Ano 1 | Nº 5 | Jul 2013
ISSN 2316-8102
A ONIPRESENÇA DO TEMPO NO LUGAR NA PERFORMANCE
AUSTRALIANA QUE TEM POR BASE UM LOCAL por Gretel Taylor
O presente ensaio visa discutir o uso do tempo na performance contemporânea do
lugar na Austrália, essencialmente através de duas das obras recentes de Jill Orr, mas,
também, através da apresentação da minha própria prática baseada num local. Estas obras
representam, de forma não cronológica, vários aspectos do passado de um local como
coexistentes com o presente de uma forma muito parecida ao sentido que os indígenas
australianos têm do tempo como duradouro e onipresente (Stephen Muecke, Ancient and
Modern, 2004). A aclamada praxis performática de Orr, desenvolvida ao longo de mais de 30
anos, deriva das Belas Artes, ao passo que a minha prática, relativamente emergente, se baseia
na dança, pelo que não pretendo comparar o nosso trabalho de mais nenhuma forma que não
seja discutir as nossas representações do tempo na performance. Partilhamos a convicção de
que o reconhecimento da aboriginalidade inerente dos lugares australianos reveste-se de uma
importância crucial para a prática artística australiana atual baseada num lugar e, por isso,
procurámos incluir pessoas indígenas autóctones, bem como referências à história colonial
nas nossas obras performáticas recentes. Contudo, em vez de construir narrativas históricas
lineares, os diversos passados de um determinado lugar são entrelaçados na contextura do
trabalho, criando uma oscilação entre as histórias aborígenes, colônias e outras, práticas
contemporâneas neste local e a imediatidade do momento atuado.
A artista performática australiana Jill Orr cria poderosas obras baseadas em imagens,
nas quais se incluem performances físicas ao vivo, vídeo, fotografia, pintura e instalação. O
trabalho da artista procura “a humanidade refletida em diferentes lugares e assuntos, com
relevância pessoal e universal” (www.jillorr.com.au/CV.html consultado em 10/06/2008). As
imagens, a solo, de Orr, nos anos 70 e 80 do séc. XX, usavam o seu corpo como o lugar e
foram orientadas para revisões feministas do corpo, bem como temas ambientais (por
exemplo, a famosa Bleeding Trees de 1979). Algumas das suas obras têm sido performances
duracionais, como The Sleep of Reason Produces Monsters-Goya (2002 e 2003), onde Orr
povoou um espaço de galeria e criou esculturas com uma tonelada de ossos ao longo de mais
de oito horas. Essa obra envolveu o tempo de forma particular, mas aqui abordarei as obras
recentes da artista que se centram num lugar e se referem à história. Tanto The Crossing
(Lock Island, Mildura, 2007) como From the Sea (Warrnambool, 2003-2004) revelam a
multiplicidade de relações culturais com o lugar, incluindo experiências aborígenes,
australianas brancas e da nova imigração. Atuei em esses ambos trabalhos, pelo que
testemunhei e contribuí para o próprio processo de execução. A reflexão sobre o papel do
tempo na obra de Orr deriva essencialmente dessas experiências na primeira pessoa e de uma
entrevista que fiz a Jill Orr em junho de 2009.
Tanto em The Crossing como em From the Sea, Jill convidou grupos indígenas e
outros membros ou grupos das comunidades locais, bem como artistas performáticos
profissionais representando várias culturas, para darem um contributo para a obra. Os grupos
indígenas, em particular, foram incentivados a executarem as suas danças, escolhidas por si,
nos seus próprios termos, no seu espaço. Jill entendeu ser esta a melhor forma de reconhecer a
história do povo indígena e a presença indígena contemporânea sem reiterar paradigmas
colonizadores mediante “dizer-lhes o que fazer ou ter alguém a tentar contar a história deste
povo por ele” (Orr, 29/06/2009). Deste modo, Orr convida os grupos aborígenes a
representarem-se a si mesmos, entendendo, simultaneamente, que o seu contributo faz parte
de uma obra mais abrangente. Atendendo a que nós (colonizadores) “ficamos com todo o
espaço”, o mínimo que podemos fazer, segundo Jill crê, é abrir um espaço nas nossas
estruturas performáticas para que os povos aborígenes contem a sua própria história. De
forma semelhante, ao convidar por exemplo Tony Yap, um bailarino malaio, a contribuir para
The Crossing, dançando a sua relação com o lugar de Lock Island, Jill permitiu-lhe “ter uma
voz”: criar a própria dança. Como fazedora/diretora performática, Jill acredita não conseguir
representar perspectivas alheias; apenas pode criar espaço(s) para que outros se representem
neles. Obviamente, esta abertura tem algumas limitações: desde o princípio, Jill é seletiva ao
convidar determinados indivíduos e grupos para o local por si escolhido; a artista intui que
esses convidados criarão cumulativamente uma transversalidade de “personagens” que
representem diversas relações com o lugar em questão. O objetivo da artista, na composição
dessa “sobreposição” num espaço, é a criação de uma “obra inclusiva a partir de diferentes
perspectivas reais”.
Sempre rotulando o seu trabalho como uma “resposta poética”, Orr não tenciona
documentar e representar uma história fatual nem sequer verdadeiramente “contar uma
estória”, pois considera que outras pessoas (historiadores, acadêmicos) estarão bem melhor
equipadas para elaborar um documentário fatual devidamente explanado. Jill prefere evocar
um fato, que ela crê proporcionar mais possibilidades, uma ligação mais lateral de inter-
relações de passado, presente e futuro pelos lugares. As imagens visuais, que ela cria, partem
da história real (documentada ou recontada pelos autóctones) e da sua resposta intuitiva/
criativa ao lugar. Muitas vezes, a resposta intuitiva inicial de Jill, que o próprio lugar gera, é
depois apoiada por pesquisas, naquilo que ela apelida de um “processo invertido”.
Defendendo que as personagens “já lá estão” no lugar, preparadas para ela, ela tem então de
“verificar que são reais”, analisando os fatos. Das pesquisas que realiza, Jill Orr fica ciente da
enorme quantidade de histórias para lá do que ela efetivamente inclui nos trabalhos. A artista
acredita que “saber aquilo que fica de fora confere mais peso ao que é incluído”. Os seus
trabalhos são, então, uma destilação e, a partir deste momento destilado, acredita que a leitura
do público “voltará a alargá-lo”. Orr descreve o seu trabalho como uma “história falsa” que
“paira nos limiares do espaço”.
A costa litoral sul de Warrnambool inspirou Orr para a sua instalação de vídeo de
múltipla projeção From the Sea [cujo título em português poderia ser “Vindos do Mar”]. Esse
trabalho evocou aspectos da história e mitologia locais, como os “fantasmas” dos vinte e oito
navios naufragados ao longo daquele trecho da costa. Inclui ainda referências sutis a
refugiados atuais que procuram asilo na Austrália. A imaginação de Jill de From the Sea
deriva da sua consciência do mistério/ mito da nau de mogno portuguesa que se julga ter
naufragado nos rochedos em Warrnambool (“The Mahogany Ship”), cerca de duzentos anos
antes da alegada “descoberta” do continente por Cook. Jill soube pelo povo nativo
Gunditjmara que, nos tempos que antecederam a implantação europeia, devido à relação de
direções num cerimonial fúnebre tradicional dos Gunditjmara, este povo tinha a crença de que
as almas, corpos ou sobreviventes vindos do ocidente eram seres santos; os que vinham do
oriente não eram considerados importantes. Essa informação confirmou a propensão de Jill
para criar uma obra no lugar de onde se observavam os seres que vinham “do mar” [From the
Sea, o nome da obra], como se fossem observados da perspectiva (indígena) da terra firme.
From the Sea, Warrnambool, 2003. Fotografias de Sharp Edge Photography para Jill Orr
A dimensão política de From the Sea residia no estabelecimento de paralelos entre
imagens representando tempos históricos muito díspares e, assim, diferentes ramificações
legais e valores culturais. Uma imagem fugaz mostrava duas personagens iraquianas andando
pela praia: uma alusão ao furor em torno dos imigrantes ilegais que chegam de barco e a
histeria nacionalista em torno do “controle fronteiriço” no momento atual de 2002-2003. Essa
imagem foi incluída na sequência de vídeo não linear, entre outras imagens de diversas
pessoas/ fantasmas de aspecto europeu/ britânico chegando via mar de uma era anterior. Da
perspectiva da terra (e respectivos habitantes indígenas), esses seres chegados do mar são
considerados como equivalentes, ao contrário do aparente esquecimento da Austrália branca
dominante, de que originalmente todos viemos de outro local e presumimos o direito de
reclamar esta terra como nossa.
Em vez de formarem uma cronologia lógica, o contemporâneo e o antigo entrelaçam-
se nesses trabalhos. Os tempos e as culturas atravessam caminhos, com lucidez, na exploração
da natureza do lugar, criando um patchwork de imagens, que apresenta cumulativamente
perspectivas sobre o lugar específico e o ambiente sociopolítico envolvente. Em From the Sea
havia outra “cena” envolta no estrépito e no fragor das ondas na costa, de homens brancos
envergando fatos a arrancar crianças aborígenes aos respectivos pais. Essa foi uma seção que
Jill fez “diretamente”, perguntando primeiro às crianças e seus pais se quereriam encenar esta
parte horrífica da sua história. Num estranho entrecruzamento de material cultural e dos
tempos, as crianças pequenas não tinham consciência das “Gerações roubadas” e, em vez
disso, julgavam que os homens de fato escuro (contemporâneo) e óculos de sol eram os
Homens de Negro do recente filme e achavam-nos legais! Por isso, as crianças ficaram
absolutamente imperturbáveis ao verem o seu cerimonial de dança em volta da fogueira
interrompido por esses homens, que os levavam embora pelas dunas de areia.
A obra The Crossing [que poderia chamar-se, em português, A Travessia], de Jill Orr,
foi descrita em material publicitário do Festival Mildura de 2007 como “uma expressão
contemporânea do espírito do lugar que tece e reconhece, simbolicamente, histórias que se
sobrepõem”. A reunião de histórias indígenas, as perspectivas coloniais britânicas e outras
histórias (de) imigrantes, essa performance ao vivo in situ explorou os múltiplos extratos
culturais e procurou representar as histórias sub-representadas passadas e presentes de Lock
Island, no rio Murray junto à cidade de Mildura. As personagens coloniais que Jill identificou
para esse trabalho (a enfermeira, o padre missionário e a freira) terão todas, historicamente,
tido contato próximo com o povo aborígene. Jill imaginou a personagem do missionário
verborreico, no processo inicial de responder ao lugar de Lock Island. Depois, nas pesquisas,
descobriu haver histórias significativas de missionários na região de Mildura, confirmando o
seu “processo invertido”. Pelo contrário, a personagem da enfermeira (bush nurse) foi
despoletada através da documentação da presença colonial em Mildura. Estas enfermeiras
(que, tanto quanto Jill sabia, nunca tinham sido representadas em performance) foram
pioneiras no trabalho em proximidade com os aborígenes, no cuidado dos doentes (muitas
vezes com doenças trazidas pelos colonizadores) e como parteiras. Os Latje Latje mais velhos
contam histórias dos seus nascimentos, e dos das mães e avós, nos chãos térreos das cabanas.
Nesse trabalho, as temporalidades voltam a ser apresentadas em sobreposição: o
homem malaio imediatamente abaixo do missionário colonial expressa uma história hodierna
de imigração e dissociação do lugar, a mulher colonial (eu) e os filhos são transportados pelo
rio num barco a motor. Os jovens Latje Latje executaram danças “tradicionais”, bem como
uma versão hip-hop da sua história do rio, representando a atual relação contemporânea com
esse lugar. Essas anomalias quebram as expectativas do público duma narrativa
historicamente precisa e sugerem que esses múltiplos passados continuam a invadir o
presente.
Tony Yap em The Crossing, 2007. Fotografia de Naomi Herzog e Malcolm Cross para Jill Orr
Ao trazer um público a um lugar, a experiência incorporada dos membros do público
naquele momento coexistem igualmente com as histórias que a performance evoca. Em The
Crossing, Jill previu que o processo físico dos membros do público de andarem pela ponte
para Lock Island, depois, de lugar em lugar à volta da ilha, poderia encorajá-los a “despirem
algumas das suas capas sociais”, a centrarem-se calmamente naquele momento, de modo a
entrarem percentualmente naquele lugar e abrirem-se para receber a teatralidade da
performance. Uma grande parte da obra consistia na caminhada física efetuada pelo público,
uma negociação corpórea do terreno, sentado na areia junto ao rio, etc. A forma (tanto
geográfica como temporal) entre os atores convidados/ as cenas permitiam a observação
pública do local. O público, quase completamente Koori, na última noite, incluindo mulheres
mais velhas para quem andar já envolvia algum esforço, conferiram uma abertura, silêncio e
atenção muito particulares à performance e à experiência de andarem entre lugares, sem
retorno ao modo social. Os artistas executantes sentiram essa atenção e o lugar parece quase
fazer eco com este enfoque auditivo onde Jill recorda uma “partilha vibratória”.
Nesta última noite de The Crossing, aconteceu algo não ensaiado. Na cena final
apoteótica, todos os executantes convergem numa grande praia junto ao rio: uma cerimônia
dançante dos Latje Latje é interrompida pelo missionário palavroso, o imigrante asiático
perdido irrompe na cena, um espírito europeu da terra dança entre as crianças Koori, entra a
freira e atira um balde de água sobre o padre, para o calar, e a enfermeira e a mãe empurram
uma cadeira de rodas vazia pelo caos adentro. Até aqui foi ensaiado. Depois, Peter Peterson, o
caçador Latje Latje, que tinha estado escondido a observar nas sombras junto ao rio durante a
atuação, atormentado pela retórica insistente e ruidosa do missionário, saiu para a luz e
“lancetou” o missionário e, de seguida, com um gesto e um som, parou a freira e as outras
personagens coloniais nos seus papéis. Peterson, com essa ação, paralisou efetivamente o
tempo, reclamando o momento e o lugar para seu povo, como se ele nos fizesse “desaparecer”
a nós, os tipos brancos, decapitando simbolicamente todos os intrusos institucionais da
colonização. Ao parar o tempo, é como se ele pudesse rescrever a história: “se vocês não
estivessem aqui, o que poderíamos ter feito, enquanto povo indígena, neste lugar?”
Paradoxalmente, a ação violenta improvisada de Peterson pareceu trazer paz à cena,
não apenas em termos de encenação, mas em termos “reais”, como se todos tivéssemos
participado num ritual de reconhecimento e/ou reclamação e, assim, curando de certa forma o
passado, assentando algo que estava por resolver, uma restituição há muito devida. Pouco
depois, fez um gesto curativo sobre o corpo do missionário com folhas fumegantes de
eucalipto da fogueira e todos continuámos as nossas trajetórias. Depois de o público ter
avançado para um último local, onde os jovens executavam uma espécie de coda: a dança do
rio, na qual cada totem é executado em conjunto como aspectos unificados do rio, Peter ficou
para trás e completou o seu ritual de defumação da praia com os ramos, limpando e
acalmando toda a zona.
Peter Peterson em The Crossing, 2007. Fotografia de Naomi Herzog e Malcolm Cross para Jill Orr
Alegadamente, Peter Peterson terá dito antes a Jill que iria “matar” o missionário na
performance e que ela (Jill, no papel de enfermeira) também deveria paralisar depois de atirar
o balde de água. Jill entendeu ser como se Peterson tivesse de a testar: para ver se ela era
genuína nos seus gestos de convite ao contributo do povo Latje Latje para a obra; se ela
queria mesmo afetar mudanças nas relações entre pessoas e lugar.
O potencial do elemento ritual (a possibilidade da mudança ou transcendência) está
inscrito na estrutura da obra de Jill. Os artistas que ela convidou para colaborarem em The
Crossing foram todos eles pessoas que ela considerava estarem envolvidas em práticas que
“se ligam à terra” e abraçam a potencialidade da transcendência (cerimoniais/ danças
indígenas, Butoh, improvisação, atuação e trabalho vocal que leva a áreas desconhecidas).
Esses artistas foram selecionados pelo interesse que partilhavam pela ampliação para lá dos
aspectos técnicos físicos da execução do movimento/ som vocal, etc., para lutar por estados
de “ser para lá do material” ou estados de ser que “não estão sujeitos às limitações do
universo material” (que é como o dicionário australiano Australian Concise Oxford
Dictionary descreve “transcendência”), abrindo caminho ao espírito que se move através do
corpo. Dentro da estrutura da performance, que Jill compara a um ritual e que possibilita o
momento de transcendência, tem de estar a combinação de lugar/ Local, povo/ artista(s) e a
eventualidade de algo desconhecido acontecer à medida que a performance “se liga” ou está
em curso. Nas palavras de Jill:
A estrutura tem de ser suficientemente definida para que exista um fluxo evidente de ações, mas tem de ser suficientemente aberta para (me) ser algo assustador [risos] e para que algo desconhecido surja dessa interação entre lugar e estrutura ou ritual da performance. É isso que confere poder ao momento performático transcendente ao vivo. Ou, para usar outra palavra, é aí que reside a comunicação.
Pergunto a Jill: “Então é essa a razão para se fazer uma obra com base num lugar?”
Ela responde:
A razão está em permitir que várias perspectivas diferentes sejam vistas num mesmo lugar, nas mesmas perspectivas temporais e culturais que se desenvolveram a partir da história e que continuam a ser encenadas no presente. São essas coisas que impedem ou permitem que as pessoas vivam respeitando-se mutuamente.
A minha própria prática na dança, a que eu chamo locating (localização), visa o
relacionamento com um lugar através da percepção e da improvisação, para articular uma
relação entre o meu corpo e aquele determinado local. As obras performáticas que executo
neste processo de interligar o empenho em representar o meu desejo de me “enquadrar” num
ambiente e de, simultaneamente, expressar o meu constrangimento pelo fato corpóreo de ter
pele branca neste país. Perceber que a minha presença neste país se deve à exploração do
colonialismo e é responsável pela expropriação e injustiças constantes contra os povos
indígenas, perturba-me profundamente [Nota da Tradução: a artista usa o termo unsettle, que,
por um lado, significa precisamente “perturbar, inquietar”, por outro lado, encerra em si a
negação (un-) de settle, enquanto fixar-se, estabelecer-se, colonizar], pelo que decidi não
evitar esta temática nas minhas obras relativas a lugares na Austrália. As minhas
representações dos vários níveis históricos de um local estão, pois, dispostas segundo esta
lente pós-colonial. Abordo o lugar em termos localizados e específicos, e concebo-o como um
microcosmo que sirva de referência a todo o continente australiano e às respectivas tensões
sociopolíticas. As minhas obras tentam reconhecer a história colonial, já que a cor branca da
minha pele faz com que eu tenha de incluir essa história como parte da minha identidade.
Qualquer que seja o lugar australiano com que esteja a trabalhar, incluindo espaços
urbanos contemporâneos e/ou espaços interiores, tenho consciência e procuro atrair a atenção
do público para o lugar antigo aborígene que, acredito, ainda existe por baixo, antes e
“através” da arquitetura. A minha obra ao vivo Blasted Away (2005) foi executada na Queen’s
Bridge, em Melbourne, onde até aos anos 80 do séc. XIX uma parede de pedra atravessava o
rio Yarra, formando uma cascata. Tinha procurado um lugar no bairro empresarial de
Melbourne que fosse significativo tanto para a história indígena como para a história europeia
e encontrei as quedas de água na forma de um enfeite num mapa antigo de Melbourne na sala
dos mapas raros na biblioteca estatal. Pesquisando mais, percebi que as quedas de água foram
um importante ponto de travessia e de encontro para os clãs da nação Kulin, além de terem
estado por detrás da principal motivação das decisões de Batman e de Faulkner de se
estabelecerem aqui, devido à separação entre a água salgada e a água doce a montante.
Contudo, menos de duas décadas depois da ocupação europeia, o rio já estava, de qualquer
forma, demasiado poluído para se poder beber a água, pelo que a cascata foi rebentada
[Blasted Away] com dinamite nos anos 80 do séc. XIX de modo a permitir a navegação rio
acima.
Gretel Taylor, Blasted Away, 2004. Fotografia de Christian Alexander
Fiz várias performances de movimento em Queen’s Wharf, este primeiro lugar de
fixação das gentes de Batman e de Faulkner, na “descoberta” do lugar que haveria de se
tornar na cidade de Melbourne. Envergando um fato formal contemporâneo e saltos altos, a
minha dança fazia intermitentes referências a características arquitetônicas e ocorrências
incidentais do ambiente urbano atual (degraus de basalto, ancoradouros, arranha-céus do
outro lado do rio, um banco de rua, semáforos, elétricos a passar e peões a falar ao celular),
bem como a cascata na minha imaginação, que ali existira em tempos. Ao lado de uma placa
comemorativa do significado deste lugar para a nação Kulin e os colonos europeus, em
termos ofensivamente neutros, dancei a violência que eu sentia estar a faltar no memorial. A
obra terminava com a projeção de uma imagem de vídeo e o som de uma cascata na ponte
como a minha versão de um memorial do local que existiu e, de algum modo, ainda existe
neste lugar.
Referindo arbitrariamente múltiplas histórias além de referir o momento atual, eu
esperava revelar a onipresença das estórias que este lugar engloba e propor que,
intencionalmente ou não, elas informam as nossas identidades personificadas atualmente. O
público fica ciente do tempo como sendo fluído, transitório, ainda que incorporado no lugar.
O passado está implicado no presente e no futuro; o presente está inextrincavelmente ligado
ao passado e, assim, até certo ponto, o presente é responsável pelo passado. Reina Lewis e
Sara Mills, editoras de Feminist Postcolonial Theory: A Reader afirmam:
Tem sido difícil lidar, de formas construtivas, com a ligação entre a exploração do passado e a afluência do presente e, naturalmente, os feitos dos colonos do passado e da própria pessoa… A culpa dos brancos é uma das respostas menos produtivas a esta história. (2003, p.7)
Questiono-me: posso admitir sentir esta culpa e usá-la “construtivamente” (ou, pelo
menos, criativamente)?
Still Landing, videoinstalação, por James Geurts, 2006
Inspirando-me em relações que desenvolvi ao viajar pelo Northern Territory, consegui
permissão dos proprietários para filmar um vídeo na sua região (Purtuiu, a noroeste de
Yuendumu, a aproximadamente 400 km a noroeste de Alice Springs). Estas mulheres idosas
não só me acolheram, como deram um contributo inestimável ao projeto, ao permitirem que
as suas canções fossem gravadas e usadas na trilha sonora. Acabando por assumir a forma de
uma instalação em três telas, Still Landing (2007-08) explora a relação experiencial momento
a momento do meu corpo com o ambiente desértico por entre referências por via de imagem e
som às histórias colonial e aborígene. Numa colagem coreografada de imagens não lineares,
assumo diversas aparências: uma criatura desprezível do ramo imobiliário, em roupas
modernas, dividindo e domesticando a terra, uma marionete germânica tradicional
literalmente “atirada” para a terra vermelha do deserto, uma “ode a Miranda’ (a menina
desaparecida de Picnic at Hanging Rock) e eu mesma, mal vestida, como Napangardi, o nome
que me deram os meus amigos Warlpiri, tentando ouvir e responder a esta região e aos povos
indígenas nela, no momento presente. Estas personagens, que representam aspectos da minha
própria identidade, além de refletirem a história da região, são encaradas como se cada uma
respondesse diferentemente às vozes das mulheres Warlpiri que emanam da terra. Contudo, as
distinções entre as personagens esbatem-se no final, congregando-se numa miscelânea de
disfarces imundos sobre o meu corpo fatigado, sugerindo o entrelaçamento de histórias e as
contínuas implicações que englobam a minha identidade/ o meu corpo enquanto mulher
australiana branca nos dias de hoje. Passado, presente e futuro entretecem-se mutuamente,
estão intrinsecamente ligados, ainda que sejam irreconciliáveis. A dança reside na sua própria
impossibilidade; é uma tentativa de atingir o inatingível: ficar-se completamente incorporado
no momento presente, localizado, estabelecido, integrando-se, de algum modo, em tudo o que
ali aconteceu antes.
Still Landing cena do vídeo, por James Geurts, 2006
A incursão do tempo no tema do lugar, no meu trabalho, visa, sem presumir ter
conseguido, uma incorporação da minha identidade como mulher australiana branca no
momento atual: “um presente em devir”. Concordo com Jill Orr quando diz: “Se eu ao menos
eu puder possuir as imperfeições do passado que herdei e as imperfeições das minhas próprias
ações passadas e representá-las performaticamente, de alguma forma, isso terá de contribuir
para um mais profundo entendimento do onde nos encontramos hoje”.
Bibliografia Eidelson, Meyer, 1997, The Melbourne Dreaming: a guide to the Aboriginal places of Melbourne,
Aboriginal Studies Press, Canberra.
Lewis, Reina e Mills, Sara (ed.), 2003, Feminist Postcolonial Theory: A Reader, Routledge, Nova
Iorque.
Muecke, Stephen, 2004, Ancient and Modern: time, culture and Indigenous philosophy, University
of New South Wales Press, Sydney.
Orr, Jill, 2009, <http://www.jiillorr.com.au/>.
Orr, Jill. Entrevista de Gretel Taylor, Melbourne, 29/6/2009.
Otto, Kristin, 2005, Yarra, Text Pub., Melbourne.
The Australian Concise Oxford Dictionary, 2004, Oxford University Press, South Melbourne, 4.ª Ed.
Gretel Taylor Artista performática independente, acadêmica e investigadora. Formada em Estudos Performáticos pela
Faculdade de Artes e Comunicação da Universidade de Victoria (Austrália).
[tradução do inglês por Susana Canhoto]
Link para o texto original:
<http://artsonline.monash.edu.au/performance/files/2012/09/proceedings-taylor-the-
omnipresence-of-time-in-place-ttp-conference.pdf>
© 2013 eRevista Performatus e o autor