Download - A Nocao de Regra
5/16/2018 A Nocao de Regra - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-nocao-de-regra 1/7
I
3A nocao de regra:
principio da cultura,
possibilidade e humanidade*
Luiz Henrique Passador
Quantas vezes voce ja reclamou das regras que 0
mundo the impoe, limitando sua liberdade de
escolha, acao, pensamento e expressao?Certamente, mais
de uma. E certamente voce tambem nao foi 0 unico. Pois
as regras cumprem esse papel de cercear,regular e limitara atividade humana. Mas tambem cumprem 0 papel de
ordenar e dar sentido a ela, permitindo que nossas ex-
pressoes alcancem urn conteudo que lhes desejamos dar
e, assim, possam ser entendidas pelomundo. It isso que
garante a possibilidade do exercicio de liberdade que nos
e mais caro: a liberdade de expressar nossas pr6prias
ideias, Portanto, a liberdade s6 e alcancada quando abri-,~mos mao dela, 0 que parece contradit6rio e paradoxal a
primeira vista. Tomemos urn exemplo rotineiro para en-
tendermos esse fato.
Suponhamos que voce queira xingar ou fazer uma
declaracao de amor a alguem. Nao faz sentido algurnxingar ou declarar-se se 0 sujeito a quem for dirigido 0
improperio ou a seducao nao entender 0 que voce quer
* Quero expressar meus agradecimentos a Marian Dias Ferrari,
por suas contribuicoes para 0 entendimento das questoes
psicanalfticas discutidas neste capitulo.
5/16/2018 A Nocao de Regra - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-nocao-de-regra 2/7
52 Luiz Henrique Passador
dizer, Para tanto, sera precisoverbalizar seus sentimentos
de forma a garantir que, quem receber suas mensagens,
entendera plenamente 0 conteudoque voceformulou e quis
transmitir atraves delas. Ora, isso s6 sera possivel se
ambos compartilharem da mesma lingua. Nao so voce
verbalizara seus conteudossubjetivos definidospela lingua
,; comum a ambos, como tera de formula-los antes de ex-
pressa-los: vocepensara atraves da lingua. Nao s6 pen-
sara, como produzira emocoes decifraveis pela lingua
utilizada, isto e , que ela podetraduzir empalavras e frases
e que, portanto, ja se encontram previamente decifradas
e codificadas nela: voceorganizara suas emocoes atraves
da lingua. Nao s6voce fara tudo isso, comotambem 0 fara
o sujeito a quemsera enderecada a sua mensagem: ele tera
\ de entender as suas palavras, os seus pensamentos e as
Jsuas emocoes atraves do dominic que tern da lingua que
\YOCeSutilizarao, que tambem ordena as formas de ele
'falarvouvir, pensar e sentir. S6 assim sera possfvel a ele
entender 0 que lhe for transmitido, pois 0 que voce
expressara serao formas de falar, ouvir, pensar e sentir
~ que ele, como voce, ja experimentou e que, portanto,
compoem a subjetividade de ambos. Por isso e que setornado possivel troca-las e compart ilha-Ias. 0 que
senfir ao, pensarao, dirac e ouvirao sera tao-somente
definido par voces? Ja da para comecar a desconfiar,
atr aves desse exemplo, que a liberdade de expressao,
pensamento e producao das emocoes nao e tao ampla e
irrestrita comoas vezes imaginamos, nem uma experiencia
definida por indivtduos isoladamente.
i A Imgua, comotodas as formas de linguagem, e urn
\ corpo repleto de regras que garantem a producao de
, ~ 1 \ sentido pela sua ordem logicae gramatical, permitindo aos
seres humanos 0usa dessa logica na producao e ordenacao
dos seus pensamentos, emocoes e expressces, de forma
individual ou coletiva. Os principios 16gicosdessa ordem
sao ~.regras que€la contem, Facamos outre exercicioparatentarmos comprovar oiesta sendo dito aqui. Pense em
algurna coisa agora, qualquer coisa,mas que nao seja uma
t
I
,~
Anoeao de regra 53
imagem. Formule urn pensamento ... De asas it sua ima-
ginacao, exercite a sua liberdade depensamento! Pensou?
Pois bern, aposto como voce pensou usando palavras ou
formulando frases. Agora eu pergunto a voce: que
liberdade de pensamento e essa que necessita utilizar uma
,lingua para se realizar? Uma lingua que temos de
aprender, pois nao nascemos cornela. Uma lingua que e
dooutro, que nao nos pertence comodomnatural, mas que
nos e emprestada e por n6s utilizada. Uma lingua atravesda qual pensamos e que, sem a qual, nao conseguiriamos
mais pensar como0 fazemos. Uma lingua, enfim, plena de
regras que definem a l6gica do nosso pensamento e que
se torna 0 nosso instrumento de libertacao: se e corn ela
que pensamos, e atraves dela que podemos realizar 0
exercicio de sermos quem somos, livres para xingarmos,
amarmos e sermos correspondidos pelo outro. Voce ainda
acha que as regras tern por funcaotolher a sua liberdade? / A 'o exemplo dos usos da lingua tern uma funcao
esclarecedora. Ela e urn dos elementos mais caracterfsticosdas culturas, urn de seus patrimonies particulares mais
reconhecidos por todos e urn dos elementos fundamentais
que dao identidade aos diversos agrupamentos humanos.
As linguas sao parte das culturas e, como os demais
sistemas culturais (religiao, economia, moral, arte, etc.),
guardam relacao intrfnseca com as formas de vida e
pensamento culturais. 0 fato de serem ordenadas por
regras, assim comoqualquer sistema simb6lico, revela que
as culturas comourn todosao ordenadas a partir de regras,
que se constituem como seus principios de ordenacao
logica, possibilidade de producao e troca de significados
compartilhados e, portanto, de cornunicacao e com-
preensao. Num sentido ample, as culturas podem ser to-
madas comolinguagens, cuja caracterfstica e permitir a
producao de sentido e ordem it atuacao dos seres humanos
e as realidades que eles produzempara si, estando na base
da ordenaeao da subjetividade humana, das relacoes entre \
os individuos e domundo que constr6em e experimentam. )
Enquanto linguagens, as cultur as tern uma grama-
5/16/2018 A Nocao de Regra - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-nocao-de-regra 3/7
54 Luiz Henrique Passador Anocao de regra 55
ticalidade, uma estrutura responsavel pelo sentido pre-
sente nas manifestacoes humanas e, portanto, se cons-
tituem comocamposfundados por regras. Assim sendo, as
regras tern uma funcao simb6lica que vai alem da mera
coercao.Elas permitem a producao de sentido.
o que se esta querendo afirmar aqui e que a regra e
~J!rincipio~_~ylt1,lra..,ou seja, que noprinctpio c ia culturadeve ter existido uma regra que levou a sua formacao e
estruturacao enquanto tal. Se a cultura e uma condicao
humana, isto e , se os homens nao produzem formas de
organizacao coletivas que nao estejam fundamentadas
num corpo de regras compartilhadas, entao ela e um dado
comum a nossa especie e fundamento da humanidade.
Logo,0 que fundou a condicaohumana, por deducao, deve
ter sido uma regra que teve um carater universal para
toda a especie humana. Se 0 que nos funda comosujeitos
no mundo sao as formas como pensamos enos ex-
pressamos e seessas formas nao sao inatas, ficaclaro que
foram produzidas e perpetuadas pelos homens, nao pelanatureza. Se 0 que estrutura essas formas sao as regras,
claro tambem fica que regras nao sao fatos naturais, mas
sim producoes hist6ricas engendradas pelos homens; a
vida humana muda porque as regras mudam, enquanto a
:natureza se mantern estavel porque suas leis nao se
alteram. Entao, se ha uma regra na origem da cultura e
da condicao humana, ela foi produzida pelos pr6prios
homens e, conssquencia disso, temos que ° homem e
uma especie que inventou a si mesma aoimpor condicoes
de existencia que 0 retiraram dos dominios e imposicoes
da natureza, colocando-onos dominios da cultura e das
regras.Que regra tao poderosa e fundamental foi essa?
fundadora da cultura: Claude Levi-Strauss e Sigmund
Freud. Ainda que fundadores de escolas de pensamento
tao distintas como a antropologia estruturalista e a
psicanalise, e partindo de pressupostos te6ricos diversos,
os dois autores reconheceram na proibicao das relacoes
sexuais incestuosas a regra que e 0 principio de uma
ordem que leva 0 ser humane a superar suas condicoesnaturais de existencia, resultando no surgimento da
cultura comocondicaoda especie.
A especie humana e a unica que produziu 0 que cha-
mamos de cultura e, aomesmo tempo, a unica que respeita
a proibicao do incesto, ou seja, a interdicao das relacoes
sexuais entre parentes consanguineos. Ora, se a proibicao
do incesto s6 existe entre os seres humanos, e possivelcomecar a questionar se esse evitamento sexual e mesmourn instinto natural de preservacao da especie, como
estamos acostumados a pensar. Se as deformidades
congenitas resultantes de relacoes incestuosas colocassem
a especie em risco, esse fato seria comum a todas asespecies e resultaria num impulso natural de evitamento
delas, Nao e 0 que se observa em outras especies. Mais
ainda, haveria uma regularidade, definida por sua
natureza hio16gicae genetica, no que concerne as relacoes
que seriam evitadas. Acontece que diferentes sociedades
humanas classificam parentes consangtnneos de formas
diferentes, 0 que, emcertos casos, leva a possibilidade de
1 relaeoes sexuais entre pais e filhas biologicamente
Q~fiIJ!g()_s,e.nquantoais, mas que pao sao reconhecidos e
E-~mse reconhecem comoparentes consangtnneos.' Isso
I.I
!
A proibiftao do incesto:
passagem da natureza para a cultura
1. Isso e 0 que se observa entre os nativos das Ilhas Trobriand
estudados no infcio do seculo por Bronislaw Malinowski
(MALINOWSKI, B.A vida sexual dos seluagens), 0 pai biologico nao
e classificado enquanto tal pelo sistema de parentesco dos
trobri~.es;a f'un~aopaterna e exercida pelo lrmiio da lDae.e~';J)re ele'-qiie recaem as proibieoes incestuosas. No-inais, os
trobriandeses sequer reconhecem nas relacoes sexuais a sua
func;aoreprodutiva.
Dais dos mais influentes pensadores do seculo XX
prccuraram dar uma resposta a questao sobre a regra'-,
5/16/2018 A Nocao de Regra - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-nocao-de-regra 4/7
Luiz Henrique Passador6
)demonstra que as sistemas de parentesco consangiiineo e
\por afinidade nao sao descritivos de uma ordem biol6gica,
Imas antes classificat6rios, definindo relacoes de parentesco
numa ordem que nao necessariamente reconhece relacoes
de desceridencia por sangue de fato, sendo portanto
socialmente produzidos. Assim sendo, 0 incesto nao e de-
finido por uma 16gica genetica, mas todos os sereshumanos tern em sua consciencia a necessidade de evita-
10.Esse ''horror ao incesto", como definiu Freud", e urn sen-
timento comum a humanidade. Porem, se nao e instintivo,de qualquer forma esta presente no pensamento; se e
pens ado mas nao e de ordem natural, tudo indica que sua
ordem e cultural, nao respondendo a necessidades de
ordem pratica (preservacao da especie, por exemplo), Logo,
o incesto e sua proibicao sao conceitos produzidos pelos
homens, que incidem sohre sua natureza e a modificam,
estahelecendo formas de pensamento e relacoes culturais.
\
Ja se viu alguem proihir urn ato que nao e desejado nem
possivel de ser cometido? Se 0 incesto e uma relacao sexualinterdita, logo e desejada e passivel de ocorrer; tal logica
nos mostra que os instintos deveriam levar os homens ao
cometimento desse ato proihido, nao 0contrario, Portanto,
( a proibieao do incesto e uma regra que ordena e da sentido
. \ it ordem cultural e mental do homem, sendo imposta de
fora para dentro, interiorizada, e que resuita numa
estruturacao da individualidade e da vida coletiva que
segue uma 16gica extern a as propensoes naturais
humanas. 0homem e um ser fundado pela cultura ao ser
retirado da natureza. A ordem da especie que a regra da
proibicao do incesto procura preservar nao e a ordem
reprodutiva natural, mas a ordem cultural que a modifica.Ao pensar a origem e as consequencias da proibicao
do incesto, Levi-Strausa e Freud discutem a natureza
humana, produzindo concepebes sobre a condicao humana
que nos ajudarn a compreender os fundamentos da nossa
II
.[
il
2_ F1t :EOD. Sigmund. 'Totem e tabu", p. 20.
B ib fio te ca Machado de Assis
A n0913.oe regra 57
existencia e 0papel que a cultura cumpre na sua definicao,
Eles identificam a proibicao do incesto como a regra que
afasta 0homem da natureza e inaugura a cultura, origem
da ordem das relacoes humanas. Essa convergencia de
pressupostos, no entanto, nao exprime uma mesma ordem
analttica desenvolvida pelos autores.
Para Sigmund Freud, que discutiu essas questoes em"Totem e tabu", a proibicao do incesto surgiu como solucao
para os conflitos experimentados na "horda primeva'",
, ' tendo por funcao instituir uma ordem paterna fundada na
I interdicao da posse das mulheres do pai pelos filhos, na
3. A horda primeva, para Freud, corresponderia ao primeiro grupo
de homens que experimentaram as consequencias da satisfacao
dos seus desejos incestuosos e, com isso, determinaram a
necessidade da imposicao de uma ordem repressiva que deu
origem a cultura. Vale a pena resumir essa historia imaginada
por Freud, pois ela permite a compreensao de suas teorias a
respeito da funcao das regras culturais. Provavelmenteorganizadas como as hordas de mamiferos observadas por
Charles Darwin, para Freud as hordas humanas primitivas
deveriam ter se organizado em torno de urn macho dominante
que detinha 0 direito a posse sexual de todas as femeas do grupo,
expulsando ou submetendo os machos mais jovens as suas
vontades e impedindo seu acesso a elas. Esse macho, como0 unico
reprodutor da horda, era portanto 0 "pai tiranico" de todas as
mulheres e homens gerados dentro do grupo, e as femeas
reprodutoras, suas maes. Urn dia, os filhos revolt ados contra a
tirania paterna e movidos por seus desejos mais primitivos,
juntaram-se e, mais fortes que 0 pai por terem se unido,
mataram-no. Nao satisfeitos, 0 devoraram e possuiram suas
mulheres (maes e irmas), Realizaram assim os atos que seus
desejos pediam: 0 parricidio e 0 incesto, que resultaram na
experiencia de identificacao com 0 pai, assumindo seu lugar e
incorporando seus direitos e qualidades (esse foi 0 sentido do
"devorar"), Apda a satisfacao de seus desejos primordiais, os filhos
se lembraram que, alem do odio, sentiam tambem amor e
admiraeao pelo pai, que se constituia assim numa figura em
relaeao a qual experimentavam uma ambivalencia emocionaL
o resultado disso foi 0 remorso e a instituicao de um sentimento
5/16/2018 A Nocao de Regra - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-nocao-de-regra 5/7
58 Luiz Henrique Passador
repressao dos desejos primordiais (que sao incestuosos) e
no evitarnento do parricidio. A consequencia disso foi 0
surgimento da!lxo~mia comoregra secundaria e derivadada primeira, que permite Q~amento d~_j.~~Qreprimw e a solucao da ambivalencia emocional que ainterdicao impoe, levando a constituicao das instancias
consciente e inconsciente da vida mental, e resultandonuma ordem psiquica que encontra paralelo na ordemnormativa cultural que 0 homem passa a viver e re-produzir. Esse drama coletivo e experimentado psiqui-
camente pelos indivfduos atraves do complexo de Edipo.Assim, na visao freudiana, as relacoes de parentesco estaona origem de uma ordem cultural que se inaugura com avivencia de experiencias sexuais e afetivas projetadas para
a realidade, sendo assim a racionalizacao posterior de urn
i'
,
I:
!
'I
de culpa coletiva experimentada por eles. Para solucionar 0
desprazer experimentado pelos crimes cometidos, os filhosreinstituiram 0 pai na realidade atraves do totem (segundo
Freud, uma figura paterna que passou a ser vista como 0
ancestral comum do clii, primeiro grupo de parentesco
consangiiineo e exogamico produzido pelos homens) e do
estabelecimento dos tabus relacionados a ele: proibieao do incesto
(interdicao de acesso as mulheres do totem, ou seja, mass e
irmas) e proibicao dematar e comer 0 animal totemico (proibicao
do parricfdio), A exogamiapassou a ser, assim, a solucao para a
repressao dos desejos-incestuosos imposta pelo tabu do incesto,
uma forma desatisfa\!B.odos desejos pelo deslocamento deles para
um objeto substituto (no caso, a esposa). A proibieao e a
consciencia dela seriam, portanto, a garantia da repressao dos
desejos, tornados inconscientes; a exogamia se constituiria napessibihdade de deslocamento e satisfa~ao dos desejos reprimidos
e solu~a() dOBconflitos ambivalentes entre proibicao e desejo. Essa
~ a ordem filogenetica (origem da especie) que se repete no
complex:o de Edipo como ontogsnese (origem do individuo). Assim,
Freud percebe nas regras surgidas na borda primeva 0 principio
da cultura e das sociedades patriarcais, da organiza~ao dos
desejos individuais e daTc:lalidade social que os homens
expezimentam, definindg/Bs forrnas universais de vida humana.
A nocao de regra 59
evento originalmente emocional, e que procura, atraves dairrtern al i z acao de regras externas e repressivas,
estabelecer uma ordem intrapstquica que da origem aocomportamento humano.
Levi-Strauss, em As estruturas elementares do
parentesco", tambem reconhece nas relacoes de parentesco
o conteudo original das regras que estabelecem0
campocultural como 0 ordenador do comportamento humano,percebendo da mesma forma a proibicao do incesto comofato universal e constante na especie, que atravessa e
transcende a diversidade e part icularidade das culturas ..Contudo, ele ve a proibil(ao do il!cesto nao como a primeira
regra, mas sim ~omo co~le~entar_ e derlva~d~,
.~~~gaIl?.~_(maisampla e generalizada que a interdicao).Para ele, a proibicao nao tern por essencia a interdicao da
posse e sim ~ obrig~crao da dadiva - ~st~_!la~?Cogamia,qI principio ,da~_El~ip~_9_ctd~<ie,undamento de qualquer regracultural, estabelecendo a cultura comourn campo de trocas
generalizadas que principia com a troca e consequentscirculacao de mulheres, 0 que garante uma distribuicaoeqiiitativa das mesmas e estabelece uma ordem sexual ereprodutiva nao instintiva. Para Levi-Strauss, portanto,
o principio da cultura esta na superacao e transforrnacao
da natureza atraves da racionalizac;ao das!elacroes~exuais\~ reproduti~a~ estruturad9.spela-reCiprocidade das regras!de parentesco que se fundam na exogamia e na proibicao:do inceato.! A cultura seria, assim, originada por umaordem mental primordialmente intelectiva e simb6lica,
4. LEVI-STRAUSS, C. As estruturas elementares doparentesco.
5. Para explicar isso, Levi-Strauss afirma 0 seguinte: "0 problema
da proibicao do incesto apresenta-se a reflexiio com toda a
ambigtiidade que (...) explica sem diivida 0 carater sagrado da
proibicao enquanto taL Esta regra, social por sua natureza de
regra, e ao mesmo tempo pre-social (.. .) primeiramente pela
universalidade, e em seguida pelo tipo de relacoes a que imp5e
sua norma. Ora, a vida sexual e duplamente exterior ao grupo.
5/16/2018 A Nocao de Regra - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-nocao-de-regra 6/7
60 Luiz Henrique Passador
derivando dela uma ordem emocional de conteudo
congruente que reafirma as regras culturais.
Em resumo, para Freud a preocupacao elementar da
cultura e dar solucoes para questoes e conflitos da ordem
das pulsoes, na tentativa degarantir a existencia humana
na coletividade atraves de uma ordem normativa e
repressiva dos desejos (portanto, teria uma origem psi-quica e emocional). Para Levi-Strauss, a cultura trataria ()
de solucionar problemas relativos as trocas simb6licas -
sendo as mulheres os bens de troca primordiais e 0
matrimonio uma troca simb6lica -, garantindo a ordem
das relacoes humanas e, conse-qiientemente, do
pensamento intelectivo queorganizara as relacoes afetivas
(portanto, sua origem e simb6licae intelectiva).Se, par urn lado, esses dais pensadores se afastam no
que concerne aos fundamentos da atividade humana -
pulsional para Freud, intelectual para Levi-Strauss -, por
Exprime no mais alto grau a natureza animal do homem, e
atesta, no seio da humanidade, 'a sobrevivencia mais
caracteristica dos instintos. Em segundo lugar, seus fins sao
transcendentes, novamente de duas maneiras, pois visam a
satisfazer oudesejos individuais (...) ou tendencias especificas que
ultrapassam igualmente, embora em outro sentido, os fins
proprtos da sociedade. Notemos, entretanto, que se a
regulamentaeao das relacoes entre os sexos constitui uma invasao
da cultura no interior da natureza, por outro lado a vida sexual
e , no Intimo da natureza, urn premincio da vida social, porque,
dentre todos os instintos, 0 instinto sexual e 0 iinico que para se
definir tem necessidade do estimulo de outrem (...). Nao fornece
uma passagem, por si mesma natural, entre a natureza e acultura (...), mas explica uma das razdes pelas quais € I no terreno
da vida sexual, de preferencia a qualquer outra, que a passagem
entre as duas orden a pode e deve necessariamente eCetuar-se.
Regra que abrange aquilo que na sociedade lhe € I mais alheio,
mas ao mesmo tempo regra social que retem, na natureza, 0 que
e capaz de supera-Ia. A proibit;8.odoincesto esta ao mesmo tempono limiar da cultura, na cultura, e em certo sentido ( ...) ea.
pr5pria cultura," (Levi-Strauss" 1982: 50).
Anocao de regra 61
outro eles abrem a possibilidade de investigacao da vida
human a a partir de uma ordenacao da sexualidade como "
seu ponto de partida e chegada. Para ambos, proibicao do
incesto e exogamia sao regras que incidem sobre a
sexualidade e a genese da construcao da vida mental e •
cultural que define 0 homem, determinando e estabe-
lecendo sua estruturacao.Ambos demonstram que as formas de estruturacao
dos individuos passam pelas estruturas da ordem coletiva
- 0 sujeito nao pensa ou existe par si s6, mas e humanizado I
quando se relaciona com seus pares dentro de urn campo
culturalmente definido, internalizando ou introjetando 0
mundo social. 0 principia disso tudo esta nas regras.
A regra como conteudo da humanidade
Uma primeira conclusao a respeito do que foi discu-
tido e que a especie humana nao e urn fato produzido na
realidade que obedece apenas aos imperativos naturais,
_imas antes urn fato hist6Li_c_o}~_odificad()or imposicoesq1.}~
·1 i a pr6pria especiecriou para si, A ordem soba qual VIve-
lm o s , nos reproduzimos e produzimos nosso pensamento enossa realidade e uma ordem que surge pelas maos dopr6-prio homem e, portanto, s6 pode ser experimentada num
mundo criado par ele: a cultura. Fora desta, 0 homo sa-
piens nao pode se constituir como ser humano, na acep-
'tao mais ampla do termo; isto equivale a dizer que 0 ho-
Imem s6 se humaniza a_raves de processos_cu_turais, pois
, que a humanidade e uma invencao da cultura.
1 'Em segundo lugar, as instintos ocupam urn espaco\ )muito menor na determinacao docomportamento humane
!doque estamos acostumados a imaginar no senso comum.As formas comopensamos, sentimos emocoes variadas e ,Q
garantimos nossas condicoes materiais de existencia sao
. result antes de uma estruturacao cultural. Nao sao formas
inatas ou herdadas biologicamente, mas resultam de
experiencias e relaeoes impostas pelooutro nodecorrer de
5/16/2018 A Nocao de Regra - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-nocao-de-regra 7/7
62 Luiz Henrique Passador A nocaode regra 63
I
i ..
nossa insercao na vida social, exigindo uma ordenacao da
subjetividade nos termos que a ordem sociocultural se da,
Arnor, odio, nojo, cornpaixao e horror, por exemplo, sao
t emoebes estruturadas por formas sociais de producao e
expressao da subjetividade. Nossos desejos devem seguir ..
as imperativos da adequacao a uma ordem governada pela
moral, pela etica, pela religiao e pelo Estado. Fora dessaordem, experimentamos apenas a culpa e 0 desprazer; fora
dela, nosso comportamento e patologizado e sem sentido,
incompreensivel para 0 outro e para n6s mesmos.
, Por fim, essa ordem, que e a ordem human a por
definicao, tem por princfpio e fundamento as regras que
produzimos e sobre as quais alicereamos a possibilidade
de sermos humanos. Sem as regras, serfamos incapazes
Ide produzir ordem e sentido para nossas acoes e
· lpensamentos e, conseqiientemente, para a realidade que
vivemos e produzimos. Sem elas, nao seriamos a especie
de homens que somos e voce nao estaria ai, nesse
momento, lendo este texto e pensando sobre estas ques-
toes, pois somente as regras lhe permitem ler, entender e
debater as ideias que eu procurei expor de forma
minimamente ordenada e compreensfvel, atraves do uso
deuma linguagem e da 16gicade um pensamento coletivo
compartilhado por n6s.
Pense nisso na proxima vez emque se revoltar contra
essa au aquela regra. Voce nao e obrigado a aceita-las e,sendo humano, pode mesmo modifica-Ias ou propor
alternatives, pois elas nos pertencem. De qualquer forma,
¢ J estara propondo novas regras e uma nova ordenacao da
realidade e da subjetividade. Essa e uma possibilidade,1 porque 0 ser humano e , por condicao, 0 criador de sua
realidade e das regras que impoe e segue. Mas pense
sobretudo que, num mundo sem regras - que me perdoem
os criacionistas -, provavelmente ainda estarfamos
sentados em galhos de arvores, fugindo de predadores,
comendobananas e procurando parasitas entre os palos
docompanheiro ao lado.
Referencias bibliograficas
FREUD,Sigmund. "Totem e tabu". In: Obras psicol6gicas
completas, vol.XIII. Riode Janeiro: Imago, 1974.
GOLDGRUB,ranklin. Mito e fantasia: ° imagiruirio segundo
Levi-Strauss e Freud. SaoPaulo:Atica, 1995.
LEVI-STRAUSS,laude.As estruturas elementares do parentesco.Petropolis:Vozes,1982 (ColecaoAntropologia nll9).
MALINOVSKI,ronislaw. A vida sexual dos selvagens. Rio de
Janeiro: FranciscoAlves,1983 (ColecaoCienciasSociais).
MICELA,osaria. Antropologia epsicanalise: uma introduciio
a produciio simb6lica, ao imaginario, a subjetividade. Sao
Paulo: Brasiliense, 1984 (ColecaoPrimeiros Vaosnll26).
•