo). Eu tô pagando um
lanche para você e você tá reclamando.../ Uólace: Dá pra ser um
hambúrguer...?/ Homem de terno: Você...! Abusadinho você,
hein, rapaz... Um leitinho gostoso, um pãozinho com manteiga...
(vira para o balconista, aponta para o lanche) - Pode levar. /
Uólace: - Não, tá bom, tá bom.../ Homem: Ah, valeu aí! /
Uólace: Brigado. (brindam, batendo de leve a xícara de café no
copo de café com leite).
Essa seqüência é bem chave dentro da narrativa, em sua continuação (Os
ordinários) e na minissérie em geral, por parecer abrir uma possibilidade de
entendimento entre diferentes. A violência e ou a agressividade como resposta para
resolver os conflitos não é sentida como possibilidade única. É contraposta a uma outra
possibilidade: a de se desenhar certa generosidade na convivência, reunindo os cacos de
humor e solidariedade partilhada, ainda possíveis nas ruas dos grandes centros urbanos
brasileiros. Isso sem abrir mão de dar a visão de um país exacerbadamente injusto e da
solidão que termina minando as relações entre as pessoas, dentro e fora de cada extrato
social.
A narrativa tem, para citar a síntese de Gérard Genette, focalização interna, onde
o narrador apenas diz o que certa personagem sabe (GENETTE, s/d, p.72). Mas aqui é
interna múltipla, com os focos se alternando. Genette lembra que “uma focalização
externa em relação a uma personagem, pode, por vezes, igualmente bem, deixar-se
definir como uma focalização interna sobre outro”. No caso do filme e do livro, há a
alternância entre as visões de mundo dos dois garotos, cujas mentes filtram a
informação diegética18. E muito do que tais narrativas revelam advém dessa alternância,
quando pontos de vista e de cegueira dos narradores se contradizem, desconstruindo
estereótipos, assumindo diferenças e revelando insuspeitáveis semelhanças nas dores e
no desejo dos dois garotos.
Em Uólace e João Victor o temor quanto ao futuro sintetiza todos os mínimos
medos cotidianos. Mas mobiliza também todas as vontades, do hambúrguer de cada dia
ao tênis caro que está na loja e na publicidade, mas que eles não podem ter. Que o
garoto classe média João Victor deseja e parece poder ter, mas não pode; que Uólace
(Laranjinha) pensa que João Victor tem, e sabe que não vai ter. Uólace/ Laranjinha que
odeia o excesso de hambúrguer, tênis caro e pai de sobra que imagina que os meninos
de classe média tenham. Ele que sofre ainda pelo pai que não tem, e pensa que João
Victor tem, mas não tem de fato. Enquanto João Victor acha que ele tem hambúrguer
porque roubou, mas ele, Laranjinha, não tem, quando finge que come um.
Esse ódio nos dois e nos amigos dos dois está posto de maneira bastante forte
numa cena na qual os dois grupos se cruzam na rua. Os garotos de classe média com
medo, os pobres com retorcido nojo. Em câmera lenta se encaram, num trecho do
episódio que sintetiza vários aspectos do livro, reconstruindo vigas centrais da narrativa
escrita. Lá as vozes em voz over se alternam, arrastadas, concentradas em ódio, em
closes e câmara lenta, trilha percurssiva tensa, num trecho que apanha e potencializa
bem diversos momentos do livro.
Babaquinha, ladrãozinho, filhote de urubu, filhote de deputado, maconheiro,
surfistinha maconheiro são alguns dos adjetivos grunhidos em voz over e inscritos na
maneira dura como os grupos se olham, se detestando.
No final as vozes se sobrepõem e coincidem no xingamento final (racista!). Ora,
18 Aqui utilizo a distinção entre história ou diegese (o que se conta) e discurso (como se conta). Idem, ibidem, p.41.
o filme não escamoteia as diferenças, de classe e de cultura. Dá-nos a visão disso19. Por
exemplo, ao mostrar como se tratam os pretos e pobres, na seqüência em que os dois
grupos de meninos, os pobres e os de classe média, simulam que podem comprar um
tênis e recebem tratamentos bem diversos da vendedora da loja. Da vendedora negra,
assustada diante de um possível quadro de assalto, ávida diante de um possível gesto de
consumo.
O episódio Uólace e João Victor não maquia as diferenças, mas trabalha
extraordinariamente bem com os pontos de cegueira dos narradores autodiegéticos:
onde os meninos não vêem a possibilidade de entendimento, as semelhanças, o
espectador as percebe20. A estruturação da narrativa, fundada em seqüências que
paralelamente mostram a vida de cada um e que revelam o que se passa em suas mentes
e vidas cotidianas, acena para o reconhecimento do valor do outro, sem sonegar tensões
e contradições. A permuta entre os focos narrativos revela o que é velado, recalcado, na
visão de mundo e de classe dos garotos. Uma focalização vai desconstruindo a outra,
minando seus preconceitos, desarmando seus enganos.
E o que é negado é também o que se deseja. O próprio entendimento de si que
pode ser achado no outro. Ora, o gesto etnocêntrico, enquanto rejeição da vida e dos
valores do outro, tem em sua raiz a perda de estabilidade do solo familiar pelo que o
estranho lhe revela do mesmo, de si próprio, de sua naturalidade falsa, de suas verdades
recalcadas. Nos textos dos quais tratamos, a alternância da visão dos narradores-
focalizadores inscreve na própria estrutura da obra a diferença – e os possíveis pontos
de contato.
A falta do pai – comum aos dois – insinua a dor não repartida. Sim, mas
repartida num pólo forte dos textos: a amizade que bate forte dentro dos grupos e que
ampara os garotos das barras da vida. Acerola, mesmo zoando, arrasta
Laranjinha/Uólace para um encontro desajeitado com seu possível pai. Zé Luiz segura
as pontas de João Victor ante a insensibilidade canastrona de seu “pai-sumido” e que
reaparece quando ele já tem 14 anos. E quando o pai de João Victor passa a mão na
cabeça de Zé Luís, perguntando ao filho se ele é seu “amiguinho”, o amigo de João
19 E aqui nos vem um eco do formalismo russo: “a automatização engole os objetos, os hábitos, os móveis, a mulher e o medo à guerra. E eis que para devolver a sensação de vida, para sentir os objetos, para provar que pedra é pedra, existe o que se chama arte. O objetivo da arte é dar a sensação do objeto como visão e não como reconhecimento (...)” Cf. Chklovski, V. “A arte como procedimento”. In: Eikhenbaun, B. Teoria da literatura – formalistas russos. Porto Alegre: Globo, 1976. p.44-45. 20 Narrador autodiegético é aquele que narra história da qual participou, como personagem central. Cf. Genette, s/d, 251.
Victor acerta o cabelo e responde discretamente irônico: “É, o amiguinho que viu ele
crescer”, noutro achado sutil do episódio de tv.
No livro, Uólace é um menino de rua, sua mãe uma alcoólatra. No episódio, é o
mesmo Laranjinha que tem família pobre, mas que cuida, inclusive para que ele não
caia na mendicância ou no narcotráfico. O menino vive momentos de maior aperto por
ter perdido o dinheiro deixado pela mãe, que dorme no trabalho e só aparece no barraco
em que vivem no fim de semana. A câmera percorre seu dia com as tomadas instáveis
que caracterizam as imagens de rua do seriado.
Sob o aspecto de tranqüilidade do pequeno apartamento, a ansiedade quanto ao
futuro assinala a imagem estável no lar de classe média baixa do garoto João Victor,
acentuando um tempo esmagador e a possibilidade de ultrapassá-lo. Num momento,
vigora o tempo abstrato do relógio, que mina o sono e aponta para o tempo perdido –
tempo sozinho nessa cidade do Rio, de seis, oito, dez milhões de habitantes? 21
No episódio, o aparente equilíbrio assinalado por essa câmera quieta, traduz de
maneira feliz essa estabilidade por vezes ilusória. Cito over de João Victor (cena 11 do
episódio, capítulo 9 do livro): “Quando chego em casa parece que entrei em outro
mundo. Um mundo sem pivete, sem tênis, sem hambúrguer, sem cruzamento. Um
mundo onde só existem comidas saudáveis, livros, notas altas, futuros gloriosos. A
única coisa que estraga é a cara de cansada dela”.
Em seguida, após um rápido diálogo entre mãe e filho, é enfocada a decepção
dela com uma nota baixa numa prova, que o garoto revela de um jeito esperto, enquanto
vai passando pelo corredor (“viu o jogo do Flamengo ontem? Três a zero em cima do
Botafogo, que nem eu na prova...”)
A mãe de João Victor se desestabiliza e promete arranjar tempo no dia seguinte
para cuidar dos estudos do filho, enquanto volta a mexer na papelada espalhada na
mesa. A cena seguinte cria um intervalo na sequência.
João Victor vai à cozinha e prepara um jantar. Os detalhes da preparação do
prato, closes de como corta o espinafre, manipula a panela, trazem como trilha ele
cantando à capela, baixinho, Tempo perdido, do Legião Urbana. Em dado momento os
instrumentos entram acompanhando o canto dele e os planos da comida sendo
preparada. “Temos nosso próprio tempo”. Aqui o tempo não parece ser medido pelo
tempo do time is money ou pelo tempo da angústia ante a possibilidade do fracasso no
21 “Nesta cidade do Rio/ de dois milhões de habitantes,/ estou sozinho no quarto/ estou sozinho na América”. ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia poética. Rio de Janeiro: Record, s/d.p.18-20.
futuro, da solidão na multidão. Não foi tempo perdido, temos nosso próprio tempo,
dizem os versos.
E dizem mais: “Todos os dias quando acordo/ não tenho mais o tempo que
passou/ mas tenho muito tempo/ temos todo tempo do mundo”; aqui o tempo dá um
tempo, a canção e o preparo da comida alteram a angústia da sua passagem medida em
números. Há como que uma trégua, uma suspensão: muita calma pra pensar -- temos
todo o tempo do mundo. Esta cena preenche um momento entre a revelação da nota
negativa na prova e a conversa que necessariamente vai se seguir depois. Trata-se de
uma pausa, que desacelera a narrativa, deslocando-a para esse tempo suspenso22.
A música sobe forte (na gravação do Legião) e intercala planos de Acerola na
batalha das ruas, fazendo malabarismos no trânsito. Depois cai lentamente, enquanto
João Victor atravessa para a sala, no apartamento. Esse dado é do episódio, esse tempo
criado, essa trégua no tempo, no medo do futuro. Na mesa ele pergunta pelo trabalho da
mãe. Ela mostra o texto que corrige, o livro de um rico empresário que conta como
enriqueceu. O garoto vê os inúmeros erros de português do empresário e dispara: “O
cara é um semi-analfabeto! Taí, eu posso ser que nem ele, burro e rico”. Ao riso irônico
da mãe ele diz algo para constrangidamente se arrepender logo depois: “-Melhor que
você, mãe, que estudou pra caramba e não se deu bem na vida...”.
A frase final, explícita e que esbate na cara da mãe, existe só no seriado de tv. O
livro pára na sugestão de que ele teria enriquecido a despeito de escrever tudo errado. Se
no livro a focalização aponta o estado da mãe ante a revelação para ela mesma de uma
mentira essencial da sua vida, a imagem da personagem, sua voz embargada, seu mudar
de assunto, a representação em cena do sumário do texto escrito, os silêncios e a voz
over sofrida do filho, ampliam fortemente a dor e o delicado entendimento do momento.
Ih, deixei ela triste. Parece que eu peguei ela numa mentira. Não
devia ter falado isso. Eu nem sei direito o que eu falei mas... foi
uma coisa que ela tá com vontade de chorar. Eu também tô com
vontade de chorar. Mas eu não vou pagar esse mico não. 22 Como assinalam Carlos Reis e Ana Cristina Lopes, “signo temporal inserido no domínio da velocidade e por isso diretamente relacionado com outros signos do mesmo âmbito (...), a pausa representa uma forma de suspensão do tempo da história, em benefício do tempo do discurso. Interrompendo momentaneamente o desenrolar da história, o narrador alarga-se em reflexões ou em descrições que, logo que concluídas, dão lugar de novo ao desenvolvimento das ações narradas. (...) Como quer que seja, a instauração da pausa decorre normalmente de uma atitude ativa do narrador que, não se limitando a relatar o devir da história, interrompe esse devir e concentra, nas pausas interpostas, elementos descritivos ou digressivos carregados de potencialidades semânticas.
Não há ali, entre mãe e filho, naquele tempo concentrado e que é agora, nenhum
gesto e nem uma sílaba que não esteja saturada de ternuras e temores. O afeto
desconcertado se instala quando ele desnuda a mentira do mundo de futuro glorioso,
mas, aos poucos, a comida em comum ganha corpo como num rito.
A cena atinge o telespectador (adulto) ao qual se dirige, num enternecimento
difícil, até constrangedor, mas marcadamente verdadeiro. Em ambas as narrativas
predomina, como nesse momento, o investimento na linha das sensações e não das
ocorrências, como diria Eisenstein23; predominam menos os fatos do que a repercussão
dos fatos nos indivíduos, para falar com Clarice Lispector24.
Fernando Meirelles aponta Cidade dos homens como um desdobramento mas, ao
mesmo tempo, como o avesso do filme Cidade de Deus. Meirelles ressalta que “Cidade
de Deus é um drama com toques de comédia sobre traficantes do Rio; a comunidade
aparece apenas como pano de fundo. Cidade dos Homens é uma comédia, com um
toque de drama, sobre uma comunidade do Rio de Janeiro; os traficantes aparecem
apenas como pano de fundo”25.
Alguma recepção crítica apontou o seriado como uma diluição de tensões, mas, na
verdade, o seriado tem dado uma contribuição estética interessantíssima, renovando a
linguagem da tv brasileira. E inclusive desconstruindo os estereótipos na representação
do mundo dos pobres, onde várias formas de vida se fazem para além da violência ou do
narcotráfico, aqui só pano de fundo. Isso se torna forte e original, num tempo em que a
onipresença (automatizada) da representação crua da violência já se tornou um novo
centramento, aí sim com sintomas de diluição.
Uólace e João Victor adapta de forma extremamente feliz o livro infanto-
juvenil, incorporando-o ao universo do seriado. O filme recria o livro de maneira
23 EISENSTEIN, S. “Sobre o ‘Capote” de Gogol”. Revista USP,São Paulo, nº 2, Seção Textos, jun-ago./89, p.71-84. Apud. Manuel o Audaz, o primo pobre dos manuais. São Paulo: Educine, 2003. Mimeo.p.135. O referido manual de roteiro foi publicado mais recentemente. Cf. SARAIVA, Leandro e CANNITO, Newton. Manual de Roteiro ou Manuel, o primo pobre dos manuais de cinema e tv. São Paulo: Conrad, 2004. 24 LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo GH. Ed.crítica organizada por Benedito Nunes. Paris: Association Archives de la littérature latino-americáine, des Caraibes et africaine du XXe. Siècle. Brasília, DF: CNPq, 1988. p. 296. 25 Texto publicado na contracapa do Dvd Cidade dos Homens. 1ª temporada. Globovídeo
sintética, o amadurece em amplo e bom sentido. O episódio potencializa a visão das
diferenças. Revela muito do Brasil urbano, com seus anúncios luminosos, que são a
cidade a mentir; mas que são ainda a assunção das tensões e contrastes na grande
cidade, espaço também de fascínio e mapa de possibilidades de encontro.
3 -Tem que ser agora: focalização e dialogismo no seriado Cidade dos
homens
O seriado Cidade dos homens teve sua quarta e última temporada veiculada em
2006. O cineasta Fernando Meireles, mentor do seriado, aponta Cidade dos homens
como um desdobramento, mas, ao mesmo tempo, como o avesso do filme Cidade de
Deus. Meireles ressalta que “Cidade de Deus é um drama com toques de comédia sobre
traficantes do Rio; a comunidade aparece apenas como pano de fundo”. Para Meirelles,
o seriado, por sua vez, seria “uma comédia, com um toque de drama sobre uma
comunidade do Rio de Janeiro; os traficantes aparecem apenas como pano de fundo”
(MEIRELLES, 2002). Na realização das quatro temporadas do seriado, parceria da O2
filmes e Rede Globo, participaram roteiristas e diretores como Jorge Furtado, Guel
Arraes, Regina Casé, César Charlone, Paulo Morelli e o próprio Meirelles, entre vários
outros.
Todo o seriado dialoga com formas e temas de Cidade de Deus e do média-
metragem Palace II (também dirigido por Meirelles), guardando um traçado específico,
ao se concentrar sobretudo na vida de dois garotos favelados protagonistas, Acerola e
Laranjinha. Aqui eles não são delinqüentes, se postam afastados do narcotráfico, mas
são vistos em meio às complexas relações entre a comunidade, os traficantes e as
estruturas de poder dentro e fora do morro. Mas a ênfase é para a vida comunitária,
tendo como centro o cotidiano dos dois garotos.
Além do romance Cidade de Deus, de Paulo Lins, uma outra narrativa literária
foi incorporada ao seriado, no caso o livro infanto-juvenil Uólace e João Victor
(STRAUSZ, 2003). O livro de Strausz teve uma adaptação para o seriado, com o
mesmo título do volume, episódio dirigido por Fernando Meirelles e Regina Casé,
roteirizado por Guel Arraes, Jorge Furtado e Regina Casé, bem como inspirou outros
dois episódios, Tem que ser agora e Os ordinários.
No episódio Uólace e João Victor, percebe-se o quanto a narrativa cruza olhares
conflitantes. O texto audiovisual tem, para citar a síntese de Gérard Genette, focalização
interna, onde o narrador apenas diz o que certa personagem sabe. Mas é interna
múltipla, com os focos se alternando26. No caso do filme e do livro, há a alternância
26
Genette assinala que a focalização se refere à escolha de um ponto de vista restritivo (Genette, s/d, 182). Lembra ainda que “uma focalização externa em relação a uma personagem, pode, por vezes, igualmente bem, deixar-se definir como uma focalização interna sobre outro” (Genette, s/d, 190 ). A
entre as visões de mundo dos dois garotos, cujas mentes filtram a informação
diegética27. E muito do que tais narrativas revelam advém dessa alternância, quando
pontos de vista e de cegueira28 dos focalizadores se contradizem, desconstruindo
estereótipos, assumindo diferenças e revelando insuspeitáveis semelhanças nas dores e
no desejo dos dois protagonistas, Uólace/ Laranjinha, o garoto favelado e herói do
seriado e João Victor, um garoto de classe média. Eles que, ao se encontrarem nas ruas,
se afastam um do outro, com medo, indiferença, desprezo.
A estruturação da narrativa, fundada em sequências que paralelamente mostram
a vida de cada um e que revelam o que se passa em suas mentes e vidas cotidianas,
acena para o reconhecimento do valor do outro, sem sonegar tensões e contradições. A
permuta entre os focos narrativos revela o que é velado, recalcado, na visão de mundo e
de classe dos garotos. Uma focalização vai desconstruindo a outra, minando seus
preconceitos, desarmando seus enganos.
No episódio e no livro Uólace e João Victor, a alternância da visão dos
narradores-focalizadores inscreve na própria estrutura da obra a diferença – e os
possíveis pontos de contato29. Assim o episódio potencializa a visão das diferenças e
semelhanças, revelando muito do Brasil urbano, com seus anúncios luminosos, que são
a cidade a mentir, mas que são ainda a assunção das tensões e contrastes na grande
cidade, espaço também de fascínio e mapa de possibilidades de encontro.
Mas vamos nos deter aqui neste texto em outro episódio do seriado, intitulado
Tem que ser agora, episódio inspirado no livro de Amanda Strausz e que dá
continuidade no seriado à tematização do encontro entre a classe média e os habitantes
do morro, com atenção especial para o personagem João Victor, além dos protagonistas
do seriado, Acerola e Laranjinha.
Focalização e dialogismo serão os aspectos que observarei com especial atenção. focalização é um dos modos de regulação da informação narrativa e que "pode ser definida como a representação da informação diegética que se encontra ao alcance de um determinado campo de consciência, quer seja o de uma personagem da história, quer o do narrador heterodiegético" (que não participa da história), conforme assinalam Carlos Reis e Ana Cristina Lopes. (REIS & LOPES, 1988, 146).
27 Aqui utilizo a distinção, proposta pela narratologia, entre história ou diegese (o que se conta) e discurso (como se conta). Cf. GENETTE, s/d. 28 Maria Lúcia Dal Farra fala em pontos de vista e de cegueira de narradores. Cf. Dal Farra, 1978. 29
Em O discurso da narrativa, Genette distingue as categorias de Modo e Voz. Na categoria Modo, são abordados os procedimentos de focalização, sendo a instância onde se discute qual é o personagem cujo ponto de vista orienta a perspectiva narrativa; quem vê. Por outro lado, a categoria Voz definiria quem é o narrador; quem fala (Genette, s/d).
A relação texto-contexto também será investigada, com o elemento social tomado na
obras “não exteriormente (...) mas como fator de construção artística”, como sugere
Antonio Candido (Candido, 1976, p.7), bem como procurando perceber “a vida social
sendo expressa no interior de um material semiótico definido e na linguagem específica
de um meio”, conforme assinala Robert Stam, em diálogo com a obra bakhtiniana
(STAM, 1992, p. 25).
Tem que ser agora: pegar o instante
O episódio Tem que ser agora, da segunda temporada do seriado Cidade dos
homens, continua as aproximações e tensões entre classe média e morro, com mais forte
presença no episódio Uólace e João Victor, da temporada anterior. Tal episódio,
baseado no livro homônimo de Rosa Strausz, traz à cena João Victor, personagem de
classe média baixa que vai co-protagonizar Tem que ser agora, roteirizado por Jorge
Furtado, Regina Casé e Rosa Strausz, dirigido por Regina Casé.
O episódio começa numa breve cena, em plano geral, onde dois surfistas, vistos
do alto, discutem, um deles ameaça, se diz “sinistro”. Corta e vemos Laranjinha de
bicicleta, por uma avenida da praia, ar abafado, voz over, lamentando a duração do dia
que não acaba, desanimado, na cena que se repete ao final. O começo in media res, o
recuo no tempo, intervalo no qual o filme vai acontecer, traz o ambiente do morro em
clima de preparativos para uma manhã de sol: planos rápidos e errantes, como de hábito
no seriado, onde se vê a juventude do morro se preparando para a festa, Laranjinha
ganhando o bico de entregador de pranchas, moças se depilando e depois de bíquini
tirando a canga e correndo atrás dos evangélicos com suas bíblias brandidas em vade
retro, rapazes oxigenando os cabelos. Tudo em som e imagem que traduzem excitação,
urgência, farra, pândega.
Em Tem que ser agora, o espaço principal da ação é a praia, espaço bastante
explorado como ambiente gerador de encontros, catalisador de tensões na cidade do Rio
de Janeiro, emblemática dos contrastes sociais brasileiros. A chegada dos banhistas à
praia é quase coreografada, com pessoas vindo de motorista, táxi, ônibus, a pé e
convergindo para as areias. Moradores da favela, vendedores ambulantes, surfistas de
carro, meninas da zona sul, a malandragem que desce com ou sem pranchas pelas
janelas dos ônibus.
Tudo isso vem meio misturado na luz que arromba a retina em beleza, num
excesso de contrastes, nas diferenças tensionadas que ressaltam em cada imagem, em
planos que se sucedem freneticamente, nos enquadramentos que vacilam, nos pequenos
grupos sociais que vão se desenhando e se articulando no espaço da praia, na
confluência entre Leblon e Ipanema, espaço narrativo usado e abusado nas ficções
televisuais brasileiras, sobretudo nas telenovelas. À chegada das tribos do morro, um
plano geral em tomada alta, um plongée, aponta o afastamento assustado dos que já
estavam instalados na areia, ante um sentido de invasão acentuado pela efetividade das
imagens clipadas e pela música de Marcelo D2.
Como já assinalamos, a praia é o espaço aonde vai se desenrolar a maior parte da
história. Na mistura da areia, o povo do morro continua chegando a pé, brancos, pretos e
mulatos descem aos montes dos ônibus, ocupam a praia, enquanto a moçada de classe
média se vê meio perplexa em frente de casa no eixo Leblon-Ipanema-Arpoador.
Essa mistura, algo tensa algo distensa no misturado das areias e das ondas e na
possibilidade de convivência sagrada num tipo de vida litorânea é explorada no episódio
nos diálogos rápidos que costuram as pequenas histórias, as várias conversas, os flertes,
as evitações, os interesses, olhares abertos naquele espaço -- espaço, por outro lado,
demarcadíssimo.
Além desse encontro coletivo e da urgência de viver o encontro ao sol, um outro
plot que move o enredo de urgências é o da perda da virgindade, obsessão de Acerola,
com sua namorada, e de Laranjinha, solitário, além de João Victor, como saberemos
mais no final. A virgindade masculina como estigma e também a feminina, o interesse
material, a paquera, a azaração que assinalam o ritual de calções e biquínis, da
convivência ao sol justificam o título – tem que ser agora, sagrando uma espécie de
preparação para um ritual de iniciação.
Os diálogos aparentemente simples de Cidade dos homens têm a força das
linguagens vivas das ruas e se constroem em roteiros muito bem amarrados, ativados
por um auscultar os atores nos ensaios e um retrabalhar as falas novamente30. As falas
soam com um poder de germinação que habita na esperteza da levada do uso diário da
língua, dos discursos da vida prática, nos acentos que desvelam as relações sociais.
Nessas falas, há com freqüência graça e humor e sempre um desvelamento de conflitos
que confere muito do vigor discursivo do seriado.
Os diálogos dos personagens assinalam a assunção ou o negacear no assumir
interesses, preconceitos, divergências, diferenças, marcação dos espaços na areia. Uma
fala de duas meninas da zona sul, enquadradas em primeiro plano, com expressão
desanimada e perplexa, define a situação de desconforto ante a invasão da praia.
Duda - Carooolll...
Carol - Duda, o que é que tem essa praia...
Duda - Cê sabe que eu não sou racista, Carol. Não, cê sabe... Eu
não tenho o menor preconceito contra preto... Mas, peraí! Mora
no Vidigal, vai na prainha do Vidigal; mora em São Conrado,
vai no Cantão de São Conrado. Agora, com uma praia tão
grande dessas vem em frente à minha casa...
Carol -Fizeram até aquela piscina lá para eles... Eu não tenho o
menor preconceito. Eu sou madrinha do filho da minha
empregada...
Duda - Não, eu só acho que não tem necessidade...
Nesse diálogo inicial, muito do que se afirma denuncia imediatamente o que se
cala, numa co-presença de vozes sociais, para falar com Bakhtin, que vai trazendo à
tona, pela estilização e pela paródia, o dado social recalcado, revelado pela linguagem e
aqui me refiro tanto aos diálogos quanto aos demais elementos do discurso audiovisual
(BAKHTIN, 1981, p.13). A objetivização e deformação da linguagem média na
entonação afetada e falseada (“eu não tenho o menor preconceito...”), “revela de
30 Movimento que remete ao processo de produção de Cidade de Deus e mostra o quanto esses audiovisuais elevaram o padrão de exigência do cinema e da tv no Brasil.
maneira abrupta sua inadequação ao objeto” (BAKHTIN, 1993, p.108), pela expressão
de repulsa da personagem, pela alusão deslocada do compadrio com a empregada, ou
com a expressão “lá para eles”, que demarca a distância e contrasta com a possibilidade
de intimidade assinalada antes. O etnocentrismo enrustido e as hierarquias abissais de
um Brasil que amontoa Vieira Souto e Rocinha são revelados aí.
A personagem Duda, de rápida aparição no seriado, vai protagonizar outra
situação de desconforto. Ao perguntar a um surfistinha louro, com o qual acabara de
“ficar”, onde ele mora exatamente, ela mesma vai especulando lentamente, citando três
ruas da área nobre do entorno urbanizado, do Leblon. O rapaz responde três vezes que
não, a puxa pelo braço e aponta o alto do Morro de Dois Irmãos, a favela da Rocinha. O
desconcerto dela e a despedida educadamente horrorizada (“pô, deve ser o maior
visual”) vincam as tensões do “espaço confuso da praia”, como dirá reiteradamente
Laranjinha, herói do seriado.
Em Tem que ser agora, um casal já está formado, Acerola e a namorada, cuja
iniciação quase ocorre após a praia, mas é interrompida por um tiroteio no morro31.
Outros dois casais vão se formando. O surfista João Victor e uma menina, evitada por
Laranjinha por parecer burguesinha, mas que na verdade mora na Rocinha; ela, que é
amiga de Camila, moradora da zona sul, e vai terminar quase ficando com Laranjinha.
Em pauta, a urgência da vida e a vergonha da virgindade, eles que pensam na primeira
transa para aquele dia, na vida para àquela hora: tem que ser agora.
Antes do encontro, em vários ocorrências de voz over, Laranjinha assinala a
praia como um “espaço confuso”, em angústia que gera várias das sacadas de humor no
seriado, nos diálogos com Acerola. O personagem assinala a ambigüidade daquela
convivência na praia e o faz mirando as meninas, tentando adivinhar suas classes
sociais, olhando as pessoas e percebendo como as aparências enganam. Evitando quem
ele pensa ser inviável para ele.
Passei o dia na maior pilha! Cê já pensou se o Acerola se dá
bem com a Lidiane e eu continuo virgem! Olha que menina
31 O namoro e a transa de Acerola com a menina Lidiane irá progredir em gravidez e casamento, rendendo motivos explorados em vários outros episódios do seriado.
linda, cara. Como é que eu vou saber se eu posso chegar nela?
Não sei se ela mora na Rocinha ou na Vieira Souto.... Tenho
medo de chegar nela... e se eu tomar um toco...? Praia é muito
confuso. Fico nervoso. Quer ver? Pedro mora lá no morro, é
mais ferrado do que eu, mas só porque ele é lourinho, pega essas
Patricinha aí...
O espaço narrativo é demarcado pelo entrecruzamento de pontos de vista. Os
grupos se observam e se comentam. A perspectiva narrativa é delineada por esses
olhares, fragmentos de imagens e situações formadas pelas personagens e suas falas que
especulam sobre o tipo de vida, sobre o status social, sobre as possibilidades afetivas
dos outros, e, em alguns casos, sobre as vantagens que podem ser tiradas de uma
aproximação e as possíveis perdas32. No rito de beira-mar, o espaço permite intercursos,
passagens, mistura -- mas ao mesmo tempo cada um sabe seu lugar na areia.
Mikhail Bakhtin assinala que “classe social e comunidade semiótica não se
confundem”. Ou seja, classes sociais diferentes usam uma só e mesma língua, onde
“confrontam índices de valor contraditório” (BAKHTIN, 1988, p.46). No episódio, essa
linguagem compartilhada se mostra em discursos que expõem suas contradições, sua
repulsão e seu desejo. As palavras são compartilhadas assim como os espaços da areia
da praia, convivência geradora da história que vai sendo construída discursivamente,
dialogicamente.
De olho em Laranjinha, a garota descolada de classe média Camila, devolve o
deboche de Andressa, uma mulata, personagem bem construída e interpretada, que caça
grana e gringos na praia e assume, no seu coloquial chulo, seus interesses naquela
convivência, olhando para os turistas estrangeiros e insinuando que no almoço daquele
dia terá boas chances de comer camarão. O diálogo abaixo ocorre quando Camila pede
informações sobre Laranjinha.
Andressa - Camila! Tá dando mole agora pra favelado, filha?
32 A personagem Andressa, moradora da favela, de olho nos gringos; Duda se afastando dos meninos da favela.
Camila - Que horror, Andressa, me admira você que é da
comunidade [aspas com os dedos], tá mais preconceituosa que
as partes aí...
Andressa - Ah, meu amor, quero ver quando teu pai te ver com
aquele neguinho ali, vai ser engraçado, né?
Camila [revirando os olhos] - Meu pai? Meu pai vai amar, meu
pai é antropólogo....
A incorporação do discurso da diferença como moda vai estar inscrita na fala da
menina, que termina levando Laranjinha para o apartamento da família. Ou quase, pois
ele percebe a intenção dela e de última hora rejeita o convite, num diálogo tenso.
Laranjinha: -- Já sei. Quer ficar com um neguinho do morro só
para tirar onda com as tuas amiguinhas, né?
Duda: -- Não, cara, não me importo mesmo...
Laranjinha: -- Mas eu me importo. Não vou subir para tu ficar
tirando onda comigo lá em cima não [silêncio] Ah, quer tirar
onda, vai namorar bandido, moleque do movimento, aí sim tu
vai tirar onda!
No episódio, Laranjinha e Acerola vão à praia entregar pranchas consertadas aos
surfistas. Antes, pegam umas ondas, até que os donos apareçam. A entrega da primeira
prancha, a João Victor, transita entre agressiva e irônica por parte de Laranjinha e de
outro amigo, que zoam com o garoto e inflacionam o preço do conserto da prancha, o
que está nos diálogos, nas posturas de corpo, nos movimentos de câmera. Por sua vez,
Acerola é esculachado e humilhado por um outro surfista, que o vê com a prancha dele.
Um pólo de camaradagem e respeito mútuo se estabelece com um terceiro
surfista, que trata Laranjinha como “parceiro” e o previne da briga que vai haver mais
tarde com os garotos do bairro e os favelados. Retaliação (“faxina”) por conta de um
membro da favela ter invadido a área sem licença e tomado a onda de um “local”,
conforme o didático over de Laranjinha que lembra o “greencard” necessário para se
freqüentar o pedaço, discurso informativo que bruscamente assume tom opinativo e
irritado: “Daqui a pouco eles estão botando segurança no mar! Tão pensando que mar é
condomínio?!”33.
O atrito insinuado ali naquele espaço misturado da praia vira guerra aberta entre
duas tribos. “Vamo botar essa galera para tomar sol na laje!” berra o baixote, moreno,
“com cara de pobre e nome de pobre”, como diz uma das personagens, mas que é cheio
da grana, “filho de político nordestino”, e que ataca junto ao grupo dos surfistas
mauricinhos. Na batalha com pitbulls e briga feia na areia, dois ambulantes conversam
apressada e nervosamente antes de debandarem, apontando que os “branquinhos”
começaram a arruaça, e apostando que no dia seguinte os jornais vão culpar os
favelados.
A briga vai precipitar o surfista João Victor e a menina aparentemente classe
média (mas que mora no morro), que fogem numa prancha para o mar e terminam quase
se afogando. Salvos pela rede do salva-vidas, suspensos no ar, se beijam e terminam
confessando um para o outro -- urgente e timidamente, a virgindade deles, de maneira
ansiosa, envergonhada, e por fim enternecida. Indecisos quanto a si e quanto ao outro,
sobre de que forma a virgindade de cada um seria aceita. Quebrando estereótipos
masculinos, é ele quem prefere adiar o ato, “para evitar fazer tudo na pilha, na pressão”.
Tranqüilizando ela, que especula sobre o risco de correrem o risco de morrerem antes,
virgens, como quase acontecera no espaço aberto do mar. Ele: “depois de tudo que a
gente viveu hoje, a gente não morre tão cedo”.
Tal diálogo descrito acima acontece com os dois girando no ar, em plano
fechado, tremendo de frio e sem que o espectador visualize completamente a situação
espacial, o que acontece só após a câmera ir abrindo o campo e helicóptero que puxa a
33 As inserções de discurso informativo em meio ao discurso ficcional são algo freqüentes em Cidade dos homens – e também em Cidade de Deus – onde hábitos das comunidades pobres e situações comuns no morro são explicados didaticamente. No episódio A coroa do imperador, da primeira temporada, todo o esquema do narcotráfico é explicado em meio à narrativa, que inclusive incorpora uma seqüência documental à narrativa ficcional.
cesta salva-vidas ser enquadrado. O roteiro e a direção assinalam de maneira
extremamente bem entramada silêncios, avanços e recuos na fala dos dois.
As diferentes valorações sociais do tema da virgindade, postas em suas
permanências e mudanças recentes, são vistas onde há, para ela, ambigüidade sobre se
pareceria (aos olhos dele) virgem; e, para ele, cuidadosamente sem-jeito, tanto pela
possibilidade de magoá-la por achar que ela não “teria cara” de virgem, como a
possibilidade de contrariá-la pela razão contrária, baseado na maneira como ela
responde. No lado masculino, o desajeito mais unívoco, pelo que há estabelecido
culturalmente há muito em termos de cobrança de experiência sexual precoce. Daí a
vergonha de João Victor. O que ao mesmo tempo encanta a garota.
Na seqüência final Laranjinha é visto voltando sem perspectiva ao espaço já sem
sentido da praia, após o atrito com Camila que o levara ao apartamento como uma
“atração” a ser exibida a primos e pais. O personagem aparece na mesma seqüência do
início do episódio, de bicicleta na ciclovia à beira-mar, voz e ar abafados, especulando
sobre a possibilidade de dormir na praia por conta do morro ter sido “fechado” pelo
tráfico, a praia migrando de um espaço vivo para assumir um ar totalmente hostil.
“Cara, que dia comprido. Parece que eu já acordei há uma semana”. Em segundo plano,
ao longe, no mar, vê-se João Victor e a menina pendurados na rede do salva-vidas,
levados pelo helicóptero.
Onde coincide o corte da seqüência inicial, é o ponto de pegar o instante que
estala no personagem. Ele toma de assalto (“tem que ser agora”) o celular de uma
senhora, pedala rapidamente, checa o telefone de Camila, disca, diz que já ficou com
saudade, reata o contato. Retorna com a bicicleta, vemos o grupo de banhistas de classe
média especulando nervosamente em torno de algum lugar-comum verbal e gestual
sobre onde-vamos-bater-com-essa-onda-de-assalto. Laranjinha retorna, freia, explica
que foi só uma ligação local, devolve o celular, deixa um beijo levemente agressivo e
irônico para a mulher perplexa e vagarosamente se afasta de bicicleta. A câmera
estaciona e o enquadra se distanciando, braços abertos no rumo do Morro Dois Irmãos,
pedalando tranqüilamente, quando o espaço deixa de ser hostil e passa novamente a
fazer sentido. Na trilha, O vencedor, dos Los Hermanos, cuja letra relativiza o sentido
finalista de vitória (“Eu que já não quero mais/ ser um vencedor/ levo a vida devagar/
pra não faltar amor”). Na narrativa, os três casais adolescentes terminam deslocando,
assim, o sentido de urgência.
A imagem habitada
Diana Luz Pessoa distingue dialogismo e polifonia, assinalando que o termo
“dialogismo recobre o princípio dialógico constitutivo da linguagem e de todo
discurso”. Enquanto isso, “a polifonia caracterizaria um certo tipo de texto, aquele em
que o dialogismo se deixa ver, aquele em que são percebidas muitas vozes, por oposição
aos textos monofônicos que escondem os diálogos que os constituem” (BARROS, 1997,
p.35).
Em Bakhtin, a palavra é percebida como terreno habitado (BAKHTIN, 1981,
p.176) como arena de luta retórica34 e nela há, poderíamos dizer, uma co-habitação de
vozes múltiplas onde não só há oposições como complementaridades, onde as posições
mesmo radicalmente opostas levam em conta e se constituem mesmo levando em conta
a palavra do outro. “O nosso discurso da vida prática está cheio de palavras de outros”
(BAKHTIN, 1981, p.168).
Esse dado constituinte da alteridade será tema e construção de linguagem em
boa parte dos episódios de Cidade dos homens, onde diferenças culturais e sociais e
diferenças de expectativas e de públicos de cinema e televisão se fazem presentes. Isso
de maneira, consciente, com os dados discursivos ressaltando as recamadas vozes que
convivem em ligação vital, ressaltando contradições e pontos de contato, como vimos
nesse Tem que ser agora, que desenha um olhar generoso sobre o universo
adolescente35.
E o faz trazendo à tona e entrecruzando dialogicamente, polifonicamente,
discursos evidentes e as falas da alteridade recalcada. Assinalando tons e timbres
reveladores no compromisso interno do discurso fílmico na construção de um olhar e
incorporando internamente ao texto audiovisual os dados de um contexto repleto de
tensões e atrações.
34 Tomando a expressão aqui obviamente em sentido amplo. 35 Olhar esse também presente em duas comédias românticas à brasileira assinadas por Jorge Furtado (co-roteirista de Tem que ser agora): Houve uma vez dois verões e Meu tio matou um cara.
Os três episódios baseados ou inspirados em Uólace e João Victor, de Rosa
Strausz, têm em comum um hábil jogo com a focalização, também familiar ao ambiente
de Cidade dos homens. Uólace e João Victor, Tem que ser agora e Os ordinários
perscrutam as perspectivas narrativas, tomando focalizações internas, que desvelam o
íntimo dos personagens e a percepção que estes têm dos outros personagens. O conjunto
de dados das narrativas freqüentemente revela o que é velado nesse confronto,
ampliando em muito o alcance do espectador, ante o concerto de perspectivas. O que se
traduz, em diversos momentos, em palavras e imagens habitadas e saturadas de
entonações, vistas em sua espessura histórica e em sua aposta estética, num projeto
audiovisual voltado para o amplo consumo televisivo e que incorpora, ao mesmo tempo,
o artesanato cinematográfico.
4 - A verdade entrevista: a cena aberta de Jorge Furtado,
Guel Arraes e Regina Casé
Em 2005, saiu em DVD o programa Cena aberta, com direção geral de Jorge
Furtado, dirigido por ele, Guel Arraes e Regina Casé. Produzido pela Casa de Cinema
de Porto Alegre e realizada pela Central Globo de Produção, o programa foi veiculado
no ano anterior pela TV Globo. O projeto consiste em quatro programas adaptados de
textos literários, com roteiro de Jorge Furtado e Arraes. As obras adaptadas são A hora
da estrela, de Clarice Lispector, Negro Bonifácio, de Simões Lopes Neto, As três
palavras divinas, de Tolstoi, e Ópera do sabão (que foi intitulado Folhetim), de Marcos
Rey. Tentarei observar aqui alguns aspectos do Cena aberta, dando atenção especial ao
programa A hora da estrela.
Como assinalei em outro texto, Cena aberta é um falso making off que incorpora
várias tendências e gêneros da televisão, como a entrevista, a reportagem e formatos de
entretenimento que recorrem a tais gêneros, mesclando-os com representações
ficcionais (MOUSINHO, 2007). Tal mescla se realiza por meio de vários procedimentos
metalingüísticos, de forma que o fazer ficcional, em seu caráter de construção, vai sendo
mostrado ao público. Isso desde os dados de concepção e caracterização do espaço e dos
personagens, passando pela recepção do texto literário e também pelas expectativas em
relação a este e ao texto e contexto audiovisuais. O programa conta com forte
participação de atores não profissionais, que são ouvidos e cujas experiências são
incorporadas à trama ou simula-se que o são (o que explico adiante).
Muniz Sodré e Maria Helena Ferrari (1982) têm um texto didático e muito
funcional para ser trabalhado em sala de aula por esclarecer, entre outras coisas, o
conceito de discurso, que, como ressalta o artigo, recobre qualquer tipo de texto,
inclusive o audiovisual, permitindo certo afastamento da noção de transparência na
relação entre as linguagens e as coisas. Em A comunicação informativa, os autores
distinguem três discursos básicos: o discurso informativo, próprio do jornalismo, visto
em seu projeto de comunicação imediata, com suas exigências de clareza e seu interesse
pelos fatos (“pelas notícias”); o discurso comunicativo comum, que é o do diálogo
interpessoal, com suas possibilidades de retorno imediato (feedback); e o discurso
literário, visto em seu desinteresse por um projeto de comunicação imediata.
Como ressaltam os autores, o discurso literário “mantém total independência
quanto ao tratamento lingüístico e se caracteriza por imprimir ao enunciado comum um
revestimento artesanal”. Dessa maneira,
prescinde de submeter-se à assimilação em grande escala, num
descompromisso com o grau de comunicabilidade a atingir. Isso
não implica, necessariamente, rebuscamento da linguagem [...]
O aspecto formal assume importância em função da própria
estrutura do discurso literário, graças a outro fato mais
relevante: o projeto criador opera num sistema de segundo grau,
onde as significações obedecem à prevalência do emissor.
Assim, determinado discurso literário pode não querer informar
nada, apenas assinalar a posição expressiva de seu autor com
relação ao mundo. Esse modo próprio de ver as coisas assegura
a especificidade do discurso, já que manipula a linguagem
objeto de maneira particular. Estamos diante de um sistema de
semântica basicamente conotativa. (SODRÉ; FERRARI, 1982,
p. 7)
O exemplo dado pelo texto para o discurso literário é o poema de Carlos
Drummond de Andrade No meio do caminho, bastante funcional na clarificação da
noção de constructo estético. Por outro lado, o discurso informativo, embora entendido
como um discurso ligado ao universo da notícia, é exemplificado pelos relatórios
escritos em 1928 pelo então prefeito da pequena cidade alagoana de Palmeira dos
Índios, Graciliano Ramos. Enxutos, claros, concisos, viscerais, superinformativos,
hilários, esses relatórios mostram que o discurso informativo, pela necessidade de
clareza ao atingir uma massa, não precisa ser tolhido, acanhado, raso. Essa grande lição
de Graciliano é bastante citada em livros destinados a estudantes de jornalismo e
seguramente tem muito a ensinar às rotinas de jornalismo e telejornalismo
contemporâneos.
O programa Cena aberta transita entre o telejornalismo, o cinema documentário
e o registro ficcional, mergulhando na experiência dos grupos de atores amadores
selecionados, colocando-os em contato com os atores profissionais e a ambos com um
texto literário ativado, disparado, a partir da recepção encenada ou espontânea. Isso nas
leituras em grupo, nas interferências de cada um, em suas reações ao texto, sejam as
captadas durante as entrevistas, sejam as simuladas, em respostas roteirizadas
previamente, algumas originais do roteiro, outras citações das obras literárias também
roteirizadas, outras tantas que captam o espírito da obra e o atualizam.
No Cena aberta, Regina Casé, co-diretora do programa, atua como
apresentadora e entrevistadora, fazendo-se também uma contadora de histórias,
conduzindo leituras nos grupos e discutindo sobretudo a caracterização dos personagens
com os atores amadores. Além disso, lê trechos do livro em voz over, em lances
interpretativos que trazem o peso da linguagem verbal em circuito com a linguagem
audiovisual, dando certa espessura, corpo à palavra narrada36. Ao mesmo tempo, a
apresentadora encarna personagens ao longo dos quatro programas. Como narradora e
atriz em atuação, investe na sua força cômica, em programas que têm predominante tom
cômico.
O viés metalingüístico do programa ecoa aspectos do curta-metragem O
sanduíche, de Jorge Furtado, e encontra terreno fértil de diálogo com A hora da estrela,
de Clarice Lispector, novela literária fortemente metalingüística. No livro, é tematizada
a tentativa do narrador-protagonista Rodrigo SM de captar a alteridade encarnada na
nordestina Macabéa. Ele, escritor de classe média, afirma-se na intuição — tão cara à
obra da autora, aonde é tomada como instrumento de conhecimento — e num sentido de
margem para chegar a captar a essência da personagem que busca construir. A todo o
momento a história de Macabéa é interrompida: a narrativa desconfia de si mesma e
denuncia os limites da linguagem, a impossibilidade de atingir o outro e,
implicitamente, a cristalização falseadora e automatizada de um romance social diluído,
tomando o pobre e rústico como signo de uma situação idealizada.
36 Grosso modo, chamamos de voz over ao som não diegético, ou seja, à fala do personagem que não corresponde à fala ou ao diálogo de uma ação que se desenrola naquele momento (diegético vem de diegese, história, o que é contado). A voz over corresponderia ao monólogo interior em literatura, valendo lembrar que este “exprime sempre o discurso mental, não pronunciado, das personagens” (REIS; LOPES, 1988, p. 266). Já o off daria conta de uma situação em que o personagem fala durante uma ação, mas sem estar na tela, por um afastamento da câmera. Mais generalizadamente (sobretudo no ambiente de roteirização e produção), se usa a expressão off para as duas situações.
Isso quando Macabéa é a alienação sem redenção e ao mesmo tempo o prazer e a
carência de um luxo de alma que os que a poderiam tomar como bandeira, no contexto
dos anos 1970, não desconfiariam (“É uma história em tecnicolor, para ter algum luxo,
por Deus, que eu também preciso”) (LISPECTOR, 1990, p.22). Para desenvolvimento
futuro, vale talvez pensar se a estupidez alienada (“ela não era idiota”) e o desconcerto
de Macabéa diante da existência não assinalariam, entre tantas coisas, a desconstrução
da automatizada imagem do pobre rural idealizado, não contaminado pelo capitalismo e
trazendo em si o germe da sublevação, mito no ambiente de produção cultural brasileira
dos anos de 1960, do qual nos fala Marcelo Ridenti37.
A novela literária tem traços de paródia exatamente da diluição da representação
dos pobres no contexto da produção cultural brasileira. No texto, o protagonista é um
intelectual de classe média que tenta assumir a voz dos desvalidos e fracassa quase o
tempo todo nessa tentativa. E só consegue se aproximar desse outro pela intuição e pelo
sentido de margem que compartilha com a personagem. Mas assume a precariedade
dessa apreensão, pondo no papel seus tropeços, sua incompetência no entendimento do
outro, num fracasso que é a força da narrativa. Na novela, não é à toa o fato de Macabéa
não passar fome e ter chegado a um grau de alheamento que impede o leitor médio de
sonhá-la como uma possível representante do “povo”, vê-la como detentora de
presumíveis verdades emancipatórias. A narrativa de Clarice, afinal, se recusa a ser um
escape para a consciência culpada da classe média leitora, negando-se a colocar seus
personagens pobres na senda tranqüilizadora de símbolos de uma salvação coletiva
(BARTHES, 1971, p. 39).
Trazendo no nome a saga dos guerreiros bíblicos macabeus, Macabéa parece
representar mais uma tradição esquecida e uma vida perdida e alienada — ela, parafuso
solto de uma estrutura em que não se situa. Esse sentimento de perdição está no livro,
no filme de Suzana Amaral e no programa de Jorge Furtado.
No livro e no programa, tal visão vem junto com uma problematização explícita
da linguagem. Na novela literária, com um forte viés de crise de representação e
suspensão da ilusão ficcional, bem como de impossibilidade de aproximação da
37 “A utopia revolucionária romântica do período valorizava acima de tudo a vontade de transformação, a ação dos seres humanos para mudar a História, num processo de construção do homem novo, nos termos do jovem Marx, recuperados por Che Guevara. Mas o modelo para esse homem novo estava no passado, na idealização de um autêntico homem do povo, com raízes rurais, do interior, do ‘coração do Brasil’, supostamente não contaminado pela modernidade urbana capitalista” (RIDENTI, 2000, p. 24).
alteridade, a não ser pelo viés oblíquo, mas freqüentemente essencial, da intuição38. No
programa de Jorge Furtado, tal dado metalingüístico vai estar ensopado de efeitos
cômicos e também de envolvimento do público com gêneros familiares de ficção
televisual e de telejornalismo, mas aprofundados por uma experiência de germinação
que vai mais sugerindo do que dizendo, armando efeitos de sentido em meio à
espontaneidade aparentemente ingênua, captando dados centrais do universo clariceano.
A narrativa começa pelo meio, com Macabéa sendo mostrada indo à cartomante
(feita por Casé) e se encaminhando para sua hora de estrela — para a morte. A cena
com o boneco e o atropelamento encenado é interrompida. Regina Casé, em voz over, lê
trecho da obra, em seguida aparece em voz off (lendo em voz alta fora do quadro) e
depois enquadrada na cena do atropelamento, chamando o início de uma história, que
vai ser o recrutamento pelos jornais de moças pobres, eventualmente nordestinas, que
queiram encarnar o enigma Macabéa39.
As candidatas são vistas chegando, em imagem acelerada, e logo em seguida as
selecionadas já estão reunidas. Trechos são lidos em roda, as moças brincam em
passagens de forte teor cômico sobre quem parece nordestina, ao mesmo tempo em que
contam passagens de suas experiências, dores, esperanças. A fala recalcada do
socialmente esquecido vai sendo desentranhada, migrando da agilidade da exposição
informativa do jornalismo diário para o xeque mate das experiências fundamentais de
vidas que se perdem na automatização cotidiana. A obra audiovisual incorpora alguns
veios centrais da obra literária, observando “não os fatos, mas a repercussão dos fatos
nos indivíduos” (LISPECTOR, 1988, p. 296). Por outro lado, se filia a momentos de
avanço do jornalismo e do telejornalismo, além de trazer algo do cinema documentário,
valorizando os procedimentos de ouvir o outro e deixar falar, essenciais num ambiente
de TV onde predominam as narrativas informativas monopolizadas por respostas
prontas, perguntas que forçam respostas-padrão, freqüentemente no sentido de
cristalização do que há de menos promissor no socialmente instituído.
38 Sônia Ramalho de Farias (1992, p. 2) ressalta a importância do narrador Rodrigo SM na novela literária A hora da estrela, assinalando que “na obra cabe ao personagem uma dupla função [...] narrar a história e desvendar simultaneamente para o leitor os procedimentos estéticos e retóricos utilizados na narração. Mais do que o narrador, enfatiza-se, pois, a trama. Ou seja, a forma como a novela é construída, o processo de auto-explicitação, auto-referenciação do discurso, articulado como meta-discurso. Ao mesmo tempo que se tece, diz-nos, ou nos pretende dizer, como se tece [...] Fala-nos de sua matéria ficcional, das possibilidades e dos limites de sua própria construção discursiva”. 39 “A outra pessoa é um enigma. E seus olhos são de estátua: cegos” (LISPECTOR, 1984, p. 9).
No Cena aberta, várias possíveis Macabéas são ouvidas e, adiante, várias moças
são incorporadas na representação da personagem; só mais ao final a personagem será
encarnada por apenas uma delas. Em meio às risadas abertas nas especulações puxadas
por Regina sobre quem tem cara de nordestina ou em meio a alguma escorregada
nalgum estereótipo (como na passagem péssima sobre quem se veste como nordestina),
são feitas perguntas fortes e desconcertantes que tocam na experiência das Macabéas.
Assim: Você é feliz? O que é a vida? Como na narrativa escrita, a narrativa audiovisual
aposta no luxo de indagar o tempo todo sobre a espessura da existência em meio à
carência material. Os silêncios são marcados, as respostas variadas. Cito o roteiro de
Guel Arraes e Jorge Furtado:
CENA 6 – DEPOIMENTOS – Os depoimentos das moças serão
meio documentais meio encenados, seja trechos do livro como
indicado abaixo seja respostas espontâneas a perguntas tipo:
Você é feliz? se você não fosse feliz teria vergonha de dizer?
Você conhece alguém que é muito feliz? E esta pessoa se acha
feliz? E infeliz? As falas podem ser repetidas por mais de uma
moça, em tons diferentes. MOÇA 1 – A pessoa tem obrigação
de ser feliz. Por isso, eu sou. MOÇA 2 – Eu acho que tem uma
gloriazinha em viver. MOÇA 3 - Eu acho bom ficar triste.
MOÇA 4 – Tristeza é coisa de rico, é pra quem pode, pra quem
não tem o que fazer. Tristeza é luxo. [...] CENA 8 –
DEPOIMENTOS (***fazer pauta de perguntas para obter
respostas sobre esse tema) MOÇA 4 – O mundo é fora de mim.
Eu sou fora de mim. MOÇA 1 – A vida é assim: uma dia a gente
aperta o botão e ela acende. Mas tem que descobrir onde fica o
botão de acender. MOÇA 2 – Antes de nascer a pessoa é o que?
Uma idéia? A pessoa está morta? (ARRAES; FURTADO, 2003,
p. 4-5).
Em linhas gerais, o trecho acima foi incorporado à edição final. Vários pedaços
das entrevistas soam como respostas espontâneas; outros soam assim, mas não o são,
são trechos roteirizados, passagens tiradas diretamente do livro, originais do roteiro ou
que parecem vir do “espírito do livro”. Aqui serve o que é dito pela apresentadora
Regina Casé (e está parcialmente no roteiro) no episódio Negro Bonifácio e tem raiz
aristotélica e total relação com nossa percepção, histórica, do ficcional: “isso é ficção: a
gente mente para dizer melhor a verdade!”40.
No programa de tevê, o indagar as várias possíveis Macabéas parece ter
correspondência com o que no livro seria o indagar-se sobre a possibilidade de
representar as Macabéas e, sobretudo, com os esboços da personagem que vão sendo
traçados mediante a colagem de perguntas, a interpretação das respostas por cada uma
das moças41. Nas entrevistas, há predominância do fazer falar o elemento socialmente
silenciado. Na co-presença de várias moças interpretando a personagem, talvez haja
também a tematização do anonimato e da substituibilidade quebrando um pouco o star-
system, ou melhor, o lugar da TV como espaço de salvação pela fama42.
Em Cena aberta, o programa vai ser encerrado com a situação espacial do início,
quando a equipe de produção prepara o atropelamento de Macabéa. Regina Casé dirige
o dublê e ri com o homem vestido de mulher (“rápido, dublê! [...] tá ótimo o dublê!”),
enquanto corre para sair do enquadramento. A atriz que interpreta Macabéa senta na
cadeira do diretor, e Wagner Moura, interpretando Olímpico, se aproxima — se
reaproxima dela — e a chama. Os dois saem conversando, desenhando um outro final
para a trama, fazendo um outro fim para a história.
Isso casa com a antecipação narrativa traduzida na fala de Regina Casé, que
dissera, no início, da morte e da possibilidade de mudar o final. Cito o roteiro:
40 Conforme noção exposta na Poética de Aristóteles, segundo a qual o discurso poético tenderia ao universal ao propor uma interpretação mais ampla do real, tratando não do que aconteceu, mas do que poderia ter acontecido, sendo a mímesis (a representação poética) uma deliberada construção que se aproximaria da verdade, revelando possíveis. (Cf. ARISTÓTELES, 1966). 41 Nos extras do DVD, os três autores discutem a adoção, na parte final da narrativa, de apenas uma moça para interpretar Macabéa. Arraes e Furtado defendem que seria necessário escolher a moça que era atriz, pela dificuldade de interpretação de trechos de Clarice Lispector. Regina Casé diz discordar da concepção adotada e revela que a escolha também foi por conta dos custos de produção para levar todas as moças do Rio para Porto Alegre, onde o programa foi gravado. 42 Pensando a questão da fama, do anonimato e da felicidade, Khel (2003, p. 88), em entrevista, assinala que “o problema nessas cidades de massa é que, se nego não faz alguma coisa que ele bota lá a pata dele e deixa uma marca, não é reconhecido. E isso é 99, 9% da humanidade, que é anônimo, ninguém. Será que a gente não está vinculando muito felicidade com essa realização que proteja um lugar de fama?”
As luzes do set vão apagando, o equipamento sendo recolhido
(se houver chuva artificial ela vai parando) etc.
REGINA
(fechando o livro) Na história de Clarice, Macabéa
morre no fim. Mas como este fim já passou no
início, quem sabe agora a gente vai poder terminar
no meio, que é mais alegre... (ARRAES; FURTADO, 2003, p.3)
Tal modificação também se afina com o alívio cômico, o arranjo provisório da
comédia, com suspensão parcial de tensões (SARAIVA; CANNITO, 2004, p. 93-94).
No programa que adapta Negro Bonifácio, após a bastante efetiva encenação da
carnificina do crime passional ao final, Regina Casé sugere que os atores e a
comunidade escolham as cenas preferidas na exibição pública para encerrar o programa
(é “muita sangueira [...] não vamos acabar assim não”). E dessa maneira é feito. Nessa
cena, é engraçadíssima a cara marota do ator amador que beijara Caroline Dieckmann
na encenação ficcional e o tapa na perna que leva de uma garotinha, provavelmente sua
filha enciumada, ao pedir para repetir a exibição da cena.
O desfecho alternativo de A hora da estrela é coerente com as regras do gênero
narrativo e é também gerador de uma amplitude de oscilação, possibilitando uma
abertura interpretativa multiplicadora de significações. Além disso, parece se relacionar
a uma adaptação efetiva do final afirmativo da novela literária na qual se baseou. Após a
morte de Macabéa, o livro aponta para um sentido de afirmação da vida, ante a visão da
morte inevitável e da morte-em-vida sem redenção da personagem (e um pouco também
do narrador Rodrigo SM).
E agora — agora só me resta acender um cigarro e ir para casa.
Meu Deus, só agora me lembrei que a gente morre. Mas — mas
eu também?! /Não esquecer que por enquanto é tempo de
morangos. /Sim. (LISPECTOR, 1990, p. 106)
Quando os personagens saem caminhando ao final, na noite de asfalto molhado
que serve de set de gravação, entra a trilha em som alto, forte e sincopado. Nela o
Cordel do Fogo Encantado interpreta cantiga anônima recolhida nas ruas, recolhida na
tradição (“Ê nunca mais eu vi /Os oím do meu amor /Nunca mais eu vi /Os oím dela
brilhar /Nunca mais eu vi /Os oím do meu amor /São dois jarrinho de flor /E todo
mundo quer cheirar”).
No ensaio “Sobre alguns temas em Baudelaire”, Walter Benjamin observa como
a informação se posta rigidamente distante da experiência, pois não entra na tradição.
Ao contrário, floresce num momento de atrofia da experiência, quando “nenhum leitor
tem mais facilmente qualquer coisa para poder contar ao outro” (BENJAMIN, 1980b, p.
31). Na imprensa, há o momento de exclusão do acontecimento do contexto “em que
poderia afetar a experiência do leitor”. O que inevitavelmente seria feito, tendo em vista
os ditames da informação, com suas exigências de novidade, brevidade, etc., bem como
os da diagramação, que expõe os assuntos de maneira fragmentária e sem relação entre
si nas páginas publicadas.
Já em “O narrador” (BENJAMIN, 1980a), o filósofo alemão analisa um contexto
de perda da experiência, com o rareamento da narrativa oral, tendo caído de cotação
socialmente a experiência que anda de boca em boca. Para Benjamin, o advento do
romance já acenaria, como exemplo remoto, para as forças históricas seculares que
teriam afastado a narrativa do “âmbito do discurso vivo”. Estaria no romance um sinal
de decadência da experiência, com o romancista sendo um ser segregado, desorientado,
que não sabe aconselhar — um sujeito roubado pela experiência.
Para Benjamin, porém, a informação, como nova forma de comunicação surgida
no capitalismo avançado, ameaçaria a narrativa bem mais que o romance. Exigindo
plausibilidade e verificabilidade, a informação, em todas as suas frentes, tolheria a
germinação de significações.
Cada manhã nos informa sobre as novidades do universo. No
entanto somos pobres em história notáveis. Isso ocorre porque
não chega até nós nenhum fato que já não tenha sido
impregnado de explicações. Em outras palavras: quase mais
nada do que acontece beneficia a narrativa, tudo reverte em
proveito da informação. Com efeito, já é metade da arte de
narrar, liberar uma história de explicações à medida que ela é
reproduzida. (BENJAMIN, 1980a, p. 61)
Assim, faltaria à informação certa amplitude de oscilação presente na
narrativa43. A informação se mantém viva apenas no instante em que é nova, “vive
apenas nesse instante, precisa entregar-se inteiramente a ele” (BENJAMIN, 1980a, p.
62). Ao contrário, a narrativa não se exaure, traz possibilidades de desdobramentos
futuros.
Benjamin fornece como exemplo a narrativa de Heródoto da prisão por
Cambises, rei Persa, de Psanemita, rei egípcio, após vitória em guerra. Cambises
obrigou Psanemita a assistir ao desfile do triunfo persa, a ver sua filha servindo como
escrava aos persas e seu filho ser levado à execução. O rei não esboçou reação a todas
essas cenas atordoantes, no entanto, ao reconhecer “um de seus criados, homem velho e
empobrecido, nas filas dos prisioneiros, bateu com os punhos na cabeça e deu todos os
sinais da dor mais profunda” (BENJAMIN, 1980a, p. 61).
Pensando sobre a interpretação que Montaigne faz dessa narrativa, o ensaísta
alemão especula sobre outras e, principalmente, ressalta o impacto em espanto e
reflexão que ela conserva através dos tempos — um poder que se assemelha ao dos
“grãos de semente que, durante milênios hermeticamente fechados nas câmaras das
pirâmides, conservaram até hoje sua força de germinação” (BENJAMIN, 1980a, p. 62).
Em O narrador pós-moderno, Silviano Santiago aponta os três estágios da
história do narrador sistematizados por Benjamin (por volta de 1935) justamente no
texto “O narrador”. O primeiro seria o do 1) narrador clássico, que teria por função “dar
ao seu ouvinte a oportunidade de um intercâmbio de experiência (único valorizado no
ensaio)”. O segundo 2) se configuraria com o do narrador do romance, “cuja função
passou a ser de não mais poder falar de maneira exemplar ao seu leitor” (e aqui
lembramo-nos da observação de Benjamin de que o romancista está desorientado e não
sabe aconselhar). No terceiro momento, 3) o narrador, “que é jornalista”, só “transmite
43 Benjamin (1980a) se refere à tradição oral e também aponta o conto literário e o romance como contrapontos.
pelo narrar a informação, visto que escreva não para narrar a ação da própria
experiência, mas a que aconteceu com x ou y” (SANTIAGO, 1989, p. 39).
No primeiro caso, o narrador expõe uma vivência, a experiência de uma ação.
Nos dois seguintes, o narrador passa “uma informação sobre outra pessoa”, tem a
“experiência proporcionada por um olhar lançado” (SANTIAGO, 1989, p. 38). Ainda:
no primeiro caso (narrador clássico) “a coisa é mergulhada na vida do narrador e dali
retirada”. No romance, “a coisa narrada é vista com objetividade pelo narrador, embora
este confesse tê-la extraído de sua vivência”. No terceiro momento, “a coisa narrada
existe como puro em si, ela é informação, exterior à vida do narrador” (SANTIAGO,
1989, p. 40). Para Santiago, o narrador pós-moderno é o que transmite
uma ‘sabedoria’ que é decorrência da observação de uma
vivência alheia a ele, visto que a ação que narra não foi tecida na
substância viva da sua existência. Nesse sentido, ele é o puro
ficcionista, pois tem de dar ‘autenticidade’ a uma ação que, por
não ter o respaldo da vivência, estaria desprovida de
autenticidade. Esta advém da verossimilhança que é produto da
lógica interna do relato. O narrador pós-moderno sabe que o
‘real’ e o ‘autêntico’ são construções de linguagem.
(SANTIAGO, 1989, p. 40)
Santiago observa as tensões entre o jornalismo e a literatura percebendo como,
no primado da informação, a figura do narrador passa a ser a de “quem se interessa pelo
outro (não por si) e se afirma pelo olhar lançado ao seu redor, acompanhando seres,
fatos e incidentes (e não por um olhar [...] que cata experiências vividas no passado)”.
Dessa maneira, assinala Santiago, “pode-se falar que o narrador olha o outro para levá-
lo a falar (entrevista), já que ali não está para falar das ações de sua experiência”
(SANTIAGO, 1989, p. 43).
Nesse ensaio do final dos anos de 1980, o autor nota ainda que, no contexto da
narrativa pós-moderna, a “vivência do mais experiente é de pouca valia”, pois a “ação
pós-moderna é jovem, inexperiente [...] De que valem as glórias épicas da narrativa de
um velho diante do ardor lírico da experiência do mais jovem — eis o problema pós-
moderno” (SANTIAGO, 1988, p. 46-47).
Em outro contexto, investigando a desvalorização da experiência e suas
conseqüências na cultura jovem hoje, Maria Rita Kehl percebe um processo de
juvenilização ou teenagização do adulto. Isso ao discutir a relação dos jovens com os
adultos, além de processos identitários de jovens no início desse século e suas relações
com produtos midiáticos e estéticos (filmes, discos etc.).
A desvalorização da experiência esvazia o sentido da vida. Não
falo da experiência como argumento de autoridade — ‘eu sei
porque vivi’. Sobretudo numa cultura plástica e veloz como a
contemporânea, pouco podemos ensinar aos outros partindo da
nossa experiência. No máximo, ensina-se que a alteridade existe.
Mas a experiência, assim como a memória, produz consistência
subjetiva. Eu sou o que vivi. Descartado o passado, em nome de
uma eterna juventude, produz-se um vazio difícil de suportar
(KEHL, 2003, p.4).
Pensando na Escola de Frankfurt, Olgária Mattos propõe a revisitação à Teoria
Crítica para vislumbrar o “‘inteiramente outro’ [como] a redenção das gerações que
passam na história” e a “memória da dor como condição de possibilidade de sua
supressão, pois é o único tesouro que a história não pode arrancar do homem sem seu
consentimento” (MATTOS, 1993, p. 64).
“O mundo me navega e eu não sei navegar”, dizem versos da canção popular
inspirados na personagem Macabéa44. Contar a memória dessa dor não é tarefa isenta de
percalços para o narrador do texto literário, incapaz de aconselhar, mas capaz de
construir na linguagem a visão dessa verdade, sua redenção possível, assumindo suas
vacilações, seu ser em construção, suas dúvidas, a salvação possível (“jamais morrer
44 VELOSO, Caetano. O nome da cidade. Disponível em: <http://www.mpbnet.com.br/musicos/maria.bethania/letras/o_nome_da_cidade.htm> Acesso em: 30 mar. 2007.
antes de realmente morrer”, como percebe o narrador clariceano). Sobre o percurso
desse narrador, Roberto Corrêa dos Santos assinala que
aquilo que na narração modelar de romances e contos é o
elemento que auxilia o andamento do texto, ou seja, o ato de
contar, deixa-se aí sucumbir pela força da linguagem que se vai
formando, nascendo à nossa vista. Anda, pára, recua, avança.
Retorna. O contar é um esforço, o fato em si um impedimento,
um controle e uma motivação. O contador de histórias em
Clarice só se dá a ver sob uma névoa; a névoa — espessa — do
ensaio, da preparação permanente, da procura e da pergunta,
entregues à naturalidade e ao perigo do não-saber. (SANTOS,
1991, p. 58)
Incorporando várias formas do fazer jornalístico e dos formatos televisivos,
Cena aberta ancora seu poder de germinação no registro ficcional, com a função poética
se sobrepondo à função referencial (JACOBSON, 1985, p. 129). Sua aposta é estética.
Já sua aproximação do discurso informativo estaria em vizinhança e afinidade com
vários fazeres jornalísticos que vêm incorporando a contextualização e a experiência.
Para citar programas de grande audiência, poderíamos nos lembrar mesmo do
Fantástico, de quadros como “Minha periferia” e “Central da Periferia” (Regina Casé e
equipe), “Profissão repórter” (Caco Barcelos e jovens jornalistas), das reportagens
especiais de Marcelo Canelas e outros que privilegiam os gêneros jornalísticos
entrevista e reportagem; ou notáveis experiências passadas, como o “Programa Legal”,
dirigido por Guel Arraes. Isso além dos vários documentários de cinema que vêm sendo
produzidos no Brasil, trabalhando com vigor questões como a vida comunitária e a
violência, ou reativando a tradição da canção brasileira, todos com interesse cada vez
maior por parte do público, ressignificando dados da memória coletiva e individual, e
aqui vale citar Eduardo Coutinho e João Moreira Salles. Acenando para momentos
promissores dos audiovisuais, da informação jornalística, da ficção televisual e do
cinema.
Mesclando diferentes discursos e circulando por diferentes mídias, veiculado na
TV e lançado em DVD, Cena aberta promove um diálogo com textos literários
oitocentistas e do século XX, sugerindo a ativação de uma tradição fundada num
imaginário coletivo compartilhado, lembrando que toda subjetividade é intersubjetiva
(conforme a lição de Bakhtin)45. Podendo se filiar a essas narrativas que “estabelecem
relações entre as pessoas, criam um imaginário compartilhado e divulgam um saber que
[...] mescla ação e entretenimento” (COSTA, 2002, p. 220). Assumindo a desorientação
de quem não sabe aconselhar, mas que assume o fazer ficcional como um processo que
constrói e instaura sua própria verdade, elaborando a tentativa de encontrar a si, no
encontro com o outro.
45 Conforme assinala Barros (1997, p. 31), “a intersubjetividade é anterior à subjetividade, pois a relação entre os interlocutores não apenas funda a linguagem e dá sentido ao texto, como também constrói os próprios sujeitos produtores do texto”.
5 - Nem pensar a gente quer, a gente quer é viver – focalização e
dialogismo em Houve uma vez dois verões e Meu tio matou um cara, de
Jorge Furtado
As comédias Houve uma vez dois verões e Meu tio matou um cara, de Jorge
Furtado, trazem um olhar a partir do universo adolescente. Vou observar aqui como se
constroem discursivamente alguns aspectos desse olhar, me detendo na questão da
focalização, enquanto conceito que procura dar conta da regulação da informação
narrativa, assinalando o lugar e o teor da percepção do personagem ou personagens que
regulam e filtram os dados narrativos (GENETTE, s/d., p.185).
Em termos de ação narrativa, Houve uma vez dois verões constrói a trajetória do
adolescente Chico, que tem sua iniciação sexual com uma garota alguns anos mais
velha. Ele a conhece por acaso, numa praia de verão. Roza some logo após o encontro e
reaparece dizendo-se grávida, na verdade uma falsa gravidez, de um golpe recorrente
que aplica na mesma praia de verão onde o protagonista está passando a temporada.
Contra todas as leis da vida prática do mundo dos adultos – adultos ausentes do filme –
e também do universo jovem ao qual pertence, Chico vai lutar pelo amor de Roza, que
foge dele mesmo após assumir o golpe do aborto e devolver o dinheiro.
No início do filme Chico reflete sobre a rotina de dificuldades financeiras de sua
família, entediado na praia deserta do precário verão com casa alugada fora da estação
de férias por conta do preço. Em voz over posta em sistema com planos abertos da
imensa praia comentada na fala dele, entram nas conjecturas de Chico um futuro de
rotina familiar, contas, dívidas. Coisas que vislumbra nos momentos em que vemos a
praia deserta e interminável, o espaço desolado construído pela imagem e pela maneira
como o olhar do garoto, sua expressão, sua fala e a montagem constroem aquela como
sendo “a maior e talvez pior praia do mundo”. Sem detalhe supérfluo, para falar com
Barthes (1972, p.44), a praia é o espaço de onde será principiada a travessia de Chico.
Em Houve uma vez dois verões vai ser mostrado o rito de passagem de Chico ao
mundo adulto. Aproximando-se de Roza, mais velha, ele vai atravessar etapas
sucessivas de um percurso iniciático que começa pelo rápido contato que resultou em
sua iniciação sexual com ela no espaço da praia gaúcha, espaço narrativo que a partir
dali vai se tornar significativo, heterogêneo em relação ao amorfo, ao sem-sentido
construído antes em sua caracterização fílmica (ELIADE, 1996, p.25). Acordando
homem e só na praia, Chico segue os passos de Roza, que somem na grama. Ali começa
a sua busca reiterada em reencontrá-la e em conquistá-la, mantê-la por perto – a
desgarrada Roza, a golpista, a sem família, ao mesmo tempo a moça que luta sozinha e
cuida do irmão pequeno. Essa travessia vai ser a da narrativa, a trajetória de Chico na
narrativa. E podemos lembrar o conceito de ação narrativa como envolvendo “um ou
mais sujeitos diversamente empenhados na ação, um tempo determinado em que ela se
desenrola e as transformações evidenciadas pela passagem de certos estados a outros
estados (REIS E LOPES, 1988, p.180).
Além da amargura pragmática de Roza, um outro contraponto ao romântico
Chico será o seu parceiro Juca, o amigo que encarna o princípio de realidade a lhe abrir
os olhos para o pólo forte do interesse masculino, com seus planos práticos. Isso
mostrado nos diálogos, num coloquial frequentemente chulo que tornam vivíssimos os
personagens, na concretude da linguagem diária, em seus lugares comuns reveladores.
Fundado num à vontade que delineia uma visão interna do universo jovem a
partir do ponto de vista e da articulação da ação narrativa, Houve uma vez dois verões
vai arquitetando a descoberta desse mundo através de vários elementos reiterados.
Leandro Saraiva e Newton Cannito já chamaram a atenção para a efetividade estética de
elemento recorrente no filme, no caso a ficha de fliperama esquecida por Roza,
guardada sentimentalmente por Chico e devolvida a Roza que, contrariando as
aparências, também a guarda por motivos semelhantes.
Jogos de flíper e vários outros, partidas que indicam ruína, tiques que apontam
sorte, números num pedaço de cheque que, experimentados em combinações podem
levar a reencontrar Roza são frequentes no filme, tema e forma que estão na estrutura
narrativa. No longa-metragem, os campos semânticos do acaso e da sorte são
experimentados várias vezes na trajetória de Chico, configurando traços isotópicos
(RASTIER, 1975). Vida, cálculo, jogo, são postos em cena em vários elementos. Numa
voz over, diz Chico: “se eu tivesse batido o recorde no tiro ao pato no dia em que eu
conheci a Roza talvez eu não tivesse conhecido a Roza e a gente não teria um filho”.
(FURTADO, p.50). Numa dada cena, Chico é visto em plano geral, no emaranhado
labiríntico de uma quadra de minigolfe. Ele concentradamente mira uma tampinha de
garrafa que chuta, acertando em cheio o alvo – quando a trilha inaugura um reggae
surfístico e intercala expressão de alívio e leveza no rosto dele, sonhando a sorte. Noutra
seqüência, o gelo em cubo sustentado pelo orifício num canudo se rompe e cai no
líquido, o refrigerante do copo, no exato instante no qual Roza reaparece, quebrando a
tensão de uma espera pessimista, acenando a sorte.
Na terceira seqüência da narrativa, Chico caminha com Juca na praia, na
esperança de encontrar a Roza recém-sumida pela primeira vez, quando o amigo
canastrão tenta traduzir atrapalhadamente versos de Shakespeare que estão escritos em
inglês em sua camisa e que afirmam a cegueira e a tolice dos amantes, elemento
trabalhado em Houve uma vez e Meu tio matou um cara. Os versos ficam numa
tradução comicamente truncada, seu sentido irrevelado, no entanto, antecipa dados da
narrativa. Mais do que configurar uma prolepse (flashforward) que arma a unidade
narrativa, tal antecipação comenta o olhar talvez reticente dos outros personagens e do
espectador ao ver Chico lutando contra todas as evidências pelo amor de Roza, ele
tantas vezes ternamente, apaixonadamente tolo. Ela se afirma grávida três vezes, a
primeira para extorquir, a segunda por afeto e escrúpulo, para afastá-lo, e a terceira
falando a verdade.
“Roza com z”, dissera ela ao se apresentar a Chico. Chico se aproximaria dela
pelo sem jeito dela com a máquina. Ao perder uma partida, no mesmo flíper, um ano
depois, a máquina dá o ranking dos recordistas no jogo e lá está detendo os recordes a
mesma Roza com z que simulara não saber jogar, o que causou a aproximação dos dois,
confirmando o golpe. Dois planos aproximados da bizarra figura de uma boneca de
flíper descabelada, a segunda fazendo um esgar com a boca, efetivam em som e imagem
o choque de Chico, pelo golpe confirmado. Nesse momento a instância narrativa se
revela forte, através da angulação de câmera e na montagem, que destacam, ressaltam
dados mesmo do espaço narrativo, retorcendo-o, revelando o sentimento interiorizado
de Chico. Traduzem o olhar do mundo dos adultos e dos jovens práticos, dialogando
tensamente com o romântico Chico, seu amor sem juízo, sua falta de cálculo.
Recorrências de elementos e ressignificação do espaço vão integrar a arquitetura
narrativa do filme de Furtado. Noutra cena, um sapatinho de bebê emerge em plano
aproximado no espaço caótico de uma loja de usados, no momento deprimente em que
Chico vende seu amplificador para pagar o suposto aborto de Roza. Outro sapatinho
surge na narrativa com sinal invertido, ressignificando tudo – o espaço, o tempo
decorrido, o mundo --, na porta do quarto do bebê dos dois, prestes a nascer, no final
feliz assumido de maneira inequívoca. Ao final, Roza e Chico, após vários desencontros
ou encontrões, casam, indenizados pela fábrica de anticoncepcionais, que vendera
pílulas de farinha. Agora com Roza e com um filho no mundo, o mesmo espaço da praia
do início do filme vai ser reelaborado por um novo olhar que se inaugura na relação da
imagem com a voz over que vê o mesmo espaço antes monótono, amorfo, sem sentido,
como repleto de sentidos, de acontecimentos (“impressionante como isto aqui
melhorou; tem coisas pra fazer todo o tempo”), pensa Chico em voz over, completada
sua árdua travessia. Como assinala Mircea Eliade,
todos os rituais e simbolismos da ‘passagem’ exprimem uma
concepção específica da existência humana: uma vez nascido, o
homem ainda não está acabado; deve nascer uma segunda vez,
espiritualmente; torna-se homem completo passando de um
estado imperfeito, embrionário, a um estado perfeito, de adulto.
Numa palavra, pode-se dizer que a existência humana chega à
plenitude ao longo de uma série de ritos de passagem, em suma,
de iniciações sucessivas (...) A iniciação, como a morte, o êxtase
místico, o conhecimento absoluto, a fé (no judaísmo-
cristianismo), equivale a uma passagem de um modo de ser a
outro e opera uma verdadeira mutação ontológica” (ELIADE,
1996, pp. 147-148).
Tal mutação não se dá sem um percurso, realizado num processo necessário,
freqüentemente penoso, mas inevitável. Eliade lembra que a simbologia da travessia é
presentificada na figura da ponte, mais estreita que um fio de cabelo, mais cortante que
a foice, ou coberta por pregos, lâminas, agulhas, etc.
Ao final, junto com os créditos do filme, a música-tema comenta, matiza a
trajetória de Chico que ignorou o bom-senso, resolveu apostar na alegria. Tudo é uma
questão de manter, a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranqüilo – como
assinala a música mantra de Walter Franco, regravada pela banda Pato Fu e incorporada
à narrativa, sintetizando e comentando a travessia de Chico.
Em Houve uma vez dois verões, o rito de passagem para o universo adulto,
reflete a descoberta do mundo como em Houve uma vez um verão, ou Verão de 42,
longa de Robert Mulligan. Porém, não vem no filme de Furtado o sentido nostálgico do
adulto fazendo um balanço de sua vida. Trata-se do olhar contemporâneo aos
acontecimentos, do olhar a partir do ponto de vista adolescente. O filme de Jorge
Furtado se justifica por sua pertinência estética e por configurar um ruído positivo na
tradição brasileira, ao representar questões ausentes no cinema brasileiro. Leandro
Saraiva e Newton Canitto, em leitura bastante efetiva da obra de Furtado, chamam a
atenção para essa novidade temática e lêem a travessia não pelo viés de filme saudável
(jovens que tomam suco e não se drogam, etc), como atestou alguma crítica, mas
apontando como na receita aparentemente ingênua do filme há “dinamite”, com o filme
sendo “uma ode ao amor fou de um filhinho de mamãe por uma putinha de praia! Foda-
se o bom senso, o cinismo crítico e inteligente do amigo egoísta; ame loucamente,
despreze as convenções” (SARAIVA; CANNITO, 2004, p.40).
Num projeto de produção bem maior, com atores conhecidos, Meu tio matou um
cara é uma comédia, com toques de cinema noir, e inova tematicamente ao representar
as relações familiares numa família brasileira negra e de classe média, harmônica e bem
sucedida. O protagonista é o adolescente Duca. Seus monólogos interiores costuram a
narrativa. Em voz over ele é um contador de histórias que controla os dados da
informação narrativa, ele que também detém o ponto de vista ao longo do filme. O
personagem-narrador autodiegético (aquele que participa da história que conta como
protagonista) (GENETTE, s/d, p. 188) não escreve diário, não grava vídeo, não escreve
carta. E a narrativa é toda atravessada pela forma como ele controla seus dados, pela
maneira dele perceber.
O contar histórias por Duca – para o espectador – e de Duca para os amigos e
dos amigos de Duca para os outros amigos, constroi a visão de como boa parte da
experiência humana é de ordem narrativa. E de como as pessoas precisam contar a
história de suas vidas. Em Meu tio matou um cara, o convívio da turma de adolescentes
e seu entorno na escola e as relações familiares vão ser mediadas o tempo todo pelas
histórias da vida diária que vão sendo contadas e vão fornecendo a matéria mesma desse
dia a dia, ligando mundo, lançando sentidos.
Duca revela, mas também vela, no sentido de esconder seu mundo (o jogo que
joga no computador, o amor por Isa) e no sentido de proteger os outros – o tio da
decepção da namorada traiçoeira, Isa da escapada do namorado Kid. Duca vela, revela e
também inventa, movido pelo ciúme, mas sem trair os amigos, numa narrativa onde
amizade é matéria de salvação.
Oscilando o olhar melancólico do apaixonado enrustido e o olhar de detetive
perspicaz, Duca vai orientando a narrativa e os adultos atrapalhados, diante do que fazer
com o evento do possível crime do tio do título. Nos créditos de abertura do filme o
escaneamento, a ampliação e a reordenação de imagens de objetos numa possível cena
de crime iconizam e caracterizam esse olhar de detetive e do mundo dos games. Olhar
de quem pressente também a previsibilidade dos adultos e a tolice dos amantes,
inclusive a dele próprio (“numa cidade desse tamanho, fui me apaixonar justamente pela
minha melhor amiga”).
A narrativa em geral ratifica a previsibilidade e lugares-comuns falseados nos
quais se vêem enredados os adultos e isso pode vir a ser percebido como um topos na
obra de Jorge Furtado. Expressões fossilizadas da língua (para falar com Bakhtin) são
colocadas em sua inadequação ao objeto ou no ridículo de suas feições. Em Meu tio
matou um cara a propaganda do Robot Clear, da empresa do tio, é diretamente
mostrada como tosca, assim como o filme publicitário da tênis Mike Double Air é
caricato, no episódio Uólace e João Victor, do seriado Cidade dos homens, co-
roteirizado por Furtado. A enganação do detetive contratado por Duca se ampara numa
tautologia boçal, ao explicar que uma “investigação preliminar” se trata de “uma
investigação prévia”.
O panfleto da loja Siamarrô, na abertura do curta Ângelo anda sumido e a
reiterada e esvaziada frase “ordens são ordens”, em O dia em que Dorival encarou a
guarda, também indicam para o sem sentido de certas rotinas da vida social, lugares-
comuns enganadores. Esses automatismos da vida social, com a exploração de gestos
mecânicos, de percepções e atitudes mecanizadas estão no centro de algumas
possibilidades de exploração do cômico, como assinala Henri Bergson (1980, pp.26-
27). O “mecânico calcado no vivo” e “alguma rigidez qualquer aplicada à mobilidade da
vida”, do qual falam Bergson, parecem presentes nesses casos e também na cena de
Meu tio no qual o guarda barra o acesso da menina Isa ao presídio por ela portar uma
caneta do Pokémon. Ordens são ordens.
Meu tio matou um cara tem um momento forte de pausa narrativa, de
digressão audiovisual, momento no qual uma narrativa investe no tempo do discurso,
com suspensão do tempo da história, para posterior retomada (REIS; LOPES, p.54).
Isso ocorre quando Duca vai com Isa visitar o tio na cadeia. Ali é construída a violenta
passagem da zona urbanizada à periferia da grande cidade brasileira. “Se a cidade fosse
minha, eu te amava mina/ eu te furava” dizem alguns dos versos da trilha, ternos,
tensos, que supõem os contatos possíveis entre as várias cidades existentes numa só. “Se
a cidade fosse toda uma/ se a cidade fosse amada/ por todo mundo e cada”.
O filme termina mesmo não com esse beijo utópico da cidade auto-sitiada, mas
com o beijo na boca do encontro da afetividade dos amigos de infância Duca e Isa. Daí,
sobem os créditos, entram os versos de Barato total, de Gilberto Gil, gravação dos anos
60 de Gal Costa, acrescida de participação da Nação Zumbi sobre o fonograma original.
“Quando a gente tá contente a gente quer/ nem pensar a gente quer/a gente quer/ a gente
quer/ a gente quer é viver”. Essa homenagem às fundamentais experiências irrefletidas
da vida adolescente já gerou críticas aos dois filmes de Jorge Furtado, apontados como
filmes de praia, ou pelo que representariam em termos de um suposto amaciamento das
propostas das experiências mais radicais dos filmes de curta-metragem gerados pela
Casa de cinema de Porto Alegre. Como se os longas fossem tímidos na forma e
maquiadores de tensões ou escamoteadores de problemas, como se a tematização de
qualquer experiência humana fosse pouca coisa. Ou não trouxessem neles a trama
social, pelo fato de não terem como tema central uma situação de esgarçamento social.
Em ambos os casos, talvez valha uma investigação mais cuidadosa para verificar se há
essa distância entre as produções, que diferenças seriam essas. Isso quanto às escolhas e
tratamento dos temas. Mas que não se parta do pressuposto que cinema narrativo é arte
menor, nem que se tome por pecado tratar da classe média que faz e é público
espectador dos filmes brasileiros.
Houve uma vez e Meu tio terminam em finais felizes, dentro das características
da comédia. Como assinala Northrop Frye, “o final cômico é em geral manobrado com
uma reviravolta no enredo” (FRYE, 1957, p.170). Mergulhando no mundo adolescente,
os dois filmes trazem algo desse universo, da alteridade proposta em relação ao mundo
das certezas adultas, dos percursos feitos e suas por vezes frágeis estabilidades.
Conciliando pontos de vista opostos ao final, bem dentro das características do cômico
(SARAIVA; CANNITO, 2004, p.95), os filmes se embebem na dor, na angústia e no
prazer dos ritos de passagem fundamentais. Identidades e alteridades emergem nessas
experiências juvenis aparentemente tolas, pueris, mas constituintes, desenhadas por um
olhar desde dentro.
6 - A sombra que me move, também me ilumina – Sobre alguns curtas
da Casa de cinema de Porto Alegre
Pretendo refletir aqui sobre alguns aspectos dos curtas-metragens Esta não é sua
vida, O sanduíche, Ilha das Flores e Felicidade é... Estrada, dirigidos por Jorge
Furtado, além de Três minutos e Dona Cristina perdeu a memória, dirigidos por Ana
Luíza Azevedo, ambos roteirizados por Jorge Furtado.
Em Esta não é sua vida (FURTADO, 2005), um narrador extradiégetico em voz
over faz vacilar as bases de uma identidade que se quer unificada (KEHL, 2003, p.98) e
de uma história individual e coletiva que se apresenta sem fissuras (ROUANET, 1990,
p.167). E o faz interpelando o espectador de maneira incômoda, assumindo a distância
constituinte da mediação, revelando a solidão e prometendo a segurança de uma relação
de comunicação apartada da experiência e do contato interpessoal. Cito a fala do
narrador.
LOCUTOR 1: Eu não sei quem você é. Eu não tenho como
saber quem você é. Eu nunca saberei quem você é. Você está em
casa, vendo tevê. Ou você está numa sala de cinema. O seu
anonimato é a sua segurança. Não se preocupe. Esta não é a sua
vida ( FURTADO, 2010, p.1).
Em seguida uma série de travellings horizontais se sucedem em cortes secos,
trazendo pessoas comuns olhando para a câmera que passa, enquanto a voz over simula
manchetes negativas absurdas, pela não correspondência em relação aos personagens
aos quais se refere e pelo que não cabem enquanto assunto pautável. Após a escolha
como num sorteio de uma personagem anônima, o filme se encaminha para o exercício
do cinema documentário e do gênero entrevista, enfocando a vida de Noeli Silva.
Narrando sua infância pobre e o presente de dona de casa casada e contente, Noeli vai
resgatando suas dores e prazeres na relação com a família, os namorados do passado e
tudo que “aprontou” com eles, antes de, digamos, sossegar no casamento. Isso na parte
central do curta, que ocupa quase todo o tempo narrativo, onde a presença agregadora
do cômico é predominante, em meio a ponderações da dor de viver e do simples da
vida.
Noeli, contando a história de sua vida, vai indicando a pré-existência de várias
vidas possíveis em contraponto com a atual. No ambiente familiar dessa porção do
filme, suas experiências afetivas são narradas por uma narradora-entrevistada, que
resgata na memória momentos de sua vida anterior, de sua juventude, lembrando
quando foi separada da mãe, a ligação com a madrinha, a infância de trabalho pesado e
a graça do roubo de frutas ou da brincadeira de grávida que resulta na única surra da
vida; que conta o jeito esperto com que trocava de namorados e o olhar retroativo sobre
isso. Mas a Noeli do presente narrativo é outra Noeli, não mais aquela que jogou jogos
de amor com o marido, antes de se aquietar na vida conjugal.
Vê-se Noeli narrando o seu gosto por viagens, o seu não ter estudo que talvez a
tenha impedido de ser outra pessoa, da redescoberta disso pelo contato com o pessoal da
produção do filme, disparando a sensação de ter saído de um mundo para outro.
Em Esta não é sua vida, o solo familiar de uma vida convencional é
desestabilizado pela percepção construída audiovisualmente de que ninguém é comum,
ainda mais se a pessoa tem a chance de contar a história de sua vida. Na narração da
própria experiência, mediada pelo discurso cinematográfico e daquele narrador
heterodiegético (não participa da história) que a comenta, percebe-se o aflorar das várias
possibilidades de uma vida domesticada, resumida a uma escolha que exclui outras. O
filme expõe também a fragmentação do discurso informativo e a sua incapacidade de
dar conta da interioridade e da complexidade da vida de uma pessoa. O que não podem
dizer as estatísticas e o que não podem dizer as manchetes é o que o filme procura.
No ensaio “O narrador”, Walter Benjamin analisa um contexto de perda da
experiência, com o rareamento da narrativa oral, tendo caído de cotação socialmente a
experiência que anda de boca em boca.
Cada manhã nos informa sobre as novidades do universo. No
entanto somos pobres em histórias notáveis. Isso ocorre porque
não chega até nós nenhum fato que já não tenha sido
impregnado de explicações. Em outras palavras: quase mais
nada do que acontece beneficia a narrativa, tudo reverte em
proveito da informação. Com efeito, já é metade da arte de
narrar, liberar uma história de explicações à medida que ela é
reproduzida. (BENJAMIN, 1980, p. 61)
Assim, faltaria à informação certa “amplitude de oscilação” presente na
narrativa. A informação se mantém viva apenas no instante em que é nova, “vive apenas
nesse instante, precisa entregar-se inteiramente a ele” (BENJAMIN, 1980, p. 62). Ao
contrário, a narrativa não se exaure, traz possibilidades de desdobramentos futuros.
Vale lembrar Freud, quando este, em A interpretação dos sonhos, ressalta o
texto genuinamente criativo como “produto de mais um motivo único e mais de um
único impulso na mente do poeta” (FREUD, s/d, p.279). Para além da arte, Merleau-
Ponty, por sua vez irá defender o “equívoco como essencial à existência humana” e
ressaltar que “tudo que vivemos tem sempre vários sentidos” (MERLEAU-PONTY,
1971, p.180).
Os travellings horizontais da parte inicial de Esta não é sua vida,
vertiginosamente sucedidos, onde são vistas pessoas comuns, com manchetes que não
lhes correspondem, soam entre risíveis e nauseadamente desconcertantes. Daí que
aquele homem do povo mirrado que varre a calçada não toma esteróides anabolizantes,
aquela mulher não esquartejou os pais, o outro não parece David Bowie, a moça de 25
anos ainda não é avó; mas todos têm uma vida e uma experiência que estão além desses
rótulos e dessas classificações contundentemente noticiáveis. O que dizer então da vida
comum, da vida cotidiana. Este é o desafio, mesmo que a resposta continue a ser uma
pergunta que vai se construindo através do ouvir-se o narrar a própria experiência e a
montagem desse material na construção fílmica. O texto fílmico parece se filiar àquelas
narrativas que se sustêm mais à base de produção de enigmas do que da formulação de
mensagens, para falar com Roberto Corrêa dos Santos (1991, p.61). A provocação ao
espectador em relação ao conforto do anonimato e da sua vida comum se repetem ao
final do filme -- “a dor da gente não sai no jornal”46.
A ciência instrumentalizada em sua conjunção com a informação idem, também
vão ser erodidas no curta Ilha das flores (FURTADO, 2005). “A vida social consiste em
destruir aquilo que lhe dá o seu aroma”, dirá Lévi-Strauss em Tristes trópicos (LÉVI-
STRAUSS, s/d, p.481). Ilha das flores traz um narrador que repisa a lógica social, numa
acumulação de assertivas saturadas na montagem cinematográfica e no peso da palavra
em conjunção com a imagem e que vão desentranhando o elemento social recalcado;
desnaturalizando seus contornos, mostrando a perversidade de uma lógica onde o ser
humano está em último lugar na ordem de prioridades. Isso em procedimentos que
ressaltam o aspecto redutor de conceitos automatizados, delineando em termos estéticos
essa visão da vida social trazida para a linguagem, para falar com Antonio Candido
(1976, p.7); e fazendo o que Nietzsche proporia em termos de desmantelar os limites do
solo seco dos conceitos, da percepção fossilizada em metáforas gastas da vida diária
(NIETZSCHE, 1987, p.34).
No curta Três minutos, de Ana Luíza Azevedo (AZEVEDO, 2005), o ambiente
familiar desenhado no espaço narrativo (BETTON, 1987, p. 28) se transmuta em
estranho. Isso está inscrito na urgência temporal onde tempo da história e do discurso
coincidem (GENETTE, s/d, p. 31), mas naqueles minutos a voz over traz uma vida
inteira e a dor de outras vidas possíveis ante a prisão doméstica e o retorno da
personagem de sua ensaiada fuga, ela que evitara o mundo condicionado pela vida
errante, caindo noutra rotina.
Nesse curta, roteirizado por Jorge Furtado, um plano seqüência espreita os sinais
do ambiente doméstico, um espaço pequeno, recados em geladeira, almoço em preparo
no balcão, fotos, a intimidade de uma vida comum, enfim, enquanto a secretária
eletrônica é acionada e logo ouve-se o drama que se desenha na fala de uma mulher que
revê num átimo de tempo sua vida conjugal, as escolhas de sua vida, o fascínio que a
levou a se casar com um homem de circo, sua solidão a dois com o marido, que nunca
lê seus recados. – “a automatização engole os objetos, os hábitos, os móveis, a mulher e
46
BUARQUE, Chico (1975). "Notícia de jornal". In: Chico Buarque e Maria Bethania ao vivo. Philips.
o medo à guerra”. (CHKLOVSKI, 1976, p.44). E vai ser com um recado na secretária
que ela vai se despedir.
Um travelling para trás vai revelando o espaço narrativo, situando o ambiente
doméstico como sendo um trailer do qual a câmera vai saindo e situando a ação num
meio de um entorno descampado, de onde a personagem estanca, se detendo no orelhão
em frente ao lar, se despedindo de casa na porta de casa. Ela retorna de sua experiência
epifânica nauseada, amarrando o avental que mal chegara a tirar, retornando à sua casa,
calçando resignadamente a sandália doméstica, a urgência traduzida em inserções de
planos que mostram um ovo na panela transparente, fervendo e estourando para além do
seu ponto de cozimento. Na tela inútil da tv de casa, exibida para ninguém, vê-se a
completude de uma corrida de atletismo enquadrada em sua urgência e fazendo
coincidir o tempo da história e do discurso, os três minutos do título, tempo do impulso
telefônico da ficha de orelhão que cai e cala a despedida, o desabafo.
A maquiagem retirada e a identidade e alteridade enfrentadas no olhar-se ao
espelho marcam o retorno ao cotidiano, ao comum das coisas, à rotina cuja casca fora
rompida em náusea no momento anterior, na revelação dos impasses da vida, posta
antes na fala da personagem dita no recado da secretária eletrônica, que indicara a
decisão e abandonar o cosmos pessoal do lar. “Não sabia se eu cozinhava um ou dois
pedaços de galinha. E aí eu decidi. Essas coisas a gente decide assim”. Assim: “Cada
um fora feliz alguma fez e ficara com a marca do desejo”. (LISPECTOR, 1987, p.89).
No enredo do curta-metragem O sanduíche (FURTADO, 2005), um casal se
despede da relação e da co-habitação, entre constrangidos e deprimidos, ainda com uma
ligação aparente. De repente, a vacilação numa das falas revela que se trata de um
ensaio. Desarmados os personagens, o diálogo entre os dois atores desenha uma relação,
ameaça uma aproximação entre eles, que há pouco encenavam o fim; mas quando
ocorre o beijo que sela o encontro, o diretor grita “corta!”, revelando ser mais uma
história engastada na outra. O set se esvazia, o diretor pega a banda que sobrou do
sanduíche que servira de pretexto de conversa e elo entre os dois e dá uma mordida,
para logo fazer uma careta pelo gosto horrível e cuspir numa folha de roteiro o pedaço
que botara na boca. A câmera vai abrindo (“vai, grua!”) e mostrando ser ainda mais uma
história, mais um dado da construção em abismo, que deságua numa abertura de plano
que mostra o set montado numa praça pública, o jogo ficcional se fazendo entre o velar
e o revelar.
Mas o mostrar os bastidores da filmagem da filmagem da filmagem também se
trai como representação na entrevista de Jorge Furtado com o público que assistia às
filmagens, entrevista que se revela ensaiada. Aliás, nessa porção, há uma estrutura
narrativa semelhante ao programa de tv Cena aberta (FURTADO, 2004), projeto
posterior de Furtado (O sanduíche é de 2000), onde entrevistas constituem o corpo da
narrativa, algumas delas espontâneas, outras roteirizadas, ensaiadas e baseadas nos
textos literários adaptados para os audiovisuais. Na adaptação de A hora da estrela para
o Cena aberta, o final indica também abertura para uma outra história possível.
No ensaio “O estranho”, Freud aponta o elemento estranho como algo que antes
foi familiar e foi recalcado (FREUD, 1976, p.301). O sanduíche carrega o estranho
inscrito no familiar ao narrar o motivo trivial e imediato da separação de um casal
(“quando a vi com uma calça de couro”); e a estranheza que isso causa (“o que é que
essa mulher com uma calça de couro está fazendo no meu banheiro”, conta o
personagem para a colega com a qual ensaia peça de teatro). Na instabilidade da
acumulação de histórias que vai sendo mostrada como sendo encenação dentro de
encenação, volta o tema dos vários mundos possíveis e das várias escolhas. Abismos da
identidade e da alteridade se defrontando, à beira da náusea, sem dispensar a cola social
do cômico (FRYE, 1973, p.165).
Há também ali todo um procedimento metalingüístico que aposta na
comunicabilidade e não apenas no desconforto. Isso numa estratégia narrativa que não
raras vezes termina desaguando no riso, via procedimentos de viés metalingüístico pós-
moderno, para falar com Renato Pucci. Em certa medida, aqui poderíamos perceber
traços do que Pucci aponta no programa Cena aberta em termos de uma “combinação
de aparência esdrúxula entre procedimentos naturalistas e anti-naturalistas, em rápida
alternância” manifestando o que Linda Hutcheon chamou de “caráter paradoxal do pós-
modernismo” (PUCCI, 2008, p.329).
Ao mesmo tempo, parece se colocar a presença do grão germinador de
significações apontado por Walter Benjamin em “O narrador”. E também a sugestão,
social e esteticamente viável, de superar o gesto de alienar o poder perpétuo de dar-se
mundos em proveito de um deles, para falar com Merleau-Ponty em A fenomenologia
da percepção (MERLEAU-PONTY, 1971, p.96).
Uma visão solar pela via do cômico estaria em Felicidade é... Estrada
(FURTADO, 2005). O acaso, o amor em dois tempos, o futuro num encontro trivial de
viagem entre amigos. O fogo alto na relação de um casal recente, o fogo brando, certo e
terno num casal estável. Vida, sorte, amizade, desejo, o acaso, o azar, a impossibilidade
de programar, a possibilidade de construir uma trajetória estão tematizados e podem ser
relacionados à trégua ou conciliação de pontos de vista proposta no cômico
(SARAIVA; CANITO, 2004, p.95). A experiência comum, a felicidade no trivial do
relato do convívio entre amigos, apostando na fruição do ócio, em viver docemente o
processo de vida nesse nada acontecer. Ficando aí dispensado o final trágico, anunciado
numa montagem paralela que ameaça a catástrofe que não vem e vinca apenas a
hilaridade do contraste entre o mau-humor extraordinário de um caminhoneiro num
momento ruim e os dois casais que antecipam o fogo dos afetos no friozinho da Serra
Gaúcha.
Em O narrador pós-moderno, Silviano Santiago aponta os três estágios da
história do narrador sistematizados por Benjamin (por volta de 1935) justamente no
texto “O narrador”. O primeiro seria o do 1) narrador clássico, que teria por função
“dar ao seu ouvinte a oportunidade de um intercâmbio de experiência (único valorizado
no ensaio)”. O segundo se configuraria com o do narrador do romance, “cuja função
passou a ser de não mais poder falar de maneira exemplar ao seu leitor” (e aqui
lembramo-nos da observação de Benjamin de que o romancista está desorientado e não
sabe aconselhar). No terceiro momento, 3) o narrador, “que é jornalista”, só “transmite
pelo narrar a informação, visto que escreva não para narrar a ação da própria
experiência, mas a que aconteceu com x ou y” (SANTIAGO, 1989, p. 39).
No primeiro caso, o narrador expõe uma vivência, a experiência de uma ação.
Nos dois seguintes, o narrador passa “uma informação sobre outra pessoa”, tem a
“experiência proporcionada por um olhar lançado” (SANTIAGO, 1989, p. 38). Ainda:
no primeiro caso (narrador clássico) “a coisa é mergulhada na vida do narrador e dali
retirada”. No romance, “a coisa narrada é vista com objetividade pelo narrador, embora
este confesse tê-la extraído de sua vivência”. No terceiro momento, “a coisa narrada
existe como puro em si, ela é informação, exterior à vida do narrador” (SANTIAGO,
1989, p. 40). Para Santiago, o narrador pós-moderno é o que transmite
uma “sabedoria” que é decorrência da observação de uma
vivência alheia a ele, visto que a ação que narra não foi tecida na
substância viva da sua existência. Nesse sentido ele é o puro
ficcionista, pois tem de dar “autenticidade” a uma ação que, por
não ter o respaldo da vivência, estaria desprovida de
autenticidade. Esta advém da verossimilhança que é produto da
lógica interna do relato. O narrador pós-moderno sabe que o
‘real’ e o ‘autêntico’ são construções de linguagem.
(SANTIAGO, 1989, p. 40)
Santiago observa as tensões entre o jornalismo e a literatura percebendo como,
no primado da informação, a figura do narrador passa a ser a de “quem se interessa pelo
outro (não por si) e se afirma pelo olhar lançado ao seu redor, acompanhando seres,
fatos e incidentes (e não por um olhar [...] que cata experiências vividas no passado)”.
Dessa maneira, assinala Santiago, “pode-se falar que o narrador olha o outro para levá-
lo a falar (entrevista), já que ali não está para falar das ações de sua experiência”
(SANTIAGO, 1989, p. 43).
A ressignificação da experiência em suas possibilidades libertárias se dá no
encontro ao pé da cerca que divide as moradas da velha (no asilo) e do garotinho, em
Dona Cristina perdeu a memória (AZEVEDO, 2005). Experiência, memória,
construções de sentido que se desenham no filme, em termos de planos e trilha que
ressaltam cerca, círculos, objetos da infância e da história e etapas de vida dos
personagens, além de diálogos no encontro representado na passagem ritual da
experiência. A experiência que circula de boca em boca da qual fala Benjamin, mas
colocada pelo narrador pós-moderno, na releitura de Santiago, narrador este que se
constituiria por uma olhar lançado ao outro no jogo ficcional.
Discorrendo sobre o pensamento de um Walter Benjamin posto em diálogo com
Freud, Sérgio Paulo Rouanet assinala que "pela cultura o homem se perde, porque ela é
ideologia e dominação". Mas, ao mesmo tempo, "graças a ela, ele se salva, porque a
cultura fornece o repertório simbólico que dá acesso à verdade e permite pensar uma
ordem além da violência" (ROUANET, 1990, p.172). Ou seja, o que haja para ser
construído, no plano individual e coletivo, deve sê-lo necessariamente contra a tradição
e a partir dela – “a sombra que me move, também me ilumina”47.
Noeli pensando e reconstruindo a sua experiência a partir de seu relato, em Esta
não é sua vida, retoma os seus mundos e os mundos das pessoas com as quais conviveu
nas filmagens do curta-metragem, quando reconhece outros mundos. Diz a personagem:
“parecia que eu, que eu nasci de novo, que eu tenho que começar a minha vida de novo,
que eu vou começar a minha vida assim como eu quero um dia. Se Deus quiser”. À
narrativa de Noeli lhe falta uma resposta; por outro lado, tal narrativa nos evoca a
saudade de pensar que, se a vida, fragmentada, fere como a sensação do brilho, algum
dia de repente a gente brilhará48.
47
RAMALHO, Zé (1981). "Galope rasante". In: ________. A terceira lâmina. Epic.
48 GIL, Gilberto (1979) . “Realce”. In: _____. LP Realce. Warner Music.
7 - Uma narrativa em pedaços - O jardineiro fiel, de Fernando
Meirelles
Tessa era minha casa, diz a certa altura do filme O jardineiro fiel o protagonista
Justin Quayle, diplomata britânico de média posição, servindo na África e se referindo à
sua mulher, morta em circunstâncias obscuras. Quayle vai receber a notícia da morte
por seu colega de trabalho Sandy, num dos vários momentos em que cuida de suas
plantas. Discreto, vai conter sua comoção e choque quando da notícia da morte e da
possível situação de traição conjugal na qual se deu.
Começando in media res, no meio da história, O jardineiro fiel, dirigido por
Fernando Meirelles, se constrói num vaivém marcado por avanços e recuos narrativos,
alterações na velocidade, omissões narrativas e num trabalho específico com a
focalização, seja onisciente, seja restrita à percepção de Justin. Tais manipulações dos
dados narrativos iconizam, inscrevem na linguagem a agônica busca do protagonista em
reconstruir os fatos que antecederam e resultaram na morte de sua mulher, morte
revelada ao espectador logo no princípio do filme.
Vale lembrar que o conceito de focalização (ou foco narrativo ou ponto de vista)
se refere à representação da informação que se encontra ao alcance de um determinado
campo de consciência, seja do narrador, seja de um personagem (Genette, s/d, p.187).
Não se trata de assinalar o que narrador ou personagem “vêem” (aí seria a câmera
subjetiva), mas sim o que eles “percebem”49.
Em O jardineiro fiel, o ponto de vista narrativo por vezes está atado à
desorientação de Quayle, quando a focalização se baseia na precariedade de sua
percepção, ou então nas sonegações de informação em meio a uma focalização
onisciente. Mais do que buscar os fatos, dado corriqueiro na trama policial, os
elementos narrativos convergem para inscrever na linguagem a busca de Justin em
ressignificar a experiência amorosa e descobrir o que vivera no cosmos estabelecido
pela convivência com a mulher, mundo subitamente destruído pelo assassinato e pela
dúvida instaurada.
49Cf BRITO, João Batista de. O ponto de vista no cinema. Disponível em http://www.revistagraphos.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=175&Itemid=56 [consultado em 19 set. 2008].
Como já falei, o ponto de vista de Justin é estruturador do texto fílmico. Ele
conhece Tessa numa palestra burocrática sobre política exterior quando lê um texto de
seu chefe, fazendo defesa de intervenção bélica, fala chapa branca, morna e burocrática,
rebatida pela ativista Tessa, instaurando mal-estar e impaciência na platéia. Os dois
saem do auditório esvaziado conversando, ele concordando de alguma forma com as
argumentações dela. Em seguida, um acúmulo de elipses acelera bruscamente a
narrativa, levando Tessa e Justin rapidamente à rua, a casa dela e, de um corte no portão
de entrada da casa, para a cama onde os dois se despem. Isso é mostrado num átimo de
tempo no discurso fílmico, em retrospecto da história iniciada pelo meio50. Esses
descompassos entre tempo da história e do discurso vão ter função fundamental na
narrativa, por exemplo, por fazerem o espectador compartilhar as dúvidas de Justin
quanto à fidelidade de Tessa.
Noutra elipse, Justin Quayle embala pequenas plantas para viagem, ele
recorrentemente cuidando do jardim e rumo a um estágio profissional na África. Ela
aparece e pede subitamente que a leve para a África, isso diante do desconcerto dele.
Eles se conheceram há pouco e ele brinca disfarçando o sem jeito, perguntando se quer
que a leve como contrabando ou algo do gênero. Ela, séria, pede que a leve como
namorada ou amante ou esposa.
Esse acontecer rápido, seja na história (eles se conhecem há pouco), seja no
discurso (este mais rápido ainda), vai ser campo fértil na percepção de Justin, na visão
do espectador, na perspectiva narrativa em geral, para as suspeitas de infidelidade.
Como no choque de Sandy (colega de trabalho dele) e do espectador ao vê-la
amamentar uma criança negra no hospital, logo após o aborto espontâneo.
Um e-mail lido por Justin casualmente, onde Tessa é ameaçada, com insinuações
de que teria envolvimento com o amigo negro Arnold, estabelece tenuemente a dúvida.
Uma audição por Justin de um trecho de diálogo entre Tessa e Arnold, onde se ouve a
frase “casamento de conveniência que só gera crias mortas”, reafirma o ponto de vista
centrado em Justin, acentuando as dúvidas quanto a esta mulher que subitamente
aparecera em sua vida. Como dizíamos, prosseguindo alternando focalização onisciente
(ilimitada) e focalização interna, com ponto de vista a partir de Justin, a narrativa é
pontuada por paralipses, ou seja, omissões narrativas que potencializam a dúvida pelo
espectador e provocam ainda uma vez a partilha da dúvida e a adesão ao ponto de vista
50 Utilizo aqui uma distinção básica da narratologia: história, planos dos conteúdos narrados, o que se conta; discurso, plano da expressão desses mesmos conteúdos, como se conta (REIS; LOPES, 1988: 29).
do protagonista Justin51.
Em certo momento, já envolvido na investigação em torno da morte da esposa,
ele viaja para a Itália, para encontrar um primo querido de Tessa, tendo seu passaporte
confiscado no aeroporto, sem explicações convincentes, num cerco que começa a se
armar. No aeroporto, a câmera errante agita-se entre enquadrar Justin e câmeras de
vigilância que parecem observá-lo, assumindo função narrativa52. A trama encobre
enormes e escusos interesses da indústria farmacêutica multinacional em sua relação
com governos corruptos e usando populações miseráveis africanas como cobaias em
testes de um remédio com alto potencial de risco de vida. Dados que Tessa vinha
investigando em colaboração com ONGs, no momento em que foi assassinada.
A presença de aparatos tecnológicos visuais e audiovisuais é constante no filme.
Além desse dado da vigilância, a mediação e a ativação da memória se dá também pelos
mecanismos de tecnologias recentes, câmeras que se integram à intimidade (filmes
caseiros e conversas via webcam). Imagens, textos e fotos e comunicação por sons estão
bem presentes no filme, como possibilidade globalizada de comunicação interpessoal
pela Internet e como contra-comunicação ante os grandes meios. Isso na relação entre
ONGs e pessoas que trocam informes sobre as atividades escusas da indústria
farmacêutica. Os próprios grandes meios se mostram como instrumento eventualmente
estratégico para auto-proteção e combate, quando do desmascaramento da trama numa
situação pública. Ou como elemento alienante, como no choque entre a idiotia das
imagens de um programa de auditório postas em contraponto com a imagem de Justin
espancado por capangas, num quarto de hotel.
51
A paralipse é a infração do regime de focalização que consiste em dar menos informação do que o regime de focalização permitiria, no caso das focalizações interna e onisciente. No curta-metragem Palace II, também de Fernando Meirelles, uma cena de muito sangue e voz over do protagonista falando em matar sem remorso e coisas do tipo nos dão a impressão de que os garotos Acerola e Laranjinha caíram de vez no crime. Na cena seguinte eles são mostrados vendendo churrasquinho de gato. Na verdade víamos uma cena de matança de gato e não de gente. Aqui a intenção é obviamente cômica. Já em Plano perfeito, de Spike Lee, a paralipse também está presente de maneira estruturadora na narrativa (mas não cabe desenvolver isso aqui). Sobre o conceito, conferir em Genette, s/d.: 52; REIS; LOPES, 1988: 271.
52 O seriado Cidade dos homens, projeto de Fernando Meirelles, tem um episódio intitulado A coroa do imperador, onde é imprimida função potencializadora de sentidos ao enquadramento de câmeras de vigilância. Numa dada cena do filme a tela é dividida em quatro partes, a partir do monitor da segurança do prédio. As imagens parecem típicas do sistema de segurança, mas o são apenas parcialmente. Elas extrapolam esse dado realista, comentando a voz over em ângulos e enquadramentos que nem sempre confirmam referencialmente a imagem de um monitor de vigilância, potencializando assim a ativação de sentidos em articulação com a fala do personagem em voz over. O episódio é dirigido por César Charlone e roteirizado por Charlone, Meirelles e Jorge Furtado.
No encontro comovido de Justin com o emocionado primo italiano, ele recupera
dados que sinalizam para a fidelidade de Tessa, que esconde suas investigações para
protegê-lo e usa a frase “casamento de conveniência que só pode gerar crias mortas” (já
ouvida por ele e pelo espectador) para se referir às empresas envolvidas na conspiração
em torno do uso de cobaias humanas na África. No apartamento do primo, imagens de
Tessa e Justin são recuperadas nos arquivos pelo filho do primo. A partir de tais
imagens que retornam ao filme, acirra-se a ressignificação do vivido e da relação
amorosa com um poder de presentificação impressionante. Em O jardineiro fiel Tessa
nunca é uma morta.
Cartas, e-mails, imagens em vídeo, falas escutadas em fragmentos e a
perseguição de viés policial vão montando a narrativa a partir da memória, a narrativa
em pedaços de Justin. As cenas do primeiro encontro amoroso são reapresentadas na
tela, acrescidas de mais detalhes. Retornam ao texto fílmico, de maneira ampliada e
distendida no tempo, as passagens onde os dois gravam vídeo na intimidade do casal
enquanto conversam, ela brincando ao enquadrar o acordar dele; ele, gravando a barriga
semi-submersa na banheira, tocando o corpo dela, especulando sobre o filho que viria,
isso tudo em reiterações e acréscimos que vão dando espessura ao passado, à memória
de Justin, ao tempo do filme. Estendendo no tempo do discurso os dados da história
elidida, recuperando o tempo perdido pela ausência, pelo não entendimento em vida,
pela morte trágica.
Na repetição dessas cenas, o tempo se adensa, a cena se demora, relembra e
revela, a narrativa desacelera, com o tempo do discurso se espraiando, os pedaços do
que fora suprimido da história emergindo, com a adição de falas, gestos, olhares, risos53.
O historiador Mircea Eliade assinala como a existência profana traz inúmeras
marcas da religiosidade inconsciente, manifesta nos rituais diários e nas escolhas
pessoais (ELIADE, 1996, p.27). O autor assinala como há na esfera do sagrado a
necessidade de estabelecimento de espaços heterogêneos, saturados de sentidos e o
estabelecimento de rituais em torno disso pode estar mesmo no estabelecimento de um
lar, na instauração de um cosmos em substituição ao caos anterior, ao amorfo da
53Como assinala Genette, a velocidade da narrativa será definida “pela relação entre uma duração, a da história, medida em segundos, minutos, horas, dias, meses e anos e uma extensão: a do texto, medida em linhas e em páginas” (Genette, s/d: p.87). Em O discurso da narrativa Genette fala ainda na “velocidade infinita que é a da elipse” (p.93) e no afrouxamento “progressivo da rapidez da narrativa, pela importância crescente de cenas muito longas, cobrindo uma duração muito curta da história”, o que nos remete aqui justamente a essa passagem de O jardineiro fiel. A disjunção do tempo da história e do discurso pode ter haver com vetores semânticos fundamentais da narrativa (REIS; LOPES, p. 298).
homogeneidade. Nesse contexto, a casa pode ser “o cosmos pessoal que se escolheu
habitar”, o lugar estável que assinala uma escolha existencial (ELIADE, 1996, pp.25-
26; 31). Por outro lado, a imagem do estilhaçamento do teto assinala o aniquilamento de
qualquer cosmos e toda forma de cosmos (casa, templo, universo, corpo humano) possui
uma abertura superior que simboliza a possibilidade de passagem de um modo de ser a
outro, de uma situação existencial a outra. Em ritos iniciáticos, o choro pode ser um dos
elementos a simbolizar a passagem de um mundo ao outro (ELIADE,1996, p.156).
O rompimento com o mundo condicionado – no caso de Justin, o mundo da
lealdade cega ao universo do trabalho, da atitude de se ater a cuidar do próprio jardim --
é assinalado em O jardineiro fiel com a cena da destruição do jardim. Nesta cena, o
contido Justin pela primeira vez desaba em choro e iniciará o rompimento com o mundo
profissional, ele que vinha de uma família de servidores da diplomacia britânica. Tal
rompimento se configurará quando embarca clandestino com mais de uma identidade
em viagens pela Europa e África. O rompimento com qualquer condicionamento se
revela de maneira evidente, na seqüência na qual, despido dos trajes profissionais,
paisanamente vestido em atitude guerreira, invade clandestinamente os jardins da
representação diplomática britânica onde servira para questionar Sandy sobre a morte de
Tessa, tendo em punho a carta de amor dele à sua mulher.
A morte de Justin, ao final do filme, será representada com extrema serenidade,
em marcado delírio, quando ele retorna ao lugar da morte de Tessa e aguarda os
assassinos, enquanto a vê em torno dele, rindo. Ele que, voltando do Sudão, quando fora
investigar a morte de Tessa, pedira para o avião aterrissar no meio do nada, no lago
aonde o corpo dela fora encontrado, mesmo alertado dos perigos do lugar pelo piloto.
Nesse espaço desolado e belo, ele faz sua morada, parece reconstruir seu cosmos após
cumprida a jornada. Ternamente aguarda a morte.
Não sem antes enviar ao primo de Tessa a carta que irá ser lida na missa solene
de luto, isso logo após discurso de seu superior Bernard Pellegrin, metido até o pescoço
na trama toda. Pellegrin exalta em seu discurso falseado a discrição de funcionário, até
na escolha do local retirado para a hora da morte, ratificando a versão do suicídio.
Suicídio com oito tiros, como ressaltará o primo de Tessa, desmascarando ainda o
complô, ao ler em seguida, publicamente, na missa, a carta de Pellegrin para Sandy,
aonde ele ordena violentamente, e em termos chulos, que Tessa seja contida.
Numa cena do filme onde diverge bem-humoradamente sobre o nome do futuro
filho, Justin caçoa do jeito militante e hipongo de Tessa. Por sua vez, ao brincar que o
imagina tomando chá enquanto a turba faminta incendeia Londres, Tessa é indagada por
Justin se é essa visão que tem dele. Ela, séria, diz que não, mas que o imagina, durante
uma revolução, alimentando o povo, enquanto aguarda a volta à normalidade. Em
relação ao marido e à relação conjugal a personagem é construída em cenas que
concentram o sentido do reafirmar a aceitação da diferença, em meio aos desconcertos e
dúvidas de Justin. Essa abertura de Tessa vai se dar também na relação com a África.
Marcada pela trilha, pelas cores, pela vivacidade em meio à miséria, a África de O
Jardineiro fiel é vista captada por uma Tessa muitas vezes integrada ao local.
Interagindo com o espaço em torno, sobretudo fortemente com as crianças, com as
pessoas, com os ares do lugar, em meio aos bairros pobres, a certa vibração da vida
comunitária.
Essa integração muitas vezes se mostra impossível, no esforço de fidelidade dela
em relação ao outro Africano. Como na cena em que caminha em angústia e os garotos
a observam em enquadramentos que a mostram alheada, estrangeira. Ou quando discute
com Justin sobre dar carona a dois irmãos africanos, que teriam que andar a pé por
quarenta minutos para chegar ao destino com um recém nascido nos braços, na saída do
hospital. Justin assinala a inconveniência de se envolver com os nativos e lembra-se da
saúde dela, Tessa, convalescendo de aborto. A câmera subjetiva se afasta e vai
assinalando a distância entre eles e os africanos.
Há outra cena próxima ao final da narrativa, que guarda um paralelismo
invertido com essa da saída do hospital. Fugindo de um terrível ataque de saqueadores e
estupradores numa tribo perdida num árido ponto da África, Justin, travestido de
jornalista, tenta embarcar no seu vôo uma menina africana, em meio ao infernal ataque.
Discute violentamente com o piloto do avião oficial, lhe oferece suborno e tem que se
calar e aceitar a impossibilidade de embarcar nativos. O olhar de Justin observa
desolado o afastamento da menina que acena, perdida e sozinha no deserto, num
paralelismo narrativo que recupera e aprofunda um sentimento semelhante ao de Tessa
pela impossibilidade de ser minimamente solidária e pelo vislumbre do que aguarda a
pequena.
“É assim que ferram África”, vocifera o médico Lobber, incinerando os
remédios doados em troca de isenção de impostos, remédios com data de validade
vencida. Ele que fugira do hospital onde eram aplicados os testes mortais de interesse da
indústria envolvida no complô, ele que havia criado o remédio de terríveis efeitos
colaterais e que vivia agora retirado nos confins, medicando e pregando o evangelho.
Ao final do filme, garotos riem para a câmera que vagueia, os segue. Um riso
aberto, sem a malícia de quem não tem os meneios, refinamentos cruéis da civilização.
Essa capacidade de alegria desarmada, que acena para quem olha pelo dispositivo
tecnológico, flanco aberto para a traição do Ocidente ou aceno para a alteridade.
Aqui o filme ativa e reativa os campos semânticos fidelidade/ infidelidade. Suspeita,
Tessa recorrentemente aparece na colagem de imagens como tendo procurado Justin por
se sentir segura. Porém, no plano do enredo, em vários momentos, personagens e
situações mostram como ela agiu discretamente, evitando inclusive a imprensa que
poderia salvá-la, para resguardar o marido, atuando pelos meios dele, respeitando a
diplomacia. Nessa narrativa, que vai se formando pela memória, Tessa é vista tecendo
um campo de proteção em torno dele.
Fiel ao governo britânico, à profissão, atado a seu jardim, Justin, o jardineiro
fiel, só cumpre sua fidelidade transitando para a traição aos interesses de Estado, sendo
fiel à Tessa, à África, em cuja terra sepultara Tessa. O mesmo par fidelidade/
infidelidade serve para a relação do mundo Ocidental, branco, rico, em relação ao
Terceiro mundo, à África em especial, usada e violentada, com seus bandos de
saqueadores internos e externos.
Em Tristes trópicos, Lévi-Strauss lembra que as outras sociedades talvez não
sejam melhores do que a nossa, mas a nossa é a única da qual temos que nos libertar.
“Salvamo-nos pelo estado dos outros” (LÉVI-STRAUSS, s/d, p.492-493). A
capacidade de alegria e entrega da África -- e de Tessa -- talvez sejam algumas das
linhas de força dessa memória que avança ressignificando o passado, preenchendo
vazios e desenhando nexos. Recuperando no tempo e dando novos sentidos a Tessa (e à
África) na memória de Justin e fazendo-nos lembrar das coisas e pessoas que passaram
por nós e não soubemos amá-las54.
54 “Sete quedas por nós passaram,/e não soubemos, ah, não soubemos amá-las”. Cf. ANDRADE, Carlos Drummond de. Adeus a Sete Quedas. Disponível em http://www.algumapoesia.com.br/drummond/drummond30.htm Acessado em 18 de outubro de 2010.
8 - O plano perfeito de Spike Lee
No texto “Dois modelos de cinema” o crítico João Batista de Brito vai apontar
uma distinção entre o cinema clássico americano, a princípio comunicável, previsível,
fechado e o cinema de arte europeu, a princípio com investimento no incomunicável
(“ou ao menos de comunicabilidade problemática”), imprevisível, aberto. No mesmo
texto, o autor chama a atenção para como o tempo pode vir ao que eu chamaria de
fossilizar e automatizar os códigos, inclusive os instaurados pelas vanguardas.
Automatização mais evidente no modelo do cinema clássico americano, baseado num
“sistema de códigos e signos que se foi formando ao longo de décadas e que, havendo
se tornado domínio público, terminou por se cristalizar”. Por sua vez, na contra-corrente
do cinema mainstream, o cinema de arte teria sua significação baseada num
“investimento semiótico por parte do próprio espectador que [lhe] preenche [ria] os
vazios semânticos” (BRITO, 1995, p.197).
Podendo ser facilmente identificável como filiado a um cinema comunicável,
Plano perfeito (Inside man), de Spike Lee, constrói sentidos trabalhando a partir de
gêneros altamente codificados do cinema hegemônico. A narrativa desenha logo de
início um ambiente familiar enquanto filme policial ou de ação, de suspense; filme
sobre assalto a banco, com reféns. Se o filme começa com a estranhada fala de um
personagem para a câmera propondo o desvendamento de um enigma, temos em
seguida cenas em montagem paralela que dão conta do deslocamento de um veículo e
da fachada de um grande banco, destacado em sua imponência em planos de detalhe e
contra-plongées, enquanto o veículo parece se dirigir ao local, o que realmente ocorre.
Ocupantes do carro descem vestidos com roupas de uma firma de limpeza e em minutos
anunciam o assalto e seqüestro dos clientes.
Em termos de estratégia de leitura vamos tomar a fala enigmática inicial do
personagem Dalton Russel (Clive Owen), em espaço indefinido, como uma antecipação
narrativa (flashforward), ele que será visto ao longo do filme como o líder dos
assaltantes do banco. Na narrativa ocorrem outras antecipações, mas o filme em sua
maior porção tem tempo linear, com a história do seqüestro e assalto configurando o fio
principal que vai sendo desenvolvido. As antecipações, que trazem alguns dos
seqüestrados sendo entrevistados pelos investigadores após o assalto, não relaxam a
tensão em relação ao desfecho; no plano da ação narrativa, a negociação segue tensa,
com choros, espancamentos e até uma execução.
Porém no filme vai se instalando uma equivocidade, uma ambigüidade que vão
se tornando centrais: os pedidos dos seqüestradores não são críveis, o comportamento
deles no geral também não o é; a postura do banqueiro filantropo, dono do banco
assaltado, igualmente é deslocada, na sua discreta e indisfarçada ansiedade para encerrar
a qualquer preço o assalto. Isso a ponto de ele oferecer avião e qualquer recurso que se
faça necessário para os bandidos escaparem, numa cena onde a trilha sonora tensa em
BG sofre breve corte para realçar o constrangimento silencioso de policiais e
investigadores ante sua fala, segmento narrativo onde fica realçada essa conduta dúbia.
Há no texto fílmico a recorrência de campos semânticos, que são linhas de força da
narrativa e que poderíamos nomear como: campo da aparência (como as coisas
aparentam ser) x evidência (como as coisas são), seja no plano da história, seja no plano
discursivo, seja no plano das relações sociais representadas, quando percebemos que o
que parece não é exatamente o que aparenta.
Vamos lembrar aqui dois conceitos da narratologia, a focalização e a paralipse,
que dão conta de duas possibilidades narrativas que parecem fundamentais na
configuração dessa dubiedade reveladora no texto fílmico. A focalização (ou foco
narrativo ou ponto de vista) se refere à representação da informação que se encontra ao
alcance de um determinado campo de consciência, seja do narrador, seja de um
personagem (GENETTE, s/d, p.184). É o olhar do personagem ou do narrador, como
ele percebe e filtra a história (como ele percebe a história para além do sentido da
visão). Já a paralipse é a infração do regime de focalização que consiste em dar menos
informação do que o regime de focalização permitiria (GENETTE, s/d, p.193).
Em Plano perfeito o assalto é um falso assalto, o seqüestro é um falso seqüestro,
como ficamos sabendo; a ocultação das informações para o espectador, numa narrativa
com várias passagens ou até predominância da focalização zero, ou seja, onisciente,
consistiria numa paralipse: achamos que eles querem dinheiro, que os espancamentos
são reais, que a execução é real, que as armas são de verdade; numa narrativa
onisciente, isso poderia ser dito, mas é ocultado. A antecipação da invasão do banco
pela polícia também é uma falsa antecipação, um falso flashforward. Vemos a invasão
sendo planejada em voz over e acontecendo no plano do discurso, mas ela não irá se
configurar no plano da história, partindo-se da distinção conceitual básica da
narratologia que define história “como plano dos conteúdos narrados” (o que se conta) e
discurso como “plano da expressão desses mesmos conteúdos” (como se conta) (REIS;
LOPES, 1988, p.29).
Nos segmentos narrativos em que a focalização incide sobre o protagonista,
detetive Frazier, interpretado por Denzel Washington, o desentendimento do que se
passa iconiza, inscreve na linguagem seu ponto de vista limitado, tão limitado quanto o
do espectador, todos atados às aparências, ao que parece, mas não é: o assalto, o
espancamento, as armas, as situações sociais representadas.
O desvelamento gradual vai minando expectativas em termos de quem são os
assaltantes e assaltados, benfeitores e malfeitores, etc. Isso sem que apenas se inverta os
pólos ingenuamente: “minha motivação é financeira” diz o líder dos seqüestradores, que
assume de maneira clara que não se pretende um mártir, seu objetivo é dinheiro, mas
frisando em voz over que nada vale a pena se a pessoa não puder se encarar de frente.
Ao mesmo tempo aos poucos vai sendo revelado o que lastreia a vida vitoriosa do
banqueiro filantropo e toda a respeitabilidade que representa, seus troféus e fotos ao
lado de personalidades, políticos de direita como Margaret Thatcher, condecorações
pelas benfeitorias, objetos contemplados num lento travelling que valoriza a fala do
banqueiro sobre o quanto servira à humanidade. Isso numa cena onde o espaço narrativo
se constrói em enquadramentos que ressaltam a potência num salão imponente, disposto
em termos que traduzem poder, tradição e onde se inserem os dois policiais negros que
vão enfrentar o banqueiro.
O assunto do filme é o poder e o filme solapa, desvela, os ares de
respeitabilidade dos poderes, minando a imagem auto-construída do banqueiro,
mostrando o prefeito de Nova Iorque como um pau mandado. É visto como todo
mundo, inclusive o banqueiro, se submete à personagem cínica (e genial!) de Jodie
Foster, a lobista Madeline White, coadjuvante construída com amarração perfeita dos
traços convencionalizados aos quais se refere Antonio Candido em A personagem do
romance55. As falas da personagem são extremamente reveladoras dos não-ditos, dos
55 Originada ou não da observação, baseada mais ou menos na realidade, a vida da personagem depende da economia do livro, da sua situação em face dos demais elementos que o constituem: outras personagens, ambiente, duração temporal, idéias. Daí a caracterização depender de uma escolha e distribuição conveniente de traços limitados e expressivos, que se entrosem na composição geral e
elementos sociais recalcados. Por exemplo, quando ela explica para o personagem de
Denzel Washington, que a presença esdrúxula dela naquela negociação com os
seqüestradores não deve ser explicada a ele. Diz: “essa é uma questão acima de sua
faixa salarial”. Ou quando descobre a origem podre do dinheiro do banqueiro e, ao ser
paga pelos serviços prestados, ironiza dizendo para ele que “esse cheque é para comprar
um apartamento para o sobrinho de Bin Laden e vou te dar como referência”. Ou ainda
quando deixa claro para o prefeito nova-iorquino sobre quem banca as despesas dele e
dá o mote para Frazier sobre de onde vêm as fortunas: “quando há sangue nas ruas,
compre propriedades”. O filme desconstrói os signos da respeitabilidade do poder, os
desmoraliza desde dentro.
Estruturado de maneira equívoca, onde o que parece também não é, Plano
perfeito faz o elemento externo (o social) se tornar interno ao texto, para falar
novamente com Candido, no fundamental Crítica e sociologia (CANDIDO, 2000, p.6).
Aponta a desigualdade social na sociedade dos ganhadores e a idéia de confraria.
Dirigindo-se à lobista White, tendo que engoli-la, e sondando a reação possível do
seqüestrador, o detetive Frazier indaga à lobista sobre como se comportariam numa
dada situação “vocês que têm estudo”.
No desfecho do assalto, mas não do filme, os seqüestradores saem pela porta da
frente com roupas iguais às dos seqüestrados, o que, no plano da ação narrativa,
possibilita que todos escapem indistintamente pela porta da frente, sem que se possa
perceber quem é sequestrador, quem é sequestrado. Esse é também mais um dado de
equivocidade do texto, ainda mais quando todos saem sem levar aparentemente nada.
Levarão jóias sem registro, roubadas pelo banqueiro nos lances iniciais do processo de
acumulação de sua fortuna, quando “entregou” para os nazistas um banqueiro francês e
sua mulher, dos quais era amigo, em troca de dinheiro. Na caixa sem registro da matriz
de seu banco, de onde os seqüestradores levam, além das jóias, documentos
comprometedores, será encontrada pelo detetive Frazier uma balinha de presente e um
anel Cartier com um bilhete propondo um enigma – “siga o anel”, senha para que
desvende o mistério do assalto sem roubo.
sugiram a totalidade dum modo-de-ser, duma existência. (...) A convencionalização é, basicamente, o trabalho de selecionar os traços, dada a impossibilidade de descrever a totalidade duma existência”. CANDIDO, 1992, p.75.
Numa das cenas finais, o personagem de Denzel Washington “enquadra” o velho
banqueiro, com um gesto marotamente obsceno (o anel na ponta do dedo médio) e a
promessa de que aquilo não vai ficar daquele jeito, ele que havia continuado a
investigação por conta própria, após o forçado encerramento oficial do caso. A saída
com seu parceiro de investigação, após a áspera conversa com o banqueiro, tem sabor
de vitória. Empenhado no que dissera ao prefeito em termos da necessidade de esforços
para tirar os verdadeiros bandidos das ruas.
Na cena final, Frazier é visto chegando para dormir na casa da namorada, numa
de duas cenas de convivência doméstica. Esta integra passagens com traços cômicos
que são importantes e estão relacionadas ao código erótico íntimo do casal, o policial e
sua noiva, um chulo popular dito no apartamento suburbano, com o cunhado alcoólatra
caído na sala do apartamento acanhado e que contrasta com o grand monde, o mundo
sujo das altas rodas. Enquanto toca o jazz, música dos guetos miseráveis que virou
signo de sofisticação burguesa, a namorada do policial faz trejeitos de diva, quando ele
avisa: “Chegou... salsichão com ovos!”56 E ela retruca: “as algemas estão prontas”. Vale
medir quanta vitalidade há nessa prosaica cena íntima, contrastando com os gestos
educados e medidos do mundo dos grandes salões, a hipocrisia de um jogo social de
aparências desconstruído pela narrativa.
A baixaria cômica parece contrastar com a respeitabilidade torpe do falseamento
social. A narrativa manda às favas o mundo das boas maneiras, da hipocrisia filantropa
– aqui ninguém quer a sua boa educação57. Voltando à cena doméstica: ao tirar seu
revólver de um bolso do paletó e limpar seu outro bolso, Frazier descobre um diamante
e temos a visão em flashback de um esbarrão que sofrera na agência bancária. Isso
quando o seqüestrador, saindo do esconderijo, jogou a jóia no seu bolso. Ao meio do
filme, durante a (falsa) negociação com a polícia, o sequestrador lhe dissera que, se ele e
sua namorada se amavam, o dinheiro não deveria ser impedimento para que ficassem
juntos. Estamos aqui na esfera das coisas que são como parecem, das coisas que
importam, para usar um lugar-comum básico e necessário em sua concretude.
56 Solução da legendagem brasileira para o “Big Willie e os gêmeos”, dito pelo personagem. 57
“Aqui nessa casa/Ninguém quer a sua boa educação/Nos dias que tem comida/Comemos comida com a
mão”. Cf. ANTUNES, Arnaldo. Volte para o seu lar. Disponível em http://letras.terra.com.br/marisa-monte/83173/ Acessado em 19 de outubro de 2010.
Ao final, passa o mau presságio e há a afirmação do cidadão comum, do
indivíduo inscrevendo sua verdade e a pergunta de se isso não seria uma americanice, a
afirmação do individualismo, a vitória do herói hollywoodiano. Ora, que o filme se
enquadra em certas expectativas de gênero, com as quais dialoga, isso é certo, e não
necessariamente uma capitulação ao clichê nem uma recusa total a este. Ao mesmo
tempo, o filme parece permitir uma leitura mais na chave da resistência diária, das lutas
locais (BOAVENTURA SANTOS, 1997, p.261). Afinal, os dois protagonistas avançam
no rumo de suas verdades, para muito além das exigências burocráticas da profissão de
um e da ambição material de outro. “Meu objetivo é dinheiro” – dirá o sequestrador
num ambiente de esmorecimento das grandes utopias. “Mas não vale a pena se você não
puder se olhar no espelho”, completa Dalton Russel.
Ouvimos no começo do filme uma conversa ao celular onde uma mulher diz
“estou no banco do ricaço nojento para o qual trabalho”. O filme se empenha em
desconstruir e desmoralizar os falseamentos do poder. Na trama, não só o status quo
norte-americano ou inglês sofre o olhar corrosivo, num enredo que espertamente cerca
um ícone reconhecível, o inimigo comum do nazismo. O olhar irônico se estende ao
líder comunista albanês Enver Hodja, com seu dogmatismo bizarro (na cena ótima da
ex-mulher do operário nova-iorquino); e esse olhar irônico prossegue para Bin Laden,
discretamente, pois Spike Lee tem juízo.
O sociólogo Boaventura de Sousa Santos vai lembrar em seu Pela Mão de Alice
– o social e o político na pós-modernidade, como a ciência moderna se estabeleceu com
uma ruptura com o senso comum, num ato revolucionário do qual não podemos abdicar.
Porém, realizada a ruptura “o ato epistemológico mais importante é romper com ela e
fazer com que o conhecimento científico se transforme num novo senso comum. Para
isso é preciso, contra o saber, criar saberes e, contra os saberes, contra-saberes”
(SANTOS, 1997, p.104).
No pensamento do autor português está inscrita a presença da noção de
dialogismo, conforme Bakhtin, e vale medir o quanto este conceito não poderia nos
ajudar a potencializar a visão do que há de melhor tanto no cinema narrativo, quanto no
não narrativo, o que há de invenção nos diálogos que constituem tanto o cinema
comunicável, quanto o cinema de contra-comunicação. Robert Stam lembra que o
dialogismo “remete à necessária relação entre qualquer enunciado e todos os demais
enunciados” assinalando ainda que, para Bakhtin, um enunciado “diz respeito a
qualquer ‘complexo de signos’, de uma frase dita, um poema, uma canção, uma peça,
até um filme” (STAM, 2003, p.225). Ressaltando ainda que o conceito de
intertextualidade seria a tradução de Julia Kristeva para o dialogismo bakhtiniano, Stam
frisa que a intertextualidade se interessa pela “ ‘interanimação’ processual entre os
textos” e relaciona o “texto individual (...) a outros sistemas de representação e não a
um mero e amorfo ‘contexto’ ” (STAM, 2003, p.227). O autor assinala ainda que
os textos são todos tecidos de fórmulas anônimas inscritas na
linguagem, variações dessas fórmulas, citações conscientes e
inconscientes, combinações e inversões de outros textos. Em seu
sentido mais amplo, o dialogismo intertextual se refere às
possibilidades infinitas e abertas produzidas pelo conjunto de
práticas discursivas de uma cultura, a matriz inteira de
enunciados comunicativos no interior da qual se localiza o texto
artístico e que alcançam o texto não apenas por meio de
influências identificáveis, mas também por um sutil processo de
disseminação. O cinema, nesse sentido, herda (e transforma)
séculos de tradição artística (STAM, 2003, p.226).
Retomando o texto inicial sobre os modelos de cinema predominantes,
poderíamos assinalar que, obviamente, tais modelos só podem ser pensados
problematizando-se suas definições, no ambiente desses diálogos e relações
intertextuais. Como o faz João Batista de Brito quando assinala que “naturalmente,
quando se pensa em termos concretos
as cinematografias que, historicamente, assumiram esses
modelos de cinema, uma das constatações mais óbvias é a de
que nem todo cinema clássico americano foi tão comunicável
em sua recepção, previsível em sua estruturação, e fechado em
sua significação, do mesmo modo que nem todo cinema de arte
europeu tem sido tão incomunicável, imprevisível e aberto. Não
cabem aqui ilustrações mais extensas, porém algumas das
melhores realizações, de um lado da margem, de cineastas
hollywoodianos como Huston, Wilder, Zinnemann, Kazan,
Mankiewicz, Hitchcock e, do outro lado, de cineastas europeus
“artísticos” como Fellini, Bergman e Truffaut podem
eventualmente servir de argumento a esse fato (BRITO, 1995,
p.198).
Plano perfeito dialoga com e se inscreve no cinema dominante, situando o
espectador num ambiente narrativamente familiar, mas ao mesmo tempo parece capaz
de injetar ruídos positivos nesse circuito, desautomatizando o que há de esclerosado na
linguagem do cinema padrão58. Nele vão sendo inseridas várias discussões de outros
filmes dos gêneros aos quais se filia, remetendo também a outras obras de Spike Lee,
onde identidade, alteridade, poder, etnocentrismo, desigualdade e todo um veio de
elementos socialmente recalcados são trazidos à tona tensamente. Isso ao mesmo tempo
dentro de um universo de ampla comunicabilidade, operando no limite temático e
formal à beira da fossilização e da automatização dos códigos. Trabalhando no mundo
do grande espetáculo cinematográfico, para grandes audiências, financiado por grandes
corporações, o filme tematiza também a mídia (e sua violência), o espetáculo e o mundo
dos negócios. Operando com maestria discursiva nesse ambiente, sem abrir mão da
precisão estética e da discussão política.
A equivocidade da qual falamos é incorporada à estruturação narrativa, aonde o
aparente assunto principal – o assalto -- é falso, as apresentações do poder também o
são. A ambigüidade social, que é subtexto fundamental da trama, é também do próprio
ambiente de produção e das suas exigências quanto a temas e formas, num filme que
assume o lugar de onde fala, da esquina da Broadway com Wall Street. Mas fala na
moral, sem meias palavras, infiltrando-se ali, instaurando contra-poderes e o gesto geral
de responder ao próprio lugar de onde se fala.
58 Blikstein ressalta as possibilidades comunicativas do ruído na comunicação em Técnicas de Comunicação escrita e Hildeberto Barbosa Filho, em diálogo com o texto de Blikstein, propõe um acoplamento desta noção de ruído ao conceito de desautomatização, dos formalistas russos. Cf. BLIKSTEIN, 2001, p.84-85; BARBOSA FILHO, 2003, p.135.
9 - Narrativa e experiência: a marca das mãos do oleiro59
E assim, quando o motorista ligou o rádio, ouviu que o bacalhau produzia nove mil óvulos por ano. Não soube deduzir nada com essa frase, ela que estava precisando de um destino. Clarice Lispector - A bela e a fera
Na ficção da escritora brasileira Clarice Lispector é algo recorrente a
tematização de personagens vistos em meio à rotina, ao amorfo de uma vida cotidiana
automatizada; e despertados para uma ampliação de percepção da existência, a partir de
um incidente qualquer. No conto “A bela e a fera” (Lispector, 1992), por exemplo, é
revelado que tudo na vida burguesa da protagonista Carla Sousa Santos havia sido
macio como um pulo de gato, até o deparar-se com um mendigo na rua, visão que a faz
mergulhar nas fachadas falsas de sua vida. É o topos na narrativa clariceana do
incidente qualquer que quebra a naturalidade da vida diária, desloca seus lugares-
comuns, amplia as percepções na rotina cegada, dispersa entre fragmentos que não se
iluminam.
Em alguns textos de Clarice, o contato com uma outra cultura é que vai provocar
a instabilidade do solo comum. Entre esses textos estão duas crônicas publicadas em
jornal, posteriormente reunidas em A descoberta do mundo, intituladas “Corças negras”
e “Viagem à Bolama” (Lispector, 1992-b). Antes, observaremos alguns aspectos da
questão do choque cultural no conto “A menor mulher do mundo”, suplementando
aspectos apresentados em outro estudo60.
No ensaio “Conceito de Iluminismo”, Adorno e Horkheimer (1980) questionam
certa racionalidade instaurada desde o século XVII pela ciência moderna. Em vários de
seus registros e permanências, tal racionalidade, de raiz cartesiana, entranhou-se em
nossa sociedade - branca, civilizada, ocidental, capitalista - trazendo reflexos profundos
no modo de reprodução da ciência, dos modos de sentir e pensar. Num de seus ensaios,
Marilena Chauí lembra que o sujeito cartesiano é dotado do poder de instaurar a própria
objetividade, quando esta acaba se resumindo ao conjunto de “operações realizadas pelo 59 O presente texto foi escrito a partir de capítulo da tese de doutorado Clarice Lispector e Os jardins da razão lugar-comum e reconstrução da experiência (MAGALHÃES, 2002) , sob orientação da professora Suzi Frankl Sperber e com financiamento da Fundação e Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, FAPESP. 60 Cf. Magalhães, Luiz Antonio Mousinho. A menor mulher do mundo: a flor forjada. In: FARIAS, Sônia Lúcia Ramalho de (org.). Literatura e memória cultural: tradição e modernidade. João Pessoa: Editora Universitária/ Idéia, 1997.
sujeito a fim de determinar completamente um objeto”. Fica assim pressuposta “a
separação entre sujeito e objeto como termos independentes e exteriores um ao
outro”61.
O conto “A menor mulher do mundo”, de Laços de família, de Clarice Lispector,
desconstrói esse olhar cartesiano, ao colocar em confronto dois tipos distintos de
cultura, a nossa e a de tribos africanas. A fatura literária, baseada em forte viés paródico
e fundada numa espessura dialógica e, mais que isso, polifônica, permite romper a
naturalidade grudada sobre a superfície das coisas, colocando em perspectiva os tipos de
racionalidade com os quais lidamos e, sobretudo, a vida cotidiana que passa sem ser
vista, sentida62.
Duas linhas principais se evidenciam no texto. Na primeira, certo discurso
cientificista, com caricatos traços positivistas, encarnados de maneira mais evidente
sobretudo no personagem Marcel Pretre. Ele, um cientista-explorador, pétreo na
dedicação aos ideais da ciência positiva. Marcel Pretre, cientista, explorador,
embrenhado nas selvas do Congo Central, descobre a tribo dos menores pigmeus e,
entre eles, a menor das menores pigméias, menor mulher do mundo. Sua descoberta é
divulgada no suplemento dos jornais dominicais, com imagens e textos sendo recebidos
em lares de classe média brasileira. Tal recepção de informações através da mídia, as
reações que resultam dessa recepção, trazem traços de vários modos de percepção
social, com seus lugares-comuns estabelecidos, o que é impresso de maneira forte na
própria estrutura narrativa, que mimetiza e desestabiliza tais lugares-comuns, tais modos
de perceber. Numa segunda linha, isto é feito através do trato relativo à informação
jornalística.
Em “Sobre alguns temas em Baudelaire”, Walter Benjamin assinala como a
narração (do narrador tradicional, a narração oral) não visa comunicar o puro-em-si do
acontecimento, se infiltra na vida de quem a relata e é dada “ao ouvinte como
experiência” (Benjamin, 1980-b, p.3). Desenvolvendo mais detidamente no ensaio “O
narrador” as relações entre narração (oral) e informação, o autor assinala como uma das
características desta, a de ela já vir amarrada por todos os lados de explicações. Em dois
momentos seguintes, Walter Benjamin notará a falta de certa amplitude de oscilação na
61 Apud PONTIERI, 1999, p.20. 62 Como assinala Diana Luz Pessoa, o termo dialogismo termo recobre o princípio dialógico constitutivo da linguagem e de todo discurso, enquanto a polifonia caracterizaria um certo tipo de texto, aquele em que o dialogismo se deixa ver, aquele em que são percebidas muitas vozes, por oposição aos textos monofônicos que escondem os diálogos que os constituem. Cf. BRAIT, Beth. Bakhtin, Dialogismo e construção de sentido. Campinas: Edunicamp, 1997.
informação, seu caráter unívoco, a falta dessa força de germinação que faz o texto
criativo apontar para o entroncamento de vários sentidos.
Como dirá Freud, noutro contexto, os textos dos sonhos e da obra artística como
“todos os textos genuinamente criativos, são produto de mais de um motivo único e
mais de um único impulso na mente do poeta e são passíveis de mais de uma
interpretação (Freud s/d, p.279). Essa possibilidade de “superinterpretação” do sonho e
da obra literária confirma seu caráter ambíguo, plurívoco. Merleau-Ponty assinalará, por
sua vez, que “o equívoco é essencial à existência humana, e tudo o que vivemos, ou
pensamos tem sempre vários sentidos”63 . Noutro momento o filósofo francês também
apontará o quanto é necessário “que reconheçamos o indeterminado como fenômeno
positivo”64.
É esse indeterminado positivo, esse equívoco amplificador de percepções,
desoxidador do que por vezes se faz cegueira perceptiva no lugar-comum, é
essa amplitude de oscilação (para voltar a Walter Benjamin) que por vezes é sonegada
como possibilidade pelo que Adorno chama de sociedade tecnificada instaurada a partir
do Iluminismo.
A relação cindida com a natureza para esse tipo de racionalidade, para essa
nossa racionalidade, será assinalado de maneira radical por Adorno e Horkheimer.
Segundo os autores, a natureza só interessará ao homem na medida em que possa ser
aplicada para ser dominada ela própria pelos homens e para dominar outros homens.
(Adorno & Horkheimer 1980, p.90). Além disso, para os autores o Iluminismo
“incinerou os últimos restos de sua consciência de si” e “só um pensar que faz violência
a si próprio é suficientemente duro para quebrar os mitos”. Desencantado de mitos, o
mundo parece seguir por si, como em crônica de Clarice Lispector, onde o narrador
assinala que a vida parece o estar num transatlântico enorme de onde se perdeu a
consciência de se estar nele.
O confronto entre uma racionalidade que se instaura a partir de uma cisão com o
mundo natural e outro tipo de vida possível em integração ampla com a natureza, vai ser
colocado em pauta pela ficção em “A menor mulher do mundo”. No início do texto, o
explorador Marcel Pretre é visto embrenhado nas profundezas da África Equatorial.
Encontrada a tribo de pigmeus de pequenez surpreendente, ele prossegue e progride,
mais longe vai, surpreso, tendo sido informado de tribo menor ainda. Em progressão
63
Merleau-Ponty, Maurice. A fenomenologia da percepção. São Paulo: Freitas Bastos, 1971.p.180. 64
Idem, ibidem, p.24.
máxima, a tribo mínima é achada, o menor ser dela, medido: 45 centímetros, “madura,
negra, calada”. “‘Escura como um macaco’”, como sai na informação dada por ele à
imprensa.
Os discursos científico e jornalístico vão mediar o tempo todo (estilizados,
parodiados) a apresentação da personagem65. O discurso literário vai ativar tais modos
de a personagem ser olhada. E vários outros, como o de um narrador que
frequentemente desliza, não se compromete com os olhares dirigidos à tribo de
pigmeus. Por vezes se volta a esses olhares, mas com freqüência, se afasta deles, com
freqüência subverte-os.
O querer entender os pigmeus representará um momento difícil para os
personagens que recebem informações e imagens dos aborígenes pelos jornais. É
representada então a tentativa de entendimento possível da diferença perturbadora, uma
aproximação difícil feita pelo explorador amarelo, por nós leitores, pelo narrador a
perscrutar a escuridão da outra cultura, o enigma da outra pessoa. Particularmente pelo
explorador Marcel Pretre, munido do aparato cientificista/ positivista que se coloca de
maneira afastada e elevada - por vezes cindido e senhor de si em relação ao seu objeto
de estudo, por vezes comovido e perturbado ao deparar com os pontos cegos de seu
saber instrumental.
A primeira definição sobre a pigméia menor do mundo refere-se à sua cor e a um
assemelhamento dela com o reino animal. “Escura como um macaco”, é dito no texto,
em forma de citação, num estilo de sucintez próprio do recorte da informação
jornalística. E com todo um lastro cultural nosso (branco, civilizado, ocidental) de
aproximação dos traços dos negros aos macacos, numa separação claramente
hierárquica entre os humanos, o que em outros momentos históricos justificou
instituições como a escravidão66.
65
Paródia e estilização estão entre os tipos de discurso que, segundo Bakhtin, mantém uma dupla orientação, “dirigindo-se ao objeto referencial da fala, como no discurso cotidiano e (...) remete[endo] a um segundo contexto, ao ato da fala de um outro emissor” (Bakhtin 1983: 464). Na estilização, há o momento de revelar, através da fala do “autor” (leia-se narrador) “aspectos individuais ou típicos de alguém” (Bakhtin 1983: 465). Na estilização “o autor utiliza a palavra do outro no sentido de suas próprias intenções, de seus próprios projetos” (471). Na paródia, como na estilização, “o autor emprega a fala de um outro, mas, em oposição à estilização, se introduz naquela outra fala uma intenção que se opõe diretamente à original. A segunda voz, depois de se ter alojado na outra fala, entra em antagonismo com a voz original que a recebeu, forçando-a a servir a fins diretamente opostos” (Bakhtin, 1983, p.471). 66
Ao mesmo tempo, é sabida a paixão clariceana pelos animais (“Por que um cão é tão livre? Porque é o mistério vivo que não se indaga”, é dito em A descoberta do mundo. ADM: 513). Tal valorização não é o que acontece aqui, quando o movimento do explorador e dos que lêem o jornal é claramente reificador, reificação que é desconstruída pelo conjunto de dados da narrativa.
O conjunto de dados narrativos em “A menor mulher do mundo” parece desfazer
o tempo todo uma intenção etnocêntrica centrada nos personagens, empenhados em
apagar a diferença através de classificações tranqüilizadoras. A postura do narrador e
vários outros elementos textuais, desmascaram as tentativas de reduzir o
outro ao mesmo, o que é feito com forte recurso à ironia.
Os elementos associam a personagem Pequena Flor aos mistérios perturbadores
das profundezas da floresta e configuram os traços que resultam numa unidade de
efeito semelhante à que dá vida ao personagem Marcel Pretre, visto apegado aos
instrumentos tão precários quanto presunçosos de seu saber científico, melhor, de um
certo saber cientificista, positivista, que ele encarna pelo exagero de linhas e traços
próprios da caricatura.
O texto não nega a ciência ou o que pode haver de belo na vertigem do olhar
o outro com desejo, medo ou sede de conhecimento. O que o conto desvela é um olhar
etnocêntrico que busca encontrar identidades no outro e não as encontrando rejeita
esse outro como inferior ou aberrante. Esse olhar tanto se faz presente no discurso leigo,
na fala do senso comum, como na atitude científica redutora, ambas revelando forte
impulso ideológico.
No conto, vê-se ainda o abalo que a possibilidade de outros modos de vida
instaura no lugar-comum do ambiente familiar, que rejeita justamente o que é visto
como não-familiar e por isso transferido para a esfera do anormal, da exceção à
natureza. Isso quando as facetas das relações sociais, dos costumes e das crenças são
sentidas exatamente como pertencentes à esfera do natural, do único, da identidade, da
negação da diferença.
No conto “A menor mulher do mundo”, várias estratégias hierarquizadoras vão
sendo ironizadas, ao mesmo tempo em que vai sendo mostrada a cultura do diferente e a
natureza em um processo de integração.
Na leitura do conto percebe-se o quanto a estrutura narrativa se tece num jogo
que busca revelar o relativo de dados culturais sentidos como leis naturais, instaurando
um deslocamento de posições onde um Eu se entende dolorosamente pelo que vê
no Outro, melhor, "que se entende no que supõe ver no Outro" (Santos, 1986). A
linguagem literária torce a aparente naturalidade grudada sobre as coisas, propondo um
novo olhar sobre tais dados. Vê-se o texto interessado em ativar sentidos, ampliar a
percepção, flagrando mesmo o choque cultural e o esforço dos personagens postos em
cena em encobri-lo.
Indagado certa vez sobre relações entre natureza e cultura, Claude Lévi-Strauss
realçou as tensões entre ambos os termos, historicamente postos em pólos opostos.
durante toda a tradição judaico-cristã e mais ainda desde o
nascimento da ciência moderna no século 17, o homem se
considera mestre e senhor da natureza, considera que ela é sua,
que pode fazer com ela o que bem entender. Essa atitude criou
uma espécie de fosso entre a racionalidade e a ordem natural,
que se tornou apenas um objeto, um instrumento, e não um
interlocutor. Mas há também o fato de que, no seu
desenvolvimento, o pensamento científico nos fez compreender
muito mais do que compreendíamos pelo passado. Nesse
sentido, ele nos aproximou da natureza. É um fenômeno de dois
gumes. Mas não sou dos que desprezam e se afastam do
pensamento científico. Tenho muito respeito por ele. Tento
utilizá-lo não para submeter-lhe a natureza, mas para melhor
compreendê-la (LÉVI-STRAUSS, 1989, p. 25).
No conto, a voz narrativa vai, através de discretos e afinados recursos de
linguagem, estilizando o discurso científico e dos meios de comunicação, introduzindo
um tom paródico que descola a visão da obra desses discursos, denunciando seu caráter
ideológico.
A posição de olhares que miram Pequena Flor é fascinada, porém
hierarquizadora. Toda sociedade talvez deva precisar de seus centros, como forma de
defesa da própria cultura, de instauração de seu próprio cosmos67. Porém, a partir da
racionalidade instaurada na nossa, tal mecanismo de defesa se tornou instrumento de
destruição e esvaziamento da cultura alheia. De atrofia e empobrecimento na nossa
própria experiência, com suas possibilidades de vida, seus espaços perceptivos
cimentados a um lugar-comum por vezes vazio de significação. Talvez a necessidade de
pré-concepções no desenhar os cosmos possíveis de grupos sociais seja inevitável.
67
Cf. ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano - a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
Porém, as pré-concepções rígidas, estas sim, já são a ideologia, imersa em seu
movimento paralisante, falseador68.
No final da narrativa, o explorador mostra-se resignado a tomar notas, em meio à
sua desorientação pela incapacidade de reter Pequena Flor nos parâmetros do seu saber.
Tal desorientação geral ante a estranheza instaurada pela diferença presentificada por
Pequena Flor, pretende-se equacionada de forma mais simples por alguém, na sede geral
por referências: "— Pois olhe — declarou de repente uma velha, fechando o jornal com
decisão —, pois olhe, eu só lhe digo uma coisa: Deus sabe o que faz".
A impossibilidade de racionalizar o não-classificável está refletida no gesto
lacônico do explorador e na entrega da solução à instância divina (pela velha), portanto
no discurso da ciência e na fala do senso comum. A ânsia por similaridades se apossa
dos vestígios do não percorrido e, impotente para desfazê-los, resigna-se na crença de
que, por linhas tortas, o percurso far-se-á único. Matizando mais: no pólo lugar-comum
do senso comum, estaria talvez a brecha por um entendimento em algum momento mais
aberto e tolerante, para uma discreta generosidade no acreditar em outros mundos
possíveis, em aceitá-los.
Uma terceira leitura possível é sugerida por trecho de crônica da autora
justamente Estado de graça. Nele, a narradora, ao refletir sobre os riscos e o erro se tal
estado de graça nos fosse dado com frequência, afirma que “Deus sabe o que faz”,
assinalando o risco de passarmos “definitivamente para o outro lado da vida, que
também é real, mas ninguém nos entenderia jamais. Perderíamos a linguagem em
comum” (Lispector, p. 1992-b, p.91). Parece haver aí, então, o assinalamento da
necessidade das culturas, de nossa cultura, preservar suas referências, seus cosmos.
Porém, veja-se que a frase é a mesma da velha. No conto, esse chegar ao ponto de
deixar para lá ou para a instância divina as aberturas perceptivas permitidas pelo contato
com a cultura do outro, não ensaia anular a diferença, nem estabelecer hierarquias,
reconhece a alteridade e suas possibilidades, mas chega num ponto que se resguarda.
Recusando uma necessária explicação para o problema trazido pelos jornais, o
gesto da velha, partindo da experiência, parece recuperar a possibilidade de
certa amplitude de oscilação, antes congelada pela informação fragmentária, pelo gesto
científico e do senso comum, fixado em certezas; gesto talvez amparado na tradição e
68
Cf. EAGLETON, Terry. Ideologia: uma introdução. Trad. Silva Vieira e Luiz Borges. São Paulo: Editora da Unesp: Editora Boitempo, 1997. 19.
na oscilação prevista na noção de que são muitos os caminhos de Deus. Ou numa
desconfortável indicação do maldoso ditado popular que diz que Ele marcou para não
perder de vista.
O estado dos outros
Na crônica “Corças negras”, publicada em A descoberta do mundo, é novamente
tematizado o deslocamento perceptivo provocado pelo contato com as culturas
africanas. Nesse pequeno texto, a autora narra sensações de uma passagem sua por vilas
da Libéria. A narradora se vê em meio a pretos que misturam dialetos com palavras do
inglês tomadas e pronunciadas “como se fossem mais um dialeto local” (1992-b, p.190).
A postura do narrador é de atenção e abertura às diferenças que cautelosamente
se desenham no contato entre visitantes e nativos. E o que é dito e calado - os sons da
voz e suas ausências, assinalam esse contato marcado de pequenas descobertas e de
certa possibilidade de susto. A narradora percebe o quanto e como as moças pretas
liberianas interrompem-se em meio às conversas e ouvem com prazer e atenção a
própria voz ao cumprimentarem os visitantes - “dizem com cuidado e prazer: hellô -
prestam atenção à ressonância do que disseram, riem e então continuam”.
A fixação da percepção nos sons da voz, sentidos em suas singularidades, os
coloca como canal privilegiado de contato com a outra cultura e mesmo de
entendimento da nossa cultura, de traços despertos a partir do esbater-se com a
diferença da outra cultura. Há como que uma espécie de fechamento da paisagem que
possibilita uma abertura do objeto na fixação da percepção, com a redução do
movimento em redor e possibilidade de focalização da atenção69. Na crônica, o rumor
das vozes parece destacado e aumentado no texto, onde tais vozes são sentidas como
águas que escorrem, entornam e enchem bilhas, trazem tons em escalas novas, alegria.
sua voz é tão cantante que parece encher de água uma bilha (...)
reclama ela entornando a bilha com sua voz de risos (...)
A moça então explode em outra lengalenga que dessa vez enche
várias bilhas com chuva cantante (...)
69
Para falar com Merleau-Ponty , quando ele diz que “olhar o objeto é mergulhar nele (...)e os objetos formam um sistema onde um não pode se mostrar sem esconder outros”. Cf. MERLEAU-PONTY. Idem, ibidem, PP.80-81.
de repente tantos risos misturados à letra l e tantos espantos
alegres como se o silêncio tivesse debandando.
Quando o silêncio debanda, as vozes são risos, nessa alegria marcada percebida
a cada movimento dos liberianos. Mas - anota o narrador - não “há um traço de escárnio
ou vontade de poder e o riso: o riso é uma mistura de fascinação, vontade de agradar,
humildade, curiosidade e alegria”, riso cujo uso traz matizes diferentes do que há entre
nós, onde se faz freqüentemente elemento de poder e hierarquização. Nos embates de
“Corças negras”, a curiosidade entre os personagens é recíproca e se faz pelo olhar.
“Sou extremamente examinado por um negro jovem”. E, noutro trecho:
Uma delas me olha atentamente, quase encabulo. E muito de
súbito brota em frase longuíssima, arenga sem raiva onde não
reconheço um só r ou s, apenas variações na escala do l, vaivém
de lengalenga. Recorro ao intérprete. Este resume curtíssimo:
‘She likes you’. A moça então explode em outra lengalenga que
dessa vez enche várias bilhas com chuva cantante. O intérprete:
meu lenço na cabeça. Tiro-o, mostro como usá-lo. Quando vejo,
estou cercada de pretas moças e esgalhadas, seminuas, todas
muito sérias e quietas. Nenhuma presta atenção ao que ensino, e
vou ficando sem jeito, assim rodeada de corças negras. Nos
rostos opacos a listras pintadas me olham. A doçura contagia:
também me aquieto, doce. Uma delas então se adianta no seu pé
leve, e como se cumprisse um ritual - eles se dão inteiramente à
forma - pega nos meus cabelos, alisa-os, experimenta-os,
concentrada. Todas assistem (Lispector, 1992-b, p.190).
Os traços ritualísticos no gestual africano vão ser ressaltados no texto e certo
envolvimento encantatório na maneira do narrador perceber os liberianos - sobretudo
as pretas corças - vão reafirmar tal envolvimento. Assonâncias, aliterações, esboços de
anagramas dão um ritmado viscoso, envolvido. Assim: “As negras jovens pintam o
rosto com traços ocre”. Ou: “quando vejo, estou cercada por pretas moças e esgalhadas,
seminuas, todas muito sérias e quietas”. As listras olham, as coisas são percebidas
reintegradas, reencantadas.
As várias mediações que permeiam nossas relações sociais, suas defesas e
limites, têm muitas de suas hierarquias quebradas na experiência do outro, como no
momento no qual a narradora-personagem, sabendo do gosto do nativo em dar adeus,
experimenta um adeus e o rapaz ao qual o gesto se dirige, "com aplicação, numa
delicadeza de oferenda, ingênuo e puro, faz gestos obscenos”70. Isso na crônica,
assinada por Clarice Lispector. No conto A menor mulher do mundo, o explorador
Marcel Petre se emociona e concede um derramado “ - Você é Pequena Flor”, isso “com
uma delicadeza de sentimentos de que sua esposa jamais o julgaria capaz” (Lispector,
1983, p.89), nomeando pela primeira vez a pigméia. Pequena Flor esboça em resposta
ao nome estabelecido o gesto de coçar-se “onde uma pessoa não se coça”(Lispector,
1993, p.89), desestabilizando o conforto dado pela classificação recém-estabelecida.
Neste momento, o explorador desvia pela primeira vez os olhos, o que vai ser recorrente
ao longo do texto.
Mas vamos voltar à crônica “Corças negras”, publicadas no Jornal do Brasil de 5
de abril de 1969. Nela, os liberianos são percebidos como sendo “de um preto fosco e
unido que parece repelir água, como o cisne, que nunca está molhado”. Na alusão às
moças como corças negras, pode-se perceber também a forma não redutora, curiosa e
carinhosa - fascinada, com a qual a narradora vê e se relaciona com esse outro
representado por elas, notando-lhes cada gesto, cada som da outra língua, percebida em
sua alteridade. Vendo a maneira positiva como os bichos estão representados no todo de
sua obra, fica mais claro ainda o elogio na figuração dos liberianos em aproximação
com os bichos. Em certa passagem do romance A maçã no escuro, por exemplo, o
protagonista Martim está no curral e percebe os animais como se estes “já tivessem
atravessado a infinita extensão da própria subjetividade a ponto de alcançarem o outro
lado” (LISPECTOR, 1982, p.91), essa “plenitude ontológica: identidade sem fissuras”
que Benedito Nunes (NUNES, 1989, p.132) assinala ao ler os bichos em Clarice.
O contrário disso são os momentos que vimos do conto A menor mulher do
mundo, onde a pigméia da tribo dos menores pigmeus é lida e contada pela mídia e pela
média da população urbana e pelo cientista que a descreve como sendo por vezes
semelhante a um cachorro, a um macaco, a um bicho qualquer. Aí há clara reificação,
porém ela parte dos personagens e é desnudada pelo narrador, pelo conjunto de dados
da narrativa. Daí a importância de atentar no texto, entre outros traços, para a diferença
70
E aqui o baixo corporal reverte a cena, como na coceira constrangida de Pequena Flor.
entre quem vê e quem narra, quem detém a focalização e a instância narrativa, qual a
perspectiva e qual voz, para citar as categorias de G.Genette, que marcam a distinção
entre focalizadores e narradores (Genette, s/d). No caso da ficção, sua força é extraída
exatamente dos vários pontos de vista colocados, do jogo entre eles, da concorrência de
vozes e acentos que fazem o jogo narrativo.
A presença de elementos de estilização e paródia instauram uma tensão nas
narrativas de Clarice Lispector, tensão esta que assinala alguns dos principais dados de
sua escritura Isso visto que o desfoque entre falas, gestos e posturas de narradores e
focalizadores determinam fundamentais atares e desatares destas narrativas.
Em A menor mulher do mundo, boa parte do impacto que o conto provoca vem
pelo coro absolutamente dissonante do narrador com os personagens. O narrador a
princípio parece reforçar de maneira absolutamente violenta e redutora as posições e
crenças - etnocêntricas - dos personagens, quando na verdade está desmascarando tais
posições, através do engendramento de um segundo plano intencionalmente acentuado,
para falar com Bakhtin. E a visão da narrativa está posta neste entrechoque entre
narrador e personagens além de em outros elementos colocados nas narrativas. É
preciso entender os acentos postos em cada entrechoque destes, pois, como ensina
Bakhtin, “não perceber o segundo plano intencionalmente acentuado significa não
compreender a obra”(Bakhtin, 1990, p.119).
No texto e em grande parte dos textos de Clarice, tem-se uma objetivização da
linguagem média que é bastante reveladora. Tal linguagem média era percebida por
Bakhtin como a
linguagem comumente falada e escrita pela média de um dado
ambiente, tomada pelo autor precisamente como a opinião
corrente, a atitude verbal para com seres e coisas, normal para
um certo meio social, o ponto de vista e o juízo correntes. De
uma forma ou de outra, o autor se afasta dessa linguagem
comum, põe-se de lado e objetiviza-a, obrigando-a a que suas
intenções se refranjam através do meio da opinião pública
(sempre superficial e freqüentemente hipócrita) encarnado em
sua linguagem (Bakhtin, 1990, p.108).
Em Tristes trópicos Claude Lévi-Strauss pensa o lastro de remorso que teria
determinado o nascimento da etnografia no Ocidente. Ele também reflete sobre o quanto
as outras sociedades, sejam elas melhores ou piores que a nossa (“não o podemos
saber”), podem ajudar-nos a nos libertar das nossas, “não porque esta seja
absolutamente ou apenas má, mas porque é a única de que temos de nos libertar:
libertamo-nos pelo estado dos outros” (LÉVI-STRAUSS, s/d, p.493).
Em um terceiro texto de Clarice Lispector, outra crônica, a escritora descreve em
poucas linhas uma viagem à Bolama, também na África (LISPECTOR, 1992-b, p.381).
Mais uma vez o som da voz é notado — “Falam os negros um português de Portugal
engraçadíssimo”. Assinala ainda a narradora que eles não têm a nossa noção de idade:
um menino de 8 anos fala ter 53 anos de idade. E os portugueses os tratam a chicote.
Ela pergunta se seria necessário tratá-los como se não fossem seres humanos. A
resposta: “de outra maneira eles não trabalham”. “Fiquei meditativa. A África
misteriosa. Neste mesmo momento em que alguém lê, lá está a África indomável
vivendo”. E arremata. “Lamento a África. Gostaria de poder fazer um mínimo que fosse
por ela. Mas não tenho nenhum poder. Só o da palavra. Só às vezes”.
A palavra será a maneira humilde, precária que seja, da narradora tentar juntar os
cacos de uma realidade que vem em fragmentos, e por isso mesmo fere, mas traz a
possibilidade iluminadora do brilho de um instante. Macabéa, de A hora da estrela,
ouve as informações estilhaçadas da rádio relógio, Carla Sousa Santos (de “A bela e a
fera”) não consegue saber o que fazer com a informação de que o bacalhau põe 9 mil
óvulos por ano, “ela que estava precisando de um destino (Lispector, 1992, p.117).
No caso das crônicas sobre a África, a escritora parece perplexa ante os dados da
tragédia africana. Por um lado, fascinada ante a promessa de felicidade sugerida pela
alegria, pela lembrança de ter um corpo, do poder perceber mais amplamente as coisas
do mundo, certas facetas do seu próprio mundo, possibilidade que a outra cultura
permite, sugere. Ao mesmo tempo, o choque ao notar a espécie de punição que sofre
esse mundo africano desarmado, descolado ante forças centrípetas de uma ordem
mundial tecnificada, que só pode olhar essa integração com a natureza como o signo da
sua derrota, seu atraso na escala do tempo71.
Esse outro africano que parece teimar em não se colar a um certo progresso
dentro de um tipo de racionalidade que se expande, conquista territórios, delimita a
71
“As culturas humanas não pertencem a uma mesma escala”, conforme assinala Margareth Mead. MEAD, Margareth. Sexo e temperamento. São Paulo: Perspectiva, s/d.
percepção e esquece o corpo, racionaliza uniformemente a vida, multiplica o lucro. Por
vezes desencanta o mundo72.
Mas, nos textos, permanece lá a África e seu mistério, um outro lugar instaurado,
que desloca a percepção rotineira presa a si e lança outras possibilidades perceptivas.
Expansão que é posta em linhas e contra-linhas no depoimento pessoal assumido pela
narradora das crônicas ou na força da ficção que desestabiliza as certezas e forja
restaurar um ser à flor da pele que o lugar-comum - a cegueira da
percepção, o hábito, os laços sociais - haviam mantido represado e são libertados
justamente pelo que pode ser aprendido com o Outro. Esse Outro apresentado na
sinuosidade de uma escritura que não sabe aconselhar, que também talvez esteja
desorientado, porém ensina a ambição de alargar a percepção, de disseminar a vida e a
situá-la de alguma forma numa tradição esquecida, trazendo também às vezes em seus
traços “a marca de quem narra, como à tigela de barro a marca das mãos do oleiro”
(Benjamin, 1980-a, p.63).
72
“Todos podem ser como a sociedade todo-poderosa, todos podem se tornar felizes, desde que renunciem à pretensão de felicidade” (Adorno e Horkheimer, p.144). “Riscar os índios/ nada esperar dos pretos” é o que dizem parodicamente os versos de uma canção que revela algo desse movimento implícito de conquista e expansão. Cf. Veloso, Caetano. “Estrangeiro”. CD Estrangeiro. Philips.
10- Ficção e experiência: o particular, o fragmento e o instante73
No ensaio “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, Walter
Benjamin lembra como as modificações nos modos de sentir e perceber são conexas às
grandes transformações sociais. Escrevendo na década de 1930, Benjamin atenta para
uma forte modificação perceptiva provocada pelo que chama “declínio da aura”,
definindo esta como a “única aparição de uma realidade longínqua, por mais próxima
que ela esteja”. Embora a princípio aplicável mais a objetos históricos, pela força da
exemplificação Walter Benjamin recorre ao campo da natureza para defini-la: “Num
fim de tarde de verão, caso se siga com os olhos uma linha de montanhas ao longo do
horizonte ou a de um galho, cuja sombra pousa sobre o nosso estado contemplativo,
sente-se a aura dessas montanhas, desse galho” (BENJAMIN, 1980-c, p.9).
A decadência da aura estaria na presença das massas na vida das primeiras
décadas do século XX, na sua exigência de que “as coisas se lhe tornem, tanto humana
como espacialmente, mais próximas” e na sua tendência a depreciar aquilo que é dado
uma única vez. Uma forte tendência à estandartização e um alinhamento da realidade
pelas massas e vice-versa também seriam inerentes a esse processo. No que toca à obra
de arte (pintura, escultura) esta perderia um valor de culto preso à sua origem de peça
utilizada em rituais e nas permanências desses usos, que determinavam um “valor
cultual” firmado na idéia de “autenticidade” do trabalho artístico, dado à sua unicidade,
unicidade esta destroçada pela possibilidade de reprodução em larga escala. Faceta não
só possível, mas exigível mesmo, no caso do surgimento de novas expressões como
fotografia e cinema, nas quais a reprodução seria uma característica intrínseca.
O abalo na tradição também é o centro da reflexão de Walter Benjamin, em
outro ensaio notável, O narrador (1980-a). Nele, o autor analisa um contexto de perda
da experiência, com o rareamento da narrativa oral, tendo caído de cotação socialmente
a experiência que anda de boca em boca. Para Benjamin, o advento do romance já
acenaria, como exemplo remoto, para as forças históricas seculares que teriam afastado
a narrativa do “âmbito do discurso vivo”. Estaria no romance já um sinal de decadência
73 O presente texto foi escrito a partir de capítulo da tese de doutorado Clarice Lispector e Os jardins da razão lugar-comum e reconstrução da experiência (MAGALHÃES, 2002) , sob orientação da professora Suzi Frankl Sperber e com financiamento da Fundação e Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, FAPESP.
da experiência, com o romancista sendo um ser segregado, desorientado, que não sabe
aconselhar.
Para Benjamin, porém, a informação, como nova forma de comunicação
surgida no capitalismo avançado, ameaçaria a narrativa bem mais que o romance.
Exigindo plausibilidade e verificabilidade, a informação, em todas as suas frentes,
tolheria a germinação de significações.
[...] cada manhã nos informa sobre as novidades do universo. No
entanto somos pobres em histórias notáveis. Isso ocorre porque
não chega até nós nenhum fato que já não tenha sido
impregnado de explicações. Em outras palavras: quase mais
nada do que acontece beneficia a narrativa, tudo reverte em
proveito da informação. Com efeito, já é metade da arte de
narrar, liberar uma história de explicações à medida que ela é
reproduzida. (p.61).
Assim, faltaria à informação certa amplitude de oscilação presente na
narrativa. A informação também se mantém viva apenas no instante em que é nova,
“vive apenas nesse instante, precisa entregar-se inteiramente a ele” (p.62). Ao contrário,
a narrativa não se exaure, conserva-se com poder de coesão, traz possibilidades de
desdobramentos futuros.
Benjamin exemplifica com uma narrativa de Heródoto, quando ele narra da
prisão por Cambises, rei Persa, de Psanemita, rei egípcio, após vitória em guerra.
Cambises obrigou Psanemita a assistir a desfile do triunfo Persa, a ver sua filha servindo
como escrava aos persas e seu filho ser levado à execução. Sem esboçar reação a todas
essas cenas atordoantes, o rei, no entanto, ao reconhecer “um de seus criados, homem
velho e empobrecido, nas filas dos prisioneiros, bateu com os punhos na cabeça e deu
todos os sinais da dor mais profunda”.74
Pensando a interpretação de Montaigne sobre esta narrativa, o ensaísta alemão
especula outras e, sobretudo, ressalta o impacto em espanto e reflexão que tal narrativa
conserva através dos tempos. Num poder de disseminação que se assemelha ao dos
74 Ibid., p. 61.
“grãos de semente que, durante milênios hermeticamente fechados nas câmaras das
pirâmides, conservaram até hoje sua força de germinação”.75
Em “Sobre alguns temas em Baudelaire”, Benjamin anota como a informação
se posta rigidamente distante da experiência, pois ela não entra na tradição. Ao
contrário, floresce num momento de atrofia da experiência, quando “nenhum leitor tem
mais facilmente qualquer coisa para poder contar ao outro” (1980-b, p.31).
Na imprensa, há o momento de exclusão dos acontecimentos do contexto “em
que poderia afetar a experiência do leitor”. O que seria feito mesmo seguindo os
ditames da informação, com suas exigências de novidade, brevidade, etc, bem como
dada à diagramação a expor os assuntos de maneira fragmentária e sem relação entre si
nas páginas publicadas.
Citando Bergson – no que este reflete sobre memória e experiência no seu
Matéria e memória –, Walter Benjamin assinala que a experiência é um “fato de
tradição, tanto na vida coletiva como na particular. Consiste não tanto em
acontecimentos isolados fixados exatamente na lembrança, quanto em dados
acumulados, não raro inconscientes, que confluem na memória” (p.30).
Benjamin assinala em Bergson a busca de uma memória pura, sendo nesta de
livre escolha a “atualização intuitiva do fluxo vital”. A memória que advém pelo esforço
da lembrança será em Proust memória voluntária, “da qual se pode dizer que as
informações que nos dá sobre o passado nada conservam dele”. Para Proust, será fruto
do acaso cada um encontrar uma imagem de si mesmo, “tornando-se senhor da própria
experiência”. Esta será a memória involuntária. Os instantes de fluxo “involuntário da
memória” são destacados por Proust em Baudelaire, como os momentos vitais, aqueles
que realmente interessam, importam.
Em Baudelaire, escreve Proust, o tempo é dividido de modo
desconcertante; somente se revelam poucos dias, e apenas dias
significativos. Assim se explica por que freqüentemente se
encontram nele formações como ‘quando uma tarde’ ou
semelhantes. Esses dias significativos são os do tempo que
realiza [...] os dias da lembrança. Não são assinalados em
contrapartida por nenhuma vivência, não acompanham os
75 Ibid., p. 62.
demais, mas, ao contrário, destacam-se do tempo. Aquilo que
constitui o seu conteúdo foi fixado por Baudelaire no conceito
de correspondances. Que é imediatamente vizinho ao conceito
de beleza moderna (p.47).
O conceito de correspondências de Baudelaire “fixa um conceito de
experiência que traz em si elementos cultuais”.
No olhar, assinala Walter Benjamin, “está implícita a expectativa de ser
correspondido por aquilo a que se oferece. Se tal expectativa [...] é satisfeita, o olhar
consegue na sua plenitude a experiência da aura” (p.53).
A experiência da aura repousa na transferência de uma forma de
reação normal na sociedade humana para a relação do
inanimado ou da natureza com o homem. Quem é olhado ou se
julga olhado levanta os olhos. Perceber a aura de uma coisa
significa dotá-la da capacidade de olhar.
Para Walter Benjamin, Valéry vai mais longe que Proust na descrição da
percepção como aurática, no sonho. “Quando digo: vejo esta coisa, não ponho uma
equação entre mim mesmo e a coisa [...] no sonho, porém, subsiste uma equação. As
coisas que eu vejo me vêem como eu as vejo” (p.53).
Benjamin fala sobre olhos que perderam a capacidade de olhar, num contexto
de atrofia da experiência. A experiência se configuraria no momento em que o passado
individual entraria em conjunção com o passado coletivo. Esquecidas de si mesmo, de
qualquer passado, isoladas (“o comfort isola”), as pessoas se põem a sós também entre a
multidão, perdidas “na freqüentação das cidades imensas, no emaranhado de suas
relações inúmeras” (p.35).
No contexto da ficção da escritora brasileira Clarice Lispector, personagens são
vistas por vezes se protegendo automatizadamente dos “chocs” nas ruas das cidades ou
num contexto doméstico por vezes amorfo, secado de significações. Nas narrativas
clariceanas, a visão súbita do reprimido socialmente que retorna traz a possibilidade de
pegar o instante. E de restaurar a capacidade de olhar.
Se essas correspondências não se fazem da mesma maneira em Clarice como
ocorrem em Baudelaire, Proust ou na noção de aura de Benjamin, podemos aproximá-
las aqui dessas facetas. Lembrando que, como únicos, reveladores, tais momentos no
universo clariceano vêm, por vezes, repletos de náusea ou intenso prazer e reativam
igualmente a capacidade perceptiva, possibilitando a experiência do mundo.
O fragmento e o instante
Nas reflexões de Walter Benjamin sobre a função da crítica, em certos
momentos ele trata do particular, do instante, do fragmento. Tais três elementos podem
nos remeter ao universo clariceano, no que suas narrativas estabelecem de descontínuo,
de não-linear em seus desenvolvimentos, a partir dos momentos de excruciante
aguçamento perceptivo na trama dos textos.
Nesses instantes, objetos isolados ressaltam de maneira brutal,
descontextualizados, deslocados de seu espaço e tempo; tempos e espaços diversos se
cruzam. O mero rosto de uma pessoa, o mascar chicletes na boca de um cego, uma
maçaneta que brilha indiciadoramente, um horto botânico que se faz infernalmente
encantado em seus detalhes aparentemente banais, um esbarrão entre os corpos de mãe e
filha, rompendo certa distância e indiferença instauradas, a visão impedida numa
despedida por um obstáculo ocasional, um dente que quebra, um jardim visto de
ângulos diversos, um elevador extradiegético que atravessa narrativas, uma mesa que
grita o mundo, uma formiga agigantada no movimento de um segundo, uma casa
enraizada e destacada da paisagem – monumentos de um instante.
Estes são alguns sinais que eclodem e ressaltam da ordem do particular, do
fragmento. Átimo “onde o continuum que aprisiona o objeto se imobiliza e o instante
cativo de uma historicidade viciosa, é liberado”.76 Dizendo a relação da obra com sua
crítica, as reflexões benjaminianas, discutidas por Sérgio Paulo Rouanet, podem, talvez,
ser trazidas para o contexto clariceano. Vejamos:
O particular tem que ser extraído de suas articulações temporais,
e espaciais, para tornar-se objeto de saber. O instante, para
durar, tem que ser extirpado de sua temporalidade própria; o
76 ROUANET, Sérgio Paulo. Édipo e o anjo: itinerários freudianos em Walter Benjamin. 2. ed. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1990, p. 13. (Col. Tempo Universitário, 63)
fragmento, para funcionar como texto, precisa ser
descontextualizado como uma célula que precisasse ser extraída
do organismo.77
Ainda trazendo tais dados para o universo de Clarice, percebe-se “que o falso
todo explode em fragmentos, e os fragmentos se salvam; o continuum de uma falsa
história se interrompe, e os instantes se liberam; a danse macabre dos falsos vivos é
reduzida à imobilidade e a dança dos vivos pode começar”.
A dança macabra de Macabéa, a morte-em-vida de Rodrigo SM (em A hora da
estrela), das protagonistas dos contos da escritora, não pactuam o falseamento da
história já escrita, em suas continuidades forjadas. O fragmento, que é sintoma e
resultado de uma situação alienada, traz, ao mesmo tempo, a força de poder significar
no espaço de um instante.
Na automatizada rotina da cultura em pedaços apresentada pela rádio relógio
repetidamente escutada pela personagem Macabéa, de A hora da estrela, a narrativa
reúne dois conjuntos de expressões dos “minutos de saber” divulgados pela emissora,
como aponta Suzi Frankl Sperber. Se um deles se insere na esfera da “cultura
dominante, feita de tecnologia, ciência e exploração econômico-social” (onde estão
postos termos como “‘elgebra’”, “eletrônico”, “cultura”, “renda per capita”, e outros
que levam a indagações dela do tipo “conde é príncipe?”), o outro “conjunto inclui
alegria, emoção provocada pela arte-música – através da qual Macabéa intui que o ser
humano pode ter outras dimensões, ‘que havia outros modos de sentir’ ”(SPERBER,
1983, p.156).
Voltaremos nossa atenção para o conto A mensagem, incluído em Legião
estrangeira e Felicidade Clandestina. Em dado momento do texto, a visão de um objeto
desestabiliza uma situação, objeto singular do que configura o instante. Momento de
passagem, de transição, para um rapaz e uma moça em seu deliberado afastamento do
lugar-comum de um mundo feito.
A mensagem: o pacto do futuro
E pessoas precisam tanto poder contar a história delas mesmas. Eles não tinham o que contar.
77 Ibid., p. 15.
Clarice Lispector – Felicidade Clandestina
Dois jovens adolescentes se encontram já nos primeiros momentos do conto A
mensagem, publicado em A legião estrangeira e Felicidade clandestina.78 O encontro,
de início, se dá e se firma, pelo que neles é reconhecido como heterogêneo, não
imiscível no espaço em torno: o lugar-comum do mundo feito, dos adultos. Dos adultos
e suas palavras-armadilha, falseadoras, palavras-ludíbrio, campo de atração compulsória
das forças centrípetas da vida social.79
Encontrando um seu par no mundo das armadilhas, ele, 16 anos, tem seu ponto
de contato com ela, 17, em torno da palavra angústia, catalisadora do sentimento
indefinível que os sufoca, de espera, recusa, desejo que não se sabe nem assume, oculto
numa avidez que repele, afasta, circunscreve, tolhe. Ele surpreendido falando em
angústia com ela, “logo com uma moça!”, escondendo o maravilhamento de enfim
poder falar sobre coisas que realmente importavam.
Em urgência, conversando sobre livros, evitando palavras usadas pelos outros
para enredar os jovens. Entendendo-se a partir do mundo masculino (“o fato dela
também sofrer significava o modo de se tratar uma moça, conferindo-lhe um caráter
masculino”). Ela aceitando o novo sexo sugerido pela angústia comum.
Movimento que se tornará complicado, com o ser mulher vindo à tona, com o
cansaço do seu orgulho de aceitar ser “condecorada com título de homem” e com o
movimento dele em evoluir e superar sempre na frente dela, incluída a palavra que os
atara: angústia.
O ressentimento entre eles que vem num crescendo, não rompe a ligação, pela
recusa mais ampla do grupo em torno – a sinceridade deles contra “a grande mentira
alheia”. A narrativa vai assim se desenhando em ondas de atração e repulsão, repulsão,
sobretudo, entre eles, deles para o mundo e seus campos de força de adesão a um
agregamento silencioso. Atração e repulsão entre presente e passado e um futuro
ansiado.
A recusa dos dois ao lugar-comum que os cerca, mal se resume na apatia e
indiferença que também embota, paisagem homogênea e monótona na falta de desejo
78
LISPECTOR, Clarice. Felicidade clandestina. 7. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1987. Citarei o conto, ao longo do texto, apontando apenas a numeração das páginas.
79 Para falar com M. Bakhtin. Cf. BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética. São Paulo: Hucitec, 1990.
entre eles. Nele, algo “como o repúdio que seres do mesmo sexo tem quando não se
desejam” ou como “homossexuais de sexo oposto” na impossibilidade de unir “em uma
só a desgraça de cada um” (p. 128). Como determinado no passado do princípio dos
tempos – “Por isso deixará o homem a seu pai e a sua mãe e se unirá a sua mulher: e
serão dois numa carne”.80
Eles são mostrados juntos, tentando reacender a compreensão inicial, “sem ao
menos se amarem”, fugindo da caçada que os mais velhos lhes faziam, “não para o
sexo”, mas para o mundo já criado. Planejando ser escritores, “detestavam a palavra
poesia como se fosse sexo”, recusando a entrega ao mundo já feito do que desde seu
nascimento “já era publicado com o maior despudor nos jornais de domingo” (p. 130).
O afastamento físico marcando de um modo geral a recusa a qualquer entrega.
No romance A maçã no escuro, o protagonista Martim titubeia ante as pedras
marcadas e contadas que a linguagem permite exprimir. Quanto aos dois jovens, estes
não pareciam querer abrir mão de uma “repugnância pela maioria das palavras, o que
estava longe de facilitar-lhes uma comunicação, já que eles não haviam inventado
palavras melhores” (p. 130). A moça e o rapaz parecem se entender vagamente em torno
de palavras como experiência e mensagem, variando tons e “sem aprofundar-lhes o
sentido” (p. 131). Não aprofundavam nada, não trocavam idéia alguma, assinala um
narrador que oscila impaciente, irônico e terno ante a teima superior dos personagens
(ele, narrador mais velho, certamente adulto).
[...] o tempo ia passando, confuso, vasto, entrecortado, e o
coração do tempo era o sobressalto e havia aquele ódio contra o
mundo que ninguém lhes diria que era amor desesperado e era
piedade, e havia neles a cética sabedoria de velhos chineses,
sabedoria que de repente podia se quebrar denunciando dois
impostores (p.131).
O passar do tempo é opresso, sem pressa, exaspera a urgência no esperado
acontecimento que não vem, no destino que não chega. E sem o momento perfeito do
“pacto horrível” do entendimento total em torno da palavra angústia, que ocorrera no
início.
80 Gênesis: 2-24.
O narrador do texto várias vezes se mostra em envolvimento com a trajetória
sem rumo dos personagens. As palavras do glossário restrito dos jovens são assinaladas
em itálico: evoluindo, outros, missão, verdade, superei, autênticos, ou, entre aspas,
ressaltando palavras desprezadas do mundo feito, como “coincidência”, “jovens”.
Olhando os personagens, o (adulto) narrador em certos momentos se exaspera,
enternecidademente.
Que é, afinal, que eles queriam? [...] O que é afinal, que
queriam. Queriam aprender. Aprender o quê? Eram uns
desastrados. Oh, eles não poderiam dizer que eram infelizes sem
ter vergonha, porque sabiam que havia os que passam fome.
Eles comiam com fome e vergonha. Infelizes? Como? Se na
verdade tocavam, sem nenhum motivo, num tal ponto extremo
de felicidade como se o mundo fosse sacudido e dessa árvore
imensa caíssem mil frutos. Infelizes? Se eram corpos com
sangue como uma flor ao sol. Como? Se estavam para sempre
sobre as próprias pernas fracas, conturbados, livres,
milagrosamente de pé, as pernas dela depiladas, as dele
indecisas mas a terminarem em sapatos número 44. Como
poderiam jamais ser infelizes seres assim? (p. 129)
No corpo, as marcas da transição não consumada, força e fragilidade em
extremos. No parágrafo imediato, a outra ponta da felicidade aguçada: “Eles eram muito
infelizes”. Cansados e expectantes, “o caminho os chamava” e eles não sabiam por quê
nem para onde (p. 129). E essa caminhada cega seria matéria de salvação.
[...] um mundo possível de ainda se salvarem seria o que eles
nunca chamariam de poesia. Na verdade, o que seria poesia, essa
palavra constrangedora? Seria encontrarem-se quando, por
coincidência, caísse uma chuva repentina sobre a cidade? Ou
talvez, enquanto tomavam um refresco, olharem ao mesmo
tempo a cara de uma mulher passando na rua? Ou mesmo
encontrarem-se por coincidência na velha noite de lua e vento?
Mas ambos haviam nascido com a palavra poesia já publicada
com o maior despudor nos suplementos de domingo dos jornais.
(p. 130)
A cristalização da palavra poesia é constrangedora também para a narradora. É
seguida, pressentida a possibilidade da poesia para além do eixo estreito de seu lugar-
comum social. O acaso, poesia. A possibilidade de ampliar o olhar e perceber um rosto,
talvez a cara nua de uma mulher ao acaso; ou mesmo o admitir a poesia entrelaçada a
signos poéticos antigos, “a velha noite de lua e vento”.
Mas a palavra poesia era isca dos mais velhos, assinala o narrador, e eles não
se deixariam caçar facilmente pelos adultos. O que só seria possível com muito carinho
e cautela, num momento preciso de distração, tática de adultos e espiões. Por enquanto
a umidade de um carinho afugenta os dois, ele engolindo a emoção alegre do primeiro
encontro com ela em torno da palavra angústia, “ele que de coração de mulher só
recebera o beijo da mãe”. Dessa outra que encontrara agora, ele, ao conhecê-la,
escondera com secura o maravilhamento de enfim poder falar sobre coisas “que
realmente importavam”. (p. 125)
O maravilhamento que ele negaceia e que logo vai faltar na relação entre eles,
na relação de cada um com o mundo. O mundo se lhes aponta ao nariz como um
monobloco, um elemento homogêneo despido de verdade, carente de significação. A
avidez desse mundo onde as coisas estão sem relação penetra mesmo logo entre eles
dois, tornando o contato em algo falseado e onde nem seus próprios corpos se põem em
relação, como é várias vezes assinalado o fato deles “nem mesmo se amarem” e a total
indiferença sexual de um em relação ao outro, em relação ao mundo em volta.
Nela só a lembrança vaga de uma paixão por um professor e nele a recordação
do sexo como algo a ser aliviado, desafogado (“chegara mesmo a lhe dizer [...] que um
rapaz precisa se livrar de certos problemas se quiser ter a cabeça livre para pensar”). (p.
128)
A casa, o chamado
A imagem da felicidade é inseparável da de redenção [...] Existe uma entente tácita entre as gerações passadas e a nossa. Sobre a terra, todos fomos esperados.
Walter
Benjamin
Na avidez dos seus dias iguais, silenciosamente um parece culpar “o outro de
não ter experiência” (p. 129) e ambos parecem se usar para “se exercitar na iniciação
que parecem cumprir”. (p. 128)
Mircea Eliade assinala, em O sagrado e o profano, a presença constante de
traços rituais e de elementos religiosos, mesmo em um mundo presente tecnificado,
laicizado. O autor ressalta também como no mundo religioso há necessidade de
estabelecimento de espaços heterogêneos, com a eleição de lugares dotados de aura
religiosa. Os rituais em torno disso podem culminar na instauração de um cosmos em
substituição ao caos anterior, ao amorfo da homogeneidade (cosmos que pode se
configurar no estabelecimento de um lar, por exemplo).
Em certos ritos iniciáticos de morte, é encenado o drama de uma volta ao caos
primordial, “para tornar possível a cosmogonia [...] para preparar o novo nascimento”.81
Segundo Mircea Eliade, em alguns rituais xamânicos ocorrem traços de verdadeiras
loucuras e uma crise total que concorre para a desintegração da personalidade. Tal
“‘caos psíquico’ é o sinal de que o homem profano se encontra prestes a ‘dissolver-se’ e
que uma nova personalidade está prestes a nascer” (ELIADE, p.89 ). Tais traços rituais
de “caos psíquico” eclodem em vários momentos das narrativas clariceanas, nos
momentos de alargamento perceptivo, a exemplo dos contos “Amor” e “A bela e a fera”
ou “a ferida grande demais”, dos livros Laços de família e A bela e a fera.
Em “A mensagem”, um objeto vai ressaltar aos olhos dos dois adolescentes
entediados, expectantes. O narrador anuncia explicitamente o evento (“o acontecimento
de que falarei”), situando-o no fim do período escolar, zona incerta de transição (“a
última aula os deixava sem futuro e sem amarras, cada um desprezando o que na casa
mútua de ambas as famílias lhes asseguravam como futuro e amor e incompreensão”).
(p. 132)
“Informes como eram” eles se vêem vagando por uma rua “da qual eles nem
sabiam o nome”, alheios a qualquer tradição. Entre eles, o fim das aulas quase cortara
também “o último elo”. (p.133) Na caminhada sem rumo, eles permutam as posturas
habituais de sexo e ela é vista agressiva (“dentes cerrados, olhando tudo com rancor ou
ardor”); ele “seguindo-a com docilidade e desamparo” sem nenhum apoio numa história
81 ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 159.
qualquer (“pouco tinha do homem da criação”).
Na rua sem nome, o rapaz é visto oscilando ainda entre “menino” e “moço”. Já
a exasperação dela procura a cólera informe no vento, na poeira, elementos de cifra no
lugar sem passado. “Era uma das ruas que desembocam diante do cemitério São João
Batista, com poeira seca e pedras soltas e pretos parados à porta dos botequins”. (p.
133)
Além dos sinais indiciadores inscritos nas pedras soltas e na poeira seca que
converge com a secura esturricada desse momento dos personagens, a sonoridade
sincopada batuca com determinação, com vigor o momento – ritmo de solavancos.82 A
marcar sintomaticamente o desembocar diante do cemitério, boca que vai dar nas portas
do lugar.83
Comprimidos numa calçada sintomaticamente estreita e esburacada – tão
acidentada quanto os solavancos traduzidos no período anterior – eles se vêem ficando
“naquele mínimo instante [...] de pé diante da casa, tendo ainda a procura no rosto”.
Eles apertados na calçada estreita entre uma casa e um ônibus que passa e parece estar
parado uma eternidade, nas várias páginas em que dura o instante espraiado.84 O ônibus
ameaçador, a casa imóvel, eles comprimidos.
Na frente deles (quase em cima) “uma grande casa enraizada”, uma indagação
maior que a pergunta que lhes aparece à cara (“a casa estava tão perto como se, saindo
do nada, lhes fosse jogada aos olhos uma súbita parede”).
A casa tem o peso do passado, o lastro da experiência: “uma grande casa
enraizada”. (p. 134) A construção ressalta monstruosa, a casa tornada mansão
esmagadora em seu peso, o peso do passado. Inversamente eles são infantilizados (“eles
não poderiam olhá-la sem ter que levantar infantilmente a cabeça, o que os tornou de
súbito muito pequenos, e transformou a casa em mansão”). (p. 134) Eles capturados e
tornados crianças. “Era uma construção que pesava no peito dos dois meninos”, ela, “a
casa do passado”.
Encarnação da angústia, a casa “como um boxeur sem pescoço”, em imagens
fortes, “uma casa como quem leva a mão à garganta”, realizando uma angústia física
mesmo, que não estava prevista por eles, tão longe de seus próprios corpos e das coisas
em volta, postas no presente amorfo, eles tão absortos no rumo do futuro incerto.
82 Aliterações em t, s, b, assonâncias, etc. 83 Elemento que pode remeter ao rito de morte onde se dá o caos psíquico ao qual se refere Mircea Eliade (1996). Aqui é recorrente também o recurso à personificação, típico do fantástico. 84 Quando há violenta diminuição na velocidade da narrativa. GENETTE, s/d., p. 38.
Angústia diante do sem cor das paredes saturadas dos tempos passados. Diante
da “Esfinge”, como é dito. A esfinge que não propõe enigmas, os desfaz. “Eu sou enfim
a própria coisa que vocês procuravam, disse a casa grande. // E o mais engraçado é que
não tenho segredo nenhum, disse também a grande casa”. E assinala um vertiginoso
entrecruzamento de tempos, onde tradição e futuro estão irremediavelmente atados.
“Rende-te sem condição e faze de ti uma parte de mim que sou o passado – dizia-lhes a
vida futura”. (p. 137)
Como em vários desses momentos de alargamento perceptivo em relação a um
lugar-comum cotidiano, também aqui, no contexto clariceano, os personagens se vêem
presos pelo fascínio e pelo horror. Vendo um mundo construído e vivido tão antes e fora
do seu próprio mundo auto-referenciado, fixando dolorosamente a diferença encarnada
naquela “coisa erguida tão antes deles nascerem, aquela coisa secular e já esvaziada de
sentido, aquela coisa vinda do passado”. (p. 135)
A falta de apoio presente no olhar desgovernado pela diferença esbatida faz ver
“a casa sem olhos, com a potência de um cego. E se tinha olhos, eram redondos olhos
vazios de estátua”. (p. 135) Como no conto Amor, emblemático no conjunto do texto
clariceano, o cego é o oráculo que vaticina não um futuro, mas um presente que não se
percebe, um passado esquecido, recalcado.
Além de que no texto clariceano é no escuro que se sabe, num contexto em que
a noite é muitas vezes pressentida como uma possibilidade extraordinária. Ao mesmo
tempo, os olhos possíveis da casa sem olhos remetem aos limites de auto-conhecimento,
de conhecimento do outro. Como está assinalado pela própria Clarice Lispector, no
prólogo do volume de contos A via-crucis do corpo: “Já tentei olhar de perto o rosto de
uma pessoa – uma bilheteira de cinema. Para saber do segredo de sua vida. Inútil. A
outra pessoa é um enigma. E seus olhos são de estátua: cegos”(p. 9).
Os olhos da casa são também os olhos da casa de Usher (“A queda da casa de
Usher”, de Edgar Allan Poe), conforme assinala Leyla Perrone-Moisés, em ensaio onde
dá todas as pistas desse intertexto.85 De maneira arguta e original, a autora do ensaio vai
apontando como várias marcas do gênero fantástico estão postas em “A mensagem”.
Entre elas, a ambivalência da possibilidade de uma explicação racional do que
se lê no texto “e uma incompreensão insuportável, presença de sobrenatural”. Ela
também demonstra como a casa se torna inquietante pelo recurso à personificação e
85 Cf. PERRONE-MOISÉS, 1990.
como o fantástico clariceano se delineia a partir de processos retóricos utilizados na
narração e descrição, dentre os quais o que consiste em “tomar ao pé da letra o sentido
figurado”.86
Marcas do fantástico no conto de Clarice também estariam no topos da casa
mal-assombrada e no caráter súbito de sua aparição, configurando “a irrupção do
inadmissível no seio da inalterável legalidade cotidiana”.
Porém, na reescritura que fez do conto de Poe, para uma série de clássicos
adaptados,87 Clarice afasta tons sobrenaturais do texto original. Em A mensagem,
delineia-se o que Perrone-Moisés assinala como a perversidade do fantástico em
Clarice, onde o leitor não é liberado ao final em nenhuma espécie de desfecho que dê
um ponto final à trama, seja este natural ou sobrenatural. “Sua história não é
extraordinária, e sim aterradoramente comum”.88
E o comum das coisas em algum momento pode ser aterrador, no cenário por
vezes sombrio do mal-assombrado dia diário. Onde uma luz indiciadora inaugura o mal-
estar (“era uma luz lívida e sem hora”). (p. 136)
O sobrenatural é o aqui e agora. Mas e o futuro? “Oh, Deus, dai-nos o nosso
futuro!”, imploraram os dois meninos, sem aceitarem o que vêem, o futuro construído
mesmo da matéria do passado e da vida presente deles, vida que em seu curso não
haveria de ter sido assim como lamenta a personagem, ternamente repreendida pela
narradora (“em sua avidez ela era injusta com uma infância que fora provavelmente
alegre”).
Como assinala bem Leyla Perrone-Moisés, ao longo do conto o narrador adulto
convida o leitor a identificar-se com ele, seja pela irritação ou pelo apiedamento
superior em relação à presunção dos dois personagens. Porém o mal-estar da estranheza
provocada pela casa contamina também narrador e leitores, com a diferença esbatida
desacomodando a segurança superior instaurada ante a inexperiência insegura, arrogante
dos dois garotos. “O leitor se desenfatua à medida que parece estar, como as
personagens, na ignorância do significado final da casa”.89
Ar seco, águas
86 TODOROV, T. Introduction a la littérature fantastique. Paris: Seuil, 1970 Apud PERRONE-MOISÉS, Idem, ibidem. 87 PERRONE-MOISÉS, op. cit., p. 169. 88 Idem, ibidem., p.168. 89 Idem, ibidem, p. 172.
Estou pensando nos tempos de antes de eu nascer... Mário de Andrade
Em determinados ritos de passagem considera-se que os jovens iniciados
esqueceram sua vida anterior, passando a ser conduzidos pela mão e sendo-lhes
ensinado novamente a se comportarem. Por vezes chegam a imitar recém-nascidos
chorando, nas cerimônias de nascer de novo.90
Na personagem mulher (moça, menina, criança) sua linguagem na ocasião do
momento revelador vai se resumir a um grunhido soluçante. A moça perde sua fala em
grunhido e choro. Martim também a perdera em seu rito de passagem em A maçã no
escuro. No caso da moça de A mensagem, esquecida de sua vida anterior, ela vai
reconstruí-la em choque, cegamente guiada pela casa às correspondências de sua vida.
Já nele, tornado menino indefeso, após o choque inicial no contato com a casa,
começa a ocorrer uma vibração de entendimento, um seu “sétimo sentido”
“enganchando-se na parte mais interior da construção e ele sentia na ponta do fio um
mínimo estremecimento de resposta”, cuidando “para não espantar a própria atenção”.
(p. 135)
Ao sinal de choro contido da moça, um lugar-comum do arsenal lingüístico
masculino adulto vai começar a marcar a distância entre eles, a partir da travessia
aparentemente completada pelo moço. Daí a conclusão que “meio que chorar nessa hora
é bem de mulher”. Tal bloco de palavras cristalizado vai servir como a tábua que o trará
“cambaleante à tona, e como sempre antes da moça” (p. 137).
A volta em relação ao momento brutal de aguçamento da percepção por parte
dele é marcada pela retomada clara das funções práticas do mundo em torno. A casa
deflagradora da crise é vista como uma mera casa com uma placa de “Aluga-se”, com o
sentido utilitário e prático re-inserido no mundo. E ele vê apenas um ônibus às costas e
a moça escondendo o rosto “do homem já acordado”: desinfantilizado, ele sai desse
homem feito. Esperando ela se recompor, “ainda vacilante, mas homem”. (p. 138)
Assim, “como se ele fosse os outros, socorrendo-se dos gestos que a maçonaria dos
homens lhes dava; ele que de mão ainda “incerta acende, sem naturalidade, um
90 ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 156.
cigarro”.91
Ela vai assinando os signos de mulher, aos poucos e sempre com desvantagem:
os gestos firmam a superioridade do ser homem. O ser mulher nela vem como erro e
pecado de nascença. O batom borrado, o colar azul parecem denunciar as marcas de
uma orgia de véspera: “Pois volta e meia ela era uma mulher”. O que se abafava pelo
acordo mudo entre eles na esfera da vida circunscrita ao universo masculino.
Mirando-a com cinismo, ele já metamorfoseado em sua máscara de homem,
sentindo a força da chave da casa no bolso. A despedida formal, repetindo os gestos
dos outros, ela trazendo em si as marcas do pecado original, “na falta de jeito de em tão
má hora ter seios”, escondendo “a própria nudez enfeitada”. (p. 138)
Ele é posto em cena cada vez mais determinado a mirá-la com ironia, com um
“cinismo reconfortante” ou “incrédulo com um interesse divertido”. Duvidando da tal
angústia dela, pensando precisar mesmo de um amigo: “Não, mulher servia mesmo era
para outra coisa, isso não se podia negar”, descarrilhando em baixaria de vez depois,
com “olhos pornográficos” que a acompanham afastar-se, não poupando “nenhum
detalhe humilde da moça”.
De qualquer tremor de terra, ele saía com um movimento livre
para a frente, com a mesma orgulhosa inconseqüência que faz o
cavalo relinchar. Enquanto ela saiu costeando a parede como
uma intrusa, já quase mãe dos filhos que um dia teria, o corpo
pressentindo a submissão, corpo sagrado e impuro a carregar. O
rapaz olhou-a espantando de ter sido ludibriado pela moça tanto
tempo, e quase sorriu, quase sacudia as asas que acabavam de
crescer. Sou homem, disse-lhe o sexo em obscura vitória. De
cada luta ou repouso, ele saía mais homem, ser homem se
alimentava mesmo daquele vento que agora arrastava poeira
pelas ruas do Cemitério São João Batista. O mesmo vento de
poeira que fazia com que o outro ser, o fêmeo, se encolhesse
ferido, como se nenhum agasalho fosse jamais proteger a sua
nudez, esse vento das ruas. (p. 138)
91 O mistério da iniciação revela as “verdadeiras dimensões da existência ao neófito” e ao introduzi-lo no sagrado, “a iniciação o obriga a assumir a responsabilidade de homem” (ELIADE, Mircea, 1996, p. 156). “O iniciado não é ‘apenas um recém-nascido’ ou um ‘ressuscitado’: é um homem que sabe, que conhece os mistérios, que teve revelações de ordem metafísica”. (Ibid., p. 153).
Como no princípio dos tempos da tradição, quando comeram a fruta da árvore
da vida, da ciência do bem e do mal, e “no mesmo ponto se lhes abriram os olhos” – a
vergonha deles, a culpa primeira dela.92 O corpo em submissão aos filhos que teria em
dor, sob a dominação do homem.93
A expansão forte e livre e superior dele vai tropeçar no fascínio ao vê-la correr,
para pegar o ônibus, mesmo que ela pareça mais “uma macaca de saia curta” (p. 140). E
uma outra crise sobrevém, sem que ele saiba de onde, deixando-o com a atenção
aguçada de novo, a auto-confiança ferida, os olhos pregados no ridículo dela – “e uma
experiência insondável dava-lhe a primeira futura ruga”.
[...] mal assumira a masculinidade, e uma nova fome ávida
nascia, uma coisa dolorosa como um homem que nunca chora.
[...] A moça era um zero naquele ônibus parado e, no entanto,
homem que agora ele era, o rapaz de súbito precisava se inclinar
para aquele nada, para aquela moça. [...] atolado no seu reino de
homem, ele precisava dela. (p. 140)
Feitos que eram da mesma carne pobre, como no princípio: “eis aqui o osso de
meus ossos, e a carne de minha carne”.94 O elemento seco retorna indiciador, ele
atolado na rua, tudo agora “estragado e seco como se ele tivesse a boca cheia de poeira”.
A mensagem finda “esfarelada na poeira que o vento arrastava para as grades do esgoto.
Mamãe, disse ele”. (p. 141)
A recusa ao passado e o lançar-se num futuro sem pontes figura o desejo dos
dois meninos, a maneira possível de não se deixar contaminar pelo arquivo de mentiras
do solo lugar-comum que os precede na vida do mundo, na cultura. Por outro lado, esse
afastamento parecerá acompanhar certo movimento em torno de uma racionalidade que
busca suprimir a incerteza do mundo, essa angústia “do contato vital com a realidade
sensorial e sensível”, fonte de incerteza, separando violentamente a “consciência
92 Gênesis: 3-7. 93 “Tu em dor parirás teus filhos, e estarás sob o poder de teu marido e ele te dominará” é determinado a Eva, que “em hebreu significa vida; aqui significa fonte de vida humana”. Gênesis: 3-16. 94 Gênesis: 2-23.
intelectual e os conteúdos sensíveis da experiência”.95
A busca se filia por vezes a certa atitude baseada na dúvida e recusa sistemática
da tradição herdada, eles que se acusam muda e mutuamente, pelo desajeito da falta de
experiência. A recusa da experiência, por outro lado, parece se filiar a uma
racionalidade marcadamente integrada ao universo masculino. De onde os nexos do
feminino apontam aqui e ali. Como uma falha no planejado, no previsível, carradas de
experiência a aflorar, quer se queira quer não.
Há uma idéia fixa cartesiana, segundo Olgária Matos, que é a de sair da floresta
e emergir à luz da certeza, fugindo do lugar sombrio, rumando à razão sem dúvidas.
Nessa saída, nesse livrar-se da umidade e da escureza da floresta,
Descartes faz tabula rasa dos conteúdos da consciência,
despojando o sujeito intelectual de quaisquer premissas
concebidas anteriormente, obrigando o sujeito à a-historicidade.
O eu assim conquistado é um eu des-iludido: ao mesmo tempo
arrancado das ilusões dos sentidos, da superstição do passado,
mas também desenganado, amargurado, desconsolado.96
O caminho penoso e necessário na afirmação da identidade será rumo ao
passado, num vertiginoso entrelaçar de tempos. A saída não será única como o
esperado, não há mensagem alguma a sintetizar a travessia. O segredo final não existe, o
mistério traspassa o texto, impedindo o amparo de uma moral da história, de uma
“mensagem” que dê alento ao leitor, aos personagens, na procura de um mundo novo.
Os instantes de alargamento perceptivo em Clarice Lispector, é sabido, são
instantes onde os nexos do mundo se perdem, onde por vezes falta sentido às coisas.
Um dos fios desencadeadores de crise em “A mensagem” é a visão da morte, a partir de
certa visão ruinosa da casa ressaltada, conforme assinala Leyla Perrone-Moisés.
O que, aliás, é bastante recorrente em Clarice, sendo tema central no conto O
jantar, de Laços de família, e uma verdadeira obsessão na novela A hora da estrela, por
95 MATOS, Olgária. Desejo de evidência, desejo de vidência: Walter Benjamin. In: NOVAES, Adauto (Org.). O desejo. São Paulo/Rio Janeiro: Companhia das Letras/Funarte, 1990, p. 289. 96 Ibid., p. 290.
exemplo.97 O próprio pó na secura do vento indicia o tempo morto da vida vivida na
homogeneidade indiferente e, ao mesmo tempo, a finitude inexorável da vida – “até que
te tornes na terra de que fostes tomado: porque és pó, e em pó hás-de tornar”.98
Em sua leitura, Perrone-Moisés aponta o ponto nodal do conto A mensagem
como sendo a falta, em sentido lacaniano, na vida lacunosa onde falta uma verdade,
onde a instância decisiva é a morte.99
A possibilidade de solução para as personagens é indicada com cautela pela
narradora do conto, como sendo o amor e a poesia, recusável e recusado, pelos dois, no
amorfo de um mundo retraído arranjado na impossibilidade de um mundo pleno.
Possibilidade desdenhada pelo desajuste entre a linguagem e a verdade impossível de
um mundo lacunoso.100
Verdade que falta, mas pode ser construída nas cifras do mundo. A conclusão
do rito de passagem arrancará os dois ao mundo homogêneo, ativando sentidos, dando-
lhes a percepção de uma condição e de uma identidade.101 Os personagens irão
experimentar o retorno a um lugar-comum social ressignificado pela travessia
entremeadas por duras buscas. Procura que lhes permitirá sentir em peso e leveza o
próprio corpo esquecido, do que se faz e do que prometem seus corpos com sangue
como uma flor ao sol. E o que prenuncia o ar seco: águas. A lembrar também dos
sonhos possíveis e tidos já nos tempos de antes de eles nascerem.
O final do conto mantém, no entanto, retesado o arco. Um uso do indireto livre
a reiterada repetição de palavras revela o desconforto do personagem, tentando
convencer-se de que fora apenas um instante e fraqueza e vacilação que já passara, que
essa sua nova máscara adulta estaria ajustada.
Ele precisava dela. [...] Para quê? Para lembrar-se de uma
cláusula? Para que ela ou outra qualquer não o deixasse ir longe
97 “Meu Deus, só agora me lembrei que a gente morre. Mas – mas eu também?” Cf. LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. 18. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990, p. 106.
98 Gênesis: 3-19. 99 PERRONE-MOISÉS, Op. cit., p. 176. 100 Verdade e linguagem são o tema central do conto, sugere a autora. 101 “[...] todos os rituais e simbolismos da ‘passagem’ exprimem uma concepção específica da existência humana: uma vez nascido, o homem ainda não está acabado; deve nascer uma segunda vez, espiritualmente; torna-se homem completo passando de um estado imperfeito, embrionário, a um estado perfeito, de adulto. Numa palavra, pode-se dizer que a existência humana chega à plenitude ao longo de uma série de ritos de passagem, em suma, de iniciações sucessivas [...]”. ELIADE, Mircea. Op. cit., 1996, p.147-148.
demais e se perder? Para que ele sentisse em sobressalto, como
estava sentindo, que havia a possibilidade de erro?[...] Nada.
Nada, e que não se exagere, fora apenas um instante de fraqueza
e vacilação, nada mais que isso, não havia perigo. // Apenas um
instante de fraqueza e vacilação. Mas dentro desse sistema de
duro juízo final, que não permite nem um segundo de
incredulidade senão o ideal desaba, ele olhou estonteado a longa
rua – e tudo agora estava estragado e seco como se ele tivesse a
boca cheia de poeira. Agora e enfim sozinho, estava sem defesa
à mercê da mentira pressurosa com que os outros tentavam
ensiná-lo a ser um homem. (p. 141)
Um pouco dessa poeira de vento, desse pó que enche a boca fica mesmo no
leitor, com o enigma irrevelado, a vacilação de uma identidade que parecia resolvida, e
a volta hilária e desconfortável para o mundo infantil, após o rito de passagem (“mamãe,
disse ele”). O parágrafo anterior revela sua nova vacilação em relação à moça que
desprezara segundos antes. Pois, percebe ele, num átimo, “ele precisava dela com fome
para não esquecer que eram feitos da mesma carne, essa carne pobre da qual, ao subir
no ônibus como um macaco, ela parecia ter feito um caminho fatal”. (p. 141)
Fica assinalada no rito cumprido e na promessa de outros tantos, uma identidade
que se quer una e inaugural, mas que é vacilantemente construída no embate com o
outro, na relação intuída com a experiência, num espaço existencial e de expressão
fundado dialogicamente. Espaço e tempo que não cabem numa moral da história, mas
num processo incessante que o atravessa, assumindo-se a dúvida e o indeterminado
como específico humano,102 tomada a amplitude de oscilação da significação como
espessura de linguagem e destino existencial.
Como dizíamos no começo, através da palavra de Sérgio Paulo Roaunet
(dialogando com Freud e Benjamin), o fragmento, que é sintoma e resultado de uma
situação alienada, traz, ao mesmo tempo, a força de poder significar o espaço de um
instante. À narrativa, cabe suturar a ligação entre o espaço vital da experiência
individual e da tradição, reavivando nos fragmentos as centelhas de instantes que
102 Para Merleau-Ponty, “o equívoco é essencial à existência humana, e tudo o que vivemos ou pensamos tem sempre vários sentidos”. (p. 180) Noutro momento o filósofo francês também irá assinalar o quanto é necessário “que reconheçamos o indeterminado como fenômeno positivo”. (p. 24) Cf. MERLEAU-PONTY, 1971.
possibilitam a cada um assumir a própria história. Estabelecendo como que um
reencontro e a possibilidade de inscrição da história individual na história coletiva,
captando no fragmento e no instante as energias libertárias aprisionados no continuum
histórico, no ceticismo desiludido, na atrofia da experiência. Encontrando toda moça em
todo rapaz.103
103 “Pela lente do amor/ Sou capaz de enxergar/ Toda moça em todo rapaz”. Lente de amor. Em GIL, Gilberto. CD A gente precisa ver o luar. Disponível em: <http://www.gilbertogil.com.br>. Acesso em 12 de agosto de 2006.
11 – A imagem de si mesmo: narrativa, dialogismo,
intersubjetividade104
O único modo de descobrir era, aliás, reconhecer Clarice Lispector - A maçã no escuro
Tratando de conceitos centrais da obra de Mikhail Bakhtin, Diana Luz Pessoa de
Barros assinala que o dialogismo recobre o princípio dialógico constitutivo da
linguagem e de todo discurso. Já a polifonia caracterizaria um certo tipo de texto,
“aquele em que o dialogismo se deixa ver, aquele em que são percebidas muitas vozes,
por oposição aos textos monofônicos que escondem os diálogos que os constituem”
(Barros, 1997, p.35), o que, podemos lembrar, está discutido de maneira fundante em
Problemas da poética de Dostoievski.
Em Bakhtin, a palavra é percebida como terreno habitado (Bakhtin, 1981, p.176)
como arena de luta retórica105 e nela há, poderíamos dizer, uma co-habitação de vozes
múltiplas onde não só há oposições como complementaridades, onde as posições
mesmo radicalmente opostas levam em conta e se constituem mesmo levando em conta
a palavra do outro. “O nosso discurso da vida prática está cheio de palavras de outros”
(Bakhtin, 1981, p.168). Como dirá Jorge Luís Borges, “ninguém pode articular uma
sílaba que não esteja repleta de ternuras e temores”106. Esse dado constituinte da
alteridade será tema e forma no romance A maçã no escuro, de Clarice Lispector,
publicado em 1961, do qual iremos abordar alguns aspectos, sobretudo a parte final da
narrativa, na qual o protagonista retorna ao agregamento social, após um afastamento da
vida em meio ao lugar comum social.
Em A maçã no escuro é contada a rarefeita história do engenheiro Martim107.
Em fuga por ter tentado assassinar sua mulher (como se saberá ao final do livro), isola-
104 O presente texto foi escrito a partir de capítulo da tese de doutorado Clarice Lispector e Os jardins da razão lugar-comum e reconstrução da experiência (MAGALHÃES, 2002) , sob orientação da professora Suzi Frankl Sperber e com financiamento da Fundação e Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, FAPESP. 105 Tomando a expressão aqui obviamente em sentido amplo. 106 BORGES, Jorge Luís. A biblioteca de Babel. Disponível em http://boticelli.no.sapo.pt/JLBorges.htm Acesso em 11 de abril de 2007. 107 Citaremos daqui para frente o romance pelas iniciais ME.
se e em seguida emprega-se como trabalhador braçal numa fazenda, terminando adiante
por se envolver com a dona da fazenda, Vitória e com sua prima viúva, Ermelinda. Mas,
se nenhum romance cabe num resumo, aqui isso se dá de maneira mais efetiva, com a
síntese passando longe dos contornos da narrativa. Afinal, como observa bem Benedito
Nunes o objeto verdadeiro da narração em A maçã no escuro é “a experiência interior
do protagonista”, o rompimento com “o passado e a sociedade, à busca de si mesmo, de
sua identidade pessoal” (Nunes, 1989, p.40).
Na obra de Clarice Lispector, há recorrência do topos do afastamento de
personagens que se apartam do convívio social, recobrando dados identitários
recobertos pelas máscaras sociais, ampliando a percepção da vida em sociedade,
fazendo sua experiência do mundo. Isso freqüentemente ocorre de maneira involuntária.
No caso, sobretudo, dos contos, tal afastamento, com viés por vezes de rompimento,
ocorre a contragosto de personagens aferrados a uma rotina ou ao medo de sair dela.
Mesmo nos romances onde há uma ampliação no tempo e espaço da experiência de
rompimento com o comum das coisas, como em A paixão segundo GH, a viagem
introspectiva ocorre de maneira involuntária.
Mas, no caso do romance A maçã no escuro, se desenha em relação ao
personagem Martim um itinerário que ganha foros de tentativa de reconstrução pessoal,
numa procura deliberada. Martim busca um ser e uma linguagem indivisas, uma
aproximação intuitiva e não raciocinante da vida. “Ninguém ensinara ao homem essa
conivência com o que se passa de noite, mas um corpo sabe” (ME, p.16). Num primeiro
momento da narrativa, em contato com a terra e isolado, o personagem, como percebe
Benedito Nunes, vai seguir um “ciclo de disciplina ascética: em vez da fala, a mudez,
em vez do pensamento abstrato, a percepção; em vez da identidade pessoal e das
relações intersubjetivas, a impessoalidade da consciência, agregada à natureza e
solidária das coisas” (Nunes, 1989, p.42). No seu esforço em perder a linguagem dos
outros, Martim percebe, olhando as plantas e os bichos, “que um ser não pensa e não se
mexe e no entanto está todo ali”(ME, p.18).
Sua reconstrução do mundo começa num domingo, dia de descanso no Gênesis,
o que tem algo talvez com a tentativa do personagem em afastar-se radicalmente do
lugar-comum social– na porção em que este traz uma identidade comprometida,
cindida, alienada, além da relação que guarda com a linha mística que atravessa a
narrativa108. Vamos tentar acompanhar os momentos finais do itinerário de Martim,
onde ocorre a também recorrente volta ao normal das coisas, o retorno ao convívio
social, à comunicação com o mundo das relações rotineiras e práticas. Sua recusa do
mundo feito é atravessada por um desejo que tudo rejeita e quer109. Que parte de um
gesto, de uma escolha que antes de mais nada é uma recusa. Mas que traz no seu
horizonte sempre o impulso em direção a um outro, que por outra via é rejeitado,
repugnado, num texto onde as várias vozes sociais vão sutilmente emergindo,
polifonicamente.
Recusando o familiar, buscando instaurar um espaço heterogêneo prenhe de
significação, o personagem terá o tempo todo como referência um lugar comum social,
que será visto em subterrâneo diálogo. Assim: “quando um homem cai sozinho num
campo, não sabe a quem dar sua queda” (ME, p.22). Ou então: “Olhou (...) ao redor,
como quem procura o contraponto de uma mulher” (ME, p.29). Ou ainda, em dois
trechos: “já que sendo agora um homem, ela se tornara uma mulher” (ME, p.110);
“Como viciados que se reconhecessem, ele acabara de ver nela ele próprio. O que foi
desagradável” (ME, p.248).
O não entendimento lógico, racional, refletido, faz parte do percurso do
personagem, do itinerário da narrativa. Sentindo-se com enorme coragem por recusar
sua anterior inteligência, Martim procura as larguezas em outras esferas. O que se dá
num deliberado afastamento da convivência social e suas relações fossilizadas, mas se
nutre de um solo cultural, numa negação do entorno que traz em si uma resposta que se
constrói em diálogo com o ambiente negado. No seu renascimento forjado, o narrador
percebe que “ele nunca estivera tão perto da promessa que parece ter sido feita a uma
pessoa quando esta nasce” (ME, p.48). Descobre ainda que “para tudo o que pode
acontecer um homem nascera” (ME, p.54). Esse renascimento pela nova vida criada no
isolamento parece guardar proximidade com ritos iniciáticos. Mircea Eliade assinala
que o conhecimento sagrado e a sabedoria, por extensão, em algumas sociedades estão
relacionados ao “simbolismo obstétrico, ligado ao despertar da consciência suprema”
(ELIADE, 1996, p.161). Tal conhecimento aqui é viabilizado pelo apartar-se inicial de
Martim.
A verdade no sentido incômodo de revelação sem concessões da teia social
108 Benedito Nunes percebe a tensão entre uma linha mística, no romance, e uma linha romântica. Cf. NUNES, 1989, p.47. 109 “meu cashcoeur mallarmaico/ tudo rejeita e quer” , diz a canção A prosa impúrpura do Caicó, de Chico César. CD Aos Vivos. São Paulo, Velas Produções Musicais, 1995.
também vai apontar na atuação de Martim, e na sua percepção aguçada do quanto os
laços sociais evitam estranhar, ou reconhecer o que se deseja. Pois, como é dito
repetidamente no texto em relação a Martim e aos outros, a “verdade dos outros tinha
que ser a sua verdade, ou o trabalho de milhões se perderia. Não seria esse o grande
lugar comum a todos?” (ME, p.288). Walter Benjamin assinala que, para Proust, irá
depender do acaso a possibilidade de “cada um alcançar uma imagem de si mesmo,
tornar-se senhor da própria experiência” (Benjamin, 1980-b, p.31). Em toda a obra de
Clarice, a chance de ultrapassar as amarras e limites das verdades aceitas, parece estar
traduzida na fuga e transgressão prevista no instante. Veículo possível de se viver uma
felicidade clandestina, o instante parece ser a hora fugaz e profunda de desrecalque,
onde se pode fruir num minuto o que não se pode viver ordinariamente.
São momentos que não se narram, acontecem, acontecem
entre trens que passam ou no ar que desperta nosso rosto e
nos dá o nosso final tamanho, e então por um instante somos
a quarta dimensão do que existe, são momentos que não se
contam. (...) se em um instante se nasce, e se morre em um
instante, um instante é bastante para a vida inteira”(ME,
p.102).
Estudando A hora da estrela, Suzi Sperber assinala como o instante se apresenta
na narrativa “desligado de uma compreensão de totalidade. É como se vive a vida do
indivíduo separado de si mesmo”, alienado. Segundo a autora, “é vivendo plenamente o
instante que, de repente, redescobre sua identidade. São instantes plenos de realidade e
de profundidade vital (SPERBER, 1983, p.158-159).
Martim, em seu itinerário de disciplina ascética, vai se entregar a um prolongado
estado de disponibilidade para o olhar. “No terreno, através da névoa rasa, viu com
curiosidade infantil uma terra suja e seca, endurecida pela madrugada. O homem não
antecipou nada: viu o que viu. Como se olhos não fossem para concluir mas apenas para
olhar” (ME, p.76). Essa abertura do olhar prevê uma não interferência, um movimento
para o silêncio, paradoxalmente construído penosamente pela palavra, na trajetória
árdua inscrita na narrativa, no próprio processo de construção do livro, tantas vezes
reescrito110. No texto, um silêncio que se fala (“Preferia o silêncio intato. Pois o que se
bebe é pouco; e do que se desiste se vive”) (ME, p.165). O indizível se configura na
trama e se realiza na dramatização da linguagem.
(...) mas era coisa que estava acontecendo, e não seria a ausência
de palavras que faria deixar de existir o que estava existindo, e a
planta sente quando o vento é escuro porque ela estremece, e o
cavalo no meio do caminho parece ter tido um pensamento, e
quando os ramos da árvore se balançam no entanto não houve
uma só palavra”(ME, p.313).
Mas, como em A paixão segundo GH, o indizível se corporifica nas entrelinhas
de onde a linguagem não alcança e, precariamente, se faz através dela. “O indizível só
me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem. Só quando falha a
construção, é que obtenho o que ela não conseguiu” (LISPECTOR, 1986, p.180). Em A
maçã no escuro, a palavra, percebida por um lado como irremediavelmente afastada da
coisa-em-si, é vista, por outra via, como estando atada mesmo ao fulcro da vida, tesa e
tensa, oscilante.
ele queria a palavra. Enquanto fosse quem era estaria preso à sua
própria respiração à espera de que ela o unisse a si mesmo,
vivendo com essa palavra na ponta da língua, com a
compreensão quase por se revelar, nessa tensão que termina por
se confundir com a vida, e que é ela própria, acontece que ele
queria a palavra. E agora que conhecia a oscilação de um amor
humano, nunca estivera tão perto dela (ME, p.158).
Lastro de ligação vital com a tradição, dado de inscrição da identidade, a palavra
110
Oito vezes reescrito, informa Clarice, em cartas, informação que está lá na orelha da edição com a qual estamos trabalhando. Estudando os processos de criação da autora em manuscritos do conto A bela e a fera, percebi o quanto o texto é reescrito e retomado, ao contrário do que indicariam seus outros depoimentos e da crítica em geral, no sentido de que seu processo consistiria apenas em fixar fragmentos escritos em momentos de inspiração.Cf. MAGALHÃES, Luiz Antonio Mousinho. Clarice Lispector e o Germe da Escritura. IV Encontro Internacional de Pesquisadores do Manuscrito e de Edições: Gênese e Memória. Anais. Org. Philippe Willemart. São Paulo, ANNABLUME/ Associação de Pesquisadores do Manuscrito Literário, 1995. p.410-416.
também é signo de alteridade, diálogo ininterrupto. E lembrança de que toda
subjetividade é intersubjetiva (conforme a lição de Bakhtin)111.
Palavra e salvação
Após um itinerário de reinvenção da linguagem, de reinvenção da vida – Martim
vai lentamente se dirigindo no sentido de se agregar novamente a um lugar comum
social. A lembrança de seu filho vai lhe servindo de ponte na travessia de volta, um
retorno da negação da vida social, da negação da linguagem (“com o filho o amor pelo
mundo o assaltara”). (ME, p.158). Pois – “uma criança era o lugar comum de um
homem, ele queria participar dela” (ME, p.195). Ao saber que sua mulher escapara à
tentativa de assassinato e que ela escondera do filho deles o que o pai fizera, Martim se
comove e usa repetida e mecanicamente as palavras “valorosa e boa”, secas e ocas, mas
“Martim teve um prazer inesperado em usar as palavras que valiam no mundo: valorosa
e boa. Eram palavras lindas – pois a existência de palavras ocas como essas haviam
salvo a alma de seu filho” (ME, p.290).
Depois de assinalar sua radical cisão, o personagem finda abrindo mão do vago
heroísmo instaurado em sua errância. “Tudo então que em Martim era individual
cessou. Ele só queria agora se agregar aos salvos e pertencer” (ME, p. 211). Fará isto
tropeçando nos escolhos dos mais óbvios fatores de legitimação da teia social, se
deixando levar na voragem das forças centrípetas da vida social112. Percebendo, no
entanto, e também sentindo, os dados todos que fazem o jogo, partida da qual ele forjou
uma ausência que retorna.
Restos transfigurados de civismo e de colação de grau, leiteiros
que não falham e entregam diariamente o leite, coisas assim que
parecem não instruir, mas instruem tanto, uma carta que nunca
se pensou que viria e que vem, procissões que dão voltas lentas
pela esquina, as paradas militares, onde uma multidão inteira
111
Conforme assinala Diana Barros, “a intersubjetividade é anterior à subjetividade, pois a relação entre os interlocutores não apenas funda a linguagem e dá sentido ao texto, como também constrói os próprios sujeitos produtores do texto” (BARROS, 1997, p.31).
112 E forças centrípetas da vida verbo-ideológica, conforme Bakhtin. BAKHTIN, 1990. p.81.
vive da seta que lançou – aquele homem estava recuperando
tudo de cambulhada. A memória termina voltando (ME, p.295).
Merleau-Ponty irá assinalar que “a reflexão não pode nunca fazer com que eu
deixe de perceber o sol a duas centenas de passos, num dia de bruma, de ver o sol ‘se
levantar’ e ‘se deitar’, de pensar com os instrumentos culturais que prepararam minha
educação, meus esforços precedentes, minha história” (MERLEAU-PONTY, 1971,
p.77). O percurso de Martim será completo, com um retorno à experiência, a
constituição de sua subjetividade se assumirá fortemente intersubjetiva.
No capítulo final de A maçã no escuro, acontece a prisão de Martim e seu
retorno definitivo à ordem social vigente. No texto, vê-se o esforço mesmo do
personagem em “voltar a pertencer”, abandonando o movimento transgressivo
delineado em seu itinerário para fora do campo de força das estruturas sociais, inclusive
a partir da linguagem.
Nesse capítulo final há, para falar com Bakhtin, uma verdadeira saturação de
expressões fossilizadas da língua (“aí hein”; “o que passou, passou, vamos pra frente”),
de expressões gestuais, de dados culturais lugares-comuns (a lembrança da mãe dando
vexame ao “empurrar” comida em excesso para as visitas), baixarias de viés kitsch no
parágrafo onde a saturação dos estereótipos verbais explode, na passagem do capítulo
bem conhecido e que trata da esperança.
--Você sabe que o amor é cego, que quem ama o feio bonito lhe parece, e
que seria do amarelo se não fosse o mau-gosto? E que em casa de ferreiro
espeto de pau, e quem não tem cão caça com gato, e boca-não-erra? disse o
pai descarrilando um pouco mais, não falta muito para começar a contar o
que fazia com mulheres antes naturalmente de ser casar com tua mãe. Você
sabe que esperança é duro combate que aos fracos abate, e aos fortes etc.?
(ME, p.319).
Nos contos, a volta de personagens dos movimentos de fuga do agregamento à
percepção comum é estonteada, culpada. Como lajes geológicas, que mal se acomodam
após um abalo sísmico e ainda trazem à flor da terra seus traumas. Aqui, no entanto, a
volta da dilatada experiência com o alargamento da percepção se faz serena. Mas
também não se trata propriamente de uma experiência “epifânica” como em GH ou nos
contos113.
Em A maçã no escuro, marca-se um dado diferencial na forma do humor
corrosivo que vai ironizando todo o percurso de volta, todos os nichos de cimento social
aos quais o personagem retorna. E tal processo irônico se dá muito pela deformação da
linguagem média, que termina por revelar “de maneira abrupta sua inadequação ao
objeto” (BAKHTIN, 1990, p.188), o que ocorre na saturação de lugares-comuns.
Estudando A paixão segundo GH, Arnaldo Franco Jr. observa que o “romance
(...) retorce os lugares-comuns sobre bom e mau gosto, kitsch e sublime, enfatizando a
pequenez e a vacuidade do universo burguês e racionalista no qual GH se encontra
mergulhada”. Para o autor, o romance “inverte a pressuposta sinonímia entre classe
social e padrão de gosto, mostrando que ela é um preconceito. Deste modo, questiona a
supremacia dos valores médios, apontando para a sua alienação e violência” (Franco Jr,
1993, p.77).
Noutra via, Berta Waldman e Vilma Arêas ressaltam que, em A maçã no escuro,
“a linguagem (...) é empurrada para uma materialidade de coisa, de corpo, que ela não
tem”. E acrescentam especulando que, talvez, “como diz Sartre, essa materialidade de
linguagem se encontre no lugar-comum” (WALDMAN & ARÊAS, 1992, p.144).
O retorno ao familiar no romance, ao tempo e espaço de convivência social, é
lucidamente crítico, mas não traz, nesse momento, um distanciamento de feição radical,
pois este impediria o retorno, não configuraria um retorno. “Procuremos ver como um
objeto ou um ser começa a existir para nós pelo desejo ou pelo amor e
compreenderemos melhor por isso como objetos e coisas podem existir em geral”
(MERLEAU-PONTY, 1971, p.65). O retorno é então crítico e emocionado. Os dados e
cacos daquela cultura precária, vistos em suas distorções ideológicas, em suas metáforas
falsas, em suas relações falseadas, fazem parte intrinsecamente da vida do personagem.
“Um trem de ferro é uma coisa mecânica, / mas atravessa a noite, a madrugada, o dia, /
atravessou minha vida, / virou só sentimento”114.
Para Lúcia Helena, “o livro inicia o leitor numa espécie de humilde e precioso 113 “no sentido místico-religioso, epifania é o aparecimento de uma divindade e uma manifestação espiritual (...) Aplicado à literatura o termo significa o relato de uma experiência que a princípio se mostra simples e rotineira, mas que acaba por mostrar toda a força de uma súbita revelação. É a percepção de uma realidade atordoante, quando os objetos mais simples, os gestos mais banais e as situações mais cotidianas comportam iluminação súbita (...)e a grandiosidade do êxtase pouco tem a ver com o elemento prosaico em que se inscreve o personagem” (SANTA’ANNA 1973: 187). 114 PRADO, Adélia. “Explicação da poesia sem ninguém pedir”. In: Bagagem. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.
saber do qual apenas alguém se pode apossar após abdicar da ânsia grandiosa do
absoluto”. Nele, parece vaticinado que “o encontro não se dá não como plenitude ou
totalidade perene, mas como dádiva do instante” (HELENA, 1992, p. 2)
Observando A hora da estrela, Sônia Ramalho de Farias assinala que, ao
atualizar o sema da semelhança, “o texto clariceano busca um possível efeito de
verossimilhança, no sentido de assegurar ao leitor o entendimento do universo narrado,
a fim de que a significação textual não se perca na total opacidade. No movimento
oposto, rompe-se com o efeito da verossimilhança, desnudando a ficção como produção
simbólica, só indiretamente conectada com o referencial” (FARIAS, 1992, 8-9). Em A
maçã no escuro, os semas da semelhança (narrador clássico) comparecem em meio às
marcações dos semas da diferença (que rompem com o efeito de verossimilhança),
como em A hora da estrela.
O texto de A maçã no escuro não finge limpar os céus da poluição ideológica
inevitável, encarna-se entre os escombros do que há. Roland Barthes assinala que
“alguns querem um texto (...) sem sombra, cortado da ‘ideologia dominante’; mas é
querer um texto sem fecundidade, sem produtividade, um texto estéril”. Para o autor, o
texto “tem necessidade de sua sombra: essa sombra é um pouco de ideologia, um pouco
de representação, um pouco de sujeito (...); a subversão deve produzir seu próprio claro-
escuro” (BARTHES, 1996, p.44).
Como assinala Roberto Corrêa dos Santos, não se pode ligar a “obra de Clarice
às
retóricas da destruição literária. Não lhe interessa zerar o texto, e sim
dispará-lo. Fazer a língua ela mesma, nausear-se. Desse imenso vômito,
dessa convulsão do corpo por ter de expressar, resulta um gasto e um uso.
Gasto e uso de energia, gasto e uso dos detritos, que enfim ganharão a forma
devida. A forma aí exacerba a sua característica de ser um movimento em
direção ao exterior. Torna-se o próprio exterior, a exposição que não
esconde os andaimes, o ‘antes da obra’, nem o trabalho, nem o suor. O
prazer e a beleza implicam a história do fazer. O ofegante exercício de ir
dispondo, acertando, corrigindo. A beleza recusa o sentimento plácido das
artes findas. A beleza é registro do tumulto. É a sombra da mesa cheia de
papéis soltos (SANTOS, 1991, p.60).
Em A maçã no escuro a condição alienada é desconstruída, porém ao
personagem Martim não é possível nem parece lhe interessar olhar completamente de
fora. É ali naquele espaço social e historicamente construído que ele pode inserir,
dialogicamente, o que quer que seja – percebe o narrador, revela a narrativa. Quanto ao
personagem, cessada a obsessão pelo supremo ser115, mais que impossibilitado, Martim
se vê desinteressado mesmo em olhar as coisas de fora. Ele está dentro do mundo. E é
ali a partir do lugar comum social e de elementos limitados que o personagem e, mais
amplamente, a narrativa, vai poder marcar a largueza maior ou menor de seu gesto de
escritura. E, em maior ou menor grau, lançar mundos no mundo116.
Nas sociedades não religiosas, o retorno a uma situação é visto com pessimismo,
pois, quando deixa de ser “um veículo pelo qual se pode restabelecer uma situação
primordial e reencontrar a presença misteriosa dos deuses, quer dizer, quando é
dessacralizado, o Tempo cíclico torna-se terrífico; revela-se como um círculo girando
até o infinito” (Eliade 1996: 95)117. Porém, o homem religioso vê a repetição como
possibilidade de renovação e transfiguração “o encontro com o mesmo tempo mítico da
origem, santificado pelos deuses que representa maior esperança” (ELIADE, 1996,
p.94). Como ressalta Lúcia Helena, o empreender “uma tarefa circular de uma nova
procura em que se deve indefinidamente reentrar, não é focalizado por Clarice como um
fardo, mas como uma condição inalienável do ser” (HELENA, 1992, p.2).
Na própria narrativa, predomina “a figura da circularidade, em tudo diversa do
modelo de desenvolvimento linear de enredo”118. Em A maçã no escuro, ocorre o que
Silviano Santiago assinala em relação às outras narrativas da autora, onde a trama
novelesca “não reflui da, nem conflui para a história literária escrita em moldes
oitocentistas, para a história como entendida naquele contexto”. Assim é vista como
“um rio que inaugura seu próprio curso. A literatura é literatura – eis a fórmula mais
115 GILBERTO GIL. “Cessar da obsessão pelo supremo ser/ nascer do prazer pelo social”. Logo versus logo. Disponível em http://www.gilbertogil.com.br/sec_discografia_view.php?id=25 Acesso em 10 de abril de 2007. 116 “Mas os livros que em nossa vida entraram/ são como a radiação de um corpo negro/ Apontando para a expansão do universo/ Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso/ (E, sem dúvida, sobretudo o verso)/ é o que pode lançar mundos no mundo”. VELOSO, Caetano. Livro. CD Livro. Polygram, 1998. 117 Mircea Eliade assinala que, no judaísmo e cristianismo, é consagrada a possibilidade de santificação da história, com passagem do tempo cósmico para tempo histórico, ultrapassando-se a noção de tempo cíclico. In: O sagrado. Eliade, 1996, p.95. 118 Chiara, Ana Cristina Rezende. O cruel realismo de O lustre. In: LISPECTOR, Clarice. O lustre. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1992. p.2.
simples e mais enigmática para apreender o sentido da aula inaugural de Clarice”
(SANTIAGO, 1997, p.12).
Estado de graça
Ainda nos finais de A maçã no escuro Martim oscila explosivamente entre dizer
sim ou não, entre aderir ou não à lição de esperança vinda da lembrança da voz do pai.
Era pecado não ter esperança, era um luxo, aceita algo relutantemente (“em nome dos
outros!”). Mas, percebe, “não amar era a natureza errando” (ME, p.317).
E reverte as coisas, concluindo que sua esperança escandalizaria os otimistas, eles a
tentariam fuzilar “porque a esperança é assustadora. Há que ser homem para ter
coragem de ser fulminado pela esperança” (ME, p. 318).
Na impossibilidade de suturar um mundo dilacerado, resta pegar em estilhaços o
instante e cumprir a tarefa de significá-lo, falar seu silêncio nem que seja através de uma
escritura que ambiciona o calar-se para não trair mesmo tal meta. Numa das crônicas do
volume A descoberta do mundo, intitulada “Estado de graça”, a narradora alude a tal
estado tantas vezes tematizado em seus textos. Momentos raros onde “se tem o mundo
como este é”, como se o anjo da vida tivesse vindo anunciá-la, onde, através de um
nimbo que não é imaginário, se atinge, se vê a beleza profunda de outra pessoa. Quando
“ganha-se um corpo e uma alma e uma terra”. Na segunda metade do texto, a narradora
reflete sobre o esvaziamento do estado de graça. Lacônica, mas afirmando ser bom
também que o estado de graça não nos seja dado com freqüência.
Se fosse, talvez passássemos definitivamente para o outro lado
da vida, que também é real, mas ninguém nos entenderia jamais.
Perderíamos a linguagem em comum. //Também é bom que não
venha tantas vezes quanto eu queria. Porque eu poderia me
habituar à felicidade (..) Habituar-se à felicidade seria uma
perigo. Ficaríamos mais egoístas, porque as pessoas felizes o
são, menos sensíveis à dor humana, não sentiríamos a
necessidade de procurar ajudar os que precisam (LISPECTOR,
1992, p.91).
O estado de graça permanente seria o tornar-se “contemplativa como os
fumadores de ópio” o que, para a narradora, seria uma fuga imperdoável do destino
humano, “feito de luta e sofrimento e perplexidade e alegrias menores”. No estado de
graça, não há riso no rosto, nem precisa haver: o corpo todo ri. Depois da graça, “a
condição humana se revela em sua pobreza implorante, aprende-se a amar mais, a
perdoar mais, a esperar mais. Passa-se a ter uma espécie de confiança no sofrimento e
em seus caminhos tantas vezes intoleráveis” (LISPECTOR, 1992, p.90).
No período que encerra a crônica, o narrador relembra dias áridos e desérticos:
trocaria anos de vida por minutos de graça. Um post-scriptum sucede ao fim do texto:
“Estou solidária, de corpo e alma, com a tragédia dos estudantes do Brasil”. Lido assim,
no livro, o que veio do contexto do jornal diário, torna-se enigmático. Recuperando a
data, 6 de abril, folheando-se o livro ao contrário, o ano: 1968. Tempo de edição do AI-
5, repressão aos movimentos político-estudantis, com a morte emblemática de um
estudante e os protestos desencadeados, inclusive com a participação nas ruas da
escritora Clarice Lispector, numa manifestação de solidariedade aos estudantes e
exigência de providências ao governador do Estado da Guanabara, pressionado pelos
militares119.
O percurso é difícil, a travessia é penosa e a vida é feita dessa travessia, não se
pode encurtar o caminho e chegar antes, como dirá a narrativa de GH. O sentido de
viver vai ter a ver com essa errância de traços místicos, esse lugar-comum precário, com
suas dores, prazeres e suas verdades apequenadas que, na difícil travessia da escritura,
nascem de uma dificuldade própria do viver, própria do escrever que gera atrito de onde
partem lascas como aços espelhados – de onde brilham certos instantes.
Para a escritora, parece haver a dificuldade de sentir tanto e tão intensamente –
ricamente, luxuosamente, e voltar ao cenário da pobre vida diária, no que esta tem de
árdua, de amesquinhada: naquela hora o sufocado amor e o sonho dos estudantes do
Brasil. Escrito antes da crônica, no final dos anos 50, A maçã no escuro tem aquele
outro mundo desenhado por Martim como a abertura para um universo menos
condicionado, que vai se revelando como um reencontro com a experiência não
alienada. Porém, permanece na obra clariceana o não apontar para uma redenção, que
seria promissora, mas também falseadora, no forjamento de uma salvação coletiva que
projetaria no texto um sentido de apaziguamento (BARTHES, s/d-b, 39).
119
Cf. VENTURA, Zuenir. 1968 – O ano que não terminou. São Paulo: Círculo do Livro, s/d.
Ainda na crônica aludida, a narradora ressalta que o estado de graça é apenas
uma “pequena abertura para uma terra que é uma espécie de calmo paraíso, mas não é
entrada nele, nem dá o direito de comer os frutos de seus pomares” (LISPECTOR,
1992, p. 91). Apartado do mundo social, o personagem Martim vai aderir novamente a
ele, mas vai voltar com o que foi ferido no olhos. Se o mundo não pode ser reparado, ao
menos ele poderá ser recriado – caos e cosmos (ELIADE, p. 25, 26, 31).
Em A fenomenologia da percepção, Merleau- Ponty assinala que “se (...) chama-
se de mundo o que se percebe e de pessoa aquilo que se ama, há um gênero de dúvida
sobre o homem, e de maldade, que se torna impossível” (MERLEAU-PONTY, 1990,
p.66). Recuperar todos os entulhos de palavras gastas, falseadas, não será para o
protagonista de A maçã no escuro uma queda – mas uma conquista. Assim como chegar
ao ponto de retorno de modo a reconhecer a palavra “assassinato” amarrada num centro
precário qualquer. E a verdade da palavra amor, na lembrança da existência de um filho
no mundo.
No estado de graça, descobrem-se mundos e, noutros mundos vizinhos, sofrem
os meninos, os estudantes do Brasil. No estado de graça e náusea da personagem Ana
do conto “Amor”, do livro Laços de família, desperta-se justamente para o mundo
esquecido das dálias e tulipas e também para o mundo das crianças que passam fome. O
estado de náusea ressalta a ferida do mendigo de “A bela e a fera ou a ferida grande
demais”, do livro A bela e a fera, aflora a fome tamanha da vida vazia e secada de uma
mulher perdida em sua identidade para o mundo das festas e colunas sociais.
Ressaltando a conclusão de A maçã no escuro no sétimo capítulo, onde se
reúnem sete personagens, Gilberto Figueiredo Martins lembra que o número sete guarda
“o sentido de mudança depois de um ciclo concluído” sendo “número da conclusão
cíclica e de sua renovação” (MARTINS, 1996, p.134). Rastreando valores arquetípicos,
Chevalier e Gheerbrant ressaltam que a maçã simboliza um meio de conhecimento,
sendo, no entanto, por vezes fruto da Árvore da Vida, noutras vezes da Árvore do
Conhecimento do bem e do mal. Assim, representa um “conhecimento unificador, que
confere a imortalidade, ou conhecimento desagregador, que provoca a queda”
(CHEVALIER& GHEERBRANT, 1989, p.572). Os alvéolos, que guardam as sementes
no interior da fruta formam uma estrela de cinco pontas, sendo tido pelos iniciados
como “fruto do conhecimento e da liberdade”. Para eles, comer da maçã “significa
abusar da própria inteligência para conhecer o mal, da sensibilidade para o desejar, da
própria liberdade para praticá-lo”120, o que traz algo do tenso equilíbrio do romance A
maçã no escuro e da travessia de seu protagonista.
Não há exatamente o que concluir dessa travessia de Martim, que se faz como
tal, um processo. Regina Pontieri atentamente assinala que procurar em Clarice uma
moral da história seria aniquilar o dinamismo numa escritora “que faz do paradoxo o
meio de apreensão do real como convivência dinâmica de elementos antagônicos”121.
Num mundo reificado, talvez não haja lugar para a realização plena e que, em vez de
plenos, “os personagens de A maçã no escuro entram num processo de ‘prenhês’, de
engravidamento, de fertilização pela carência, uma das marcas mais vitalizadoras da
ficção de Clarice Lispector” (HELENA, 1992, p.2).
Ao mesmo tempo, podemos lembrar de quando Walter Benjamin nos fala sobre
olhos que perderam a capacidade de olhar num ambiente de atrofia da experiência
(BENJAMIN, 1980, p.53). A experiência se desenharia no momento em que o passado
individual entraria em conjunção com o passado coletivo, o que penosamente e em
vislumbres ocorre com um Martim que consegue se situar num lugar-comum revivido e
consegue inseri-lo na história da sua vida, antes esquecida, agora ressignificada e
libertada, em intenso e consciente diálogo com o entorno social, com as pessoas, as
palavras, as coisas do mundo.
120 Porém vulgarizadores teriam tomado o símbolo como realidade e o pentagrama no interior da maçã apareceria nesse contexto “representando a involução do espírito dentro da matéria carnal” (Chevalier & Gheerbrant, 1989, p.572). 121 No caso, a autora está tratando de outras narrativas e outras questões da prosa clariceana e de sua crítica. Cf. PONTIERI, 1999, p.65-70.
12 - CLARICE LISPECTOR E A SOMBRA DA PALAVRA
A sombra da palavra
E o víamos obliquamente, mostrando de perfil arestas e superfícies novas, como um sólido surpreendido em um desconhecido momento de sua revolução.
Marcel Proust
Na introdução do seu O grau zero da escritura, Roland Barthes indaga até que
ponto a História social ou dado momento histórico condicionam ou interferem na
construção de uma obra literária e onde se situa o espaço para a liberdade de criação.
Para o autor, é possível traçar-se "uma história da linguagem literária que não é nem a
história da língua, nem a dos estilos, mas apenas a história dos Signos da Literatura",
em relação à qual é também possível achar-se um fio que entrelaçaria de alguma
maneira a história formal e a História profunda (BARTHES, 1971, p.12)
Ele ressalta, no entanto, que não há estreitos nexos causais nem deterministas nessa
relação entre as escrituras e a História, esta posta menos a determinar efeitos do que os
limites de uma escolha. Roland Barthes exemplifica lembrando o percurso da literatura
rumo a tornar-se uma problemática da linguagem, aspecto que interessa bastante aqui,
quando se pretende discutir aspectos da narrativa da escritora Clarice Lispector.
a unidade ideológica da burguesia produziu uma escritura única
[pois] nos tempos burgueses (isto é, clássicos e românticos), a
forma não podia ser dilacerada, já que a consciência não o era; e
que, pelo contrário, desde o momento em que o escritor deixou
de ser uma testemunha do universal para tornar-se uma
consciência infeliz, seu primeiro gesto foi escolher o
engajamento da forma, seja assumindo, seja recusando a
escritura de seu passado. A escritura clássica explodiu então e
toda a Literatura, de Flaubert até hoje, tornou-se uma
problemática da linguagem (p. 12).
Nessa passagem, assinala Barthes, quando a “fabricação” passa a ser significada,
é estabelecida uma opacidade que barra o sentido de transparência especular da
linguagem artística que o precedeu.
A arte clássica não podia sentir-se como uma linguagem, ela era
linguagem, vale dizer, transparência, circulação sem depósito,
concurso ideal de um Espírito universal e de um signo
decorativo sem espessura e sem responsabilidade; o fechamento
dessa linguagem era social e não de natureza. Sabe-se que, pelos
fins do século XVIII, essa transparência veio a turvar-se; a
forma literária desenvolve um poder segundo, independente de
sua economia e de sua eufemia; ela fascina, transporta, encanta,
tem um peso; a Literatura não é mais sentida como um modo de
circulação socialmente privilegiado, mas como uma linguagem
consciente, profunda, cheia de segredos, dada ao mesmo tempo
como sonho e como ameaça (p.13).
Nesses seus primeiros esboços de seu conceito de escritura, Barthes assinalaria a
escritura como sendo uma função. Como função ela seria "a relação entre a criação e a
sociedade, a linguagem literária transformada por sua destinação social, a forma
apreendida na sua intenção humana e ligada assim às grandes crises da História" (p.23).
Fruto de uma época que permite e sugere uma literatura que expõe o pensar-se a
si própria como uma sua própria necessidade, horizonte e abismo de um tempo
histórico, a narrativa clariceana saber tomar a si seu peso. Tramada em seu
encorpamento de linguagem, tal narrativa traz e gera sentidos que a atravessam e são
intercambiantes, não tem lugar definido, nem no princípio nem ao cabo.
No livro A paixão segundo GH, por exemplo, a excruciante experiência da
protagonista não termina mas traz em si seus ritmos e ciclos, na vertiginosa busca de
imanência, de contato direto com a coisa-em-si e a posterior "desistência", na
constatação da necessária mediação da linguagem entre o que se sabe e sente, e o que se
precisa dizer122.
122 Questão que a crítica da autora já estudou competentemente, como pode ser constatado, por exemplo, em NUNES, Benedito. O drama da linguagem. São Paulo, Ática, 1988 e, do mesmo autor, O mundo imaginário de Clarice Lispector. In: O dorso do tigre. São Paulo, Perspectiva, 1987.p.269-281.
Na percepção da linguagem como um estorvo e um possível humano, um
fracasso e uma glória, um percurso inevitável.
A trajetória não é apenas um modo de ir. A trajetória somos nós
mesmos. Em matéria de viver, nunca se pode chegar antes. A
via-crucis não é o descaminho, é a passagem única. Não se
chega senão através dela e com ela. A insistência é o nosso
esforço, a desistência o nosso prêmio (LISPECTOR, 1986,
p.72).
A palavra é o material disponível no desenhar dessa trajetória. Tomar seu peso e
sua sombra e incorporá-los à trama é o procedimento empregado pela escritora, o que se
evidencia sobretudo em suas narrativas longas. Usar as possibilidades da língua, as
idiossincrasias do estilo e trabalhá-los como escritura é também o procedimento em
seus contos, o que nos dá a ver na escuridão de seu próprio movimento, algo das
relações sociais, algo da vida literariamente representada. E essa verdade nos é dada
como visão, não como reconhecimento123.
Lembrando a estréia da escritora, Antonio Candido assinalaria que
Clarice mostrava que a realidade social ou pessoal (que fornece
o tema), e o instrumento verbal (que institui a linguagem) se
justificam antes de mais nada pelo fato de produzirem uma
realidade própria, com a sua inteligibilidade específica. Não se
trata mais de ver o texto como algo que se esgota ao conduzir a
este ou aquele aspecto do mundo e do ser; mas de lhe pedir que
crie para nós o mundo, ou um mundo que existe e atua na
medida em que é discurso literário (CANDIDO, 1988, p.XIX).
Assim, na narrativa clariceana a linguagem literária é usada como diferença,
sentida como uma construção a oscilar entre a instauração do estranho e o retorno ao
familiar -- este mostrado agora em seu caráter de artifício, lugar-comum que permite a
comunicação, o laço social, mas traz em si a marca do que foi ferido nos olhos.
123 Cf. CHKLOVSKI, V. 1973, p.45.
Em textos como A paixão segundo GH, A maçã no escuro e A hora da estrela, o
vislumbre do estranho se dá na busca da verdade do Outro, da experiência consciente da
opacidade da linguagem. Em contos como Amor, de Laços de família, a vida "média"
dos personagens é traduzida na condução narrativa por vezes reduzida ao seu campo de
consciência que só permite o contato com a estranheza do Outro por um acidente, um
vislumbre em meio à automatizada banalidade cotidiana. Nele, os protagonistas vêem-se
por um momento num mergulho estranhado longe da segurança do familiar, livre de
suas amarras. Sua partida rumo à descoberta epifânica termina com a volta à segurança
da casa. O voltar ao cotidiano amesquinhado é posto na narrativa como mais um dado
de desvelamento dos limites marcados pelo universo social. Assim, o viés paródico tem
a segunda voz a destoar do sentido de acomodação, no mesmo momento em que o
assinala.
Um gesto, um halo, um elo
Exibindo outras facetas da escritura clariceana, a novela A hora da estrela traz
disseminada em toda sua narrativa o germe da escritura, espalhando-se como cada lance
do processo narrativo. Na narrativa, encena-se o embate do narrador Rodrigo SM com a
expressão ficcional e com sua personagem, a nordestina pobre Macabéa, com a qual
partilha um vago sentido de exílio existencial. Rodrigo SM protagoniza uma busca de
entendimento do Outro como a empreitada de uma vertigem necessária, que oscila entre
o recuo de volta ao familiar, que permite a comunicação e escapa à loucura --, e o
avançar humildemente, impetuosamente, assumindo o risco de tentar sair de si mesmo
para estranhar o que há de infamiliar e diferente no Outro. E, no movimento desse olhar,
entender seus limites e seu alcance.
Por outro lado, ao contrário das narrativas mais longas da escritora, os contos
trazem uma estruturação tradicional quanto o gênero. Porém, o uso de elipses e outros
recursos escavados no abismo da linguagem conferem a força de uma escritura que
percebe a impossibilidade e inutilidade da busca de uma transparência mistificadora. Na
construção explicitada de A hora da estrela -- ou na construção estruturalmente mais
tradicional das narrativas curtas, vêem-se as noções de estranho e familiar instauradas
não apenas tematicamente, mas também no próprio jogo do fazer literário.
Esses são alguns dos principais lances de uma escritura em processo, que insiste
em valorizar a trajetória, em multiplicar sentidos. E o ato de insistir, na escritura
clariceana, é o movimento do processo de um escrever que se quer vivo e sabe de sua
potência no ato mesmo de experimentar os limites da linguagem.
Um escrever que admite e busca saber, sofrer e amar os limites humanos,
as bordas da linguagem, sem estancar nem encontrar sua justificativa no ponto final,
posto a lançar sentidos em cada relevo do escrito. Nesta escrita, a força da criação tida
não como "a passagem inconcebível do nada ao ser, mas [como] a admirável, infinita
ação do ser sobre si mesmo, nas suas muitas figuras, na alegre variedade das coisas e
dos dias", para falar com Júlio Cortázar (1993, p.146).
Nos contos de Clarice, nos é dada a visão do familiar como construção social.
Rastreando questões relacionadas à família e à infância no mundo ocidental o
historiador francês Phillipe Áriès aponta o sentimento de família como uma construção
histórica, cujos primeiros sinais na Europa teriam começado a se delinear lentamente a
partir do século XIV. Lembrando a existência de estruturas não-familiares em várias
sociedades, Ariés se pergunta se não "teríamos, sem o perceber, nos deixado
impressionar pela função que a família desempenha em nossas sociedades há alguns
séculos, e não nos sentiríamos tentados a exagerá-la indevidamente e até mesmo a
atribuir-lhe uma autoridade histórica quase absoluta"124.
Admitindo, no entanto, a disseminação da família em várias épocas, o
historiador francês ressalta, no entanto, que o sentimento de família como o conhecemos
é o que se estabeleceu com todos seus traços no século XVIII. Aí a preservação da
intimidade pela independência dos cômodos nas casas traduziu de forma mais forte a
defesa da vida privada característica da família moderna com todos seus laços afetivos
complexos, com a obsessão dos pais pelos cuidados com os filhos125.
Para Phillipe Ariès tal novo modelo passaria a exigir uma uniformização
dilapidadora das possibilidades de diversidade existente antes no mundo europeu.
124Cf. ÁRIÈS, Phillipe. História social da criança e da família. trad. Dora Flaksman. 2 ed. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1981. p. 222-223. 125 Idem, ibidem, p.276. O autor assinala que só a partir do século XV os sentimentos da família passariam a sofrer modificações mais evidentes, com a escolarização. Nos séculos anteriores, a aprendizagem era empírica e a criança vivia misturada aos adultos. Além disso ela "desde muito cedo escapava à sua própria família (...)A família não podia portanto, nessa época, alimentar um sentimento existencial profundo entre pais e filhos. Isso não significava que os pais não amassem seus filhos: eles se ocupavam de suas crianças menos por elas mesmas, pelo apego que lhes tinham, do que pela contribuição que essas crianças podiam trazer à obra comum, ao estabelecimento da família. A família era uma realidade moral e social, mais do que sentimental" ÁRIÈS, Phillipe. Op.cit.p.231.
A procura da intimidade e as novas necessidades de conforto
que ela suscitava (pois existe uma relação estreita entre o
conforto e a intimidade) acentuavam ainda mais o contraste
entre os tipos de vida material do povo e da burguesia. A antiga
sociedade concentrava um número máximo de gêneros de vida
num mínimo de espaço, e aceitava -- quando não procurava -- a
aproximação barroca das condições mais distantes. A nova
sociedade, ao contrário, assegurava a cada gênero de vida um
espaço reservado, cujas características dominantes deviam ser
respeitadas; cada pessoa devia parecer com um modelo
convencional, com um tipo ideal, nunca se afastando dele, sob
pena de excomunhão. O sentimento da família, o sentimento de
classe e talvez, em outra área, o sentimento de raça surgem
portanto como as manifestações da mesma intolerância diante da
diversidade, de uma mesma preocupação de uniformidade
(p.279).
Essa repulsa pelo não convencional, pelo diferente, parece radicar mesmo na
repulsa ao estranho, ao diferente em nossa sociedade. O lar é o local onde se enraíza
mesmo o habitual, o costumeiro. É o ambiente do já sabido, do previsível, onde estão
dispostos objetos que somem aos nossos olhos, já tão habituados, cegos de tanto vê-los.
Mas eis que surge a literatura, para provar que pedra é pedra126. Para despertar a visão
de arestas insuspeitadas nesses mesmos objetos de contornos perdidos. Arestas que
ferem e revelam, arranham o olhar, interferindo nele, restaurando seu alcance.
Isso é o que acontece também na canção “Estrangeiro”, de Caetano Veloso. Nela
tem-se um enunciador que, indagando os contornos óbvios do Pão de Açúcar, desvela
"umas arestas insuspeitadas" na paisagem postal da Baía de Guanabara, ante a qual o
enunciador se nota "cego de tanto vê-la". A canção dialoga com A interpretação dos
sonhos. Tal intertexto está bem explícito em algumas passagens. No trecho da música
cujos versos dizem: “cego às avessas, como nos sonhos, vejo o que desejo” há uma
clara alusão à teoria de Freud dos sonhos como expressão (condensada e distorcida) de
126 CHKLOVSKI. Op.cit., p.45.
desejos127. Outro trecho da canção (“o rei está nu/ Mas eu desperto porque tudo cala
frente ao fato de que o rei é mais bonito nu”) remete à interpretação que Freud dá ao
conto A roupa nova do imperador, como sonho de exibição128. Sentir "arestas e
superfícies novas" num objeto tão visto será também o procedimento do narrador de Em
busca do tempo perdido, frente ao campanário de Combray129.
A canção Estrangeiro mira o estranho e cruza textos e ruídos. Tais ruídos
assinalam esse caráter de um olhar arranhando, estranhado. Ruídos e carnações novas
compõem também a narrativa clariceana em seus momentos de vertiginosos vislumbres.
Escritura e História
Se nos romances de Clarice Lispector o flagrante da diferença e o mundo
estranho, infamiliar, são conscientemente buscados e experimentados como uma
necessidade visceral, na maioria dos contos o que se tem são personagens medianos
agarrando-se ao mundo domado, familiar. Neles é recorrente a explosão de epifanias
que desestabilizam os parâmetros dessas vidas presas ao forjamento de uma
naturalidade grudada sobre a superfície das coisas e então vê-se a obra literária, tanto
tematicamente como no plano da linguagem, armada em desfazer tal naturalidade
superposta como fina e frágil fórmica sobre a estranheza do mundo.
Por um lado têm-se uma escritura que se desconstrói aos olhos do leitor, fundada
numa opacidade que se revela e aos seus próprios materiais como procedimento
primordial na sua inscrição, na disseminação de significações. Os contos, por sua vez,
se trazem uma estruturação tradicional, guardam também um caráter de escritura, que
rejeita qualquer transparência, sabendo-se, armando-se em sua espessura de linguagem a
multiplicar sentidos e disseminar olhares. Em ambas, "uma cartografia de estados,
sensações, descobertas" (SANTOS, 1991, p.5).
A narrativa clariceana parece confirmar-se como um traço de escritura, tendo-se
esta como "a moral da forma, a escolha da área social no seio da qual o escritor decide
situar a natureza de sua linguagem" (BARTHES, s/d, p.24) a maneira como o escritor se
propõe a pensar e fazer literatura. Comparando fala e escritura, Barthes que rejeita
127 FREUD, s/d. p.177. 128 Idem, ibidem, p.258. 129 “e o víamos obliquamente, mostrando de perfil arestas e superfícies novas, como um sólido surpreendido em um desconhecido momento de sua revolução”. Cf. PROUST, Marcel. No caminho de Swann. trad. Mário Quintana. Rio de Janeiro: Globo, 1987.
qualquer transparência, sabendo-se, armando-se em sua espessura de linguagem a
multiplicar sentidos e disseminar olhares. Em ambas, "uma cartografia de estados,
sensações, descobertas". A narrativa clariceana parece confirmar-se como um trare
enraizada num além da linguagem, desenvolve-se como um germe e não como uma
linha, manifesta uma essência uma essência e ameaça de um segredo, é uma
contracomunicação, intimida" (BARTHES, s/d, pp.31-32).
Nos textos de Clarice Lispector o germe da escritura parece disseminado,
espalha-se como cada lance de seus processos narrativos, que partem de um gesto
significativo do escritor, ali onde "a escritura aflora a História" (BARTHES, s/d, p.26).
13 - O círculo dos homens: Kafka e a família
O corpo em cena
Não era um sonho, atesta o narrador da novela A Metamorfose, no primeiro
parágrafo da narrativa130. Não era um sonho, percebe o protagonista da novela, Gregor
Samsa, caixeiro-viajante, ao acordar transformado num inseto, num dia que continuaria
sua rotina estafante de arrimo-de-família, numa vida toda voltada para o trabalho, vida
cegada para o trabalho.
Não é um pesadelo apenas: Gregor acorda mesmo transformado num inseto. No
livro, há intensa vivência desse novo estado e desde os primeiros momentos do texto o
lento conhecimento do peso, da textura, dos movimentos desse novo corpo vão
revelando da maneira mais terrífica um desembotamento dilacerado dos sentidos. Um
aprender a olhar as coisas a partir da sensação dessa vivência concreta da matéria de um
novo corpo que ameaça uma nova vida e traz à tona o que se perdia na saturação do
familiar, violentamente descentrado pela invasão do estranho. O que não deixa de ser
feito e visto com forte bizarria, um estranhado bizarro sombrio, que por vezes esconde o
humor que há no texto.
Mas esse novo modo de ver o corpo, traçado de maneira impressionante em
vários pontos da narrativa, tem o efeito de fazer enxergar o que se perdia na rotina da
família. O que se lê pelo sentido de ordem anterior perceptível na desordem instaurada
pela transformação. E se lê logo sem fôlego ou alívio pelo sonho que não há: a narrativa
de certa forma é realista, de um terrível realismo, e o inseto é um inseto, Gregor, o
protagonista, está virado inseto desde as primeiras linhas131.
A presença monstruosa do filho Gregor no momento em que cumpre o papel de
provedor da casa, foco de todas as aprovações, a partir do próprio pai, é o elemento
estranho, infamiliar, a desestruturar a vida média de seu panorama cinzento. Virado em
bicho, o personagem se contorce em angústia ante a aflição coletiva da família pelo seu
atraso para o trabalho. Angústia que se amplia com a visita do gerente do lugar onde
130 Trabalhamos aqui com versão para a língua portuguesa da obra de Kafka. Kafka, Franz. A Metamorfose (trad. e posfácio Modesto Carone). São Paulo, Brasiliense, 1996. 131 Como sugeriu o professor Modesto Carone, em curso ministrado na pós-graduação em Letras da UFPb, primeiro semestre de 1996.
trabalha, que chega para o chamar aos deveres, ele, o funcionário exemplar. Mas, apesar
de seu estado e de seu despreparo em lidar com o novo corpo, o seu senso de dever
comparece. Como assinala o narrador, Gregor "não cogitava minimamente em
abandonar sua família". Mais uma vez se eriça o sentido de responsabilidade, lembrança
da sobrevida que o Gregor anterior vivencia, na rotina massacrante e sobressaltada à
qual se adapta, para saldar dívidas do pai falido.
A humilhação da presença invasora e questionadora do gerente se amplia com a
reprovação no ar vinda da própria família ou com o desespero justificado da mãe. E com
a sua incapacidade de comunicação, que faz com que seu silêncio seja interpretado
como uma recusa e sua fala também, o que revelam os comentários que dão conta de
que sua voz era imperceptível para os humanos - voz metálica questionada como sendo
de deboche - para aumento do desespero de Gregor.
O impressionante esforço do personagem para usar o corpo de maneira a virá-lo
a ponto de abrir a porta trancada do quarto e apresentar sua justificativa é terrível, nessa
ânsia por obter aprovação da família, do chefe.
O pânico causado pela presença de Gregor na sala é a um só tempo bizarro e tremendo.
A fuga do gerente, o desespero da mãe e da irmã e sobretudo a agressividade do pai
tornam o quadro dramático. Quanto mais Gregor Samsa se aproxima implorando
compreensão, mais ativa o pânico e desperta o ódio do pai que, "implacável, o
pressionava emitindo silvos como um selvagem", brandindo bengala e jornal
ameaçadoramente. E aí o pai é o verdadeiro animal, a produzir ruídos bestiais.
A primeira parte do livro vai se encerrar com o filho ferido pelo pai e sem conseguir
dirigir direito seu corpo de inseto ao quarto para escapar dos golpes, sangrando bastante,
deixando "manchas feias" na porta branca, indefeso e fragilizado, com as "perninhas
[que] pendiam trêmulas no ar".
As manchas de uma substância vertida pelo seu corpo de inseto marcam a porta,
seu corpo mal manobrado impede a fuga do chute certo do pai que o atira "sangrando
violentamente" para dentro do quarto. A metamorfose - se irrompe logo nas primeiras
palavras do texto -, só vai se revelando em sua força aos poucos, pela descoberta de
movimentos e pela falta de saber como lidar com tais movimentos, por secreções e
dores novas, que ganham espessura e vida na linguagem literária que vai trazendo em
seu peso o objeto estranho a avançar e marcar o universo familiar.
Laços de família
Sentiu-se novamente incluído no círculo dos homens.
Na segunda parte do livro, a irmã de Gregor vai ser vista se desdobrando -
sofridamente e aos poucos - em descobrir como alimentar o inseto, e como tomar outros
cuidados sutis, alguns acertados, outros equivocados em relação à nova vida de Gregor.
Gregor agora alimentado durante o sono dos pais, com sua recente aversão a frutas
frescas, infantilizado nos cuidados da irmã dedicada, cometendo seus erros e acertos na
alimentação em termos de um alentado "gostou" ou desapontado "deixou tudo".
Ela, sempre empenhada em evitar sofrimento para o irmão, termina por vezes
causando a pena, como nos barulhos feitos para avisar de sua entrada no quarto, quando
Gregor se escondia para livrá-la de sua terrível visão; ou quando a irmã corria para abrir
a janela, sufocada com o ambiente do animal.
Descoberta agora em sua utilidade pela família, a irmã é lembrada como um
peso morto anterior. E vai crescendo, pela crença mais firme nos seus gestos. O que
causa ciúme em Gregor, por exemplo, quando ele reflete que seria melhor que a mãe
arrumasse o quarto, pois a irmã "talvez só tivesse assumido uma tarefa tão pesada por
leviandade infantil". Isso se choca com a preocupação sincera e devotada da irmã com
Gregor desde a metamorfose.
Mas não é só isso. A obra trabalha excepcionalmente bem com as complexas
idas e vindas dos laços de família, com suas indissociáveis facetas de amor e ódio,
carinho e agressividade. Assim, numa dada passagem a irmã planeja e convence a mãe a
ajudar a executar a retirada dos agora inúteis móveis do quarto de Gregor, para lhe dar
mais espaço. Gregor resiste silenciosamente torturado à idéia de perder a companhia de
seus móveis.
As difíceis, complexas intenções da irmã estão postas numa página onde é difícil
detectar quem vê: quem fala é o narrador (que não participa nem participou da
história), mas é difícil saber até que ponto sua fala não está contaminada pelas
prevenções de Gregor em relação à irmã. Afinal este narrador está quase sempre
acoplado à visão do protagonista.
Mas o fato é que em tal página, a narrativa vai desenhando a complexidade da
personagem que "movida pela autoconfiança adquirida nos últimos tempos" parece
querer deter exclusividade "sobre questões de Gregor" nas discussões de família. E
maior exclusividade, sendo a única a entrar no quarto depois da retirada dos móveis,
pois "num espaço em que Grete dominasse, inteiramente só as paredes vazias, decerto
ninguém, a não ser Grete, jamais se atreveria a penetrar".
Assim, a especulação (do narrador, de Gregor?) sobre o entusiasmo da irmã em
relação à necessidade de esvaziar o quarto vai revelando a rivalidade surda entre os
irmãos e também certa passagem de poder, com a queda de um e a ascensão do outro,
no trânsito entre a utilidade e a inutilidade no seio da família.
A focalização, na maior porção da narrativa, está limitada ao campo de
consciência de Gregor. Porém, em alguns momentos, a aparente neutralidade de
uma focalização externa ("visão de fora") traz acentos que mostram uma mistura da
dicção de Gregor com o narrador. Dessa maneira, tratando desse episódio da retirada
dos móveis, a narração oscila tensamente em justificar os motivos honestos de Grete, a
irmã, e em realçar sua leviandade, uma perversa intenção de traçar um aumento de
poder sobre o irmão confinado no quarto vazio. Essa marca de tensão amor-ódio
seguramente não é do narrador meio alheio à história - e sim de Gregor. Tal dado ficará
bem claro noutro trecho. Vejamos.
"Para Gregor, a intenção de Grete era clara, ela queria pôr a mãe a salvo e depois
enxotá-lo parede abaixo. Bem, ela que tentasse! Ele estava assentado em cima da sua
imagem e não ia entregá-la. Preferia antes saltar no rosto de Grete." (M, p.54)
Percebe-se que a frase com exclamação traz na carne mesmo da linguagem a invasão do
personagem protagonista no discurso do narrador. Trata-se, ao que parece, de um trecho
em discurso indireto-livre e que revela a irritação de Gregor, em meio ao aparente
distanciamento quase neutro que o narrador apresenta por vezes. E revela também o
descontrole de Gregor, sempre pronto a justificar para si mesmo os atos da família e
sobretudo a boa-vontade e bondade de sentimentos da irmã. Tal descontrole não é senão
a oscilação amor-ódio assinalada pela invisível luta de poder travada no ambiente
familiar.
A rivalidade entre os irmãos vira guerra aberta em seguida, quando Gregor se
enrosca num quadro, último objeto do quarto, para evitar sua retirada. A visão horrenda
"da gigantesca mancha marrom no papel de parede florido" provoca um, digamos,
chilique na mãe, quando ela entra no quarto. Nesse instante irrompe violenta gritaria da
irmã e a agressividade do pai que vem chegando em casa e se depara com o drama
armado. Na seqüência da ação (e que filme daria A Metamorfose na mão de um Orson
Welles!), pois bem, na seqüência, que fecha a segunda parte do livro (e a exemplo do
fim da primeira parte), Gregor é perseguido morbidamente pelo pai que lhe atira…
maçãs! A fruta - original - se lhe crava nas costas (crava mesmo, fica incrustada), num
golpe quase mortal. Vinda de seu desmaio, a mãe implora ao pai que poupe a vida do
filho, quando Gregor já sente a vista escurecer.
Ainda neste segundo momento da narrativa, em passagem anterior, a mudança
na família após a metamorfose é observada de maneira surpreendida e espantada por
Gregor. Primeiro, a revelação do pai para o resto da família da existência de economias
que Gregor ignorava. Ao menos Gregor achava, e o pai silenciosamente dava a
entender, que não restara nada de sua falência comercial. E Gregor passara a trabalhar
estafadamente, movido por "um fogo muito especial" no esforço para que sua família
esquecesse de maneira mais rápida "a desgraça comercial’ entregando com prazer o que
ganhava, recebendo gratidão e reconhecimento - aprovação.
Toda essa narração de como ele trabalha como um louco para dar conforto à
família - informação franqueada pelo narrador postado na consciência imediata de
Gregor e que lê seus pensamentos -, é dada como uma surpresa que vai desvelando o
quanto o filho foi usado e sacrificado pela família. Porém a mágoa que não fica evidente
no filho, orgulhoso pelos feitos passados, parece evidenciada ao leitor nos interstícios
entre os silêncios e falas do narrador, entre algo tênue e intercambiante entre os pontos
de visão e cegueira do narrador e do personagem132. No conjunto, o que fica é a maneira
expressiva com que a obra transmite tais dados, assinalando a maneira como o pai agira
para com o filho.
Pela cabeça de Gregor, passa a possibilidade de ter deixado o emprego
massacrante mais cedo, caso o pai tivesse usado as economias escondidas para pagar as
dívidas dele, que eram aos poucos amortizadas por Gregor. Mas, em sua reflexão,
Gregor Samsa não se queixa, e termina achando que era melhor assim, com o dinheiro
guardado para a emergência da família.
Gregor fica surpreso também com a extrema vitalidade física demonstrada pelo
pai, agora sempre bizarramente fardado 24 horas por dia, com a roupa do emprego
132 Pontos de cegueira do narrador é expressão de Maria Lúcia Dal Farra. A mesma autora esclarece que a voz original do texto "não é propriamente aquela que se desprende da boca do narrador, mas o acorde das vozes propagadas na ampla abóbada acústica" da narrativa. Cf. Dal Farra, Maria Lúcia. O Narrador Ensimesmado. São Paulo: Ática, 1978.
arranjado às pressas, meio sempre a postos. O pai que se comportara como um inválido,
quando ele, Gregor, sustentava a casa. As recordações de Gregor do trabalho e a postura
aflita e esgotada dos membros da família ante o trabalho arranjado depois da mutação é
marcadamente negativa. Em A Metamorfose o trabalho da família é antes de tudo uma
humilhação.
Clarear e sombras
Era ele um animal, já que a música o comovia tanto?
Na terceira e última parte do livro a ruína da família aumenta. Com um dos
aposentos da casa alugados para três inquilinos, Gregor não só representa o horror do
elemento estranho no ambiente familiar como é um clandestino a ser escondido. Sua
existência é ocultada dos inquilinos, bizarramente (quantas vezes repetiremos essa
palavra) tratados como hóspedes de um hotel pelos membros da família, que se
comportam dentro de sua própria casa como serviçais. E a visão dessa relação é mais
uma coisa a esmagar Gregor.
A solicitação dos hóspedes para que Grete toque algo ao violino, que contraria a
ordem inicial da família para que ela silencie para não incomodar os hóspedes, leva a
uma das cenas mais comoventes da novela. Os hóspedes logo dão as costas,
desinteressados e mesmo incomodados pela música que não lhes agrada mais. "E no
entanto a irmã tocava com tanta beleza!" assinala o narrador, traduzindo o pensamento
de Gregor, comovido com a música e com lembrança de que anunciaria no Natal o
envio de sua irmã para o conservatório, sonho antigo e quase impossível, pelos custos,
pela reprovação dos pais.
A comoção de Gregor é tanta que ele se vê "decidido a chegar até a irmã, puxá-
la pela saia" e com isso indicar que "ela devia ir ao seu quarto com o violino, pois
ninguém aqui apreciava sua música como ele". A entrada de Gregor na sala provoca
mais uma dramática passagem da narrativa, envolvendo o protesto dos
inquilinos/hóspedes, e a vergonha da família. A ponto de a irmã dar o ultimato para os
pais de que é preciso que eles se livrem daquilo, que aquilo não é Gregor.
Gregor retorna resignado ao quarto, ainda com a maçã apodrecendo nas costas
inflamadas, até o relógio bater "a terceira hora da manhã" quando "sua cabeça afundou
completamente e das suas ventas fluiu fraco o último fôlego", frase que, em língua
portuguesa, entre assonâncias e aliterações, iconiza belamente o último suspiro133.
O anúncio da morte para a família vai ser feito por uma personagem que entra na
terceira e última parte da narrativa. Incrível personagem, sórdida e mórbida, a
empregada que diariamente exaspera Gregor com suas espiadas e provocações, quando
diz, em "palavras que provavelmente considerava amistosas", coisas como "venha um
pouco aqui, velho bicho sujo" ou "vejam só o velho bicho sujo".
A maneira como ela avisa não poderia ser mais econômica: "Venham só ver uma
coisa, ele empacotou; está lá empacotado de vez!" Isso é dito depois dela cutucar o
corpo com uma vassoura. A mesma personagem vai surgir sorridente em sua morbidez,
com uma hilária pena de pavão no chapéu (que tanto irritara o chefe), demonstrando
orgulho e aguardando que a família a indague sobre como se livrara do corpo, ou
melhor, como jogara fora "a coisa aí do lado". A um gesto de impaciência e dispensa da
família, a personagem sai de cena de maneira espetacular, reeditando, multiplicado em
mil, os modos que tanto exasperavam a família, ela tantas vezes repreendida pelos
barulhos que fazia na casa, sobretudo ao fechar portas ("Até logo para todos./ Virou-se
selvagemente e deixou o apartamento em meio a um formidável bater de portas").
Eis aí um bom exemplo do quase insuspeitado humor kafkiano que atravessa
toda a narrativa de A Metamorfose, e às vezes pode nos passar despercebido, por trás
dos tons sombrios de sua letra.
Quanto ao futuro
Recordava-se da família com amor e emoção.
O esmagamento de Gregor chega ao limite da consciência da necessidade de sua
morte para a continuidade da família. Assim, sua "opinião de que precisava desaparecer
era, se possível, ainda mais decidida que a da irmã". Na melancólica, na profundamente
133
Na falta de conhecimento do texto original, podemos nos estimular em várias passagens com soluções em língua portuguesa tão extraordinárias como essa melopeica solda entre som e sentido.
triste despedida de Gregor, ele "ainda vivenciou o início do clarear geral do dia lá do
lado de fora".
A expulsão do elemento estranho do espaço familiar é posta junto com a
normalidade do mundo, a clareza das coisas. Um súbito otimismo vai tomando conta da
família, agora envolvida em planos para o futuro. O fim do livro traz tons rosados, com
os pais orgulhosos e atentos à sensualidade que transparece na filha, a espreguiçar o
corpo jovem, nutrida flor brotada bonita e opulenta, vitaminas em reserva, para o bom
marido que viria.
O tom de final feliz, os rosas que suavizam o quadro, transbordam um otimismo
pequeno-burguês maquiador do que há de desesperada insegurança nessa vida média de
contadas e contidas alegrias, desesperada no apego aos limites sufocantes do elemento
familiar. No quadro do livro, esta paisagem final escreve, é verdade, esse um tipo de
felicidade -- mas o que se lê é Kafka.
14- Os sertões e a confissão de culpa de um repórter
O olhar instável
Acompanhando as cartas do correspondente de guerra Euclides da Cunha,
escritas a partir de Canudos, Walnice Nogueira Galvão (1976) chamaria a atenção para
a reescritura dessa história no livro Os sertões (1902), onde, para Roberto Ventura,
Euclides “fez a confissão de culpa da escandalosa omissão de suas reportagens” (1993,
p.42). Nas cartas está presente a perspectiva de um narrador, a partir de uma visão
aderida positivamente aos ideais republicanos. Tal perspectiva, em alguma medida, vai
ser problematizada no livro, junto a várias outras questões que, na imprensa, teriam
vindo a público num viés mais unívoco. Isso em Euclides, pois outros jornalistas já
questionavam o sentido do conflito enquanto este se desenrolava134.
Na teia complexa do livro Os sertões, de Euclides da Cunha, meio tese
sociológica, meio romance de uma prosa freqüentemente poética – , percebem-se os
avanços e recuos de um narrador muitas vezes redutor, dotado de um movimento de
adequar o Outro ao Mesmo, de fazer tabula rasa da cultura alheia, seja da comunidade
messiânica de Canudos, envolta em sua espera milenarista, seja em relação aos
sertanejos e sua cultura ou outras várias culturas do Brasil, rotuladas de maneira
irrevogável.
Luiz Costa Lima ressalta como o evolucionismo ganhou campo fértil na cultura
brasileira por, “partindo da diferença de qualidades das raças humanas e favorecendo o
branco” ter se casado com a pré-noção de que o branco é superior. Vendo o caso de Os
sertões, Costa Lima ressalta que
O etnocentrismo ocupa uma vasta área intermédia entre a ciência
e a literatura de Euclides, tornando incômoda a tarefa dos
panegíricos. Assim, se na primeira parte do livro, a descrição da
134 Roberto Ventura lembra de Manoel Benício e Fávila Nunes, que denunciavam na imprensa as atrocidades da guerra, enquanto esta se desenrolava.
terra permitia ao autor ser simpático ao homem da região (...) na
segunda, ‘O homem’, nos traz, ao contrário, a visão etnocêntrica
do litoral. Para sorte da cultura brasileira, o etnocentrismo se
encolhe quando Euclides olha em torno de si e vê o que são os
seus ‘brancos’” (1984, p.231).
Tentaremos acompanhar aqui algo desse olhar etnocêntrico espraiado na
narrativa de Os sertões, buscando perceber seus avanços e recuos em direção ou na
contramão de tal etnocentrismo, mirando suas aberturas e fechamentos para uma
oscilação entre o estranho e o familiar.
“Um aparelho litoral revolto, feito da envergadura desarticulada das serras,
riçado de cumeadas e corroído de angras, e escancelando-se em baías, e repartindo-se
em ilhas, e desagregando-se em recifes desnudos, à maneira de escombros do conflito
secular que ali se trava entre os mares e a terra”. Nesse tom plástico, expressivo, de
forte e viva criação poética é traçada a primeira parte do livro – A terra.
Percebe-se aí, e a crítica fartamente já o aponta, todo um gesto de construir um
cenário onde vai ser visto “O homem”, segunda parte do livro, e onde se desenrolará “A
luta” – do homem com a terra, do homem com o meio, entre o exército e os
conselheiristas. A própria descrição expressiva do cenário é extremadamente não-
estática, trazendo dados que antecipam as lutas, nas mudanças climáticas, na
conformação geográfica, na flora.
Os sertões do Brasil serão vistos em algum momento como “desmedido
anfiteatro alteando as paisagens admiráveis que tanto encantam e iludem as vistas
inexpertas dos forasteiros”. Surpresa uma entre as tantas, que chegam a assinalar um
topos, onde as coisas freqüentemente não parecem o que são, nas constantes idas e
vindas, vacilações e afirmações tramadas em Os sertões.
Curva do mapa, terra de ninguém, território sem história, página por ser escrita,
um nada: sertões. Claro expressivo, hiato, Terra ignota, para ficar com as palavras de
Euclides. “O estranho território”, o território outro, esquecido aguardando ser salvo,
resgatado para a nacionalidade. A terra estrangeira dentro do próprio território nacional,
o estranho entranhado no familiar. O estrangeiro será outro fantasma a pairar na
campanha, com a hipótese de ajuda externa ao ajuntamento de Canudos, sobretudo
ajuda bélica, hipótese a ser levada em conta inclusive por Euclides, antes de ser
desmentida como fantasiosa por ele próprio.
Mas, nesse olhar do narrador nas primeiras dezenas de páginas de Os sertões, e
no corpo do livro como um todo, lá permanece, num limbo, o sertão “inabordável,
ignoto”, pedindo o gesto classificatório, cruel refinamento civilizador. “Paragem sinistra
e desolada”, “lindes de um deserto” (CUNHA, s/d, p.18). Sendo o que está fora, o sertão
externo, exterior, estrangeiro. Um alheio que está dentro, como parte integrante, como
quisto, o estranho no corpo familiar da nação. Extraordinário e extravagante cenário que
vai se dando a ler, exibindo “o fácies daquele sertão inóspito [que] vai-se esboçando,
lenta e impressionadoramente” (CUNHA, s/d, p.19).
Percebe-se na primeira parte do livro, então, algo de um movimento de abertura,
gesto fascinado ante um outro estranho, abertura curiosa ante dados novos. Abertura que
por vezes esboça seu fechamento, na recusa surda dos artefatos de uma outra cultura, no
deparar-se com muros construídos na região, “toscos muramentos de pedra seca”
sentidos como “monumentos de uma sociedade obscura” (CUNHA, s/d, p.19). Noutro
momento da narrativa, onde revela as comidas que restam como alternativa na seca, o
narrador as classificará como “iguarias bárbaras”, das quais se vale o homem da região,
postado estágios atrás no túnel do tempo.
Firmado na idéia de tempos antropológicos diferenciados, Euclides diz que a
“região incipiente ainda está preparando-se para a vida”. Trata-se de um elemento
recorrente na obra, essa noção de as culturas pertencerem a uma mesma escala, vivendo
em momentos diversos, dado tributário do evolucionismo vigente então. Na segunda
parte do livro o tipo de habitação do arraial vai ser visto como símile de atraso e
loucura:
a edificação rudimentar permitia à multidão sem lares fazer até
doze casas por dia. – e, à medida que se formava, a tapera
colossal parecia estereografar a feição moral da sociedade ali
acoutada. Era a objetivação daquela insânia imensa. Documento
iniludível permitindo o corpo de delito direto sobre os
desmandos de um povo. Aquilo se fazia a esmo, adoidadamente
(CUNHA, s/d, p.147).
Assim vistas em detalhes, por dentro, as casas lhe parecerão “paródia grosseira da
antiga morada romana”, lembrariam “as choupanas dos gauleses de César” e indicariam
“a fase transitória entre a caverna primitiva e a casa”. Sinal de pobreza repugnante e
decrepitude da raça, as casas do arraial também, por tais características de miséria e
personalidade do homem, remeteriam aos “wigwan dos peles-vermelhas”. Isso calcado
na probabilidade de as “edificações em suas modalidades evolutivas objetivarem a
personalidade humana” (CUNHA, s/d, p.148).
Observando o mobiliário, o narrador deplora a falta de camas e mesas e
implicitamente os aspectos sincréticos dos oratórios, com “Santo Antônios proteiformes
e africanizados, de aspecto bronco, de fetiches; Maria Santíssimas, feias como
megeras”. Adiante também irá deplorar lendas locais, como as do saci, e do curupira.
Nas armas, percebe “a mesma revivescência de estádios remotos: o facão jacaré,
de folha larga e forte; a parnaíba dos cangaceiros, longa como uma espada; o ferrão ou
guiada, de três metros de comprido, sem a elegância das lanças, reproduzindo os piques
antigos (...)”. Noutro momento, é dito que “Canudos estereotipava o fácies dúbio dos
primeiros agrupamentos bárbaros”. Ao falar do regime de propriedade no arraial, o
narrador o compara a “uma forma exagerada do coletivismo tribal dos beduínos” com a
propriedade comum das terras, pastagens, rebanhos (CUNHA, s/d, p.153). Tentando
explicar movimentos messiânicos como Canudos, comparando-o a outros de outros
instantes históricos, Euclides vai falar na evolução desigual dos povos e na eclosão de
tais movimentos quando um “largo movimento civilizador” impele determinadas
comunidades para “as camadas superiores” (CUNHA, s/d, p.154).
Defendendo teorias que apontam o aspecto nocivo dos cruzamentos entre raças,
Euclides da Cunha chega a apontar o genocídio de que foram vítimas os indígenas como
processo de seleção natural, onde as raças mais fortes predominaram. O extermínio
então teria ocorrido mais em função da mestiçagem do que das matanças.
Lendo Os sertões, Ênio Squeff (s/d, p.490) assinala que Euclides não poderia
fugir ao seu tempo. No entanto, para Luiz Costa Lima, o fechamento interpretativo não
era completamente imposto pelo horizonte da época mas, como atenuante, estava o fato
de que os aspectos étnicos tinham mesmo peso enorme nos primórdios da ciência social
brasileira (LIMA, 1984, p.212).
Em sua teorização, Os sertões cola-se a correntes que o levam a olhar
negativamente a mestiçagem, onde culturas adiantadas na escala do tempo teriam seu
tempo étnico sujeitado a conviver com o atrasado relógio étnico de outras culturas, o
que resultaria em desequilíbrios. Daí a percepção do sertanejo como um desequilibrado,
espécie singular de Frankenstein a levar em si pedaços de outrens heterogêneos, salada
mista pesada e hierarquizadora.
Com um corpo mal acomodando o atraso de uma raça sobreposto ao avanço de
outras, anormais e estranhos, os sertanejos seriam movimentos sísmicos, como camadas
geológicas instáveis deslizando tensamente umas sobre as outras. Os cruzamentos,
assim, levariam ao extermínio final dos inferiores e, no meio desse processo,
sobreviveriam “mestiços inviáveis”. Dentre eles, antes os insulados nos sertões, ao
menos postos longe dos cruzamentos, das estranhas mesclas do litoral (resultante nos
neurastênicos do litoral), onde “funções altamente complexas se impõem a órgãos mal
constituídos”.
Os sertões traz a todo o momento, como já se disse, as idas e vindas das culturas,
melhor, das raças, numa escala positiva que progride ascensionalmente,
qualitativamente na estrada do tempo e um olhar para trás que detecta um despencar da
humanidade nas trevas de uma barbárie passada, da qual seus exemplares, suas culturas
– raças -- mais avançadas, estariam a se distanciar. Distanciamento dificultado pela
mestiçagem, que traria a volta terrífica de elementos bárbaros.
Porém esses tempos e espaços vão tendo suas fronteiras turvadas na cena da
guerra. Nesse nublamento o narrador vai desencantadamente perdendo várias das suas
certezas. Perplexo ante o heroísmo obstinado dos matutos, à “vista de altaneria no
degrau inferior e último de nossa raça”, desfibrados e dessangrados gota a gota, mas
resistindo. Frente à estropiada caqueirada humana de velhos, mulheres e crianças que se
entrega desfilando ante olhos espantados dos próprios soldados, num dos episódios
finais da guerra. Diante das degolas dos jagunços: “Apesar de três séculos de atraso, os
sertanejos não lhes levavam a palma no estadear idênticas barbaridades”.
Condenando violentamente a barbárie da guerra, o movimento de abertura na
leitura do episódio das inscrições nas paredes termina com uma queda de tensão crítica,
num fechamento determinista relacionado com destinos de raça e meio:
Canudos tinha muito apropriadamente, em roda, uma cercadura
de montanhas. Era um parêntesis; era um hiato. Era um vácuo.
Não existia. Transposto aquele cordão de serras, ninguém mais
pecava. / Realizava-se um recuo prodigioso no tempo; um
resvalar estonteador por alguns séculos abaixo./ Descidas as
vertentes, que se entalava aquela furna enorme, poderia
representar-se lá dentro, obscuramente, um drama sanguinolento
da idade das cavernas. O cenário era sugestivo. Os atores, de um
de outro lado, negros, caboclos, brancos e amarelos, traziam,
intacta, nas faces, a caracterização indelével e multifome das
raças – e só podiam unificar-se sobre a base comum dos
instintos inferiores e maus. / A animalidade primitiva,
lentamente expungida pela civilização, ressurgiu, inteiriça.
Desforrava-se afinal. Encontrou nas mãos ao invés do machado
de diorito e do arpão de osso, a espada e a carabina. Mas a faca
relembra-lhe melhor o antigo punhal de sílex lascado. Vibrou-a.
Nada tinha a temer. Nem mesmo o juízo remoto do futuro
(CUNHA, p. 443).
Além da caricatura determinista, a conclusão do capítulo traz uma interpretação
da guerra e da cultura da região como uma excrescência nas relações da sociedade do
país, como um hiato, retornando às noções de parêntese, hiato, página por escrever,
lugar nenhum.
Numa perspectiva sincrônica, esquecendo por instantes os determinantes de
época, podemos ler o fechamento do texto em torno de um viés etnocêntrico, onde
predomina a noção do anacronismo étnico e da postura de tabula rasa ante a cultura do
diferente, esta vista como imã e charco a sintetizar toda a cena por um pólo negativo.
Lendo Os sertões, Valentim Facioli irá assinalar o quanto o livro é
um caso exemplar de obra que sobrevive e permanece apesar de
seus erros de interpretação, de seus descompassos construtivos e
de linguagem e, ainda mesmo de teses verdadeiramente
disparatadas já no seu tempo, demonstrando que o anacronismo
e o atraso científicos não guardam relação linear e direta com
valores expressivos, porque estes podem transcender, obscurecer
ou superar aqueles, a engendrar contradições e ambiguidades
com outros sentidos que não os estabelecidos e reconhecidos
pela ciência e com isso preservando a obra, apesar de si mesma.
(FACIOLI, 1998, p. 38)
Adiante, Facioli vai sentir efeito estranhamente moderno do livro, que “não
espera passividade do leitor, senão seu compromisso de combate e choque com a obra e
suas idéias, tantos quanto são os choques ali narrados e interpretados”. Dentre esses
choques, os escombros de uma vitória ruinosa, fracassada.
Das missões
Em Tristes trópicos (s/d) Claude Lévi-Strauss pensa o lastro de remorso que
teria determinado o nascimento da etnografia no Ocidente. Ele também reflete sobre o
quanto as outras sociedades, sejam melhores ou piores que a nossa (“não o podemos
saber”) podem ajudar-nos a nos libertar das nossas, “não porque esta seja absolutamente
ou apenas má, mas porque é a única de que temos de nos libertar: libertamo-nos pelo
estado dos outros” (s/d: 493). Sobre a culpa originada na colonização das Américas, ele
sente que
para nós, Europeus e terrenos, a aventura no coração do Novo
Mundo significa em primeiro lugar que ele não é o nosso e que
transportamos conosco o crime de sua destruição; e em seguida
que não voltará a haver outro: regressando a nós próprios por
esta confrontação, saibamos, pelo menos, exprimi-la nos seus
termos iniciais – num local, e referindo-nos a um tempo em que
o nosso mundo perdeu a oportunidade que lhe era oferecida de
escolher entre as suas missões (s/d, p.494).
A antropóloga norte-americana Margareth Mead, em seu Sexo e temperamento
(s/d, p.24), lembra que as culturas humanas não pertencem a um ou a outro lado de
mesma escala. Em Os sertões, o narrador deplora o resolver a baionetas a questão de
Canudos, mas não disfarça o movimento de tentar puxar para frente, salvar para as
forças centrípetas da cultura central o matuto bronco, inferior na escala de tempo e
espaço. Das missões que se lhe passam na frente, essa parece a justa.
Permanece, no entanto, na visão de Míriam Gárate (1993), a dificuldade ou a
impossibilidade para a crítica literária de transitar “pelas obras nas quais as contradições
enquistaram-se, sem sacrificá-las em nome da unicidade de um julgamento
peremptório”.
Chover no encharcado seria discutir a dificuldade de interpretação de um livro
com certos traços tão reducionistas e outros dados de tanta beleza e expressividade
narrativa e poética – texto ao mesmo tempo belo, áspero, intratável. Seria o caso então,
de como tem feito a crítica, de lê-lo nas contra-linhas, retendo as vacilações de um
narrador que se apega a certezas mas, nas entrelinhas, fraqueja e vacila – em seus
momentos de maior força.
15 - Um certo encantamento táctil: outros Machados de Assis
Re-visões machadianas – um mergulho nos alforjes da memória, de Maria
Cristina Ribas, realiza uma estimulante leitura de correspondências privadas de
Machado de Assis com seus amigos e jovens escritores. Resultado de um enfrentamento
dos arquivos de Machado, conservados pela Academia Brasileira de Letras, o exercício
de análise e interpretação das cartas do escritor se baseia, sobretudo, em conceitos de
Michel Foucault (cuidado de si) e em certa noção de escritura e de texto presentes no
pensamento de Roland Barthes e também de Jacques Derrida. O texto dialoga ainda
fortemente com vertentes da tradição teórica brasileira, com destaque para autores como
Roberto Corrêa dos Santos, e com a crítica machadiana, representada, sobretudo, por
Sidney Chalhoub e Maria Helena Werneck.
Imergindo nos arquivos da Academia Brasileira de Letras, Maria Cristina Ribas
desenha neste seu ensaio facetas de um Machado de Assis pouco reconhecível,
incomum, atado a um solo social e um tempo, uma rotina, uma vida diária. Por vezes
longe do que nos soa como atemporal e universal – radical, nas recamadas produções de
sentido tensamente ativadas pelos grandes textos que Machado nos legou, ele mesmo
podendo ser percebido como um texto forte em si, tal sua marca inscrita em nossa
tradição.
O início do ensaio de Maria Cristina Ribas se faz narrativa, ao mirar com
indefinível atração e amor táctil a experiência do contato físico com os manuscritos; ao
expor sua visão suspensa ante os papéis amarelecidos, mas bem conservados das cartas
de Machado, com sua letra ora mais firme, ora traindo a vacilação da doença, sempre
em recolhida abertura aos seus interlocutores. Percebendo “a instabilidade no traço”,
Ribas nota como cada “risco parece acompanhar os dedos trêmulos do missivista”,
quando aquele “ponto-instante da carta coincide com relato de moléstia, com estar
acometido de algum mal”, percebendo ainda lapsos aonde a pena parece escorregar de
dedos tomados “pelo recorrente tremor que insinua estados reiterados de angústia, dor e
sofrimento”.
Conforme assinala, em algumas dessas cartas há uma “ênfase na descrição dos
humores melancólicos, feita insistentemente para os mais íntimos”. Em seu trabalho
analítico, Maria Cristina rastreia o comezinho de cartas que dizem pouco ou quase nada,
que se repetem, que ativam mais a função fática do que apresentam revelações íntimas
ou sobre situações e personalidades da época. Nelas, Machado pouco se expõe. Porém
amplamente dispõe-se à interlocução. Exibe suas fragilidades físicas e afetivas,
contempla e comenta o próprio envelhecimento, receita, prescreve, observa – como
maneira de atar o laço social, de lançar sentidos na convivência.
Ao mesmo tempo em que assume o avançar do tempo e as marcas em seu corpo,
Machado em alguns momentos ouve e fala com atenção sobre as obras dos amigos e
sobre o que estes falam das suas; noutros instantes revela o empenho em conseguir
emprego para um jovem autor que o solicita, e traz, como assinala Maria Cristina Ribas,
um dado viés de dimensão afetiva surpreendente para o leitor acostumado à ironia
machadiana. Como em trecho de carta endereçado em 1895 a Magalhães de Azeredo,
em trechos selecionados pela autora: “Conte-nos... o que sua alma de moço inspira...
Cada idade tem a sua poesia, mas a mocidade é de si mesma a poesia /.../ Disponha de
mim, e não deixe de crer que lhe quero muito e muito. Seu do coração, Machado de
Assis”.
A ensaísta evita a fixação biográfica tradicional, cristalizadora de um homem ou
autor como um uno. Prefere acompanhar o processo, as cartas como sintoma de vida
enquanto percurso, como cuidado de si e contra a solidão, como prática social,
percebendo um outro Machado ao mesmo tempo em fortíssima relação com os textos
ficcionais de alta-voltagem estética, que a autora analisa ao final do ensaio. Vendo
ainda, ao mesmo tempo, Machado como sujeito histórico, que ascendeu socialmente e
ocupou postos importantes junto à sociedade bem posta com suas iniqüidades
recalcadas, as quais sua ficção desfamiliariza, solapa, desmascara, desmoraliza,
descontrói.
Por outro lado, o texto resgata e faz justiça ao mesmo tempo a facetas menos
iluminadas da trajetória profissional do escritor, como a importância de Machado de
Assis em cargos burocráticos relacionados à aplicação da Lei do Ventre Livre e seu
empenho e papel em processos de libertação e alforria, quando foi chefe da seção
encarregada da emancipação de escravos. O que o texto informa e ressalta, revelando
assim a fragilidade do argumento de absenteísmo que acompanhou no passado algo da
recepção da obra de Machado, ratificando também na leitura da ficção o quanto tal
pecha não corresponde aos fatos, como outros estudos também já o provaram.
Mostrando ainda como, em seus cargos, Machado esteve envolvido vivamente com tais
questões, presentes também em seus movimentos de idéias traduzidos em outros textos,
desconfiados dos dogmas cientificistas – reducionistas --, que lhe foram
contemporâneos.
Um pouco deste contexto no qual viveu o escritor é colocado neste livro, ao
final, num glossário com 64 itens que situam o leitor em várias questões referentes ao
ambiente de produção, circulação e recepção da obra de Machado de Assis. Estão lá em
verbetes dados sobre intelectuais contemporâneos ao escritor, correntes de pensamento,
conceitos que iluminam dados do entorno social e histórico num olhar contemporâneo,
perfis de personagens, termos que definem correntes da crítica ou termos relacionados à
discussão do caráter nacional, etc. Além disso, há, após o glossário, um resumo de como
está organizado o Arquivo Machado de Assis na Academia Brasileira de Letras.
Colocando em cena seu próprio processo e suas próprias dúvidas, Maria Cristina
Ribas não disfarça, num primeiro momento, seu desconcerto frente ao Machado
diplomático, cordato, afetuoso que se revela nas cartas ao seu círculo de amigos.
Perscrutando a presença do Machado de Assis habitual em cartas do romancista, o texto
percebe um nada contar e sofre uma quebra de expectativa em relação à presença
machadiana nessas cartas (ausência talvez da ironia, do desvelamento social cru, das
revelações de linguagem).
Ante essa perplexidade inicial, o estudo dialoga com questões de autoria
pensadas por Roland Barthes, no que o semiólogo francês faz vacilar a noção de que
haveria uma só voz confessional por trás de narrativas, apontando o quanto isso
remeteria à noção de transparência entre realidade e ficção. Tal remissão a Barthes se
faz feliz numa pesquisa que ressalta as possibilidades de escritura múltipla em
Machado, escritor de textos que se mantêm vivos talvez por terem potencializado
esteticamente a co-presença textual de várias vozes sociais, polifonicamente dispostas,
para pensarmos com Mikhail Bakhtin.
Uma técnica de vida discreta, retraída, avessa a polêmicas públicas, parece ter
sido a forma escolhida ou possível por Machado de Assis para se inscrever na sociedade
de sua época, de bizarras contradições. Contradições estas corrosivamente expostas, nas
tensas e destronadoramente hilárias entrelinhas do seu fazer ficcional, investigadas em
vários aspectos centrais por Ribas na porção final de sua pesquisa.
Ao observar a conversa epistolar do romancista com seus contemporâneos, a
ensaísta vai percebendo a função social dos relatos. O que o faz, talvez, ainda tomada
pelo encantamento táctil do início, acrescido da compreensão dessa outra forma –
estranhamente óbvia e cuidadosa -- de Machado afirmar a alteridade, investido da
preocupação de comunicação e contato com seus pares. O ensaio coloca, de maneira
original, o exercício epistolar como, nas palavras da autora, “uma prática social na qual
se ligam o trabalho de si para consigo e a comunicação com o entorno, com outrem”.
Revela assim esse outro narrador machadiano que aconselha, ouve, se queixa de suas
dores, refletidas nos males físicos, nos estados da alma. Esse Machado de Assis que se
empenha em ligar mundos; que deita um olhar vivo e interessado para o seu entorno,
empenhado em – cuidando de si, cuidar do outro.
16 – Na conta da dor do mundo: a feroz paisagem interiorizada de Rita
no Pomar
Rita no pomar, de Rinaldo de Fernandes (2008), é uma narrativa de fuga. Isso se
percebe mesmo que não se leve em conta o dado do enredo ocultado do leitor pela
paralipse narrativa (GENETTE, p.193). Ou seja, pela informação que poderia ser
mostrada conforme o ponto de vista predominante, mas é escondida, elidida, para a
exploração posterior. A fuga no romance além de literal (como saberemos ao final), é
fuga interior, fortemente construída na sondagem do mundo íntimo e da memória da
personagem, pelos monólogos interiores, pelo fluxo de consciência, pelo artifício
esperto do monólogo em voz alta com o cachorro Pet.
Acompanhamos os fatos narrados pela repercussão deles na percepção da
personagem. A paulista Rita muda para um recanto do litoral da Paraíba, um lugar
imaginário chamado Pomar, próximo à geografia física e humana de seu entorno
referencial ficcionalmente reconstruído, o espaço das praias do município do Conde,
próximo à capital paraibana, João Pessoa.
Atraída pelo nome perdido no mapa – Pomar – vindo pela tangente da rota
nacional e internacional de turismo, Rita vem à Paraíba respirar. A cidade de São Paulo
e a geografia paulistana invadem o espaço narrativo, presentificadas na memória que
dispara em pausas narrativas135. Ali onde o vento, as pessoas, os lugares, o mar tomam a
frente da cena na relação de Rita com tais elementos, intercalando-se também com a
ação narrativa propriamente dita, na relação com os personagens nesse novo espaço que
ela instaura para sua vida.
135
Como assinalam Carlos Reis e Ana Cristina Lopes, “a pausa representa uma forma de suspensão do tempo da história, em benefício do tempo do discurso. Interrompendo momentaneamente o desenrolar da história, o narrador alarga-se em reflexões ou em descrições que, logo que concluídas, dão lugar de novo ao desenvolvimento das ações narradas. (...) Como quer que seja, a instauração da pausa decorre normalmente de uma atitude ativa do narrador que, não se limitando a relatar o devir da história, interrompe esse devir e concentra, nas pausas interpostas, elementos descritivos ou digressivos carregados de potencialidades semânticas. (REIS; LOPES, 273-274)
De São Paulo, emerge a lembrança recorrente da mãe cega e da empregada
antiga que a acompanha, do ex-marido escroque e dos sogros cujos olhares sufocadores
dão a medida do fracasso de Rita, na encarniçada luta nas sub-ocupações profissionais,
nas derrotas diárias na vida material e na precariedade do casamento. A vida instável e
sem garantias que os sogros medem e cobram, fatos sumarizados na sensação que resta
em Rita.
Em Pomar, a jornalista e revisora de textos é mostrada em intensa relação com a
natureza e se comprazendo nas atividades humildes de servir de bom grado num
restaurante, sem o sentido de fracasso, mas ainda opressa pelo olhar desconfiado e
exigente do filho do dono do restaurante, Márcio, único antagonismo aparente em
Pomar.
O litoral da Paraíba não é traçado como idílico, puro, nem representa a
possibilidade de um fugere urbem redentor. A especulação imobiliária (internacional) se
insinua, os pivetes vêm no rastro na praia vizinha, mas Rita parece equacionar isso
intimamente, sem se sentir ameaçada pela possibilidade de ocupação urbana pela qual
justifica sua fuga da grande cidade. O resort português anunciado para o local é uma
possibilidade de emprego serviçal ante a brisa da Paraíba e isso resolve o seu dia. O que
não quer dizer que interrompa sua batalha íntima, posta na conversa com o cachorro Pet,
dócil (como o leitor?), no que escreve no seu diário, nos seus minicontos, no que ela
pensa e vem narrativamente estruturado.
Se o trabalho em São Paulo é uma humilhação, na Paraíba não o é, ao menos na
resolução íntima de Rita. Mas a capital paulista está também ali, instalada na prosódia
paulistana que assoma e assinala o tempo todo o fato de ela estar em face de um outro –
intuído, desejado, talvez como possibilidade de libertação. Rita vem num estado de
língua que aponta o seu exílio, revelado no céu-inferno interior de todo dia, numa
inquietação íntima com um sotaque que lhe dá a feição e não soa nunca caricato,
trazendo-a ainda mais para perto do leitor.
Em Rita, no centro de sua memória buscada, de sua memória aflorada, estão
seus homens; seu marido André, de São Paulo, e o segundo, Pedro, conhecido no
Pomar. Em São Paulo, vê-se a repisada cobrança por um bom emprego e a lembrança
das patifarias de André; na praia da Paraíba, a descoberta vital de Pedro e também do
vento primordial – “o vento chama, é, ali nos coqueiros” (FERNANDES, p.55).
No lamber a pata, no levantar as orelhas, no recorrente “assoprar”, o cachorro
Pet é terno e submisso e é feito na medida de Rita. A imagem dos ex-maridos vem à
tona pela memória dela, submetidos pelo seu olhar, sem contraponto possível. Só há
variação de ponto de vista nos mini-contos incrustados na narrativa, entre estes, mas
todos colocados pela perspectiva de Rita, que controla o narrado. Mas não controla a
própria memória, que com freqüência vacila, entre velar e revelar, entre frustração e
prazer, entre amor e ódio, separados ou indissociáveis.
À degradação de São Paulo (metrôs lotados, sujeira nas ruas, ar sufocante) Rita
vai contrapor um mundo em intensa ligação com o entorno, onde a natureza em alguns
momentos é antropomorfizada, o mar ruge; noutros momentos, parece ser ela mesma,
no prazer táctil de Rita com os elementos naturais e na convivência com as pessoas.
Vento, mar, água barrenta, Piracicaba, Paraíba, Pedro, sertão, arrecifes, mar. Em alguns
momentos, em meio a isso tudo, parece haver um incêndio sob chuva rala.
Se Pedro principia no livro sendo “um peste”, esquecemos disso quando ele
retorna integrado à vida no Pomar e o personagem se desenha como uma das senhas
para essa nova vida. Tornando novamente a ser um peste, nessa narrativa de tempos e
espaços entrecruzados, na caracterização da protagonista cindida, fragmentada. Barra-
Funda, Conde; Carapibus, Cabo Branco.
Apartada da solidão desnaturada do mundo social desencantado, Rita parece
buscar em sua errância uma outra inscrição. Mas o que não tem governo, censura, juízo
– nunca terá e o desejo de Rita dispara na memória. Não há mundo possível a ser
deixado, Pet assopra e a toda hora esses assopros trazem a ela os seus dois homens, São
Paulo. Cada um fora feliz alguma vez e ficara com a marca do desejo136. O íntimo
desejo feroz de Rita, sua mãe, os homens de sua vida vivíssimos em sua memória, os
raios que os partam de sua sogra e seu sogro perseguindo-a, tudo vem junto como alma
penada e como forte atração. O cachorro presente, servindo como escape para tudo, em
sua submissão ideal.
Rita no título está no Pomar, numa capa de livro que traz a beleza plástica e
natural, um descanso à vista. No texto a presença da natureza nem idílica, nem virgem,
nem exótica, nem ingênua, é o espaço de restauração, a possibilidade de reinício, a
136 LISPECTOR, Clarice. A repartição dos pães. In: LISPECTOR, Clarice. Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987. p.89.
construída possibilidade de viver sem a potencialização da frustração, de nossa eventual
mediocridade. O ato de transgressão à Lei não é o assunto do livro, em que é sondada a
repercussão dos fatos na personagem, a presentificação da memória. Mas há um
desconforto também na fatura ficcional, que só abranda com a paisagem interior
acalentada pelo vento nos coqueiros – mas fica ainda assim uma solidão infinita.
Em O narrador pós-moderno, Silviano Santiago aponta os três estágios da
história do narrador sistematizados por Walter Benjamin em seu clássico ensaio O
narrador. O primeiro seria o do 1) narrador clássico, que teria por função “dar ao seu
ouvinte a oportunidade de um intercâmbio de experiência (único valorizado no ensaio)”.
O segundo se configuraria com o do narrador do romance, “cuja função passou a ser de
não mais poder falar de maneira exemplar ao seu leitor” (e aqui lembramo-nos da
observação de Benjamin de que o romancista está desorientado e não sabe aconselhar).
No terceiro momento, 3) o narrador, “que é jornalista”, só “transmite pelo narrar a
informação, visto que escreva não para narrar a ação da própria experiência, mas a que
aconteceu com x ou y” (SANTIAGO, 1989, p. 39).
No primeiro caso, o narrador expõe uma vivência, a experiência de uma ação.
Nos dois seguintes, o narrador passa “uma informação sobre outra pessoa”, tem a
“experiência proporcionada por um olhar lançado” (SANTIAGO, 1989, p. 38). Ainda:
no primeiro caso (narrador clássico) “a coisa é mergulhada na vida do narrador e dali
retirada”. No romance, “a coisa narrada é vista com objetividade pelo narrador, embora
este confesse tê-la extraído de sua vivência”. No terceiro momento, “a coisa narrada
existe como puro em si, ela é informação, exterior à vida do narrador” (SANTIAGO,
1989, p. 40). Para Santiago, o narrador pós-moderno é o que transmite
uma ‘sabedoria’ que é decorrência da observação de uma vivência alheia a
ele, visto que a ação que narra não foi tecida na substância viva da sua
existência. Nesse sentido, ele é o puro ficcionista, pois tem de dar
‘autenticidade’ a uma ação que, por não ter o respaldo da vivência, estaria
desprovida de autenticidade. Esta advém da verossimilhança que é produto
da lógica interna do relato. O narrador pós-moderno sabe que o ‘real’ e o
‘autêntico’ são construções de linguagem. (SANTIAGO, 1989, p. 40)
Santiago observa ainda como, no primado da informação, a figura do narrador
passa a ser a de “quem se interessa pelo outro (não por si) e se afirma pelo olhar lançado
ao seu redor, acompanhando seres, fatos e incidentes (e não por um olhar [...] que cata
experiências vividas no passado)”. Dessa maneira, assinala Santiago, “pode-se falar que
o narrador olha o outro para levá-lo a falar (entrevista), já que ali não está para falar das
ações de sua experiência” (SANTIAGO, 1989, p. 43).
Rita no Pomar nos dá a proximidade de uma alteridade retorcida, reveladora do
feminino e também do mal-assombrado dia diário da convivência social (e conjugal),
em suas cobranças e impasses. E nos põe diante do terrífico da transgressão. O livro
desloca e desconforta o leitor, que vira o rosto ao final, o horror diante dos crimes que
(ainda bem) não cometeu. E pela intimidade construída com essa misteriosa mulher (e
todas o são), erguida na relação com o mundo e com as coisas – a lua, os morros, as
matas, o mar o mar o mar. Recantos, lugares, na memória que mistura vertiginosamente
todo tempo e todo espaço. Cabo Branco, Carapibus, Rio Claro, Perdizes; Parque da
Água Branca, Praia Redonda, Pomar. Na partilha da dor do mundo, o leitor adere e
depois se repugna diante do gesto imperdoável e da fala ameaçadora de Rita.
Ancorando-se no olhar lançado ao seu redor, a narrativa não legisla, não julga,
nem tampouco se compraz com o ato violento; o observa desde dentro. Lance
sintomático de certa distopia nacional, presente em narrativas literárias e fílmicas como
Estômago, O matador, O homem do ano, O invasor, Cidade de Deus.
A narrativa é distópica, disfórica; se Rita é um fragmento sem redenção, sem
travessia a ser ressignificada, que a justifique, na dor do mundo, o sonho de Rita de
fundar para sua vida um mundo novo, de se encantar por um nome de um lugar perdido
no mapa, traz um vento assim: no Nordeste faz calor, mas lá tem brisa – vamos viver de
brisa.
Da íntima cena tensa que domina várias porções da narrativa há a interação com
a paisagem humana, na convivência quase terna de Rita com os colegas de restaurante.
Da generosa carona desinteressada numa Kombi, ela vê e a narrativa nos mostra a
generosidade de amigos para com amigos, generosidade esta que se desenha numa doce
esculhambação tropical, talhada aos gritos: “O motorista, um moreno brincalhão (parava
em portas de oficinas para acenar e, aos gritos, provocar amigos)”. A narrativa extrai
nesses momentos a graça da vida diária, vista também em sua leveza e calor.
Se o romance ao final não define a punição de Rita – para purgar os nossos
crimes e porque ela merece – não tira do leitor a chance de criar para si um outro tempo
e lugar; e de, mesmo que para Rita não dê mais pé, atar a possibilidade de, no plano
individual e coletivo, recomeçar, recomeçar, recomeçar; recriar um outro mundo,
transformar o caos em cosmos.
BIBLIOGRAFIA
ADORNO, T. & HORKHEIMER, M. “Conceito de Iluminismo”. In: BENJAMIN, Walter et.al. Textos escolhidos/ Benjamin, Horkheimer, Adorno, Habermas. São Paulo: Abril, 1980 (Os pensadores). ANDREW, Dudley. As principais teorias do cinema. Rio de Janeiro: Zahar, 1989. ARIÈS, Phillipe. História social da criança e da família. Trad. Dora Flaksman. 2ª ed. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1981. ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Sousa. Porto Alegre: Globo, 1966. ARRAES, Guel; FURTADO, Jorge. ROTEIRO As três palavras divinas. Autoria: Guel Arraes e Jorge Furtado. Versão 13 de agosto de 2003. Disponível em http://www.roteirodecinema.com.br/banco/banco_tv_doc_pub.htm Acesso em 29 de março de 2006. ARRAES, Guel; FURTADO, Jorge. Roteiro de A hora da estrela. Versão 13 ago. 2003. Disponível em: <http://www.casacinepoa.com.br>. Acesso em: 27 mar. 2007. AUMONT, Jacques e MARIE, Michel. Dicionário teórico e crítico de cinema. Campinas: Papirus, 2003. AUMONT, Jacques. A estética do filme. Campinas: Papirus, 2002. AZEVEDO, Ana Luiza. Dona Cristina perdeu a memória; Três minutos. In: Curtas da Casa de cinema de Porto Alegre, 2005. DVD (165 min), son., color. BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981. BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética. Trad. Aurora Bernardini et al.. São Paulo: Hucitec, 1993. BAKHTIN, Mikhail. A tipologia do discurso na prosa. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da literatura em suas fontes. 2 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. pp.462-84. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1988. BARBOSA FILHO, Hildeberto. Ruído, estranhamento, comunicação. In: O giz e a letra. João Pessoa: Manufatura, 2003. BARROS, Diana Luz Pessoa de (1997). Contribuições de Bakhtin às teorias do discurso. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. Campinas, SP: Editora da Unicamp. pp. 27-38. BARTHES, Roland. O grau zero da escritura. São Paulo: Cultrix, 1971. BAZIN, André. O cinema – ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991. BENJAMIN, Walter et.al. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: BENJAMIN, Walter et al. Textos escolhidos/ Benjamin, Horkheimer, Adorno, Habermas. Trad. José Lino Grunnewald. São Paulo: Abril, 1980-b. (Os pensadores). BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. In: BENJAMIN, Walter et al. Textos escolhidos/ Benjamin, Horkheimer, Adorno, Habermas. Trad. José Lino Grunnewald. São Paulo: Abril, 1980-c. (Os pensadores). BENJAMIN, Walter. et.al. O narrador. In: BENJAMIN, Walter et al. Textos escolhidos/ Benjamin, Horkheimer, Adorno, Habermas. Trad. José Lino Grunnewald. São Paulo: Abril, 1980-a. (Os pensadores). BERGSON, Henri. O riso. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1980. BETTON, Gerard. Estética do cinema. São Paulo, Martins Fontes, 1987. BLIKSTEIN, Izidoro. Técnicas de comunicação escrita. São Paulo: Ática, 2001. BRAGA, J.L. A sociedade enfrenta sua mídia. São Paulo: Paulus, 2006.
BRITO, João Batista de. Imagens amadas. São Paulo: Ateliê, 1995. BRITO, João Batista de. Narrativas em conflito: três questões diferentes sobre a diferença entre literatura e cinema. In: Letra Viva. V.1 n.3 João Pessoa: Idéia, 2001. pp.59-70. CANDIDO et. al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1992. CANDIDO, Antonio. “Crítica e sociologia”. In: Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. São Paulo, T.A. Queiroz, 2000; Publifolha, 2000. pp.5-16. CANDIDO, Antonio. No começo de fato era o verbo. In: LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo GH/ Clarice Lispector. Ed. crítica/ Benedito Nunes, coord. Paris, Association africaine du Xxe; Brasília, DF, CNPq, 1988. p. XIX. CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989.p.805. CHKLOVSKI, V. A arte como procedimento. In: EIKHENBAUM, B. Teoria da literatura – formalistas russos. Ana Filipouski; Maria Aparecida Pereira; Regina Zilberman; Antônio Hohlfeldt. Porto Alegre: Globo, 1976. p.45. CORTÁZAR, Júlio. Valise de cronópio. Trad. Davi Arrigucci Jr. e João Alexandre Barbosa. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1993. (Col. Debates, 104). COSTA LIMA, Luiz. Nos Sertões da oculta mimesis. In: COSTA LIMA, Luiz. O controle do imaginário – Razão e imaginário no Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 1984, pp. 200-241. COSTA LIMA, Luiz. Terra ignota. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1997. COSTA, Cristina. Ficção, comunicação e mídias. São Paulo: Editora Senac, 2002. CUNHA, Euclides das. Os sertões. São Paulo: Círculo do livro, s/d. DAL FARRA, Maria Lúcia. O narrador ensimesmado. São Paulo: Ática, 1978. ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano – a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1996. FACIOLI, Valentim. Euclides da Cunha: consórcio de ciência e arte (Canudos: o sertão em delírio). In: BRAIT, Beth (org.) O sertão e os sertões. São Paulo: Ciência & Arte, 1998. FARIAS, Sônia Lúcia Ramalho de. A movência do ficcional ou a astúcia da mímesis: A hora da estrela, de Clarice Lispector. Correio das Artes, João Pessoa, p. 2, 06 dez. 1992. FAUSTO NETO, Antônio et al. Comunicação e corporeidades. João Pessoa: EDUFPB, COMPOS, 2000. FAUSTO NETO, Antônio; PRADO, José Luiz Aidar; PORTO, Sérgio Dayrrel (org). Campo da comunicação – caracterização, problematizações e perspectivas. João Pessoa: EDUFPB, 2001. FERNANDES, Rinaldo de. Rita no pomar. Rio de Janeiro: 7letras, 2008. FRANCO JÚNIOR, Arnaldo. O Kitsch na obra de Clarice Lispector. São Paulo, 1993. Dissertação (mestrado). Universidade de São Paulo, 1993. FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Tradução de Walderedo Ismael de Oliveira. São Paulo: Círculo do Livro, s /d. FREUD, Sigmund. O estranho. In: Uma neurose infantil e outros trabalhos. Tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976. pp.275-314. FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. trad. Walderedo Ismael de Oliveira. São Paulo: Círculo do Livro, 1991. 2 vols. FRIEDMAN, Norman. (1967) “Point of the view in fiction, development of a critical concept”. In: STEVICK, Philip. The theory of the novel. New York: The Free Press: pp. 127-171.
FRYE, Northrop. Anatomia da crítica. Tradução de Péricles Eugênio da Silva Silva Ramos. São Paulo: Cultrix, 1973. p.165. FURTADO, Jorge. Roteiro do curta-metragem Esta não é sua vida. Disponível em http://www.casacinepoa.com.br/es/os-filmes/roteiros/esta-n%C3%A3o-%C3%A9-sua-vida-texto-final Acessado em 6 de março de 2010. FURTADO, Jorge. CENA ABERTA – a magia de contar uma história. Episódio As três palavras divinas. Direção: Guel Arraes, Jorge Furtado e Regina Casé. Roteiro Guel Arraes e Jorge Furtado. Intérpretes: Regina Casé, Luiz Carlos Vasconcelos e outros. GLOBOFILMES, 2004. DVD (133 min), son., color. FURTADO, Jorge. Ilha das Flores; Sanduíche; Esta não é sua vida; Felicidade é... Estrada. Curtas da Casa de cinema de Porto Alegre. Direção: Jorge Furtado. Intérpretes: Janaína Kremer, Felippe Monnaco, Pedro Cardoso e outros. CASA DE CINEMA DE PORTO ALEGRE, 2005. DVD (185 min), son., color. FURTADO, Jorge. Roteiro de Houve uma vez dois verões. Disponível em www.casacinepoa.com.br. Acessado em 07 de março de 2008. GALVÃO, Walnice Nogueira. “O correspondente de guerra Euclides da Cunha”. In: Saco de gatos: ensaios críticos. São Paulo, Duas Cidades, Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, 1976. GÁRATE, Mírian V. “Civilização e barbárie n’Os sertões – o itinerário de uma desilusão”. Remate de Males. Departamento de Teoria Literária – IEL/UNICAMP, Campinas, (13): 49, 1993, p. 57-66. GENETTE, G. O discurso da narrativa. Trad. Fernando Cabral Martins. Lisboa: Vega Universidade, s/d. GOMES, Paulo Emílio Sales. “A personagem cinematográfica”. In: CANDIDO, Antonio et al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2002. pp. 103-119. HELENA, Lúcia. “De gênese e de gente: a luminosidade do escuro”. In: LISPECTOR, Clarice. A maçã no escuro. 8ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992. pp.1-4. JACOBSON, Roman. Linguística e comunicação. Trad. Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1985. Kafka, Franz. A metamorfose. Trad. e posfácio Modesto Carone. São Paulo, Brasiliense, 1996. KHEL, Maria Rita e Eugênio Bucci. Videologias – ensaios sobre televisão. São Paulo: Boitempo, 2004 (Col. Estado de sítio). KHEL, Maria Rita. Caras do Brasil. Disponível em < noticias.aol.com.br/revista/edicao_2/11_Revista_caras.pdf > Acesso em : 04 de agosto de 2006. LEE, SPIKE. PLANO PERFEITO (Inside Man). Direção: Spike Lee. Roteiro: Russell Gewirtz. Intérpretes: Denzel Washington, Clive Owen, Jodie Foster e outros. UNIVERSAL PICTURES, 2006. DVD (129 min), son., color. LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. Lisboa, Portugália; São Paulo, Martins Fontes, s/d. LÉVI-STRAUSS, Claude. Lévi-Strauss - uma entrevista exclusiva com o mestre do estruturalismo. FOLHA D': Suplemento do Jornal Folha de São Paulo. Domingo, 22 de outubro de 1989. pp.22-29. LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. São Paulo: Nacional, 1970. LÉVI-STRAUSS. “Raça e história”. In: Lévi-Strauss. 2ªed. São Paulo: Abril Cultural, 1980. (Col. Os pensadores). LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. 3ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992-b.
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. 18ª. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990. LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo GH. Paris: Association Archives de la littérature latino-americáine, des Caraibes et africaine du XXe. Siècle; Brasília: CNPq, 1988. LISPECTOR, Clarice. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. LISPECTOR, Clarice. Felicidade clandestina. 7ª. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1987. LISPECTOR, Clarice. A bela e a fera. 4 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992. LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. 18ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990. LISPECTOR, Clarice. A maçã no escuro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. LISPECTOR, Clarice. Laços de família. 18ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. LOTMAN, Yuri. Estética e semiótica do cinema. Lisboa: Estampa, 1978. MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. São Paulo, Brasiliense, 1990. MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Editora Brasiliense, 2003. MARTIN-BARBERO, Jesus. Dos meios às mediações – Comunicação, cultura, hegemonia. Rio de Janeiro: EDUFRJ, 2009. MARTINS, Gilberto Figueiredo. As vigas de um heroísmo vago – três estudos sobre A maçã no escuro. São Paulo, 1996. Dissertação (mestrado). Universidade de São Paulo, 1996. MATOS, Olgária. A escola de Frankfurt: luzes e sombras do iluminismo. São Paulo: Moderna, 1993. (Coleção Logos). MATOS, Olgária. “Desejo de evidência, desejo de vidência: Walter Benjamin”. In: NOVAES, Adauto. O desejo. São Paulo; Rio Janeiro: Companhia das Letras; Funarte, 1990, p. 289. MEAD, Margareth. Sexo e temperamento. São Paulo: Perspectiva, s/d. MEDINA, Cremilda. Entrevista, o diálogo possível. São Paulo: Ática, 1990. MEIRELLES, Fernando. CIDADE DOS HOMENS. 4 temporadas. Direção: Fernando Meirelles, Jorge Furtado, Regina Casé, Paulo Morelli e outros. Intérpretes: Darlan Cunha e Douglas Silva e outros. GLOBO FILMES. 2002; 2003; 2004; 2005. DVD, son., color. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Freitas Bastos, 1971. METZ, C. “A grande sintagmática do filme narrativo”. In: BARTHES, R. Análise estrutural da narrativa. Petrópolis: Vozes, 1971. MOISÉS Leyla. A fantástica verdade de Clarice. In: ______. As Flores da Escrivaninha. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. MOUSINHO, Luiz Antonio. Cidade dos homens: anotações sobre a adaptação do livro Uólace e João Victor. In: CATANI, Afrânio; Garcia, Wilton; Fabris, Mariarosaria (org.) Estudos Socine de cinema: ano VI. São Paulo: Nojosa edições, 2005. pp.95-102. MOUSINHO, Luiz Antonio. “O telespectador deslocado: o programa Cena aberta e o seriado Cidade dos homens.” In: PAIVA, C.; BARRETO, E.; SÁ BARRETO, V. (Org.). Mídia e culturalidades: análise de produtos, interações e de fazeres midiáticos. João Pessoa: Ed. da UFPB, 2007. pp.115-140. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. “Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral”. In: Obras incompletas. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Col. Os pensadores). Vol. 1, pp.29-38. NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. São Paulo: Ática, 1988. NUNES, Benedito. O drama da linguagem. São Paulo: Ática, 1987.
NUNES, Benedito. “O mundo imaginário de Clarice Lispector”. In: O dorso do tigre. São Paulo: Perspectiva, 1987. pp.269-281. PALLOTTINI, Renata. Dramaturgia de televisão. São Paulo: Moderna, 1998. PELLEGRINI, Tânia et al (2003), Literatura, cinema, televisão. São Paulo: Editora Senac; São Paulo: Instituto Itaú Cultural. PERRONE-MOISÉS, Leyla. “A fantástica verdade de Clarice”. In: PERRONE-MOISÉS, Leyla. As flores da escrivaninha. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, pp. 159-187. PINTO, Milton José. Comunicação e discurso: introdução à análise de discursos. São Paulo: Hacker editores, 2002. POE, E. A. “A filosofia da composição”. In: POE, Edgar Allan. Poemas e ensaios. Trad. Oscar Mendes, Milton Amado. 2ª ed. Rio de Janeiro: Globo, 1987. p. 109. PONTIERI, Regina. Clarice Lispector – uma poética do olhar. São Paulo: Ateliê Editorial, 1999. PROUST, Marcel. No caminho de Swann. trad. Mário Quintana, 11ª ed. Rio de Janeiro: Globo, 1987. PUCCI, Renato. Cinema moderno e de vanguarda na TV: o paradoxo pós-moderno de Cena aberta. In: HAMBURGUER, Esther; SOUZA, Gustavo; MENDONÇA, Leandro; AMÂNCIO, Tunico (org.) Estudos de cinema. São Paulo, Annablume; Fapesp, Socine, 2008 (Estudos de cinema – Socine IX). p.329. PUCCI, Jr. Renato Luiz. “De Godard para Guel Arraes: o cinema moderno como matriz para a tv”. In: MACHADO Jr, Rubens; SOARES, Rosana de Lima; ARAÚJO, Luciana Corrêa. São Paulo: Annablume; Socine, 2006 (Estudos de Cinema – Socine, VII). RASTIER, François. Sistemática das isotopias. In: GREIMAS, A.J. Ensaios de semiótica poética. São Paulo: Cultura/ Edusp, 1975. pp.96-125. REIS, Carlos & LOPES, Ana Cristina. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo: Ática, 1998. RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da tv. Rio de Janeiro: Record, 2000. ROSENFELD, Anatol. “Literatura e personagem.” In: CANDIDO, Antonio et al. In: A personagem de ficção. São Paulo, Perspectiva, 1992, pp. 09-50. ROUANET, Sérgio Paulo. Édipo e o anjo: itinerários freudianos em Walter Benjamin. 2 ed. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1990 (Col. Tempo Universitário, 63). SANTIAGO, Silviano. “O narrador pós-moderno”. In: SANTIAGO, Silviano. Nas malhas da letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. SANTOS, Boaventura. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1997. SANTOS, Roberto Corrêa dos. “Discurso feminino, corpo, arte gestual, as margens recentes.” Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 1, n. 104, pp. 49-64, jan./mar. 1991. SANTOS, Roberto Corrêa dos. Clarice Lispector. São Paulo: Atual, 1987. (Série Lendo). SANTOS, Roberto Corrêa. Para uma teoria da interpretação – semiologia, literatura e interdisciplinaridade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989. SARAIVA, Leandro; CANNITO, Newton. Manual de Roteiro, ou Manuel, o primo pobre dos manuais de cinema e tv. São Paulo: Conrad Editora, 2004. SODRÉ, Muniz. Sociedade, mídia e violência. São Paulo: Sulina: Edipucrs, 2002. SODRÉ, Muniz; FERRARI, Maria Helena. A comunicação informativa. In: SODRÉ, Muniz; FERRARI, Maria Helena. Técnica de redação: o texto nos meios de comunicação. 3. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982. pp.5-14.
SPERBER, Suzi. “Jovem com ferrugem”. In: Schwarz, Roberto (org.) Os pobres na literatura. São Paulo, Brasiliense, 1983. SQUEFF, Ênio. “Os sertões: O real como obra de arte”. In: CUNHA, Euclides da. Os sertões. São Paulo, Círculo do Livro, s/d. STAM, Robert. Bakhtin – da teoria literária à cultura de massa. São Paulo: Ática, 1992. STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Tradução de Fernando Mascarello. Campinas, SP: Papirus, 2003. STRAUSZ, Rosa Amanda. (2003). Uólace e João Victor. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003. TOLSTÓI, Leon. As três palavras divinas. Disponível em: http://paginas.terra.com.br/arte/ecandido/mestr123.htm. Acesso em 29 março 2006.
VANOYE, François e GOLIOT-LÉTÉ, A. Ensaio sobre a análise fílmica. Campinas: Papirus, 1994. VENTURA, Roberto. “Euclides da Cunha”. Remate de Males. Departamento de Teoria Literária – IEL/UNICAMP, Campinas, (13): 49, 1993, pp. 41-46. WALDMAN, Berta e ARÊAS, Vilma. Eppur, se muove. REMATE DE MALES: Revista do Dep. de T. Literária da Unicamp. Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, 1989. (9): pp 161-170. XAVIER, Ismail. (2003) “Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção”. In: PELLEGRINI, Tânia et al. 2003 Literatura, cinema, televisão. São Paulo: Editora Senac; São Paulo: Instituto Itaú Cultural. XAVIER, Ismail. A experiência do cinema (org). Rio de Janeiro: Graal, 1983.