Download - A Produção Do Cômico No Teatro Em Bergson
A PRODUÇÃO DO CÔMICO NO TEATRO EM BERGSON Rivaldete Maria Oliveira da Silva¹ (UFPB/PROLING)
INTRODUÇÃO
Este trabalho, inserido na linha teórica dos estudos de literatura, investiga os
mecanismos da criação dos recursos cômicos no texto escrito para o teatro com base nos
procedimentos de elaboração da linguagem e nos traços de caráter das personagens, a
partir das situações, dos diálogos e do seu efeito na plateia, que tem como resultado o
riso.
O cômico, nas últimas décadas, tem sido objeto de discussão em congressos,
conferências e projetos de pesquisas entre estudiosos e divulgadores do humor,
buscando modos de explicar princípios e condições sob as quais uma situação ou texto
sejam realmente dotados de comicidade.
Travaglia (1990), ao propor um grande projeto de pesquisa para que se elabore
uma intensa abordagem sobre o humor em sua interdisciplinaridade, trata da
importância do cômico pelo seu papel tão presente nos mais diversos campos de estudo
como a história, a sociologia, a psicologia e a linguística.
Minois (2003) relata que a associação Corhum (pesquisas sobre o cômico, o riso
e humor), criada desde 1987, organiza jornadas de estudo sobre o assunto e lança
semestralmente a revista Humoresques, destinada a publicações do humor. Nos Estados
Unidos, o jornal de caráter interdisciplinar Humor: International Journal of Humor
Research preenche esta função, buscando os mistérios do riso nos mais diversos setores
da vida em sociedade.
Mas, as reflexões sobre o cômico não despertam interesse apenas na
modernidade, antes carregam uma longa tradição. Remontando às raízes clássicas, em A
República Platão (1994) já condena o uso do cômico nas suas diversas manifestações.
Aristóteles (1988), na Poética, dedica a sua atenção não só à tragédia e à epopeia, mas
também à comédia, apoiando sua visão de cômico no triunfo do amor próprio, momento
em que o riso torna o homem superior àquele que o faz rir. Quintiliano (1997), com a
sua exposição sobre o cômico em Institution oratoire (A Instituição Oratória), também
oferece um valioso contributo aos estudos do cômico, mostrando que “[...] o sucesso ou
fracasso de um orador poderia ser determinado pela sua habilidade retórica.” (MIOTTI,
2007, p. 246). Se não se tivesse a devida habilidade com o dito bom discurso, estaria
fadado ao risível. Diante de um campo teórico e histórico tão vasto, uma investigação desses
recursos, no texto escrito para o teatro, exige que se faça um recorte entre as categorias
de análise e tome-se por referência a concepção do cômico na teoria de Bergson (1983),
pela sua preocupação em procurar na comédia, na farsa e no drama elementos
produtores do riso e em estabelecer um método de análise para seu processo de
fabricação.
São consideradas ainda as proposições de Versiani (1974), Reis (1993) e de
Alberti (2002) sobre o cômico bergsoniano, como meio de aprofundar os
questionamentos sobre o mecanismo das formas e movimentos, a linguagem das
personagens, a rigidez aplicada à mobilidade da vida, a ligação da alma ao corpo ou a
transfiguração de uma pessoa em coisa num determinado contexto.
__________________
¹ Doutoranda em Linguística pela UFPB/PROLING e pesquisadora do grupo de estudos em Linguagem,
Enunciação e Interacionismo/GPLEI da UFPB.
Relacionando princípios teóricos já estabelecidos em fontes bibliográficas,
pretende-se uma reflexão mais especifica do tema para que se entenda o riso teatral
como um gesto de censura que critica todo desvio de conduta social com a intenção
fazer o espectador repensar os padrões condicionados à cultura do grupo em que está
inserido ou da organização social a que pertence.
Com esta contribuição, pretende-se oferecer um suporte teórico para atores em
cena e mais uma forma de ler teatro em sala de aula. Assim, ampliam-se as fontes de
observação sobre a produção do cômico e explica-se o desencadeamento de seus efeitos,
o riso, tido como reação inerente ao ser humano que ridiculariza todo modelo que for
imitado e repetido na superfície do corpo social e visto não apenas como pura
descontração, mas como um fenômeno condicionado à cultura, uma forma de enxergar
o mundo, de opor a rigidez à flexibilidade através da linguagem, de se manifestar e de
vivenciar situações da realidade na arte da encenação.
1 O riso estético-filosófico bergsoniano
O cômico resulta de um flagrante da realidade que desestrutura padrões aceitos e
constituídos pelas convenções vigentes. Funciona como uma arma de denúncia destes
desequilíbrios estabelecidos, suscitando um movimento de satisfação da própria
condição humana que é o riso.
Fundamentado na função social desse efeito em situações cômicas, Bergson
(1983, p. 12) afirma que “não há comicidade, fora do que é propriamente humano.” Os
hábitos adquiridos, o enrijecimento profissional e o automatismo do homem nas
relações sociais dão ao cômico certas atitudes mecânicas e certa rigidez de caráter e de
espírito.
Preocupado em delimitar a sua proposta teórica sobre a produção do cômico, o
autor esclarece de forma introdutória:
Nosso pretexto, para enfocar o problema, é que não pretenderemos
encerrar numa definição a fantasia cômica. Vemos nela, acima de tudo, algo de vivo. Por mais trivial que seja, tratá-la-emos com o
respeito que se deve à vida. Nós nos limitaremos a vê-la crescer e se
expandir. De forma em forma, por gradações imperceptíveis, ela realizará aos nossos olhos metamorfoses bem singulares. Nada
desdenharemos do que tenhamos visto. Com esse contato continuado
talvez ganhemos algo mais maleável que uma definição teórica – um
conhecimento prático e íntimo. (BERGSON, 1983, p.1).
Desse modo, longe do receio de encerrar os efeitos do riso em fórmulas rígidas
ou definidas, o autor privilegia a vivência pessoal, o conhecimento prático sobre o riso,
pondo-o, exclusivamente, no âmbito humano, mesmo quando se refere a objetos
inanimados ou animais que façam rir, pois uma paisagem pode ser bela, graciosa,
sublime, feia ou insignificante, mas jamais risível. Ri-se de um animal por surpreender
nele uma atitude de homem, ou uma expressão humana.
Aliando-se às concepções de Bergson sobre a criação do cômico totalmente
vinculado ao homem, Versiani (1974, p. 19) parafraseia o preceito aristotélico de que “o
homem é o único animal que ri; e é também o único animal ridículo.” Acrescente-se
então que só as manifestações humanas são passíveis de riso. Animais ou coisas só
adquirem esta propriedade por lembrarem movimentos humanos ou vida espiritual.
Comprova-se, assim, esta preocupação sob o enfoque de que “para se
compreender o riso, impõe-se colocá-lo no seu ambiente natural, que é a sociedade;
impõe-se sobretudo, determinar-lhe a função útil, que é uma função social.”
(BERGSON, 1983, p. 14).
Com esta função de corrigir defeitos da sociedade, o autor justifica sua teoria em
três fundamentos essenciais ao afirmar que só é cômico tudo que é humano, que todo
riso dirige-se à inteligência pura e que a insensibilidade representa uma exigência para
a provocação do riso. Esta perspectiva da presença do humano e da inteligência na
produção do cômico se impõe em textos estético-literários desde as produções clássicas
por se firmarem no princípio de que as personagens da vida real jamais fariam rir se o
ser humano não fosse capaz de assistir às suas ações como a um espetáculo que se
contempla da plateia.
Para Reis (1993, p. 317), a filosofia do riso bergsoniano “fala no cômico
enquanto contraposto ao sério e, portanto, como não-sério ou brincadeira.” Isto
fundamenta a instância de que o cômico que se dirija à pura inteligência, esteja
divorciado da harmonia e do lado enternecido da vida uma vez que o riso não se
compatibiliza com a emoção, em outros termos, com a sensibilidade.
Ao questionar o significado do riso na modernidade, Alberti (2002, p. 197)
compartilha com a postura dos autores, mas pondera que
[...] o riso continua a ser o não sério, mas isso agora não é positivo,
porque significa que ele pode ir além do sério e atingir uma realidade “mais real” que a do pensado. O não-sério passa a ser mais
“verdadeiro” que o sério, fazendo com que a significação do riso se
torne “mais fundamental.” Dir-se-ia que uma teoria do riso que não incorpore essa mudança não é mais possível.
Esta consciência estimula a outros questionamentos que tratem o não-sério
aplicado a novas circunstâncias sociais, tomado em outras atividades da língua e,
consequentemente, baseado em peculiaridades linguísticas. No modelo do não-sério de
Bergson, quando retirada toda sensibilidade, é constituída uma punição que ridiculariza
tudo que se imita e se repete na superfície do corpo social, o ato de rir, tido como
fenômeno produzido pelos recursos de comicidade presentes na vida, na arte, nos
campos de trabalho, nos negócios através dos gestos, dos movimentos, da postura, da
mímica, do traje e da linguagem em suas múltiplas propriedades significativas.
Esta contraposição ao sério não significa rir por puro prazer, mas carrega uma
segunda intenção pronta a humilhar e a corrigir: “[...] nada desarma como o riso.”
(BERGSON, p.73). O teatro, principalmente a comédia, retira os defeitos dos costumes,
dos preconceitos sociais, isola-os da situação, instala a rigidez em relação ao público e
aplica-lhes modos de correção. Assim, o riso funciona como um castigo à
insociabilidade bem como à imoralidade.
Desse ponto de vista, Bergson não se limita apenas à procura de um elemento
surpresa na palavra para se opor à expectativa e criar um imprevisto, amplia os estados
de distração, opõe a rigidez à flexibilidade e determina as formas do processo de
formação daquilo que torna algo cômico: a repetição, a inversão e a interferência
recíproca de série.
A repetição pode ser de palavras, gestos e ações que reclamam a atenção para o
que se torna cômico. A inversão representa a parte antípoda da ordem, do lugar ou da
relação esperada. A interferência de séries parte da existência de situações equívocas.
Para determinar estes três elementos, o autor analisa a comicidade de situação, que
reproduz cenas da vida e denota desvios de comportamento do homem nas instituições
sociais; a de palavras, que se organiza pelo jogo de qualquer palavra da língua e a de
caráter bem ao gosto das fraquezas morais e dos temperamentos humanos.
A comicidade, pelos recursos da linguagem, envolve além de palavras, frases,
trocadilhos, pressuposições intencionais, exageros, paródias, além de fatores culturais,
regionais, históricos e éticos. Seja qual for o contexto, o cômico exige a desatenção do
homem. Nas definições de Bergson (1983, p. 71), todo cômico “[...] exprime antes de
tudo certa inadaptação particular da pessoa à sociedade, e que afinal só o homem é
cômico, é o homem, é o caráter que primeiramente tivemos como alvo.” Inadaptação
aqui entendida como intolerância, dificuldade de convivência, falta de adaptação ao
mundo real.
Sendo o homem o foco principal da essência do cômico, o riso manifesta-se não
apenas em seu aspecto estético, mas em qualquer situação revestida de um permanente
caráter ético, o que leva as pessoas a se manterem vigilantes por recusa de se tornarem
vítimas das situações risíveis. Ri-se de um tropeço, de uma piada, de um traje, de uma
postura, enfim, ri-se de tudo que a lógica da imaginação põe em contraste com a lógica
da razão.
A sociedade reclama por um homem sem defeitos, puro em suas qualidades
morais. No momento em que resta ausente este propósito, surge o riso, o escárnio e a
censura pela rigidez e pela punição. Este é o meio de manifestar repúdio contra
opressões, normas, instituições e poderes adversos, muitas vezes repressores.
2 O riso no teatro
A partir destas reflexões, entende-se que surge, a partir de Bergson (1983), um
fundamento teórico sobre o cômico no texto teatral, por estabelecer a distinção entre as
ações de personagens presentes em dramas e tragédias em contraposição aos gestos de
personagens criados em comédia. Desse modo, o autor define a ação dramática e trágica
como deliberada e consciente, ao passo que considera o gesto cômico da comédia como
fortuito, automático, resultante de uma distração.
Na comédia, este sentido cômico é demolidor das imposturas e ludíbrios. Por
ele, o criador do texto não conta seus sentimentos de forma direta, pelo contrário,
reveste-os com travessuras ou graciosidades para, astutamente, explorar situações
risíveis da vida social e criar uma categoria de personagem que se identifique com o
espectador denominado tipo. Nessa criação, primeiro deve-se isolar o defeito como se
fosse um peso que se carrega, privando-o de qualquer emoção; depois, intensifica-se
este defeito, fazendo-o aparecer em atitudes, gestos e palavras com uma estratégia capaz
de cativar o público e fazê-lo rir.
No drama, o cômico incorpora-se às personagens, aos seus caracteres gerais e à
sua linguagem. Em oposição à comédia, a dinâmica de sua criação não enfoca o que
acontece no final da peça. A ação expressa pelas personagens, encarnadas por atores,
constitui o elemento principal. Ante os olhos do espectador, o problema representado,
ao passar por um ato ao gesto, de maneira séria, suscita o riso pelo automatismo, em
outras palavras, pelo exagero das regulamentações automáticas da vida cotidiana, que
dão forma mecanizada ao agir e pensar do homem, como a mecanização das profissões,
a rigidez de comportamentos, que desvinculadas de contextos, produzem de imediato
um efeito cômico.
A diferença entre um gênero e outro reside na forma de criação de suas
personagens. De um lado o cômico forjado por travessos e tolos, a comédia de riso fácil;
de outro, as complexas formas de criação artística ao gosto dos vilões e heróis, o drama
de riso sério, que ridicularizando códigos jurídicos e religiosos, áreas afastadas da
comunidade, cuja intenção é demolir formas caducas e redundantes da arte e do
contexto social.
Neste contexto, situam-se, por exemplo, as criações de Ariano Suassuna como
Auto da Compadecida que, pela inversão da linguagem, produz em diversas situações
um riso sério a fim de exigir correção de esquemas sociais e religiosos, procurando um
reajuste do indivíduo ao seu meio. Em nenhum momento as personagens suassunianas,
advindas do popular pelo seu processo de reescritura, emitem falas inocentes. Além de
divertir, elas representam o fazer literário do autor, evidenciam um forte veio ideológico
e questionam aspectos trágicos através do riso.
Outros elementos, como vestuário, moda, cabelo e expressões em que não há
conveniência de situação podem constituir um disfarce para o risível no palco. Esse
disfarce é criado pela lógica da imaginação que contrasta com a lógica da razão e
desaparece da natureza e da sociedade quando a elas é atribuída a aparência mecânica
da vida. Veja-se como exemplo o desaparecimento da espontaneidade do homem no
momento em que ele se encontra nos rituais e nas cerimônias sociais.
Ao tratar do automatismo e da rigidez, Bergson (1983, p.18) afirma que “todo
cômico é inconsciente.” O termo reflete um estado de distração do indivíduo que se
opõe à atenção necessária para se viver em sociedade.
um personagem de tragédia em nada alterará a sua conduta por saber
como a julgamos; ele poderá perseverar, mesmo com a plena
consciência do que é, mesmo com o sentimento bem nítido do horror que nos inspira. Mas um defeito ridículo, uma vez se sinta ridículo,
procura modificar-se, pelo menos exteriormente. (BERGSON, p. 18)
O riso manifesto por gestos ou atos do homem nesse estado é consequência da
falta de iniciativa do agir no momento em que se sente ridículo. Ao sentir-se castigado,
ele toma consciência de sua comicidade, corrige o defeito e tende a modificar-se pela
constatação daquele ato.
O teatro tende a imitar certas situações cômicas da vida cotidiana. Os
movimentos do corpo humano são ridículos a partir do momento em se evocam o
simplesmente mecânico. É a repetição contínua que leva o homem a rir. Os gestos são
formas de comunicação que “correm atrás do pensamento.” (BERGSON, 1983, p. 24).
Usados pelos seres humanos e recriados na arte, eles funcionam como elementos que
não podem ser limitados nem isolados, tão pouco ser extraídos do fluxo da
comunicação.
Os movimentos caricaturescos de uma personagem adquirem na encenação
determinados sentidos que são capazes de deformar uma postura social. Neste caso, o
gesto funciona como uma metonímia do comportamento corporal do ator. A
mecanização enrijecida do corpo traduz ou acompanha a linguagem verbal das
personagens para que se apresente uma cena cômica.
2.1 O cômico de situação em cena
Encontrado no cotidiano e muito explorado no teatro, principalmente na
comédia, o cômico de situação provoca o riso porque deforma, com traços divertidos, os
elementos morais da vida em sociedade. A partir das formas mecânicas de brinquedos
infantis como o boneco de mola, as marionetes, a bola de neve, os soldadinhos de
chumbo, Bergson elabora os elementos essenciais que evocam o riso. São os já citados
mecanismos de repetição, inversão, interferências de série ou expressão e transposição
que estão presentes nos gestos humanos.
Quando um acontecimento concorre para encadear uma cena ou uma
personagem no enredo, tem-se uma situação. Relacionar esses acontecimentos pelos
gestos, pela linguagem e pelo comportamento das personagens, utilizando-se de uma
repetição automática, de um disfarce, de uma imitação ou de uma deformação, significa
criar um efeito cômico.
A interferência pode ocorrer tanto na plurissignificação quanto no decorrer dos
acontecimentos. Um caso típico é o quiprocó, signo de uma situação que apresenta dois
sentidos ao mesmo tempo, mas cada ator, incluído no processo de representação,
conhece apenas um deles, o que gera a confusão de sentido e faz o público rir por
compreender os dois juízos que se contradizem.
Referindo-se ao quiprocó, Bergson (1983, p. 55) afirma que
cada uma das séries referentes a cada personagem transcorre de maneira
independente; mas defrontam-se em certo momento em condições tais
que os atos e palavras constantes de uma delas possam também convir à outra. Daí o equívoco dos personagens, daí o erro; mas esse equívoco
não é cômico por si mesmo; só o é porque manifesta a coincidência de
duas séries independentes.
Estas séries tornam visíveis aos olhos do espectador o verdadeiro sentido das
duas afirmações contraditórias. No decorrer da ação, as duas interpretações levam a
plateia do juízo falso ao verdadeiro, criam a comicidade e suscitam o riso. Cada
personagem está inserida numa das séries de acontecimentos, que são independentes,
mas se defrontam no momento em que se manifesta a coincidência dos sentidos
evocados. Durante toda cena, no diálogo, está presente o duplo fato: a independência e a
coincidência. Daí a confusão cômica.
O processo de repetição não se limita a uma palavra ou a uma frase que a
personagem repete insinuando os mecanismos nas formas exteriores da vida, mas se
estabelece na combinação das circunstâncias que envolvem os fatos como reprise.
Quando uma cena se repete, passa a um estado de categoria ou modelo. Esta fase de
repetição pode ser divertida, embora não seja cômica diretamente, já que na inversão se
exige, para suscitar o riso, a lembrança de um outro aspecto ou de um outro fato que se
conheça por engraçado.
A transposição busca um acontecimento do passado para o presente. Para
Bergson (1983, p. 66) “os meios de transposição são numerosos e variados, a linguagem
apresenta tão rica sequência de tons, permitindo assim à comicidade passar por uma
gama infindável de graus, desde o burlesco mais vulgar até as elevadas formas do
humor e da ironia [...],” ao ponto de uma ideia, antes tida como séria, adquirir, nesse
processo, uma forma exagerada ou engraçada.
A comédia de tipos relaciona acontecimentos e desvios da vida à arte de forma
ininterrupta. O elo entre o real e a representação é muito frágil, pois “a vida real é um
teatro burlesco[...]” (BERGSON, 1983, p. 56), que se elabora e se esquece de si mesma
para produzir o riso.
2.2 O cômico de caráter da personagem
A falta de adaptação do homem à sociedade representa um desvio de seu
comportamento ou uma falta de desempenho dos seus hábitos que precisam se
modificar. “O riso ocorre no caso para corrigir o desvio e tirar a pessoa do seu sonho
[...] é sempre um tanto humilhante quem é objeto dele.” (BERGSON, 1983, p. 72),
porém o agente humilhado nunca se toma como um indivíduo anônimo.
O teatro retoma este indivíduo já inserido num determinado contexto social e
cria o tipo, personagem de esquema determinado, pronto a repetir gestos, roupas,
piadas, comportamentos, aspectos de caráter, clichês e frases consagradas de grupos ou
figuras conhecidas do espectador pelo processo de inversão da linguagem.
Em formas superiores como o drama, o efeito cômico exige profunda elaboração
para que o autor retire da realidade o trágico em seu estado mais puro. Já em formas
inferiores como na comédia, as cenas se aproximam da vida cotidiana ao ponto do teatro
valer-se de suas situações sem lhes trocar uma palavra. Para isto, duas condições são
imprescindíveis à construção dos desvios de caráter, conforme os questionamentos de
Bergson (1983, p. 77): “insociabilidade do personagem, insensibilidade do espectador”.
A estas condições junte-se uma terceira que acentua, nas duas primeiras, o risível. Trata-
se do automatismo.
Na visão de Molière:
é bem mais fácil guindar-se aos grandes acontecimentos, desafiar em
versos a fortuna, acusar os destinos e dizer injúrias aos deuses, do que
penetrar devidamente no ridículo dos homens e exprimir agradavelmente no teatro os defeitos de todo mundo[...] numa palavra,
nas peças sérias, basta, não ser censurado, dizer coisas que sejam de
bom senso e bem escritas, mas isso não é suficiente nas outras, é
preciso brincar, e é uma estranha empresa a que consiste em fazer rir as pessoas de bem. (Apud MAGALDI, 1985, p. 20-21).
Dessa maneira, o cômico é a mais difícil forma de criação no teatro. Encontra-se
no insociável, no inflexível, no rígido e na distração. Quando esse cômico é
experimentado por ressonâncias afetivas que causam espanto, piedade ou terror tem-se a
tragédia. Caso haja um isolamento desse cômico em relação a qualquer um destes
sentimentos, surge o riso de modo explosivo sem nenhuma comoção, criando o gênero
da comédia que sempre reclama por título um nome no plural ou termo coletivo, como
As mulheres sábias e Tartufo, criações do Molière comediante, inspirado nos vícios de
que as personagens são dependentes.
O autor para organizar um aspecto de caráter, essencialmente cômico, exagera o
que há de artificial na lei social, aprofundando-se na realidade. Os caracteres mais
universais em suas origens e manifestações são:
a) a modéstia, que nasce do espetáculo de ilusões como uma forma de
meditação do vaidoso e define-se como uma virtude que se adquire com
cuidado de não se tornar ridículo.
b) a vaidade, que segundo Bergson (1983, p. 90) “[...]é um elemento que somos
levados a procurar minuciosamente, embora inconscientemente, em todas as
manifestações da atividade humana.” Ela tem um efeito psicológico
compreendido pelo contraste em relação a peso, tamanho, volume ou espaço,
contanto que possa ser observada num esquema onde muitas pessoas
encontrem.
Muitos desses esquemas provocam diferenças entre as classes sociais, ao separar
os profissionais pelos ofícios e funções e exigir que o riso corrija essas tendências
dissociáveis e reajuste o indivíduo na sociedade. Surge, assim, a comicidade
profissional que é uma outra forma de cômico vinculado à vaidade e encontrada no
indivíduo que se automatiza em função da profissão pela rigidez. Nesse sentido, o
médico fala como médico, o soldado como soldado a ponto de esquecerem ou se
tornarem incapazes de uma comunicação por meio de outra variante de linguagem.
No teatro, nas novelas, no refrão de muitas canções surgem essas ressonâncias
de reprodução da mesma imagem numa evolução constante que se acentua até o
absurdo final, quando não mais se compreende a mensagem, ouvindo-se apenas o som
das palavras sem que se entenda o seu sentido.
A causa profunda da comicidade de caráter é o absurdo que, ao encarnar uma
forma concreta de gesto ou de atitude, provoca o riso. A vaidade profissional, a alta
dose de charlatanismo, a tendência de exigir um público para as profissões, a
indiferença aos menores, o quadro rígido, a mentira, enfim, tudo que cause uma
inversão do senso comum constitui-se em cômico.
Pode-se, portanto, ainda lembrar o quiprocó, que, durante o processo de
representação, a confusão tem sua lógica centrada no espírito do espectador exigindo
trabalho intelectual, esforço e bom senso da personagem para romper as conveniências e
criar um movimento de descontração e de identificação como o público que será detido
e castigado por seu descuido ou indolência que o levam a rir.
“Rigidez, automatismo, distração, insociabilidade, tudo isso se interpenetra, e
em tudo consiste a comicidade de caráter.” (BERGSON, 1983, p. 76). Por estas
categorias são representados os grandes desvios humanos como a vaidade, a modéstia, o
orgulho profissional, o charlatanismo, a insolência e a malandragem.
Perfeitos exemplos destes desvios são os malandros de Ariano Suassuna,
lembrando aqui João Grilo em Auto da compadecida e Benedito em A pena e a Lei,
ambos se definem pela astúcia, personificam caracteres do insociável no homem e
representam a inversão do senso comum: são confusos, interesseiros, inescrupulosos,
burladores da lei, medrosos e fracos.
Este modelo de tipo não se encaixa nos padrões éticos e morais, mas questiona o
social dominante, realimenta pelo riso o sistema com valores que o próprio sistema
criou. Seu cômico é marcado pelas trapalhadas, pelas confusões e pelos escândalos. Tira
sempre proveito em seu favor, engana os outros e manipula o poder, num total ausência
de insensibilidade.
2.3 Comicidade da linguagem no palco
Todo cômico, quer de ação ou situação, também se produz por meio de palavras.
Os princípios de repetição, inversão e interferência, quando utilizados na comicidade de
linguagem, possuem um poder cômico eficaz de atuação direta sobre os indivíduos,
principalmente sobre a coletividade como um todo. Muitas vezes, ao mesmo tempo são
espirituosas e graciosas. Em Bergson (1983, p. 57), “será cômica talvez a palavra que
nos faça rir de quem a pronuncie e espirituosa quando nos faça rir de um terceiro ou de
nós.”
Quando estes princípios são aplicados às palavras no teatro, busca-se produzir
um efeito risível pela presença da fala de uma personagem para que se imprima a essa
palavra o automatismo do dito, a rigidez de quem a pronuncia. Dessa maneira, a palavra
ou frase se incorpora ao cômico, organiza os desvios na mensagem e evidencia
construções que se dirigem à inteligência e ao homem de espírito.
Mas, para que uma frase isolada seja cômica por si mesma, destacada
de quem a pronuncie, não basta que seja uma frase feita; será preciso
ainda que traga em si um signo no qual reconheçamos, sem hesitação possível, que foi pronunciada automaticamente. E isso só pode
acontecer quando a frase encerrar um absurdo manifesto, um erro
grosseiro ou sobretudo uma contradição em termos. (BERGSON,
2004, p. 61).
O absurdo não é a fonte da comicidade, mas representa o meio eficaz de revelá-
la, é a sua estranha lógica que se instala em relação à razão. Uma lógica semelhante à
lógica dos sonhos pela decorrência do absurdo.
Na linguagem, o recurso cômico de repetição se torna possível toda vez que se
tem uma frase dita em um contexto de conhecimento do espectador e repetida em uma
outra situação de contexto diferente, assumindo imediatamente um novo sentido. É o
procedimento mais comum em todas as formas de cômico, vincula-se totalmente ao
mecânico, à vida e ao cotidiano. Seu uso é trabalhado para que tome, no texto de
representação, a maneira mais natural possível.
O processo de inversão da palavra visa a interferir no mundo oficial em que as
relações se estabelecem pela hierarquia de dominante e dominado. Quando se
contrapõem esses valores em contextos sociais, representam-se, pelas falas, bobos
astuciosos, sabichões ludibriados, religiosos profanos, elevando-se o cômico à forma
mais difícil do teatro.
Desta forma, a linguagem espirituosa corresponde à maneira dramática de
pensar. Nela, aplica-se a inteligência para transformar a ideia numa expressão cômica. É
um trabalho de raciocínio que converte em paradoxo um juízo comum, cita uma frase
feita, parodia uma citação ou provérbio, dando-lhe corpo na cena para depois exibi-la de
forma cômica.
Nessa linha de questionamento, instalam-se os chistes tendenciosos de Freud
“que permitem a liberação de agressões verbais, insultos e juízos degradantes, pela
língua, sem choque ou constrangimento.” (Apud MORAES, 1974, p. 28). Assim,
surgem a piada obscena, a zombaria e o palavrão que produzem um efeito cômico nas
plateias teatrais pelo mecanismo de liberação da vontade. Entre a tendência cômica e a
intencional está a ironia, forma sádica de riso centrada na personagem.
Neste caso, o chiste é um paradigma da verdade que se dissimula, condensando
dois elementos na construção linguística, um real e outro imaginário, deformador desse
real, repetido automaticamente como forma de comunicação que disfarça a seriedade.
De modo mais específico, a semântica moral da palavra espiritualiza também a ideia
quando se passa da língua cotidiana à língua literária.
Ao tratar da rigidez de atos cerimoniosos e da natureza mecanizada desses atos
Bergson (1983, p. 30) se refere ao chiste, mas não o limita ao âmbito da linguagem,
apenas o vê como mais uma fórmula do cômico que “[...]se exerce sobre solenidades
sociais de feição contraída, desde a uma simples distribuição de prêmios a uma sessão
de tribunal.”
O cômico de linguagem, assim como o cômico de situação, pode ser criado por
repetição, inversão ou interferência, desde que conserve um sentido ou, num jogo de
ideias, suas significações interfiram entre si. A inversão é o processo mais comum nos
fatos da língua, pois qualquer homem de espírito tende a colocar o sujeito no lugar do
complemento com a intenção de refutar uma ideia de maneira engraçada.
Quando dois juízos semânticos aparecem numa mesma frase e produzem um
efeito risível para a recepção, nasce a interferência. O trocadilho é um jogo de palavra
que superpõe o maior número de interferências. Nesse jogo, cria-se o que se chama de
metáfora poética pelo desvio da linguagem que rompe o sistema da língua e
desempenha um novo sentido, desvinculando-se do fio lógico do pensamento. Aparece
o discurso recriado, integrando ao seu conteúdo uma nova relação de comunicação.
Na sátira, estão presentes também, como procedimento linguístico, os
trocadilhos, o jogo de palavras e o elogio irônico, acumulando o exagero de sinônimos,
jargões e hipérboles com o fim de surpreender e deformar pela forma caricatural uma
imagem, uma personagem ou um ser inanimado que se humaniza em contextos cênicos.
A transposição é outra forma de cômico situado na linguagem, por realizar o
dialogo entre as mesmas personagens, porém em novas circunstâncias ou em situações
semelhantes. Este é um dos mecanismos fundamentais do cômico de palavras e que
Bergson associa à mudança de tom. Para ele, é cômico “[...] tomar séries de
acontecimentos e repeti-las em novo tom ou em novo ambiente, ou invertê-las
conservando-lhes ainda um sentido, ou misturá-las de modo que suas significações
respectivas interfiram entre si.” (BERGSON, 1983, p. 64).
Os meios de transposição são tão variados que graduam os níveis do cômico,
conforme sua aplicação na linguagem das profissões, na extensão da língua dos
negócios e no cotidiano, indo do familiar ao solene. A transposição do tom solene em
familiar cria a paródia, forma de comunicação que supõe uma expressão em dois planos:
o primeiro sugere o texto enquanto processo de significação e o segundo distingue o
objeto referido, reforçando a diferença de postura entre um e outro para desmistificar o
signo do primeiro e modificar seu significado, por meio do exagero, da degradação, do
contraste, da ironia e do humor que são as formas de transposição mais enfáticas de
cômico. O riso suscitado pela paródia alia um gesto de escárnio ao trágico, onde o que
se tem como ideal é visto pela inversão do mundo organizado. Essa inversão é a ordem
e o objetivo proposto pelo fictício encenado.
A imitação parodística desestabiliza, pela comparação dos opostos, a crença do
ser humano no mundo e nas coisas, resgata o prazer de imaginar o mundo às avessas.
Embora não seja um efeito moderno, nem esteja como foco maior deste trabalho,
continua na literatura e no teatro sendo ressignificada por estudos consagrados como os
de Shipley, Tynianov e Bakhtin (Apud SANT’ANNA, 1985), ora classificada em seu
aspecto semântico-verbal, ora inserida nas relações do eu com o outro com vozes
distintas, marcadas de forma clara e antagônica para que se tenha o riso.
Esta incursão pelos caminhos do cômico de palavra em Bergson estabelece
novas facetas do riso até então não referidas nas armadilhas da linguagem. Se à época o
método bergsoniano foi suficientemente inovador para delimitar novas proposições de
análise, hoje ele representa o ponto de partida obrigatório para qualquer produção
cômica, mesmo quando acrescido de outras categorias definidas por outras fontes de
análise necessárias aos inovadores recursos da comunicação como o mundo televisivo e
a propaganda verbo-visual.
Esta é até uma exigência do próprio teórico ao afirmar que
a repercussão do cômico é interminável, porque gostamos de rir, e
todos os pretextos valem para isso; o mecanismo de associações de idéias é aqui de extrema complexidade; de modo que o psicólogo que
tenha enfocado o estudo da comicidade com este método, e que tenha
lutado contra dificuldades sem cessar renascentes em vez de acabar
de uma vez por todas com o cômico encerrando-o numa fórmula, correrá o risco de ouvir dizer que não tomou em consideração os
fatos.[...] Terá procedido com o rigor e a precisão de um cientista, que
não acredita haver avançado no conhecimento de uma coisa quando lhe discerniu este ou aquele epíteto[...] (BERGSON, 1983, p. 104).
Veja-se assim a grande particularidade da teoria de Bergson. Cônscio de sua
tarefa, preocupada com a criação de um método, coloca em perspectiva a continuidade
de sua investigação, de modo que não se prescinde, no labirinto da informação, da sua
investigação sobre a razão pela qual a linguagem se torna cômica ao explorar a forma
espirituosa de se lidar com o discurso.
Portanto, relacionar o grande ao pequeno, o melhor ao pior, o real ao ideal, o
moral ao científico significa enveredar pelos caminhos da comicidade, dando à palavra
força e significação tanto linguística quanto literária que vão além da semântica e do
próprio signo para criticar toda existência, retirando as máscaras existentes e corrigindo
os defeitos do homem pelo riso.
2.4 A personagem cômica: uma questão da tipicidade no teatro
A comicidade tem lugar reservado na vida social por nascer da convivência entre
os homens e provocar o riso, este sentimento gracioso, próprio da condição humana. No
dizer de Menezes (1978, p. 8), ela “deriva de situações de aproximação e identidade em
antagonismo e discriminação.” Dessas situações, absorvidas pela criação artística,
surgem os tipos cômicos, ridicularizadores das normas de uma sociedade, controladores
de comportamentos e representantes dos que buscam mudança social, higiene psíquica
ou prazer espontâneo num estado de descontração.
O personagem cômico é quase sempre um personagem com quem começamos por simpatizar materialmente. Isto é, por curtíssimo
momento pomo-nos em seu lugar, adotamos os seus gestos, palavras e
atos, e, no divertimos com o que há nele de risível, nós o convidamos, em imaginação, a se divertir conosco. (BERGSON, 1983, p. 98).
Desta maneira, ele não pratica ações que o individualizam, mas gestos e atitudes
generalizados que configuram uma conduta caricatural e repetitiva. É um tipo geral
possuidor de uma rigidez de caráter que o torna mecânico e automático. Tanto assim
que peças dramáticas e trágicas carregam como títulos nomes próprios enquanto as
comédias definem seus títulos com nomes comuns acompanhados de adjetivo. Isto se
deve ao fato de tragédias e dramas terem a intenção de destacar alguma especificidade
individualizada de suas personagens de modo proposital e consciente. Em contrapartida,
o destaque, na comédia, é dado à generalização da rigidez repetitiva do vício cômico.
Lembrando os grandes tipos da história literária ou teatral como D. Quixote,
Dom Juan e Tartufo, percebe-se que sua representação define ou caracteriza uma
concepção de indivíduo determinado por traços e comportamentos esperados. Ao lado
dessa generalização, existe um aspecto individual, ditado pelo criador, que manifesta
uma personalidade, uma experiência particular ou uma vivência social. Esta exigência
formal é o que determina uma personagem típica.
O tipo é representativo de caracteres físicos, psíquicos e morais de um grupo,
raça, região ou profissão. Vilões, bobos e malandros encarnam aspectos da realidade,
são inconfundíveis pelos seus traços, portanto, identificam-se como tipos.
Para Silva (2006, p.16):
A personagem cômica é um tipo entre os vários que circulam nos
espaços sociais. E ele provoca o riso de zombaria, que está ligado a juízo de valor, a conceitos e preconceitos de uma sociedade. De
acordo com o senso comum, é possível rir do ser humano em quase
todas as suas manifestações, tanto seu aspecto, seu rosto, sua silhueta,
seus movimentos, seus raciocínios, ou a deficiência deles, podem ser
objetos de riso.
Por esta visão, torna-se possível pensar em tipos sociais como o religioso e o
malandro, em tipos psicológicos que representam aspectos mais profundos de uma
situação bem como nos tipos cômicos que, muitas vezes, englobam o lado genérico da
criação, ao terem como característica específica o motivo do riso.
O tipo controlador de comportamento ridiculariza os padrões e etiquetas da vida
em sociedade, funciona como uma sanção imposta ao espectador, formula leis gerais
que se dirigem a indivíduos ou a toda organização social, criticando hábitos e costumes.
O arremedo, a reprodução imitada de uma atitude, a imitação de um gesto e o escárnio
de normas padronizadas ferem a sensibilidade humana, são inevitavelmente cômicos.
Os tipos demolidores de normas caducas ou de situações contraditórias do poder
degradam as atitudes através dos gestos, do jogo de palavras do comportamento e
questionam as implicações sócio-políticas pela piada, pela observação irônica e pela
sátira.
O bobo da corte, tipo cômico em cena desde a época clássica, representa a
liberdade, institui-se como um coringa na estrutura social. Envolvido naquele capuz de
orelha de asno, vestido de camisa matizada com bordas em cores verde e amarela ou
tomado pela máscara do bronco, do fanfarrão e do destrambelhado, ele vive, na
representação, sua postura de palhaço.
Para Neves (1979, p. 40), “o bobo da corte é um louco guerreiro, lúcido palhaço,
inesperado e alegre, amoral porque exibe a moralidade, integrado e outsider, crítico e
bajulador, subversivo e enquadrado, irônico e reformador, sem estirpe e vivendo em
palácios.” Com estas características, o bobo se despoja de barreiras sociais proibidas,
toma o espectador de surpresa e desencadeia o riso. No caso das marionetes, o riso se torna ainda mais intenso por apresentar dois
personagens análogos entre si em cena. Pascal para justificar o efeito mecânico dos
movimentos, assevera que “dois rostos semelhantes, cada um dos quais por si não faz
rir, juntos fazem rir por sua semelhança.” (apud BERGSON, p. 25). Prosseguindo por
essa linha de pensamento, Bergson (1983, p. 26) entende que o riso será ainda maior se,
em lugar de apenas dois, apresente-se o maior número de personagens, “[...] todos
semelhantes entre si, que vão e vêm, dançam, se agitam juntos, assumindo ao mesmo
tempo as mesmas atitudes, gesticulando do mesmo modo.” É o mecanismo da repetição
aplicada na arte, imitando toda rigidez aplicada à mobilidade da vida.
Todos estes tipos se definem pela deformação dos caracteres e tendem à
vulgaridade e à inconsequência, pois tudo que se assemelha a seus traços já possui um
aspecto cômico, mesmo que este aspecto tenha surgido do trágico da vida humana que
retém sempre “ um misto de alegria e de tristeza no cômico e no risível.” (MENEZES,
1974, p. 11).
O gênero literário que mais explora estes traços é a comédia. Nela, o tipo age
delicadamente, ambiguamente, demolindo e zombando de padrões convencionais. Na
representação, ele vive situações cômicas em que há a intenção de roubar, a vontade de
violar, a força da cobiça e o arrebatamento do ódio ou do amor.
Na farsa, a personagem relativiza a profundidade e a intencionalidade da
situação para converter o espírito de travessura em vilania. O travesso e o tolo se
particularizam de imediato na memória do espectador pelos seus atributos pessoais,
articulam estratégias que resultam em nada e tentam passar por espertalhões sem se dar
conta da própria estupidez e dos próprios atos. Seu riso no palco castiga os defeitos e os
excessos humanos, é capaz de corroer comportamentos sociais.
O ar zombeteiro que move as ações das personagens cômicas, desde a comédia
clássica, denuncia o lado dito justo e correto da regulação social pela contradição. Por
trás do ar alegre e ridículo que se enfatiza pela linguagem irônica e burlesca, desponta o
lado sombrio e triste bem ao gosto da tragédia.
Quando representa rosto, gesto, atitude, definitivamente identificáveis, reproduz
o fixo, é apenas tipo. Se a contradição, o disforme, o ridículo ampliam seu
comportamento e provocam o riso, nasce o tipo cômico, evocador da fantasia e da
reflexão do espectador. À medida que os elementos identificados abrangem uma
consciência universal, eles transformam o tipo numa categoria mais ampla que além de
representar o determinado, reage à ação exterior, vê, sente e transmite o rigor lógico da
realidade, fabricando o cômico.
Para Bentley (1981, p. 56):
que as personagens principais que são tipos tenham de ser mais complexas que as secundárias não é de surpreendente nem
significativo: nas mãos dos mestres, tendem a converter-se em
arquétipos. Se as tradicionais personagens fixas tipificam as coisas menores - os grupos com suas fraquezas e excentricidades - a
personagem arquetípica tipifica as coisas maiores e as características
que são mais de que idiossincrasias.
Esta evolução específica depende da criação artística cujo objetivo é representar
a vida e seus defeitos, o homem e sua evolução. Assim, o tipo cômico não se priva dos
traços individuais. Seu humor não se mostra desvinculado do sério, mantém-se como
fator de equilíbrio do sistema como uma crítica consciente da existência. Nessa
representação, estão as aproximações, diferenças e questões antagônicas das relações
humanas, trabalhadas pela inversão do senso comum para penetrar na rigidez das
normas e provocar inquietações em suas regras padronizadas.
3 Finalmente
Por estas reflexões, entende-se que o teatro exige para o riso um espectador
intelectual, atento às situações e intérprete de tudo que assiste. Assim, o riso artístico
resulta do efeito de uma produção cômica articulada por mecanismos inerentes à rigidez
mecânica do homem, com o objetivo de corrigir seus defeitos e adaptá-lo à vida
cotidiana. Este riso corretivo, de grupo, é um riso de denúncia, faz vir à tona a verdade,
revitaliza fatos, desloca mentiras e verdades e pluraliza leituras do mundo social.
O riso não tem fronteiras, impõe-se na vida e na arte. Corpo, gesto, movimento,
aspecto de caráter, pensamentos, são elementos propensos à produção do cômico, de
forma específica, estão inseridos no automatismo das personagens e imitam o mecânico
existente no homem.
Embora se depreenda de gestos, movimentos, formas e situações, a comicidade
assume proporções maiores pela elaboração da linguagem. Trabalhar nesta realidade
explorando a transposição, o trocadilho, o duplo sentido, o jogo de palavras, a paródia a
ironia, os ditos comuns, a repetição, o contraste, a inversão, a mudança de tom, o
exagero, a imitação da fala, o inesperado, o desvio temático, a sátira, o escárnio na
expressão ou na fala das personagens é situar-se no ponto de funcionamento do
organismo da linguagem cômica. Significa também que os artifícios do riso têm um
papel preponderante na sociedade, incorpora algo mais que a crítica do cotidiano,
representa o que a vida e esta sociedade exigem de cada homem, de cada indivíduo no
mundo contexto histórico-social.
A grande contribuição de Bergson está na oposição entre a rigidez e a
flexibilidade. Com esta posição, o teórico combate a grandeza, o autoritarismo, os
distúrbios políticos e desmorona a falsa moral da sociedade. Tudo que exibe um desvio
é exposto pelo riso à humilhação no teatro
REFERÊNCIAS
ALBERTI, Verena. O riso e o risível: na história do pensamento. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2002.
ARISTÓTELES. Poética: Aristóteles; Horacio; Longino. A poética clássica. Trad.
Jaime Bruna. 3. ed. São Paulo: Cultrix, 1988. p. 19-52.
BENTLEY, Eric. A experiência viva do teatro. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1981.
BERGSON, Henri. O riso. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983.
MALGADI, Sábato. Iniciação ao teatro. 2. ed. São Paulo, Ática 1985.
MENEZES, E. Diatay. O riso, o cômico e o lúdico. Revista de Cultura Vozes.
Petrópolis-RJ, n. 68, v.1. jan./fev., 1974. p. 5-16.
MINOIS, George. História do Riso e do Escárnio. Trad. Maria Elena O. Ortiz
Assumpção. São Paulo: Unesp, 2003.
MIOTTI, Charlene Martins. Alguma extemporaneidade no riso: piadas antigas,
circunstâncias novas, efeitos similares. Sínteses. 2009. p. 245-261 Disponível em:
<www.iel.unicamp.br/revista/index.php/sínteses/articles/view/1229/913> Acesso em:
19 set. 2011.
MORAES, Osvaldo, D. de. Freud: dos chistes ao cômico. Revista de Cultura Vozes.
Petrópolis-RJ: Vozes, n.68, jan/fev. 1974. p. 25-30.
NEVES, L. F. Baêta. Ideologia da seriedade e o paradoxo do Coringa. Revista de
Cultura Vozes. Petrópolis-RJ, Vozes, n. 68, v.1. jan./fev., 1974. p. 35-40. QUINTILIANO. M. Institution oratoire.. Texte établi e traduit par Jean Cousin. Paris:
Les Belles Lettres, 1997.
REIS, J. A. Encarnação. O riso estético segundo Bergson e Lalo. Revista filosófica de
Coimbra. n. 4, v. 2.1993. p. 313-368.
PLATÃO. A República. Bauru-SP: EDIPRO, 1994.
SANT’ANNA, A. Romano de. Paródia, paráfrase & Cia. São Paulo: Ática, 1985.
SILVA, Gislene M. B. L. Felipe da. À Sombra de um Riso Amargo: A utopia Vencida
em O Exército de um Homem Só, de Moacyr Scliar. Terra roxa e outras terras: revista
de Estudos Literários. 2006. v. 7, p. 9-25. Disponível em:
<http://www.uel.br/cch/pos/letras/terraroxa.> Acesso em: 27 set. 2011.
TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Uma introdução ao estudo do humor pela linguística.
DELTA ‐ Revista de Documentação de Estudos em Linguística Teórica e Aplicada. São
Paulo, v. 6, n. 1, 1990. p. 55‐82.
VERSIANI, Marçal. O significado do cômico e do riso na obra de Bergson. Revista de
Cultura Vozes. Ano 68. n. 1. Petrópolis: Vozes, Jan/fev. 1974. p. 17-24.