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UNIVERSIDADE DE SO PAULOFACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS
HUMANASDEPARTAMENTO DE LETRAS ORIENTAIS
PROGRAMA DE ESTUDOS JUDAICOS E RABESESTUDOS JUDAICOS
JOS RIBEIRO NETO
A INFLUNCIA DA TRADIO NA TRADUO E
INTERPRETAO DE
ISAAS 52.13-53.12
Verso Corrigida
So Paulo2014
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UNIVERSIDADE DE SO PAULOFACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS
HUMANASDEPARTAMENTO DE LETRAS ORIENTAIS
PROGRAMA DE ESTUDOS JUDAICOS E RABESESTUDOS JUDAICOS
JOS RIBEIRO NETO
A INFLUNCIA DA TRADIO NA TRADUO E
INTERPRETAO DE
ISAAS 52.13-53.12
Verso Corrigida
Jos Ribeiro Neto
Dissertao de Mestrado apresentada Faculdade de Filosofia, Letras eCincias Humanas da Universidade deSo Paulo para a obteno do ttulo deMestre em Letras Orientais.
rea de Concentrao: CulturaJudaica
Orientador: Prof. Dr. ReginaldoGomes de Arajo
So Paulo2014
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Nome: JOS RIBEIRO NETOTtulo: A influncia da tradio na traduo e interpretao de Isaas 52.13-53.12
Dissertao de Mestrado apresentada Faculdade deFilosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidadede So Paulo para a obteno do ttulo de Mestre emLetras Orientais.
Aprovado em: _____/_________________/ 2014
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Reginaldo Gomes de Arajo
Universidade de So Paulo
Julgamento:_____________________________Assinatura:____________________________
Prof. Dr. Helosa Pezza Cintro
Universidade de So Paulo
Julgamento:_____________________________Assinatura:____________________________
Prof. Dr. Paulo de Sousa Oliveira
Seminrio Teolgico Batista Nacional Enas Tognini
Julgamento:_____________________________Assinatura:____________________________
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Dedicatria
Aos meus filhos:
Katarina Tavares Ribeiro
Israel Tavares Ribeiro
Esdras Tavares Ribeiro
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Agradecimentos
Ao Professor Reginaldo Gomes de Arajo pela pacincia e apoio em todos os
momentos da pesquisa.
Ao Professor Moacir Amncio pelas valiosas sugestes acadmicas.
Professora Helosa Pezza Cintro pelas sugestes a respeito das teorias de traduo e
bibliografias referentes rea.
Ao Professor Paulo de Sousa Oliveira, amigo e companheiro em todos os momentos da
minha vida acadmica.
A todos os funcionrios do DLO pela pacincia e cordialidade.
minha amada esposa Ktia Cristina Tavares Ribeiro pelo companherismo e
compreenso em todos os momentos.
A todos meus alunos nos seminrios teolgicos onde ministro aulas que enriqueceram
minhas pesquisas com perguntas e sugestes.
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RESUMO
Esta pesquisa procura analisar a influncia da tradio na traduo e interpretao da
percope de Isaas 52.13-53.12. Inicialmente esta pesquisa discute a teoria de Eugene A. Nida,
que tem sido a principal teoria nas discusses de traduo da Bblia. Juntamente com a anlise
da teoria de Nida analisou-se tambm as principais discusses sobre traduo de outras
vertentes acadmicas e o uso das mesmas pelas principais tradies religiosas: judaicas,
catlicas e protestantes.
Por meio de estudo de casos especficos de traduo dessas diversas correntes
religiosas analisou-se as influncias teolgicas na traduo de textos tais como Isaas 14.12 na
tradio protestante, Isaas 9.5-6 na tradio judaica.
A pesquisa abordou o uso da parfrase como meio utilizado pelas tradies religiosas
para defender suas doutrinas em textos sensveis da Bblia Hebraica, bem como o poder da
tradio interpretativa como interferncia na produo de tradues alinhadas s posies
teolgicas das respectivas tradies.
A pesquisa procura delinear de forma breve, a histria dos princpios de interpretao
da tradio crist e do judasmo rabnico. As principais verses produzidas por essas tradies
interpretativas: LXX, Vulgata, Targum e Peshitta foram expostas como produtos dessas
tradies interpretativas e a percope de Isaas 52.13-53.12 nessas antigas verses e no Novo
Testamento, tambm como produtos de influncia das diferentes tradies interpretativas do
cristianismo e do judasmo rabnico.
Por fim, o trabalho busca mostrar como o texto da percope de Isaas 52.13-53.12 foi
tratado nas fontes antigas do judasmo rabnico e do cristianismo e os efeitos dessas tradies
interpretativas em duas verses modernas da Bblia Hebraica. A de linha judaica, conhecida
como Bblia Hebraica da Editora e Livraria Sfer e a de linha protestante, denominada Nova
Bblia Viva.
Palavras-chave: Isaas 53 - Traduo Tradio Interpretativa Traduo da Bblia Hebraica
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ABSTRACT
This research analyzes the influence of tradition in the translation and interpretation of
the pericope of Isaiah 52:13-53:12. Initially, this research discusses the theory of Eugene A.
Nida, who has been the leading theory in discussions of Bible translation. Along with the
analysis of the theory of Nida analyzed also the main discussions on translation of other
academic aspects and their use by major religious traditions: Jewish, Catholic and Protestant.
Through case studies of specific translation of these various religious currents analyzed
the theological influences in the translation of texts such as Isaiah 14:12 in the Protestant
tradition, Isaiah 9:5-6 in Jewish tradition.
The study addressed the use of paraphrase as a means used by the religious traditions
to defend their doctrines in sensitive texts of the Hebrew Bible, as well as the power of the
interpretive tradition as interference in the production of translations aligned theological
positions of the respective traditions.
The research seeks to outline briefly the history of the principles of interpretation of
the Christian tradition and rabbinic Judaism. The main versions produced by these interpretive
traditions: LXX, Vulgate, Targum and Peshitta were exposed to products of these interpretive
traditions and the pericope of Isaiah 52:13-53:12 those old versions and the New Testament, as
well as products of the influence of different interpretive traditions of Christianity and rabbinic
Judaism.
Finally, the work seeks to show how the text of the pericope of Isaiah 52:13-53:12 was
treated in the ancient sources of rabbinic Judaism and Christianity and the effects of these two
interpretive traditions in modern versions of the Hebrew Bible. The line Jewish Hebrew Bible
known as the Publisher and Bookstore Sefer and Protestant line called New Living Bible.
Keywords: Isaiah 53 - Translation - Interpretative Tradition - Translation of the Hebrew Bible
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Tabelas
TABELA 1
ALFABETO GREGO E TRANSLITERAO UTILIZADA1 Forma
Maiscula Forma
Minscula Maiscula
Manuscrita Nome Transliterao Som
A a alfa a a
B b beta b b
G g gama g g, sempre como em ga, gue, gui, go,
gu D d delta d d
E e psilon e e
Z z dzeta z dz H h eta e
Q q theta th th, como em ingls think
I i iota i i
K k kapa k k
L l lambda l l
M m m m m
N n n n n X x ksi ks ks
O o micron
P p pi p p
R r r r r
S s j sigma s ss
T t tau t t
U u psilon y , como em mller
F f fi f f
C c chi k r bem forte, como o chet (x) hebraico Y y psi ps ps
W w mega
1 Adotamos aqui uma transliterao simplificada de acordo com a chamada pronncia erasmiana.
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TABELA 2
ALFABETO HEBRAICO / ARAMAICO E TRANSLITERAO UTILIZADA2
Letra
Impressa Forma
Cursiva Grafia de
Rashi Valor
Numrico Nome Transliterao Som
a AaA a 1 alef sem som
B b b B 2 beyt, veyt b, v b, v
g g g 3 guimel g sempre como em ga, gue, gui, go, gu
d d d 4 dalet d d
h h h 5 hey h r fraco e sem som no final das palavras
w u w 6 waw w v
z z z 7 zayn z z
x H H 8 ret r bem forte
j ]T T 9 thet t
y y y 10 yud y i
K k $ k K K k 20 kaf, kaf, kaf final k, k, k k, r bem forte
l l l 30 lamed l l, mesmo no final
m ~ m M M m 40 mem, mem final m m
n ! n N N n 50 nun, nun final n n
s x x 60 samech s ss
[ O [O 70 ayn sem som
P p @ p P P p 80 pei, fei, fei final p, f, f p, f, f
c # c C c C 90 tsad, tsad final ts ts
q Qq q 100 qof q q
r r r 200 reish r r bem fraco como na palavra hora
f v S s 300 shin, sin x ou ss
t t t 400 tav t t
2 Estamos utilizando uma transliterao simplificada de acordo com a pronncia sefaradi
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TABELA 3
SINAIS VOCLICOS (OU DIACRTICOS) DO HEBRAICO / ARAMAICO BBLICO
SINAL VOGAL QUE
REPRESENTA Transliterao NOME
; a a Patach ] a Chataf Patach ' a ou o ou Qamats, ou Qamats Qatan e e ou ei e Tsrey , e Segol / e Chataf segol i i i Chiriq yi i Chiriq gadol o o o Cholam wO o Cholam Wav | o Chataf Qamets u u u Qubutz W u Shuruq . Resalta o som da letra ou som de e
breve 3
e
Shev
3 o shev inaudvel no ser transcrito
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TABELA 4 ALFABETO SIRACO JACOBITA (OCIDENTAL) E TRANSLITERAO
UTILIZADA Final ou Medial Isolada
Final ligada
Medial Inicial Nome Transliterao Som
A a# a# A $PFlAX Olaf sem som
B B# b# b t#yEb Bet b, v b, v
G G# g# g LFmXg Gomal g sempre como em ga, gue, gui, go, gu
D d d D tFlXD Dolat d d
h h# h# h YEh Hei h r fraco e sem som
no final das palavras
v v# v# v vFv Uau w v
z z# z# z NyFz Zain z z
O O# o# o t#yEo Heth r bem forte
J ~j j J t#yEJ Dteth t
Y Y# y# y Dv#y Iud y i
K K# k# k PXk Cof k, k, k k, r bem forte
L L# l# l dFmXl Lomad l l, mesmo no final
M M# m# m Mym Mim m m N N# n# n Nvn Nun n n
S S# s# s tFkmEs Samcat s ss
I I# i# i aEi Ee sem som
P P# p# p aEp Pe p, f, f p, f, f
Z Z# Z# Z hEDZ Dsode ts ts
Q Q# q# q Pvq Qof q q R r r R WyR Rix r r bem fraco como
na palavra hora
W W# w# w N#y#w Xin x ou ss
T t# t# T vFT Tau t t
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TABELA 5 ALFABETO SIRACO ESTRANGELA E TRANSLITERAO UTILIZADA
Final ou Isolada
Inicial / Medial
Nome Transliterao Som
a alaf sem som
B B Bet b, v b, v
g g Gamal g sempre como em ga, gue, gui, go, gu
d Dalat d d
h Hei h r fraco e sem som
no final das palavras
w waw w v
z Zain z z
X X Heth r bem forte
j j teth t
y y Iod y i
k Caf k, k, k k, r bem forte
l l Lamad l l, mesmo no final
~ m Mim m m
! n Nun n n
S s Semcat s ss
: [ E sem som
@ p Pe p, f, f p, f, f
c tsade ts ts
Q q Qof q q
r Resh r r bem fraco como na palavra hora
V V shin x ou ss
t Taw t T
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TABELA 6
ALFABETO RABE
Final Medial Inicial Isolada Transliterao
b
t
t
j
d
d
r
z
s
-
f
q
k
l
m
n
h
w
y
-
TABELA 7
ALFABETO PALEO-HEBRAICO / FENCIO / MOABITA / QUMRAN E TRANSLITERAO UTILIZADA
Letra
Fencia / Moabita / Paleo-Hebraico
Qunran Valor
Numrico Nome Transliterao Som
a 1 alef sem som b 2 beyt, veyt b, v b, v g 3 guimel g
sempre como em ga, gue, gui, go, gu
d 4 dalet d d h 5 hey h
r fraco e sem som no final das palavras
u 6 waw w v z 7 zayn z z H 8 ret r r bem forte T 9 thet t t i 10 yud y i k K 20
kaf, kaf, kaf final
k, k, k k, r bem forte l 30 lamed l l, mesmo no final m M 40
mem, mem final
m m n N 50 nun, nun final n n s 60 samech s ss o 70 ayn sem som p P 80
pei, fei, fei final
p, f, f p, f, f x X 90 tsad, tsad final ts ts q 100 qof q q r 200 reish r
r bem fraco como na palavra hora
w 300 shin, sin , s x ou ss t 400 tav t t
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TABELA 8
ALFABETO UGARTICO
SMBOLO SMBOLO
ALTERNATIVO TRANSLITERAO
a a
e i
u u
b b
g g
d d
D d
H h
w w
z z
h
y y
k k
l l
m m
n n
S s
c s
o
g
p p
q q
r r
s
t t
i t
Smbolo de diviso de
palavra
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ABREVIATURAS
ACF Almeida Corrigida Fiel
ARA - Almeida Revista e Atualizada
ARC Almeida Revista e Corrigida
AT Antigo Testamento
BH Bblia Hebraica
BHS Bblia Hebraica Sttutgartensia
BJ Bblia de Jerusalm
BLH Bblia na Lingaguem de Hoje
CNBB Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil
DITAT Dicionrio Internacional de Teologia do Antigo Testamento
JPS Jewish Publication Society (1917)
KJV King James Version
LXX Verso Grega do Antigo Testamento, conhecida como Septuaginta
NET Bible New English Translation
NIV New International Version
NVI Nova Verso Internacional
NT Novo Testamento
NTLH Nova Traduo na Linguagem de Hoje
PES Verso Sria da Bblia conhecida como Peshita
SBB Sociedade Bblica do Brasil
SBTB Sociedade Bblica Trinitariana do Brasil
TAR Targum, tradues da Bblia Hebraica para o aramaico
TEV Today English Version
TNM Traduo do Novo Mundo das Escrituras Sagradas
UBS4 O Novo Testamento Grego 4. Edio United Bible Society
VUL Verso Latina da Bblia conhecida como Vulgata
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SUMRIO
INTRODUO ..................................................................................................................... 1 1. TEORIA DA TRADUO ............................................................................................. 5 1.1 Teoria da equivalncia ................................................................................................... 6 1.1.1 Equivalncia formal (Correspondncia Formal) ........................................................ 9 1.1.2 Equivalncia dinmica (Equivalncia Funcional) ....................................................... 11 1.1.3 O estado da arte ............................................................................................................ 14 2. TRADUO OU TEOLOGIA ..................................................................................... 23 2.1 A interferncia teolgica crist na traduo de Isaas 14.12 ........................................ 24 2.1.1 A Primeiras interpretaes do texto de Is 14.12 .......................................................... 24 2.1.2 O texto fonte de Is 14.12 ............................................................................................ 26 2.1.3 A ocorrncia da palavra lucifer na Vulgata Latina ...................................................... 27 2.1.4 Definio do termo latino ........................................................................................... 29 2.1.5 Outras tradues antigas de Is 14.12 .......................................................................... 30 2.1.5.1 Targum de Jnatas ................................................................................................... 30 2.1.5.2 Verso Grega (LXX) ............................................................................................... 30 2.1.6 Outras tradues do texto nas tradies protestantes, catlicas e judaicas ................. 31 2.2 Interferncia teolgica rabnica na traduo de Is 9.5-6 ................................................. 32 2.3 Interferncia teolgica na Traduo do Novo Mundo das Escrituras Sagradas
(Testemunhas de Jeov) .................................................. ................................................... 35 3. TRADUO OU PARFRASE ................................................................................... 39 4. TRADUO OU TRADIO INTERPRETATIVA ............................................... 50 4.1 O poder da tradio ....................................................................................................... 52 4.2 A canonizao de verses autorizadas pela tradio ...................................................... 54 4.3 Princpios de interpretao crist .................................................................................. 55
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4.4 Princpios de interpretao rabnica .............................................................................. 73 5. HISTRIA DAS PRINCIPAIS TRADUES (VERSES) ANTIGAS DA BH.... 86 5.1 LXX .......................... ................................................................................................... 87 5.2 Vulgata ......................................................................................................................... 91 5.3 Targum ......................................................................................................................... 93 5.4 Peshitta ......................................................................................................................... 95 6. TRADUES ANTIGAS DO TEXTO DE IS 52.13-53.12 ....................................... 97 6.1 LXX .............................................................................................................................. 97 6.2 Novo Testamento .......................................................................................................... 100 6.3 Peshitta .......................................................................................................................... 104 6.4 Vulgata .......................................................................................................................... 107 6.5 Targum de Jnatas ......................................................................................................... 110 7. O TEXTO DE IS 52.13-53.12 E A TRADIO INTERPRETATIVA NAS
FONTES JUDAICO-CRISTS ANTIGAS ..................................................................... 116 8. TRADUES-INTERPRETAES MODERNAS DO TEXTO DE
IS 52.13-53.12.................................................................................................................. 1 3 5 8.1 Traduo judaica da Editora e Livraria Sfer ................................................................. 135 8.2 Traduo crist protestante ........................................................................................... 138 CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................. 141 APNDICE A: TRADUO INTERLINEAR LITERAL DE IS 52.13-53.12............. 146 APNDICE B: Hiney Yaskyl 'Avdy de Nachmnides ........................................................ 149
ANEXO A: MIDRASH DE RUTH RABA CONTENDO A INTERPRETAO DE
ISAAS 52.13-53.12 ........................................................................................................... 163
ANEXO B: PGINA DO MIKRAOTH GEDOLOTH CONTENDO O TEXTO E AS
INTERPRETAES DE IS 52.13-53.12.......................................................................... 166
BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................... 176
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1
Introduo
O contato que temos com o ambiente cultural estrangeiro vem a ns, primeiramente,
por meio de tradues, ou seja, a nossa leitura e interpretao de um mundo estranho ao nosso
chega-nos em segunda mo. Se j h dificuldade de uma leitura de primeira mo, pois a nossa
cosmoviso tambm interfere na leitura que fazemos dos textos, maior dificuldade nos traz
uma leitura que passa pelo crivo do tradutor ou tradutores das obras estrangeiras a que temos
acesso.
Nessa complexidade de vozes e mentalidades, que so os filtros pelos quais os textos
passam para chegar at o nosso conhecimento, as tradues constituem elemento essencial de
estudo para entendermos esses processos pelos quais as obras literrias primeiramente sofrem
antes de chegar ao pblico leitor.
A questo, porm, que preciso focar, dentre tantas outras, o fato de haver muitas
teorias de traduo que so fios condutores pelos quais o tradutor condicionado a produzir a
sua obra, partindo de uma lngua fonte at chegar lngua alvo, na qual a traduo o produto
final de seu trabalho.
A traduo como campo de estudo acadmico uma cincia nova. Embora desde a
antiguidade j se fizessem reflexes sobre princpios de traduo, o estudo acadmico da
disciplina como campo separado recente.
Como em todo campo de estudo cientfico, necessrio foi refletir e teorizar sobre os
processos e princpios subjacentes traduo; nessa teorizao, muitas abordagens foram e
continuam feitas sobre os princpios e processos de traduo. No se pode negar, contudo,
que, tanto no passado como no presente, a traduo da Bblia tem ocupado lugar de
importncia nas discusses sobre traduo, tanto por ser o texto mais traduzido em toda a
histria da humanidade, como pelo fato de ser texto sensvel nas mais diversas tradies
religiosas e, principalmente, nas tradies crists e judaicas.
O protestantismo, mais do que qualquer outra tradio religiosa, produziu o maior
nmero de tradues da Bblia nas mais diferentes lnguas conhecidas. Fundador de
Sociedades Bblicas e com propsitos missionrios, produziu as tradues da Bblia a fim de
fazer proselitismo religioso. Essa profuso de verses protestantes resultou num impacto em
outras tradies religiosas, tais como as tradies catlicas e tambm judaicas.
Verses tradicionais da Bblia protestante comearam a ser criticadas ou defendidas
pelas mais diversas correntes tericas sobre traduo, tanto, internamente, no meio
-
2
protestante, quanto, externamente, no meio acadmico ou no meio religioso por tradies que
se opunham ao protestantismo e suas verses da Bblia.
A partir dos trabalhos de Eugene A. Nida (1914-2011), as tradues consagradas da
Bblia comearam a ser vistas como ultrapassadas ou como arcaicas demais, sendo necessria
a produo de novas verses, mais atuais, mais alinhadas com as novas teorias da crtica
textual e com as teorias lingusticas e de traduo mais aceitas pelo mundo acadmico. Em
ingls, a verso mais questionada foi a King James (ou verso do Rei Tiago) e em portugus,
como resultado direto do questionamento da King James Version (KJV, 1611), as verses
baseadas na Traduo de Joo Ferreira de Almeida, a Almeida Corrigida, Almeida Corrigida e
Atualizada e Almeida Corrigida Fiel, com vrias edies desde o sculo XVIII d.C.
No debate pela produo de novas verses da Bblia podem ser destacados os
trabalhos de Eugene A. Nida, com sua teoria de traduo baseada no paradigma da
equivalncia. Por causa de sua influncia no campo da traduo no meio acadmico e sua
importncia dentro do campo de traduo da Bblia, que o presente trabalho nortear a sua
pesquisa com base nas teorias de Nida, mas relacionando as teorias desse autor com outras
teorias no campo da traduo e da lingustica.
Dentre os textos que fazem parte do debate sobre a traduo e interpretao da Bblia
Hebraica est o texto de Isaas 52.13-53.12. De acordo com a cosmoviso crist, o texto
refere-se a Jesus e a seu sofrimento na cruz do calvrio. Do lado da maioria da cosmoviso
rabnica, o texto diz respeito a Israel e seu sofrimento.
O objetivo da nossa pesquisa analisar as fontes judaicas e crists para verificar, se,
e como as duas cosmovises diferentes, influenciaram a traduo e a interpretao do texto
hebraico de Isaas 52.13-53.12, observando assim, se a tradio interpretativa pode interferir
no trabalho de traduo de um texto quando este carregado de influncias e debates
teolgicos.
A justificativa do trabalho est no fato do ressurgimento do debate judaico-cristo nas
muitas mdias da internet e das novas verses da Bblia, que procuram novas propostas de
traduo, contudo, em muitas dessas novas verses, ao invs da tentativa de transpor para a
lngua destino o texto fonte, fazem parfrases interpretativas do texto original de acordo com
as suas prprias cosmovises.
A proposta de nossa pesquisa expor como a tradio pode interferir no resultado de
uma traduo. Para isso, utilizaremos de pesquisa no texto fonte estabelecido, conhecido
como texto massortico, abordando-o do ponto de vista tanto diacrnico quanto sincrnico, e
nos valeremos das principais gramticas de lngua hebraica e estudos semticos comparados,
-
3
para uma proposta de traduo do texto de Is 52.13-53.12 que chegue mais prxima ao
sentido do texto fonte.
Utilizaremos tambm a lingustica, quando a mesma puder ser inferida nas teorias de
traduo para suporte do nosso arcabouo terico, aplicando tais teorias na produo de uma
traduo, e como ferramenta de comparao com verses que trazem uma forte influncia da
tradio em seus resultados de traduo.
Ser necessria tambm a comparao das vrias propostas de traduo com as
verses antigas mais clssicas tal como a LXX, Vulgata, NT, Peshitta, Targum e de
comentaristas rabnicos e cristos, que durante a histria deram uma proposta de traduo e
interpretao do texto e, como essa carga teolgico-interpretativa, contribuiu ou interferiu na
compreenso e traduo do texto.
Ser feita uma anlise da verso de Is 52.13-53.12 da traduo da Bblia Hebraica feita
pela Editora e Livraria Sfer, por se tratar de uma verso que se dirige ao pblico judeu e por
se tratar de uma verso que demonstra como a tradio pode interferir em uma traduo de
modo a manter o establishment interpretativo do tema messinico.
A pesquisa se dar por meio de anlise de bibliografias especficas que analisem
criticamente as verses antigas que trabalham o texto de Is 52.13-53.12. Para isso ser
necessrio analisar os princpios de traduo utilizados na antiguidade em verses antigas, tais
como as principais verses conhecidas: LXX, Vulgata, Targumim, nos Midraxes e em Rashi.
A pesquisa nessas verses necessitar ainda de uma anlise da crtica textual, de modo
a tratar do problema de variantes textuais nas verses antigas estudadas, procurando assim
verificar se houve influncia da tradio nessas verses que modificaram o texto hebraico,
bem como se houve modificaes no prprio texto tradicional por influncia teolgica.
No primeiro captulo, ser feita uma breve anlise histrico-lingustica da teoria de
traduo de Nida, a interferncia nas novas tradues protestantes, e como essa teoria
interferiu no debate entre as tradies religiosas crists e judaicas, assim como o efeito da
teoria na interferncia da tradio na traduo da Bblia Hebraica. Tambm sero discutidos
nos subtpicos desse captulo o estado da arte da teoria de traduo, relacionando esse estado
com a interferncia na traduo da Bblia Hebraica.
O segundo captulo analisar a interferncia da tradio teolgica na traduo da
Bblia Hebraica, nesse nterim, ser feito um estudo de caso da traduo do texto de Is 14.12,
e de como o texto sofreu interferncia da tradio interpretativa crist, interferindo em
tradies antigas da Bblia Hebraica e at mesmo nos lxicos do hebraico bblico. Nesse
mesmo captulo, ser feito um outro estudo de caso no texto de Is 9.6-7(9.5-6) e como a
-
4
tradio interpretativa judaica interferiu na produo desse texto na verso da Bblia Hebraica
da Livraria Sfer em portugus. Por ltimo, nesse captulo, ser feito um ltimo estudo de
caso sobre a interferncia da tradio teolgica no grupo religioso conhecido como
Testemunhas de Jeov em sua verso Traduo do Novo Mundo das Escrituras Sagradas no
texto de Gn 1.2. Os estudos de caso sero feitos em comparao com verses modernas da
Bblia Hebraica, assim como com verses antigas dos mesmos textos.
O captulo terceiro abordar o conceito de parfrase e o conceito da mesma como
princpio norteador de algumas tradues, implcita ou explicitamente. Para anlise ser
utilizado, como estudo de caso, o texto do Salmo 23 em duas verses em portugus, a NTLH
(Nova Traduo na Linguagem de Hoje e a Nova Bblia Viva, em comparao com o texto
fonte da Bblia Hebraica, indicando quais elementos lingusticos foram parafraseados.
O captulo quarto uma anlise da interferncia da tradio interpretativa na traduo
da Bblia Hebraica. Ser analisado o poder da tradio em nortear a cosmoviso do tradutor
na produo das verses da Bblia, a canonizao de verses autorizadas e referendadas pelas
tradies interpretativas. Como elemento importante para entendimento da interferncia da
tradio interpretativa na traduo da Bblia, sero analisados, ainda nesse captulo, os
princpios de interpretao protestantes, catlicos e judaicos e como esses princpios geraram
essa interferncia na produo das verses consagradas por essas tradies religiosas.
O captulo quinto far um breve histrico das principais verses antigas da Bblia
Hebraica com o propsito de situar, diacronicamente, a problemtica da tradio na traduo
da Bblia Hebraica, e de como a tradio interpretativa interferiu na produo dessas verses
consagradas nas mais diversas correntes religiosas.
O sexto captulo analisa como as verses LXX, o Novo Testamento a Vulgata e os
Targumim traduziram a percope de Is 52.13-53.12.
O stimo captulo analisar a tradio de interpretao da percope1 em fontes judaicas
antigas: Qumran, nos midrashim, no Talmude, Agad, nos debates da Idade Mdia e na
Qabalah.
O captulo nono analisar duas tradues modernas da percope, uma da Editora e
Livraria Sfer, denominada de Bblia Hebraica, representando a tradio judaica de
interpretao e outra da Editora Mundo Cristo, conhecida como Nova Bblia Viva,
representando a interpretao crist protestante da percope, verificando como as tradies
interpretativas dessas duas religies interferiram na traduo da Bblia Hebraica.
1 Entende-se por percope um pargrafo ou unidade literria de sentido
-
5
1. Teoria da Traduo
Grandes debates em relao s teorias de traduo aconteceram e continuam
acontecendo no campo de traduo da Bblia. Por se tratar de um texto considerado sagrado e
gerador de comportamento tanto moral como religioso, e por ser o formador da doutrina e
prtica das mais diversas religies e credos existentes, a traduo da Bblia permanece como
fasca inicial dos mais acalorados debates entre as diversas expresses religiosas, pois
depende da correta traduo das Escrituras Sagradas a doutrina e a prtica desses segmentos
sociais.
Esse debate no teve s influncia na formao da doutrina dos diferentes sistemas de
f como tambm delineou as principais discusses a respeito dos princpios e teorias de
traduo. Levando em conta que o livro mais traduzido na histria a Bblia 2 e permanece
palco de debate de importantes teorias de traduo no mundo ocidental.3
Ser importante para o nosso trabalho, portanto, entender as teorias de traduo mais
utilizadas dentro do campo de traduo da Bblia, a fim de verificar o uso dessas teorias ou o
abandono das mesmas na traduo e interpretao do texto de Isaas 52.13-53.12. Porm,
devido multiplicidade de teorias de traduo, procuraremos focar nosso estudo na teoria das
equivalncias desenvolvida por Nida (1982; 1986)4, posto que esta a teoria de traduo
utilizada em importantes verses da Bblia Hebraica, tanto em portugus como em Ingls.5
2 Referimo-nos aqui tanto Bblia Judaica, chamada Tanak ($nt), Bblia Catlica com os chamados livros
apcrifos ou deuterocannicos, quanto Bblia Protestante, igual Judaica nos primeiros 39 livros (exceto no arranjo dos livros) e diferente da mesma por conter o que conhecido como Novo Testamento. Embora seja fato que dentre essas trs tradies de Escrituras Sagradas a Bblia Protestante seja a que possui o maior nmero de tradues j feitas na histria, quer em pores ou de forma completa. Somente a Sociedade Bblica do Brasil em sua revista A Bblia no Brasil (n. 231 Abril a Junho de 2011 Ano 63, p. 10-15) comemora a impresso de 100 milhes de Bblias em 16 anos de existncia, essa organizao enviou 23 milhes de Bblias para 105 diferentes pases (A Bblia No Brasil, n. 231 Abril a Junho de 2011 Ano 63, p. 13). 3 O principal terico no campo de traduo da Bblia, e que amplamente citado, Eugene A. Nida (1914-
2011) e o seu trabalho de reflexo sobre teorias de traduo se d no mbito da Bblia, sua obra principal: NIDA, Eugene A.; TABER, Charles R. The Theory and Pratice of Translation. Leiden: United Bible Societies, 1982, ser discutida nos tpicos seguintes como principal fonte utilizada nas discusses atuais sobre equivalncia e traduo de textos bblicos. 4 Nida (2001, p. 1-11) faz uma breve anlise do que traduo, tambm discute os trs maiores tipos de teorias
de traduo definindo-as da seguinte forma: 1. Teorias baseadas em perspectivas filolgicas; 2. Teorias baseadas em perspectivas lingusticas e 3. Teorias baseadas em sociosemitica, (NIDA, 2001, p. 107-114). Em Nida (1986, p. 182) ou autor havia dividido as teorias em quatro: ...filolgica, lingustica, comunicativa (teoria da comunicao) e sociosemitica. 5
Em portugus: NTLH, A Bblia Viva e a NVI (em parte traduzida por equivalncia formal e em parte por equivalncia dinmica), em ingls: New Jerusalem Bible, New English Bible, Revised English Bible, Good News Bible, Complete Jewish Bible, New Living Translation, Gods Word Translation, Contemporary English
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1.1 A teoria da equivalncia
Adotando o paradigma lingustico de Chomsky e aplicando-o a traduo da Bblia,
Nida passou a desenvolver a teoria das equivalncias, questionando as verses mais clssicas
da Bblia feitas em lngua inglesa e propondo novas verses dentro da nova perspectiva.
Como veremos, tornou-se o porta-voz das novas verses bblicas em todo o mundo,
fundamentadas na teoria da equivalncia dinmica ou funcional, inaugurando uma nova
perspectiva para a traduo do texto sagrado, principalmente nos meios protestantes, mas sem
deixar de influir indiretamente em outras tradies religiosas. Desenvolvida por Eugene A.
Nida (1914-2011), a teoria da equivalncia foi a que mais causou impactos nas teorias de
traduo da Bblia, de modo que esses impactos perduram at hoje, principalmente nos
crculos religiosos protestantes. Pym (2010, p. 6) informa que O termo equivalncia, em
vrias lnguas europeias, se tornou uma das caractersticas das teorias de traduo do Ocidente
na segunda metade do sculo XX. Seu apogeu se deu entre os anos de 1960 e 1970,
particularmente dentro da estrutura da lingustica estruturalista.
A teoria, , nesses crculos, odiada por uns6 e amada por outros. usada como teoria
orientadora de projetos de traduo da Bblia das Sociedades Bblicas do Brasil (SBB) e
discutida tambm em outros projetos de traduo da Bblia para o mundo protestante, como,
por exemplo, o projeto da Nova Verso Internacional (NVI), executado no Brasil pela Editora
Vida, editora voltada publicao de materiais de cunho teolgico-devocional para o pblico
protestante brasileiro.
Em vrios congressos organizados pela SBB e nos chamados Frum de Cincias
Bblicas ou Seminrio de Cincias Bblicas, quando o assunto traduo bblica, a teoria das
equivalncias proposta por Nida discutida amplamente. Em um desses fruns (FRUM DE
CINCIAS BBLICAS, VII, 18 a 19 de Agosto de 2011, Barueri, SP. So Paulo: SBB) um
dos principais temas em discusso foi justamente a exaltao da teoria de Nida em detrimento
s outras teorias, ou a basicamente a chamada antiga forma de traduzir denominada por
Version. Esta multiplicidade de verses que usam a metodologia de Nida est no fato do prprio Nida ter sido o Secretrio Executivo da American Bible Society's Translations Department, foi tambm o fundador da Wycliffe Bible Translators atuou em parceria com o Summer Institute of Linguistics. A atuao e influncia de Nida nas tradues protestantes da Bblia imensa, ele , por exemplo, o organizador do texto grego do NT, texto crtico base para tradutores do NT em todo o mundo, no prefcio desse texto Nida citado no prefcio com grandes honras (vide O NOVO TESTAMENTO GREGO. 4. Ed., 2009 (UBS4), p. v). 6 Para uma crtica ferrenha s teorias de Nida dentro do protestantismo, ver acesso em: 17 jun. 2013.
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equivalncia formal. Esses fruns pretendem divulgar a principal traduo das Sociedades
Bblicas do Brasil atualmente denominada Nova Traduo na Linguagem de Hoje (NTLH),
que segundo afirmao da SBB uma traduo melhor do que as mais tradicionais no meio
protestante, por exemplo, a Almeida Revista e Corrigida (ARC), Almeida Revista e
Atualizada (ARA), ambas tambm publicadas pela SBB e a Almeida Corrigida Fiel (ACF),
publicada pela Sociedade Bblica Trinitariana. Em 2008, a SBB publicou algumas palestras
desses fruns no livro Manual do Seminrio de Cincias Bblicas, nesse manual, h um
artigo escrito por Zimmer e Teixeira intitulado: Tradues da Bblia: histria, princpios e
influncia, nesse artigo (p. 60-66), os autores expem a teoria das equivalncias de Nida e
defendem o princpio da equivalncia funcional que tambm chamam de princpio de
equivalncia comunicacional (MANUAL DO SEMINRIO DE CINCIAS BBLICAS,
2008, p. 60-66).
Sayo (2001) elabora uma publicao exclusiva para defender a NVI e os princpios
de traduo subjacentes mesma, contrapondo essa verso e seus princpios de traduo com
as verses mais populares da Bblia e os antigos princpios de traduo nelas subjacentes.7
Por um lado, no meio protestante, h uma tradio recebida das principais verses
utilizadas (ARC, ARA, ACF), que se tornaram uma espcie de Textus Receptus 8 protestante, e
em alguns grupos, rejeita-se qualquer outra traduo feita que divirja dessas verses. De outro
lado, esto aqueles tradutores protestantes mais alinhados com o meio acadmico, chamado
secular, ou profano, que elegeram, principalmente as teorias de Eugene Nida9 como teoria
orientadora das novas verses10 e igualmente acabam criando outra tradio de tradues, um
outro Textus Receptus, mais modernizado e alinhado com as mais novas teorias de traduo.
7 A publicao tem o sugestivo ttulo: NVI: A Bblia do sculo 21, as principais verses expostas na
comparao so as j citadas ARC, ARA e ACF, principalmente no Captulo V (p. 61-75), que tambm tem o sugestivo ttulo: Beleza, clareza e dignidade: marcas da NVI. 8 D-se o nome de Textus Receptus aos antigos manuscritos bblicos estabelecidos como fonte original da qual
as outras tradues procedem, no caso da Tanak, o Textus Receptus o Texto Massortico estabelecido pela tradio da famlia de massoretas Ben Asher (ver Francisco, 2008, p. 283-284), em se tratando do Novo Testamento o Textus Receptus o texto que tem esse nome mesmo, estabelecido por Erasmo de Roterdam no sculo XVI. 9 Em Sayo (2001, p. 29), lemos: () Esse aprofundamento cientfico tambm encontrou representantes
entre estudiosos cristos e evanglicos, que contriburam para uma compreenso mais aprofundada do grego e do hebraico bblico. Alguns nomes merecem destaque especial: Eugene Nida, James Barr, Moiss Silva, K. L. Pike e Johannes Louw. 10
No de hoje essa defesa da teoria de Nida da equivalncia dinmica, j Werner Kaschel (1979, in: 2. Congresso Nacional da Bblia: Teses. Transformaes gramaticais no processo da traduo dinmica da Bblia com vistas ao livro de Provrbios, p. 49-66), expe as vantagens da equivalncia dinmica em detrimento da chamada equivalncia formal (termos dos primeiros trabalhos de Nida). Novamente, a comparao feita entre a ento insurgente BLH (Bblia na Linguagem de Hoje) e as verses mais populares amplamente utilizadas no mundo protestante, definidas pelo autor como RC (Revista e Corrigida), RAB (Revista e Atualizada no Brasil) e a que ele chama de RIB (Revista pela Imprensa Bblica Brasileira).
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8
A tradio judaica segue duas principais vises sobre os princpios de traduo
utilizados para a produo de suas tradues da Bblia para a comunidade, enquanto que no
meio acadmico, autores com nfases judaicas, tais como Meschonic (2010a)11 com sua
conhecida viso formalista e Campos (2000)12, tambm bem conhecida viso de interferncias
do concretismo, tenham vises que seriam denominadas por Nida e Taber (1982, p. 22) de
Correspondncia Formal13 e por Beekman e Callow (1992, p. 18-28) de traduo literal
demais. Na outra linha da comunidade mais religiosa judaica, nos dito que as tradues
so feitas para a comunidade com base na tradio rabnica de interpretao, conforme lemos
na Bblia da Editora Sfer (Bblia Hebraica, 2006, p. 7):
A isto se prope esta edio do TANAH, que busca simultaneamente ser fiel ao original hebraico e tradio rabnica, e a manter a clareza da linguagem corrente em portugus14.
() uma verso do texto bblico mais apurada e isenta de influncias externas que, por diferentes razes, alteram-no ou o adaptaram s suas prprias convenincias e necessidades teolgicas.
() Mas usou-se a insero criteriosa de certas palavras (normalmente entre
parnteses) quando extremamente necessrias compreenso do texto, ou adotou-se determinada traduo no literal a fim de possibilitar sua leitura luz dos ensinamentos e orientaes tcnicas dos Sbios do Talmude e dos consagrados exegetas bblicos judeus dos ltimos 2 mil anos.15
11
Sobre seus princpios de traduo o autor diz (2010b, p. 5): Meu problema o problema de todos. J que o problema das atividades da linguagem. Eu enuncio como uma potica do traduzir, que uma tica do traduzir, uma poltica do traduzir. O problema o do poema a traduzir, do traduzir como poema. Questo de ponto de vista, no de rea lingustica. Trabalhei em vrias reas, dedicando-me mais, ultimamente, a retraduzir a Bblia. Retraduzir supe sem dvida uma teoria de conjunto, mais intensamente ainda do que traduzir o que nunca foi traduzido. Se bem que a prpria historicidade de todo ato de traduo faa, antecipadamente, de todo traduzir um traduzir situado pela histria do traduzir. Nota-se aqui um jogo de palavras simblicas numa elaborao terica do ato de traduzir, presena do simbolismo francs de Mallarm, citado por Meschonic (op. cit., p. 5). 12
Campos (2000, p. 11) define seus princpios de traduo com as seguintes palavras: Enfatizarei, apenas, que no busco, em minhas tradues bblicas, uma suposta autenticidade ou verdade textual. Meu empenho est em alcanar em portugus, segundo linhas e critrios aconselhados por minha longa e variada prtica de tradutor de poesia e sugeridos tambm pela prpria natureza do orginal, uma reconfigurao em termos de trans-criao das articulaes fonossemnticas e sinttico-prosdicas do texto de partida. Tenho por objetivo obter, atravs da operao tradutora, um texto comparativa e coextensivamente forte, enquanto poesia em portugus, a ser cotejado com as verses convencionais como um virtual exemplo do que h por fazer, nessa matria, em nosso idioma. Mais uma vez percebemos uma proposta de nova abordagem de traduo da Bblia Hebraica em contraste com as verses que Campos chama de verses convencionais. O trabalho do autor semelhante ao de Meschonic (2010), Campos (2000, p. 18-23) reconhece a influncia e importncia do trabalho de Meschonic tambm compara seu trabalho com as verses tradicionais, tanto crists como judaicas (ver Campos, op. cit., p. 18). 13
Tambm em Nida e Waard (1986, p. 36-44). 14
Os mesmos pressupostos da equivalncia dinmica defendidos por Nida (1982; 1986), por Sayo (2001) e pela SBB (2005, p. iv-v, 2008). 15
Aqui, a fora da tradio interpretativa do judasmo rabnico aparece no discurso dos tradutores, as inseres que condenam nos primeiros pargrafos e que chamam de ...convenincias e necessidades teolgicas so as mesmas que inserem nos parnteses de sua traduo, como ser visto posteriormente.
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Vertentes modernas denominadas de Judasmo Messinico, que buscam manter certas
tradies judaicas ortodoxas, acrescentando s mesmas, tradies crists com base no texto do
Novo Testamento, tambm absorveram os paradigmas de traduo de Nida em seus trabalhos
de traduo, tanto da Bblia Hebraica quanto do Novo Testamento. O lder Judeo-Messinico
David H. Stern, tradutor de uma verso da Bblia denominada Complete Jewish Bible,
traduzida em portugus como Bblia Judaica Completa: o Tanakh [AT] e a Brit Hadashah
[NT] na introduo dessa obra, em portugus, faz as seguintes afirmaes:
Existe uma escala de medio das tradues. Em um lado da escala, esto as tradues literais, que reproduzem a lngua na lngua receptora (portugus) as formas gramaticais da lngua-fonte (hebraico, aramaico e grego); os tradutores denominam tradues de equivalncia formal. (...) No outro extremo da escala, encontram-se as tradues de equivalncia dinmica, que objetivam reproduzir na lngua receptora o significado compreendido pelos leitores originais sem, entretanto, transpor as formas gramaticais da lngua-fonte. (...) Nessa escala, a Bblia Judaica Completa localiza-se mais prxima do extremo da equivalncia dinmica. Em pontos especficos, relacionados sua judaicidade, ela assim procede de forma militante. (STERN, 2010, p. 19)
As tradues da Bblia, outrora feitas medida da necessidade, conforme princpios
teolgicos das respectivas tradies, tanto judaicas quanto crists, agora, conforme se nota
pela exposio acima, so elaboradas de acordo com as teorias de traduo do campo da
lingustica, teorias essas transformadas pelo discurso16 tradicional teolgico, anteriormente
eram tradues fundamentadas nas confisses de cada tradio, so agora envolvidas pelo
discurso acadmico, mantendo as tradies, mas com uma fundamentao terico-cientfica.
Tendo estabelecido nas linhas acima um delineamento geral das discusses a respeito
do impacto da teoria de Nida na traduo da Bblia, preciso analisar, especificamente, a
teoria das equivalncias e como as verses bblicas se utilizam dela, o que ser feito nos
tpicos seguintes.
1.1.1. Equivalncia formal (Correspondncia Formal)
Nida (1964, p. 165) divide as tradues, polarizando-as em dois tipos: tradues
16
Para Fairclough (2001, p. 91) O discurso contribui para a constituio de todas as dimenses da estrutura social que, direta ou indiretamente, o moldam e o restringem; suas prprias normas e convenes, como tambm relaes, identidades e instituies que lhe so subjacentes. O discurso uma prtica, no apenas de representao do mundo, mas de significao do mundo, constituindo e construindo o mundo em significado.
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10
governadas por princpios de equivalncia formal17 e tradues governadas por princpios
de equivalncia dinmica. O autor passa, ento, a definir o que entende por uma traduo
governada por equivalncia formal com as seguintes palavras:
Para poder entender um pouco mais plenamente as caractersticas de
diferentes tipos de traduo, importante analisar em maiores detalhes os princpios que governam uma traduo que tenta reproduzir uma equivalncia formal. Tais tradues por equivalncia formal (ou E-F) so basicamente orientadas pelo texto fonte18; isto , so projetadas para revelar tanto quanto possvel a forma e o contedo da mensagem original.
Fazendo assim, uma traduo E-F procura reproduzir vrios elementos formais, incluindo: (1) unidades gramaticais, (2) consistncia no uso de palavras, e (3) significados nos termos do contexto fonte. A reproduo de unidades gramaticais pode consistir em: (a) traduzir substantivos por substantivos, verbos por verbos, etc.; (b) manter todas as frases e sentenas intactas (i.e. as unidades no so divididas e reajustadas); e (c) preservando todos os indicadores formais, e.g. marcas de pontuao, pausas de pargrafos, e indentao potica.
A anlise crtica que Nida faz s tradues que ele denomina por Equivalncia
Funcional passou a ser tambm a crtica dos novos tradutores da Bblia, principalmente no
meio protestante. A nova teoria encontrou adeptos entre os biblistas tradutores, de modo que
passou a ser a teoria base para a produo de novas tradues, essa popularizao da teoria de
Nida acabou por alcanar at mesmo os meios catlicos por meio da traduo protestante
conhecida como NTLH, pois, em fevereiro de 2005 a editora catlica Paulinas lanou a Bblia
Sagrada Nova Traduo na Linguagem de Hoje. Essa traduo foi feita pela Sociedade
Bblica do Brasil, que se utilizou dos princpios de equivalncia funcional ou dinmica de
Nida para produzi-la, foi lanada com fins ecumnicos19 pela editora Paulinas20 com
17
Num refinamento posterior da teoria Nida e Waard (1986, p. 36) mudar o termo para Correspondncia Formal, entretanto, o termo Equivalncia Formal permanecer o mais utilizado por tradutores da Bblia que adotaram a teoria de Nida em seus trabalhos, como a j citada NTLH (BBLIA DE ESTUDO NOVA TRADUO NA LINGUAGEM DE HOJE, 2008, p. vi). 18
source-oriented. 19
A verso recebeu o chamado imprimatur, a autorizao da CNBB para poder ser utilizada pelo pblico catlico. 20
O texto dessa traduo foi feito por uma comisso de cunho protestante, denominada pela SBB como Comisso de Traduo, contudo, na verso publicada pela Paulinas foram inseridos os livros deuterocannicos (conhecidos como apcrifos pelos protestantes), que seguem uma traduo feita pelas Sociedades Bblicas Unidas (UBS, United Bible Society), entidade que mantm vnculos entre as Sociedades Bblicas em todo o mundo. Tambm foram acrescentados elementos paratextuais de orientao catlica, para informaes sobre as diferenas dessa verso com a verso original protestante, ver:
, acesso em 01 mar 2012.
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permisso da Sociedade Bblica do Brasil.21
Em defesa das novas tradues e procurando encontrar erros nas tradues
tradicionais, as Sociedades Bblicas mais alinhadas s teorias de traduo utilizam-se da
mesma linguagem de Nida, s vezes at mesmo sem citar a fonte, como se pode notar na
seguinte transcrio:
Basicamente a diferena entre uma traduo como a de Almeida e a Nova Traduo na Linguagem de Hoje est nos princpios que nortearam o processo de verso. Na primeira foi utilizado o princpio de equivalncia formal, que procura seguir a ordem das palavras que pertencem mesma categoria gramatical do original. Ou seja, traduzir um verbo por um verbo, um substantivo por um substantivo e assim por diante22. A segunda baseou-se nos princpios da equivalncia funcional ou dinmica, reproduzindo o sentido dos originais de maneira fluente, como a maioria da populao fala. (A ARTE DE TRADUZIR A BBLIA. A Bblia no Brasil, Barueri, SP: SBB, n. 192, p. 13-16, Julho a Setembro de 2001)
Sayo (2001, p. 49) tambm utiliza o conceito de Nida de Equivalncia Formal23 para
se referir s verses mais tradicionais (ACF, ARC), discute brevemente a noo de fidelidade
ao original, dizendo que h diferentes conceitos de fidelidade entre as vrias tradues da
Bblia e de acordo com ele as tradues que se utilizam do princpio de equivalncia formal
no so capazes de produzir uma verso que comunique adequadamente o texto original na
lngua receptora. (Sayo, 2001, p. 49).
1.1.1 Equivalncia Dinmica (Equivalncia Funcional)
A respeito de tradues governadas pela equivalncia dinmica ou funcional, Nida
(1964, p. 166)24 diz o seguinte:
Em contraste com as tradues por equivalncia-formal, outras tradues so
orientadas por equivalncia dinmica25. Em tais tipos de traduo, o foco de
21 Para uma excelente pesquisa sobre os processos e impactos dessa traduo ver Queiroz, (2007, principalmente os captulos 5 e 6). 22
Negritos nossos, temos aqui as mesmas palavras de Nida, porm sem referncia obra do autor. 23
importante notar que o termo Equivalncia Formal, foi o que se cristalizou nas discusses acadmicas sobre traduo, mas esse termo se refere terminologia antiga de Nida (1964, 165-166) e no ao refinamento posterior do termo: Correspondncia Formal em Nida e Taber (1982) e tambm em Nida e Waard (1986, p. 36). 24
Todos os itlicos so do prprio Nida. 25
De acordo com Nida (1986, p. 36) foi preciso aperfeioar o termo pois A expresso equivalncia dinmica
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ateno direcionado, no mais pela mensagem do texto fonte, mas pela resposta do receptor. A traduo por equivalncia dinmica (ou E-D) pode ser descrita como algo que uma pessoa bilngue ou bicultural poderia justificadamente dizer Essa a maneira que eu diria isso. importante, contudo, perceber, que uma traduo E-D no meramente uma outra mensagem que mais ou menos similar a mensagem original. uma traduo, e tal qual deve claramente refletir o significado pretendido pela origem.
Uma maneira de definir uma traduo E-D descrev-la como a mais prxima equivalncia natural26 da mensagem da lngua-fonte. Este tipo de definio contm trs termos essenciais: (1) equivalente, que aponta para a mensagem da lngua-fonte, (2) natural, que aponta para a lngua receptora, e (3) mais prxima, que liga as duas orientaes juntamente com a base do mais alto grau de aproximao.27
A Sociedade Bblica do Brasil incorporou a teoria da equivalncia dinmica em sua
traduo conhecida como TLH (Traduo na Linguagem de Hoje) e NTLH (Nova Traduo
na Linguagem de Hoje), conforme lemos no prefcio da NTLH (2008, p. vi):
Os princpios seguidos nesta reviso foram os mesmos que nortearam o trabalho da primeira edio desta traduo. Diferente da traduo Almeida, que foi norteada pelos princpios de traduo de equivalncia formal, a NTLH orientou-se pelos princpios de traduo de equivalncia funcional28. Ao reproduzir o sentido dos textos originais, Almeida tambm procura reproduzir a forma dos textos originais, que muitas vezes diferente do portugus simples e natural, e assim, requer um domnio da Lngua Portuguesa que est acima da mdia da populao brasileira.29 A NTLH, por sua vez, ao reproduzir tambm e efetivamente o sentido dos textos originais hebraico, aramaico e grego, expressa esse sentido de maneira simples e natural, assim como a maioria da populao brasileira fala. Portanto, a Nova Traduo na Linguagem de Hoje continua sendo especialmente adequada ao trabalho de evangelizao e tambm muito apropriada para a leitura devocional em famlia, inclusive para as crianas.
A teorizao feita por Nida foi amplamente usada pelas novas verses da Bblia no
meio protestante. Essa teorizao polarizada criou a noo de que as verses mais
tradicionais, que foram classificadas pela teoria como feitas por equivalncia formal, estavam
tem, entretanto, levado a algumas confuses, desde que o termo dinmica tem sido entendido meramente em termos de alguma coisa que tem impacto e atrao. Por esse motivo o autor preferiu mudar o termo para Equivalncia Funcional. 26
Pym (2010, p. 6-22) tambm se utiliza do termo Equivalncia Natural como base de sua proposta de teoria de traduo em termos parecidos com as definies de Equivalncia Dinmica, feitas aqui por Nida. 27
Traduo nossa. 28
Nota-se aqui o sincronismo com as teorias de Nida j que o termo Equivalncia Funcional, , como j dito, um refinamento posterior da teoria do autor. 29
Essa afirmao evidencia que a NTLH uma traduo orientada ao leitor.
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fundamentadas em princpios lingusticos ultrapassados, sendo agora necessrias novas
tradues, fundamentadas nas mais atuais e melhores teorias lingusticas de traduo, no
caso, os conceitos e argumentos de Nida e outros nomes que so listados tais como: Saussure,
Jakobson, Hjelmslev, Chomsky, Sapir, Bloomfield (citados por Sayo, 2001, p. 29). Tais
expoentes dos estudos da linguagem so usados como fundamentadores do discurso dos
novos tradutores e das novas verses, que passam a adotar, explcita ou implicitamente, os
princpios tericos da chamada Equivalncia Dinmica ou Equivalncia Funcional.
No meio catlico, a terminologia de Nida tambm alcanou o seu lugar nas discusses
e manuais exegticos. O uso das concepes sobre traduo seguem a linguagem e expresses
clssicas dos trabalhos de Nida, como se pode ver nas seguintes afirmaes de Silva (2000, p.
30-32):
(...) h dois tipos de traduo, a saber, (1) formal ou literal30 e (2) funcional ou dinmica. Compreendamos a problemtica de base: qualquer traduo deve contemplar dois elementos, o significado da frase e sua forma (ou expresso) lingstica. A traduo formal preocupa-se em respeitar a forma lingstica do original. Por isso, sem deixar de ser compreensvel, renuncia compreenso imediata, para manter a fidelidade ao original. O resultado uma verso mais pesada e mais cheia de redundncias do que a traduo funcional.
Aqui, como Nida, Silva faz uma crtica s tradues por equivalncia formal, mais
frente, o autor dar o seu apoio s tradues por equivalncia dinmica ou funcional, com as
seguintes palavras (Silva, 2000, p. 32):
Por sua vez, a traduo funcional visa superar a dificuldade que o leitor hodierno tem em compreender a Sagrada Escritura. Para eliminar as tenses, modifica as estruturas frasais, utiliza palavras mais simples e articula as idias de forma a tornar o texto imediatamente compreensvel.
De acordo com Silva (2000, p. 32) a Bblia Edio Pastoral e o lecionrio dominical
catlico seguem uma tendncia em adotar o tipo de traduo por equivalncia dinmica. O
impacto da teoria de Nida alcanou, ento, diferentes confisses teolgicas num
questionamento s tradues mais clssicas, que, segundo Nida, seguiam um princpio de
traduo por equivalncia dinmica.
30
Todos os negritos so do prprio autor.
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Tendo, portanto, discutido a teoria de Nida e o impacto que teve nas tradues da Bblia,
abordaremos no prximo tpico, de forma abreviada, qual o estado da arte das teorias de
traduo e a aplicao dessas teorias na discusso sobre a traduo da Bblia.
1.1.3 O Estado da Arte
Pym (in: BALLARD; DHULST, 1997, p. 21) faz uma observao crtica sobre as
teorias de traduo que frequentemente assumem uma bipolaridade de termos, sejam eles
quais forem. De acordo com autor, esse tipo de bipolarizao das teorias de traduo
remontam a Ccero: ut interpres / ut orator, Jernimo: non verbo verbum sed sensu
sensum, e continuam em teorias modernas como em Nida: equivalncia formal /
equivalncia dinmica e Newmark: traduo semntica / traduo comunicativa. Pym
(op.cit., p. 21) questiona: Por que dois mtodos e no trs, quatro ou dez?.
Tentativas de definir uma tica para os tradutores e at mesmo um padro de melhores
prticas para os profissionais da rea so definidas pela Associao Americana de
Tradutores (apud CHESTERMAN, 2001, P. 150-151):
American Translators Association Code of Professional Conduct and Business Practices 1. As a Translator or Interpreter, a bridge for ideas from one language to another and one culture to another, I commit myself to the highest standards of performance, ethical behavior, and business practices. A. I will endeavor to translate the original message faithfully, to satisfy the needs of the end user(s). I acknowledge that this level of excellence requires: 2. mastery of the target language equivalent to that of an educated native speaker, 3. up-to-date knowledge of the subject material and its terminology in both languages, 4. access to information resources and reference materials, and knowledge of the tools of my profession, 5. continuing efforts to improve, broaden, and deepen my skills and knowledge. B. I will be truthful about my qualifications and will not accept any assignments for which I am not fully qualified. C. I will safeguard the interests of my clients as my own and divulge no confidential information. D. I will notify my clients of any unresolved difficulties. If we cannot resolve a dispute, we will seek arbitration. E. I will use a client as a reference only if I am prepared to name a person to attest to the quality of my work. F. I will respect and refrain from interfering with or supplanting any business relationship between my client and my clients client.
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Traduo:
Associao de Tradutores Americanos
Cdigo de Conduta Profissional e Prticas Comerciais
1. Como um Tradutor ou Intrprete, uma ponte para ideias de uma linguagem para outra e de uma cultura para outra, eu me comprometo a seguir os padres mais altos de performance, comportamento tico, e prticas de negcios. A. Eu irei me esforar para traduzir a mensagem original fielmente, para satisfazer as necessidades do(s) usurio(s) final(is). Eu reconheo que este nvel de excelncia requer: 2. Domnio da lngua receptora equivalente de um falante nativo educado, 3. Conhecimento atualizado do material em questo e sua terminologia em ambas linguagens, 4. Acesso a recursos de informao e materiais de referncia, e conhecimentos das ferramentas de minha profisso, 5. Esforo contnuo para melhorar, ampliar e aprofundar minhas habilidades e conhecimentos. B. Eu serei sincero sobre minhas qualificaes e no aceitarei nenhuma atribuio da qual eu no esteja plenamente qualificado. C. Eu protegerei os interesses de meus clientes como se fossem meus prprios interesses e no divulgarei informao confidencial. D. Eu notificarei meus clientes a respeito de quaisquer dificuldades no resolvidas. Se ns no resolvermos um litgio, ns procuraremos arbitragem. E. Eu usarei um cliente como referncia somente se eu estiver preparado para citar uma pessoa que ateste a qualidade do meu trabalho. F. Eu respeitarei e me absterei de interferir em qualquer tipo de relacionamento de negcios entre meu cliente e o cliente de meu cliente.
Gutt (2000, p. 1-22)31 faz uma excelente discusso sobre as dificuldades decorrentes
da multiplicidade de teorias de traduo e da dificuldade de delimitar o objeto de estudo e o
campo cientfico da cincia ou arte da traduo.
Para Gutt (2000, p. 4) (...) a abordagem multidisciplinar da traduo traz consigo uma
sria ameaa para o prprio objetivo o qual ela reivindica: o desenvolvimento da cincia da
traduo. Essa dificuldade de definir o que traduo, em qual rea da cincia se encaixa, se
deve ser tratada como uma nova rea da cincia, se arte em vez de cincia tem conduzido a
acalorados debates nos meios acadmicos. Nesse debate, a traduo da Bblia acaba tendo por
31
Gutt consultor internacional da SIL (Summer Institute of Linguistics, Inc) agncia de desenvolvimento lingustico que tambm trabalha com tradues bblicas. A abordagem na qual Gutt baseia suas reflexes tericas conhecida como Relevance Theory (Teoria da Relevncia), tambm discutida em CAMPOS, Jorge; RAUEN, Fbio Jos (orgs.). Tpicos em Teoria da Relevncia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008.
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um lado um grupo mais conservador que quer preservar as tradues consideradas literais,
preservando mais a forma da lngua e cultura de origem, e um outro grupo, que pretende estar
mais alinhado s teorias de traduo escolhidas como fundamento terico-metodolgico para
produo de novas verses, mais livres ou mais voltadas lngua e cultura alvo, ou de
destino.32
A abordagem de Nida surgiu como teoria contestatria das antigas tradues da Bblia
que se preocupavam com uma preservao mais literalista do texto original, as comparaes
que faz para desenvolver sua teoria tm como base principalmente os textos da KJV (como
exemplo de traduo por equivalncia formal). Semelhantemente, as tradues brasileiras que
procuram usar os paradigmas de Nida, contestam principalmente as verses tradicionais
brasileiras conhecidas pelas siglas ARC, ACF e ARA. Curiosamente, a abordagem de Nida foi
suplantada pelas novas teorias de traduo e passa a ser listada, agora, como uma teoria que
faz parte de uma viso tradicional de traduo.
A teoria das equivalncias de Nida alcanou diversos adeptos e muitas tradues
foram feitas com base nessa teoria (ver notas 6, 11, 37). A teoria serviu tambm como um
referencial acadmico para a crtica das antigas verses tradicionais no meio protestante,
como a KJV em ingls e a RC, ACF em portugus. Evidente que a teoria de Nida, tendo sido
elaborada em meados da dcada de 1960, j se encontra desatualizada em termos acadmicos,
mas j se estabilizou como base de crtica das verses antigas como se fosse uma teoria
atual.33
O debate no meio protestante no se desenvolveu e a dualidade entre tradues
absorveu a terminologia de Nida, de modo que as tradues da Bblia so analisadas de
acordo com a polaridade das equivalncias. Tradues mais prximas da literalidade do texto
fonte so classificadas como tradues por equivalncia formal, enquanto que tradues
consideradas mais livres so classificadas como por equivalncia dinmica.
parte dessas nomenclaturas, no so praticados outros princpios de traduo e
mesmo os princpios de Nida so aplicados s tradues da Bblia como um todo, desprezado
os diferentes tipos de texto (prosa, poesia, epstola, salmos, provrbios e tantos outros textos
singulares da literatura bblica), prtica que o prprio Nida desaconselharia.
No captulo 11 de seu Toward a Science of Translating (NIDA, 1964, p. 241-251) Nida
trata de vrios procedimentos necessrios que devem orientar uma traduo. Nesse captulo 32
Os termos consagrados pelos tericos da traduo so: ST (Source Text, Texto de Fonte), TT (Target Text, Texto de Destino), tambm so usados os termos SL (Source Language, Lngua Fonte) e TL (Target Language, Lngua Alvo), ver Munday (2008). 33
Nida continuou a defender a sua teoria at a sua morte em 2011.
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ele expe vrios princpios de anlise para que se faa uma traduo, que envolvem: lngua
fonte e lngua alvo, texto fonte, caractersticas lxico-gramaticais da unidade imediata,
contexto do discurso, contexto comunicativo, contexto cultural da lngua fonte, contexto
cultural da lngua receptora, dentre outros elementos que ele explica com problemticas
tiradas do prprio texto fonte para esclarecer ao leitor a sua abordagem. Mas, mesmo diante
de todas esses procedimentos, os exemplos e as anlises de Nida do enfoque maior ao nvel
de estrutura da frase ou no que se refere aos seus exemplos bblicos, ao versculo.
Embora as tradues protestantes digam utilizar a teoria de Nida, na verdade, usam a
teoria somente como um argumento pseudo-acadmico para a produo e venda de novas
verses produzidas de acordo com novos princpios de traduo, contudo, no aplicam com
coerncia os prprios princpios de Nida e, muito menos, procuram produzir novas tradues
com as teorias mais recentes.
J nas dcadas de 1960-1970, os princpios de equivalncia de Nida comeam a ser
criticados ou ampliados para se estenderem a nveis mais amplos do texto. Discorrendo sobre
teorias funcionalista de traduo das dcadas de 60-70,Venuti (2004, p. 145) diz o seguinte:
Katharina Reiss34 apresenta uma sofisticada tipologia que mostra as tenses lgicas dentro dos conceitos reinantes na literatura. Como ela argumenta no ensaio aqui reimpresso, uma traduo por equivalncia funcional precisa ser baseada em uma anlise detalhadamente semntica, sinttica e pragmtica do texto estrangeiro. Mas a anlise pragmtica sempre tem o risco de revisar qualquer relato prvio de significado, pois este define o sujeito da anlise. O tradutor pragmtico no analisa simplesmente a caracterstica lingustica e cultural do texto estrangeiro, mas o reverbaliza de acordo com os valores de uma diferente lngua e cultura, frequentemente aplicando o que House chama de um filtro para ajudar a compreenso do receptor a respeito das diferenas. O funcionalismo dentro das muitas teorias de traduo de seu tempo lana dvidas em elaboradas tipologias de equivalncia por sugerir que elas so meramente construes, esquemas idealizados no realizados em tradues atuais. Ou mais precisamente, o ideal se torna possvel somente dentro de uma estreita faixa de texto em especficas situaes institucionais, incluindo programas de treinamento de tradutores. (traduo nossa).
Abordagens mais recentes (dcada de 1990 em diante) utilizam-se dos paradigmas
lingusticos da Anlise do Discurso para propor novos paradigmas de traduo com base
nessa teoria. Segundo Mittmann (2003), as vises de Nida, Theodor e Rnai so exemplos de
paradigmas tradicionais na teoria de traduo, enquanto que Arrojo, Venuti, Aubert e Hermans
34
Negritos do autor.
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so propostas contestadoras dessas teorias tradicionais. Sintetizando a discusso de Mittman
(2003, p. 33-34), num paralelo entre as teorias tradicionais e as contestadoras, temos o
seguinte quadro35:
Teoria Tradicionais de Traduo Teorias Contestadoras de Traduo Eugene A. Nida, Erwin Theodor e Paulo Rnai
Francis H. Aubert, Rosemary Arrojo, Lawrence Venuti e Theo Hermans
- idealizao do texto original; - sentido como matriz para a realizao da traduo;
- traduo como transparncia; - o sentido no reflexo das intenes do autor, essas intenes no so acessveis nem ao tradutor nem ao leitor;
- traduo como cpia deturpadora do original;
- o sentido no est contido no texto original;
- apagamento do tradutor; - o sentido do original e a voz do autor do original no so seno uma imagem construda pelo tradutor;
- fidelidade do tradutor ao original e ao leitor da traduo;
- o sentido resultado de um ato de interpretao do tradutor;
- a interpretao determinada por fatores externos (cosmoviso, ideologia, padres estticos, etc);
- o tradutor ativo e responsvel sobre a traduo, transformador e produtor do ato de traduo;
- a voz do tradutor est presente em todo o texto da traduo, a invisibilidade do tradutor uma iluso.
Vises mais literalistas de traduo so vistas pelos tericos do discurso como
paradigmas logocntricos 36, que de acordo com esses tericos so vises ultrapassadas que
tm como iluso a autonomia do sujeito (autor) e do tradutor como simples intermedirio
entre o autor original e o leitor. Para a anlise do discurso, no existe autor autnomo, j que a
obra literria fruto da cosmoviso do autor, o qual no agente livre na constituio da obra
literria, mas sofre a interferncia da sua viso de mundo e do ambiente social em que vive.
O tradutor tambm no visto pela teoria do discurso como agente livre e neutro,
simplesmente um leitor que tm suas prprias concepes ou imagens formadas a respeito do
35
Quadro elaborado e adaptado com base nas discusses de Mittmann (2003, p. 33-34). 36
Termo extrado da palavra grega lo,goj (logos), que significa palavra, verbo e utilizado por Jacques Derrida para se referir s vises filosficas platnicas sobre o conceito do ser e ao entendimento teolgico de f ...entendido como pensamento auto-revelador ou razo csmica. (LUCY, 2004, p. 71).
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autor e da obra, e seu trabalho no passa de uma interpretao da obra original transformada
em uma traduo para a lngua alvo.
Essa concepo de traduo notada na crtica de Arrojo tradio logocntrica
(1993, p. 177-178):
A tradio logocntrica v a leitura e a traduo como instncias de recuperao e transferncia de significados e, conseqentemente, invoca a noo de fidelidade como a principal questo tica que no apenas orienta a adequao desse resgate e dessa transferncia, mas tambm presta as devidas homenagens ao autor do texto de origem. Esse quadro referencial em que o logocentrismo encaixa qualquer ato de leitura pressupe, naturalmente, significados estveis e resgatveis que estariam presentes no chamado original e cuja origem se encontra, em ltima anlise, presa s intenes conscientes de um autor. Em termos logocntricos, o enredo terico reservado traduo e leitura conciliador e harmnico: da mesma forma em que o autor conscientemente insere significados em seu texto, um leitor adequado deve ser capaz de extrair do veculo da linguagem os significados nele depositados pelo autor e, no caso da traduo, tambm de transferi-los fielmente e sem perdas para a lngua-alvo.
A proposta da teoria do discurso no campo da traduo, , ento, opor-se viso
logocntrica e questionar essa premissa da possibilidade de significados estveis e presentes
no texto (Arrojo, 1993, p. 178), prope-se ento uma desconstruo, que busca desestabilizar
a harmonia logocntrica.
O desconstrucionismo teve grande impacto na interpretao e traduo da Bblia, bem
como na teoria da equivalncia de Nida. Nida questionava a literalidade como tradicional e
incapaz de transmitir o verdadeiro significado do texto original, propunha ento um texto
mais fluido, o que seria mais adequado ao entendimento do leitor e mais coerente com os
objetivos missionrios de divulgao da mensagem do evangelho37 s muitas lnguas
existentes no mundo. Mas, para a desconstruo, no h autor autnomo, no h tradutor
transparente, s h leitor potencial, logo, termos como autor, original no cabem mais
nessa nova abordagem discursiva sobre as teorias de traduo.38
37
Nos estudos teolgicos de linha protestante chamados de missiologia e antropologia missionria, a obra de Nida largamente usada como paradigma de entendimento de novas culturas, Nida escreveu uma obra voltada para a missiologia: NIDA, Eugene. Customs and Cultures. Passadena: Willian Carey Library, 1975, publicado no Brasil de forma adaptada com o ttulo de Costumes e Culturas: Uma Introduo Antropologia Missionria. Barbara Burns Dcio de Azevedo Paulo Barbero F. de Carminati, baseado na obra de E. A. Nida. So Paulo: Vida Nova, 1995. Taber, coautor da famosa obra: NIDA, Eugene A.; TABER, Charles R. The Theory and Pratice of Translation. Leiden: United Bible Society, 1982, escreve outra obra tambm voltada missiologia: TABER, Chareles. To Understand the World, to Save the World: The Interface between Missiology and Social Science. Harrisburg: Trinity Press International, 2000. 38
Voltaremos abordagem discursiva desconstrucionista no tpico abaixo relacionado traduo e tradio interpretativa.
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Se as teorias de Nida j causaram grandes discusses no campo teolgico, o que
causaria a produo de uma traduo da Bblia alinhada com o desconstrutivismo?
O texto bblico, j sensvel por sua prpria natureza e uso nas mais diversas tradies
religiosas, acaba por ser ainda mais sensvel em confisses protestantes cuja viso e tradio
da literalidade foi sempre valorizada e ardentemente defendida. A teorizao desse tipo de
texto chamado de sensvel discutida em Hatim e Mason (1997, p. 111-112). A Bblia vista
como um Texto Sensvel39, pois se trata de um Texto Sagrado para muitas religies. Essa
sensibilidade e sacralidade do texto acaba por conduzir a interferncias da tradio
interpretativa das diversas confisses religiosas, que, para manterem sua identidade
confessional e suas prticas tradicionais de manifestaes religiosas, necessitam que os textos
bblicos signifiquem aquilo que suas tradies interpretativas querem que eles signifiquem,
portanto, antes de passar pelo filtro da tradio interpretativa, tais textos devem ser
traduzidos de acordo com essa mesma tradio.
Segundo Lopes (2008, p. 21-28):
Como textos passveis de suscitar objeo, os textos sagrados revelam-se como sensveis na medida em que demonstram um envolvimento afetivo por parte daqueles que o veneram. Todavia, boa parte dos leitores desses livros, e, sobretudo, os leitores da Bblia, somente os acessam por meio da traduo. Assim, se, por um lado, tem-se um objeto quase que intocvel, que no pode ser burlado ou defraudado, por outro, verifica-se a traduo como uma ferramenta que toca essa modalidade de texto e, por assim faz-lo, sujeita-se total sacralizao ou total desmoralizao.
O que precisa ser analisado como a traduo da Bblia se manifesta como texto
sensvel dentro das tradies interpretativas como um todo. Independente do cnon40 adotado
pelas diferentes tradies religiosas, preciso analisar, como textos especficos, ainda mais
sensveis, por terem historicamente conotaes teolgicas importantes para determinadas
confisses religiosas, podem sofrer interferncias em suas tradues e interpretaes.
O termo equivalncia continua sendo adotado como parmetro de anlise entre as
estruturas da lngua dentro das vrias propostas de teoria de traduo, Popovi (apud
BASSNET, p. 53) distingue quatro tipos de equivalncia na traduo:
39
Expresso usada por Hatim e Mason (1997, p. 111-122). 40
Cnon, do grego kanw,n (knn) o nome que se d lista de livros considerados sagrados por determinadas confisses religiosas. O judasmo rabnico considera cannicos os 39 livros do que chamam %N:T; (Tanak), enquanto que os caratas consideram cannicos somente os 5 primeiros livros da Torah. Entre os cristos h diversos cnons, ou seja, a Bblia um livro diferente de acordo com as diferentes tradies religiosas.
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1) Equivalncia lingustica, quando existe homogeneidade ao nvel lingustico entre os textos da lngua fonte e da lngua alvo, i.e., traduo palavra por palavra. 2) Equivalncia pragmtica, quando existe equivalncia ao nvel dos 'elementos do eixo expressivo paradigmtico', i.e., equivalncia gramatical, que Popovi considera uma categoria mais elevada do que a equivalncia lexical. 3) Equivalncia estilstica, quando se verifica uma 'equivalncia funcional de elementos entre o original e a traduo visando a identidade expressiva de uma invariante com sentido idntico'. 4) Equivalncia textual (sintagmtica), quando existe equivalncia ao nvel da estruturao sintagmtica do texto, i.e., equivalncia de forma e de formulao.
As teorias de traduo, em sua grande maioria, discutiram os problemas de traduo
principalmente no que diz respeito equivalncia lingustica. No mbito da traduo da
Bblia, estudiosos tanto judeus como cristos, acostumados a dissecar o texto sagrado palavra
por palavra, quando discutiram a traduo, analisaram-na com os mesmos princpios que
utilizaram para interpretar o texto da Bblia.
Nida (1964, 1982, 1986) d grande enfoque estrutura lxica e aos problemas de
equivalncia da traduo de termos, modos verbais e s dificuldades de transposio dos
conceitos da lngua bblicas para as lnguas modernas. Pouco esforo foi feito por Nida e seus
seguidores para analisar a traduo na estrutura do texto em outros nveis de equivalncia.41
Este trabalho, felizmente, foi feito por pesquisadores posteriores como Baker (1994, p. 119-
260), que analisa diversos outros nveis de equivalncia42, tais como, equivalncia textual:
temas e estruturas de informao; equivalncia textual: coeso e equivalncia pragmtica. A
fim de teorizar estruturas mais amplas do texto, Baker define os conceitos de theme o que
dito a respeito de algo como tendo duas funes: (a) atua como um ponto de orientao
conectando trechos anteriores do discurso e, assim, mantendo um ponto de vista coerente e (b)
atua como um ponto de partida para conectar o que segue e contribuir para o desenvolvimento
dos trechos posteriores. (BAKER, 1994, p. 121-122). Enquanto que o rheme o que o
falante diz a respeito do tema. o objetivo do discurso. Como tal, o elemento mais
importante na estrutura da clusula como uma mensagem, pois ele representa muito da
informao que o falante quer transmitir ao ouvinte.
Sendo a Bblia um texto de uma grande variedade de estilos literrios, diferentes
assuntos e diferentes propsitos comunicativos, as discusses a respeito de sua traduo
deveriam envolver no s uma equivalncia, mas outras estruturas mais amplas da 41
Nida dedica poucas pginas anlise da traduo na estrutura do discurso (NIDA, 1964, p. 210-213). 42
Embora o foco de Baker seja traduo no sentido geral e no especificamente sobre traduo da Bblia.
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comunicao.
Por causa do enfoque exagerado no nvel da palavra, tradues da Bblia acabaram
sendo influenciadas por tradies interpretativas que procuraram conduzir a interpretao dos
textos para os propsitos ideolgicos defendidos por essas tradies, por isso, nos prximos
tpicos, procuraremos analisar alguns exemplos de tradues existentes para verificarmos at
que ponto tais textos podem ser considerados traduo, parfrase, interpretao ou at mesmo
um texto teolgico carregado de ideologia.
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2. Traduo ou teologia
Nos casos analisados abaixo, tanto da tradio interpretativa crist, quanto da rabnica,
verificaremos que a interferncia da tradio interpretativa do texto induziu os significados e
alterou at mesmo o sentido de palavras nos lxicos da lngua hebraica.
Em textos sensveis, o establishment interpretativo se deu pela interferncia da
tradio teolgica a respeito de tais textos, conduzindo a uma traduo e interpretao
padronizadas. Esse reflexo do establishment interpretativo pode ser entendido na discusso de
Carvalho Neto (in: GOHN; NASCIMENTO, 2009, p. 87) quando esse autor expe o grfico
de Gutt a respeito da teoria de comunicao aplicada traduo:
O grfico acima pode ser ampliado levando em conta que o tradutor possui as suas
prprias ideologias, discursos, e, no caso de nossa anlise, tradio interpretativa e teolgica
j estabelecidas, tornando a traduo um comprometimento com essas concepes j
padronizadas.
Com o intuito de verificarmos esses reflexos ideolgicos-discursivos-teolgicos em
casos reais de traduo, escolhemos expor a interferncia da tradio interpretativa na
traduo do texto de Is 14.12 em verses de tradio crist, assim como a interferncia da
tradio interpretativa rabnica na verso da Bblia Hebraica da editora Sfer em Is 9.5-6 e na
Traduo do Novo Mundo das Escrituras Sagradas no texto de Gn 1.2 e 7.15.
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2.1 Interferncia teolgica crist na traduo de Isaas 14.12
Um exemplo importante da interferncia da teologia na traduo pode ser visto em
algumas tradues crists do texto de Is 14.12. Este texto, associado a Ez 28.14-15
interpretado no meio teolgico cristo, como uma referncia queda de Satans. Uma anlise
desses dois textos evidencia que em seus contextos imediatos se referem ao rei da Babilnia
(Is 14.12) e ao rei de Tiro (Ez 28.14-15). Contudo, h uma interpretao crist43 da passagem
que remonta aos sculos II e III d.C., que analisa a passagem como sendo uma referncia
indireta queda de Satans. Essa interpretao, j estabelecida h tanto tempo, faz com que a
leitura dessa passagem seja condicionada pela tradio interpretativa estabelecida que culmina
na interferncia na traduo da passagem de Is 14.12.
2.1.1 Primeiras interpretaes do texto de Is 14.12
Tertuliano [160-230 d.C.], comentando sobre Isaas 14:12, disse: Isso deve significar o diabo.... Orgenes [185-254 d.C.], tambm, prontamente identificou Lcifer44 com Satans. O Paraso Perdido de John Milton contribuiu para a disseminao dessa noo errnea: ...Cidade e corte do infernal tirano, Que Lcifer chamado foi outrora por se assemelhar da tarde a estrela... Disso surgiu a perverso popular do belo nome Lcifer para designar o Diabo. (ALDEN, 1968, p. 2, disponvel em: < http://www.monergismo.com/textos/comentarios/lucifer-quem-oque_robert-alden.pdf > acesso em: 02 mar. 2011)
Desde ento, a maioria das tradies interpretativas crists do texto o leem como uma
referncia queda do diabo. Lange (1878, p. 187b), outro autor protestante, faz a seguinte
43
Nem todos os telogos cristos interpretam a passagem dessa forma, como veremos abaixo. 44
O autor no especifica em qual obra Orgenes usa o termo Lcifer, tendo em vista que a traduo da Vulgata foi feita somente entre 390 e 405 d.C. improvvel que Orgenes tenha utilizado esse termo para se referir ao diabo, conhecido o texto de Orgenes peri. avrcw/n (peri archn) que chegou at ns por meio da verso de Rufino com o nome latino De principiis, nesse texto ocorre o nome Lcifer, mas pelo fato de Orgenes ter escrito em grego, a traduo de Rufino (340/345 410 d.C.) duvidosa, j que se sabe que essa verso um texto parafraseado. Quanto a Tertuliano, o autor aqui tambm no especifica a obra, contudo no diz que Tertuliano usa o termo lucifer, somente indica a afirmao de Tertuliano de que provvel que Is 14.12 se refira ao diabo, evidenciando assim que essa interpretao j existia em sua poca ou que ele est relacionando pela primeira vez essa interpretao. Uma outra possibilidade que o termo lucifer tenha sido o termo utilizado pela antiga verso latina em Is 14.12, verso essa anterior a Vulgata, conhecida como Vetus Latina, mas por causa do estado fragmentrio dessa antiga verso latina, no temos elementos para fazer essa comparao. Para detalhes sobre a Vetus Latina, ver Francisco (2008, p. 507-516); conhecido um telogo cristo de nome Lcifer de Cagliari (+370-371), indcio de que o nome no tinha sentido pejorativo nessa poca.
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anlise:
lleyhe [hyll] estrela brilhante, chamado filho da manh, porque parece emergir da alvorada (comes alumnus aurorae). Nos cus do Sul, quando refletido nas ondas do mar, este planeta tem um brilho mais luminoso do que o que vemos daqui (LEYRER in HERZ. R. Enxycl. XIX. P. 563). TERTULIANO, GREGRIO, O GRANDE, e posteriormente STIER, em referncia a Lucas 10.1845, tm relacionado a estrela que cai do cu como Sat. Originando assim o nome Lcifer
(VULGATA usa a mesma palavra para traduzir o termo twOrZ"m; [mazzrt] em J 38.32) na LXX a palavra traduzida por e`wsfo,roj [hsfros].
O reflexo da tradio interpretativa desse texto se tornou a interpretao teolgica
padro, interferindo na traduo da maioria das verses crists em ingls, via Vers