A REPRESENTAÇÃO DAS MULHERES BRASILEIRAS EM UM RELATO DE VIAGENS DO SÉCULO XXI
Ruan Fellipe Munhoz (UEM)
Resumo O relato Viaje al otro Brasil: Del Mato Grosso a la Amazonia y al Nordeste Atlántico (2002), publicado pelo espanhol Javier Nart, apresenta uma visão do Brasil a partir do deslocamento por parte do centro-oeste, norte e nordeste. Intencionamos trabalhar nessa comunicação especificamente com a imagem que esse estrangeiro constrói da mulher negra brasileira, tendo em vista que na maioria das vezes ela é representada como exótica ou como objeto digno de apreciação e deleite. Diante dessa problemática, analisamos a questão dos estereótipos na produção dos preconceitos e manutenção do poder hegemônico, visando à contestação dessas imagens violentas que inferiorizam e desmoralizam as mulheres brasileiras. Palavras-chave: Relato de viagens; Eurocentrismo; Preconceito. Introdução
A escrita pode ser utilizada para romper as barreiras sociais, funcionando
como uma forma de resistência contra os poderes hegemônicos instituídos em uma
sociedade. Porém, ao pensar nos textos pertencentes ao gênero relato de viagens,
observamos que eles apresentam memórias, informações sobre as experiências
vividas e imagens muitas vezes pautadas em uma postura opressora do viajante
estrangeiro. Sendo assim, tudo o que nos é transmitido não reflete a realidade, mas
uma imagem produzida por um indivíduo inserido em determinada sociedade,
detentor de uma cultura específica e reprodutor de ideologias próprias da sua classe
social.
Baseado nesses pressupostos, apresentamos uma leitura do relato Viaje al
otro Brasil: Del Mato Grosso a la Amazonia y al Nordeste Atlántico (2002), escrito
pelo espanhol Javier Nart a partir de uma viagem de quarenta dias que tem início no
município de Bonito, Mato Grosso do Sul, e termina na ilha de Fernando de
Noronha, arquipélago brasileiro situado no estado de Pernambuco. Dois lugares
bastante famosos por seres destinos turísticos brasileiros.
Importante indicar que o autor, além de escritor, é advogado, antigo
correspondente de guerra, fotógrafo e político. Especificamente nessa obra, ele
apresenta uma narrativa em primeira pessoa, construindo uma tradução do Brasil
pelo contato entre culturas. O que fica evidente nessas representações é o
eurocentrismo desse viajante que não consegue se desvencilhar das suas
ideologias colonizadoras e, por isso, repete imagens difundidas desde que os
primeiros homens invadiram esta terra.
Nosso objetivo nessa comunicação é refletir sobre as imagens do outro
(re)produzida por um eu estrangeiro que expõe marcas do discurso patriarcal e
colonizador, características que oprimem e silenciam as figuras femininas
observadas. Assim, podemos analisar as imposições sobre as mulheres brasileiras,
principalmente a negra, inferiorizada pelos homens e colocadas em estado de total
subserviência. A mulher brasileira pelos olhos do homem estrangeiro
Considerando que a imagem da mulher negra brasileira sempre foi concebida
com base em algumas construções estereotípicas, buscamos trabalhar com duas
imagens específicas. A primeira apresenta a mulher como um objeto útil que
encontra o seu espaço e sua serventia nos trabalhos domésticos. Essa imagem,
retomada também dos tempos da escravidão, coloca a mulher negra em posição de
total subalternidade em relação ao homem, seja ele patrão ou marido.
Em seguida, trabalhamos com a mulher descrita a partir da volúpia e
sensualidade. O caráter generalizante dessa construção reduz a mulher negra a
seres animalizados, hipersensualizados e sexualizados, transformando-as em
objetos destinados a contemplação e deleite, essencialmente por não se adequarem
ao modelo branco instituído como “natural”.
Importante destacar que esses dois estereótipos reforçam a objetificação das
mulheres, uma vez que elas são vistas como utilitárias por esse viajante
macho/espanhol/colonizador. Dessa forma, estamos diante das discussões sobre a
problemática da representação da mulher inserida em um contexto de subordinação
e de subalternidade, evidenciando os mecanismos de dominação masculina. A esse
respeito, Bonnici (2007) assevera que a mulher nas colônias é duplamente
colonizada, pois são atingidas pelo poder colonial e pela dominação do patriarcado.
Em outras palavras, como sujeitos pós-coloniais, elas são inferiorizadas tanto pelas
questões que concernem à raça, quanto ao sexo.
Considerações finais
Os mecanismos que formatam o imaginário de um povo e a forma como ele
recria a imagem do outro é complexo, por isso nos deparamos constantemente com
estereótipos baseados em preconceitos explicáveis por fatores históricos, sociais e
reforçados pela mídia e por uma elite com pensamento colonizador. Indiscutível é
que tais estratégias são utilizadas com uma finalidade específica, o objetivo sempre
será a manutenção do poder colonial.
Na obra analisada, podemos observar que o viajante explora o corpo feminino
e se acha no direito de falar por elas, de mostrar o que sentem e dizer quem são.
Ele um homem, europeu, relativamente rico, inserido em uma cultura dominante e
hegemônica que lhe permite usufruir da sua posição privilegiada e possuir, quer
literal ou metaforicamente, do corpo da mulher brasileira.
Ademais, em nenhum momento esse narrador abre espaço para que as
mulheres falem dos seus sentimentos e percepções do mundo. Elas passam a ser
parte da paisagem, admiradas como seres objetificados. Sendo assim, a narrativa
não apresenta uma expressão da realidade, senão uma representação feita com
base na ideologia dominante de um viajante europeu.
Por fim, nosso intuito nessa comunicação é discutir as imagens construídas a
partir do discurso dominante que, mesmo se utilizando de mecanismos subjetivos e
sutis, demonstram que o racismo ainda é latente na sociedade. A partir desse
exercício, podemos repensar as imagens simplistas historicamente estabelecidas e
o preconceito nelas inseridas, o que possibilita a desconstrução de estereótipos
negativos e a reflexão sobre as inúmeras barreiras enfrentadas pelas mulheres. Referências AHMAD, A. Linhagens do presente. São Paulo: Boitempo, 2002. BONNICI, T. Teoria e crítica literária feminista: conceitos e tendências. Maringá: Eduem, 2007. CARRIZO RUEDA, S. A. Construcción y recepción de fragmentos de mundo. In: CARRIZO RUEDA, S. A. (ed.) Escrituras del viaje. Buenos Aires: Biblos, 2008. DIJK, T. A. van (org.). Racismo e discursos na América Latina. Ed. Contexto-Unesco-Brasil, 2008. PRATT, M. L. Os olhos do império. Bauru: USC, 1999. SAID, E. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. SILVA, P. V. B. da; ROSEMBERG, F. Brasil: Lugares de negros e brancos na mídia. In: Dijk, Teun A. van (org.). Racismo e Discurso na América Latina. São Paulo: Contexto, 2012.