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URANDI ROBERTO PAIVA FREITAS

A QUESTÃO DO SUPERÁVIT PRIMÁRIO COMO ENTRAVE AO CRESCIMENTO ECONÔMICO (O CASO DO BRASIL 1999- 2004)

SALVADOR 2005

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URANDI ROBERTO PAIVA FREITAS

A QUESTÃO DO SUPERÁVIT PRIMÁRIO COMO ENTRAVE AO CRESCIMENTO ECONÔMICO (O CASO DO BRASIL 1999 -2004)

Versão final da monografia a ser apresentada no curso de graduação de Ciências Econômicas da Universidade Federal da Bahia como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Ciências Econômicas

Orientador: Prof. Dr. Bouzid Izerrougene

SALVADOR

2005

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URANDI ROBERTO PAIVA FREITAS

A QUESTÃO DO SUPERÁVIT PRIMÁRIO COMO ENTRAVE AO CRESCIMENTO ECONÔMICO (O CASO DO BRASIL 1999 -2004)

Aprovada em _________________________. Orientador: __________________________________ Prof. Dr. Bouzid Izerrogene Faculdade de Ciências Econômicas da UFBA _____________________________________________ Prof. Dr. João Damásio Faculdade de Ciências Econômicas da UFBA _____________________________________________ Prof . Osmar Sepulveda Faculdade de Ciências Econômicas da UFBA

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RESUMO

Esta monografia visa demonstrar por via teórica e empírica a ineficiência do superávit primário como fator de contenção da dívida pública, bem como sua inviabilidade no que concerne ao crescimento econômico. Neste sentido será discutido o modelo de gestão fiscal e dívida pública implementados no período de 1999 a 2004, baseado na austeridade fiscal (corte de gastos públicos e aumento da carga tributária) e seus impactos na demanda agregada via multiplicador. Palavras chave: Dívida pública/PIB. Superávit primário. Efeito multiplicador.

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AGRADECIMENTO Agradeço de coração á minha família, que sempre me incentivou e me apoiou nesta longa caminhada acadêmica; aos meus colegas que sempre propiciaram bons momentos de estudo e diversão e aos professores, de maneira geral, por ter dado suporte teórico necessário para a minha formação profissional. Agradeço, em especial, ao professor Bouzid, por ter dedicado seu escasso tempo nos debates e discussões que contribuíram para viabilizar este trabalho.

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Dedico este trabalho à minha avó, Zelita Paiva, em memória. Minha maior incentivadora.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Quadro 1 – Matriz Departamental 14

Tabela 1 – Relação crescimento real do PIB e superávit primário (em %) 26

Gráfico 1 − Detentores da Dívida Pública Interna (2004) 29

Gráfico 2 − Comportamento do SP e Ji do Setor Público Consolidado 31 Gráfico 3 − Composição da Dívida Pública Mobiliária Financeira Interna 33 Tabela 2 − Superávit primário como porcentagem do PIB, em condições de estabilidade da relação dívida/PIB, como função da taxa de crescimento do PIB e da taxa de juros 36

Tabela 3 − NFSP nominal como percentagem do PIB, em condições de estabilidade da relação dívida/PIB, como função da taxa de crescimento do PIB e da relação dívida/PIB 36

Gráfico 4 − Superávit Primário Consolidado 39

Gráfico 5: Comportamento da DLSP 40

Gráfico 6 − Evolução da DLSP não financeira consolidada (2002) 42

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SUMÁRIO 1 INTRODUÇ ÃO 8 2 OS FUNDAMENTOS MACROECONÔMICOS DO DÉFICIT PÚBLICO

9

2.1 AS FORMULAÇÕES TEÓRICAS DE KEYNES SOBRE A “DEMANDA EFETIVA” E O MULTIPLICADOR DE GASTO 9 2.2 A VISÃO KALECKIANA SOBRE O PRINCÍPIO DA DEMANDA EFETIVA 13 2.3. A ANTECIPAÇÃO DOS CONTRIBUINTES E A TEORIA DA EQUIVALÊNCIA RICARDIANA 22 3 A RELAÇÃO DÉFICIT PÚBLICO E CRESCIMENTO ECONÔMICO 25 3.1 A REDUÇÃO DO DÉFICIT ORÇAMENTÁRIO É RECESSIVA? 25 4 A ANÁLISE DO COEFICIENTE DÍVIDA PÚBLICA/PIB (O CASO DO BRASIL 1999-2004) 28 4.1 GESTÃO REAL VERSUS GESTÃO NOMINAL 28 4.2 SIMULAÇÃO PARA A ESTABILIDADE DA RELAÇÃO DLSP/PIB 34 4.3 A EVOLUÇÃO DA DÍVIDA PÚBLICA BRASILEIRA (1999-2004) 38 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 46 REFERÊNCIAS 48

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1 INTRODUÇÃO

A presente monografia tem como objetivo mais geral analisar por via teórica e empírica o

modelo de gestão fiscal e dívida pública introduzido no Brasil a partir de 1999, devido à

necessidade de se realizar superávits cada vez mais consistentes.

No ano de 1999, em meio ao cenário externo agitado pelas crises internacionais e uma

situação abalada pela crise cambial, o país foi obrigado, mais uma vez na sua história, a

recorrer ao FMI (Fundo Monetário Internacional) a fim de viabilizar um acordo para

liberação de empréstimo. Dessa vez, tendo que assumir um compromisso de geração de

superávit primário como forma de controlar o endividamento. Isso só é possível porque o

país reprime o consumo, esterilizando recurso da demanda agregada (lado real da

economia) para cumprir o acordo financeiro (lado nominal).

Partindo das formulações teóricas do princípio da demanda efetiva, de Keynes e Kalecki,

sem, para tanto, ignorar a teoria ortodoxa sobre o ajuste fiscal, o presente estudo pretende

desenvolver uma análise crítica sobre a estratégia do Brasil de conter a evolução da dívida

pública via manutenção e ampliação do superávit primário.

O trabalho não pretende esgotar o assunto, isso quer dizer que podem faltar pontos

importantes que não serão citados ou desenvolvidos com o rigor merecido. O estudo é

apenas uma humilde contribuição sobre os aspectos gerais da gestão fiscal e da dívida

pública.

A monografia está composta das seguintes partes: Introdução (capitulo I); Os fundamentos

Macroeconômicos do Déficit Público (capitulo II); A Relação Déficit Público e

Crescimento Econômico (capítulo III); A Análise do Coeficiente Dívida Pública/PIB no

caso do Brasil, 1999-2004 (capítulo IV); Considerações Finais (capitulo V).

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2 OS FUNDAMENTOS MACROECONÔMICOS DO DÉFICIT PÚBLICO

2.1 AS FORMULAÇÕES TEÓRICAS DE KEYNES SOBRE A “DEMANDA EFETIVA” E O MULTIPLICADOR DE GASTO

O ponto de partida da teoria macroeconômica de Keynes é o princípio da “demanda

efetiva”1, desenvolvido e aprofundado na sua obra revolucionária, a Teoria Geral do

Emprego, do Juro e da Moeda. Segundo ele, são as decisões de gasto, seja privado ou

público, em consumo e investimento, que determinam o nível de atividade econômica.

Adicionalmente, são as expectativas que orientam as decisões de investir de longo prazo.

Para explicar as causas subjacentes ao movimento da demanda agregada, e por conseguinte

da renda, Keynes procurou pelos componentes autônomos da demanda agregada,

determinados, em grande medida, independente da renda corrente. Quando esses

componentes do dispêndio se alteram, a renda varia. Keynes acreditava que os

investimentos eram o componente autônomo da demanda agregada que exibia maior

variância. Ele achava que a variabilidade dos dispêndios com investimentos era a principal

responsável pela instabilidade da renda.

Keynes apresenta de forma consistente duas variáveis que determinam os dispêndios com

investimento no curto prazo: a taxa de juros e as expectativas formadas pelos agentes.

Ao explicitar a relação entre investimentos e taxa de juros, Keynes, em seu modelo teórico,

verifica que o nível de investimentos está inversamente relacionado a esta. Para uma taxa

de juros mais alta há menos projetos para investimentos, pois juros elevados tornam-se um

obstáculo para aquisição de empréstimos.

Os benefícios do investimento são os lucros futuros diretamente imputáveis ao investimento; estes devem ser comparados aos custos gerais do equipamento de capital e, em seguida, o resultado líquido comparado com a alternativa de emprestar dinheiro a juros ou com o custo do empréstimo, se tiver que procurar financiamento (CHICK, 1993, p. 129).

1 Este princípio contrapõe-se frontalmente à lei de Say (a oferta cria sua própria demanda).

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Por outro lado, Keynes chama a atenção para o papel das expectativas como algo essencial

e decisório no momento de investir. Keynes acha que diante da necessidade de investir no

ambiente de incerteza, os agentes agem racionalmente usando técnicas e fazendo projeções

futuras de cálculo.

Os levantamentos das intenções dos investimentos são uma indicação do Estado Geral de otimismo ou pessimismo, mas ninguém sabe realmente o que provoca flutuações nas percepções dos homens de negócio quanto ao futuro. Essas flutuações de expectativas são fundamentais para a explicação de Keynes na economia como um todo: um colapso da confiança (um desvio para a esquerda da função de demanda de investimento) precipita a recessão, e as políticas para restaurar a confiança, são a chave para restabelecer a atividade e o emprego (CHICK, 1993, p. 140).

Diante disso, a decisão de investir é tomada a partir do confronto entre o valor presente do

fluxo de receita esperada do investimento, o qual Keynes denomina como preço de

demanda do bem capital, frente ao custo de realizá-lo, denominado preço de oferta do bem

capital. Com base nessas duas definições, o autor define a chamada eficiência marginal do

capital como sendo a taxa de desconto que iguala o fluxo de receita esperada ao custo do

investimento. Se esta taxa for superior ao juro, que corresponde ao custo de se obter

empréstimos para se realizar o investimento ou o custo de oportunidade de se imobilizar os

recursos, o empresário investe; se for o contrário, não investe.

O problema, segundo Keynes, é que a eficiência marginal do capital é muito instável, uma

vez que é calculada basicamente a partir das expectativas dos empresários, cuja base para

formação é bastante precária, uma vez que o nosso conhecimento sobre o futuro é bastante

limitado, reinando um ambiente de ignorância sobre as condições vigentes a longo prazo. A

eficiência marginal do capital pode alterar-se tanto por pressões na indústria produtora de

bens de capital, como por mudanças no estado de espírito do empresário. Com isso, os

investimentos tendem a sofrer oscilações, impactando o nível de atividade econômica e a

demanda agregada.

Outro componente da demanda agregada é o consumo, que costuma ser em termos

quantitativos o maior elemento da demanda agregada. Este desempenha um papel central

na teoria Keynesiana de determinação da renda. De acordo com a formulação de Keynes, o

consumo aumenta com o aumento da renda, mas em menor magnitude. Pode-se expressar o

consumo em duas divisões: o consumo autônomo que corresponde àquele consumo que

independe do nível de renda, ou seja, existe mesmo que a renda seja zero; e, a propensão

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marginal a consumir, que mostra a parcela de renda destinada para o consumo, em outras

palavras, mostra a variação no consumo por aumento unitário da renda disponível.

Keynes acreditava que o consumo fosse uma função estável da renda disponível. Isso não

implica que os dispêndios com o consumo não iriam variar no decorrer do tempo. Os

dispêndios com o consumo não seriam, contudo, uma forma independente e importante

para explicar a variabilidade da renda. O consumo é, fundamentalmente, um dispêndio

induzido, dependente do nível da renda.

Os gastos do governo constituem o terceiro elemento dos dispêndios autônomos. Supõe que

os gastos governamentais sejam controlados pelos formuladores da política econômica e

que não dependam diretamente do nível de renda. Portanto, o aumento nos gastos públicos

depende do bom senso e da responsabilidade do gestor da política econômica. Supõe-se

também que a arrecadação tributária seja uma variável de política econômica, controlada

pelos mesmos formuladores desta política. Uma suposição factível é que o formulador fixe

a alíquota de imposto e que a receita tributária varie de acordo com a renda.

Não se pode deixar de reconhecer que um dos pontos cruciais da obra de Keynes é a

preocupação com o emprego. Neste sentido, Keynes apóia-se no instrumental da política

fiscal – gasto governamental e tributação – para melhorar o nível de emprego. Em princípio

o segredo para viabilizar tal situação seria alterar a propensão marginal a consumir da

sociedade via redução dos impostos e modificação da estrutura dos investimentos, através

do aumento dos padrões de gasto do governo. Sendo assim, a demanda agregada seria

aumentada e conseqüentemente o emprego seguiria pari passo.

O efeito do impacto do gasto seria imediatamente benéfico para o nível de emprego e reduziria o custo do desemprego. O consumo induzido pelo gasto inicial (efeito multiplicador) melhoraria mais o emprego e, se as rendas crescessem suficientemente, talvez elevassem alguns impostos. Desse modo um déficit não seria tão dispendioso (para o governo) quanto poderia parecer. E o efeito sobre os preços são mínimos com tais níveis de produção muito baixos (CHICK,1993, p. 351).

Partindo da noção de que a demanda efetiva é constituída dos gastos de investimento, dos

gastos de consumo e governamentais, o pleno emprego só será atingido no instante em que

o investimento, juntamente com o consumo (que é dado pela função propensão marginal a

consumir da sociedade), for capaz de absorver o desemprego involuntário (SANTOS,

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2001). Por essa razão, a variável investimento passa a jogar papel importante no

comportamento cíclico da economia capitalista.

Para estabilizar a economia, Keynes propõe uma atuação mais efetiva do Estado, tanto por

meios de gastos públicos, que compensem a falta de investimento privado, quanto pelo

direcionamento e incentivos aos investimentos, via redução da carga tributária. A principal

proposta de Keynes consistia no desenvolvimento de mecanismos fiscais compensatórios

que permitissem contrabalançar a falta de gastos privados, quando se deteriorassem as

expectativas ou diminuíssem os ímpetos expansivos.

A expressão “obras públicas” sugere gastos governamentais feitos em circunstâncias especiais, distintos dos gastos regulares. “Política fiscal” expansionista abrange tanto os gastos governamentais (G), o aspecto expansionista da política fiscal, quanto a tributação (T), os aspectos restritivo. Como ambos tem a função de estabilização, a expressão mais ampla – a política fiscal – entrou em uso. Ao lado desta mudança, no entanto, veio a identificação de tudo que envolve G ou T como política fiscal, independente da origem ou uso dos fundos a G ou T.” (CHICK, 1993, p. 352).

Essa é a lógica geral do enfoque Keynesiano. É obvio que cada elemento da política fiscal

depende das características e da situação enfrentada pelos formuladores de política

econômica.

Portanto, a teoria de Keynes, em sua forma mais simples, pode ser expressa da seguinte

forma: o consumo é função estável da renda, ou seja, a propensão marginal a consumir é

estável. As mudanças na renda resultam principalmente no instável componente

investimento. Uma variação no componente autônomo da demanda agregada causa uma

mudança ainda maior na renda de equilíbrio, devido ao efeito multiplicador.

O conceito do multiplicador2 é essencial na teoria Keynesiana, pois explica a forma pela

qual os deslocamentos nos investimentos causados por mudanças nas expectativas dos

agentes, desencadeiam um processo que causa variações não só nos investimentos, mas

também no consumo. O multiplicador mostra como os choques num setor são transmitidos

por toda a economia. A teoria de Keynes também dá a entender que outros componentes

dos dispêndios autônomos afetam o nível total de equilíbrio. O efeito sobre a renda de

2 A fórmula do multiplicador de uma economia aberta é K = ( )

1

1 c 1 t m− − + (Ver Lopes e Vasconcelos 2000).

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equilíbrio de uma mudança em cada um dos dois elementos do dispêndio autônomos

controlados pela política econômica (os gastos do governo e impostos) pode causar

impactos diversos.

Como uma descrição do que deverá ocorrer, se o gasto autônomo mudar, o multiplicador tem a característica de um processo. Ele é dinâmico. A alternativa é encarar o multiplicador como uma afirmação da condição necessária para a expansão da renda até algum nível ou a manutenção da renda num nível determinado (CHICK, 1993, p. 280).

A teoria Keynesiana mostra que um aumento unitário nos gastos do governo tem

exatamente o mesmo efeito sobre a renda de equilíbrio que um aumento unitário nos

dispêndios autônomos. O processo multiplicador, pelo qual o aumento inicial de renda gera

aumentos induzidos no consumo, é o mesmo para um aumento nos gastos do governo e nos

investimentos.

Entretanto, vale ressaltar que o multiplicador também tem um efeito perverso, ou seja, é o

chamado efeito inverso do multiplicador, em que o aumento na carga tributária e cortes nos

componentes de demanda agregada afetam negativamente o nível de atividade econômica.

Esse tipo de política econômica é utilizado fundamentalmente pela ortodoxia quando o

Estado é impossibilitado de financiar seu déficit fiscal de longo prazo. Dessa forma, a saída

encontrada por alguns formuladores de política econômica para enfrentar tal situação

consiste em utilizar política fiscal contracionista, como forma de gerar receita – através de

aumento de impostos e corte dos gastos públicos –, capaz de gerar um superávit primário

(receita menos despesas exceto pagamento de juros) necessário para controlar o déficit

público.

2.2 A VISÃO KALECKIANA SOBRE O PRINCÍPIO DA DEMANDA EFETIVA

O processo de distribuição da renda, em Kalecki, é um fenômeno de ordem

microeconômica3. Ainda assim, constitui-se num importante parâmetro para a determinação

do nível de produto. Para o autor, o crescimento econômico tem como elemento essencial o 3 Apesar de Kalecki partir do referencial teórico microeconômico sua obra constitui uma oposição a Teoria Neoclássica.

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princípio da demanda efetiva, segundo o qual são os gastos que determinam o produto. É

com base nessa premissa que Kalecki rejeita a suposição ortodoxa do produto dado, visto

que esta se baseia nas premissas de determinação do produto por uma função de produção,

que relaciona capital, trabalho e pleno emprego. Assim, Kalecki, através do princípio da

demanda efetiva, rejeita a lei de Say, um corolário assumido pela teoria do mainstream.

Kalecki inicia sua análise com base nos esquemas de reprodução de Marx. Contudo,

enquanto Marx divide o sistema econômico em dois departamentos, Kalecki considera três

departamentos que produzem respectivamente bens de investimento, DI, bens de consumo

para os capitalistas, DII, e bens de consumo para os trabalhadores, DIII. Admite-se algumas

hipóteses para a formulação do modelo: abstrai-se a poupança dos trabalhadores, ou seja, os

trabalhadores gastam todo o seu salário na compra de bens de consumo, admite-se também

a ausência do governo e do comércio exterior. Conseqüentemente a produção de cada setor,

bem como a soma dos lucros e salários setoriais representam o produto e a renda gerada no

país. Isto posto, define-se por I os investimentos brutos, por Cc o consumo dos capitalistas

e por Cw o consumo dos trabalhadores; os P1, P2, P3 como os lucros brutos de cada

departamento e W1, W2, W3 como os respectivos salários de cada setor e finalmente a

renda nacional bruta definida por Y:

DI DII DIII TOTAL

P1 P2 P3 P

W1 W2 W3 W

I Cc Cw Y Quadro 1 – Matriz Departamental

O departamento III paga montante W3, é com este montante que os trabalhadores do

departamento III compram bens de consumo deste mesmo departamento. Conforme

hipótese adotada4 (os trabalhadores gastam o que ganham) assim a renda do DIII

corresponde à massa salarial paga no próprio departamento. Conclui-se que o excedente

neste departamento ou, o lucro, corresponde ao valor dos salários pagos nos outros dois

departamentos.

Como:

4 Em boa parte do capítulo a análise deverá ser feita de forma simplificada, só no final, relaxe-se as hipóteses.

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Cw = W

P3 + W3 = W1+ W2 + W3

Tem-se

P3 = W1+ W2

Adicionando P1+P2 a ambos os lados desta equação ocasiona-se, então, que: P1+P2+P3 =

W1+P1+W2+P2. Como P1+P2+P3 = P, W1+P1 = I e W2+P2 = Cc, então:

P = I + Cc (1)

Matematicamente, esta equação nos diz apenas que o lucro total é igual ao investimento

mais o consumo dos capitalistas. Daí a famosa frase de Kalecki “os trabalhadores gastam o

que ganham e os capitalistas ganham o que gastam”.

Ademais, dada a distribuição da renda nos três setores representada respectivamente por:

Z1 = 1W

1; Z2 = 2W

ck; Z3 = 3W

cw

Portanto, o consumo dos trabalhadores pode ser representado por:

Cw = 1 2

3

Z Z Ck

1 Z

+−

(2)

Percebe-se que o próprio consumo dos trabalhadores, ou seja, a massa salarial é

determinada pelos gastos dos capitalistas, assim como os lucros, além dos fatores de

distribuição que determinam a participação de salários e lucros em cada departamento.

Dessa maneira, a renda é determinada pelos gastos dos capitalistas e pelos fatores de

distribuição:

Dado: Y = I + Ck + Cw

Logo: Y = I + Ck + 1 2

3

Z Z Ck

1 Z

+−

(3)

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O que foi dito acima esclarece o papel dos “fatores de distribuição”, isto é, os fatores que determinam a distribuição de renda (como o grau de monopólio) na teoria dos lucros. Dessa forma, o consumo e o investimento dos capitalistas, em conjunto com os fatores de distribuição, determinam o consumo dos trabalhadores e, conseqüentemente, a produção e o emprego em escala nacional (KALECKI, 1985, p. 37).

Logo, a determinação da renda Y depende unicamente dos gastos dos capitalistas (I e Ck),

uma vez que os fatores de distribuição Z1, Z2, Z3 são dados.

Os fatores que afetam a distribuição de renda, que determinam a parcela Z, só afetam o

tamanho da massa salarial, uma vez que os lucros são determinados totalmente pelos gastos

dos capitalistas. E, por conseguinte, a ampliações nos gastos provocam elevações na renda

devido ao aumento nos lucros.

Para analisar mais profundamente a distribuição de renda ou os determinantes dos

coeficientes Z em Kalecki, deve-se recorrer à sua teoria de formação de preços. A

característica normal da economia, segundo Kalecki, é operar com capacidade ocioso

devido ao grau de monopolização da economia.

Com base nisso, Kalecki descarta a possibilidade de que a função de produção possa ter a

forma assumida pela teoria do mainstream. Assim, a curva de custo marginal é, na sua

maior parte constante e não crescente como assume a teoria neoclássica. E por

conseqüência o preço é determinado por uma margem sobre os custos de acordo com uma

regra de mark-up.

P = mu + np* (4)

Onde tanto m como n são coeficientes positivos e menores que a unidade. Os coeficientes

m e n, que caracterizam a política de fixação de preços da firma, refletem aquilo que pode-

se chamar de grau de monopólio da firma. O P e o p* são respectivamente o preço do

produto e o preço médio das demais empresas do mercado e o coeficiente u significa os

custos diretos.

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Então, o preço cobrado pelas empresas depende de seus custos e do preço cobrado pelos

concorrentes. Quanto menor o porte da empresa, ou seja, quanto menor seu poder do

mercado, mais próximo de p* deverá situar-se seu preço, o contrário é verdadeiro quando a

empresa domina uma grande parcela do mercado.

A relação entre o preço cobrado pela empresa e seus custos diretos reflete o chamado grau

de monopólio ou poder de mercado da empresa:

K = p preço

u custos diretos=

Tendo em vista que Kalecki identifica o mark-up como grau de monopólio, é importante

aqui discutir os fatores subjacentes às modificações no grau de monopólio nas economias

capitalistas. São quatro as principais causas de modificação que (KALECKI, 1985)

identifica: 1) a influência do processo de concentração da indústria, ou seja, quanto maior a

concentração em um dado mercado, maior tende a ser o grau de monopólio; 2) o aumento

da concorrência por vias alternativas ao preço, como por exemplo, o desenvolvimento da

publicidade, que afeta as escolhas dos consumidores quanto às (preferências por marcas e,

além disso, cria novas necessidades etc.), pode aumentar o grau de monopólio; 3) a relação

entre custos indiretos e custos diretos: um aumento nesta relação, mantido o mark-up, leva

a uma redução necessária na margem de lucro. Neste caso, Kalecki argumenta que pode

haver um acordo tácito entre os diversos produtores para assegurar a manutenção da

margem de lucro. Com isso, um aumento na relação custos indiretos / custo diretos,

mantida a margem de lucro, leva a um aumento no grau de monopólio; 4) o poder de

barganha dos sindicatos, em mercados onde os sindicatos são fortes, este podem conseguir

ampliar a participação dos salários, elevando os custos diretos e reduzindo o grau de

monopólio. Desse modo, como os salários participam dos custos diretos, obviamente um

aumento daqueles leva a uma redução do mark-up, ceteris paribus.

Além dos salários, os custos diretos são compostos também pelos custos de matérias-

primas. Como estas são formadas pela demanda, suas variações tendem a ser muito maior

do que as variações salariais.

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Faz-se necessário para tornar a teoria consistente, ligar a razão entre rendimentos e custos

diretos em uma indústria, e a parcela relativa dos salários no valor agregado daquela

indústria.

Conforme (KALECKI,1985, p.21): Custo indireto + lucros = (K-1)(W+M)

Onde a razão entre P e os custos diretos define K (mark-up), como indicado acima pelo

grau de monopólio, M é o gasto total em matérias-primas e W o total dos salários. Daí,

resulta que a parcela relativa dos salários (w) no valor agregado de uma indústria é:

w = ( )( )

W

W K 1 W M+ − + =

( )( )1

1 j 1 k 1+ + − (5)

Sendo j = M/W a relação entre custo de matérias-primas e custo salários. Então, a parcela

do salário na renda é uma função decrescente do grau (K) e da relação matérias-

primas/salários (j). Dessa forma, quanto maior K e j, menor será w e, portanto, maior será a

parcela dos lucros.

Retornando-se à relação entre distribuição de renda e nível do produto, é imprescindível

que se faça uma análise dinâmica, a fim de determinar os efeitos daquela sobre o

crescimento econômico. Para compreender melhor essa dinâmica, é preciso conhecer o que

está por trás do comportamento dos capitalistas no que concerne aos seus gastos. Em suma,

é preciso saber o que determina as decisões de consumir por parte dos capitalistas e,

sobretudo, de investir.

Kalecki considera uma função consumo para o capitalista em que estes possuem um

consumo autônomo A, que pode ser tomado como constante no curto prazo e, uma parcela

que oscila de acordo com os lucros de períodos anteriores (λ). Portanto, a função consumo

dos capitalistas pode ser definida da seguinte forma:

Cct = qPt – λ + A (6)

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Em que, (qP) é a parte do consumo que varia em função dos lucros (p) e q é definido como

< 1 e λ representa a defasagem temporal. Assim, como definido anteriormente P = I + Cc

(1) logo:

Pt = It + qPt-λ + A (7a) ou Pt = (It + A) 1/ 1 - q (7b)

Pode-se observar que quanto menor q, que é a propensão marginal a consumir dos

capitalistas, mais rapidamente a seqüência de investimentos tende a zero, fazendo com que

apenas os investimentos realizados no passado próximo afetam os lucros do período atual.

Assumir que q seja próximo de zero significa que os níveis de consumo dos capitalistas não

se alterem rapidamente, em resposta a mudanças no lucro.

É importante observar que os lucros são determinados basicamente pelos investimentos

realizados ao longo de certo período. Logo, os investimentos devem ser o principal

responsável pelas variações nos lucros, ou seja, o investimento passa a constituir o principal

determinante dos lucros. Fica claro que os lucros, ao tempo t, são função linear do

investimento ao tempo t, t - λ, t - 2 λ etc... e que os coeficientes de investimentos são It, It - λ,

It - 2λ etc.

Para completar o modelo, Kalecki analisa no capitulo 9 da Teoria da Dinâmica Econômica

(TDE) os determinantes dos investimentos. Antes de entrar propriamente na discussão ele

abre um parêntese nos capítulos 6 e 7 da TDE, para explicar o papel da taxa de juros em seu

modelo. Diferentemente do modelo teórico de Keynes, em que a taxa de juros tem papel

central para determinação do investimento, em Kalecki a taxa de juro tem apenas um papel

secundário, não influenciando efetivamente o nível de investimento (MIGLIOLI, 1982).

Para Kalecki a taxa de juros de curto prazo é determinada no mercado monetário e tende a

ter um comportamento pró-cíclico, isto é, eleva-se nas expansões econômicas e retrai-se nas

contrações. A explicação para isso decorre do fato de que quanto maior o nível de

atividades econômicas, maior a demanda por moeda para transações que, sem ser

acompanhada por uma acomodação monetária levará ao aumento da taxa de juro. Já a taxa

de juros de longo prazo representa uma constância ao longo do ciclo econômico.

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Retornando a análise dos determinantes do investimento em Kalecki. O autor argumenta

que sua teoria refere-se aos investimentos das empresas, e não dos indivíduos isolados

(KALECKI, 1985). E assim observa o seguinte: quanto maior o capital de uma empresa,

mais recursos ela pode obter (por empréstimos ou por vendas de ações) para investimentos.

Dito isto, Kalecki relaciona os seguintes determinantes do investimento: a) a poupança

interna bruta das empresas, a qual depende do capital próprio delas e consiste

fundamentalmente nos lucros não distribuídos e nas reservas de depreciação; b) a variação

dos lucros ao longo do tempo, estimulando ou deprimindo o investimento quando os lucros

crescem ou diminuem; c) a variação de capital fixo ao longo tempo, portanto, na medida

em que cresce o capital fixo de uma empresa numa determinada atividade (isto é, na

medida em que esta empresa se torne maior), aumenta sua participação no mercado, porém

em compensação, deve cair a participação de outras empresas existentes. Então, quanto

maior o volume de capital fixo aplicado em dada atividade, menor tende a ser o estímulo

para investimento nessa mesma atividade.

Ainda sobre os determinantes dos investimentos no capitulo 15 da Teoria da Dinâmica

Econômica (TDE), Kalecki menciona também a influencia do progresso técnico sobre os

investimentos. Destaca, que as inovações tecnológicas influenciam nas decisões de

investimentos, considerando que elas tendem a levar os capitalistas a efetuarem novos

investimentos no futuro.

A variável estratégica na explicação do nível de atividade econômica, seja num ano, ou

seja, ao longo do tempo, é o investimento. É essa variável que através do seu efeito

multiplicador, determina o volume geral dos gastos, isto é a demanda efetiva (MIGLIOLI,

1982).

Sobre o multiplicador Kaleckiano, a idéia deste é semelhante ao Keynesiano. Enquanto o

multiplicador de Keynes relaciona acréscimos de renda nacional com acréscimos dos

gastos, o fator multiplicador de Kalecki relaciona o lucro com o investimento e consumo

capitalista. Para analisar o funcionamento do multiplicador retorná-se à:

Pt = (It + A) 1/ 1 – q (7b)

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Repare que o fator 1/1-q tem uma semelhança muito grande com multiplicador de gasto de

Keynes. Observa-se que quanto mais próximo de 1 maior é a propensão marginal a

consumir q dos capitalistas, que dada uma variação positiva nos componentes de demanda

maior é o impacto via multiplicador nos lucros capitalistas.

Relaxando as hipóteses admitidas previamente, que os trabalhadores gastam o que ganham

e de uma economia fechada sem governo e comércio exterior, é necessário agora fechar a

análise kaleckiana e obter a equação completa dos lucros.

Introduzindo o setor externo, as exportações (X) correspondem à venda de produtos para o

exterior e, como tal, geram a renda responsável pelo pagamento dos salários necessários

para se realizar esta produção e os lucros dos capitalistas que vendem para o exterior. Pode-

se pensar as exportações como um quarto departamento. Os salários pagos neste serão

gastos no departamento III, e gerarão lucros para os capitalistas deste departamento.

As importações (M), quer sejam feitas por trabalhadores ou capitalistas para obter bens de

consumo, diminuirão o lucro interno, uma vez que irão remunerar fatores de produção no

exterior. Dessa forma, o setor externo é acrescido à equação de lucro pelo seu saldo: um

superávit externo amplia o lucro, e um déficit o reduz, por conseguinte reduz-se também a

renda.

Finalmente, introduz-se o governo que pode ser confundido com o setor externo: a

arrecadação de impostos deve ser considerada como pagamentos por serviços realizados

pelo setor externo, e os gastos públicos referem-se a aquisições junto ao sistema

econômico, gerando pagamento de salários no D III e, portanto, lucro neste departamento.

Assim como no setor externo, o impacto do governo sobre os lucros se dá pelo saldo em

transações correntes: um superávit do setor público reduz os lucros e um déficit os amplia.

Então, Y = I + Cc – Sw + (G-T) + (X-M) (8)

A descoberta de que o déficit orçamentário do governo eleva o lucro total é de fundamental

importância para as economias capitalistas. Toda vez que essas economias entram em

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processo de recessão, o Estado pode ampliar suas despesas e, com isso elevar os lucros dos

capitalistas e reativar as atividades produtivas.

Apesar de Kalecki ter partido de um referencial teórico totalmente distinto do utilizado por

Keynes, as conclusões a respeito da demanda efetiva são exatamente as mesmas. Ambos

acreditaram que são as decisões de gastos que estimulam o crescimento econômico e o

pleno emprego.

2.3. A ANTECIPAÇÃO DOS CONTRIBUINTES E A TEORIA DA EQUIVALÊNCIA RICARDIANA

A principal contribuição da teoria do consumo baseada na escolha intertemporal é que as

famílias, em suas decisões quanto ao consumo, levam em conta não apenas a renda

presente, mas também a renda futura. Tal idéia foi aperfeiçoada por Milton Friedman, a

partir das hipóteses de renda permanente.

Outra importante contribuição sobre o consumo, baseada na escolha intertemporal de

Fisher, é conhecida como modelo de ciclo de vida do consumo e poupança. Segundo esse

modelo, as pessoas decidem o quanto poupar e o quanto consumir de acordo com as

expectativas sobre a renda durante todo seu período de vida.

Segundo as teorias de ciclo de vida e da renda permanente o consumo depende

fundamentalmente da riqueza. A grande questão é: nessa riqueza deve-se ou não incluir a

detenção de títulos públicos? A resposta depende da reação do consumo a uma redução no

imposto financiado por empréstimos públicos.

A primeira vista, os agentes beneficiados por uma redução tributária vêem os seus recursos

aumentar e devem aumentar seu consumo. No entanto, o governo reembolsa a sua dívida,

incrementada pelos juros. Para isso deverá aumentar o imposto no futuro. Portanto, a

redução fiscal é na realidade um adiantamento fiscal.

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Se o mercado financeiro fosse perfeito, e os consumidores racionais, este adiantamento não

deveria produzir nenhuma conseqüência sobre o consumo. No máximo provocaria efeitos

limitados caso os consumidores que se beneficiam da redução fiscal tivessem uma

propensão a consumir diferente da propensão a consumir dos que emprestam ao Estado.

Se hoje, o governo resolver reduzir o imposto de ∆T, endividando-se por um montante de

D = ∆T, amanhã deverá reembolsar o empréstimo mais os juros (rD) e deverá aumentar o

imposto de um valor ∆T = (1 + r).D em valores presentes, a elevação futura do imposto é

T

1 r

∆ +

= D, igual a redução fiscal (∆T = D). Nesse caso, as famílias irão economizar o

valor da redução dos impostos para pagar o aumento futuro deste. Ou seja, a riqueza dos

consumidores é invariável e o consumo não deveria variar. Essa idéia é conhecida como o

teorema da Equivalência Ricardiana.

A conseqüência da Equivalência Ricardiana é clara: na ausência de gastos públicos, o

multiplicador é anulado. Cada vez que o governo reduz imposto, os consumidores poupam

mais para compensar o efeito desfavorável das taxas futuras, sobre eles mesmos ou sobre as

gerações futuras Barro (1974). Então, a partir dessas constatações, a política fiscal é

ineficaz.

Isso constitui um contra argumento ao modelo keynesiano em que uma redução dos

impostos eleva o consumo e a renda nacional (efeito multiplicador) e, ex post, provoca

elevação da poupança. Ou seja, em Keynes é a renda que estimula a poupança, e não o

contrário. Já em Barro (1974), a poupança é ex ante, e é igual à redução do imposto.

Nos modelos intertemporais com “gerações egoístas”, a redução temporária dos impostos

não afeta nem o consumo nem o investimento, porque não modifica a riqueza dos

consumidores. Então, o crescimento da dívida pública pode gerar um efeito negativo sobre

o investimento (eviction effect), ao elevar o juro real, pois a demanda por empréstimos

aumenta sem que haja incremento na poupança. Uma redução permanente do imposto pode,

ao contrário, ter efeito favorável via incremento do consumo.

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Para Barro, não há (eviction effect), porque as variações transitórias no imposto são

correspondidas por variações equivalentes na poupança. E, não pode haver variações

permanentes dos impostos.

Na prática, o Teorema da Equivalência Ricardiana é falho, pois os indivíduos não possuem

perfeita informação no mercado, e nem tão pouco interpretam a realidade com base em

modelos teóricos. Ademais, não existe Equivalência Ricardiana por vários motivos:

• Acorda muita racionalidade aos consumidores.

• A redução dos impostos pode estimular os indivíduos a trabalharem mais e

aumentarem a renda, modificando a trajetória do consumo.

• A taxa de imposto não é igual para todos (os indivíduos apresentam diferentes

propensões a consumir).

• Baseia-se na hipótese de perfeições do mercado. Mas, quando existe restrição de

liquidez, os agentes não podem emprestar o tanto que desejam, quando o imposto

aumenta, eles vêem obrigados a reduzir seu consumo.

• O governo ao reduzir o imposto hoje produz uma certa renda aos consumidores,

enquanto diminui a renda incerta ao aumentar o imposto amanhã. O efeito total será

portanto elevação de “equivalente certo” da riqueza. No total, embora os

consumidores possam ser ricardianos (levando em conta as taxas tributárias

futuras), suas propensões a consumir são keynesianas.

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3 A RELAÇÃO DÉFICIT PÚBLICO E CRESCIMENTO ECONÔMICO

3.1 A REDUÇÃO DO DÉFICIT ORÇAMENTÁRIO É RECESSIVA?

A partir do início da década de 80, a maioria das economias experimentou um inchaço nas

dívidas públicas. Isso se deveu à forte redução da inflação, a qual diminuiu o financiamento

monetário dos déficits e aumentou as taxas de juro real. Para sair dessa engrenagem déficit

elevado, taxa de juro alta, a queda da dívida se apresentou como necessária. Mesmo nos

países desenvolvidos, que são solváveis nos mercados financeiros, os encargos da dívida

representam uma porção importante nos seus orçamentos.

Duas teorias se opõem acerca do efeito do ajuste fiscal. Na teoria keynesiana, uma redução

nas despesas públicas provoca uma queda ampliada da atividade econômica, pelo efeito

multiplicador, em razão da queda associada no consumo. Num mundo ricardiano, em

oposição, a redução das despesas públicas é exatamente compensada por um acréscimo

proporcional do consumo, porque o valor atualizado da tributação antecipada diminui. O

efeito é portanto teoricamente, nulo sobre o nível de atividade, mas pode se tornar favorável

se o ajustamento orçamentário for suficientemente forte e duradouro para reduzir as taxas

de juros e provocar uma elevação do investimento.

Em conseqüência, é necessário reduzir os déficits na situação de excesso de demanda

(conjuntura clássica), e os deixar aumentar no caso de excesso de oferta (conjuntura

keynesiana).

No caso particular da economia brasileira, aparece uma situação interessante, há uma

conjuntura híbrida de excesso de demanda e de oferta. Do lado da demanda: há pressões

inflacionárias, a capacidade de produção opera no seu limite, juro alto e uma demanda

reprimida. Do lado da oferta: há juros altos que impedem a ampliação da capacidade

produtiva, e um superávit comercial.

Porém, de um lado, as taxas de juros altas são mais a conseqüência de uma política

monetária dura, do que resultado das contas públicas. Já que estas estão mais ou menos

equilibradas graças a um superávit primário robusto capaz de cobrir parcialmente os

encargos da dívida. Do outro lado, o superávit comercial é expressivamente derivado de

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uma política cambial competitiva, que desvia parte da oferta do mercado doméstico para o

mercado externo.

A visão tradicional é de deixar agir os estabilizadores automáticos, para que as restrições

orçamentárias numa conjuntura recessiva não aprofundem a depressão e, conseqüentemente

aumentem o déficit público através da queda nas receitas fiscais. Daí, toda tentativa de

saneamento orçamentário em períodos de recessão pode ativar um círculo vicioso e se

revelar inoperante.

Todavia, no Brasil os dados empíricos não apóiam essa idéia, sem para tanto, validar

totalmente o ponto de vista oposto.

Tabela 1 – Relação crescimento real do PIB e superávit primário (em %)

Fonte: Banco Central do Brasil

Analisando minuciosamente a tabela acima, dos 6 anos citados, apenas os anos de 2000 e

2004 não apresentam uma correlação negativa entre o aumento do superávit e decréscimo

do PIB. Os outros 4 anos comprovam que o aumentam do superávit tem um efeito nocivo

no crescimento do PIB. E ainda, a média de crescimento dos seis anos demonstra um efeito

recessivo na economia, com o PIB crescendo em média 2,2% ao ano, média abaixo do

crescimento da economia mundial.

No caso de muitos países como Suécia, Dinamarca e Irlanda, nos anos 80, a redução do

déficit público não pareceu ter impacto nítido sobre o crescimento econômico, efeito anti-

keynesiano. Nesses países, a forte redução do déficit público foi compensada pela forte

queda na poupança das famílias, a qual sustentou o consumo. Esse cenário contradiz tanto

as hipóteses ricardianas quanto as keynesianas e permanece sem explicação teórica. Ele fica

ANO CRESC./PIB SUPERÁVIT PRIMÁRIO

1999 0,8 3,28

2000 4,4 3,50

2001 1,5 3,70

2002 2,0 4,00

2003 -0,5 4,27

2004 4,9 4,61

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ainda mais misterioso porque nesses três países o ajustamento foi realizado em períodos de

desemprego keynesiano, com uma produção muito abaixo do seu nível potencial.

Uma explicação esboçada por Feldestein (1982) é que as contradições orçamentárias

podem provocar antecipações de redução futura dos impostos que quando são suficientes,

superam o efeito recessivo e sustentam a demanda agregada. A idéia é que os consumidores

interpretam uma mudança na política fiscal como um sinal de modificações futuras das

taxas. É preciso, então, sanear as finanças públicas via redução dos gastos e não através de

aumento de impostos (contrariamente à prática habitual de expansão orçamentária via

incremento das despesas e via ajustamento tributário).

Um ajustamento através de elevação dos impostos traz, de fato um problema de

credibilidade: como acreditar num governo que anuncia uma redução tributaria no futuro

aumentando as taxas no presente?

No caso citado de países como Dinamarca e Irlanda confunde-se o efeito da desvalorização

cambial com a experiência ricardiana. Ou seja, em países onde o grau de

internacionalização é alto, as perdas nas restrições orçamentárias podem ser compensadas

por ganhos de competitividade.

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4 A ANÁLISE DO COEFICIENTE DÍVIDA PÚBLICA/PIB (O CA SO DO BRASIL 1999-2004)

4.1 GESTÃO REAL VERSUS GESTÃO NOMINAL

Identifica-se a partir de 1999 uma preocupação na economia brasileira no sentido de

combater o déficit fiscal e, concomitantemente, o coeficiente dívida líquida do setor

público/PIB5. Essa preocupação tem como retórica disseminada pelos homens do governo

e agências multilaterais a manutenção da solvência do Estado.

Os ajustes preconizados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) exigem que o país

realize sucessivos superávits primários (receitas menos despesas exceto o pagamento de

juros) para saldar os compromissos com pagamento de juros e amortização do principal.

Esses ajustes servem também como forma de garantir novos empréstimos, bem como

tranqüilizar as expectativas dos agentes econômicos.

A fórmula utilizada pelos gestores de política econômica do Brasil, para viabilizar metas de

superávits primários, foi imobilizar recursos oriundos da demanda agregada, através de

cortes nos gastos públicos e aumento dos impostos. Ora, conforme se discutiu em Keynes,

uma estratégia modelada mediante esse raciocínio tende a gerar impacto perverso na

economia, pois cortes em gastos públicos afetam negativamente o nível de atividade, via

efeito “inverso” do multiplicador de gastos.

A tradução disto, em termos de dinâmica econômica é que por meio de elevação das

receitas e da restrição ao gasto real do governo, a política fiscal subtrai poder de compra do

conjunto dos agentes econômicos, agindo no sentido da redução do nível de atividade

(Biasoto, 2003a, p.84).

A explicação mais crível para os sucessivos déficits e, por conseqüência, a explosão da

relação dívida pública/PIB está em boa parte relacionada à política monetária restritiva

(juros altos) e à instabilidade cambial. Pois um grande montante da dívida pública no

espaço do tempo pesquisado, de 1999 a 2004, encontra-se indexada a estas duas variáveis.

5 Muitos economistas acreditam que o patamar para estabilizar o coeficiente dívida pública/PIB seja em torno de 50%.

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A maior parte da dívida pública brasileira está indexada a taxa básica de juros SELIC, que

na economia brasileira atual funciona como instrumento para alcançar dois objetivos

fundamentais, quais sejam: conter o processo inflacionário através da redução da propensão

marginal a consumir; e, equilibrar a balança de pagamento, através da atração de capitais

especulativos, via lançamento de títulos públicos no mercado, à taxa de juros atrativos. A

priori os maiores credores brasileiros são os bancos, corretoras e fundos de pensão6.

33%

31%

19%

1%

7%

5% 3%

1%

FUNDOS MÚTUOS BANCOS BRASILEIROS EXIGÊNCIAS DE RESERVAS

CORPORAÇÕES BANCOS ESTRANGEIROS NO BRASIL OUTROS

PARTICULARES CORRETORAS

Gráfico 1 − Detentores da Dívida Pública Interna (2004) Fonte: Banco Central do Brasil.

De acordo com a visão teórica do FMI, os agentes ao tomarem a decisão de investir, agem

racionalmente, ou seja, têm perfeita informação do mercado, e só investem se existirem

expectativas de rentabilidade garantida. Nesse aspecto, segundo o fundo, os agentes

econômicos tomam como base de análise o coeficiente da relação dívida pública/PIB. Se

este apresentar condição linear ascendente significa que o governo não tem condições de

honrar seus compromissos e nem tampouco tem condições de garantir um ambiente seguro

para realização de investimento.

Embora a solvência do setor público seja necessária ao bom funcionamento do mercado de

ativos financeiros e, por conseguinte, à própria sustentação da capacidade de crescimento

6 Cerca de três bancos e sete fundos de pensão mútuos detêm mais de 50% da dívida pública brasileira.

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da economia, o atual modelo de gestão fiscal não parece ser o mais adequado a atingir esses

objetivos. O modelo padece de dois erros de diagnóstico do problema: o primeiro identifica

o superávit primário como um potente instrumento de controle da relação dívida

pública/PIB, através do controle da dívida, negligenciando os impactos sobre o PIB; e o

segundo, identifica o estoque da dívida em relação ao PIB como indicador do grau de

solvência do Estado, quando em verdade, o que “mede” esta condição, para o governo ou

qualquer outro devedor, é a relação entre seus fluxos de receita e despesas financeiras, que

não necessariamente acompanham a relação dívida/PIB (HERMANN, 2002).

A abordagem hoje dominante, que privilegia a relação (estoque da dívida pública/PIB) como indicador de solvência do setor público e a relação (superávit primário do governo/PIB) como variável de ajustes peca por negligenciar o papel da política monetária e do perfil que ela impõe à dívida pública (em termos de prazo e custos) na definição das condições financeiras do governo a cada período (HERMANN, 2002, p.63).

Cabe aqui mencionar que o estoque dívida /PIB não é um indicador confiável de análise de

solvência do setor público, pois abstrai a qualidade do endividamento em termos de títulos

que possuem naturezas diferentes, e também nada diz respeito aos prazos de vencimento

dos títulos públicos.

Ainda que a relação estoque da dívida pública/PIB fosse um indicador confiável, o presente

modelo implantado no Brasil a partir de 1999, para manter as contas em equilíbrio, visa o

sacrifício das variáveis reais da economia, com altas metas de superávit primário, só

conseguidas via arrocho nos gastos públicos e aumento na carga tributária.

Conforme já exposto, o grande problema da dívida pública é o seu aspecto nominal. O

tratamento austero dado às contas públicas pelo governo mostra a subordinação da política

fiscal à monetária. Se o problema estivesse realmente atrelado à política fiscal, um simples

aumento na carga tributária corrigiria o desequilíbrio. Segundo Keynes, o problema da

dívida pública é de liquidez, podendo ser corrigido apenas com liquidez.

O financiamento de qualquer agente deficitário seja ele do setor público ou privado, é sempre, um problema monetário, que depende da disponibilidade de liquidez, e não um problema “real”, dependente da distribuição do produto agregado entre formas alternativas de alocação. Compromissos financeiros não são pagos com parcelas do produto, mas sim com liquidez (MINSKY, 1982, p.61).

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No cenário recessivo que a economia atravessa, há mais de 20 anos, salvo em alguns anos

atípicos, não há espaço de forma permanente para aumentos sucessivos de superávits

primários que – diga-se de passagem – a partir de 1999 o Estado vem cumprindo com

folga. Ainda que houvesse espaço para aumentos nos superávits, estes esbarrariam na

estratégia montada pelo governo que realiza uma política de sucessivos aumentos de juros.

Sendo assim, o aumento ou redução do superávit primário é um conceito relativo. “(...) A

variável rebelde tem sido o montante das despesas financeiras do governo, que insiste em

fugir das previsões e dos cálculos que orientam a fixação de metas para o superávit

primário, bem como suas previsões periódicas” (Hermann, 2002, p.43).

A grande questão que se coloca para a política fiscal é sua capacidade de fazer frente a um problema que não está colocado na órbita das transações reais. Ao contrário, é nas relações financeiras e patrimoniais de que o Estado é gestor, que a questão reside em essência. (...) A doutrina econômica tradicional diria que a dívida é o acúmulo de déficits no passado, enquanto a taxa de juros atual correspondente ao nível de risco percebido pelos credores quanto ao agente endividado. Os resultados expressivos da política fiscal deveriam ter efeitos sobre a taxa de juros, que evidentemente, não se produzem, dado que é a política financeira global o seu determinante (BIASOTO, 2003a, p.85).

Diante disso, o esforço fiscal realizado para gerar superávits primários e tentar estabilizar

ou até mesmo reduzir a relação dívida pública/PIB na presença de juros altos e ascendentes

(política monetária contracionista) pode se tornar inócuo. Como demonstra o gráfico

abaixo, apesar da constante elevação do superávit primário, este não foi suficiente para

conter a elevação, ano a ano, da diferença entre juros da dívida e o próprio superávit

gerado.

Comportamento do SP e Ji do Setor Público Consolidado

68.415,00 72.112,00

126.045,00

111.198,00

38.157,0043.655,00

52.390,00

66.173,00

81.112,00

96.975,00

-

20.000,00

40.000,00

60.000,00

80.000,00

100.000,00

120.000,00

140.000,00

2000 2001 2002 2003 2004

R$

milh

õe

s

S Primário Juros Internos Diferença

Gráfico 2 − Comportamento do SP e Ji do Setor Público Consolidado Fonte: Banco Central do Brasil.

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Destarte, a redução da relação dívida pública/PIB requer prioritariamente uma mudança na

forma de gerenciamento e na estrutura do endividamento público quanto à: modificação na

composição da dívida em termos de perfil e à substituição dos indexadores.

A maior parte da dívida pública brasileira é de origem doméstica, numa proporção de

aproximadamente, 5 para 1 em relação à dívida externa. Outra característica do

endividamento público é que ele é majoritariamente de curtíssimo prazo. Justificativa dada

pelos gestores da dívida é a seguinte: um endividamento de curto prazo ajuda a inibir a

desconfiança dos credores em relação a uma expectativa de um não pagamento da dívida, e,

ainda, sinaliza para os investidores uma situação de solvência do setor público, ou seja,

garante uma certa credibilidade no mercado (GOLDFANJ; PAULA, 2000). “(...) Na

medida em que a dívida pública encurta sua maturidade, ela se torna, no limite, um

substituto para dinheiro” (HERRERA, 2002)7.

Alongar o perfil da dívida é importante por dois motivos: o primeiro é reduzir a exposição

às flutuações da taxa de juros de curto prazo; o segundo é reduzir o risco de rolagem

(Herrera, 2002). Uma duração longa reduz a elasticidade do custo do serviço da dívida a

flutuações nas taxas de curto prazo. Portanto, reduz-se o impacto da política monetária

sobre a dívida. A dívida de longo prazo permite que o tesouro estenda as rolagens. Desse

modo, reduz o risco de uma crise de financiamento (o risco de ir ao mercado para rolar um

grande volume de títulos num momento de possível instabilidade da economia).

Como foi apresentada anteriormente, a dívida pública brasileira é composta

predominantemente por títulos indexada a taxa de juros SELIC e ao câmbio, que diga-se de

passagem, são duas variáveis que têm um viés instável na economia. Estão sempre sujeitas

a oscilações periódicas. Assim, para que o governo tenha um maior controle sobre a

dimensão da dívida pública, faz-se necessário substituir as variáveis mais sujeitas às

incertezas, por variáveis mais estáveis, quais sejam: as taxas prefixadas (de longo prazo) e

os indexadores de preços. Porém, trata-se de uma transição gradual tendo em vista a

endogeneidade dos elementos envolvidos, em particular, o tamanho da dívida, as taxas de

juros reais, a curva de rentabilidade e a composição da carteira (Herrera, 2002).

7 Para maiores esclarecimentos sobre este assunto ver Herrera (2002) e Goldfanj & Paula (2000).

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33

Composição da DPMFi

0

10

20

30

40

50

60

70

1999 2000 2001 2002 2003 2004

%

SELIC CÂMBIO ÍNDICE DE PREÇOS PRÉ-FIXADO

Gráfico 3 − Composição da Dívida Pública Mobiliária Financeira Interna Fonte: Banco Central do Brasil.

Cabe, então, à autoridade monetária a tarefa de administrar o “mix” de títulos de diferentes

perfis (curto, médio e longo prazo), visando à desindexação dos títulos atrelados a variáveis

com viés mais instável, de modo a manter o mais baixo possível os custos de financiamento

do setor público, sem prejuízo para a estabilidade da economia. Para isso é imprescindível

também à coordenação entre política fiscal e monetária.

Por fim, segundo Hermann (2002), resolvido o problema do gerenciamento e composição

da dívida, admite-se a solvência do setor público. Neste caso a garantia do pagamento da

dívida seria preservada, num horizonte de médio prazo, pela própria recuperação da

atividade econômica, que permite ampliar a receita tributária e assim, sustentar os encargos

da dívida assumidos.

A idéia que essa monografia sugere se aproxima do receituário kaleckiano e keynesiano, ou

seja, que os superávits primários sejam reduzidos a números compatíveis com a realidade

da economia. Essa análise tem como objetivo básico demonstrar que o caminho virtuoso

para o controle da relação dívida/PIB não é o aumento “ex ante” do superávit primário do

governo, mas sim o aumento “ex post” promovido pelo crescimento econômico. Isto é

possível através de política direcionada a taxas reduzidas de juros. Desta maneira, o

esforço de realizar superávit primário cai muito rapidamente, além de reanimar as decisões

de investimento privado e reorganizar o padrão de financiamento e desenvolvimento da

economia.

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34

Matematicamente, o coeficiente dívida/PIB é uma fração que, para ser reduzida, admite

duas possibilidades: redução da dívida ou aumento do PIB. No caso brasileiro, dado que a

dívida pública está amarrada a diversos fatores de natureza complexa, o governo deve

tomar como prioridade metas de crescimento econômico. Neste sentido, a injeção de uma

parte do superávit na economia aumentaria o nível de atividade (PIB)8, via efeito

multiplicador, reduzindo os gargalos setoriais que impedem que o país cresça e aumentando

a receita tributária (mantendo a carga tributária constante).

Destarte, o governo no intuito de corrigir os desequilíbrios financeiros, via manutenção e

ampliação dos superávits primários, cai no ciclo vicioso, na chamada armadilha da

DLSP/PIB. Pois não consegue reduzir o coeficiente dívida/PIB e nem tão pouco realizar

taxas significativas de crescimento econômico. “A explicação mais correta para essa

situação é o mau uso dos instrumentos de política econômica causado pelo erro do

diagnóstico do problema”. (BIASOTO,2003).

4.2 SIMULAÇÃO PARA A ESTABILIDADE DA RELAÇÃO DLSP/PIB9

Preliminarmente, a questão a ser abordada é: qual deve ser o esforço na forma de um certo

superávit primário (SP) consistente com a estabilização da relação dívida pública/PIB10. O

ponto de partida é o conceito de necessidade de financiamento do setor público NFSP, que

resulta do fluxo de juros nominais líquidos (J) e do valor (SP).

De acordo com Giambiagi (1998) a equação da NFSP = J-SP (1)

As despesas de juros nominais sobre a dívida líquida (D) são definidas como11:

J= i. D − λ (2)

8 É importante lembrar que parte desse efeito é desviada em forma de importações. No entanto, no caso particular do Brasil, isto não se constituiria um problema maior, visto que o coeficiente de importação é baixíssimo. 9 Este modelo consiste na atualização do trabalho desenvolvido por Giambiagi (1998). 10 Se o superávit primário for negativo, pode haver um resultado primário inferior a zero consistente com a estabilidade da relação dívida pública/PIB, em condições especiais de taxa de juros e crescimento do PIB. 11 A fórmula implica uma certa subestimação das despesas efetivas de juros, por não levar em consideração os juros pagos sobre a nova dívida criada ao longo do próprio exercício.

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35

Onde i é a taxa nominal bruta de juros, ponderada pelos diferentes tipos de dívidas, e (− λ )

indica defasagem. O financiamento de (1) é feito pela variação da divida (∆D) e pela

emissão monetária ou imposto inflacionário (∆B).

NFSP = ∆D + ∆B (3)

Manter constante a relação dívida pública/PIB (D) implica, por regra básica, ter um

crescimento nominal da dívida idêntica ao crescimento do PIB. Nesse caso:

∆D = y . D(-λ) (4)

Onde denota-se como:

* Y = taxa de crescimento nominal do PIB

* D = relação dívida pública/PIB

Tem-se ainda:

* S = relação imposto inflacionário/PIB

* π = inflação

* i = taxa de juro nominal

Após algumas manipulações algébricas12, conclui-se que o superávit primário/PIB (SP)

consistente com a estabilidade de D é igual a:

SP = [D x (i-y)/(1+y)-S] x 100 (5)

Ou invertendo a lógica da fórmula, chega-se a:

Y= {[i – (p/100+S)/D]/[1+(p/100+S)/D]} (6)

Alternativamente, o mesmo raciocínio vale para chegar à equação que representa

NFSP/PIB (F) consistente com objetivo de estabilizar D. Basta, substituir a equação (4) em

(3) e dividir pelo PIB, chega-se ao seguinte valor:

F= D.Y / (1+Y)+S (7)

A tabela abaixo mostra os resultados do superávit primário, expressos como porcentagem

do PIB, em condições de estabilidade de D, que decorrem da equação (5). Para o mesmo

12 O autor não demonstra claramente como chegou a cada equação.

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36

valor de crescimento nominal da dívida e do PIB, adota-se uma hipótese π = 3%,

combinada com diferentes alternativas de taxa de juros nominal e de crescimento real.

Adota-se, também um imposto inflacionário de 0,2% do PIB, hipóteses de dívida líquida do

setor público de 45%, 50% e 55% do PIB.

Tabela 2 - Superávit primário como porcentagem do PIB, em condições de estabilidade da relação dívida/PIB, como função da taxa de crescimento do PIB e da taxa de juros* 13

CRESCIMENTO REAL DO PIB(%) DÍVIDA PÚBLICA

TAXA DE JUROS NOMINAL (%) 2,0 4,0 6,0 7,0

45% do PIB

i = 6 i = 9 i = 12 i = 15 i = 18

0,23 1,51 2,80 4,08 5,37

-0,62 0,64 1,9 3,16 4,43

-1,43 -0,20 1,24 2,28 3,51

-1,84 -0,61 0,62 1,85 3,07

50% do PIB

i = 6 i = 9 i = 12 i = 15 i = 18

0,28 1,70 3,13 4,56 5,99

-0,66 0,73 2,14 3,53 4,94

-1,57 -0,20 1,18 2,55 3,93

-2,02 -0,65 0,71 2,70 3,43

55% do PIB

i = 6 i = 9 i = 12 i = 15 i = 18

0,32 1,85 3,47 5,04 6,61

-0,71 0,83 2,37 3,91 5,45

-1,71 -0,20 1,31 2,83 4,34

-2,20 -0,70 0,80 2,3 3,80

*Utiliza-se o conceito de dívida líquida do setor público excluindo a base monetária.

Fonte: Urandi Roberto Paiva Freitas.

Tabela 3 - NFSP nominal como percentagem do PIB, em condições de estabilidade da relação dívida/PIB, como função da taxa de crescimento do PIB e da relação dívida/PIB*

CRESCIMENTO REAL DO PIB(%) DÍVIDA PÚBLICA 2,0 4,0 6,0 7,0

45% do PIB 2,34 3,14 3,91 4,29 50% do PIB 2,58 3,47 4,33 4,75 55% do PIB 2,82 3,80 4,74 5,20

*Utiliza-se o conceito dívida líquida do setor público excluindo a base monetária.

Fonte: Urandi Roberto Paiva Freitas.

Obviamente, o superávit primário requerido para estabilizar a relação dívida/PIB cresce

com o aumento da taxa de juros e da própria relação dívida/PIB e diminui com o maior

crescimento da economia. Por sua vez, a NFSP consistente com a estabilidade da relação

dívida/PIB cresce com o valor deste e da expansão da economia.

13 Os valores da tabela podem apresentar pequenas divergências em virtude de arredondamentos.

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37

Percebe-se que apesar do modelo algébrico desenvolvido por Giambiagi (1998) ser um

pouco limitado e simples, sob o ponto de vista real os resultados encontrados a partir das

hipóteses formuladas refletem, em grande parte, aproximações bem semelhantes ao

desempenho da economia brasileira nos períodos entre 1999 e 2004.

Nota-se que a situação do Brasil entre 1999 e 2004 é similar a do canto inferior esquerdo da

tabela 2, com baixo crescimento econômico e altas taxas de juros. Nesse caso para que a

dívida não extrapolasse a níveis incontroláveis, a estratégia utilizada pelo governo foi a

manutenção e ampliação de metas de superávit primário.

Admitindo-se que o objetivo da autoridade monetária seja a estabilização da dívida pública

em torno de 50% do PIB e que a taxa de juros nominal possa cair até 9%, o superávit pri-

mário consolidado requerido para isso no contexto de crescimento econômico de 4% a 6%

do PIB a.a., seria de um déficit (0,2%) a um superávit de 0,7% do PIB (tabela 2). A essa

situação de dívida pública de 50% do PIB estaria associado um déficit nominal no intervalo

de 3,47% a 4,33% do PIB, no mesmo contexto de crescimento econômico (tabela 3).

Para o governo reduzir o coeficiente dívida pública/PIB abaixo dos 50% do PIB, deve

reduzir a taxa de juros nominal abaixo de 9%. Logo a redução dos juros leva a uma queda

no superávit primário como apresentado na tabela 2 (canto superior direito). Esta seria

responsável por gerar – via multiplicador – crescimento econômico. E, por conseguinte a

expansão do PIB reduziria a relação dívida pública/PIB.

Ademais, a preocupação do governo para os próximos anos deverá ser a de perseguir altas

taxas de crescimento econômico. Confirmando-se o objetivo, a taxa de juros deverá cair e a

necessidade de realização de superávit primária para o controle dívida pública/PIB deverá

ser baixa.

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38

4.3 A EVOLUÇÃO DA DÍVIDA PÚBLICA BRASILEIRA (1999-2004)

A partir de 1999, a economia brasileira passou a apresentar uma inflexão na política

econômica. O Brasil abandonou o regime de câmbio semi-fixo (com bandas cambiais)

administradas como quase todos os países e o câmbio tornou-se flutuante. Com isso a

política monetária recebeu explicitamente a função de manter a inflação baixa. Dado o

nível de endividamento do governo, isso só se tornaria possível se a política monetária

tivesse auxílio de uma sólida política fiscal.

Nesse novo ambiente, o câmbio deveria encontrar seu equilíbrio através do livre

movimento das forças de mercado, sem interferência do Banco Central. Caberia a este

manejar a política monetária para garantir as metas de inflação e os superávits primários,

acordados com o FMI. Além disso, caberia também ao Banco Central a missão de impedir

o surgimento da desconfiança por parte dos investidores sobre a capacidade do governo de

saldar ou reduzir sua dívida (CUNHA; RESENDE, 2003).

Neste contexto, a capacidade do governo de intervir na economia através dos instrumentos

de política econômica estreitou-se significativamente. A paridade cambial passou a ser

determinada pelo fluxo de divisas que ingressa no país, não cabendo ao Banco Central

interferir na sua cotação. A política monetária viu-se limitada, por sua vez, ao objetivo de

garantir, via constante elevação dos juros, níveis reduzidos de inflação e não perder a

credibilidade do mercado financeiro. Por último, a política fiscal foi subordinada aos

compromissos assumidos com o encargo do pagamento da dívida, ainda que, para isso, os

demais gastos tivessem de ser contidos (BIASOTO, 2003). Como essas variáveis − juros,

câmbio, dívida − se encontram fortemente inter-relacionadas, mudanças desfavoráveis na

cotação do câmbio, por exemplo, exigem maior elevação dos juros para conter o processo

inflacionário, e maior esforço fiscal para impedir o crescimento da dívida (CUNHA;

REZENDE, 2003).

Esses fatores combinados demonstram por que os pilares que passaram a sustentar o

modelo econômico, a partir de 1999, deixaram a economia brasileira numa situação de

elevado endividamento interno e externo, altamente sensível aos choques econômicos,

aumentando as incertezas colocadas para a política fiscal e orçamentária. Essas políticas

passaram a ser manejadas como variável de ajuste para garantir o cumprimento dos

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compromissos e metas assumidas. A economia brasileira a partir de 1999, revela com

clareza o grau de incertezas e volatilidade a que passou a estar submetida (CUNHA;

RESENDE, 2003).

O ano de 1999 foi um dos piores anos em termos de crescimento econômico. O PIB teve

um crescimento modesto de 0,8% ao ano. Ainda assim, o governo conseguiu realizar um

superávit primário de 3,3% do PIB conforme o Gráfico 4, destinados para o pagamento dos

juros da dívida. Esta “contaminada” principalmente pela megadesvalorização14 cambial e

pelas elevadas taxas de juros viu seu estoque aumentar de 42,6% do PIB em 1998, cerca de

R$ 388.667 milhões, para 48,68% em 1999, R$ 516.579 milhões, portanto um aumento de

mais de 6 pontos percentuais.

Gráfico 4 − Superávit Primário Consolidado

Fonte: Banco Central do Brasil

Na ausência de crises no cenário internacional, o ano de 2000 revelou-se extremamente

favorável no campo econômico. A economia registrou um crescimento inesperado de 4,5%

do nível de atividade. No campo das finanças públicas, houve também uma melhora nas

variáveis econômicas, o câmbio registrou pequenas oscilações e foi responsável por apenas

1,60 ponto percentual do PIB pelo crescimento da dívida, enquanto o juro mantido em

14 O impacto da taxa de câmbio sobre a dívida é duplo na forma de um ajuste patrimonial: por um lado, a dívida externa aumenta, por outro, o mesmo ocorre com a valorização de estoque da dívida interna indexada ao câmbio. Isso foi particularmente forte tanto em 1999 como em 2001 e explica os saltos do coeficiente da dívida/PIB, apesar do resultado primário robusto observado depois de1998 (Giambiagi 2002).

3,28 3,50

3,70 4,01

4,27

4,61

0,00

0,50

1,00

1,50

2,00

2,50

3,00

3,50

4,00

4,50

5,00

1999 2000 2001 2002 2003 2004

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níveis reduzido ao longo do ano respondeu 6,90% desse crescimento. A esses fatores

somaram 0,75% do PIB referentes ao reconhecimento de dívidas passadas (esqueletos)15.

Ganhos com o processo de privatização de 1,75% do PIB, cujos recursos foram destinados

para o pagamento da dívida, somado ao efeito superávit primário de 3,3% do PIB, e o

crescimento nominal do PIB, contribuíram para minimizar a expansão da dívida em 3,90

pontos percentuais, permitiram que a variação ficasse contida em apenas 0,10% do PIB em

relação ao ano de 1999 como informa o gráfico abaixo. Pode-se observar que o percentual

da dívida em 2000 em relação ao PIB foi de 48,78%, ou seja, 563.169 milhões reais.

Gráfico 5: Comportamento da DLSP Fonte: Banco Central do Brasil

A melhora relativa da economia brasileira, levaram analistas econômicos e técnicos do

governo a projetarem para o ano de 2001, taxa de crescimento econômico semelhante a

alcançada em 2000. Porém, no decorrer do ano, com a piora nas variáveis de política

econômica, aliado aos choques internos e externos16, reverteram o otimismo dos analistas

no início do ano, transformando-o em preocupação sobre a trajetória da economia para os

próximos anos.

15 Chama-se esqueletos o reconhecimento de antigas dívidas que tinham impactado na demanda agregada no passado, mas que não foram registrados pelas estatísticas fiscais da época (Giambiagi 2002). 16 O ano de 2001, foi marcado internamente pela crise energética e externamente pelo atentado terrorista nos EUA em 11 de setembro e a crise da Argentina.

48,6851,90

-2,90 -3,30

-3,47 -3,36 -4,10 -4,40

9,10

-4,00 -5,60 -3,90 -3,98

0,50

-1,00

1,47 0,92 0,00 0,00

56,53 57,20

48,7852,57

7,00 6,88 6,90 8,30

7,31

-0,90

6,50

3,01

9,45

1,60

-7,70

-0,30

-10,17

-20

-10

0

10

20

30

40

50

60

70 % PIB

DLSP S. PRIMÁRIO J. NOMINAIS AJUSTES CAMBIAIS EFEITO CRESC. PIB RECONHEC. DÍVIDA

1999 2000 2001 2002 2003 2004

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Como resultado dos desequilíbrios interno e externo, o governo mais uma vez é obrigado a

recorrer ao FMI. Este novo acordo foi negociado em tempo recorde, e propiciou a entrada

de recursos no país, recompondo as reservas e permitindo assim que às autoridades

econômicas retomassem o controle da situação. As bases do novo acordo foram bem mais

rigorosas e restritivas para a economia brasileira, sobretudo em relação às metas de

superávit primário que foi aumentado de 3% para 3,35% do PIB, e a meta de inflação

projetada na casa dos 5% ao ano, indicando, portanto maior rigidez da política fiscal e

monetária no quadro macroeconômico marcado por grande volatilidade.

Em relação ao desempenho da economia no ano de 2001, os indicadores de evolução da

atividade produtiva mostraram resultados decepcionantes, com o PIB registrando um

modesto crescimento de 1,5% no ano, contribuindo ainda mais para expansão do

coeficiente dívida/PIB. Este teve um crescimento de 4 pontos percentuais em relação ao

ano 2000. Apesar da economia brasileira ter gerado um superávit de cerca de 3,70% do

PIB. Os fatores que contribuíram para a expansão do endividamento foram: as taxas de

juros com impacto de 6,88%, resultado da possibilidade de aceleração da inflação; os

ajustes cambiais contribuíram em 3,01%; e os passivos contigenciais (esqueletos) em

1,47%. Com o crescimento nominal do PIB tendo contribuído para sua redução em 3,98%,

aliado ao efeito superávit primário de 3,47%, o coeficiente dívida pública/PIB registrou no

ano 52,7% e seu estoque ficou em R$ 660.829 milhões. Um aumento de aproximadamente

R$ 100 milhões em relação ao ano anterior.

Mas é no ano de 2002 que a volatilidade revela toda a sua força. Com a aproximação da

sucessão presidencial a possibilidade de um partido de oposição sair vitorioso, causando

uma certa dúvida sobre o tratamento que o novo governo daria as questões de ordem

econômica, adicionado a uma ameaça de guerra no Oriente Médio, entre EUA e Iraque. As

expectativas dos investidores tornaram-se cada vez mais cautelosas quanto ao futuro do

Brasil, no que tange ao novo governo em cumprir as diretrizes que foram acordadas

previamente nos acordos firmados anteriormente com o fundo.

Novamente, diante de todas estas incertezas e tensões, os mercados de câmbio, juros e

bolsa ingressaram num período de fortes turbulências e volatilidade. O câmbio que havia

acomodado em torno de uma paridade na casa de R$ 2,30 no período anterior, iniciou uma

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42

dez/01 jan/02 fev/02 mar/02 abr/02 mai/02 jun/02 jul/02 ago/02 set/02 out/02 nov/02 dez/02

52,5755,17

54,75 54,81 54,63 55,7357,90

61,93

58,30

63,90

59,4057,54

56,53

0,00

10,00

20,00

30,00

40,00

50,00

60,00

70,00

escalada contínua de aumento a partir de junho de 2002, diante da possibilidade de escassez

de dólares e dos elevados compromissos externos do país. Tais compromissos que teriam

de ser honrados até o final do ano, com a paridade chegando próximo de R$ 4,00 nos

momentos de maiores tensões.

A manutenção do câmbio em patamares elevados, por um período prolongado de tempo,

repercutiu nos níveis de inflação e, mais geral, com cerca de 20% da dívida indexada ao

dólar, imprimiu-se uma trajetória de rápido crescimento desta. O seu estoque foi

aumentando como proporção do PIB, de 54,5% (R$ 680.710 milhões) entre Fevereiro e

Abril, para 55,7% (R$ 684.637 milhões) em maio, 58% (R$ 708.454 milhões) em junho,

61,9% (R$ 750.257 milhões) em julho e, em setembro atingindo seu teto máximo de 63,9%

(R$ 819.376 milhões) no ano.

Gráfico 6 − Evolução da DLSP não financeira consolidada (2002)

Fonte: Banco Central do Brasil

Como dispositivo para enfrentar este cenário de câmbio desvalorizado e por conseqüência

aceleração inflacionária, os juros foram manejados como instrumento de auxílio de

reversão desse quadro, depois de ter caído até 18% no final de 2001, foram sendo

sucessivamente aumentado até atingir a marca de 25% em dezembro de 2002.

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43

Como conseqüência desse episódio, as contas públicas em 2002 foram extremamente

abaladas em vários de seus fundamentos macroeconômicos. A principal variável

responsável pela expansão do endividamento público, sem dúvida, foi o câmbio que

impactou 9,45% do total da dívida, enquanto os juros nominais responderam por uma

variação de 7,3%, e os esqueletos por 0,92%, totalizando uma variação bruta de 17,68% do

PIB. A sua redução pelo efeito crescimento nominal do PIB de 10,17%,dados os índices

mais elevados de inflação no ano, e uma geração de superávit primário de 3,36% do PIB,

conseguiram conter sua expansão em 3,96% do PIB, num nível de endividamento em

dezembro de 2002 em 56,53% do PIB e seu estoque registrou um montante de R$ 881.108

milhões. Um aumento de aproximadamente 4 pontos percentuais em relação ao ano

anterior.

O ano de 2003 foi um ano singular para a economia brasileira, marcado pela sucessão de

um governo com viés liberal para um governo dito de esquerda. Neste ano, havia ainda

resquícios de desconfiança por parte dos investidores em relação ao novo estilo de

condução da economia.

Com o passar dos meses, o câmbio que havia chegado à marca recorde desde a implantação

do real, aproximando a casa dos R$ 4,00 foi paulatinamente regredindo fechando o ano

abaixo dos R$ 3,00, resultado do restabelecimento da confiança por parte do mercado.

Porém as taxas de juros permaneceram elevadas, pois os técnicos do governo afirmavam

que havia o risco de elevação inflacionária por parte da demanda.

No campo real da economia, o novo governo foi muito além do anterior, intensificou a

política de austeridade fiscal reduzindo drasticamente os gastos públicos e aumentando a

carga tributária que rompeu os 35% do PIB no ano de 2003. Porém a arrecadação foi

inferior em 1,1% do PIB em relação ao ano de 2002, conseqüência da estagnação da

economia registrada naquele ano, que teve um recuo de 0,5% do PIB. Ainda assim, a

economia conseguiu efetuar um superávit primário de 4,27% do PIB, percentual acima do

acordado com o FMI.

Em relação ao lado nominal, a relação dívida pública/PIB seguiu sua trajetória de ascensão,

porém nesse período um pouco limitado. A explicação para isso é a seguinte: mesmo com o

aumento do peso dos juros em 9,10% do PIB, a valorização da taxa de câmbio produziu

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impacto favorável de 4,0% do PIB, auxiliada pelo efeito do superávit primário de 4,1% do

PIB, que contribuiu para que a variação da dívida ficasse em torno de 0,67% do PIB, em

relação ao ano anterior e fixasse seu estoque em (R$ 913.006 milhões) 57,20% do PIB no

final do ano.

Finalmente, o ano de 2004 foi marcado pela tranqüilidade tanto internamente como

externamente, o que contribuiu fundamentalmente para melhora dos fundamentos

macroeconômicos. Neste ano, a economia registrou um crescimento econômico recorde em

relação aos outros cinco anos anteriores e um crescimento real de 4,9% em relação a 2003.

O câmbio continuou a sua trajetória de queda desde 2003, em função do excesso de

liquidez no mercado internacional, o que contribuiu para o ingresso de divisas que

pressionou o câmbio para baixo. Este processo ajudou o risco Brasil a reduzir abaixo dos

500 pontos no ano. A taxa de juros nominal (Selic) também teve uma redução substancial

em relação ao pico de 26% em junho de 2003, e fechou o ano de 2004 em 17,50%. Estes

resultados positivos registrados na economia contribuíram para que o país ganhasse

credibilidade frente ao mercado financeiro e substituísse títulos indexados ao dólar por

títulos pré-fixados. A dívida líquida do setor público/PIB apresentou a primeira queda anual

desde 1994, fechando o ano em 51,9% porém em valores absolutos a dívida continuou

crescendo e seu estoque foi de R$ 956.996 milhões no final de 2004.

O maior esforço fiscal, o crescimento do PIB e a apreciação do câmbio favoreceram a

melhora da relação dívida pública/PIB no ano. O superávit primário e o crescimento

nominal do PIB apresentaram contribuições contracionistas de 4,4% do PIB e 7,7% do PIB,

respectivamente. A apreciação cambial teve uma contribuição de 0,9% do PIB para a queda

da relação dívida pública/PIB. Finalmente, embora os juros nominais sobre a dívida

doméstica tenham contribuído com 7% do PIB para a expansão da relação – um percentual

bastante alto, relativamente -, esse percentual foi inferior aos dois anos anteriores.

Em suma, os anos de 1999 a 2004 revelaram que diante do elevado nível de endividamento,

interno e externo, da economia brasileira, a sensibilidade a choques internos e externos

repercute nas contas públicas, notadamente pela influência que sobre elas exercem os

movimentos do câmbio e dos juros. Assim, o esforço fiscal (cortes nos gatos públicos) para

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reduzir o endividamento público foi traduzido em baixas taxas de crescimento econômico

na maioria dos anos pesquisados.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente monografia tentou demonstrar por via teórica e empírica as conseqüências

provocadas por um ajuste fiscal profundo. Dessa maneira, além dos argumentos embasados

nas teorias keynesiana e kalekiana sobre o princípio da demanda efetiva, foram também

demonstradas inconsistências em utilizar recursos oriundos da demanda agregada (lado

real) para equilibrar as contas públicas (lado nominal). Foram utilizados dados e

simulações estatísticas que ajudaram a validar esta tese.

Existem duas questões que são de importância fundamental para análise do endividamento

do setor público. Em primeiro lugar deve-se perguntar se um superávit superior a 4% do

PIB é sustentável por muitos anos? Para responder a essa pergunta, não basta demonstrar

que o superávit é economicamente (algebricamente) sustentável. Isto é, que a economia é

capaz de gerar um volume de arrecadação como proporção do PIB, que, dado os níveis

atuais de dispêndio por parte do setor público, seja capaz de gerar este superávit. É

necessário indagar também se esse superávit é socialmente sustentável, ou seja, se a

sociedade brasileira está ou não disposta a transferir para o setor público uma parcela de

renda que seja compatível com essa meta de superávit primário, conforme salientou

(OREIRO; PAULA; SICSÚ,2003).

Em segundo lugar, é importante questionar se não haveria outras vias de redução da dívida

pública, ou dito de outra forma, seria possível estabilizar o endividamento do setor público

por meio de mudanças na condução da política econômica, de forma a obter uma redução

da taxa de juros real e uma aceleração do crescimento econômico?

No que se refere a primeira pergunta, acredita-se não ser socialmente viável a manutenção

do superávit primário em patamar superior a 4% do PIB. Já que o problema do

endividamento não está na órbita real, e sim nominal, como foi analisado no transcorrer da

pesquisa.

Ademais, a disponibilidade de recursos do governo para o custeio com investimento

apresenta-se muito baixa, de forma que não seria desejável a manutenção ou o aumento

significativo do superávit primário por intermédio de uma redução do montante de recursos

disponíveis para investimento do governo. Por fim, as patentes deficiências existentes na

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estrutura básica da economia brasileira (geração de eletricidade, pavimentação de estradas,

financiamento das universidades públicas, financiamento de investimento em P&D) são

uma permanente fonte de pressão pelo aumento dos gastos públicos, de acordo com

(OREIRO; PAULA; SICSÚ, 2003).

Em relação a segunda questão é exatamente a conclusão a que chega o trabalho, ou seja,

uma atuação mais ativa do governo no que concerne a redução das taxas de juros e aumento

dos gastos, constitui-se numa forma anticíclica de gerar crescimento econômico. Porém,

esta estratégia alternativa seria gradualista, podendo ser implementada após a restauração

de um quadro de certa normalidade na economia.

Concluindo, a política fiscal implantada a partir de 1999 não poderia, no entanto, deixar de

ser uma política emergencial. Executada como política de longo prazo, seus efeitos serão

recessivos e gerarão mais tensões dentro do aparelho do Estado, desarticularão setores

econômicos importantes e potencializarão a própria fragilidade das contas públicas,como

evidenciou (BIASOTO, 2003).

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