Transcript
  • LIZA MARKLUND

    A LOBA VERMELHATraduo

    Roberto Muggiati

    Rio de Janeiro | 2014

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  • PR LO G O

    Nunca pudera suportar a viso do sangue. Havia algo em sua

    consistncia, espessa e pulsante. Sabia que era irracional, espe-

    cialmente para algum como ele. Recentemente essa repulsa se

    insinuara em seus sonhos, exprimindo-se de um jeito que no

    conseguia controlar.

    Olhou para as mos e viu que estavam cobertas de sangue

    humano vermelho-escuro. Pingava sobre sua cala, ainda quente

    e pegajoso. O cheiro lhe atingiu o nariz. Em pnico, deu um

    passo repentino para trs e balanou as mos.

    Ei, chegamos.

    A voz atravessou a fina membrana do sono, fazendo o sangue

    desaparecer subitamente. A sensao intensa de nusea perma-

    necia, e o frio cortante se infiltrava pela porta do nibus. O mo-

    torista se curvou, numa tentativa intil de escapar da friagem.

    A no ser que queira saltar na garagem.

    Todos os outros passageiros j haviam descido do nibus que

    partira do aeroporto. Levantou-se com esforo, tomado de dor.

    Recolheu sua sacola do assento, balbuciando merci beaucoup.

    O solavanco no instante em que seus ps tocaram o cho fez

    com que soltasse um gemido. Por um momento, apoiou-se na

    lateral congelada do nibus, massageando a testa.

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    Uma mulher com chapu de croch, a caminho da parada

    de nibus um pouco mais frente, parou diante de sua sacola.

    Havia preocupao genuna em seus olhos. Curvou as costas ao se

    inclinar na direo dele.

    Voc est bem? Precisa de ajuda?

    Ele reagiu com firmeza e imediatamente, balanando a mo

    diante do rosto dela.

    Laissez-moi! disse, em voz alta, ofegante aps o es-

    foro.

    A mulher no se moveu, apenas piscou os olhos algumas

    vezes, de boca aberta.

    tes-vous sourde? Jai dj dit laissez-moi.

    O rosto da mulher se endureceu diante da grosseria, e ela se

    afastou com um olhar ofendido. Ele a observou partir, nervosa e

    atarracada, arrastando-se rumo ao nmero 3 com suas sacolas de

    supermercado cheias.

    Gostaria de saber se assim que soo quando falo sueco,

    pensou ele.

    Percebeu que seus pensamentos estavam na verdade sendo

    formulados em sua lngua nativa.

    Indpendance, pensou, forando o crebro a voltar ao francs.

    Je suis mon propre matre.

    A mulher olhou para ele antes de subir no nibus.

    Ele permaneceu ali em meio fumaa dos nibus enquanto

    a rua se esvaziava de pessoas. Ouvindo o silncio do frio, absor-

    vendo a luz sem sombra.

    Em nenhum lugar do planeta o espao sideral estava mais

    prximo do que no Crculo Polar. Subestimara o isolamento en-

    quanto crescia, sem perceber a importncia de viver no teto do

    mundo. Mas agora podia enxerg-los, claros como se tivessem

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    sido gravados nas ruas, nos prdios, nas conferas congeladas:

    isolamento e exposio, uma distncia infinita. To familiares e

    ainda assim to estranhos.

    Este um lugar impiedoso, pensou, novamente em sueco.

    Uma cidade congelada que s sobrevive de subsdios estatais e

    de ao.

    E em seguida:

    Exatamente como eu.

    Com cuidado, colocou a ala da sacola sobre o ombro e co-

    meou a caminhar em direo ao City Hotel. A fachada, datada

    da virada do sculo passado, era bem como recordava, mas no

    tinha como saber se o interior havia mudado. Durante o tempo

    que passou em Lule, nunca tivera motivo para adentrar aquela

    cidadela da burguesia.

    A recepcionista saudou o velho francs com um ar de edu-

    cao indiferente. Deu-lhe um quarto no segundo andar, disse

    quando o caf da manh seria servido, entregou o carto de pls-

    tico com a faixa magntica que abriria a porta e prontamente

    esqueceu tudo sobre ele.

    Voc fica menos visvel em meio a um mar de gente, pensou

    ele, agradecendo num ingls roufenho e dirigindo-se aos eleva-

    dores.

    O quarto era atraente de um modo incerto e desavergo-

    nhado. A ambio e o custo sugeriam luxo e tradio, indicados

    pelos azulejos e rplicas de mveis elegantes. Por trs da fachada,

    conseguia enxergar janelas sujas e paredes sebentas de fibra de

    vidro.

    Sentou-se na cama por um momento, observando o creps-

    culo. Ou ser que ainda era madrugada?

    A vista para o mar da qual a pgina na Internet se vanglo-

    riava consistia de uma gua cinzenta, alguns edifcios de madeira

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    prximos ao porto, um letreiro em non e um enorme telhado

    negro.

    Estava prestes a cair no sono novamente e deu uma sacu-

    didela para clarear a mente, sentindo mais uma vez o odor que

    emanava de seu corpo. Levantou-se, abriu a sacola e dirigiu-se

    ento mesa, onde perfilou seus remdios, a comear pelos anal-

    gsicos. Depois, ele se deitou na cama enquanto o enjoo ia gra-

    dualmente passando.

    Ento, finalmente ele estava aqui.

    La mort est ici.

    A morte est aqui.

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  • T ER A - F EIR A , 10 D E N OV EMB RO

    Annika Bengtzon parou na entrada da redao, piscando os olhos

    sob a iluminao forte das lmpadas de non. O barulho vinha ao

    seu encontro, impressoras tagarelando, scanners que zumbiam,

    a batida leve de unhas aparadas sobre teclados. Pessoas alimen-

    tando mquinas com textos, imagens, letras, comandos, sinais,

    preenchendo estmagos digitais sem qualquer esperana de um

    dia terminarem o trabalho.

    Respirou fundo algumas vezes e navegou pela sala. A nica

    atividade na mesa de edio era do tipo absolutamente silenciosa e

    concentrada. Spike, o chefe, lia algumas pginas com os ps sobre

    a mesa. O diretor temporrio da redao espiava de relance a tela

    cintilante do computador, com olhos cada vez mais vermelhos,

    Reuters e a francesa AFP, Associated Press e TTA e TTB, nacionais

    e internacionais, esportes e economia, notcias e telegramas de

    todas as partes do mundo, num fluxo sem fim. A gritaria exultante

    ainda no havia comeado, nada de rumores de entusiasmo ou

    decepo por matrias que renderam ou que foram um estrago,

    discusses acaloradas defendendo uma abordagem particular em

    detrimento de outra.

    Ela passou por eles sem desviar o olhar e sem ser vista.

    De repente, um rudo, uma interrupo, uma voz que-

    brando o silncio eletrnico.

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    Ento voc est partindo mais uma vez?

    Ela se deteve, dando um passo involuntrio para o lado.

    Deixou o olhar flutuar na direo da voz de Spike, e uma lmpada

    fluorescente a cegou.

    Li que pegaria um voo para Lule esta tarde.

    Ela sentiu a quina da mesa da equipe da manh atingir sua

    coxa ao tentar chegar sua prpria mesa o mais rpido possvel.

    Parou, fechou os olhos por um momento e sentiu a bolsa escor-

    regar pelo brao ao se virar.

    Talvez. Por qu?

    Mas o editor j desviara sua ateno, deixando-a a ver

    navios, em meio ao olhar das pessoas e aos suspiros digitais.

    Annika passou a lngua pelos lbios e ergueu novamente a

    bolsa sobre o ombro, sentindo o ceticismo dos outros grudar no

    nilon de sua jaqueta acolchoada.

    Zarpe, v para longe, para casa. O aqurio com que se pa-

    recia seu escritrio estava cada vez mais prximo. Aliviada, abriu

    a porta de correr e entrou apressada. Ao fech-la, repousou a

    parte de trs da cabea contra o vidro frio.

    Ao menos permitiram que mantivesse sua sala.

    Estabilidade era algo que se tornava cada vez mais essencial,

    tanto para ela quanto para a sociedade como um todo. Na me-

    dida em que o caos se instalava e a natureza da guerra mudava,

    era mais importante do que nunca olhar para trs e aprender

    com a histria.

    Largou a bolsa e o casaco no sof de visitantes e ligou o com-

    putador. Reportar as notcias era algo cada vez mais distante, em-

    bora estivesse sentada bem no meio do corao pulsante e eletr-

    nico de uma redao. As manchetes da primeira pgina de hoje

    eram esquecidas no dia seguinte. No tinha mais energia para

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    acompanhar o ritmo do sistema ENPS, da A-Press, a besta das

    notcias na era digital.

    Passou os dedos pelos cabelos.

    Talvez estivesse apenas cansada.

    Sentou-se pacientemente apoiando o queixo nas mos en-

    quanto os programas carregavam, depois examinou seu material.

    Ela achou que j estava bastante interessante, mas os engravatados

    no comando no se mostraram to entusiasmados.

    Lembrou-se de Spike ali fora, sua voz sobressaindo entre as

    demais.

    Reuniu suas anotaes e preparou a apresentao.

    A escadaria estava escura. O garoto fechou a porta do aparta-

    mento e ficou ouvindo atentamente. A janela solta l em cima,

    na casa do velho Andersson, sibilava como sempre; o rdio estava

    ligado, mas fora isso s havia silncio, um silncio absoluto.

    Voc um intil, pensou. No h coisa alguma aqui. Seu

    covarde.

    Permaneceu ali por alguns instantes, depois partiu, decidido,

    rumo porta da frente.

    Um guerreiro de verdade nunca agiria daquela forma. Ele

    sabia que era quase um mestre; o Diabo Cruel estava prestes a se

    tornar um Deus do Teslatron; sabia o que realmente era impor-

    tante: nunca se deve hesitar numa batalha. Aprendera com seus

    video games.

    Abriu a porta e ouviu o mesmo chiado lamentoso. A neve

    infindvel do inverno fazia com que a porta s abrisse parcial-

    mente, porque ningum limpara os degraus naquela manh.

    Forou a sada, espremendo-se entre a brecha. Sua mochila ficou

    presa na maaneta, e o solavanco inesperado quase o fez chorar

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    de irritao. Puxou e puxou at uma parte da costura ceder, mas

    ele no se importava.

    Cambaleou pelos degraus, movendo os braos agitadamente

    para manter o equilbrio. Na rua, espiou por entre a neve que

    caa sobre a cerca e ficou parado.

    O cu estava iluminado por uma luz azul que rodopiava

    contra o fundo negro, indo e vindo, indo e vindo.

    Agora esto aqui, pensou, sentindo um n na garganta. para

    valer.

    Comeou a andar, mas parou prximo a um aparador de

    grama que mal podia ser visto sob a neve, ouvindo seu corao

    martelar novamente, cada vez mais rpido, tum-dum, tum-dum,

    tum-dum. Fechou bem os olhos.

    No queria ver, no ousava ir at l e espiar.

    Permaneceu ali, com os ouvidos formigando, sentindo o gel

    para cabelos endurecer no frio. Flocos pesados aterrissaram em

    seu nariz. Cada som era embalado pelas bolas de algodo for-

    madas pela neve. Mal se podia ouvir o rudo da siderrgica.

    Depois, ouviu vozes. Pessoas conversavam. Um motor de

    carro, talvez dois.

    Abriu os olhos o mximo que pde, olhando alm da cerca,

    na direo do campo de futebol.

    A polcia, pensou. Nenhum perigo.

    Aguardou at que se acalmasse antes de rastejar na direo

    da estrada e se inclinar com cuidado.

    Dois carros de polcia e uma ambulncia, pessoas de postura

    confiante e ombros largos, com cintos e uniformes.

    Armas, pensou o garoto. Pistolas. Bangue-bangue, voc

    morreu.

    Estavam ali conversando, circulando e apontando: um

    homem carregava uma fita e a desenrolava; uma garota fechou

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    as portas de trs da ambulncia antes de tomar seu lugar no

    banco do carona.

    Esperou pelas sirenes, mas estas no soaram.

    No tinha por que correr para o hospital.

    Porque ele j est morto, pensou o garoto. No h nada que

    eu pudesse ter feito.

    O som de um nibus acelerando foi aumentando rua abaixo;

    viu o nmero 1 passar pela cerca, chateado por t-lo perdido. Sua

    me ficava muito brava quando ele se atrasava.

    Tinha de se apressar. Tinha de correr.

    Mas permaneceu onde estava. Suas pernas se recusavam a

    se mover, porque ele no conseguia ir at a rua. Poderia haver

    carros. Carros dourados.

    Ajoelhou-se, com as mos tremendo, e comeou a chorar.

    Seu covarde. Covarde. Mas no conseguia parar.

    Me sussurrou , eu no queria ver nada.

    Anders Schyman, o editor-chefe, abriu o grfico com os nmeros

    de circulao na mesa de reunies. Suas mos estavam nervosas,

    suando um pouco. J sabia o que indicavam as colunas, mas as

    concluses e anlises o afetavam a ponto de fa z-lo enrubescer.

    Estava funcionando. Tudo ficaria bem.

    Respirou fundo, pousou as palmas das mos sobre a mesa,

    inclinou-se para a frente e deixou a informao ser absorvida.

    A nova direo da equipe de jornalismo estava claramente

    fazendo diferena, tanto nos nmeros de circulao como nas

    finanas. Ali estava, preto no branco. Estava dando certo, e toda

    a amargura da ltima leva de cortes vinha se atenuando. O pro-

    cesso de reorganizao terminara, as pessoas estavam moti-

    vadas, trabalhando em busca de um objetivo comum, apesar das

    redues de gastos.

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    Contornou a mesa de nogueira reluzente, passando os dedos

    pela madeira. Era uma bela moblia. Merecera. Seu comando au-

    tocrtico sobre a equipe se mostrara a coisa certa a ser feita.

    Imagino se mais algum poderia ter feito isso, pensou ele,

    embora soubesse que no havia ningum. Finalmente mostrara

    seu valor.

    O acordo que conseguira com os tipgrafos reduzira os

    custos de impresso em oito por cento. Aquilo representava uma

    economia de milhes por ano para os donos da empresa. Com a

    recesso, o preo do papel diminura, o que obviamente no era

    crdito seu, mas, de maneira geral, contribua para o desenvolvi-

    mento bem-sucedido da empreitada. A contratao de um novo

    gerente de vendas ajudara a atrair anunciantes e, nos ltimos trs

    trimestres, conseguiram arrancar fatias de mercado tanto dos

    jornais matutinos como das redes de comunicao.

    E quem havia demitido o coroa antiquado que ainda vendia

    os espaos publicitrios como se estivesse trabalhando num jor-

    naleco de uma cidadezinha do interior?

    Schyman sorriu.

    Mas o mais importante provavelmente era o aumento con-

    tnuo de vendas na primeira pgina e nos folhetos publicitrios.

    No estava contando com o ovo dentro da galinha, mas, dedos

    cruzados, parecia que alcanariam a Concorrncia no prximo

    ano fiscal ou possivelmente no que viria depois.

    O editor-chefe esticou-se, massageando a regio lombar.

    Pela primeira vez desde que chegara ao Evening Post sentia uma

    satisfao verdadeira. Era assim que imaginara o seu novo em-

    prego.

    A nica merda que levara quase dez anos.

    Posso entrar? perguntou Annika Bengtzon pelo in-

    terfone.

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    Ele sentiu o corao apertar, a magia desaparecer. Inspirou e

    expirou algumas vezes antes de voltar sua mesa para apertar o

    boto de resposta e dizer claro.

    Contemplava a embaixada russa enquanto aguardava os

    passos nervosos da reprter do outro lado da porta. O sucesso

    do jornal significava que finalmente comeara a conquistar um

    pouco de respeito na sala de redao, o que era mais percep-

    tvel pelo fato de o trfego em seu escritrio ter diminudo. Isso

    podia ser parcialmente explicado pela maneira como a redao

    estava organizada. Quatro editores todo-poderosos se dividiam

    em turnos, comandando os diversos departamentos, e aquilo

    vinha funcionando exatamente como ele planejara. Em vez

    de enfraquec-lo, a delegao de poderes o deixara mais forte.

    Transferira a responsabilidade para outros e, em vez de ter que

    discutir constantemente com toda a equipe, impunha sua auto-

    ridade por meio de seus cardeais.

    Annika Bengtzon, ex-chefe da editoria policial, fora convi-

    dada para ser um dos quatro. Ela no aceitou. Os dois romperam

    relaes. Schyman j havia revelado seus planos em relao a ela,

    vendo-a como uma possvel sucessora, e desejava envolv-la num

    plano maior de desenvolvimento. Tornar-se editora era o pri-

    meiro passo, mas ela recusara a oferta.

    Posso puni-la severamente dissera ele, ouvindo como

    aquilo soava.

    Claro que pode respondeu ela, com o olhar indeci-

    frvel flutuando em direo ao dele. V em frente.

    Bengtzon era uma das poucas pessoas que acreditavam

    ainda ter acesso livre a Schyman e a seu escritrio. No ter feito

    nada em relao a isso o incomodava. Em parte, seu tratamento

    especial vinha da grande tormenta miditica no Natal anterior,

    quando Annika foi tomada como refm num tnel por um serial

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    killer insano. Aquilo certamente ajudara a romper a espiral des-

    cendente do jornal; a pesquisa de mercado provara isso. Os lei-

    tores retornaram ao Evening Post aps lerem sobre a noite em que

    a me de duas crianas passara ao lado do Bombardeiro. Assim,

    havia motivo suficiente para tratar Bengtzon com luvas de pelica

    por um tempo. Sua maneira de lidar com a situao e a ateno

    pblica que se seguiu sua libertao chegaram a impressionar

    o conselho. Talvez no por ela prpria, mas pelo fato de ter in-

    sistido que a coletiva de imprensa fosse realizada na redao do

    Post. O presidente do conselho, Herman Wennergren, pratica-

    mente deu piruetas quando viu o logotipo do jornal ao vivo na

    CNN. Schyman tinha lembranas confusas da coletiva, em parte

    porque passara a transmisso inteira de p atrs de Annika, sob

    os holofotes, em parte por causa das inmeras vezes em que a

    histria foi retransmitida em todos os canais.

    Schyman ficara o tempo todo olhando para os cabelos des-

    penteados na parte de trs da cabea de Bengtzon, percebendo

    a tenso em seus ombros. Na televiso ela parecia plida e de-

    sorientada, respondendo s perguntas de maneira clara, porm

    seca, num ingls colegial decente.

    Nenhuma crise emocional embaraosa, graas a Deus

    dissera mais tarde Wennergren pelo celular a um dos donos da

    empresa, no escritrio de Schyman.

    Recordava bem do medo que sentira boca do tnel quando

    o tiro ecoou. Nada de reprter morta, pensou ele, qualquer coisa

    menos uma reprter morta, por favor.

    Parou de olhar para a embaixada e se sentou na cadeira.

    Um dia ainda vai desabar debaixo de voc disse

    Annika Bengtzon, fechando a porta ao entrar.

    Ele no fez nenhum esforo para sorrir.

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  • A LOBA VERMELHA 17

    Posso comprar outra. O jornal est indo muito bem

    respondeu.

    A reprter lanou um olhar rpido, quase furtivo, na di-

    reo dos grficos sobre a mesa. Schyman inclinou-se para trs,

    estudando-a enquanto ela se sentava numa das pesadas cadeiras

    para visitantes.

    Quero escrever uma nova srie de artigos disse ela,

    olhando suas anotaes. Semana que vem o aniversrio do

    ataque base area F21 em Lule, ento faria sentido comearmos

    por ali. Acho que est na hora de publicarmos uma boa sntese

    do que aconteceu, todos os fatos conhecidos. No so muitos,

    para dizer a verdade, mas posso fazer novas pesquisas. J faz mais

    de trinta anos, mas alguns dos empregados daquela poca ainda

    esto na Fora Area. Talvez tenha chegado a hora de algum

    abrir a boca. No conseguimos respostas sem fazer perguntas

    Schyman acenou com a cabea, repousando as mos sobre

    a barriga. Depois que todo o rebulio do Natal passado assen-

    tara, Annika passou trs meses em casa. Um perodo sabtico,

    como concordaram em cham-lo. Ao voltar ao trabalho no incio

    de abril, insistiu em atuar como reprter investigativa indepen-

    dente. Desde ento, ela mesma decidira se concentrar em ter-

    rorismo, sua histria e suas consequncias. Nada de especial,

    nenhuma revelao, apenas relatos de rotina do Marco Zero e

    do 11 de Setembro, alguns textos sobre o Bombardeio daquele

    shopping center na Finlndia e entrevistas com os sobreviventes

    dos Bombardeios em Bali.

    O fato que no vinha fazendo muita coisa ultimamente.

    Agora queria ir ainda mais fundo em sua retrospectiva de atos

    de terrorismo. A questo era saber se isso era relevante e se fazia

    sentido entrar na batalha quela altura.

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  • 18 LIZA MARKLUND

    OK disse ele lentamente , talvez seja uma boa.

    Tirar do ba os traumas de nosso pas, o sequestro do avio

    em Bulltofta, o cerco embaixada da Alemanha Ocidental, a

    crise com refns em Norrmalmstorg

    e o assassinato de Palme, eu sei. E, de todos eles, o

    ataque F21 foi o que recebeu menos cobertura.

    Ela deixou as anotaes carem sobre o colo e inclinou-se

    para a frente.

    O Departamento de Defesa manteve tudo sob controle,

    valendo-se de um verdadeiro arsenal de leis de sigilo. Naquela

    poca no existia na Defesa um profissional de relaes pblicas

    treinado para atender mdia, ento o pobre coitado responsvel

    pela base teve de aparecer ali em pessoa para gritar aos reprteres

    que respeitassem a segurana da nao.

    Vamos deix-la prosseguir mais um pouco, pensou ele.

    Ento, o que sabemos? perguntou ele. De verdade?

    Ela examinou obedientemente suas anotaes, embora ele

    tivesse a forte impresso de que ela soubesse tudo de cor.

    Na noite de 17 para 18 de novembro de 1969, um avio

    de combate Draken explodiu no meio da base F21 em Kallax

    Heath, nos arredores de Lule disse ela, rapidamente. Um

    homem sofreu queimaduras to srias que acabou morrendo.

    Um recruta, certo?

    Sim, mas isso s foi descoberto depois. Ele foi levado por

    uma ambulncia area ao Hospital Universitrio em Uppsala e

    ficou entre a vida e a morte por uma semana, antes de finalmente

    falecer. Calaram a famlia, que causou um rebulio alguns anos

    depois por nunca ter recebido nenhuma compensao por parte

    da Fora Area.

    E ningum foi preso?

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  • A LOBA VERMELHA 19

    A polcia interrogou mil pessoas ou mais, e a segurana

    interna, provavelmente um nmero ainda maior. Todo e qual-

    quer grupo de esquerda em Norrbotten foi checado, at seus

    membros menos importantes, mas nada foi descoberto. No era

    to simples assim, entretanto. A verdadeira esquerda se manteve

    bem fechada. Ningum conhecia suas identidades e todos usavam

    codinomes.

    Schyman sorriu nostalgicamente; ele prprio atendera pelo

    nome de Per durante um curto perodo.

    Mas no d para manter coisas desse tipo em segredo.

    No completamente, claro. Afinal, todos tinham amigos

    prximos nos grupos. Mas, pelo que sei, ainda h pessoas em Lule

    que s conhecem uns aos outros pelos codinomes que usavam nos

    grupos de esquerda do fim dos anos 1960.

    Naquela poca ela nem era nascida, pensou ele.

    Ento, quem foi?

    O qu?

    Quem explodiu o avio?

    Os russos, provavelmente. Ao menos essa foi a concluso

    a que chegaram as Foras Armadas. A situao era completa-

    mente diferente naquele tempo, claro. Estamos falando sobre o

    auge da corrida armamentista, o pice da Guerra Fria.

    Ele fechou os olhos por um instante, invocando as imagens

    e o esprito da poca.

    Havia um enorme debate sobre o nvel de segurana das

    bases militares recordou ele subitamente.

    Exato. Repentinamente, o pblico, ou melhor, a mdia,

    passou a exigir que toda base na Sucia fosse ainda mais prote-

    gida que a prpria Cortina de Ferro. O que, obviamente, estava

    fora da realidade; seria necessrio todo o oramento destinado s

    foras militares para que aquilo fosse implementado. No entanto,

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  • 20 LIZA MARKLUND

    a segurana certamente foi reforada por um perodo e, eventual-

    mente, zonas seguras foram estabelecidas dentro das bases. Cercas

    gigantescas com cmeras, alarmes e coisas do tipo ao redor de

    hangares e assim por diante.

    este o caminho que quer seguir? Com qual dos editores

    voc conversou?

    Ela olhou para o relgio.

    Jansson. Olhe, eu tenho um bilhete areo em aberto para

    esta tarde. Quero encontrar um jornalista do Norrland News l no

    norte, um cara que conseguiu novas informaes. Ele viaja para o

    sudeste asitico na sexta e ficar fora at o Natal, ento estou com

    um pouco de pressa. S preciso que me d o OK.

    Schyman sentiu sua irritao crescer novamente, talvez por

    ela estar se desculpando to afobadamente.

    E Jansson no poderia faz-lo?

    As bochechas de Annika enrubesceram.

    Em princpio, sim disse ela, encontrando seu olhar.

    Mas voc sabe como so as coisas. Ele s quer saber que voc

    no se ope.

    Ele assentiu.

    Annika fechou a porta cuidadosamente ao sair. Ele con-

    templou o vazio deixado por ela, sabendo exatamente sobre o

    que estava falando. No havia limites em seu trabalho, pensou

    ele. Sempre soubera disso. Ela no possua nenhum instinto de

    autopreservao. Colocava-se em todo tipo de situao, coisas

    que pessoas normais nunca sonhariam em fazer, pois existia uma

    lacuna ali. Algo se perdera muito tempo atrs, havia sido arran-

    cado, com razes e tudo, e a cicatriz foi sumindo ao longo dos

    anos, deixando-a exposta ao mundo e a si mesma. Tudo o que

    lhe restara fora seu senso de justia: a verdade atuando como

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  • A LOBA VERMELHA 21

    umfarol numa mente tomada pela escurido. No h mais nada

    que ela possa fazer.

    Aquilo poderia ficar bastante complicado.

    A euforia da equipe editorial com as vendagens para o pe-

    rodo do Natal chegou abruptamente a um fim quando foi des-

    coberto que Bengtzon conseguira uma entrevista exclusiva com o

    assassino enquanto era mantida refm. Fora digitada no compu-

    tador do representante do comit olmpico assassinado. Schyman

    a lera, era sensacional. O problema era que Annika, como uma

    verdadeira peste, se recusara a deixar o jornal public-la.

    exatamente isso que o desgraado quer dissera ela.

    Como tenho os direitos autorais, posso dizer no.

    Ela vencera. Se publicassem sem seu consentimento, ela os

    processaria. Mesmo que Annika viesse a perder a causa, ele no

    estava disposto a desafi-la, considerando a notoriedade que a

    histria j lhes rendera.

    Ela no estpida, pensou Anders Schyman, mas talvez

    tenha perdido o jeito.

    Ele se levantou, voltando aos grficos.

    Bem, haveria novos cortes no futuro.

    O pr do sol irradiava um brilho flamejante na cabine do avio,

    ainda que fossem apenas duas da tarde. Annika procurou por

    espaos entre as nuvens de algodo-doce abaixo dela, mas nada

    encontrou. O senhor gordo a seu lado dava cotoveladas em suas

    costelas ao abrir o exemplar do Norrland News com um suspiro.

    Ela fechou os olhos, esquecendo tudo. Afastou sua mente

    do sibilo do ar-condicionado, da dor em suas costelas e da

    vozdo piloto, que informava a temperatura no exterior da ca-

    bine e o tempo em Lule. Deixou-se ser carregada a mil quil-

    metros por hora, concentrando-se na presso das roupas sobre

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  • 22 LIZA MARKLUND

    seu corpo. Sentiu-se atordoada, enfraquecida. Rudos em alto

    volume comearam a atemoriz-la de um modo como nunca lhe

    ocorrera antes. Lugares abertos tornaram-se inacreditavelmente

    amplos; espaos apertados a faziam se sentir sufocada. Seu senso

    de espao era distorcido, o que lhe causava dificuldade para es-

    timar distncias; estava sempre cheia de hematomas provocados

    por encontres, fossem contra mveis, paredes, carros ou beira

    da calada. s vezes, o ar parecia desaparecer ao seu redor. Outras

    pessoas o utilizavam, e parecia no sobrar nada para ela.

    Mas Annika sabia que no havia perigo. Apenas tinha de

    esperar que aquilo terminasse, e os sons voltassem, as cores re-

    tornassem ao normal; no havia perigo, nenhum perigo.

    Reprimiu aquele pensamento, deixando-se flutuar para

    longe, sentindo seu queixo cair, e logo os anjos estavam ali.

    Cabelos como a chuva, cantavam eles, seres de luz e brisa de vero, total

    segurana e cerejeiras

    O medo fez com que ela enrijecesse na poltrona, batendo

    na mesinha dobrvel e derramando suco de laranja na parede da

    cabine. A batida acelerada do seu corao preencheu-lhe a mente,

    repelindo qualquer outro som. O homem gordo lhe dizia algo,

    mas ela no conseguia entender.

    Nada a assustava mais do que a cano que os anjos can-

    tavam.

    No se importava, porm, que permanecessem em seus

    sonhos. As vozes cantavam para ela noite, palavras insignifi-

    cantes e reconfortantes de uma beleza indefinvel. Nos ltimos

    tempos, s vezes continuavam mesmo depois de ela despertar, o

    que a enlouquecia de aflio.

    Balanou a cabea, limpou a garganta e esfregou os olhos.

    Verificou se no havia suco de laranja em seu laptop.

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  • A LOBA VERMELHA 23

    * * *

    Ao atravessar as nuvens em seu procedimento de descida, o tubo

    de ao foi cercado por um turbilho de gelo. Em meio tem-

    pestade de neve, Annika vislumbrou a palidez glida do golfo de

    Bothnia, interrompida por ilhas cinza-escuras.

    A aterrissagem foi desconfortavelmente turbulenta, com o

    vento arrastando o avio.

    Ela foi a ltima a deixar a aeronave, mexendo inquieta-

    mente os ps enquanto o homem gordo se erguia da poltrona,

    recolhia a bagagem do compartimento e se esforava para vestir

    seu casaco. Passou correndo por ele na sada e percebeu, com um

    qu de satisfao, que o homem acabara ficando atrs dela na fila

    para alugar um carro.

    Com a chave na mo, passou apressadamente pela multido

    de motoristas de txi junto sada, um grupo em uniformes es-

    curos que sorria e fazia julgamentos desavergonhados dos outros.

    O frio a surpreendeu quando deixou o terminal. Respirou com

    dificuldade em busca de ar, ajeitando a bolsa ainda mais alto sobre o

    ombro. A fila de txis azul-escuros a fez recordar uma visita anterior

    quele lugar, ao lado de Anne Snapphane, a caminho de Pite. Isso

    deve ter sido h dez anos, pensou ela. Nossa, como o tempo voa.

    O estacionamento ficava direita, depois das paradas de

    nibus. A mo sem luva que segurava o laptop logo congelou.

    Osom de seus passos lembrava o de vidro quebrado, tornan do-a

    mais cautelosa. Enquanto avanava, deixava dvidas e medos para

    trs; estava no caminho certo, tinha um propsito; havia um

    motivo para estar ali.

    O carro estava no fim da fileira. Teve de limpar a neve que

    cobria a placa para ter certeza.

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  • 24 LIZA MARKLUND

    O anoitecer caa de maneira incrivelmente lenta, tomando o

    lugar de um sol que nunca chegara realmente a aparecer. Aneve

    ofuscava a viso dos pinheiros atrofiados que delineavam osli-

    mites do estacionamento; inclinou-se para a frente, espiando

    atravs do para-brisa.

    Lule, Lule, para que lado ficava Lule?

    No meio de uma ponte a caminho da cidade, a neve subitamente

    amenizou, permitindo-lhe a viso do rio logo abaixo, congelado

    e branco. A estrutura da ponte elevava e abaixava sob seu corpo

    em pequenas ondas medida que o carro avanava. A cidade

    gradualmente se erguia alm da tempestade de neve e, direita,

    esqueletos industriais escuros subiam na direo do cu.

    A siderrgica e o porto de minrios, pensou.

    Sua reao ao se aproximar das construes foi imediata e

    violenta, um dj-vu da infncia. Lule era como uma verso r-

    tica de Katrineholm, mais fria, mais cinzenta, mais solitria. Os

    prdios eram baixos, em cores variadas, construdos com blocos

    de cimento, ao e tijolos. As ruas eram largas e o trfego, escasso.

    O City Hotel era fcil de encontrar, na rua principal, pr-

    ximo prefeitura. Havia estacionamento grtis diante da entrada,

    notou Annika, com surpresa.

    Seu quarto dava para o Teatro Norrbotten e para a baa de

    Stadsviken, uma gravura estranhamente incolor na qual as guas

    escuras do rio engoliam toda a luz. Deu as costas para a janela

    e apoiou o laptop na porta do banheiro, colocando a escova de

    dentes e suas roupas adicionais sobre a cama de modo que no

    tivesse de carreg-las na bolsa.

    Sentou-se ento diante da mesa de trabalho e usou o telefone

    do hotel para ligar para o Norrbotten News. Levou quase dois minutos

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