Ricardo Alexandre Rodrigues
A Poética da Desutilidade
Um passeio pela poesia de Manoel de Barros
Rio de janeiro, 1º semestre de 2006
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A Poética da Desutilidade
Um passeio pela poesia de Manoel de Barros
Por:
Ricardo Alexandre Rodrigues
Dissertação de Mestrado em Ciência da Literatura, na área de Poética, apresentada à coordenação dos cursos de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orientador: Professor Doutor Alberto Pucheu.
Rio de janeiro, 1º semestre de 2006
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Resumo:
A presente dissertação é resultado de excursões feitas pela poesia de Manoel de
Barros que nos chama atenção pela sintaxe fragmentada e pela contemplação de temas
sem prestígio social, dentre eles a inutilidade e ociosidade dos objetos. Serão
apresentadas aqui reflexões sobre a transfiguração de elementos triviais (prosaicos) e
sem importância na sociedade em matéria poética. Pois, uma sociedade pautada no
imediatismo e no utilitarismo, torna-se particularmente interessante investigar a
presença de coisas sem préstimo na poesia. Nessa invertida será apontado o exercício de
alargamento do horizonte das percepções praticado pelo poeta. Aparece assinalada
nestas discussões a consciência crítica apresentada por Barros em seus escritos, o que
confere a muitos de seus poemas a designação de metapoesia. A experiência de leitura
dos mesmos nos convida a repensar nossos entendimentos sobre a escrita literária,
sugerindo jogos de intertextualidade com pensadores da crítica literária. As idéias aqui
propostas estão alinhavadas pelo pensamento barthesiano que se mostra como pólo de
convergência das idéias da crítica literária contemporânea. Por fim, instigada pelas
provocações de Manoel de Barros, esta dissertação pretende contribuir para ressaltar o
indiscernimento existente entre poesia (a arte de modo geral) e pensamento.
Palavras-chave: poesia brasileira contemporânea, poesia e pensamento, linguagem
literária, pragmatismo, ociosidade, poesia e vida, desnaturalização, Manoel de Barros.
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Résumé
Cette dissertation est en résultant d'excursions faites par la poésie de Manoel de
Barros que dans la flamme attention par la syntaxe fragmentée et par la contemplation
de sujets sans prestige social, parmi eux l'inutilité et l'oisiveté des objets. Seront
présentées ici des réflexions sur la transformation d'éléments triviaux (prosaïques) et
sans importance dans la société dans matière poétique. Donc, une société réglée dans
l'immediatisme et dans l'utilitarisme, se rend particulièrement intéressant enquêter la
présence de choses sans utilité dans la poésie. Dans cette invertie sera indiqué l'exercice
d'élargissement de l'horizon des perceptions pratiqué par le poète. Il apparaît désigné
dans ces discussions la conscience critique présentée par Barros dans leurs écrits, ce qui
confère à beaucoup à de de leurs poèmes désignation de metapoème. L'expérience de
lecture des mêmes dans les invite a repenser accords sur l'écriture littéraire, suggérant
des jeux de intertextualité avec des penseurs de la critique littéraire. Les idées ici
proposées sont clouées par la pensée de Barthes que échantillon je me mange pôle de
convergence des idées de la critique littéraire contemporain. Finalement, incitée par les
provocations de Manoel de Barros, cette dissertation prétend contribuer pour rejaillir
l'indistinction existante entre poésie (l'art de manière générale) et pensée.
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Meu muito Obrigado:
À Língua Portuguesa, pelo seu encantamento sedutor de insinuar-se e oferecer-
se para com ela anunciarmos nossos pensamentos, porém, sem nunca se deixar possuir
de verdade, permanecendo sempre misteriosa.
À minha bisavó, Dona Miquilina, que me guiou pelo caminho mágico das
palavras na forma de narrativas inventadas, mas realmente vivenciadas na minha
imaginação, e de quem hoje as lembranças me confortaram nos momentos de medo e
angústia.
Ao sábio Nestor, que parece ter sido enviado pelos deuses gregos, pelo
companheirismo, cumplicidade, paciência e pelo incentivo aos estudos.
Ao professor orientador Dr. Alberto Pucheu pelo auxílio indispensável para
realização desta dissertação, pelas conversas apaixonadas sobre a poesia e pelo
respeito.
A Deus, pelo fato de ter muitos motivos para lhe agradecer.
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Sumário
INTRODUÇÃO ................................................................................ 08
1. POESIA E VIDA ........................................................................... 16
2. A ESPIRAL DO PENSAMENTO ........................................................ 26
3. NA ESTEIRA DO PENSAMENTO MODERNO ...................................... 38
3.a. Abandono Poético .................................................................... 49
4. PALAVRAS E SILÊNCIO ................................................................. 55
5. ABSURDOS DE POESIA ................................................................... 66
6. UM CORPO ESTRANHO ................................................................. 72
7. POÉTICA DA DESUTILIDADE .......................................................... 80
8. ENSAIAMDO UMA CONCLUSÃO ...................................................... 92
8. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA ........................................................ 95
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Poesia
Deve haver algum lugar onde as perguntas sem resposta possam ser ecoadas sem hesitar ; não para vislumbrar hipóteses, mas para expandir seu silêncio. R.A.R
Obrar
NNNNaquele outono, de tarde, ao pé da roseira de minha avó, eu obrei. Minha avó não ralhou nem. Obrar não era construir casa ou fazer obra de arte. Esse verbo tinha um dom diferente. Obrar seria o mesmo que cacarar. Sei que o verbo cacarar se aplica mais a passarinhos Os passarinhos cacaram nas folhas nos postes nas pedras do rio nas casas. Eú só obrei no pé da roseira da minha avó. Mas ela não ralhou nem. Ela disse que as roseiras estavam carecendo de esterco orgânico. E que as obras trazem força e beleza às flores. Por isso, para ajudar, andei a fazer obra nos canteiros da horta. Eu só queria dar força às beterrabas e aos tomates. A vó então quis aproveitar o feito para ensinar que o cago não é uma coisa desprezível. Eu tinha vontade de rir porque a vó contrariava os ensinos do pai. Minha avó, ela era transgressora. No propósito ela me disse que até as mariposas gostavam de roçar nas obras verdes. Entendi que obras verdes seriam aquelas feitas no dia. Daí que também a vó me ensinou a não desprezar as coisas desprezíveis E nem os seres desprezados.
Manoel de Barros
Memórias Inventadas—A infância
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Introdução
“Quem atinge o valor do que não presta é, no mínimo, Um sábio ou um poeta.”1
A realização desta dissertação é fruto dos estudos iniciados no curso de
Mestrado em Poética, cuja área de interesse concentra-se na intercessão entre poesia e
pensamento. Nesta zona de aproximação propõe-se uma leitura da sociedade
contemporânea pelo víeis da (des)utilidade, contemplado na escrita de Manoel de
Barros. Aquilo que perdeu a utilidade (e, por isso, encontra-se desprezado, em repouso
de qualquer função) será apresentado nessa pesquisa como uma outra possibilidade de
leitura da sociedade contemporânea, uma vez que o conceito de inútil perpassa todo
tecido social.
Manoel Wenceslau Leite de Barros nasceu no Beco da Marinha, Cuiabá, Mato
Grosso, em 1916. Publicou seu primeiro livro, Poemas concebidos sem pecado, em
1937, mas o reconhecimento do público aconteceu por volta dos anos 80. Seu nome
hoje é lembrado por dar importância ao que não tem importância. É um traço marcante
na escrita barreana a preferência pelo conjunto residual que representa a sobra da
sociedade capitalista. O que ela despreza e deixa de lado o poeta incorpora em seus
escritos como matéria de poesia para construir imagens delirantes a fim de repensar o
homem e a sociedade.
Numa sociedade pautada no imediatismo e no pragmatismo das coisas, torna-se
particularmente interessante investigar a presença da matéria sem préstimo no trabalho
poético. No conjunto das relações sociais da atualidade, o prestígio da palavra – escrita
ou pronunciada – consiste na utilidade que propicia alguma espécie de êxito ou
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satisfação na realização de tarefas, da mais simples a mais complexa. Inovações
tecnológicas têm proporcionado mais rápida integração entre culturas por meio de
sofisticados sistemas de informações, redimensionando, assim, o conceito de
comunicação. Exigem-se mais resultados e melhor desempenho dos signos lingüísticos
na situação de uso, o que nem sempre está associado com maior elaboração formal ou
cuidado com o produto final. O que flagrantemente vivemos é a articulação mais
despojada (em geral pela população jovem, por estar mais flexível às novidades) do
código lingüístico objetivando uma fala mais dinâmica.
Às palavras, são aplicados novos significados, novos valores, outros usos que as
convertem em bens produzidos pelo homem para fabricar outros bens. No domínio do
pragmatismo social, causa alarde empregá-las sem qualquer propósito informativo e
sem nenhuma medida das relações gramaticais, priorizando o desmando que excede ou
ultrapassa o permitido, o legal, o normal, para compor silêncios e comunicar nada,
paradoxalmente. O uso em vão da palavra parece ser tão escandaloso quanto o
desperdício de comida no mundo onde muitos passam fome. Na dicção poética de
Manoel de Barros, esse espaço vazio criado pela maneira como estrutura as sentenças
parece reivindicar a instância mágica da palavra criadora (ou “inventadora”) de
realidades, da qual a agitação dos valores sociais nos fez esquecer. De certo, o modo
como o poeta se ocupa da linguagem causa espanto em quem lê seus poemas por achar
diferente do que seria natural esperar do uso das palavras.
Pode-se relacionar o estranhamento despertado no leitor ao fato de não conseguir
mais reconhecer o fabuloso engendrado na palavra capaz de fundar outras perspectivas
figurativas. Então, sem criar relações mecânicas de causalidade – buscar a
intencionalidade da obra – a literatura barreana parece reivindicar o outro lado da
palavra: o magicar, o poder fundador que nos reporta à inventividade de todas as coisas.
1 BARROS, Manoel. Ensaios Fotográficos. “Rabelais”. pág. 35
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Mas antes é necessário desligá-la de suas funções determinadas pela unidade de um
paradigma gramatical.
Para este trabalho, a importância de matérias desprovidas de valor (trapos,
ciscos, resíduos...) dentro de um grupo social deve-se ao fato de que não servem mais ao
grande uso. Assim sendo, já não possuem sua existência limitada a uma função ou
utilidade. Na condição de lixo, tais objetos encontram-se entregues à iminência de vir a
ser, do puro devir onde se revela o poder das coisas, sem a interferência de qualquer
manifestação do poder controlador. Seguindo na esteira do pensamento traçada por
Roland Barthes, poderíamos incluir o lixo (e também outras desutilidades) na lista de
“figuras do neutro” porque rasura todos os paradigmas. Pois, conforme escreve o
pensador francês no livro O neutro, no qual busca aberturas por onde possa vazar a
existência das coisas para contemplá-las sem que precisem fazer oposição: “defino o
neutro como aquilo que burla o paradigma, ou melhor, chamo de neutro tudo o que
burla o paradigma”2. 3
O lixo, como tudo que não presta e se joga fora, é um traço cultural que pode ser
considerado como unidade mais simples e básica pela qual analisamos diferentes
padrões dos complexos culturais. E porque um elemento já não existe em sua totalidade,
é que podemos perceber seu traço. O traço é aquilo que evidencia a presença de um
componente pela ausência do mesmo, não chegando a ser uma representação no sentido
de substituir ou estar no lugar dele. Justamente por não fornecer informações precisas e
exigir do observador exercícios de suposição, eis que o traço revela sua pertinência
dentro da literatura escrita por Manoel de Barros como forma de ler o mundo através de
2 BARTHES, Roland. O neutro. P.16. 3 Na construção desse pensamento verificamos uma retificação feita quanto ao emprego do verbo “definir” o qual é substituído pelo verbo “chamar”. O motivo de tal correção, supostamente, está relacionado ao sentido do primeiro verbo: a finalização de uma demarcação, dos limites ou da extensão de um objeto. A troca pelo verbo chamar (= dar nome) a fim de refazer o pensamento, em contraponto com o primeiro, desfaz a idéia de “marcação definitiva” e universalidade para melhor se referir ao neutro.
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outras perspectivas, tentando uma originalidade (experiência primitiva) por meio de
uma sintaxe peculiar, chegando ao ponto de tornar-se extravagante. Por isso, nos
desperta a curiosidade excursionar pelas palavras poéticas de Manoel de Barros,
apontando nesses arranjos as contribuições para perceber os mundos que podem existir
dentro do mundo.
A originalidade da poética de Manoel de Barros, sublinhada neste trabalho,
provém da comunhão de sua sensibilidade e técnica para “desformar” o histórico e
social cristalizados em conceitos e expressões de lugar-comum. Tal atitude parece fácil,
porém revela-se de grande complexidade, porque significa transpor reducionismos sem
cair na armadilha da substituição de uma simplificação por outra. As “inventações”
poéticas tangem a esfera do provisório para exercitar a dinâmica de ver o mundo em
contínua transformação. Por esse motivo notamos diversas revisitações feitas pelo poeta
de um mesmo tema em seus livros. Dentre eles, o glosar sobre a poesia é um dos temas
mais freqüentes em sua poética e o faz oferecendo sempre outros olhares, cuidando para
não reduzir a poesia a estaticidade de um conceito. Por isso, neste trabalho, toda leitura
sugerida sobre seus escritos só pode ser formulada enquanto temporária e passageira.
A poesia barreana, apreciada como exercício de transver o mundo, aposta na
recombinação do código estabelecido a fim de libertá-lo da determinante documental e
conseguir transcender a arrumação habitual. Tal postura perante as convenções sociais
assume antecipadamente o ato ou efeito de ruptura, violação ou negação destas. Se há,
talvez, uma ruptura em tal obra, estará relacionada à quebra, à fragmentação, da
linearidade frasal.
Devido ao arranjo inusitado de sua escrita, há grande dificuldade de
encontrarmos um termo dentro do léxico da crítica literária para classificá-la. Poema,
crônicas, fragmentos ou poema em prosa, nenhum desses nomes parecem ser suficientes
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para designar a forma que manifesta a poesia. Talvez, porque dela pouco sabemos e isso
não interfere no modo de admirá-la. Quase nada se conhece do sol, da lua, das estrelas,
do universo como um todo, mas isso não nos impede de admirá-los. Pode ser ainda que
o desconhecimento, o mistério que ronda, aumente nosso entusiasmo pelas coisas.
Na verdade, os inventos de Manoel de Barros com as palavras dão relevo aos
fatores estruturais encontrados no ato do jogo: assinala várias possibilidades de arranjos
com os elementos envolvidos; a precipitação do acaso; o gosto pela surpresa; uma
finalidade em si, na qual por um instante nos esquecemos da existência do mundo como
tal. Então, o que designamos de subversão de valores sociais reside na tarefa de
encontrar outras possibilidades de arrumação para além do mundo administrado,
inventar outros enredos para os objetos dispostos na sociedade, explorar eixos de
intertextualidade sem se preocupar com o resultado final.
Dessa forma, nos esforçamos para aproximar da estética barreana observando
idéias constantemente revisitadas em sua obra, como a importância das coisas sem
préstimo, ou sua escrita fragmentária e incompleta que aposta no provisório e no
instantâneo. Sua obra também é lembrada pelas metáforas que dão corpo ao pensamento
abstrato e atrapalham o trânsito da lógica engendrada na clareza, pois faz parte da
encenação retórica do poder advogar pela coerência e transparência, praticando,
inevitavelmente, o apagamento dos outros sentidos possíveis. A produção literária
manoelina pode ser lida como busca do máximo da experiência porque oferece a
oportunidade de provar (sentir) sem restrições qualquer coisa, só para conhecer suas
qualidades e possibilidades de se apresentarem ao mundo.
No que se refere ao estilo, a poética de Barros destaca-se das tendências estéticas
e estilísticas da poesia moderna e contemporânea, uma vez que o universo é
transfigurado por intermédio de imagens inusitadas. Nos livros de Manoel de Barros, os
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títulos, que podem ser lidos como os primeiros versos, anunciam uma linguagem
desacostumada: Poemas concebidos sem pecado; Face Imóvel, Compêndio para Uso de
Pássaros, Gramática Expositiva do Chão, Matéria de Poesia, Arranjos para Assobio,
Livro de Pré-coisas, O Guardador de Águas, Concerto a Céu Aberto pra Solo de Aves,
O livro das Ignorãças, Livro sobre Nada, Retrato do Artista quando Coisa, Ensaios
Fotográficos, Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo, Exercício de Ser Criança,
Fazedor de Amanhecer, Cantigas por um Passarinho à toa, Poemas Rupestres,
Memórias Inventadas – A Infância.
Já pelos títulos, percebemos a inquietação do poeta com a palavra. Em seus
livros, a poesia constantemente aparece como tema de poesia. Ao lado de Drummond e
João Cabral, inscreve-se também o nome do poeta mato-grossense no grupo dos que são
lembrados pela consciência semiológica da linguagem estampada em seus textos. Nas
composições de Manoel de Barros fica exposto o organismo da literatura, suas
intimidades e saliências.
A metaliteratura – literatura que lança reflexões sobre o processo de elaboração
textual do literário – é uma das palavras-chaves para se referir a sua didática poética.
Pôr em cena o exercício de construção da atividade literária oferece oportunidade para a
escritura falar e se falar, ao mesmo tempo em que ensaia uma problematização a
respeito da classificação que visa distinguir o trabalho do poeta, do crítico e do teórico.
Logo, tais reflexões apontam para a indissociabilidade entre arte e pensamento.
Esse modo de ver a literatura como linguagem ganhou forças com Poe, Flaubert,
Mallarmé, entre outros lembrados por Manoel de Barros em alguns de seus livros, hoje
citados no meio acadêmico como escritores/críticos, testemunhas da (re-)descoberta da
linguagem em fins do século XIX. A partir daí, presenciamos a abertura de inúmeros
debates em torno do reencontro com a linguagem de onde surgem questões que
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suspeitam da arbitrariedade dos signos, da restrição do sentido ao significante além de
questionar as relações do texto com o referente. Muitos desses temas hoje são
revisitados pela crítica literária assinada por Barthes, Blanchot, Ponty, Bachelard...
chamados aqui para dialogar com a literatura escrita pelo referido poeta.
Quanto à fundamentação teórica do trabalho, não deve causar efeito o convívio
de pensamentos de áreas do saber academicamente separadas para fins didáticos, tal
como literatura e filosofia; também a presença de autores de outros idiomas, os quais
serão convidados ao diálogo a fim de mostrar, cada um, suas contribuições na
ampliação de horizontes do conhecimento. A beleza desse encontro pode ser comparada
a de uma colcha de retalhos, cujo encanto resulta da diversidade de fragmentos
coloridos. Não cabe, aqui, usar a literatura para exemplificar uma corrente filosófica,
mas destacar a sua fadiga em presença da repetição tediosa e castradora do olhar
cotidiano.
Desde já, cabe uma ressalva: todos os comentários registrados sobre a produção
literária de Barros não têm a pretensão de apreender as imagens construídas nos níveis
do poema, o que é, de fato, irrealizável pelas palavras cursivas. Para discorrer sobre a
dicção poética de Barros foi preciso reinventá-la usando muitas vezes o artifício das
imagens, recurso bastante explorado pelo poeta para sugerir, em vez de anunciar, sua
poética. Por meio de imagens que nos fazem recordar o pensamento surrealista, o poeta
revê sua poética para fazer dela um “outro desconhecido”, e assim poder percorrer
diversos lados ou diferentes partes (re-)encontrando-a e se perdendo dela.
Durante a realização deste trabalho, as maiores dificuldades não surgiram em
face da leitura dos livros escritos por Barros, mas por ter que falar racionalmente sem
tagarelar, sem se perder, quando parece ser essa a proposta do poeta. Não há sinalização
de leitura que indique uma direção. Em vez disso, pode manifestar-se quaisquer
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possibilidades de sentidos, todas ao mesmo tempo, sem qualquer ordenação, e, dessa
forma, fica inevitável a perdição do leitor.
Em alguns momentos tornou-se angustiante falar por meio da racionalidade de
uma escrita que se esquiva dessa prática. Outras vezes, à moda de Manoel de Barros, foi
usado o artifício de dizer por imagens, convocando alguns elementos que fazem parte de
nosso cotidiano para sugerir associações de idéias, e assim poder espreitar seu trabalho
com as palavras. Portanto, faz mais sentido ler este trabalho como registro de alguma
expressão motivada pela poesia de Manoel de Barros do que uma análise especulativa,
meramente racional sobre a produção literária manoelina.
Não há aqui a pretensão de escrever sobre a poesia, nem de falar dela. Mas
escrever e falar dentro da poesia esboçada por Manoel de Barros, a fim de experienciá-
la.
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1. Poesia e Vida
Escuto a cor dos peixes. Essa vegetação de ventos me inclementa. (Propendo para estúrdio?) O escuro enfraquece meu olho. Ó solidão, opulência da alma! No ermo o silêncio encorpa-se. A noite me diminui. Agora biguás prediletam bagres. Confesso meus bestamentos. Tenho vanglória de niquices. ............................. (Dou necedade às palavras?)4
Meu interesse principal como leitor crítico dos livros de Manoel de Barros tem
sido o modo como o poeta aprecia a vida e transpõe para os poemas o que nela se
entrevê de mais fascinante: a riqueza do acaso desenhada na pluralidade de cores,
cheiros, formatos, sabores...
A vida, tal como aparece em seus livros, segue um rumo que é desconhecido até
ser dado o próximo passo, surpreendendo expectativas e regras cartesianas. Também
pelo obscuro do inesperado, caminha a dicção poética barreana. Nesse caso, a escrita
poética ostenta uma espécie de correspondência com a vida, ultrapassando a idéia de
representação ou substituição pelo código lingüístico. Por isso, pensamos haver entre
elas uma relação metonímica5, como num prolongamento de dois corpos à parte em
evidente jogo de cumplicidade. Nela, vida e poesia remetem-se uma a outra, sem
distinção entre si. Em ambas, está latente a força misteriosamente criadora, ainda que se
encontrem em condições desfavoráveis para manifestação.
4 BARROS, Manoel de. O livro das Ignorãças. 2ªed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993. (p53) 5 Conferir em: RICOEUR, Paul. A Metáfora Viva. São Paulo; Edições Loyola, 2000. (p.94 - 99)
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No entanto, bem distinto de um texto subjetivo, que retrataria o estado anímico
do escritor, a experiência de leitura com os livros do poeta pantaneiro revela que a
poesia é movida pelo esforço para se libertar do biográfico, do documental. Escrever é
um desafio em que a elaboração de cada verso passa pelo processo de nominação que
funda a coisa com o nome, cuidando para não cair na reprodução engendrada no
discurso descritivo no qual a palavra fica imobilizada sob peso do predicado. Assim,
melhor diz o poema que inaugura o livro Para encontrar azul eu uso pássaros6 :
Pré-texto Que minhas palavras não caiam de louvamentos à exuberância do pantanal. Que não descambe para o adjetival. Que meu texto seja amparado de substantivos. Substantivos verbais. Quisera apenas dar sentido literário Aos pássaros, ao sol, às águas e aos seres. Quisera humanizar de mim as paisagens. Mas por quê aceitei o desafio de glosar esta obra exuberante de Deus? Aceitei para botar em prova minha linguagem. Que eu possa cumprir esta tarefa sem que meu texto seja engolido pelo cenário.
O notável nesse poema é o posicionamento crítico sobre a escrita artística que
virou matéria constitutiva do próprio poema. Nele, a ação de dar sentido literário as
coisas já conhecidas equivale à tarefa de arrastá-las para fora do círculo de
referencialidades do cotidiano, para, dessa forma, afastá-las da interpretação costumeira.
A escrita literária tem seu início com o embaralhamento das marcações que permeia a
esfera cultural, de modo que não seja possível fazer alusões ao contexto situacional. Um
dos fragmentos de Manoel de Barros, em Arranjo para Assobio: “Ninguém é pai de um
6 BARROS, Manoel de. Para encontrar azul eu uso pássaros: O Pantanal por Manoel de Barros. Curitiba; Clichepar Ed., 1999
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poema sem morrer”7, urde essas idéias ao pensamento tramado por Roland Barthes, que
discorre acerca da morte do autor, problematizando essa figura enquanto causa primeira
do texto.
O que foi escrito passa a ser interpretado semanticamente por si só e rasura com
a prática de leitura centrada na personalidade do autor, pois, como reforça Barthes, em
“A morte do autor”: “a imagem da literatura que se pode encontrar na cultura corrente
está tiranicamente centralizada no autor, sua pessoa, sua história, seus gostos, suas
paixões”8. Ainda no mesmo texto onde celebra “A morte do autor”, Barthes nos
enriquece com suas reflexões acerca da criação literária, enfatizando sua gratuidade
(despretensiosa de comunicar) sugerida pela expressão “fins intransitivos”, ou seja, nada
para além dela mesma:
(...) “desde que um fato é contado, para fins intransitivos, e não para agir diretamente sobre o exercício do símbolo, produz-se esse desligamento, a voz perde a sua origem, o autor entra em sua própria morte, a escritura começa” (p.58)
No texto literário, aquilo que pertence à ordem do particular deve ser
transpassado e tocar o terreno do universal, semelhante à natureza pantaneira trazida
para o poema para desconfiar do natural incutido nos homens. Mesmo cheio de menções
geográficas e culturais ao Pantanal mato-grossense, as composições de Barros não
revelam qualquer intenção de retratar sua terra natal para fazer compilações memoriais.
Mais do que informações regionais, a natureza pantaneira é transfigurada em entes
constituídos de linguagem. Nela também se move o inominado, as coisas que ainda não
tem nome. A imaginação criadora sobrepõe-se à observação com fins explicativos e não
permite os elementos da natureza e lembranças de sua infância comporem simples
7 BARROS, Manoel de. Gramática Expositiva do Chão. (Poesia quase Toda). (pág. 208) 8 BARTHES, Roland. O Rumor da língua. São Paulo; Martins Fontes, 2004. (pág. 57 – 64)
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cenário para o desenrolar de histórias. Os traços biográficos são usados para desenhar
um quadro de expressão universal, cuja amplitude é percebida com a problematização
de valores e conceitos largamente empregados na rotina de toda estrutura social.
Em Manoel de Barros, esbarramos com objetos íntimos de nosso convívio que
não se insinuam ao olhar como conhecidos. Ao contrário, surpreendem nossas
percepções, nem tanto pelo modo excêntrico com que são apresentados, mas por
manifestar algo que, para nós, permanecia imperceptível quando sua presença sempre
foi evidente. No texto, a força criadora chama à existência aquilo que não existe no
mundo social, ao mesmo tempo em que trata os utensílios do cotidiano como se não
existissem. Por esse manejo, o poema é batizado de Oficina de desregular a natureza,
lugar onde são inventados alguns desutensílios para acionar a diferença nos/dos seres:
parafuso de veludo, prego que farfalha, alicate cremoso, peneira de carregar água,
fazedor de amanhecer, etc. Aqui, por exemplo, a delicadeza sugerida pelos epítetos
“veludo” e “cremoso” apontam para qualidades opostas as que realmente apresentam
tais objetos. Sabemos que um alicate não é cremoso e que tampouco um parafuso seja
aveludado, no entanto, nem sempre pensamos sobre isso. Tal posicionamento é uma
constante nos seus versos como recursos para fazer suspeitar daquilo que parece natural,
comum aos nossos olhos.
Na visão do poeta, a escrita literária mimetiza as manifestações da vida,
valendo-se da espontaneidade dos jogos sinestésicos, os quais, nesse caso, são efeitos
criados a partir da quebra do paralelismo sintático e semântico. A supressão de
conectivos ou o uso perversivo destes, como também corromper as ligações sintáticas
entre sujeito e predicado, são algumas estratégias comumente empregadas por Barros a
fim provocar descontinuidade e, por conseguinte, proporcionar uma pluralidade de
sensações.
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Mais do que comprometer a linearidade dos versos, a figura sinestésica no
poema sugere efeito de descontinuidade entre as relações sensoriais. A interrupção das
ligações diretas entre os sentidos corpóreos e o objeto contemplado abala a
sistematização das sensações. Com o desregramento dos sentidos, está de volta o corpo
liberto da educação e pré-conceitos, apto a perceber a espontaneidade do acaso que rege
a vida. Buscando perceber o mundo com a totalidade dos sentidos, o poeta não prioriza
o estado de racionalidade em detrimento das outras formas de sentir, e assim escreve em
diferentes momentos de O livro das ignorãças, 1994:
Hoje eu desenho o cheiro das árvores. (p19) A chuva deformou a cor das horas. (p45) Escuto a cor dos peixes. (p53) Quero apalpar o som das violetas. (p61) Um perfume vermelho me pensou (p.71)
Essas são proposições afirmativas que não comprovam ou demonstram ou nos
levam a lugar algum, todavia, nos faz pensar sem precisar “apertar o botão”.
Presenciamos momentos ricos de percepções sinestésicas em que os sentidos se
encontram em estado delirante para sentir e/ou se manifestar com grande intensidade.
Fazer os sentidos delirar é o mesmo que desdobrá-los, estendê-los, aumentando o
campo de percepção com propriedades que não lhes são próprias. Como lemos nos
versos selecionados, são captadas, concomitantemente, pelos órgãos dos sentidos, as
manifestações de fenômenos da natureza que os impressionam. Então, experimentar o
som pelo sentido do tato traduz nesse jogo de palavras o anseio de flagrar a vida
acontecendo num estágio anterior à formulação de conceitos para expressar tais
sensações. O uso de palavras desarticuladas, para fazer com que se apresente o estado
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de espírito, em vez de conceitos já determinados e previstos no sistema, será um dos
predicados da poética barreana a ser estudado.
A maioria de seus livros é composta de poucos e curtos poemas, mas se
desdobram em inúmeras possibilidades de leituras. Nas várias interpretações, o leitor é
convidado a habitar os poemas, impregnar-se de suas “sujeiras” (lama, lodo, gosma,
cisco...), ler e reler até ficar diferente. A cada contato brotam novas sugestões de leitura,
pois a fragmentação da unidade frasal suspende toda relação de causalidade ou
direcionamento de sentido. É pelo fluxo do despropósito e do inesperado que segue essa
poesia. O trecho destacado a seguir traz em si um diálogo reflexivo entre o efeito
surpresa e o modo como escreve:
“Sempre compreendo o que faço depois que já fiz. O que sempre faço nem seja uma aplicação de estudos. É sempre uma descoberta. Não é nada procurado. É achado mesmo. Como se andasse num brejo e desse no sapo.”9
Para enriquecer tal debate, lembramos a grande contribuição dos estudos de
Deleuze sobre a linguagem, onde são tecidas reflexões sobre a linguagem afetada
(débil). Um dos pontos de destaque de sua obra é a interpretação feita da disposição
agramatical dos termos da frase cujo um dos efeitos provocados seria o deslocamento
aleatório das informações de nossa base cultural. Com relação ao agramatical, Deleuze
suspeita do funcionamento positivo e linear da linguagem, mas sem limitar tal idéia à
oposição daquilo que é feito como padrão. O agramatical só aparece no horizonte do
instável, do passageiro e tem intensidades desconhecidas, num dinamismo contínuo
porque não pretende comunicar. O resultado produzido por esse sem fim de
possibilidades de arrumação frasal faz a própria língua parecer estrangeira ao falante
nativo:
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O que a literatura produz na língua já aparece melhor: como diz Proust, ela traça aí precisamente uma espécie de língua estrangeira, que não é uma outra língua, nem um dialeto regional redescoberto, mas um devir-outro da língua, uma minoração dessa língua maior, um delírio que a arrasta, uma linha de feitiçaria que foge ao sistema dominante 10.
Rapidamente percebemos, então, que a (des)arrumação da linguagem não
registra nem descreve o real, mas afeta o estado d’alma de quem envereda por essa
escrita. É pouco provável um leitor não expressar um sorriso ao ler os poemas de
Manoel de Barros, ou ao menos manifestar seu incômodo ao reler todo texto procurando
o que faltou para entendê-lo. Essa escrita de sintaxe líquida parece uma espécie de
devaneio, pensamento frouxo e volátil, que nos conduz ao desguarnecimento dos
sentidos e, como conseqüência, nos deixa a sós com o mundo. Quando os olhos saem do
papel, por um momento, não é mais o mundo habitual que vemos. Aqui também é uma
ocasião em que notamos afinidades com as apreciações de Bachelard acerca dos
“devaneios”, onde podemos ler: (...) o devaneio não conta histórias (...) libertam-nos do
nosso nome. Devolvem-nos essas solidões de hoje, as solidões primeiras.11
Encontramos nos versos pensados por Barros o primado a espontaneidade do
pensamento sugerido por meio da "fala nua” de qualquer racionalidade a fim de nos
distrair, esquecer e afastar o espírito de uma ocupação, e a partir daí perceber
associações até então improváveis, segundo a maneira corrente de ver e organizar o
mundo. Eles metaforizam a natureza e hábitos da vida do Pantanal, configurando
quadros cuja sensação de leveza nos remete à ambiência onírica. Para melhor
visualização dessas idéias, leiamos o poema a seguir, que se assemelha uma lista de
injunções sem fundamentos das quais se alimenta a poesia:
9 BARROS, Manoel de. Memórias Inventadas: A Segunda Infância. São Paulo: Ed. Planeta do Brasil, 2006. 10 DELEUZE, Gilles. “Literatura e Vida”. In: Crítica e Clínica. (pág. 15) 11 BACHELARD, Gaston. “Os devaneios voltados para infância”. In: A poética do devaneio. (pág. 94)
23
Muita coisa poderia se fazer em favor da poesia: a – Esfregar pedras na paisagem b – perder a inteligência das coisas para vê-las. (colhida em Rimbaud) c – esconder-se por trás das palavras para mostra-se d – Mesmo sem fome, comer as botas. O resto em Carlitos. e – Perguntar distraído: – o que há de você na água? f – não usar colarinho duro. A fala de furnas brenhentas de Mario-pega-sapo era nua. Por isso as crianças e as putas do jardim o entendiam.12
Como visto, a escrita de Manoel de Barros, por meio da disrupção da sentença,
parece mimetizar o movimento da natureza de modificar-se incessantemente. Tal
agitação provoca perturbação no espírito humano, abalando a normalidade servil. Dito
isso, torna-se interessante recorrer à imagem da espiral como metonímia das
considerações traçadas sobre a dicção poética de Barros.
Nesse caso, trazemos a imagem da espiral para sugerir uma leitura de sua
expressão poética a qual se apresenta em estado de desvario da linguagem: sem rumo,
sem ponto de chegada, sem um trajeto (pré)escrito. O mover-se fora de uma linha reta
parece ser o estilo de Manoel de Barros para manifestar a oscilação e surpresa da vida.
A construção os versos ensaia o andar sinuoso, os ziguezagues, a errância da palavra: o
colear transformador que aparece no poema:
(...) Na pedra o homem empeça de colear Colear advém de lagarto e não incorre em pássaro (...) Colear sofre de borboleta e prospera para árvore
12 BARROS, Manoel de. Matéria de poesia. 5ªed. Rio de Janeiro: Record, 2001. (pág. 17)
24
Colear Prospera para o homem (...)13
A seguir, será oferecida uma proposta de leitura da poética Barreana e sua
maneira de pensar o mundo, por meio de associações com o movimento da espiral, que
também é uma ilustração usada freqüentemente para acompanhar alguns de seus
poemas, alguns ilustrados por Martha Barros, filha do poeta, Millôr Fernandes e
Ziraldo, dentre outros afetados também pelas “disfunções líricas” [que] “acabam por
dar mais importância aos passarinhos do que aos senadores”14.
A espiral é uma imagem freqüente na literatura ocidental que nos chama a
atenção desde os movimentos vertiginosos dos moinhos de Dom Quixote até a
atualidade, com o romancista Osman Lins (Avalovara) e o poeta Manoel de Barros (O
Fazedor de amanhecer).
13 BARROS, Manoel de. Gramática Expositiva do Chão (Poesia quase toda). (pág. 167) 14 BARROS, Manoel de.”A Disfunção”. In: Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo. (pág. 9)
25
O Prêmio Jabuti 2002 escolheu "O Fazedor de Amanhecer", de Manoel de Barros (ed. Salamandra), como
o Livro do Ano na categoria ficção. É interessante observar a imagem confeccionada por Ziraldo para
ilustrar a capa onde se destaca a figura da espiral a qual pode ser lida como metáfora do inesgotável
processo criação literária. Aquilo que o poeta compõe se confunde com o mundo, numa continuidade sem
emendas onde se percebe a decomposição harmônica das cores. A ilustração antecipa o estilo barreano de
compor imagens com palavras.
26
2. Escrita em Espiral
Repetir repetir – até ficar diferente. Repetir é um dom do estilo.15
É necessário começar sempre de algum ponto, mas não há o que justifique
absolutamente a escolha desse ponto. Se tivermos alguma explicação, ela é antes uma
seleção pessoal de acontecimentos que nos marcaram. Portanto, todo começo é um corte
numa cadeia de acontecimentos e, por isso, só tem valor enquanto improvisa um recurso
didático. Sendo assim, este texto apresenta-se como um recorte para falar do que ficou
marcado em mim ao ler os poemas de Manoel de Barros.
O poema escolhido como epígrafe denuncia a apropriação de um começo que
não é de minha autoria. O presente trabalho, enquanto exercício de crítica literária, só
pode se realizar como discurso sobre um discurso do mundo: a poesia. Ele, por certo,
não é o início como também não será o fim de uma falação sobre a produção poética de
Manoel de Barros. Estamos diante de um já-dito e, assombrados pelo eco de outras
falas, poderíamos perguntar: a que vem mais uma explanação sobre o assunto? Nesta
ocasião, o que fazemos é dar continuidade ao movimento labiríntico de referências e
citações. Nada é dito agora que não tenha sido dito antes16.
A repetição é um dos artifícios que aparece na poesia de Manoel de Barros para
lançar uma suspeita sobre o conceito de pleno, usado como base do senso comum. Sua
produção literária está marcada pelo incômodo diante do idealismo expresso na noção
de completo, cheio, absoluto, acabado... tudo que participa do paradigma da certeza. Em
seus escritos, habitam imagens múltiplas e inacabadas que rasuram os modelos
15 BARROS, Manoel de. O livro das Ignorãças. 2ªed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993. pág 13 16 Nullum est iam dictum, quod non dictum sit prius. [Terêncio, Eunuchus, Prologus 41]
27
construídos e também reclamam o equívoco, a inutilidade e a inoperância que repousam
nos seres. Elas se assemelham às “figuras do neutro”, listadas por Barthes17, ao propor
uma maneira de pensar livremente sem o despotismo camuflado nos gestos do
cotidiano. O Neutro, sobre o qual discorreu Barthes no curso ministrado no Collège de
France, não participa do paradigma da escolha arbitrária, em ter que se decidir entre isso
ou aquilo; logo suspende o conflito elíptico que há por trás do sentido das coisas porque
não se decide: o Neutro é o indecidível.
Nos textos escritos por Manoel de Barros manifestam-se várias figuras do
Neutro. A primeira delas seria a própria escrita que não apresenta um sentido a ser
consumido porque parece conjugar de uma só vez todas as possibilidades de escolhas
(isso e aquilo); ou porque algumas vezes dá a entender que faz opção por alguma
escolha não prevista no sistema (uma terceira opção dentro do sistema binário); ou
então não faz escolha e emperra o sistema, uma vez que este é movido pela força de
tensão entre os termos. Nos fragmentos destacados do livro Concerto a Céu Aberto
para Solos de Ave: “De tarde a horas cheiram goma” e “O lodo prefere caranguejo de
cabelo” (pág. 59), pode-se notar a inoperância da escrita barreana que faz combinações
nada previsíveis. Sobre esses exemplos cogitamos ser aglutinação de idéias distintas
numa só sentença (algumas vezes a ausência da pontuação na composição dos versos
sugere semelhante interpretação), ou a violação do sistema binário apresentando uma
outra hipótese de construção, ou então a disposição aleatória de palavras num
movimento sem começo nem fim, apenas interrompido.
Outras figuras do Neutro na poética barreana são os elementos da natureza e
objetos que perderam a utilidade na sociedade, pois nenhum deles precisa marcar
oposição para existir. Porém, as imagens do Neutro não devem ser associadas àquilo
que não tem prestígio social, conforme nos lembra Barthes: “O Neutro não corresponde
17 BARTHES, Roland. O Neutro. São Paulo: Martins Fontes, 2003
28
obrigatoriamente à imagem pobre, essencialmente depreciada que dela faz a dóxa, mas
pode constituir valor forte, ativo.”18. Em seu livro, O neutro, Barthes elenca valores
como a “delicadeza”, a “tolerância”, entre outros, para construir seu pensamento.
Dentre tais imagens, destaco a da espiral, não porque seja recorrente nas poesias
de Manoel de Barros, mas por ser transnominação de muitas outras. Além disso, a
metáfora da espiral aponta para o descontínuo observado no modo com que o poeta
desenvolve os textos.
Esse estilo de escrever em fragmentos traz consigo a repetição, que é também
um tema recorrente em sua poética. Fazer aparecer o duplo (o outro ainda velado),
sugerido no verso pela palavra diferente, vale como artifício para expor as imperfeições
do objeto apreciado por seu acabamento perfeito. Nesse caso, a ação de retornar é
considerada indício da incompletude de algo, pois ainda contém qualquer coisa para ser
dito. Sobre cada objeto aparentemente completo, gravitam hipóteses que, quando
avistadas, interagem no modo de conceber a forma atual da matéria e a modificam.
Assim, o emprego do adjetivo “atual” assinala o histórico e contextual de uma
interpretação, a qual dura o instante em que se espreita. Por esse motivo, uma
interpretação estará em constante “atualização” (processo), convocando sempre aquilo
que se interpreta a testar as potências de ter (ou não) outros predicados, encontrar-se (ou
não) num determinado estado no futuro.
Chamamos de potência o movimento inerente a todas as coisas, o que lhes
permite mudança em outra coisa, ou na mesma enquanto outra. Daí, com a contribuição
do pensamento de Aristóteles, podemos dizer que as artes são as potências do mundo;
efetivamente, “são princípios organizadores de mudanças em outro ser ou no próprio
artista considerado como outro”19.
18 Idem, Ibidem. (pág. 431) 19 ARISTÓTELES. Metafísica, “Livro IX”. RS: Editora Globo, 1969. pág 197
29
No poema citado anteriormente, a idéia de repetição aparece multiplicada no
mesmo verso: primeiro, ela é sugerida pelo significado do verbo repetir; uma segunda
vez, materializando a idéia sugerida pelo verbo ao grafar logo em seguida, sem
interrupção, o mesmo verbo (repetir repetir – até ficar diferente). Tal diferença
pretendida pela duplicação das coisas é semelhante à sensação despertada pelo déjà vu:
a estranha impressão de já ter sido visto ou presenciado um fato. Dobrar o objeto faz
com que os olhos percorram todas superfícies em busca de algo que destoe entre elas,
por duvidar da simetria perfeita. Quando tornamos a ver uma característica nos
assombramos com o óbvio contido nela. Aquilo sempre esteve lá e, no entanto, por se
apresentar claramente ao espírito, nunca lhe dedicamos atenção. Somente a repetição
faz perceber o estranho que já existia – o óbvio.
Sobre o óbvio gravitam perguntas cujas respostas permanecem em aberto – “Por
que disso?”. São interrogações que parecem tanger ao absurdo, pois a evidência de um
fato suprime comentários e afasta a necessidade de esclarecimentos. Por que falar do
que todos já sabem? É uma perda de tempo falar do óbvio. Nesse caso sublinha-se o
símbolo ativo da inutilidade, do para nada, da inoperância...
No entanto, perguntar sobre aquilo que se apresenta como incontestável dá
margem para suspeitar da naturalidade das coisas. O óbvio reclama o equívoco das
interpretações fechadas e, nesse caso, diagnostica uma cegueira nos olhos sãos. Pois, se
não o percebemos antes é porque acreditávamos na totalidade e permanência da imagem
que temos de um objeto. Mas, ao notarmos o evidente, inicia-se o movimento de
desmembramento da figura até perder a noção do “todo”. Debruçar-se sobre o pormenor
desestabiliza o foco principal, “o centro das atenções”, porque cada detalhe atua como
uma subtração (–1, menos um) do inteiro, fazendo espalhar e dispersar até tirar do
centro. Diante disso, torna-se suspeito o conceito de pleno (unicidade das coisas),
30
quando outras percepções movimentam-se ao redor, ainda que não estejamos
conscientes delas.
Toda repetição é uma celebração das formas finitas e transitórias. Para cada
aparição, a surpresa de um desvelamento, uma notação diferente que se dissolve no
instante, de modo que não podemos afirmar que o objeto é sempre o mesmo, idêntico. A
incompletude é o que determina o retorno para dar continuidade e recomeçar mais uma
vez. Por ser inacabada, a ação de pensar, por exemplo, pode recomeçar de qualquer
ponto, numa agitação aleatória sem tempo para terminar. Dessa forma, expõe-se a
precariedade dos pontos de referência: o início, o meio e o fim. O duplo rasura a ilusória
coerência da unidade, esse pilar que sustenta nossas arrogâncias religiosas e filosóficas.
Para Manoel de Barros a incompletude é o traço predominante na composição
do organismo humano e também dínamo de inconstantes movimentos. O estado de
inacabamento desfigura a categoria social de sujeito porque inviabiliza a rotulação
estereotipada. Não se pode classificar aquilo que escapa dos padrões de normalidade,
restando ao corpo irregular a exclusão e isolamento. Conseqüentemente, não possuir um
papel – uma função social – permite escapar da repetição servil imposta em cada
circunstância pelas regras e finalidades, oferecendo um caráter polimorfo (outros) ao
corpo inoperante. A incompletude, sempre vazada, é a qualidade que possibilita as
várias maneiras de apresentar-se no mundo, sem concretizar nenhuma delas
separadamente.
No poema a seguir, a incompletude configura uma das grandes qualidades do
ser. Ela desperta o prazer pelo efêmero e o tédio pelo costumeiro; além disso, guarda a
maior riqueza humana: a liberdade de vir-a-ser. Na fala de Marilena Chauí, encontramos
ajuda na difícil tarefa de descrever a liberdade apreciada por Manoel de Barros: “ser
31
livre, diz Aristóteles em várias de sua obra, é ter o poder de dar a si mesmo seu próprio
fim e ser para si mesmo o próprio fim” 20.
Biografia do orvalho21
A maior riqueza do homem é a sua incompletude. Nesse ponto sou abastado. Palavras que me aceitam como sou - eu não aceito. Não agüento ser apenas um sujeito que abre portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora, que aponta lápis, que vê a uva etc. etc. Perdoai Mas eu preciso ser Outros. Eu penso renovar o homem usando borboletas.
Decalco no texto uma frase escrita por Deleuze que deve nos auxiliar na
arrumação destes pensamentos: “começar significa eliminar todos os pressupostos”22. O
início é resultado de escolhas arbitrárias de um ponto referencial e norteador para
começar a enunciação, que como tal deve se esquivar do estado delirante do
pensamento. Como em qualquer seleção, há uma oposição de termos, o que torna
imperativo a preferência por um em detrimento de outro, o qual deverá ser esquecido. O
conceito de origem sustenta-se na idéia de causalidade absoluta atribuída a todos os
fenômenos, na existência de um centro de onde deriva todos os acontecimentos e ações.
Mais uma vez, foi usado o artifício da citação, deixando transparecer, ainda que
inconsciente, a mise-en-abîme do pensamento. Assinalar as referências, em nossa
sociedade, além de dar credibilidade ao texto, pode ser lido como uma atitude motivada
pela vontade de depuração do discurso – esta fala é minha, aquela de outro. Nesse caso,
tal gesto assemelha-se ao processo de decantação cujo resultado visa à separação de
20 CHAUI, Marilena. Introdução à Filosofia: Dos Pré-socráticos a Aristóteles. Vol. l. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. pág. 328 21 BARROS, Manoel de. Retrato do Artista Quando Coisa. 3ªed. Rio de Janeiro: Record, 2002. pág.79 22 DELEUZE, Gilles.Différence et Répétition. Epiméthée,PUF,1968. pág. 225
32
uma mistura, ignorando o caráter “polifônico” – entrecruzamento de informações
culturais que são ditas sem ser pronunciadas.
Decantar o texto para contemplar sua “pureza discursiva” reflete uma sociedade
que impõe o conceito de plenitude (sinônimo de acabamento) para exercer o controle.
Pois a força controladora só age sobre o que está previsto dentro de um padrão
comportamental pertencente a um sistema binário: isso ou aquilo. Logo, o inacabado
inviabiliza o trânsito dessa força porque o próximo estágio (se houver) está entregue ao
acaso.
As reflexões tecidas até aqui problematizam a estrutura pautada no início-meio-
fim, revelando sua fragilidade diante de constatações “óbvias”. Poderíamos perguntar,
por exemplo, onde está o começo de um livro. A resposta seria dada sem hesitação: no
prefácio ou na introdução. Porém, as duas partes que antecedem qualquer texto não
constituem a causa primeira, porque um prefácio, como sabemos, é escrito depois de
pronto o livro, assim como a introdução e o sumário. Ao atentar para a marcação trivial
do livro fica exposta a utopia da origem e provoca a perda de sua pertinência no sistema
de referências. Nesse momento, vem à tona uma idéia expressa pelo filósofo alemão
Martin Heidegger: O que é mais digno de ser questionado é o mais óbvio de tudo.23
A literatura radicaliza as marcações fixas e esboça estância do provisório. Por
meio do esforço de uma arrumação inusitada de palavras conhecidas, o conteúdo é
deslocado do centro, deixando-o vazio, de modo que todas as hipóteses de significação
caibam nele. Com a perda das referencialidades, passamos a criar livremente
associações de idéias, sem nos preocupar com a coerência. No poema que segue,
compreendemos que, para MB, a coerência é no mínimo duvidosa. Vejamos:
33
Infantil
O menino ia no mato E a onça comeu ele. Depois o caminhão passou por dentro do corpo do menino E ele foi contar para a mãe. A mãe disse: Mas se a onça comeu você, como é que o caminhão passou por dentro do seu corpo? É que o caminhão só passou renteando meu corpo E eu desviei depressa. Olha, mãe, eu só queria inventar uma poesia. Eu não preciso de fazer razão. 24
Com podemos ler, a despreocupação com a ordem dos acontecimentos permite
fazer experiências com elementos estranhos entre si, sem com isso pretender provar
algo, pelo simples prazer de ver nascer o diferente. Experienciar as coisas para espreitar
furtivamente o outro não idêntico que se agita dentro delas. Mas, assim como o tato, o
paladar, a audição e a visão, toda experiência só existe por efemeridade. A experiência é
uma estação.
Relembro aqui os ensaios escritos por Otávio Paz para incorporar neste discurso
algumas de suas contribuições. A Outra Voz, título do texto que dá nome ao livro, é uma
metáfora construída para falar de um não-idêntico latente na poesia:
“sua voz é outra porque é a voz das paixões e das visões; é de outro mundo e é desse mundo, é antiga e é de hoje mesmo, antiguidade sem datas”25.
Trata-se de um outro que será sempre um estranho, um desconhecido, visto que
será sempre o último a se manifestar num anacronismo de desvelamentos. Podemos,
então, pensar o outro como expressão do “mais um” contido dentro das coisas. Melhor
seria falar no plural: os outros. Depois de descoberto o mais um, há mais um, mais um,
mais um...
23 HEIDEGGER, M. Ensaios e Conferências. Petrópolis, RJ: Vozes. p 183 24 BARROS, Manoel de. Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo. Rio de Janeiro: Record, 2001. p29
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Esse outro (o mais um) se manifesta na dispersão da linguagem, quando os
signos se desdobram num leque de significados contraditórios. Somente ao olhar do
observador distraído, desligado temporariamente das regras e convenções, é que a
ligação postiça entre significado e significante mostra sua fragilidade.
Na poesia de Manoel de Barros, o enfoque não está na palavra, ou melhor
dizendo, na significação. Existe maior preocupação com a construção, o visual obtido
com o arranjo inusitado de palavras. A preciosidade de seus poemas reside na
improvisação de formas ou combinações de uma maneira insólita, pela qual se
descobrem mundos desconhecidos ou se exploram zonas ignoradas no conhecido. Ao
enveredarmos na literatura barreana temos a impressão de que, por um instante, o
mundo tal como o percebemos deixa de existir.
Quando admiramos algo que nos seja estranho, formulamos de imediato uma
frase parecida com: “isso me lembra...”, desencadeando um movimento de analogias
com as informações que nos são familiares. Tal formulação faz explorar aquilo que já
era conhecido e descobrir novos horizontes, novas possibilidades de interagir com
determinados conteúdos. Excursionar, sair arbitrariamente do trajeto, instaura a
confusão do sentido (deixar que um móvel parta de um ponto A em direção a um ponto
B; aqui, no caso, o móvel seria a palavra com objetivo de fazer chegar a uma idéia), o
que possibilita rever e transver o mundo, na crença de que ele possa ir além de conceitos
e regras. Daí, esbarrarmos na poesia de Manoel de Barros com as figuras que nos
remetem à deriva, ao acaso, ao devaneio ... num movimento de aporia, sem início e sem
fim. Ao contrário, revela o desejo de estar antes do início e depois do fim.
O movimento aleatório de que tratamos, sem trajeto pré-escrito porque não
divulga nem partida nem ponto de chegada, traz à baila a imagem da espiral presente na
natureza: o furacão, o cosmos, o redemoinho das águas... Como fenômeno da natureza,
25 PAZ, Otávio. A outra voz.”A outra voz”. São Paulo: Siciliano, 1984. [p.142]
35
o movimento da espiral trapaceia com a noção de referencialidade, cuja função é
programar um acontecimento. O ponto de referência abafa o efeito da surpresa. Pedimos
um ponto de referência porque não queremos errar o caminho e ter surpresas
desagradáveis.
Uma observação feita por Derrida a propósito da programação de um evento,
sublinha que o que está sendo pensado aqui já foi pensado antes:
“mas nada pode programar que alguma coisa aconteça, pois aquilo que está no programa não acontece, anula-se na sua previsibilidade, não tem força de evento” 26
Conjugada com as idéias colocadas anteriormente, o pensamento formulado por
Derrida contribui para ressaltar o poder contido no acidental – o não previsto – capaz de
romper as referencialidades e devolver ao homem a capacidade de surpreender-se com o
mundo. A gratuidade do pensamento dispersa funcionalismo e pragmatismo instaurados
pela lógica controladora.
Acaso, fortuito, divagação, excursão... são alguns temas que aparecem
repetidamente na poesia de Barros como “motores” de sua dicção poética, cuja
continuação depende da sorte. Tais movimentos aleatórios são percebidos na quebra do
paralelismo sintático e semântico acusando a agramaticalidade da frase. O
esfacelamento da gramática apaga as marcações e referencialidades que asseguravam
uma leitura objetiva e inteligível. Esse tipo de construção ensaia o descompasso entre as
palavras e fluxo do pensamento, devolvendo ao pensamento a liberdade vertiginosa com
que nos surpreende.
Assim, o desenvolvimento de sua obra simula uma escrita labiríntica: não há
como seguir reto por ausência da linearidade; há uma sucessão de fragmentos que se
26 BENNINGTON, Geoffrey. Jaques Derrida por Geoffrey e Jaques Derrida. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996. p23
36
intercortam e improvisam diferentes aberturas, por onde se inicia o movimento
paradoxal de perder-se para melhor conhecer, sair do curso e experienciar.
A simbologia da linha reta aparece no imaginário coletivo aludindo à certeza ou
exatidão – como revela o significante da palavra (cor)reto, sinônimo de certo ou exato.
Por oposição, o traço sinuoso simboliza a dúvida e a incerteza. No entanto, a reta
garante rapidez e praticidade para atingir um determinado ponto, o que implica na
valorização do fim em detrimento do meio, e com isso o esquecimento do trajeto.
Enquanto o caminho sinuoso dificulta o instantaneismo e oferta a contemplação
desbravadora do percurso traçado. Destarte, a dúvida, tal como aparece nos poemas
escritos por Manoel de Barros, mantém seu conteúdo em estado latente, numa constante
repetição, experienciando todas as hipóteses ainda que não guardem relações diretas
com o mistério. O duvidoso é aquilo que não pode ser esclarecido sem a pena de ser
destruído e, por isso, é o que não acaba de acabar.
Desenho de Millôr Fernandes para o livro
Retrato do Artista Quando Coisa..
37
Desse modo, a espiral oferece uma imagem com a qual podemos fazer analogias
com a poesia barreana, pois ensaia o movimento inacabado do mundo. Tal como a
poesia, a espiral aponta para uma etapa anterior ao começo e posterior ao fim. As
palavras do escritor Osman Lins podem nos ajudar a perceber melhor essa aproximação:
“Vereis, ao primeiro olhar, que a espiral não nos transmite uma impressão estática: parece-nos, antes, vir de longe, de sempre, tendendo para os centros, seu ponto de chegada, seu agora; ou ampliar-se, desenvolvendo-se em direção a espaços cada vez mais vastos, até que a nossa mente não mais a alcance. A verdade é que, se a secionamos nas extremidades, arbitrariamente o fazemos; fazendo-o, guardando-nos na loucura. Nem a eternidade bastaria para chegarmos ao término da espiral – ou sequer ao seu princípio. A espiral não tem começo nem fim.”27
Ao fazer notar que qualquer ponto de sua extensão já ocupou, em algum
instante, a posição de centro, o movimento espiralado permite associações com a rede
de pensamento tecida até aqui. Na alternância de posições de um ponto, percebemos que
a coisa sobre a qual refletimos é singular, mas as possibilidades de aparecerem no
mundo são inúmeras. Desse movimento é gerado um eixo de intertextualidades que
seria a base do livro infinito proposto por Mallarmé: o não fechamento, a infinitude, a
obra aberta; o que não acaba de acabar; todos os livros num só.
Pensar sob a metáfora da espiral possibilita retornar ao pensamento puro pelo
qual podemos conhecer uma existência sem limites, “sem a química do civilizado”.
Como vimos até aqui, os inventos de Manoel de Barros dão relevo aos fatores
estruturais encontrados no ato do jogo: várias possibilidades de arranjos com os
elementos envolvidos; a precipitação do acaso; uma finalidade em si; esquecimento
temporário do mundo...
Os poemas escritos por ele esbarram nas idéias barthesianas de “trapaça salutar”
e “logro magnífico” com o código lingüístico, uma vez que não se pode fugir dele ou
negá-lo. Em qualquer desses gestos, o código ainda estaria presente ou como causa da
fuga, ou como objeto negado. Uma de suas estratégias é usar a repetição desprogramada
até cansar a percepção automatizada para depois fazer aparecer o diferente – o mesmo
como um outro. Em outras tentativas de diálogo com a poesia barreana, serão
tematizadas outras possibilidades de manifestar essa liberdade de pensamento, como a
imagem poética.
38
3. Na esteira do pensamento moderno
Palavras Gosto de brincar com elas. Tenho preguiça de ser sério.28
Depois de tecer comentários sobre seu estilo, não é difícil perceber que a poética
de Barros inscreve-se na esteira do pensamento instaurado pela modernidade literária,
cujos prefaciadores teriam sido Baudelaire, Mallarmé e Rimbaud. Estes contribuíram
para mudar o curso do pensamento literário, ainda no século XIX, ao radicalizar os
fundamentos da poética clássica. Não só a temática como também o estilo foram
questionados e transformados conforme os conceitos que se agitavam na época.
Toda tradição artística, até aquele momento, tinha como centro o rigor estético,
apostando na continuidade e coesão das partes de um texto para articular uma
mensagem. Na acepção clássica, o texto funciona como um signo lingüístico dividido
em significante, cuja unidade corpórea se forjava no padrão de ordenação das letras e da
seriação de frases, parágrafos, capítulos, volumes... e a outra metade que completaria a
totalidade desse signo: o significado depositado e “sedimentado” pelo rigor gramatical.
No entanto, a sujeição a várias regras fixadas com a finalidade de sustentar a
coesão dos signos deixa transparecer a inquietação e a angústia diante da necessidade de
compensar a fragilidade que os envolve. É imperativo criar condições especiais, um
padrão, para que este signo possa operar sua função de representar algo distinto de si.
Atenta a este aspecto é que a modernidade literária atualizará as noções e conceitos de
leitura por meio da ruptura com os paradigmas da corrente clássica, a fim de expor as
impurezas e artificialidades do signo.
27 LINS, Osman. Alvalovara. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1986. p 16-17
39
Antes do movimento romântico do séc. XIX, o entendimento de texto literário
levava em consideração o “conteúdo de valor”. Nos estudos de Eagleton sobre os
conceitos de literatura no séc. XVIII, na Inglaterra, ele nos fala sobre o uso da literatura
como difusora de valores de uma elite. Entretanto, o sentido moderno da literatura só
começa a ser moldado de fato com a criação da categoria de “obra criativa”, forjada na
insatisfação do pensamento romântico com a implantação e consolidação do sistema
capitalista na Europa. A criatividade humana era o que se opunha ao pragmatismo
capitalista:
(...) “escrever sobre o que não existe era, de alguma forma, mais emocionante e mais valioso do que escrever um relatório sobre Birmingham ou sobre a circulação do sangue.” (...) “a criação imaginativa pode ser oferecida como uma imagem do trabalho não-alienado” (...) “ela é espontânea e não calculada racionalmente, criativa, e não mecânica.” 29
Os comentários acima, juntamente com a leitura dos poemas de Manoel de
Barros, nos levam a pensar a literatura como lugar onde os valores expurgados pela
sociedade capitalista podem ser celebrados.
Com a laicização do Estado, ainda no séc. XIX, acompanhamos também a
desinstitucionalização do escritor. Ele não estaria mais a serviço da Corte, da Igreja ou
de um mecenas aristocrático, e esse desprendimento permitiria novas experiências nas
atividades realizadas. Assim, ao mesmo tempo, escritor e literatura se libertam da
“função óbvia” na sociedade e passam a vivenciar livremente a expressão de emoções,
antes moldadas pela sintaxe linear e pouco flexível dos padrões clássicos. Entretanto,
devemos ressaltar que, para o artista clássico, dominar as regras e com elas forjar efeitos
de sentido, primando pela beleza estética, foi o modo encontrado para administrar suas
28 BARROS, Manoel de. Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo. Rio de Janeiro: Record, 2001. (pág 59) 29 EAGLETON, Terry. “A ascensão o inglês”. In: Teoria da literatura. pág 25 e 26
40
angústias, dúvidas, conflitos... Então, não há melhor ou pior meio de expressão, e sim
modos de expressar que variam de pessoa para pessoa.
Distanciando-se da unidade caracterizadora da retórica tradicional, a estética
moderna instaurada no séc. XX dá ênfase ao descontínuo e acidental. Escritores da
Modernidade assemelharam a escrita fragmentária e casual ao fluir das sensações de
estar no mundo. As impressões captadas das paisagens ao nosso redor são sinestésicas,
pois uma percepção acompanha outras. Um aroma pode nos remeter ao paladar (doce,
cítrico ...) ou à impressão tátil de suavidade ou agressividade, por exemplo. Destarte,
podemos dizer que não existe uma ordem ou um intervalo para cada acontecimento ser
admirado; o mundo é dinâmico e não pára para ser visto.
Na Modernidade, a concepção crítica da linguagem enfoca o seu caráter artificial
e assinala a utopia existente entre signo e referente, o que irá favorecer as experiências
com o código lingüístico, testando seus limites e expondo as fragilidades. Essas
experiências textuais passaram a exigir do leitor novas habilidades de leituras.
Conseqüentemente, a escrita de sintaxe quebrada faz com que o significado
perca a posição central no texto, conduzindo o autor para reflexão na própria escrita. O
escritor moderno é aquele que reflete sobre o objeto estético, expõe seu fazer, discorre
sobre a criação, assume a artificialidade do ato poético. Em entrevista publicada pelo
jornal Folha de São Paulo, o poeta, ainda que timidamente, revela alguns laços que o
ligam ao pensamento fundador da Modernidade – a consciência crítica da atividade de
escrever:
“Escrevo porque sou obcecado pela palavra, tenho uma espécie de tara por ela. E acredito no trabalho, não na inspiração. O belo é feito por meio do trabalho. A arte da poesia é o trabalho com a palavra.”
Na esteira desse pensamento literário, que ganhou maior expressividade com o
advento da Modernidade, segue também a poesia escrita por Manoel de Barros. Sua
41
poética é de agora mas já estava sendo rascunhada muito antes; uma poesia escrita por
muitas mãos. Portanto, ler a poesia barreana nos faz repensar as idéias modernas (início
do séc. XX) e constatar o que Otavio Paz chamou de “tradição da ruptura” para marcar
a inconstância e temporalidade das experiências feitas pelos escritores no jogo de
intertextualidade – seja parafraseando, seja parodiando. Na Modernidade, fica declarado
o fim do mundo finito.
Diante disso, torna-se interessante citar o nome de Manoel de Barros como um
dos poetas da atualidade, leitor dessa tradição moderna do poeta-crítico da palavra, para
nos ajudar a pensar essa reflexão sobre os papéis do escritor que se desdobram em
poeta–crítico–teórico e as relações entre leitor e texto.
Cada poema composto por Barros parece assumir-se como metáfora de poesia,
numa agitação de idas e vindas pelo conjunto de suas obras onde se fazem presentes
textos diversos cuja autoria varia ou já se perdeu dentro do complexo literário pelo qual
foi incentivado e hoje faz parte. Manoel de Barros coloca-se como crítico de si mesmo e
dos outros ao apresentar comentários sobre um outro discurso (inclusive o que ele
escreve é visto como um texto estranho que não lhe pertence) fazendo ressaltar a relação
entre a linguagem do escritor e suas ideologias. Pois, cada produção humana guarda no
seu interior as relações mais estreitas com a sociedade e época em que vive. Deste
modo, o agravante de qualquer apreciação enquanto produto cultural não estaria em
tomar para si um posicionamento diante da sociedade, mas a tentativa ardilosa de
silenciar-se sobre isso. No caso da poética aqui estudada, está exposto em toda sua
extensão o apreço pela matéria ociosa e destituída de importância para oferecer outros
pontos de vista.
Para realização deste trabalho, foi o próprio poeta quem, por meio de citações e
referências indiretas, sempre esteve apontando as leituras de textos para uma
42
fundamentação teórica. (“eu escrevo o rumor da língua”30 improvisa alusão ao O
Rumor da Língua, de Barthes; ou ainda o livro Retrato do Artista quando Coisa para
fazer referência ao primeiro romance de Joyce, publicado em 1916: O Retrato do Artista
Quando Jovem; como outras citações diretas do nome de Guimarães Rosa, Baudelaire,
Clarice...). Logo, à luz das reflexões barthesianas acerca da discussão crítica/literatura,
percebemos que em Manoel de Barros as duas entidades relacionadas à prática literária
se confundem: poeta-crítico. Pois, a partir do discurso pronto, da linguagem objeto, são
fundadas novas perspectivas, diferentes “desobjetos”.
Todo romancista, todo poeta, quaisquer que sejam os rodeios que possa fazer a teoria literária, deve falar de objetos e fenômenos mesmo que imaginários, exteriores e anteriores à linguagem: o mundo existe e o escritor fala, eis a literatura. O objeto da crítica é muito diferente; não é “o mundo”, é um discurso, um discurso sobre o outro: a crítica é um discurso sobre um discurso; é uma linguagem segunda ou metalinguagem (...)31
Outra observação sobre seus escritos é a inclinação para inventividade. Para
Manoel de Barros, só podemos conhecer aquilo que inventamos através da linguagem.
O teórico vislumbrado dentro do poeta se confunde com a figura do “fraseador”: aquele
que realiza experiências sonoras com língua e, por isso, faz conclusões que nada
afirmam, pronunciando com segurança frases que não veiculam qualquer conteúdo. Sua
atividade é “desteorizar” o mundo, “desinventar” ou “desexplicá-lo” para voltarmos a
admirar e sentir sem o intermédio da razão ou de explicações.
A literatura escrita por Barros, talvez, possa parecer difícil para quem procura
nela uma representação fidedigna da “realidade”; para quem pergunta: “que isso quer
30 BARROS, Manoel de. O Livro das Ignorãças. 2ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994. (p.49) 31 BARTHES. Crítica e verdade. São Paulo: Perspectiva, 1999. (p.160)
43
dizer?”, buscando sempre uma resposta bem medida ou ainda para quem vê o mundo
privilegiando um ângulo só, com esquemas pré-estabelecidos.
“– Difícil de entender, me dizem, é sua poesia; o senhor concorda? – Para entender nós temos dois caminhos: o da sensibilidade que é o entendimento do corpo; e o da inteligência que é o entendimento do espírito. Eu escrevo com o corpo Poesia não é para compreender, mas para incorporar Entender é parede; procure ser uma árvore.”32
Sem dúvidas, durante a leitura dos poemas de Manoel de Barros, é exigido do
leitor um esforço diferente do habitualmente praticado. Tem-se como motivo menos a
aparente ilegibilidade do que a criação de uma sintaxe própria em direção à
radicalização da linguagem. Essa radicalização conseguida, como já visto, pela quebra
do paralelismo sintático e semântico além da (re)invenção de palavras favorece ao
surgimento de uma nova concepção de leitura que difere daquela dita clássica, pautada
no tripé início-meio-fim.
Ler deixou de ser visto como simples tarefa de passar os olhos para reconhecer
alguns símbolos gráficos. Ultrapassando essa primeira etapa a qual poderíamos chamar
de mecânica ou superficial, o exercício da leitura constitui uma seleção e reunião de
impressões que nos inquietaram, a fim de serem conjugadas com os conhecimentos
previamente adquiridos. Em vista disso, arriscamos uma reflexão de que a atividade de
leitura é um constante encadear de informações, atualizando-as para integrá-las ao
tecido cultural, o que implica inferir também que ela adianta e apresenta informações
constituintes da identidade que antes se reservava no complexo de nossas memórias.
A leitura dos livros escritos por Barros nos põe a cogitar a inventividade da
memória. Em Memórias Inventadas – A infância (2003) e em Memórias Inventadas – A
32 BAROS, Manoel de. Gramática Expositiva do Chão. (Poesia quase Toda). (p.212)
44
segunda infância (2006), percebemos que a composição e arrumação do material
registrado na memória não são informações datadas e armazenadas de modo que
consigam reconstituir, com precisão, a experiência vivenciada. Uma vez levado à
memória, o acontecimento não comporta mais a rotulação de verdadeiro ou falso; o
gesto universal dos conceitos fica sobreposto por uma linguagem pessoal e particular
conforme a importância de cada momento vivenciado. A importância de uma coisa há
que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós31, o que reforça a
pluralidade dos modos de pensar o/no mundo. É por esse motivo, como nos alegra o
poeta, que um osso é mais importante para o cachorro que uma pedra de diamante33.
A linguagem, seguindo este modo de pensar, não é espelho da realidade nem um
canal através do qual os objetos podem aparecer. Ao contrário, linguagem e realidade,
ambas iluminam-se mutuamente quando postas em correlação. Entre os muitos objetos
dispostos no mundo social, a língua é mais um deles, e por isso é alvo da curiosidade do
poeta.
As associações e aproximações feitas são, na verdade, esforços para esboçar
sentidos ao que não os tem, ao desconhecido. Afinal, não é isso que o ser humano tenta
fazer desde o início? Ao fazer dialogar informações simultâneas, após a escolha e
agrupamento das peças, cria-se um efeito de veracidade que não deveria ser confundido
com a verdade porque não pode ser conferida ou comprovada fora do texto.
Efeito de verdade é uma expressão do pensamento do filósofo francês Michel
Foucault34, para quem uma discussão em torno do estatuto da verdade não tem nenhum
sentido, posto que ela é uma invenção humana. Essa expressão destaca as decorrências
dos discursos. Percebe-se, em suas reflexões, que o efeito de verdade permeia os
33 BARROS, Manoel de. “Sobre Importâncias”, In: Memórias Inventadas. A segunda infância.(2006) 34 FOUCAULT, M. A ordem do discurso. 5ª ed., São Paulo, Loyola. 1996
45
discursos assertivos, mas astuciosamente se dissimula no que designou de vontade de
verdade:
Assim, só aparece aos nossos olhos uma verdade que seria riqueza, fecundidade, força doce e insidiosamente universal. E ignoramos, em contrapartida, a vontade de verdade, como prodigiosa maquinaria destinada a excluir todos aqueles que, ponto por ponto, em nossa história, procuraram contornar essa vontade de verdade e recolocá-la em questão contra a verdade (Foucault, 1996, p. 20).
Os modos de conhecer ainda estão bastante presos à sensação e à percepção,
muito próximos das operações corporais, das inclinações e das paixões, e, por isso,
tendemos a particularizar as interpretações sobre o mundo. No entanto, em algum
momento de nossa trajetória, perde-se a consciência da artificialidade dos conceitos, das
verdades, dos valores, tudo forjado para preencher o vazio do incógnito, da dúvida.
Talvez daí se origine a ação denominada de “vontade de verdade”; espécie de produto
das angustiantes buscas por respostas que orientem a existência humana. Aquilo que
chamamos de fatos, são ficções construídas dentro dos nossos mundos-versões.
Redimensionar os elementos do ambiente físico, compondo uma realidade
interativa ressignificada pela linguagem, possível apenas no reino das palavras ou na
imaginação do poeta e de seu leitor, não escapa de ser visto como caráter subjetivo do
texto. Contudo, ao invés de disfarçar a inventividade das interpretações e das
concepções de verdade, o poeta sublinha a artificialidade de escrita e revela o que há de
mais humano: a imaginação, o poder de criação da mente humana. A literatura é
apresentada por Barros como um imenso trabalho da linguagem em que a palavra
convertida em imagem (a despalavra) traz a marca de uma sintaxe imaginária. Por isso,
ela se inscreve no mesmo materialismo poético de Bachelard35, caracterizado assim pela
35 BACHELARD, Gaston. Os Pensadores. Bachelard. São Paulo, Nova Cultural, 1998
46
manipulação da matéria, concreta ou abstrata. Eis aqui o ponto de intercessão entre
poesia, devaneio, ciência e razão.
A brincadeira com o código lingüístico é levada a sério. “Tudo que não invento é
falso”, pensamento escrito para introduzir o livro Memórias Inventadas – A infância
(2003) e que na verdade alinhava toda sua produção. A “invencionática”36 é o termo que
mais se aproxima desse aspecto da poética de Manoel de Barros. Conforme temos a
oportunidade de ler no fragmento a seguir, por meio de uma construção irônica, Manoel
de Barros lança suspeita sobre o que se diz “natural” nas verdades (que não há trabalho
ou intervenção do homem): Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são
inventadas37. Tais comentários nos fazem refletir sobre a inventividade do mundo tal
como conhecemos. Este, com suas regras de bom funcionamento, é uma invenção
humana. São os escritos de Baudelaire, em “Elogio da Maquilagem”38, a que alimentam
a interpretação forjada:
“Passemos em revista, analisemos tudo o que é natural, todas as ações e desejos do puro homem natural, nada encontraremos senão horror. Tudo quanto é belo e nobre é o resultado da razão e do cálculo.” ...” A virtude, ao contrário, é artificial, é sobrenatural, já que foram necessários, em todas as épocas e em todas as nações, deuses e profetas para ensiná-la à humanidade animalizada”(...)
Na literatura estudada, o que chamamos de fabular refere-se à ação de extravasar
todas individualidades dos seres, permitindo dinamizar suas potências e desdobrá-las
em outras perspectivas num devir qualquer coisa. Como nos faz pensar a história cujo
título é “O menino que carregava água na peneira”, a palavra dá forma a toda matéria
criada sem esperar, com isso, ser o contorno, o limite ou medida. Retrata um momento
mágico da palavra criadora:
36 BARROS. Memórias Inventadas – A infância. São Paulo: Ed. Planeta, 2003 37 BARROS. Livro sobre nada. 11ª edição. Rio de janeiro: Record, 2004. (pág 69)
47
“No escrever o menino viu que era capaz de ser noviça, monge ou mendigo ao mesmo tempo. O menino aprendeu a usar as palavras. Viu que podia fazer peraltagens com as palavras. E começou a fazer peraltagens. Foi capaz de interromper o vôo de um pássaro Botando ponto no final da frase.” 39
Mesmo sem querer conceituar, as composições de MB nos despertam para
reflexões em torno da poesia e de suas brincadeiras com as palavras. Nesse fragmento,
fica clara a aproximação semântica entre os verbos inventar e escrever. Ambos remetem
para a idéia de representar (encenação), fabular, contar falsamente ou até mesmo fingir,
para lembrar Fernando Pessoa em “Autopsicografia”: O poeta é um fingidor40.
Quando elege a escrita como mote de poesia, o poeta alumia debilmente seu
conhecimento sobre a natureza metamórfica da palavra e, analogamente, a sua “luta vã”
com as mesmas, conforme podemos ler no trecho de entrevista publicada pelo JB: “Eu
trabalho cada letra, cada sílaba, cada palavra para conseguir certa harmonia para o
verso ou a palavra”41. A (auto)consciência de que escrever e inventar são atividades
equivalentes, confere à criação literária, onde fingir é ser real, o mesmo peso que tem
nossas interpretações sobre a realidade. Com a diferença de que a literatura barreana se
assume enquanto criação. Tal marca fica bem evidente nas construções que não se
regulam pelas normas gramaticais, uma vez que sobressai o trabalho do poeta para
encontras outras maneiras de combinar de palavras, diferente do convencional.
Para relembrar a associação entre texto e tecido, o contato com os bordados das
irmãs Ângela, Antônia, Marilu, Martha e Sávia Dumont, a partir dos desenhos de
38 BAUDELAIRE, Charles. Sobre a Modernidade. São Paulo: Paz e Terra, 1997. (pág. 57) 39 BARROS, Manoel de. Exercícios de ser criança. “O menino que carregava água na peneira”. Rio de Janeiro: Salamandra, 1999
48
Demóstenes Vargas que ilustram o livro Exercício de ser criança (1999) nos inspira
formular uma correspondência entre poema e a bordadura. A figura desenhada com a
função de ilustrar o texto representaria a língua na situação de discurso e a palavra seria
a linha. Vendo o outro lado, o avesso do bordado, este se assemelharia ao poema, por
onde se pode notar a primeira noção de alguma coisa através do esboço da imagem, os
nós, as emendas e o caminho percorrido pela agulha e a linha, ou seja, o rudimento de
linguagem no texto. A imagem sugerida ressalta do modo artesanal e laborioso pelo
qual o poeta estrutura seus poemas.
Forçar os limites dos conceitos e valores a fim de desnaturalizá-lo – mostrar a
artificialidade, para fundar o entre-lugar onde se possa criar sensações de realidade. O
silêncio, o vazio, o lixo, a terra, a água, a loucura, a infância, tudo que a sociedade não
contempla revela dentro da poesia de
Manoel de Barros grande fertilidade para
inventar esse entre-lugar. Aí, o poeta dá
voz à pedra, aos bichos, aos loucos e
vadios para fazer nascer outras
perspectivas a partir das quais se possa
transver o mundo.
Manoel de Barros. Exercícios de ser criança
(1999). Ilustração de Ângela, Antônia, Marilu,
Martha e Sávia Dumont, a partir dos desenhos de
Demóstenes Vargas
40 “O poeta é um fingidor/ finge tão completamente/ que chega a fingir que é dor/ a dor que deveras sente”, já apontando para indistinção entre real e ficção e, conseqüentemente, assinalando a disparidade entre real e linguagem. 41 Jornal do Brasil, caderno Idéias, 30 de março de 2002
49
3.a. Abandono poético
Cientes da impossibilidade da palavra em dizer por inteiro uma realidade,
escritores modernos afastam-se da escrita tradicional, onde se primava pela clareza de
entendimento, e apostam na incompletude do texto, abrindo as possibilidades de
sentido. Por conseguinte, tal postura atribui ao leitor a tarefa de dar continuidade à
construção do poema abandonado. A esse respeito, Novalis, em seus fragmentos,
elabora uma frase que dá sustentação a esse pensamento: “o verdadeiro leitor tem de ser
um autor amplificado”42. Os papéis de autor e leitor, antes aparentemente bem
definidos, agora aparecem como partes complementares e indissociáveis do processo
criador.
Nessa nova fase do pensamento literário, não é mais o conteúdo que assinala a
diferença entre linguagem da comunicação e linguagem literária. A forma passa a
manifestar essa diferença. Como disse Valèry, é imperativo explorar o código
lingüístico a fim de provocar efeitos extraordinários, pelos quais pode ser feita uma
provisória separação entre a linguagem comum e a literária43. E se a forma como é
escrito o texto aponta para uma percepção de que o objeto anunciado não pertence ao
campo da vida prática, o leitor pode usar de toda fantasia e imaginação para conceber tal
objeto.
O modo como as palavras aparecem assentadas no poema, certamente, não é o
mesmo como aparecem empregadas em situação de uso e necessidade. De fato, são as
mesmas palavras, mas de forma nenhuma possuem os mesmos sentidos. Todos os
artifícios trabalhados pelo poeta (rimas, ritmo, figuras...) são aplicados justamente com
42 NOVALIS. Pólen. Iluminuras, 1989. pág. 103 43 VALÈRY, Paul. Variedades. “Existência do simbolismo”. Iluminuras. pág.74
50
objetivo de marcar a distinção entre prosaico e poético. Ciente disso Manoel de barros
nos diz: A poesia está guardada nas palavras – é tudo que eu sei.44
As reflexões de Valèry acerca da composição poética golpeiam em cheio as
assertivas que subjazem o senso comum e fazem reformular concepções consolidadas:
“Uma obra nunca está acabada (....) e sim abandonada”45. Está difundida no coletivo a
idéia de que, por exemplo, um poema quando publicado encerra uma forma finita e
acabada, guardando em si um segredo a ser descoberto por um leitor atento.
Conseqüentemente, desvendado o “enigma” do poema, o esquecimento seria seu único
e presumível destino, visto que não haveria necessidade de perguntar o já respondido.
Caso fosse desse modo, deveríamos, então, questionar o motivo pelo qual se fazem
presentes ainda hoje obras de Homero, Cervantes, Goethe... ou o que nos tem a dizer a
poesia de Drummond, João Cabral, Guimarães Rosa, entre outros poetas tão estudados
nos meios acadêmicos.
No entanto, pensamento de Valèry mencionado acima acena para a preocupação
estética da obra de arte, tirando do centro a preocupação conteudística. Tal
descentramento desloca a percepção tradicionalista pautada na pergunta “o que isso
quer dizer?” para um outro tratamento dado à obra de arte, fazendo outras perguntas do
tipo: “por que isso está sendo dito?” e “por que está sendo dito dessa maneira?”... Se
num primeiro momento avaliava-se uma obra de arte pelo seu conteúdo, a consciência
sobre a linguagem adquirida na Modernidade redefiniu o modo de ver e produzir arte.
Muito nos esclarece Mário Faustino, em seu texto “O que é poesia?”, sobre essa
marcação entre discurso prosaico e linguagem poética. Dentre as considerações
elaboradas por esse poeta, ressaltamos aquela em que diz pulsar na poesia uma força
criadora (produtora) de realidades a partir da recriação do objeto conhecido, “batizando-
44 BARROS, Manoel de. Livro sobre Nada. Rio de Janeiro:Record. 2004 (pág.19) 45 VALÈRY. Paul. “Acerca do cemitério marinho”. In: Variedades. Iluminuras pág.74
51
o de um modo inexplicavelmente novo, tirando-o do caos em que parecia encontrar-se e
colocando-o numa ordem nova” 46. Enquanto que o prosaico repousa numa função de
comunicar, de tentar re-produzir um acontecimento (ou objeto), analisando,
descrevendo, glosando: “é prosaico o discurso sobre o objeto”47.
Torna-se oportuno citar mais uma vez uma frase de Valèry, para fundamentar
um discurso acerca do exercício poético: “O poeta, sem saber, movimenta-se em uma
ordem de relações e transformações possíveis” 48. O pensamento contido nesse trecho
refere-se ao fato de saber explorar as possibilidades dispostas no código lingüístico;
perceber todas as possibilidades que a língua oferece. Ou seja, assim como
compromissos agendados também oferecem uma possibilidade de desencontro ou de
serem desmarcados; canetas também praticam a possibilidade de não escrever; livros
foram feitos também para não serem lidos... Igualmente a essas opções pouco pensadas
no dia-a-dia, estão previstas as inoperâncias das regras gramaticais – que são na verdade
um outro modo de dispor as peças do jogo lingüístico, atribuindo mais ritmo e efeitos
visuais à escrita.
Experimenta-se, de uma só vez, todas as opções que a língua disponibiliza,
resultando na fusão de formas contraditórias. Não se coloca diante do dilema de
escolher isso ou aquilo, mas condensa numa forma isso e aquilo. Ao romper com o
paradigma da escolha, selecionando todas as possibilidades simultaneamente, é
contrariado o princípio da não contradição que rege o mundo pragmático do bem vs
mal, da virtude vs vício; neste momento, eis que nos deparamos com a presença do
absurdo – tudo que escapa a regras ou a condições pré-determinadas.
Da disposição singular dos vocábulos no poema, esbarramos com o acaso de
significações que nos lança para o exercício de livre associação de idéias, similar àquele
46 FAUSTINO, Mário. Poesia-Experiência. “O que é poesia?”. Pág. 63 47 Id. Ibidem.
52
que praticamos quando estamos perante um quadro de pintura abstrata. Toda abstração,
seja pintura ou poema, ostenta um “pode ser” ou um “como se” referente ao movimento
oscilante de mostrar e esconder. A quebra do paralelismo sintático e semântico deixa a
obra entregue à sorte de infinitas possibilidades interpretativas, guardando sempre um
oculto, uma surpresa, como numa brincadeira de lance de dados sugerida por Mallarmè.
Na dicção poética de Manoel de Barros vislumbramos a superação do
gregarismo com o cuidado de não fundar outra ordem pela inversão dos pólos. O poeta
e ensaísta A.C. Secchin nos lembra que a literatura é o lugar de transgressão dos
mandamentos cristalizados por uma tradição. Mas, ao mesmo tempo, ressalta o perigo
iminente de instaurar uma nova regra ao negar a anterior. Procurar um elemento de
oposição é cair na armadilha do discurso pautado no princípio da não-contradição, na
exclusão de possibilidades (isso ou aquilo); é afirmar uma regra pela negativa. Escreve
esse poeta-ensaísta:
contra a catequese do “politicamente correto”, contra manifestos mandamentos, a poesia é o espaço do desmandamento, território que desmonta toda previsibilidade, inclusive aquela que se disfarça em antinormativa. Nada mais inócuo: onde se lê “a”, leia-se “anti-a”; “b”, “anti-b”. Sim, porque o antinormativismo é o imprevisível com hora marcada”. 49
Com efeito, a poesia, recusando repetir (de modo servil) algo, rasura o modelo
de oposições e sugere uma realidade onde “o avesso não-simétrico” marque a diferença
entre o poético e o prosaico.
A não simetria entre o mundo pré-concebido (naturalizado) e o proposto pela
literatura favorece a construção de um outro caminho para adentrar, estar ou ser naquele
mundo. Na expressão poética de Manoel de Barros, a criação de espaços incertos onde
48 VALÈLY. Paul. “Existência do simbolismo”. In: Variedades. Iluminuras. pág.77 49 SECCHIN, Antonio Carlos. Escritos sobre poesia & alguma ficção. “Poesia e gênero literário”. pág.250
53
se possa criar sensações de realidade nos coloca em contato com novas perspectivas
sobre as coisas. Neles, há a presença freqüente de algumas figuras como: a criança e seu
comportamento amaneirado; elementos da natureza (terra, pedra, água, vento, sapo ...) e
suas imprevisibilidades; e o lixo e outras inutilidades. Essas figuras desenvolvem a
prática de “transver” o mundo formatado pelo discurso empobrecedor que ofusca a
fertilidade dos acontecimentos:
“É preciso transver o mundo. Isto seja: Deus deu a forma. Os artistas desformam. É preciso desformar o mundo: Tirar da natureza as naturalidades. Fazer cavalo verde, por exemplo. Fazer noiva camponesa voar – como em Chagal. Agora é só puxar o alarme do silêncio que eu saio por aí a desformar. Até já inventei mulher de sete peitos para fazer vaginação comigo.”50
É traço característico da poética de Manoel de Barros versar a própria poesia. No
trecho escolhido, podemos perceber a provocação suscitada em torno da tarefa do
artista. Nesse trecho, a ação de desformar encontra-se no mesmo plano que
desnaturalizar. Ambas atividades têm como proposta forçar os limites dos conceitos e
valores até conseguir excedê-los para fazer aparecer aquilo que ainda não existe.
Seguindo essa forma de pensar, o poeta nos é apresentado como um ser afetado;
inquieto no diagrama de regras prescritas; aquele que não se contenta com o mundo
reduzido a conceito (formas fixas). Essa desmedida pode ser lida no poema através das
construções: fazer cavalo verde/ fazer noiva camponesa voar, as quais contribuem para
romper os limites da razão e inaugurar uma atmosfera imaginativa, livre de qualquer
restrição.
50 BARROS, Manoel. “As lições de R.Q.”. In: Livro sobre Nada. (pág. 75)
54
Esse alargamento das fronteiras, como lembrado pelos versos de Manoel de
Barros, acontece sob o efeito do questionamento, do pensamento. Esse gesto nasce da
vontade de querer dizer o mundo de maneira singular, porque, sobretudo, a palavra
impõe um estado de dormência, imobilidade, conclusão e fechamento. Então, recorre o
poeta ao avesso não-simétrico da palavra, a despalavra: aquilo que faz aparecer sem
nomear (aprisionar num conceito); permite que o vazio, a escuridão e o silêncio se
manifestem no poema. Dessa forma, parece termos encontrado o lugar onde as
perguntas sem resposta possam ser ecoadas sem hesitar; não para vislumbrar hipóteses,
mas para expandir seu silêncio. Leiamos:
Agora só espero a despalavra: a palavra nascida para o canto — dede os pássaros. A palavra sem pronúncia, ágrafa. Quero o som que ainda não deu liga. Quero o som gotejante das violas de cocho. A palavra que tenha um aroma ainda cego. Até antes do murmúrio. Que fosse nem um risco de voz. Que só mostrasse a cintilância dos escuros. A palavra incapaz de ocupar o lugar de uma imagem. O antesmente verbal: a despalavra mesmo.51
51 BARROS, Manoel. Retrato do artista quando coisa. Poema 16. (pág. 53)
55
4. Palavras e silêncios
Aqui o silêncio tem boca E as flores dão acordes de sangue.52 ________
Com as palavras se podem multiplicar os silêncios.53
Ao penetrar no mundo maravilhoso da escrita barreana, percebe-se que ele é
criado pela disrupção, pela descontinuidade ou pela descontextualização de elementos
cotidianos. De imediato, são confundidas as intenções deliberadas de encontrar um
sentido norteador até um referente, o que seria o objetivo de toda comunicação. Em vez
de um discurso, o silêncio. Eis ai o que há de instigante e, ao mesmo tempo, penoso
quando se pretende discorrer acerca dos arranjos poéticos compostos por Barros. Trata-
se de uma literatura entre a escrita e o silêncio. Na medida que escreve, silencia; e
quando silencia expressa. É nesse jogo que podemos visualizar a conduta subversiva
dessa poesia que faz uso de uma linguagem singular para perturbar um sistema de
valores. Subverter os valores é mostrar que existem outras possibilidades, não
contempladas pelo sistema, de agir e interagir no/com o mundo; é apelar para a
diversidade da vida.
A dicção poética de Barros está associada à convergência simultânea de várias
possibilidades de realização que a língua oferece, a fim de sobrepor sua própria
expressão ao sentido (impessoal) das palavras e não ser imitador de nenhum estilo nem
de ninguém. É tarefa prevista na linguagem utilitária reconduzir nossas experiências ao
conjunto de correspondências iniciais entre o signo e significações. Mesmo que a
intenção seja inovar, todo discurso faz automaticamente um movimento de retorno ao
52 BARROS, Manoel de. Para encontrar azul eu uso pássaros: O Pantanal por Manoel de Barros. Curitiba; Clichepar Ed., 1999 53 idem. O Fazedor de amanhecer. Rio de Janeiro; Salamandra, 2001
56
convencional da relação de significações-chave do signo54. No entanto, aparece como
preferência na esquiva do código a tarefa de confundir, causar interferência na ligação
direta de significâncias usando o próprio código, como pratica Manoel de Barros.
Nessas reflexões, a poesia é um fenômeno de interferências, criador de intervalos onde
possa transportar, cambaleante, seus sentimentos ou idéias:
Escrevo o idioleto manoelês archaico¹ (idioleto é o dialeto que os idiotas usam para falar com as paredes e as moscas). Preciso de atrapalhar as significâncias. O despropósito é mais saudável do que o solene. (Para limpar das palavras alguma solenidade – uso bosta.) Sou muito higiênico. E pois. O que ponho de cerebral nos meus escritos é apenas uma vigilância pra não cair na tentação de me achar menos tolo que os outros. Sou bem conceituado para parvo. Disso forneço certidão. 55 ¹Falar em archaico: aprecio uma desviação ortográfica para o archaico. Estâmago por Estômago.
Celeusma por Celeuma. Seja este um gosto que vem de detrás. Das minhas memórias fósseis. Ouvir
estâmago produz uma ressonância atávica dentro de mim. Coisa que sonha de retraves.
Escrever para calar, paradoxalmente. Eis a experiência perversa no limite da
palavra realizada nos poemas escritos por Barros: o que fica quando é retirado o
referente do signo? ou o que existe além da relação significante/significado? São
interrogações provocadas a partir de inquietações frente ao “natural” que a familiaridade
demasiadamente longa com as palavras nos leva a creditar. Sem o significado, a
linguagem não está mais a serviço de um objeto o qual deveria representar, tornar
presente sua ausência. O que fica então é uma tagarelice – uma fala à toa, sem
propósito, pela livre associação de assuntos – composta por frases desencontradas numa
encenação do vazio na linguagem, divorciado de qualquer significação, até mesmo
implícita. Como nos alerta Barthes, “nada mais infiel do que uma escrita branca”56, pois
o que é produzido expressamente para combater o signo ainda joga no sistema de
54 MERLEAU-PONTY, Maurice. A prosa do mundo.(pág. 15) 55 BARROS. Livro sobre nada. 11ª edição. Rio de janeiro: Record, 2004. (pág. 21)
57
paradigmas e, por isso, rapidamente é recuperado como signo. É na inoperância da
linguagem que somos surpreendidos pelo silêncio, o que nos remete rapidamente à frase
usada como epigrafe: com as palavras se podem multiplicar os silêncios.
Para nos auxiliar em tais reflexões acerca da tensão falar/silenciar, recorremos
aos pensamentos de Barthes, que, em seu livro Aula, discorre saborosamente sobre o
fascismo da língua: “não é impedir de dizer, é obrigar a dizer”57. Se a língua é o que,
querendo ou não, faz falar uma ideologia qualquer, a poesia moderna reclama o silêncio,
o direito de não querer dizer; de dizer nada. O peso da sintaxe impõe um modo de ser,
um sujeito, uma subjetividade, embora a força opressora de que falamos não apareça
perante o olhar cotidiano e acostumado. Portanto, pela opressão generalizada, não é
permitido ser um outro que não seja aquele previsto no momento da escolha
paradigmática da estrutura da língua.
Em seu texto, Barthes chama atenção para enganosa liberdade que temos ao
manipular o código da linguagem; também põe em evidência a atração (o recolhimento)
pelo estereótipo que tudo conduz para o lugar-comum: “nunca posso falar senão
recolhendo aquilo que se arrasta na língua. (...) sou ao mesmo tempo mestre e
escravo”58. O estereótipo é ofertado e encontra-se a nossa disposição tão logo queiramos
fazer uso dele com objetivo de tornar comum um pensamento. Mas nessa facilidade é
que reside a ameaça dos signos já apresentados como prontos: ao comunicar, cairmos na
armadilha e quanto mais falarmos para tentar sair, mais nos comprometemos. Sofremos
de uma angústia cuja força dramática pode ser associada ao inseto que cai na teia
armada pela aranha: na medida em que se debate visando libertar-se, vai sendo cada vez
mais envolvido até perder as forças ...
56 BARTHES. “O silêncio” . In: O Neutro. pág. 58 57 Idem. Aula. 9ª edição. 2001. pág 14 58 Idem, ibidem .
58
Nessa investigação sobre linguagem e poder, faz-se interessante pensar o uso do
código dentro de um grupo como item que configura uma individualidade. A realização
da fala projeta a categoria de sujeito e abriga seu desejo de ser reconhecido na sociedade
como integrante que compartilha da mesma convenção. Assim, aparentemente, na
sociedade ocidental, mais importante do que o conteúdo da fala é a própria ação de
falar. O falante executa a função fática da linguagem, cujo emprego das palavras não
cumpre o objetivo principal de transmitir informações e, sim, de marcar uma posição na
situação da fala, a de receptor ou emissor. Daí, o uso de frases feitas, vazias de
conteúdo, só para atrair a atenção do outro e exibir seu poder de fala.
A problemática de uma língua, então, ultrapassa a vontade de querer comunicar
e tange o desejo de querer ser. Quem fala pode ser facilmente rastreado pelo seu
discurso cujas informações podem ser acessadas, traçando um perfil a partir da escolha
paradigmática (sempre isso ou aquilo). Esta, quando analisada, não assinala apenas a
opção feita, como também marca aquilo que foi excluído na instalação do paradigma.
Não existe fala sem mutilação porque qualquer interferência na linguagem elimina
outras possibilidades de realização. Na tentativa de esquivar-se da tirania da afirmação,
o silêncio é o que congrega simultaneamente as várias possibilidades de realização da
fala. Na visão do poeta, a poesia é a escrita que não explica e diz nada porque diz todas
as coisas ao mesmo tempo:
V Escrever nem uma coisa Nem outra – A fim de dizer todas – Ou, pelo menos, nenhumas. Assim, Ao poeta faz bem Desexplicar – Tanto que escurecer acende os vagalumes.59
59 BARROS, Manoel de. Gramática Expositiva do Chão (Poesia quase toda). pág. 298
59
Assim, numa outra instância da linguagem, a dicção poética de Manoel de
Barros desvia da ditadura da afirmação difundida no discurso (a falação informativa) ao
escrever livros sobre nada. Mas, sua intenção não é dizer o nada metafísico ou talvez
não queira dizer nada, porque nesse caso sua pronunciação estaria sob o jugo da
significação de leitores acostumados a perguntar “o que isso quer dizer?”. Prova de que
suas intenções são outras é o fato de estarmos falando de seus textos, formulando
hipóteses, escrevendo sobre eles. Na verdade, trata-se de um modo de pensar a
sociedade e seus valores, adotando para isso a metodologia de exposição decorativa dos
objetos que perderam sua utilidade (em especial as palavras).
Na expressão poética de Barros, a linguagem é a própria coisa a ser apresentada,
de modo que o princípio formador da frase está calcado na exploração do corpo fônico
da palavra, na associação sonora entre elas na busca de uma melodia, como está escrito
num dos fragmentos do Livro sobre Nada (1996), onde se observam intensos exercícios
de metapoema: “o que sustenta a encantação de um verso (além do ritmo) é o ilogismo”.
Tal pensamento se repete na obra de Barros ao longo da travessia pela linguagem,
permitindo tomarmos o silêncio da escrita – dizer nada – como um das linhas mestras
que perpassam seu conjunto.
Escrever para dizer nada, atividade inútil das palavras, é uma postura já presente
em seus poemas desde antes. Tem presença marcada no livro Concerto a céu aberto
para solos de ave, publicado em 1970, a começar pelo título da obra até os fragmentos
lidos em suas páginas: “Vi um incêndio de girassóis na alma de uma lesma” (p21).
A poesia diz o que as palavras calam: o silêncio. Alarmado pela articulação de
uma linguagem inusitada, o silêncio na literatura barreana pode sugerir expressão do
pensamento puro, ainda sem o aparato conceitual da lógica para tornar comunicável
uma idéia ou sentimento. Outro ponto marcante da escrita barreana é o poema
60
“Despalavra”, publicado no livro Retrato do artista quando coisa, no qual estão
impressos seus pensamentos literários, entre eles a exaustão pela palavra funcional.
Aqui, como em outros momentos, fica evidente a busca por uma outra instância da
palavra, capaz de acompanhar o dinamismo da imaginação:
Despalavra 60
Hoje eu atingi o reino das imagens, o reino da despalavra. Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidades humanas. Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidades de pássaros Daqui vem que todas as pedras podem ter qualidades de sapo. Daqui vem que todos os poetas podem ter qualidades de árvore. Daqui vem que os poetas podem arborizar os pássaros. Daqui vem que todos os poetas podem humanizar as águas. Daqui vem que os poetas devem aumentar o mundo com suas metáforas. Que os poetas podem ser pré-coisas, pré-vermes, podem ser pré-musgo. Daqui vem que os poetas podem compreender o mundo sem conceitos. Que os poetas podem refazer o mundo por imagens, por eflúvios, por
afeto.
Entre a comunicabilidade e a inutilidade é que opera a Despalavra. É necessário
antes reconhecer a funcionalidade para em seguida realizar a perda ou a retirada da
condição de palavra. Não faz mais referência à realidade imediata porque emperra a
dinâmica da significação, pois o significante aparece em destaque, quando antes seria
papel reservado ao significado. Dessa forma, tal como as imagens, a Despalavra apenas
sugere realidades. É oportuno comentar o uso do prefixo des-, além de apontar o
contrário de uma afirmação já expressa no termo (como no vocábulo desobediente,
onde lemos o contrário, ou seja, o outro lado de ser/portar-se com obediência), também
assinala para o deslocamento de algo retirado de seu lugar canônico como na própria
expressão “despalavra”. Quando dizemos que a poesia de MB não quer significar nada é
porque, na verdade, as palavras empregadas não fazem oposição a nenhuma outra forma
61
para estabelecer significado (uma coisa existe por oposição a outra: papel é papel
porque não é caneta).
“Uso as palavras para compor meus silêncios. Não gosto das palavras fatigadas de informar. Dou mais respeito às que vivem de barriga no chão tipo água pedra sapo ” 61
Em literatura, chamamos de imagem o arranjo de palavras que se desviam do
uso normal e mais comum. Pela figura pode ser problematizada a palavra em situação
de uso, a começar pela relação de equivalência engendrada entre significante e
significado. É importante ressaltar que equivalência não significa o mesmo que
igualdade, no sentido de identidade de natureza constitutiva, até porque testemunhamos
a conjunção de objetos de ordem diferente: concreto (seqüência fônica) e abstrato
(idéias). A primeira acepção da palavra se apóia no exercício de codificar o ausente.
Conseqüentemente, o sucesso de sua tarefa dependerá de um processo de decodificação,
ou seja, uma operação de ligar (construir elos) a palavra ao referente.
O impulso de linguagem gerador do texto literário fecunda imagens prenhes de
significâncias múltiplas e ambíguas, valendo por si só sem necessitar de explicações.
Essas imagens suscitadas no poema suprimem a distância entre significante e
significado eliminando a equivalência de idéias. Seguindo esse raciocínio, a escrita do
poema faz acontecer uma realidade, produzida no momento da leitura sem firmar com
isso um pacto de fidelidade com o mundo fora do poema.
– Imagens são palavras que nos faltaram. – Poesia é a ocupação da palavra pela Imagem. – Poesia é a ocupação da Imagem pelo Ser.62
61 idem. Memórias Inventadas – A infância. São Paulo: Ed. Planeta, 2003 62 BARROS, Manoel. Gramática expositiva do chão. pág 296
62
Mas o que é a palavra quando perde a função de ícone do objeto? Retomamos
aqui uma pergunta feita anteriormente para refletir sobre a palavra articulada no texto
literário, no nosso caso, o poema. Aí, a palavra é articulada para compor imagens que,
ao contrário da função mediadora, guarda relações imediatas de analogia, resgatando a
instantaneidade do pensamento expresso com a experiência, como ilustram as
considerações de Alfredo Bosi em seu texto “Imagem, Discurso”:
A imagem é um modo da presença que tende a suprir o contato direto e a manter, juntas, a realidade do objeto em si e a sua existência em nós.” (p.19) A oração não se dá toda, de vez: o morfema segue o morfema; o sintagma, o sintagma. E entre a cadeia das frases e a cadeia dos eventos, vai-se urdindo a teia dos significados, a realidade paciente do conceito. (p.30)
Refletindo juntamente com Merleau-Ponty63, a fim de propor uma trama de
conhecimentos, nos conscientizamos de que a comunicação de qualquer conteúdo
implica a demonstração seriada e seqüencial até a substituição completa por um sinal
convencionado que o abrevia. E quando a linguagem cumpre inequivocamente sua
função designadora de objetos e acontecimentos, idéias ou relações, ela parece ser
consumida pelo significado que carrega. Sua plenitude dura alguns instantes até que não
tenha nada mais para mostrar. Em Merleau-Ponty nos esclarecemos:
Exprimir não é então nada mais do que substituir uma percepção ou uma idéia por um sinal convencionado que a anuncia, evoca ou abrevia. (p.23)
A imagem composta por palavras (a despalavra ou o desnome na escrita
barreana) não revela, nem demonstra ou exprime. Com efeito, ela anuncia a significação
de uma só vez, de modo imperativo, sem necessidade de decodificação ou mediação até
63
um referente. No entanto, o símbolo só existirá para o leitor que desconfia da
superficialidade das frases escritas no papel. Para ele, se insinua o maravilhoso que se
agita nas figuras e lhe é destinado, sob a condição de não se deixar cegar pelo sentido
imediato. Ao consultar os escritos de Blanchot para reforçar estas considerações com
suas pesquisas sobre o tema, conferimos que a escrita por imagens nos conduz “àquilo
que é outro, aquilo que parece diverso de todos os sentidos possíveis”64.
Em seus livros, Manoel de Barros faz uso de imagens constituídas de palavras
que perderam a função de comunicar e também de desenhos, imagens visuais, o que
coaduna com as reflexões provocadas: a imagem é a própria coisa a ser anunciada.
Assim, a seqüência de palavras que funcionam como uma unidade reforça a valorização
do dinamismo infindo próprio do visual, contraposto à imobilidade dos conceitos após
ser decodificado:
Concerto a céu aberto para solos de ave.
Nesse poema, Barros sublinha o “despreparo” das palavras cursivas para falar o mundo
e por causa disso é que apela para imagens (de palavras ou desenhadas) com recurso.
63 MERLEAU-PONTY, Maurice. “O fantasma da linguagem”, In: A prosa do mundo. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. pág 28 64 BLANCHOT, Maurice. Livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2004
64
Enriquece a leitura do poema mais um comentário feito por Barthes, em Mitologias,
acerca das qualidades da imagem:
A imagem é certamente mais imperativa do que a escrita, impõe a significação de uma só vez, sem analisá-la, sem dispensá-la. (p.132)
Poesia se confunde com a vida, com a natureza, porque para elas não há
explicação ou aplicação de uma teoria capaz de abranger toda a complexidade dos
fenômenos. O que conhecemos, talvez, dos acontecimentos na natureza não é mais que
um conjunto de descrições partida de observações, constatações de evidências que se
repetem sob determinadas circunstâncias. O que é dito pelas ciências pode até está
correto mas não quer dizer que é verdadeiro ou revelador da essência do ser que se
apresenta. Para provocar esse debate, lembramos de um dos fragmentos de Manoel de
Barros, em que o poeta destaca as limitações da ciência perante os fenômenos da
natureza: “a quinze metros do arco-íris o sol é cheiroso./ A ciência ainda não pode
provar o contrário”65. Nesse pensamento, lemos a dificuldade humana para tratar do
que não se compreende e, por essa razão, não pode ser carregado na linguagem do dia-
a-dia. Resta ao homem a literatura (e as artes em geral) como última possibilidade para
dar existência ao que não pode ser dito: o vazio, a morte, a vida, o silêncio...
Dado o movimento que é inerente a todos as coisas, não temos recursos sequer
para afirmar que aquilo “é”, mas apenas conseguimos dizer que aquilo “se torna” em
outros diante de nossos olhos, sem cessar. Qualquer comentário formulado é da ordem
do parcial e do momentâneo, já que não só o objeto observado sofre mudanças, mas
também aquele que o observa. Isso nos faz pensar que a pronunciação de um discurso
participa de conjuntos de referencialidades e por tal motivo carrega, elipticamente, a
expressão “para mim”, a qual iniciaria cada comentário (para mim, tal coisa ...). Desta
feita, lembramos mais uma vez a idéia de que o homem é a medida de todas as coisas
65
por ele produzidas, uma vez que estas guardam estreitas relações com as variações no
espírito.
Nesse sentido, o movimento íntimo para “outrar-se”, observado nos poemas
arranjados por Barros, reflete o desejo de ter várias perspectivas simultâneas para
perceber melhor o mundo. O constante movimento torna anacrônico o conhecimento e
nos coloca na mesma situação que a dos animais, árvores, pedras, águas ... cada qual
com seu modo peculiar de interagir com mundo corpóreo, submetido ao nascimento, à
transformação ou à morte conhecidas por meio das sensações.
65 BARROS, Manoel de, Para encontra o Azul eu uso pássaros: O Pantanal por Manoel de Barros
66
5. Absurdos de poesia
Será que os absurdos não são as maiores virtudes da poesia? Será que os despropósitos não são mais carregados de poesia do que o bom senso?66
O que para muitos é visto como absurdo e despropósito, no modo “torto” pelo
qual o poeta pantaneiro concebe as coisas, aparece como exercício de linguagem, para
explorar a língua nos níveis fônico, sintático e semântico. Dessa experimentação,
surgem imagens como: “carregar água na peneira”, “guardador de águas”, “catar
espinhos n’água”, entre outras. Classificar de absurdo tais composições assinala os
limites do mundo delineado pela razão. Por que a poesia não pode ser alegre, provocar o
riso?
A experiência com a linguagem coloca sob suspeita a escrita linear de forma fixa
e calculada, lembrada como “receita” a ser seguida para alcançar resultados. A
utilização da receita deixa transparecer a sensação de insegurança em presença do
inesperado e do imprevisto acionados pela experiência. Manoel de Barros lança-se em
aventuras com as palavras e o medo de errar não emperra a dinâmica da criação e
expressão poética. No entanto, isso não significa maior facilidade para compor, já que
agora não há mais o momento exato de colocar ponto final.
O absurdo repousa nas palavras e se agita na linguagem quando é rompido
encadeamento lógico da objetividade na comunicação. Ele se confunde com o
imprevisto, o casual, o fortuito, o acaso... escapando da previsibilidade do discurso
automático. Pelo absurdo pode-se manifestar, ainda que temporariamente, a diferença e
o singular das coisas não contempladas pelo olhar acostumado. Pois, tão logo caia no
sistema de oposição, transforma-se em signo e perde sua força. Eis que o absurdo
67
concentra a expressividade daqueles que estão sempre a redescobrir o mundo: loucos,
crianças e poetas.
No entanto, em nossa sociedade, o rótulo de absurdo tem denotações pejorativas
limita-se ao gesto humano que não se dobra ao peso das forças coercitivas. Tudo que
extrapola a normalidade fica confinado à margem do sistema. Nos habituamos a olhar
imagens prontas e, conseqüentemente, perdemos a desenvoltura do olhar curioso que
percorre as superfícies para descobrir novidades. Temos constantemente o olho
desviado para letreiros luminosos, símbolos chamativos, cartazes de cores-vivas, todos
esses artifícios empregados ao mesmo tempo numa confecção para persuadir o
espectador. Quando então nos espantamos com o maravilhoso criado numa paisagem
real fica evidente que não reconhecemos mais a estranha potência que se agita na
natureza. Assim, o absurdo, o maravilhoso, a inumanidade... são instâncias que revelam
a espantosa cegueira daquele que é cego porque enxerga.
Os arranjos poéticos compostos pela suspensão da rigorosidade sintática iniciam
um movimento em direção ao tempo remoto da linguagem, quando esta era mais rimada
e mais expressiva, no período em que a criança brinca com a linguagem, inventando
novas palavras e outros usos para elas partindo de associações etimológicas ou por
sugestões fônico-semânticas. Na concepção de MB, poesia é como “exercícios de ser
criança”, quando acontece a infantilização da linguagem funcional, que foi destituída do
seu poder encantatório e criador. Quanto mais expressiva, mais viva, mais espontânea,
tanto mais desautomatizada e menos coerente será a linguagem. A força expressiva das
sensações tão característica da linguagem infantil não teria veículo adequado na sintaxe
fria e pouco flexível do grande uso. Talvez, por isso, predomine no curso da escrita
barreana o fluir do pensamento, a sintaxe do imaginário, como declarado pelo poeta em
entrevista já mencionada aqui:
66 BARROS, Manoel de. Exercícios de ser criança. 1999
68
“a poesia é um fenômeno de linguagem, não de idéias. O que faço é obedecer à minha linguagem. Agora, não sou um homem de razão, mas da sensibilidade. O poeta é um sujeito que não sabe das coisas. Não sei explicar, mas desexplicar.”
Assim se mostra a poesia barreana: caracterizada por profusões visuais e
composta de imagens que ficam em estado puro na mente de quem as lê, porque não
podem ser dissolvidas pela prática decodificada de mensagens. Mesmo terminada a
leitura, tais imagens continuam pulsando na memória e pervertem o uso funcional da
palavra: não há mais um referente o qual seria substituído na sua ausência pelo signo
lingüístico. É o que acontece quando lemos fragmentos como “Cheio de vogais pelas
pernas vai o caranguejo soletrando-se”67, em que percebemos a investida ao resgate do
poder criador da palavra em originar mundos. E, se cria novos mundos, é com objetivo
de provocar reflexões sobre aquilo que nos caracteriza como seres humanos: nossos
sentimentos e dúvidas, emoções e perplexidades, enfim, todas as particularidades
relativas ao fato de estarmos vivos. Conforme escreve o poeta: A terapia literária
consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos
desejos.68
Quanto a isso, não é difícil associar seu estilo à estética surrealista (meados do
século XX) que rompeu com a acepção de homem defendida pela racionalidade que se
esforçava para vê-la em atividade num limitado número de situações. Na contribuição
de Gilberto Mendonça Teles para os estudos dos movimentos de vanguardas,
entendemos que o Surrealismo promoveu “a emancipação total do homem, o homem
fora da lógica, da razão, da inteligência crítica, fora da família, da pátria, da moral e
da religião – o homem livre de suas relações psicológicas e culturais”69.
67 BARROS, Manoel de. Concerto a céu aberto para solos de ave. pág. 52 68 Idem. Livro sobre Nada. Rio de Janeiro: Record, 2004. pág. 70 69 TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro. 5 ed. Petrópolis: Vozes. 1982
69
A atmosfera maravilhosa (a realidade dos sonhos e devaneios) assiste à
inoperância da lógica fundamentadora da ordem dos códigos ao mesmo tempo em que
ensaia a miséria humana, ou seja, a destituição de valores sociais, sem os quais o
homem volta a se igualar às pedras, árvores, animais... Num passeio pelos textos de
Manoel de Barros, nos deparamos com personagens que aparecem infantilizados
(Bernardo da Mata, Cabeludinho e outros) e assumem comportamentos débeis, numa
investida para redescobrir o homem primitivo, ainda não maculado pela sociedade70.
Desde o início da sua trajetória de escritor, em 1937, com a publicação do livro
“Poemas Concebidos sem Pecados”, já aparecem marcados essa inclinação para as
coisas sem importância na sociedade e o uso de uma sintaxe que se aproxima da
modalidade da fala. Nessa obra inaugural, o título traduz para o leitor a expressão de
desejos na forma de poemas, num estado singular de manifestação, driblando a tirania
da educação ou dos “bons princípios”. Esse primitivismo de que falamos na poesia de
MB não se confunde com ingenuidade ou bondade da alma humana. Trata-se antes da
espontaneidade do pensamento como artifício para ver o estado inominável das coisas.
Encontramos aqui mais um ponto de convergência com a arte surrealista, tal como
definida por Breton no manifesto de divulgação, do qual destacamos:
SURREALISMO, nm. Automatismo psíquico pelo qual alguém se propõe a exprimir seja verbalmente, seja por escrito, seja de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento, na ausência de qualquer preocupação estética ou moral.71
Numa sociedade fundamentada sobre o mito do progresso e da prosperidade, o
trabalho, a funcionalidade, a utilidade, toda ocupação produtiva torna-se indispensável e
70 TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro. 5 ed. Petrópolis: Vozes. 1982 71 idem, ibidem.
70
ganha status dignificador do homem. Por oposição, qualquer fator que ameace a
edificação do progresso está sujeito à intervenção de forças reguladoras e sanitaristas,
que se encontram difundidas nos gestos do dia-a-dia. As expressões formuladas por
Foucault quando discorre sobre essas idéias marcam a associação entre corpo e poder:
“biopoder” e “capilares da sociedade”. É no corpo social que o poder se manifesta.
Sem pretender um aprofundamento sobre o assunto, lembro, para ilustrar meu
pensamento, os sete pecados capitais outorgados pela igreja, ainda na Idade Média com
o objetivo de subjugar o organismo humano. Luxuria, cobiça, inveja, gula, ira, vingança
e soberba são nomes atribuídos aos gestos demoníacos do corpo entregue ao excesso e à
espontaneidade do desejo. O controle sobre essa energia libertina, ao contrário do que se
pensa, não tem o propósito de extingui-la; oferece maior benefício para a prosperidade
da sociedade a domestificação de tal energia que será convertida em combustível para a
produtividade.
Ao estudar a dinâmica do poder nas sociedades contemporâneas, Foucault o
compreende como potência disseminada no tecido das relações sociais da sociedade e
nele circula, sem exercer uma centralidade ou o direcionamento de um dominante para
um dominado. Dessa forma, o poder não está em um único lugar, mas percorre vários
lugares ao mesmo tempo, configurando uma rede de relações, estruturando-se a partir
das microrrelações que se constituem e operam em diversos âmbitos. É aceitável,
portanto, que o poder seja um dos estruturadores das relações sociais. A semelhante
manifestação dissimulada do poder, Foucault denomina “capilares”.
Trata-se (...) de captar o poder em suas extremidades, em suas últimas ramificações, lá onde ele se torna capilar; captar o poder nas suas formas e instituições mais regionais e locais, principalmente no ponto em que, ultrapassando as regras de direito que o organizam e delimitam, ele se prolonga, penetra em instituições, corporifica-se em técnicas (...)72 (Foucault, p. 182).
72 FOUCAULT, Michael. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2003
71
Ele é mais bem entendido através de suas práticas e das relações que dele
surgem, implicando uma conexão estrutural com a lógica produtiva da circulação. Desse
modo, o poder não pode ser visto como estático e encontra respaldo na dinâmica da
produção. Ao estabelecer-se sobre uma rede de relações, cria uma cadeia e, portanto,
circula sobre ela. Nesse sentido, mais interessante ainda se torna o fato de que, ao
circular, não fica nas mãos de alguém (ou de alguns), implicando uma conexão
estrutural com a lógica produtiva da circulação. Como acontece com as relações de
troca dos produtos, a posição dos próprios indivíduos, em relação ao poder, tende a se
alterar, mesmo que somente a partir de um risco calculado: ora eles estão dominando,
ora são dominados. Portanto, "o poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles”
(Foucault, p. 183).
Assim, o corpo, usina de força que move a engrenagem da sociedade ocidental,
por anos a fio vem sendo disciplinado e seus gestos educados através da flagelação
carnal e espiritual. O corpo torna-se prisioneiro de valores forjados por instituições
sociais no intuito de moldar, regular, acalmar os sentidos, dando a eles uma roupagem
apresentável ao meio social.
72
6. Um corpo estranho
“no que o homem se torne coisal – corrompe-se nele os veios comuns
do entendimento”73
Uma das temáticas pelas quais podemos percorrer os escritos poéticos de
Manoel de Barros refere-se ao corpo tocado pela poesia. Diferente do corpo social que
possui valor mercadológico por ser fonte de energia motriz para as engrenagens da
sociedade, trata-se de um corpo que não serve e nem é servido, abandonado à potência
de vir a ser, despido de razão. Logo, o corpo inventado na poesia é um corpo “à toa”,
fora do paradigma útil/inútil.
Diferente de outras literaturas que escrevem corpos externos (do outro ou do
próprio artista), refletimos aqui sobre uma produção literária lembrada por rascunhar
corpos que são delineados pelos sentidos. Quase sempre, sabe-se da existência de um
corpo porque chegam até nós, leitores, relatos de sensações experienciadas. Bernardo da
Mata, um dos seres que habita a poesia de Manoel de Barros, é composto de sensações
primitivas (sem afetação do meio social) oriundas do contato com o mundo e, por isso,
constantemente retomado em vários poemas com outras existências: árvore, pedra,
animais... Sua estrutura é frágil porque é vulnerável a variações do estado de espírito. A
nossa existência é de natureza encarnada e não há outra possibilidade de conhecermos,
estarmos ou discutirmos o mundo a não ser munidos de nossos corpos. Tais idéias
podem ser arrumadas na frase escrita por Merleau-Ponty nos escritos de 1948: "Não
temos um corpo, somos incorporados"74.
73 BARROS, Manoel de. “Guardador de águas”. In: Gramática expositiva do chão ( poesia quase toda). (P 299) 74 MERLEAU-PONTY, Maurice. Conversas-1948. São Paulo: Martins Fontes, 2004. pág 45
73
Como podemos ver, o organismo inventado nos poemas de Manoel de Barros
está aquém das denominações de indivíduo, sujeito, cidadão, que são apenas variações
do corpo propriamente dito, abordado por um ângulo particular que pode ser político,
espiritual, biológico... Trata-se de um elemento polimorfo que absorve qualquer
possibilidade de representação, inviabilizando a consumação de um retrato-falado. Sua
materialidade expressa antes um esboço de múltiplas potencialidades do que uma
formalização precária dessa potência. Assim, tal organismo pertence ao tempo futuro,
pois é uma projeção daquilo que pode ser produzido mas ainda não existe.
Se essas criações poéticas pretendem realizar algum feito, é tão-somente
inquietar nosso estar no mundo, apresentar outras vias de acesso ao plano do real. Desse
modo, sem pretender fixar normas, a poesia barreana nos convida a repensar o lugar
institucional do corpo e o que ele pode realizar. Nessa expressão poética, é desenhado
um corpo estranho, alheio às maneiras: o corpo coisal.
No que o homem se torne coisal—, corrompe-se nele os veios comuns do entendimento. Um subtexto se aloja. Instala-se uma agramaticalidade quase insana, que empoema o sentido das palavras. Aflora uma linguagem de defloramentos, um inauguramento de falas Coisa tão velha como andar a pé. Esses vareios do dizer.75
Nesse poema, deseducar os sentidos parece ter sua origem no esgotamento de
um modelo adotado para se relacionar com o mundo. Diante desse cansaço, surge o
desejo de outras experiências e descobertas, o que exige retornar ao estágio anterior à
razão ou a moral, de onde possa contemplar o mundo em sua potência criadora. A
linguagem despe-se de toda a lógica e volta ao seu estado primitivo com suas melodias
e improvisações de imagens soltas e confusas, tal como a língua de uma criança. O que
74
chamamos de subversão do código instrumentalizado, para Manoel de Barros, não é
mais do que um regresso às origens, a primeira linguagem.
No exercício efetivo das funções corporais não há vez para detalhes,
aprofundamentos ou reflexão. Tudo se passa na superficialidade do automatismo. O
questionamento cede lugar à aceitação e acomodação. Ficamos isolados no
instantaneismo e na fugacidade dos valores dos objetos. No poema transcrito do livro
Cantigas por um passarinho à toa (2003) lemos a tarefa de atribuir outras dimensões a
existência das coisas. O estado de à toa oferece ao pensamento a oportunidade de
deambular sem ter que se cansar para produzir razão. A essa errância do pensamento
chamamos imaginação. No pequeno poema, faz-se notar a preocupação do poeta em
buscar outros ângulos para ter novas percepções sobre as coisas já conhecidas:
Do alto de uma figueira onde pouso para dormir posso ver os vagalumes: são milhares de pingos de luz que tentam cobrir o escuro
Para perceber o mundo em sua singularidade ou dizer a intimidade é preciso
antes despir os signos lingüísticos de seus significados convencionais, a fim de evitar
que o seu peso impeça a expressividade do espírito lírico. A escrita barreana aprecia
discutir aspectos formais da criação poética, mais do que se preocupar com o caráter
representativo da realidade. Daí, o poeta inventar a seu modo um novo enredo para cada
coisa que compõe seu cotidiano. A redistribuição dos papeis é transitória e implica uma
experiência única que desestrutura o lugar comum das classificações.
75 Barros, Manoel. “Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente nada.” In: Gramática expositiva do Chão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990. pág 276
75
De modo sutil, o fazer literário se desembaraça dessa liberdade prescrita num
conjunto de códigos, no sentido de “poder de agir, no seio de uma sociedade
organizada, segundo a própria determinação, dentro dos limites impostos por normas
definidas”, como marca o dicionário Aurélio. No exemplo de MB, a poesia não quer ser
livre; ela inventa sua própria liberdade no esvaziamento semântico das palavras,
deixando-as abandonadas à existência estética. Percebemos que significante poético está
vazio, oco de significado, porque ele aparece justaposto a outros de maneira inusitada.
O vazio tão apreciado pelo poeta pantaneiro surgirá como possibilidade de manifestar a
liberdade poética em todo seu mistério e desmesura. Tal como percebido no poema O
menino que carregava água na peneira, “os vazios são maiores/ e até infinitos”76.
Forjar sua própria liberdade sublinha na poética barreana um contraste com o
racionalismo exacerbado que move a sociedade capitalista. Ela mostra afinidade com os
atos de livre associação normalmente atribuídas ao universo infantil e ao estado
delirante da alma, por onde vaza a essência, o que há de naturalmente humano. O termo
vazar, neste caso, lembra conotativamente a pressão realizada por um líquido a fim de
escapar do represamento; forçar os limites impostos pelo recipiente para escorrer sem
direção e sem forma. Na construção desse pensamento, podemos dizer que a
manifestação da essência humana depende menos de qualquer causalidade que
inspiração e encantamento.
Pela idéia sugerida no verbo vazar, foi também que Manoel de Barros forjou
sentidos para os vocábulos poeta e poesia. Tal associação se inicia no que se refere à
liberação indesejada de um determinado conteúdo represado. Poeta e poesia encenam
corpos rebeldes à procura de experiências alternativas, zerados de ensinamentos e
regras.
76 BARROS, Manoel de. “o menino que carregava água na peneira”. In: Exercícios de ser criança.Rio de Janeiro: Salamandra, 1999
76
Poesia, s.f. (....) Espécie de réstia espantada que sai pelas frinchas de um homem
*** Poeta, s.m. e f. (....) Espécie de vazadouro para contradições77
No modo de ver do poeta, crianças, loucos, bêbados e pessoas esquisitas são
aptas a vazadouro porque transcendem os limites impostos ao corpo. Por uma frincha
surge o inesperado, semelhante a uma semente que germina por uma fresta no solo, a
água que vasa pela rachadura e uma criança que nasce por entre a fenda da vagina:
movimentos de deixar vir à tona provocam a quebra da linearidade do terreno e rompem
com a homogeneidade pautada no tripé início-meio-fim. Instaura-se o espaço do evento
fortuito onde é possível pensar “sem apertar o botão”78.
Como sugere o poeta, num poema citado anteriormente, só se pode sair da
obviedade pelo desregramento dos sentidos. Conseqüentemente, a afetação do poeta o
impede de ser apanhado pelo gregarismo do cotidiano que induz viver em bando. Por
esse mesmo caminho, segue o pensamento do poeta francês, Arthur Rimbaud, que
aponta para um estado fora do normal, uma espécie de “corpo doentio”. A doença
instaura a interrupção temporária do fluxo da sanidade sob o organismo, porque este não
responde aos comandos previstos, nem executa de modo eficaz as funções básicas. Uma
passagem do texto “carta dita do vidente” nos ajuda a pensar melhor esse
comportamento doentio sugerido pela insanidade do pensar e agir:
“digo que é preciso ser vidente, se fazer vidente. O poeta se faz vidente por meio de um longo, imenso e refletido desregramento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; ele procura ele mesmo, ele esgota nele todos os venenos, para só guardar as quintessências.” 79
77 Idem. Gramática Expositiva do chão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990. pág 215 78 BARROS, Manoel. Matéria de Poesia. Rio de Janeiro:Record, 2001. (pág 30-32) 79 RIMBAUD, Arthur. “Carta dita do vidente”. In: Uma Estadia no Inferno. São Paulo: Martin Claret, 2002. (pág 80)
77
O “desregramento dos sentidos”, como sugere Rimbaud, além de transgredir o
gregarismo, rasura a individuação, o nome próprio, o “código de barra”... – elos entre o
ser e o sistema. Uma das primeiras significações para a palavra sujeito refere-se à
qualidade de súdito (vassalo), ou ainda, à pessoa capaz praticar ações. Sujeito é um
produto social, de fácil identificação e localização. Por outro lado, aqui, a diluição da
identidade sem a pretensão de decalcar uma outra é indicada quando se deseja novas
experiências com o mundo. Pois, segundo Bachelard, “o ser é uma obstrução do
movimento, uma parada, uma falha”80 já que sua materialidade insiste em sobrepor-se à
inconstância humana. Nesse raciocínio, todo tipo de educação altera o relacionamento
natural com o mundo, impossibilitando a passagem das forças da natureza.
O que há de acidental no homem favorece experienciar de uma só vez e ao
mesmo tempo todas as sensações provocadas por um elemento da natureza, num
complexo de visão, audição, olfação, degustação e tato. O corpo responde de maneira
única a cada estímulo. Estar fora de si, inspirado, entusiasmado... contribui para
conhecer as intimidades do mundo.
Grande parte do conhecimento científico foi construída através da observação
apaixonada, em que o observador se deixa invadir e invade o objeto observado, a ponto
de uma completa indistinção. Desse contato íntimo nasceu a astronomia, os
fundamentos da física, química... a gramática, a filosofia... Todas têm sua origem
admiração; no encantamento do olhar perante a manifestação das coisas; na
transposição da mecanicidade contida na ação de enxergar. Esta parece ter a função de
esquadrinhar um objeto, exigindo, por isso, um estado de atenção e alerta. Torna-se
oportuno relembrar as falas do personagem Werther, no romance “Os sofrimentos de
80 BACHELARD, Gaston. “A ‘preguiça’ da filosofia”. In: Epistemologia.Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983, (pág 19)
78
Werther”81, em que também opina sobre a interferência da razão no contato com a
natureza: (....) “contudo, digamos o que disserem, a regra prejudica e perturba o
sentimento da natureza e sua verdadeira manifestação.” (p.52)
Não ter explicação para os mistérios da vida, ser ignorante em matéria de querer
encontrar razão em tudo que vê, desfaz as distinções entre os seres. Não há diferença
entre o homem racional (sabedor de conteúdos acadêmicos) e uma borboleta, como nos
faz pensar os versos:
Entrar na Academia já entrei mas ninguém me explica por que essa torneira aberta neste silêncio de noite parece poesia jorrando... (...) Sou bugre mesmo me explica mesmo: se eu não sei parar o sangue, que me adianta não ser imbecil ou borboleta?82
Para Manoel de Barros, a ignorância e a incompletude são traços predominantes
na composição do organismo humano e também dínamo de inconstantes movimentos. O
estado de inacabamento desfigura a categoria social de sujeito porque inviabiliza a
rotulação estereotipada. Não se pode classificar aquilo que escapa dos padrões de
normalidade, restando ao corpo irregular a exclusão e isolamento. Conseqüentemente,
não possuir um papel – uma função social – permite escapar da repetição servil imposta
em cada circunstância pelas regras e finalidades, oferecendo um caráter polimorfo
(outros) ao corpo inoperante. A incompletude, sempre vazada, é a qualidade que
possibilita as várias maneiras de apresentar-se no mundo, sem concretizar nenhuma
81 GOETHE. Os Sofrimentos de Werther. 7ª edição. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996. pág. 52 82 BARROS, Manoel de. Poemas Concebidos sem Pecado. Rio de Janeiro: Record, 1999. pág. 27
79
delas separadamente. O incompletude também pode figura o Neutro, proposto por
Barthes.
Durante a leitura dos poemas de Manoel de Barros somos surpreendidos com
algumas maravilhas inventadas no plano poético. No processo da criação fantasiosa
podemos notar pontos de interseção com a performance de (re)invenção de novos
enredos para elementos com lugares marcados na sociedade. Em ambos exercícios de
criação há a experiência aleatória com a matéria já conhecida como se quisesse
perguntar: “o que pode a matéria ?”.
Para essa etapa do presente trabalho, foi essencial percebermos a utopia do
resgate – acreditar na possibilidade de dizer de maneira idêntica o referente – que
governa a linguagem instrumentalizada. Como também, foi importante notarmos a
consciência do poeta a respeito dessa falência e o seu esforço na estruturação incomum
da linguagem poética, a fim de superar a deficiência de dizer singularmente as coisas.
Na etapa seguinte, está proposta uma leitura da poética de Manoel de Barros pelas
coisas inúteis e sem valor. Por gozar de um estado de repouso, as inutilidades podem ser
transformadas em qualquer coisa, estando sempre a
nos surpreender. Então, tal como as coisas sem
préstimo (cacos, detritos, trapos, restos) quando re-
combinadas, as palavras, ao perderem a
funcionalidade, podem manifestar o devir que
ocorre no mundo.
Desenho de Manoel de Barros na contra-capa do livro Matéria
de Poesia.
80
7. Poética da desutilidade
“toda arte é completamente inútil” Oscar Wilde83
É do senso comum associar poesia à genialidade ou à inspiração e ao estado de
alma do poeta, reduzindo-a a simples relato de vida; algo sem importância ou afetação
no corpo social. No mesmo modo de ver, aprecia-se o pensamento como sinônimo de
sério, complexo e produtivo. Na verdade, a dissociação entre a poesia e o pensamento
carrega consigo uma ideologia que reflete a estrutura de uma sociedade moldada pelo
utilitarismo e imediatismo, onde as pessoas e as coisas são marcadas com um valor que
lhes é atribuído conforme os préstimos à sociedade. Nesse tipo de organização é
imperativo estabelecer eixos paradigmáticos a fim de demarcar fronteiras entre
improdutivo/produtivo, falso/verdadeiro, errado/certo, inútil/útil... nas quais são
forjados valores de troca.
Porque está presente nos gestos mais cotidianos, esse método de classificação
dicotômico que separa poesia e pensamento é reproduzido sem percebermos, ainda que
não seja esse o assunto. Por exemplo, uma frase como: “você parece que não pensa”,
pronunciada no dia a dia, carrega consigo o modo pragmático e imediatista com que age
a sociedade, principalmente quando se refere ao exercício do pensamento. Circunscrita
nesse conjunto, a ação de pensar está condicionada pela utilidade que terá o produto
final e sua importância dentro do grupo poderá ser avaliada pelos benefícios
conseguidos em prol deste. Conforme podemos ler na frase citada, qualquer pensamento
para ser reconhecido como atividade intelectual deve produz alguma observação ou
conclusão útil para manutenção da ordem social.
83 WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. Prefácio
81
No exercício efetivo das funções corporais não há vez para detalhes,
aprofundamentos ou reflexão. Tudo se passa na superficialidade do automatismo. O
questionamento cede lugar à aceitação e acomodação. Ficamos isolados no
instantaneismo e na fugacidade dos valores dos objetos. Apreciar o valor de troca dos
objetos evidencia o comportamento automático e desatento sobre a organização do
mundo. Esquecemos de seu caráter arbitrário como também não atentamos para a
natureza dos objetos de valor, pois, ignorar sua composição, sua forma física, é
imperativo na atribuição de valor de troca. Por exemplo, o dinheiro, depois de subtraída
a importância monetária, é apenas um pedaço de papel (material frágil e corriqueiro) e o
mesmo se aplica para jóias, roupas, casas, móveis, etc. Em seus estudos divulgados sob
a forma de ensaios, num livro intitulado de As palavras e as coisas, onde se debruça
sobre as relações de representação, Foucault nos faz notar que o valor é “um atributo
acidental e que depende unicamente das necessidades do homem como o efeito depende
de sua causa”.
Nesse caso, o valor de qualquer objeto está na possibilidade de agir como
ferramenta: material usado para obter bens, mercadoria ou serviço, que podem satisfazer
uma necessidade humana. Assim, o que define um utensílio e determina seu tempo de
vida (durabilidade) é a capacidade apresentada por ele para realizar tarefas que poupem
ou aprimorem os esforços humanos. As ferramentas, instrumentos e utensílios são
elaborados a fim de potencializar o poder do corpo humano: tal como um alicate usado
para apertar ou torcer amplia a agilidade e precisão das mãos; um sapato aumenta a
estende a resistência do solado dos pés para caminhar em terrenos acidentados; as
vestimentas reforçam a tarefa exercida pela epiderme de envolver o organismo humano;
assim como o código lingüístico forjado dentro de uma sociedade desdobra o
pensamento em palavras e a escrita auxilia a memória no registro de informações.
82
Em tal reflexão, a invenção de conceitos e definições exatas pode ser entendida
como um impulso do homem para modificar o espaço em que vive ao estabelecer e fixar
um modo de ver. Pois, toda classificação anula as contradições existentes nas coisas
inominadas e lhes imprime uma individualidade para transformá-las em objetos. Para
definir algo, é necessário antes esquadrinhar o material, dividi-lo em partes e induzir
uma arrumação em grupos a fim de viabilizar o controle do todo. O olho humano parece
já está programado para executar tal tarefa quando se põe a procurar ordem naquilo que
não tem, buscando um padrão de comportamento. É assim quando olhamos para as
nuvens ou observamos as estrelas no céu. No entanto, aquilo que escapa do gregarismo
da classificação logo é apontado como anormal, louco, monstro, marginal, etc e deixado
de lado.
Eis aí o esforço para falar da literatura de Manoel de Barros, já que não há
padrão lógico para mantê-lo nesta ou naquela classificação. Como já foi dito, esta
tagarelice são deslumbramentos que mais impressionaram o espírito ao aventurar uma
excursão pelo mundo das (des)palavras.
Dentro das práticas cartesianas, o pensar fica reduzido a uma ação premeditada e
articulada para alcançar um fim. No entanto, a literatura escrita por Manoel de Barros
nos sugere outras compreensões sobre o ato de pensar que ultrapassa a ditadura do
utilitarismo. Nos é oferecido um pensamento imprevisível, com fim em si mesmo e
dissociado de qualquer conotação lógica que parece encontrar na sintaxe poética melhor
expressão. Pensar é partir a procura da singularidade que as coisas guardam e nunca
mostram por inteiro, sendo possível apenas vislumbrá-las pela despalavra, conforme
dissemos anteriormente .
Assinalamos aqui o ponto de (re)encontro entre poesia e pensamento poesia e
pensamento onde voltam a constituir um só corpo que abriga a faculdade humana de
83
não se conter, de se rebelar e querer sair de si, transcender limites, a fim perceber o
mundo. Ou, então, pensa quem é afetado pela curiosidade de conhecer aquilo que ainda
dorme ou silencia diante da maneira mecânica de compreensão. Quando pensamos,
inevitavelmente, estamos suspeitando das certezas a ponto de querer ver além delas.
Pensar é fazer crescer o mundo tal como o percebemos em várias dimensões e quebrar a
monotonia causada pela rigidez das certezas inventadas. Não se trata, evidentemente, de
materializar substâncias no mundo físico, mas de iluminar outros olhares e
interpretações que ultrapassam a normalidade. Torna-se interessante lembrar as flexões
de Heidegger para sublinhar que “é o pensamento que transforma o mundo”84.
Transformar quer dizer “dar nova forma” e no caso de Manoel de Barros,
despretensioso de qualquer reconhecimento acadêmico, seu pensamento poético
inaugura olhares para contemplar o avesso das coisas, dando grandiosidade ao ínfimo e
importância ao que não tem. Passando pelos escritos de Manoel de Barros, nos
lembramos o quanto pode ser engraçado o muno se pararmos para admirá-lo com calma.
A poesia nos faz perder tempo, “parar pra pensar”, isto seja cair em torpor, na ausência
de respostas aos estímulos comuns, quando o pensamento corre a revirar o mundo para
descobrir novas coisas, mesmo que fossem as mesmas só que agora vistas de pontos
diferentes. Então, mais do que a implosão de alguma verdade, a poesia seria uma
inventiva explosão de novos sentidos para explorar possibilidades de dizer aquilo que
ainda não se realizou. Ao enveredar no mundo maravilhoso da poesia não há como
distinguir poesia, pensamento, imaginação, delírio ...
Dar grandeza às coisas miúdas e sem importância para a sociedade deixa
entrever a gratuidade do pensamento imaginativo, percebida durante a leitura da
escritura barreana. Pelo inacabado e pelo ínfimo precipita-se a sutiliza acompanhada de
mistério que gravita ao seu redor; pois é aquilo que se resguarda e nunca se dá por
84 HEIDEGGER, M. Ensaios e Conferências. Petrópolis, RJ: Vozes. pág 202
84
completo ou acabado. O gesto sutil desperta a imaginação para violar todas as
dimensões, percorrendo terrenos onde o método científico não vislumbra seus encantos.
A partir desse instante, o ínfimo se torna grandioso, tão amplo que se inunda da
existência daquele que o imagina, pois, segundo Bachelard, “a imaginação nada mais é
senão o sujeito transportador às coisas”85.
A imaginação vasculha a matéria fazendo ecoar a perguntar sem respostas.Toda
criança um dia já se encantou com o coelho que sai do chapéu do mágico, assim como
qualquer pessoa demonstra encantamento ao pensar que de um ovo nasce um pássaro ou
que do útero materno nasce um ser humano. A imaginação alumia frouxamente “a
imensidão íntima das pequenas coisas”.
Conforme tivemos o cuidado de apontar nesta dissertação, as inconstantes
percepções de mundo adotadas pelo poeta assinalam um comportamento amaneirado
com inclinação para as coisas marginais. Lembrando outros admiradores do mundo que
transpuseram em palavras ou em gestos seus encantamentos, Manoel de Barros assinala
a grandiosidade de tratar do que é insignificante para a sociedade. Eis aí o poder de sua
palavra poética: tornar monumental as miudezas.
Venho de nobres que empobreceram. Restou-me por fortuna a soberbia. Com esta doença de grandezas: Hei de monumentar os insetos! (Cristo monumentou a Humildade quando beijou os pés dos seus discípulos. São Francisco monumentou as aves. Vieira, os peixes. Shakespeare, o Amor, A Dúvida, os tolos. Charles Chaplin monumentou os vagabundos.) Com esta mania de grandeza: Hei de monumentar as pobres coisas do chão mijadas de orvalho. 86
85 BACHELARD, Gaston. Poética do Devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1988 (pág. 2) 86 BARROS, Manoel de. Livro sobre Nada. Rio de Janeiro: Record, 2004. (pág. 61)
85
Para manifestar pensamentos “à toa” é preciso ir a busca de uma linguagem
descompromissada com a função comunicativa que a delineia nos limites do
utilitarismo. Mais uma vez esbarramos nas reflexões acerca da linguagem literária e
para tal revisitamos as idéias propostas por Barthes, em sua Aula inaugural no Colégio
de França, que discorre saborosamente sobre linguagem e liberdade, ao mesmo tempo
em que expõe a associação entre linguagem e o poder controlador. Escreve Barthes:
“se chamamos de liberdade não só a potência de subtrair-se ao poder, mas também e sobretudo a de não submeter ninguém, não pode então haver liberdade senão fora da linguagem” e “só se pode sair dela pelo preço do impossível.”87
O “impossível” de que nos fala Barthes, certamente, está relacionado à idéia de
“trapaça salutar” com a linguagem a ponto de desconjuntá-la, culminando na sua
inutilidade radical. Com efeito, o rearranjamento do código origina certo estranhamento,
pelo qual nos permite pensar o mundo fora do automatismo da linguagem. Esse
incômodo relaciona-se com capacidade de se encantar que a arte recupera em nós, no
sentido de avistar a diferença e a singularidade dos acontecimentos antes da ação do
gregarismo do cotidiano.
A poesia já está no mundo independente da intervenção do poeta, porém o
automatismo em que nos envolvemos faz com que esqueçamos disso. Em vista de tal
esquecimento, o poeta se entrega às imagens compostas por palavras para transver
natureza para que possamos redescobrir o seu vigor. No poema a seguir, Manoel de
Barros problematiza a cristalização dos significados preconizada pelo palavreado que
não impressiona mais os sentidos e, portanto, empobrece a singularidade dos
acontecimentos:
87 BARTHES, Roland. Aula.9ª edição. São Paulo: Cultrix. 16
86
O livro das Ignorãças (XIX)
o rio que fazia uma volta atrás de nossa casa era a imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás de casa. passou um homem depois e disse: Essa volta que o rio faz por trás de sua casa se chama enseada. não era mais a imagem de uma cobra de vidro que fazia uma volta atrás de casa. Era uma enseada. Acho que o nome empobreceu a imagem.88
Nesse poema, escuta-se uma voz que diz a natureza com a força de quem a diz
pela primeira vez sem ter meios pra fazê-lo. Empregar a língua enquanto discurso seria
cair na armadilha fácil e empobrecedora das generalizações. Lendo o poema, parece não
haver meios para transpor em palavras os encantamentos e, para não correr o risco de
aprisionar as coisas inominadas num nome, essa voz recorre à inconstância da imagem
como estratégia de apresentação.
O discurso utilitário resulta do esforço (vão) para transpor uma impressão do
mundo (matéria sintética) em palavras (material analítico). Essa passagem do sintético
para o analítico não acontece sem que haja perda de efeito. Certamente, não tem o
mesmo impacto escutar o ritmo produzido por uma bateria de escola de samba e ler a
descrição desse ritmo, se houvesse como descrevê-lo. Assim como não é a mesma coisa
falar da curva do rio através da metáfora da “cobra de vidro mole” ou pelo nome
enseada.
O uso instrumental da língua toma as palavras e as coisas como equivalentes, na
convicção de que, ao dizer o nome, estaria simultaneamente evocando presença do ser.
A palavra, para Manoel de Barros mostra-se insuficiente para expressar as sensações
perante o mundo e, por isso mesmo, ele redimensiona cada palavra utilizada que passa a
atuar como imagens, no sentido que nos esclarece Otávio Paz:
88 BARROS, Manoel. O livro das Ignorãças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994. pág 27
87
O sentido da imagem (...) é a própria imagem: não se pode dizer com outras palavras. A imagem explica-se a si mesma. Nada, exceto ela, pode dizer o que ela quer dizer. Sentido e imagem são a mesma coisa89.
Na escrita poética de MB, a composição de imagens ostenta um “como se” para
tentar expressar em palavras impressões que ficaram marcadas em nossa mente. Elas
acabam por modificar a maneira de interagir com um tema que pode ser interpretado
como uma insatisfação com o mundo transformado em assunto, entendendo que ele
poderia ser bem mais a que ficou reduzido.
As imagens esboçadas nos poemas reacendem o encantamento das palavras ao
fazer dialogar várias concepções de mundo já existentes fazendo projetar outras idéias
em que todas as possibilidades de interpretação são consideradas; nada é negado ou
excluído. Tais imagens compostas por palavras são conhecidas pelo nome de metáfora.
No entendimento de Bennington, em Derridabase 90, a metáfora aparece como algo que
“fala obrigatoriamente, explora conotações laterais, insinua coisas sem
verdadeiramente dizê-las, sugere idéias sem explicitá-las”, o que de imediato nos faz
tecer associações com as reflexões de Otávio Paz e de Manoel de Barros.
Uma idéia que, de certa forma, se contraporia à figura da metáfora seria a idéia
de conceito — uma representação do que há de essencial e imutável num objeto. O
conceito seria a metáfora repetida, enfraquecida e desgastada pela pretensão em
alcançar a exatidão. Nesse sentido, por se esquivar da obrigação de produzir sentidos e
exercer a função de comunicar, a metáfora para Manoel de Barros é lugar de reencontro
entre poesia e pensamento.
Coisa, cacos, ciscos, restos, lixo, inutilidades, despropósitos, esses são alguns
“desutensílios” que aparecem na poesia de Manoel de Barros como uma maneira de
89 PAZ, Otavio. “A imagem”, in: Signos em rotação.1996. (p. 47) 90 BENNIGTON & DERRIDA. Jacques Derrida. Rio de Janeiro: Zahar Editores, , (pág 19)
88
transver o mundo, ver para além do horizonte, do limite natural da visão, para repensar
o homem e a sociedade. Aventurar-se em falar o mundo pelas inutilidades e
despropósitos evidencia a insatisfação do poeta com o olhar analítico do cotidiano. No
desejo de radicalizar a matéria disposta na sociedade para retornar ao radical (raiz), ou
seja, reinventar uma origem onde possa flagrar o mundo acontecendo antes de qualquer
intervenção da razão, a expressão poética de MB corre pelas vias do grau zero de
utilidade, como podemos ler no poema:
Matéria de Poesia
Todas as coisas cujos valores podem ser Disputados no cuspe à distância Servem para poesia (...) Tudo aquilo que a nossa Civilização rejeita, pisa e mija em cima, Serve para a poesia (...) Tudo aquilo que explique O alicate cremoso E o lodo das estrelas Serve demais da conta (...) O que é bom para o lixo é bom para a poesia
O texto de MB nos sugere várias afinidades entre lixo e poesia. Ambos são a
expressão de uma trama cultural; são sintomas sociais: lixo e poesia são atividades
humanas e, por isso, considerados inesgotáveis. Além disso, expõem a matéria levada
ao extremo da utilidade, de forma a suspender a função prescrita, conferindo à matéria
liberdade de vir a ser. A palavra poética, nesse sentido, fica desprovida de qualquer
traço representativo, logo sem nenhuma função, disposta no papel lembrando um
amontoado de objetos que não servem mais. Sua ociosidade vai de encontro à
produtividade (ao negócio) que rege os valores de nossa sociedade.
89
Seguimos numa estrutura social disposta sobre as necessidades de trocas. Nesse
sistema, a função é o princípio organizador; ela localiza cada objeto no tempo e no
espaço. Através dela, torna-se viável o trânsito do controle pelos diversos segmentos da
sociedade. Portanto, dentro desse código, perder a função ou desempenhá-la de forma
improdutiva implica na exclusão. No mesmo raciocínio, forjar uma função para cada
elemento consiste na tarefa de naturalizar o mundo, fazendo desaparecer do discurso os
traços históricos e culturais, como quem diz: tudo sempre foi assim, porque há de
mudar? Vejamos por exemplo uma palestra; o palestrante e os ouvintes, ao entrarem no
espaço destinado ao evento, ocupam cada qual o seu lugar conforme a função:
palestrante na frente, em cima do tablado; ouvintes na outra extremidade voltados para o
palestrante. Por que os ouvintes não sobem ao tablado?! Porque já é uma norma, uma
regra naturalizada.
Poder sanitarista, representado pelas normas sociais, elimina tudo que afeta o
funcionamento de um sistema. A máquina social fabrica as regras e normas de conduta
sob o rótulo da exatidão, da certeza, do verdadeiro opondo-se ao ócio, ao estado leviano
da alma, ao despropósito... Daí, é sustentável dizer que as tentativas de controlar a
desordem, limpar ou evitar a sujeira, são ações encontradas em todas as sociedades a
fim de garantir a manutenção do sistema.
A ordem do útil é onde o poder se manifesta. Nesse caso, dizemos que o corpo
ou o objeto sem utilidade não pode ser controlado. Os corpos indisciplinados,
costumamos classificá-los de anormal, monstro, louco, vadio... porque fogem do eixo
paradigmático. E para tudo que não oferece utilidade isolamos de nosso contato sob o
rótulo de lixo. Assim, reaproveitar matéria dada como desgastada e sem serventia,
ensaia uma discussão acerca da oposição útil e inútil, que se desdobra numa provocação
ao sistema dicotômico. Pois o reaproveitamento encena a repetição que rasura a
90
coerência assegurada na progressão início-meio-fim. O não é o fim mas o início para
tornar-se qualquer coisa.
Dentre os elementos exilados pelo sistema e assimilados nos poemas de MB, o
lixo é o mais provocador. Dele queremos distância de tal modo que embalamos em saco
preto, enterramos, fazendo o possível para tirá-lo de nosso campo visual. Mas aqui na
obra de MB ele é requisitado semelhante ao trabalho de bricolagem. Aqui as atividades
do poeta e do bricoleur guardam relações estreitas, já que este se move sem rumo
previamente determinado, com técnicas e materiais improvisados e que nada tem a ver
com os modelos. Eles não trabalham com matéria ainda em estado bruto, mas com
aquilo que já foi processado e descartado pela sociedade; só lhe interessa restos, cacos e
sobras de matérias.91
Chamamos de lixo a matéria que para nós não tem mais serventia. Trata-se da
matéria saturada no seu extremo de servir a sociedade, levada a fatiga para que
momentaneamente fique suspensa a funcionalidade. Entretanto, durante esse intervalo
emana o devir transformador da matéria, a possibilidade de se transformar em qualquer
coisa. Não é por acaso que o pensamento contempla o ilimitável e a liberdade plena no
sonho, quando estamos dormimos, ou seja, momento em que repousamos de nossas
atividades sociais.
O artesão que transforma sobras de material em outros produtos, só pôde
visualizar outras possibilidades de existência porque a matéria usada já não tinha
utilidade. Garrafas práticas, por exemplo, ganham outras existências porque perderam a
função que justificava a permanência entre os outros objetos encontrados na sociedade.
O mesmo acontece com jornal velho, latas, embalagens descartáveis, etc. No limite da
matéria é quando podemos apreciar suas potencialidades de transformação. Percebendo
que tudo pode ser recriado, notamos a arbitrariedade e a artificialidade dos conceitos
91
que regem a relação entre as coisas. Tudo passa a ser visto como invenção, algo forjado.
Eis aqui a descoberta que torna possível enveredar pelo mundo poético criado por
Manoel de Barros sem se espantar com nada. Pra buscar em tudo explicação se o
conhecimento científico não consegue formular uma justificativa satisfatória para
responder indagações óbvias, por exemplo, por que no alfabeto a letra B tem que vir
depois da A. Também diante das curiosas perguntas de uma criança que parece querer
testar o mundo só o silêncio tem força de se mostrar para evidenciar a fraqueza da
razão. No poema a seguir, o incomodo do pai por não saber como responder a pergunta
do menino ilustra bem as reflexões tramadas. A figura paterna, como em outros de seus
poemas, pode ser lida como metáfora da razão, da certeza e da segurança dos conceitos:
No aeroporto o menino perguntou: — E se o avião tropicar um passarinho? O pai ficou torto e não respondeu O menino perguntou de novo: — E se o avião tropicar um passarinho triste?92
Tal como os restos orgânicos, a linguagem torcida pelo poeta atinge também o
seu grau zero de utilidade. E depois de despir-se de toda a pretensão de comunicar o
real, vemos “a linguagem se colocando o mais distante possível dela mesma”93. A
experiência da poesia força os limites da linguagem e, expondo os confins da razão,
abrindo-se para um jogo de inesgotáveis combinações de sentidos.
91 Cf Claude Lévi-Strauss, La pensée sauvage – Librairie Plon – Paris – 1962 92 BARROS, Manoel de. Exercícios de ser criança. Rio de Janeiro: Salamandra, 1999.
92
8. Ensaiando uma conclusão
A poesia está guardada nas palavras – é tudo que eu sei.94
Diante das reflexões suscitadas nesta dissertação, enfocando a multiplicidade das
maneiras de ver o mundo, as inúmeras interpretações... eis que percebemos que a
poética de Manoel de Barros dinamiza um movimento ecológico para reciclar o homem
“despoluindo-o” de todo ensinamento para reintegrá-lo à natureza. Vimos como o poeta
evoca a natureza pantaneira e objetos sem valor para suspeitar daquilo que se apresenta
como natural. Nesse intento, além de apresentar figuras, nos chama atenção a insistência
do prefixo -des (despalavra, desutensílios, desexplicar, desobjeto, etc) que aponta para
um modo desconfiado de ver, como quem acredita poder alongar mais a visão sobre as
coisas.
Neste traçado de considerações, as desutilidades e despropósitos lidos nos versos
de MB removem a função utilitária dos objetos emprestando-lhes uma força reflexiva.
Por certo, nos absurdos gerados, identificamos a maneira encontrada para desarticular o
modo como fomos acostumados a perceber as coisas.
A poesia escrita por Barros vislumbra um estágio anterior à classificação que faz
mover as coisas de seu lugar canônico mas sem ter meios para fixar-se num lugar, pois a
sintaxe quebrada lhe garante liquidez que sempre vaza. Ou ainda, podemos pensar nela
como um barco sem âncora que habita um espaço mas sem pode poder se fixar num
ponto.
Ao transpor o pragmatismo e imediatismo, a linguagem tocada pela poesia perde
a propriedade de comunicar e se assume como total despropósito no utilitarismo da
93 FOUCAULT, Michel. “O pensamento do exterior”, pág 223-225.
93
língua. Com isso, a linguagem volta ao seu estado primitivo com sua melodia e
improvisação de imagens soltas e confusas tal como aquela pronunciada pela boca de
uma criança. Portanto, o que chamamos de subversão do código instrumentalizado não
é mais do que um regresso às origens, a primeira linguagem.
Forçar os limites dos conceitos e valores a fim de desnaturalizá-lo – mostrar a
artificialidade. O silêncio, o vazio, o lixo, a terra, a água, a loucura, a infância, tudo que
a sociedade não contempla revela dentro da poesia de Manoel de Barros grande
fertilidade para fazer nascer outras perspectivas a partir das quais se possa transver o
mundo. Passa a ser matéria de poesia tudo aquilo que escorrega entre as mãos
controladora do poder disciplinador: o que está no campo semântico do imprevisível, do
não pragmático, do devaneio ...
Ao levar a linguagem ao extremo, expondo os confins da razão, Manoel de
Barros deixa exposta a ausência de sentido que torna possível todo sentido, selando uma
aliança definitiva entre a palavra e a loucura. Desta forma, em vez de subordinar a fala
delirante à racionalidade, a poesia barreana lhe dá voz, desvelando um poder e
profundidade que até então eram ignorados.
Antes de abandonar esta dissertação, faz-se necessário discorrer (ainda que
brevemente) sobre a noção de poeta-crítico, aqui empregado com base nas idéias de
Roland Barthes95.
Sobre a literatura pode-se dizer muita coisa, mas não podemos afirmar nada.
Dentre as coisas percebidas, nota-se a presença de fenômenos ou objetos pertencentes
ao mundo “real” ou imaginário. Porém, não se trata de um discurso sobre o mundo, cuja
finalidade seria atribuir-lhe um sentido. Ao contrário, percebe-se um impulso para criar
possibilidades de sentidos. Não importa mais como esse mundo aparece, desde que não
94 BARROS, Manoel de. Tratado geral das Grandezas do Ínfimo. Rio de Janeiro: Record, 2001. (pág.19) 95 BARTHES. “O que é a critica”. In: Crítica e verdade.São Paulo: Ed. Perspectiva, 1999. pág 157
94
apareça como de costume. Sendo assim, qualquer que seja a literatura ela deve falar de
um objeto exterior e anterior à linguagem.
Já o objeto da crítica não é o mundo, mas o discurso sobre ele. Logo, a crítica
aparece como um discurso sobre o discurso e, por isso, apresenta-se como
metalinguagem. Tudo isso decorre da consciência da linguagem, que para tal necessita
perceber as relações linguagem-mundo e crítica-linguagem. Tudo aponta para
constatação de ultrapassa a classificação de falsa ou verdadeira. Sobre uma linguagem,
devemos ter a capacidade de saber de sua validade dentro de um sistema de signos.
Assim, caberia à crítica elaborar um discurso cujo propósito estaria em sublinhar a
estrutura discursiva, incluindo-se também nesse objeto-estudo. Daí, dizer que toda
crítica é crítica da obra e de si mesma.
Tomar consciência do discurso pede uma observação cuidadosa sobre ele, a fim
de assinalar as ideologias que o delineia e o perpassa. Disso, nasce a suspeita lançada
sobre a relação de correspondência entre as palavras e as coisas.No decorrer desse texto,
nos enveredamos pela poética de MB e notamos que poesia e pensamento remetem para
o impulso criador, gerado pela incapacidade de nos contentarmos com as coisas já
dadas. Assim, da autoconsciência da linguagem e da equivalência dos termos poeta e
pensador desdobram-se nas figuras do crítico e do teórico na qualidade de interprete e
criador de conhecimentos. Desta forma, o poeta não precisa mais escolher entre isso ou
aquilo, entre ser poeta, romancista, contista, crítico ou teórico, pois se tornou impossível
rotulá-lo.
95
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