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A Produção Fotográfica com uso de Smartphones em Assentamento do MST: Estudo Comparativo - 2002 e 2017 1
Rodrigo Rossoni2
Universidade Federal da Bahia – UFBA
RESUMO O objetivo deste artigo é apresentar parte dos resultados de uma pesquisa sobre a inserção das tecnologias digitais e a produção fotográfica com o uso de smartphones em um Assentamento do Movimento dos Sem Terra, o Assentamento Piranema, quinze anos depois de uma produção fotográfica realizada por crianças da comunidade. A pesquisa, de base comparativa, é a terceira etapa de um processo de investigação, que teve início em 1997, sobre fotografia e modos de construção de identidades de famílias do MST. O estudo encerra, portanto, um ciclo de vinte anos de experiências compartilhadas com os sujeitos da pesquisa
PALAVRAS-CHAVE: Fotografia; Identidades; MST. 1. Apresentação
O objetivo deste artigo é apresentar um estudo comparativo da produção
fotográfica realizada por integrantes do Assentamento Piranema em dois momentos
distintos: 2002 e 2017.
O assentamento Piranema é uma comunidade da zona rural do município de
Fundão, no estado do Espírito Santo. Está localizado há 64 Km da capital, Vitória, e tem
uma população de aproximadamente 500 pessoas. Foi criado em dezembro de 1997, por
meio de um decreto presidencial, depois de fortes pressões exercidas pelo Movimento
dos Sem Terra para que a Fazenda Piranema, uma área de 826 000 hectares, fosse
desapropriada para fins de Reforma Agrária.
Nossa interlocução com as famílias de Piranema, entretanto, teve início antes
mesmo da criação do Assentamento. Ocorreu em julho de 1997, época em que as
famílias ainda sobreviviam acampadas, em lonas pretas, às margens da rodovia BR101,
há aproximadamente 7 Km da fazenda. Naquele período, produzíamos um
documentário fotográfico sobre as condições de vida nos acampamentos do MST no
Espírito Santo. As imagens foram produzidas sob o olhar de um fotógrafo de fora.
Cinco anos depois, em 2002, a partir da experiência fotográfica de 1997,
propusemos, a realização de uma prática educativa – oficina de fotografia - para que as
próprias crianças fotografassem o seu cotidiano. Uma inversão de papéis: de
1 Trabalho apresentado no GP Fotografia do XVIII Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento componente do 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Professor no Departamento de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. Pós-doutor em Comunicação pela ECA/USP. Coordenador do Programa de Formação em Fotografia do Labfoto-Facom/UFBA. [email protected]
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fotografados, as crianças tornaram-se fotógrafas do seu mundo vivido. As oficinas
renderam mais de 1100 imagens que apresentavam a intimidade das famílias, a
produção da terra, o trabalho e, principalmente, a relação identitária com o seu lugar
vivido e sentido. É esse material a base comparativa para a pesquisa atual.
Em 2017, quinze anos após a realização da prática educativa, decidimos retornar
à experiência investigativa em Piranema. O objetivo não foi documentar a comunidade,
nem organizar novas oficinas de fotografia, mas investigar o processo de produção
fotográfica que espontaneamente já acontecia no interior do assentamento a partir da
inserção das tecnologias digitais e o uso de smartphones dos mesmos sujeitos da
pesquisa anterior.
A pesquisa atual analisa, portanto, os impactos que a tecnologia digital
promoveu na prática e na percepção da fotografia em Piranema, quinze anos depois. O
estudo buscou compreender como os processos contemporâneos de produção,
circulação e exibição da imagem digital promoveram novas aproximações em relação à
fotografia e potencializaram experiências éticas, estéticas e políticas a seus integrantes.
Como referencial teórico, a pesquisa buscou inspiração no pensamento de
Flusser (2002; 2012), principalmente na sua discussão sobre o universo das imagens
técnicas e o sentido que o autor atribui ao ato de apontar a câmera. Para Flusser
quaisquer que sejam os objetos, eles não são a causa da fotografia. Ao contrário, eles
são o seu pretexto.
A pesquisa também toma como referencial os estudos de Couchot (1993; 2004)
que vai discutir as implicações da tecnologia digital e a “experiência tecnestésica” que
ela supõe, já que imersa em outros dispositivos a fotografia perdeu muito do seu apelo
singular, conectando-se, hoje, a um universo que não é mais específico de sua
constituição original. A tecnologia digital, portanto, permite uma nova forma de
aproximação à fotografia. Por fim, os estudos do pesquisador catalão Edgar Gomes
Cruz (2012) também foi contribuição importante, já que a fotografia, para o autor, é
uma prática que implica não somente o conteúdo representacional das imagens, mas
todo o processo sociotécnico que, mediante as práticas de clicar, processar e distribuir,
dota de sentido esses objetos culturais a que chamamos de fotografia.
Mais do que analisar o resultado visual das fotografias, o nosso interesse, em
2017, foi investigar as múltiplas práticas tessidas a partir da chegada dos dispositivos
móveis, já que, como nos indica Cruz (2012), a pesquisa em fotografia deve estender a
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ideia da imagem como texto a uma ideia de imagem como materialização de uma parte
dos processos fotográficos, que não se deve reduzir a ela, ou centrar-se nela. Nesse
aspecto, propõe-nos que o sentido como significação social sobre a fotografia na vida
cotidiana, é o resultado das práticas que a integram.
"Es decir, [...] el sentido social de la fotografía es el resultado de las prácticas mismas y no del objeto fotográfico en sí. De ahí la propuesta de estudiar la fotografía como práctica de acción y no como un 'índice', 'mime' ou 'lenguaje'". [...] a centrarse en la acción, que, utilizando diversas tecnologías en contextos de la vida cotidiana, genera, produce distribuye y utiliza las fotografías para generar subjetividades e socializaciones. Es decir, busca ir del objeto fotográfico a las prácticas fotográficas"(CRUZ, 2012, p. 58-59).
Esta ampliação de perspectiva sobre a fotografia se faz necessária em virtude das
amplas mudanças do processo fotográfico nos últimos quinze anos, período de recorte
da pesquisa. A implementação da tecnologia digital no cotidiano mudou radicalmente os
regimes de visualidades e o consumo das fotografias, uma vez que a mudança não foi
apenas do sistema de impressão dos raios luminosos e sua recepção, mas da própria
natureza da fotografia em sua dimensão prática e teórica.
Para este artigo, portanto, recortamos uma parte da produção fotográfica de 2002
e de 2017 para um estudo comparativo a partir de categorias apresentadas a seguir.
2. Metodologia
A pesquisa se desenvolveu por meio de duas estratégias de investigação: uma,
etnográfica, estudo empírico de observação no interior da própria comunidade para
coleta de dados; a segunda, a pesquisa imagética, qualiquantitativa, nas redes sociais,
principalmente no facebook.
A pesquisa qualitativa seguiu os seguintes trâmites:
a) Observação: incursão no cotidiano de Piranema durante seis meses, em
períodos alternados, participando de diálogos e de suas práticas sociais. Por
escolha do própria grupo, os finais de semana foram os melhores momentos para
estar em Piranema, já que grande parte dos jovens tem ocupação nos outros
períodos.
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b) Entrevistas estruturadas para levantar dados técnicos sobre equipamentos, tipos
de câmeras, aparelhos integrados, relação com a tecnologia digital, redes sociais
e a relação com a fotografia.
c) Depois da etapa de incursão e das entrevistas, diagnosticamos que a totalidade
das imagens são publicadas no Facebook. Partimos, então, para a coleta das
imagens fotográficas que circulam nesta rede social. O Facebook tem uma seção
específica para a publicação e visualização de Fotografias, que é a seção
"Fotos". Ao clicar neste ícone aparecem três opções para o usuário: "Fotos com",
"Fotos de" e "Albuns". Selecionamos as imagens no ícone “Fotos de” publicadas
no período de maio de 2013 a dezembro de 2017.
A pesquisa quantitativa contribuiu para a dimensão estatística do conteúdo das
imagens produzidas. Inicialmente, partimos para uma estatística do tipo de câmera que
usavam nos smartphones: câmera frontal ou câmera traseira. Com esses dados,
penetramos no conteúdo das imagens de cada câmera. As proporções foram montadas a
partir do total de imagens produzidas pelos smartphones e suas publicações no
facebook. Com os números à nossa disposição, confrontamos os dados comparando-os
entre 2002 e 2017.
2.1. Dados da pesquisa
A pesquisa se concentrou, prioritariamente, na produção fotográfica e nas
práticas de pós-produção (formas de armazenamento, edição e circulação) de 23 jovens
que participaram do estudo de 2002 e que ainda residem em Piranema.
Na segunda etapa da pesquisa, após uma série de entrevistas, escolhemos, dentre
os 23, oito jovens para uma análise específica da produção fotográfica que circula na
principal rede social utilizada em Piranema, o Facebook.
A partir de uma série de entrevistas individuais, em que perguntávamos “Você
fotografa?” e “Qual equipamento utiliza para fotografar?”, constatamos que todos os
sujeitos da pesquisa estão produzindo fotografias, na atualidade, e o dispositivo para
isso é, exclusivamente, as câmeras dos smartphones.
Os primeiros aparelhos chegaram em Piranema, em 2012. Os entrevistados
relatam que além de o smartphone ser a única forma de se produzir fotografias, ele veio,
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na verdade, interromper3 um jejum de 10 anos (2002 a 2012), sem qualquer contato com
um equipamento de produção de imagens. Onde estão os registros da sua história e do
seu cotidiano? Como se constituíram enquanto sujeitos individuais e/ou coletivos? Onde
estão a manifestação dos seus desejos, de suas escolhas, das suas intervenções, a sua
comunicação com o mundo?
Essas respostas começam a aparecer timidamente em 2012, e mais intensamente
em 2013 com a chegada dos smartphones: quando, de fato, se inseriram no que
chamamos “cadeia produtiva”. A popularização dos smartphones tirou-os, “da noite
para o dia”, do total anonimato e alçou-os de uma só vez ao status de criador, produtor,
editor, diretor e distribuidor de imagens. Os aparelhos fizeram a produção fotográfica
atingir um patamar significativo, e os seus usos para as atividades de comunicação
tornaram-se uma viabilidade/realidade concreta.
2.1.1 Produção fotográfica com Smartphone
Do total de 2965 imagens na seção "Fotos de..." identificamos a seguinte disposição em relação ao tipo de câmera do smartphone utilizada:
I - Câmera frontal: 71% das imagens
2105 fotografias foram produzidas com a câmera frontal do celular. São
autorretratos, isto é, as chamadas selfies. A característica dessas imagens é que
fotógrafo e fotografado são a mesma pessoa. A mirada portanto voltou-se para si
mesmo. A tela do celular exibe a imagem do próprio fotógrafo.
II - Câmera traseira: 29%
860 fotografias foram produzidas pela câmera traseira do celular. A
característica principal dessas câmeras é a mirada de olhar para o outro, para os objetos
do mundo. A tela do celular exibe os objetos para onde o fotógrafo aponta a câmera.
Considerando apenas o tópico que se refere às imagens com a câmera frontal,
temos as seguintes características em termos de conteúdo:
3 A informação de que o smartphone interrompeu o jejum, fez-nos concluir, portanto, que em toda sua trajetória de vida, só tiveram acesso a um equipamento de produção de fotografias e utilizaram-no com esse objetivo, no ano de 2002.Temos portanto um período de aproximadamente 10 anos de total inexistência de produção fotográfica pelos nossos entrevistados. As consequências desse vazio se reflete, dentre outras coisas, em duas questões básicas: (1) na ausência de registros da memória coletiva e/ou individual da comunidade; (2) na limitação/privação do uso de uma linguagem como processo de manifestação do pensamento e/ou expressão pessoal e coletiva. Alijados do processo de produção, consequentemente, de comunicação, se constituíram apenas como consumidores de imagens, principalmente as midiáticas, oriundas de TV e jornais impressos. A sua experiência estética visual se forjou a partir das referências das telenovelas, telejornais, publicidades e de todos os produtos que a grande imprensa circula.
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2.1.2 Fotografias com câmera frontal
Dentre as 2105 fotografias produzidas com a câmera frontal do celular,
detectamos, depois de uma investigação mais precisa, três categorias fundamentais de
autorretratos: a) Ostentação/consumo - 22%; b) Sensualidade - 26%; c) Afetivas -
52%
a) Selfie ostentação/consumo - 22% dos casos
A selfie ostentação/consumo são aquelas imagens em que é explícito o objetivo
do dono do perfil de expor a sua imagem com estilo mais arrojado ou acompanhada de
algum objeto de valor. São cordões de ouro e de prata, relógios banhados a ouro, roupas
de marca famosas (genéricos), bonés também de marcas famosas, óculos de sol,
aparelhos eletrônicos, motocicletas, carros, bebidas de valor agregado (cerveja, whisky),
monumentos urbanos e, em alguns casos, fachada de shopping, além dos próprios
celulares, refletidos em espelhos.
Esta categoria ocupa 22% do número de selfies e é praticada, em sua grande
maioria, pelos homens, que detém 70% das imagens. As mulheres, com 30%, expõem
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suas selfies na maioria das vezes quando estão arrumadas para participar de algum
evento. Estão mais focadas em um modelito de roupa, no corte e/ou penteado do cabelo.
As selfies em espelhos também são representativas entre as mulheres.
Interessante observar que, entre as mulheres, as imagens tendem a ter um plano mais
geral do corpo. No caso dos homens, as imagens são de planos mais fechados, tornando
mais objetivado o seu interesse de evidenciar o objeto.
b) Selfie sensualidade - 26% dos casos
As selfies de exposição corporal ou aqui denominado selfie sensual são retratos
de si mesmos, contudo com uma clara evidência de exibição dos corpos. Mais uma vez,
é muito mais frequente entre os homens, que exibem seus corpos sem camisa. São
imagens em que estão mais expostos os peitorais, os bíceps e, em alguns casos, todo o
tronco do fotografado. Existe uma performance na produção que torna o objetivo de tal
exposição mais evidente.
A expressão facial, enfocando os olhares "sensualizados", é outra característica
peculiar das imagens. Entre as mulheres ocupam uma menor evidência e, nos poucos
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casos que aparecem, são imagens mais discretas, em que são exibidos corpos inteiros,
na praia, ou com roupas mais curtas e, em alguns casos, decotes na região do colo. As
selfies sensuais ocupam 26% do total das selfies. Os homens dominam esta produção.
Atuam em 78% dos casos, enquanto as mulheres praticam 22% dos casos.
c) Selfie afetivas – 52% dos casos
Selfies afetivas são consideradas as imagens em que o dono do perfil aparece
com membros da família e/ou com amigos. São comuns as imagens com filhos, a
principal fonte de produção, com os irmãos e irmãs, e com amigos, um número
considerável. Dentre os pesquisados é inexistente a produção/exibição de selfies com as
mães ou com os pais.
Dentro da categoria "selfie", as afetivas representam a maior estatística de
produção/exibição das imagens. Elas ocupam 52% dos casos e são superiores também
quando analisados os perfis individualmente. Elas são maioria no cômputo total em
número de imagens e são maioria em cada perfil.
As selfies afetivas são o principal norteador da produção e da exibição
fotográficas no grupo pesquisado. As outras categorias aparecem, de acordo com o
perfil, em maiores ou menores proporções. Em alguns perfis a selfie sensualidade
praticamente é inexistente. Contudo, as afetivas são dominantes. As selfies com filhos
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são a maior fonte de produção em números totais de imagem. Nem todos os pesquisados
tem filhos, mas os que os tem acabam tendo uma produção que supera os demais. Os
amigos são a segunda fonte de produção imagética. A terceira evidência na produção
das selfies são com irmãos e/ou irmãs. São a menor produção, mas tem uma aparição
em quase todos os perfis. Aparecem geralmente em datas comemorativas como
aniversários ou eventos festivos. O índice mais surpreendente foi a inexistência de
selfies com pais ou com as mães, mesmo nos casos em que eles convivam juntos em
casa.
2.1.3 Produção com a câmera traseira do smartphone
A produção com a câmera traseira do smartphone volta-se para os objetos e
pessoas que estejam diante do fotógrafo. Dividem-se basicamente nos seguintes
conteúdos:
a) Retratos do dono do perfil – 11,4% (338).
São fotografias em que o dono do perfil aparece na imagem. Ele pode estar
sozinho ou acompanhado de algum familiar ou amigo. Não são autorretratos.
b) Retratos de familiares – 12,4% (368)
São imagens em que aparecem membros da família. O dono do perfil não
aparece na cena. Em sua grande maioria são filhos, irmãos, mães, pais, avôs e avós.
c) Imagens não fotográfica: memes – 2,5%
Consideramos imagens não-fotográficas arquivos de texto e/ou imagem que
circulam pelas redes sociais e são compartilhadas no perfil.
d) Veículos: carro e motos – 1,5%
Um parcela das imagens é constituída apenas por veículos, sem a presença de
pessoas. São carros e motos as únicas evidências. As publicações normalmente
aparecem sem legendas ou qualquer tipo de apresentação.
e) Símbolos religiosos – 1,14%
Os símbolos religiosos aparecem em uma pequena parcela das imagens. São
símbolos católicos, normalmente a igreja, crucifixos ou atividades em cultos religiosos.
f) Plantio – 0,02% (5)
As imagens que apresentam qualquer referência à terra, ao plantio ou à colheita
são representados por cinco fotografias. São imagens de uma plantação de tomates.
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2.2 Análise dos dados
Como podemos observar, a câmera frontal do celular é o recurso mais utilizado
para a produção de fotografias nos smartphones dos sujeitos da pesquisa. É um domínio
hegemônico considerando tamanha desproporção dos números em relação à câmera
traseira.
No contexto da fotografia digital, era bem provável que tal dispositivo fosse
bastante utilizado, em virtude de o smartphone ocupar um papel fundamental na
produção de fotografias. Contudo, foi supresa um número tão superior: 71% da
produção, contra os 29% da câmera traseira.
O domínio da câmera frontal é recorrente tanto entre os homens quanto entre as
mulheres. Não há diferenças em termos de uso por gênero ou outra classficação como
idade ou ser casado e ter filhos. A prática de uso da câmera frontal sugere uma ética e
também uma estética características da fotografia digital contemporânea.
O uso do smartphone e a consequente prática da câmera frontal tem nos
mostrado que nossos sujeitos tem se dedicado cada vez mais, e com mais intensidade, a
lançar o olhar sobre si mesmos, diminuindo cada vez mais a prática da fotografia como
registro/documento da memória individual e/ou coletiva.
Aqui está a principal base do estudo comparativo. No perfil dos pesquisados os
seus retratos, seja selfie ou não, somam juntos 82,3% de todas as imagens (2.442
fotografias) que circulam no Facebook. Temos portanto a produção e uma circulação
intensa da imagem de si mesmos. Pode-se argumentar que o facebook é um perfil
individual e pareceria óbvio que o retrato ocupasse um número alargado. Contudo, ele é
o único ambiente de visualização das imagens, sendo, portanto, a única dimensão
concreta de sua circulação.
Por seu lado, a prática com a câmera traseira também traz outros dados
relevantes: (1) o baixo índice de produção/publicação de objetos (diversos do
assentamento). Estes ocupam apenas 1,7% das imagens. Especificamente são carros e
motocicletas (1,5%), e alguns poucos objetos de artesanato feitos no interior do
assentamento (0,2%); (2) O baixo índice de imagens da terra e seus derivados: plantio,
cultivo e criação. Ocupam somente 0,16% das fotografias. Elas se resumem a cinco
imagens, em um mesmo perfil, de uma plantação de tomates.
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A pesquisa traz dados extremos e instigantes. De um lado, o uso exacerbado da
câmera frontal, uma subjetividade produzida com os dispositvos contemporâneos, para a
prática de fotografar a si mesmo; de outro, a inexistência do uso da câmera traseira, a
que se lança para o mundo e para o outro, para registrar as referências simbólicas do
MST, o trabalho, a terra e o que a terra produziu.
3. A produção fotográfica em 2002
A produção fotográfica de 2002 foi resultado de uma série de oficinas de
fotografia oferecidas às crianças que frequentavam a escola do Assentamento Piranema.
Participaram, na época, 17 crianças entre 6 e 11 anos de idade.
Cada criança recebeu uma câmera equipada com um filme colorido de 36 poses,
e durante uma semana tiveram a total liberdade de fotografar o que quisessem. O
processo de produção não foi acompanhado pelo pesquisador. As crianças também não
receberam nenhuma orientação do que fotografar nem como fotografar.
Após a etapa de produção fotográfica, os filmes foram recolhidos, revelados e
todas as imagens ampliadas em papel fotográfico. No total, foram produzidas 1.188
fotografias. As fotos abaixo apresentam uma síntese dessa produção.
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Os dados revelam uma íntrinseca relação com a terra e com os objetos que a
conquista da terra proporcionou. Isso fica evidente numa proporção equilibrada das
categorias, que veremos a seguir:
1) A imagem de familiares, 37%, ocupa o maior índice da produção, considerando membro da família em ambientes internos da casa e em áreas que não sejam em frente das casas;
2) Familiares na frente das casas: 6,2% das imagens. 3) Imagens das casas: 4,6 4) Os amigos: 18,2% dos casos; 5) A escola teve um índice de 5,3%. Integramos à categoria “escola” as imagens
do prédio, a imagem dos professores, a sala de aula e as brincadeiras no recreio e/ou no pátio.
6) A relação com a terra, com os seus produtos, e o trabalho tiveram uma atuação relevante na pesquisa. Somados, eles atingiram o impressionante índice de 24% das fotografias;
7) As referências simbólicas do MST também estiveram presentes na produção. Representaram 2,8% das imagens. As principais referências são a bandeira, camisetas, bonés, os elementos da mística, a organização do teatro com encenação sobre as lutas e ocupações, o momento do canto do hino do MST, além de personagens característicos e palavras grafitados em alguma parede;
8) Os símbolos religiosos, com 1,9%, ocuparam o menor índice. Normalmente são referências católicas como a igreja, a cruz ou uma imagem de crucifixo.
O eixo da produção de 2002 esteve centrado na dimensão dos afetos que reuniram as
suas relações interpessoais (família e amigos) e os seus objetos de valor (na terra e seus
derivados, e nos referenciais do MST).
4. Comparativo dos dados (2002 e 2017)
Selecionamos as categorias de maior e de menor evidência: Autorretratos, Casas
e objetos em geral, referências simbólicas do MST, o trabalho, a terra e seus derivados.
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4.1 Autorretratos (selfies)
A primeira categoria em que nos debruçamos foi a de autorretratos. Na pesquisa
atual, eles ocupam 71% da produção/exibição das fotografias. Já, em 2002, a produção
de autorretratos foi de zero. Não se produziu nenhuma imagem de si mesmo naquele
ano. Estes números extremos chamam à atenção por dois motivos básicos: (1) 71% é
um número extremo para os dias atuais, da mesma forma que (2) 0% de 2002 foi um
impacto surpreendente. Por mais que fazer autorretrato não fosse comum no
comportamento fotográfico em 2002, a inexistência de qualquer intencionalidade na
produção da imagem de si demonstra que a perspectiva do olhar estava voltado
exclusivamente para o outro.
Em 2017, mesmo com o uso das câmeras frontais estando na moda, o índice de
71% é um dado extremo já que é uma prática do autorretrato não tem a pretensão de
registro para documentação ou memória. Passamos de uma dimensão que atribuía
sentido ao objeto mirado, para uma prática aleatória, em que o sentido não está no que
se fotografa, mas no ato ou efeito de clicar, na prática sociotécnica. Clicar para passar o
tempo, para ver como está os cabelos, os olhos e a expressão.
Podemos afirmar que em 2002 os dispositivos e seus usos estavam imersos em
outras subjetividades. A câmera fotográfica, enquanto objeto simbólico, tinha um
sentido de ser direcionada para o mundo, para um “outro”. Fotografar era uma
atribuição de sentido, “o resultado de uma escolha subjetiva” (Kossoy, 2002) e, muitas
vezes, “uma ação orientada ideologicamente” (MACHADO, 1984, p. 76). Em 2002, a
identidade se construía nos objetos e da relação com eles. Em 2017, a produção das
identidades se realiza na própria prática de fotografar-se. As discussões não se
processam no ato fotográfico, mas no processo sociotécnico que a relação com o
aparelho potencializa. A performance em si é o ato/efeito de construção da identidade.
Fotografar não é mais o resultado de um gesto dos olhos, de um repertório
cultural ou ideológico. Fotografar é uma ação dos dedos, uma prática contemporânea
produzida a partir do digital e dos seus dispositivos convergentes. A subjetividade
produzida na contemporaneidade torna o ato de clicar um mecanismo de consumo da
imagem, de uma espécie de troca com um outro: a interação. Cada clique alimenta uma
complexa rede de significações que não se inicia nem se completa no ato fotográfico.
Uma nova lógica identitária que avança com a postagem e ganha o seu auge na
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expectativa e ansiedade pelo consumo daquela imagem: quem vai curtir, quantos
curtirão, quantos comentarão e quantos elogiarão. Este estado de coisas alimenta o
comportamento contemporâneo. É um processo de subjetivação que aponta para uma
identidade em constante construção e reconstrução, fluida e multifacetada. O
smartphone é o dispositivo/gatilho desses agenciamentos. A performance é um meio, a
imagem uma via, os likes são o fim.
4.2 Referências simbólicas do MST
Em 2002, as referências do MST ocuparam 2,8% da produção. Apesar de
parecer um pequeno índice, elas apresentavam em 2002, uma participação/presença
relevante nos filmes da maioria das crianças pela intencionalidade do seu registro. Não
eram registros aleatórios nos quais tais referências ocupavam papel secundário. Em
2017, a pesquisa revelou que as imagens relacionadas a MST são inexistentes, isto é,
entre os pesquisados, nenhum deles publicou/produziu fotografias que remetessem a
esta categoria. Não se tem referência à bandeira ou a qualquer outro objeto que se
relacione aos símbolos ou às cores do MST. Temos, portanto, uma produção que parece
nos indicar um distanciamento do MST e das referências da terra.
4.3. Trabalho Em, 2002, as imagens que integraram esta categoria atingiram o índice de
6,14% da produção. As imagens apresentavam atividades relacionadas a um saber-
fazer, em grande parte dos pais, seja na terra (maioria) ou em outro espaço de ação. Em
2017, não identificamos fotografias que fizessem alguma referência ao trabalho. A
produção/exibição, portanto, é nula.
4.4 Terra e seus derivados (plantio, frutos)
Constituem esta categoria as imagens que remetem à terra e/ou ao que
chamamos de seus derivados. São eles: o plantio, a colheita e a criação. O primeiro
refere-se ao que se planta; o segundo, ao cultivo de frutas, legumes, café ou outro item
da alimentação; o terceiro, às espécies animais como o gado, as aves, os equinos, os
suínos e etc. Em 2002, as imagens que compunham esta categoria somaram juntas
16,9% das fotografias. Em uma divisão mais detalhada “terra e plantio” obtiveram
juntas 10,3% e, os produtos e criação, 6,6%. Por mais que consideremos que os limites
territoriais da produção fotográfica era o próprio assentamento, e a terra, a platanção e a
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criação estivessem diante dos seus olhos, o índice de 17% demarca uma
intencionalidade do registro. As imagens não são aleatórias.
Na pesquisa de 2017, consideramos os mesmos limites territoriais do
assentamento, em que a terra, a plantação e a criação estão diante dos seus olhos.
Contudo, as únicas imagens que constam no perfil dos pesquisados são cinco
fotografias de uma plantação de tomates. Este número corresponde a 0,02% do total.
Não há nenhuma outra referência à terra, seja arada, seja semeada ou a outro derivado
dela, como a criação. Em todos os perfis pesquisados o índice foi de zero.
4.5 Casas e objetos da casa
Em 2002, as casas foram objetos da fotografia de praticamente todos os
fotógrafos. Além das casas, foi muito recorrente o registro de objetos de valor do
interior da casas tais como móveis (cama, sofá e armários) e eletrodomésticos (TV,
Geladeira, fogão, aparelhos de som). Juntos, somaram 21,2% das fotografias. Em 2017,
considerando todos os itens juntos, apenas três fotografias de uma casa em construção,
o que representa 0,06% da produção. As fotos são do mesmo perfil.
4.6 Família
As fotos de familiares aparece com 27,44%, em 2002. Em 2017, 12,41%.
Apesar de manter em alta na atualidade, o índice caiu mais da metade.
5. Considerações finais
A partir da confrontação dos dados de 2002 e 2017, ficou demonstrado na
pesquisa que a inserção da tecnologia digital, ou como sugerimos, a inserção na cadeia
produtiva, transformou as relações que os sujeitos da pesquisa estabeleciam com o
dispositivo de produção de imagens e o seu mundo vivido. A principal conclusão da
pesquisa comparativa se refere ao fato de que atualmente a produção da imagem de si
mesmo e sua circulação subiram exponencialmente enquanto as referências à terra, à
produção e ao MST praticamente desapareceram. A produção atual está centrada no uso
da câmera frontal - os autorretratos -, e mesmo a câmera traseira que supostamente
registraria os objetos do mundo ou o seu lugar de sentido, também voltam-se para a
produção de retratos deles mesmos ou de amigos e familiares.
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O uso da câmera traseira não se destina para objetos, coisas, fazeres ou às
referências identitárias que diagnosticamos em 2002. Isso nos supõe considerar que a
construção da identidade dos sujeitos da pesquisa não se faz mais na relação com os
objetos ou às referências do grupo, mas na prática performática que a produção da
imagem de si mesmo potencializa, enquanto ação desterritorializada de um mundo
construído discursivamente no passado.
Há uma grande produção do retrato de si mesmo seja pelas câmeras frontais seja
pelas câmeras traseiras. Os autorretratos autentificam a sua presença em diversas
situações do cotidiano e sua relação afetiva com mais pessoas: amigos e família. Mais
ainda, os autorretratos demonstram um desejo de ostentação e consumo, mas expõe
também a dinâmica do corpo, ativo na contemporaneidade. O corpo que seduz, que se
expõe sem controles, rompendo com algumas estruturas conservadoras. O sujeito que se
apresenta com/pelo corpo, que não tem medo, nem pudor de expressar-se.
A principal constatação da pesquisa não é o fato de os autorretratos serem
hegemônicos. Isso já era previsto. O que chamou a atenção foram a recorrência das
selfies ostentação e sensualidade, já que as afetivas estariam dentro de uma espécie de
previsibilidade. Processou-se um deslocamento expressivo da produção de 2002. Um
desprendimento das relações com a terra e com o MST e um alargamento da ostentação
e da sensualidade como práticas das subjetividades produzidas na contemporaneidade.
Esta aresta longa das selfies ostentação e sensualidade subvertem formas e conteúdos e
tensionam o campo da produção identitária.
Ao mesmo tempo, sua imagem também está presente nas produções da câmera
traseira. O dispositivo possibilita a troca, e os usos são compartilhados por outras
pessoas que tem a familiaridade com o aparelho. No fim, o resultado da produção
fotográfica se concentra na produção e circulação de retratos, na sua grande maioria, de
si mesmos. Nas/pelas selfies forjam as suas identidades performáticas.
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SOUZA e SILVA, Wagner. Foto 0 | Foto 1. São Paulo: Editora da USP, 2016