1
A FUNÇÃO DO MONGE NO SÉCULO XII: CONSIDERAÇÕES
SOBRE A ATUAÇÃO DE BERNARDO DE CLARAVAL
PIZOLI, Rita de Cássia1
1. O início do século XII e a sociedade em que nasce Bernardo de Claraval
Bernardo nasceu em 1090 num castelo localizado em Fontaines, um pequeno
ducado da Borgonha, a poucos quilômetros de Dijon. Filho de Tescelino e Aletta, ambos
filhos de vassalos do duque da Borgonha, Eude I. A região que Bernardo nasceu estava na
fronteira entre o reino de França e o Sacro Império Germânico. A França era governada
pelo rei Felipe I, da dinastia dos Capetos (987-1328) e pelos inúmeros senhores que
governavam sobre seus próprios feudos. Por nascer e viver nessa região fronteiriça,
Bernardo se envolveu com pontos políticos nevrálgicos na França, Alemanha e Itália2. A
questão das Investiduras, retomada por Gregório VII toma um rumo definitivo com a
postura e intervenções de Bernardo. Não há como separar sua atuação eclesial da ação
política, pois essas questões, no seu tempo, estavam totalmente imbricadas.
Com dez anos de idade, Bernardo foi enviado à escola canonical ligada a Notre-
Dame de Saint-Vorles, perto da cidade de Châtillon-sur-Siene, onde sua família tinha uma
casa. Estudou apenas o trivium, com ênfase na gramática e retórica. Ali aprendeu a
escrever em latim e ler os Santos Padres, bem como os clássicos literários como Virgílio,
Ovídio, Horácio e Cícero. O estoicismo presente em seus escritos posteriores revela o
estudo da filosofia de Sêneca (CHABANNES, 2001). Seus escritos estão mais orientados
para a literatura do que para a dialética, disciplina ensinada nesse período nas escolas
catedrais urbanas.
1Professora Assistente do Departamento de Educação da Faculdade Estadual de Educação, Ciências e Letras de Paranavaí e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPE) “História e Historiografia da Educação” da Universidade Estadual de Maringá. Pesquisa financiada pela Fundação Araucária e orientada pela Prof. Dr. Terezinha Oliveira. 2 França, Alemanha e Itália são denominações atuais à região em que Bernardo viveu. No século XII a Alemanha e a Itália formavam o Sacro Império Germânico e França, o Reino de França.
2
Em 1808, retornando a Fontaines, com 17 anos, perde sua mãe. Seu irmão mais
velho vai combater em Champagne, defendendo a Borgonha. Seu pai quer que Bernardo
estude na Germania ou em Cluny, tornando-se um profissional renomado ou um monge
beneditino, mas ele escolhe Citeaux, uma abadia pequena, construída num vale, em 1098
por Roberto de Molesmes. Aos 23 anos Bernardo fez a profissão religiosa na ordem
cisterciense e, em 1115, depois de receber uma doação de terras de Jossebert de La Ferté é
enviado a dirigir um mosteiro novo, vinculado a Citeaux, juntamente com seus irmãos
Gerardo e Guido. É a abadia do Vale de Claraval, assim chamado por sua claridade, de
onde Bernardo escreverá seus primeiros sermões e viverá os primeiros anos de austeridade
e trabalho nos campos.
Quando Bernardo decidiu tornar-se monge reformado, o Ocidente estava em plena
transformação. A relativa paz proporcionava o desenvolvimento da economia e da
população. O mosaico de feudos se organizava internamente e garantia uma certa
estabilidade ao reino. Gregório VII acabava de consolidar um novo impulso à vitalidade
cristã reforçando o poder eclesiástico. Urbano II havia convocado uma cruzada para
recuperar Jerusalém e um grande vigor impulsionava a expansão da cristandade e das
fronteiras comerciais.
Esse período também apresentava uma grande complexidade com relação à
religião. Leclercq (1980) afirma que por toda parte surgiam movimentos de opinião que se
opunham à hierarquia e eram chamadas de heresias, no fundo anunciavam a pureza de
costumes que só seriam possíveis longe da autoridade da Igreja constituída. As novas
ordens monacais também denunciavam a deteriorização da pureza do seguimento cristão,
mas ao contrário do movimento considerado herético, fortaleceu a hierarquia da Igreja e
influenciou em suas decisões.
Bernardo viveu com autenticidade os valores austeros da vida monacal e direcionou
severas críticas aos costumes deteriorados do clero de seu tempo. Sua atuação atingiu o
centro do poder eclesiástico e deu sustentação às ações do papado. O papa Eugênio III
(1145-1153) foi o primeiro papa que a ordem cisterciense formou. Esse fato demonstra
que, em pouco tempo, os cistercienses ganharam muita importância diante da Igreja,
sustentando com seus valores a legitimidade de seu poder.
3
2. A função do monge na sociedade medieval
Gradativamente, a partir do século VI, o mosteiro ganhou uma importância central
na organização do ocidente medieval e a figura do monge foi sendo legitimada como a
mais importante dentro da hierarquia eclesial. Miccioli (1989) explica que essa
legitimidade foi construída na cristandade à medida que o monacato foi definido como a
única experiência cristã autêntica, ou seja, por um consenso político e social, os monges
eram tidos como os únicos cristãos verdadeiros.
De fato, as primeiras experiências monásticas, entre os séculos IV e V, foram
movidas pelo desejo de viver a antiga perfeição das primeiras comunidades cristãs
lideradas pelos apóstolos, em torno de valores como a comunhão de bens, opção pelo
celibato e a ascese espiritual. A constituição de uma regra comum orientava não mais uma
vida solitária em fuga pelo deserto, mas a vida de um grupo orientada pela disciplina e pela
obediência de um superior hierárquico. Por que essa forma de viver passou a caracterizar a
única forma verdadeira de ser cristão na sociedade medieval? O que distinguia o monge de
um cristão leigo?
Essas questões encontram respostas na tessitura social da sociedade medieval do
ocidente que se constituiu envolvida com a religião e com a expectativa da salvação da
alma após a morte. O vínculo entre o mosteiro e a sociedade era mediado pela figura do
monge, cristão em busca da santidade perfeita e por isso, capaz de possibilitar a salvação
para os homens comuns, que não tinham a possibilidade de se distanciar das coisas do
mundo para dedicar-se à oração e à ascese. Miccioli (1989) explica que o culto dos santos
mortos, de seus túmulos e de suas relíquias estendia-se também aos próprios monges que
cuidavam desses cultos e viviam nos mosteiros. As orações tornaram-se garantia de graças
para os benfeitores desejosos de alívio e esperança de salvação.
Assim se estabelece – por esta via, que faz do mosteiro, como centro de oração e ascese, espécie de lugar de compensação das orações e das penitências que os homens comuns não podem levar a cabo – uma relação privilegiada entre soberanos, nobres e fundações monásticas, relação essa que será um factor decisivo na expansão do monaquismo ocidental (MICCIOLI, 1989, p.39).
4
Um aspecto importante sobre a forma como o monge era visto pela sociedade diz
respeito ao esquema das três ordens, reelaborado no período carolíngio e assim descrito por
Miccioli (1989, p.43),
O esquema hierárquico das três ordines em que a sociedade se subdivide – os homens de oração (oratores) os homens da guerra (bellatores) e os homens do trabalho nos campos (laboratores) -, proposto pela cultura eclesiástica de tradição carolíngia, é reelaborado e readaptado ao meio monástico, de acordo com uma classificação dos méritos que coloca os monges no topo: “Sabemos que entre os cristãos dos dois sexos existem três ordens e, digamos assim, três níveis. O primeiro é dos leigos, o segundo é o dos clérigos e o terceiro é o dos monges. Embora nenhuma delas esteja livre do pecado, a primeira é boa, a segunda é melhor e a terceira é óptima” (PL, 139, c.463). A propósito da parábola do semeador e da diferença de rendimento da semente de que Cristo falara (Mateus 13,8), Abbon de Fleury, abade de Saint-Benoit-sur-Loire nos finais do século X, enuncia assim a idéia de que uma remuneração diferente e muito concreta aguarda, no Além, os cristãos, em função da sua condição: aos monges caberá 100, aos clérigos, 60 e aos leigos, 30.
Essa mentalidade, alimentada pela tradição eclesiástica animava os homens comuns
a aproximarem-se dos mosteiros a fim de atingir esse ideal de santidade e bênçãos. De
acordo com o autor, as formas de se tornar um benfeitor dos mosteiros começava pela
doação dos próprios filhos. Por ser o único local dotado de cultura, os nobres destinavam
um de seus filhos para estudar e provinha todo o seu itinerário com bens. Ter um monge na
família era garantia de orações para todos os seus membros. Outra forma de vincular-se
aos benefícios dos mosteiros era tomar o hábito nas proximidades da morte a fim de
garantir uma dupla garantia com relação ao seu destino ultraterreno: tornar-se monge e ser
sepultado no mosteiro. As doações de terras, de rendas e de bens proporcionavam aos
benfeitores as orações vitalícias, já que a posse da terra vinculada a um mosteiro tornava-se
hereditária. Até mesmo os pobres, quando não tinha nenhum bem, ofereciam a própria vida
em troca de proteção. Famílias inteiras entregavam-se a disciplina da vida monástica a fim
de receber as graças advindas da vida monacal. Todas essas formas de vinculação com o
mosteiro contribuíram para sua expansão que teve seu auge no período carolíngio. Alguns
mosteiros chegavam a reunir em torno de si sete mil pessoas. Sua função de defender os
homens contra seu “inimigo” e garantir a salvação por meio das orações era cumprida
nessas verdadeiras cidadelas de oração.
5
Porém, a crise carolíngia e a invasão dos sarracenos, húngaros e normandos
obrigaram as gerações posteriores a começarem do zero. A reconstrução da sociedade
tendo como ponto de partida os mosteiros e sua capacidade cultural proporcionará aos
monges uma consciência de sua capacidade de hegemonia e intervenção na sociedade. Sua
atuação nos séculos XI e XII mostrará a posse dessa consciência. Logo após a reconstrução
dos mosteiros pelos principados locais, surge o desejo de reforma e autonomia dos poderes
e interesses onde estava inserido o mosteiro. Aos poucos, a reforma de Cluny formou uma
rede que se liberta da diocese local e se submete apenas ao poder central de Roma. Essa
atitude lhe conferirá peso nos acontecimentos eclesiais, pois, os papas que atuaram durante
os cinqüenta anos mais decisivos da Reforma eclesiástica3 eram oriundos de ordens
monásticas.
A atuação dos monges tornou-se central na resolução dos conflitos que se seguiram
a partir da reforma gregoriana e sua intenção de separar os poderes temporais dos
espirituais. A presença de monges como Romualdo, Guilherme de Volpiano ou Desidério
de Montecassino, Guilherme de Hirsau, Suger de Saint-Denis, Pedro, o Venerável e
Bernardo de Claraval foram decisivas para a tomada de decisões e manutenção do poder da
Igreja frente aos desafios políticos.
É interessante como Miccioli (1989) explica a legitimidade que a figura do monge
tinha diante dos assuntos políticos. Essa capacidade estava vinculada à sua vocação
religiosa. O autor não relaciona essa vocação como dom natural ou espiritual, mas, como
potencialidade amadurecida por meio do estudo e do desenvolvimento do intelecto, algo
que só poderia ser feito, naquele tempo, nas escolas catedrais ou no mosteiro, lugar
privilegiado de cultura. Esse desenvolvimento intelectual conferia ao monge características
superiores aos homens comuns e dava a ele capacidades de negociação, mediação e
resolução de conflitos.
3 A Igreja teve necessidade de se organizar internamente e fortalecer o poder do papado frente ao poder do imperador. Diante da simonia e do concubinato do clero, problemas que enfraqueciam a Igreja, criando “igrejas particulares”3, Gregório VII decretou a Lei do celibato e o controle dos bens da Igreja. Frente aos abusos dos clérigos e bispos que eram ordenados pelos imperadores, proclamou-se única autoridade legítima para depor ou restabelecer o poder dos bispos, sem a necessidade de convocar sínodos. Com o objetivo de atingir a principal causa dos problemas eclesiásticos, a interferência laica nos assuntos eclesiais, decretou um conjunto de 27 sentenças, denominado Dictatus Papae, reafirmando o poder absoluto do papa sobre os assuntos da Igreja. A questão das Investiduras termina com o Acordo de Worms, em 1112, estabelecendo que os abades e bispos seriam investidos na função espiritual pela Igreja e nas funções temporais pelo rei.
6
São figuras de um prestígio, de uma autoridade e de uma força de decisão que não poderíamos compreender sem ter em conta o fascínio que conseguiram inspirar. Não creio que se trate apenas de uma auréola de santidade, da fama de rigor desinteressado que os rodeava. A impressão que nos fica é a de uma personalidade, de um saber de introspecção e de análise, de uma capacidade de distanciado realismo na leitura dos estados de alma, que tornam, em certa medida, esses monges superiores aos outros, que confirmam neles a presença de uma massa humana, de um amadurecimento que não existia nos outros. [...] A força intelectual e a exuberância emotiva são acompanhadas por uma sabedoria da escrita que consegue exprimir e matizar sensações, desvios, advertências subtis e secretas. [...] Não é por acaso que dos sete dons do Espírito Santo, o intelecto e a sabedoria – que se situam no topo – são considerados apanágio exclusivo da vida contemplativa, característica, precisamente, da condição monástica: o intelecto, que permite perceber o porquê dos preceitos divinos e da gratuidade que se exige das nossas boas acções, e a sabedoria, que torna agradável e docíssimo aquilo que a razão percebeu e que faz com que apenas por amor a rectidão se siga aquilo que o intelecto permitiu compreender que deve ser seguido (MICCIOLI, 1989, p.46-50).
Dotado dessas características e, em meio às mudanças do século XII, o monge
soma à sua função de intervenção na salvação ultraterrena por meio da oração, a função de
atuação nos assuntos da história presente. É o caso de Bernardo que, salva o benfeitor e
amigo Teobaldo, conde da França, não só por meio de orações, mas, por meio de
intervenção política ativa. Resolver conflitos, apaziguar, aconselhar, mediar são ações que
fazem do monge, em especial de Bernardo de Claraval uma figura importante e central na
sociedade.
3. A atuação de Bernardo
De acordo com Santos (2001) a cristandade ocidental somente tomou conhecimento
da autoridade e influência de Bernardo por volta de 1130, durante o episódio do cisma que
dividiu a igreja após a morte do Papa Honório II. Uma parte dos cardeais elegeu Pedro de
Leão, que recebeu o nome de Anacleto II e outra parte nomeou o cardeal Gregório de
Santo Angelo como Inocêncio II. Esse conflito só foi resolvido no Concílio de Étampes,
convocado pelo rei da França. Bernardo de Claraval foi convidado como conselheiro
especial na resolução desse conflito e, depois de selar a legitimidade de Inocêncio II, saiu a
percorrer as dioceses de França, Inglaterra, Itália e Alemanha a fim de convencer as
7
autoridades eclesiásticas e laicas em favor desse papa. Esse fato deu uma enorme
repercussão a Bernardo conquistando grande prestígio diante dos reis e dos príncipes.
Recusou liderar as dioceses de Reims e Milão, mas, a todo momento era chamado para
intervir nos conflitos.
Em ambientes diversos, muitos, senão todos, o consideram como o mestre do momento: os mosteiros precisam dele, na sua ordem e no monaquismo tradicional, onde Guilherme de Saint-Thierry e os religiosos de S. Père de Chartres recorrem a ele; a Igreja hierárquica o consulta e Roma aceita seus pareceres sobre as eleições episcopais na França, na Inglaterra e em outros lugares; príncipes e cavaleiros a ele se dirigem para que lhes dê orientação. Encontra-se envolvido nos conflitos nacionais e internacionais: as cidades da Itália, Aquitânia, Flandres e Renânia o aclamam. Retirara-se do mundo, e eis que a expansão da ordem cisterciense, e em particular do ramo de Claraval, lhe oferece a ocasião e o meio para animar um vasto movimento de influência reformadora; através de numerosíssimas casas monásticas, com as quais está em contato, fica em relação com todos os pontos nevrálgicos da cristandade; correios não cessam de levar suas mensagens e de voltar com informações e pedidos (LECLERCQ, 1980, p.29).
Um monge que passava grande parte do tempo fora do claustro poderia provocar
dúvidas com relação ao seu papel e à sua vocação. Até mesmo Bernardo, na carta de
número 250 confessa sua angústia em ter que agir dessa forma. Não põe em dúvida sua
vocação, pelo contrário, justifica suas ações por meio da obediência à vontade de Deus que
o chama a defender a unidade da sua igreja, mas reclama dessa sua dupla função,
contemplação e ação:
Sofreu essa dualidade, nele, monge devotado ao desapego, do contemplativo chamado à procura só de Deus, e do homem de ação que tomava parte nos negócios públicos, obrigado à política. Muitas vezes se lamentou, se apresentou como a “quimera de seu século, não vivendo nem como clérigo, nem como leigo”. Diz ter experimentado a tentação de fugir: “Minha alma está tão triste que tenho vontade de desaparecer”, escreve a Inocêncio II. Estou dilacerado, arrancado de mim mesmo, não agüento mais, escreve a Eskil, arcebispo de Lund (LECLERCQ, 1980, p.38).
Para Miccioli (1989) esse sentimento era compreensível na época. Os monges
viviam essa contradição: desejavam viver isolados e superiores aos problemas mundanos e
ao mesmo tempo entendiam como missão o papel político que tinham diante das
8
estratégias familiares para manutenção das terras, organização dos potentados e
conciliação de forças.
A realidade monástica constitui uma presença demasiado consistente e articulada para não se tornar uma pedra importante e muitas vezes decisiva nas lutas pela redistribuição do poder, e a autoconfiança e consciência do significado existencial e simbólico do seu próprio estatuto são, entre os monges, demasiado elevadas para não reivindicarem o direito de exercerem um juízo profético e resolutório sobre as acções dos homens (MICCIOLI, 1989, 47).
Essa contradição enfrentada por Bernardo de Claraval aparece em seus escritos.
Diante dos conflitos em que se sentia impelido a intermediar escrevia cartas, tratados,
conselhos. Durante o período em que estava no mosteiro se dedicava aos textos teológicos
e espirituais. Escreveu mais de 500 cartas e durante um terço de sua vida dedicou-se às
viagens.
Seus textos, segundo Leclercq (1976) eram intermediados entre cartas de negócios,
obras de controvérsias e textos contemplativos e litúrgicos. Do silêncio do mosteiro,
Bernardo escrevia revelando a dialética entre ação e contemplação, ambas movidas pela
necessidade dar impulso e solidez à reforma religiosa. Ambos os estilos carregam em si a
mesma mentalidade. O primeiro, exemplificado principalmente pelas cartas de negócios,
pela Carta ao Bispo de Sens Sobre os deveres e condutas dos bispos, pela obra Da
consideração, composta por conselhos para o Papa Eugênio II e pelo Tratado para os
Templários, denominado O elogio da nova milícia. O segundo estilo, contemplativo e
litúrgico, tem como obras-primas os 86 Sermões dos Cânticos dos Cânticos, Tratado sobre
os graus de humildade e de orgulho, Homilias em louvor à Virgem Mãe, Sobre a graça e o
livre arbítrio e o Tratado sobre o amor de Deus. Qual a mentalidade que os aproxima? O
que há em comum entre as regras escritas para um cruzado e um sermão sobre o amor de
Deus? O que aproxima um conselho contra a vaidade e uma exortação à guerra santa?
Pode nos parecer estranho que depois de fracassar na cruzada por ele organizada,
tenha se dedicado à escrita dos Sermões dos Cânticos dos Cânticos, obra mística e
contemplativa de busca e encontro da experiência de Deus. Compreendendo a dinâmica de
sua vida, percebemos que havia uma unidade em sua ação e em suas palavras. Não há
9
separação entre política e contemplação. Sua ação é determinada pela visão que tem do
mundo, centralizada na vontade de Deus.
Diante das derrotas das cruzadas, ele deu ênfase no empenho dos cruzados. Para
ele, o que contava não era a vitória, mas a oportunidade que Deus dava aos homens de se
converterem. “Bernardo não é um homem de estado, cujas iniciativas se julgam segundo
sua eficácia no âmbito militar, político ou econômico. É um porta voz de Jesus crucificado.
(LECLERQ, 1976, p.39)”. Declara no Cântico 43, que para ele, a mais sublime filosofia
era conhecer a Jesus, e Jesus crucificado. Gilson (2007, p. 363), comenta essa passagem
como a essência do seu pensamento, explicando sua posição diante da filosofia e dialética
produzida nas escolas das cidades,
Ele não nega a utilidade que podem ocasionalmente apresentar os conhecimentos dialéticos e filosóficos, muito menos ainda deixar-se-á levar a vituperar no abstrato contra os filósofos e os dialéticos, mas sustenta que o conhecimento das ciências profanas é de valor ínfimo perto do das ciências sacras e vigia atentamente os filósofos de seu tempo. São Bernardo pode muito bem fazer algumas concessões de princípio ao estudo da filosofia, mas exprime seu verdadeiro pensamento quando declara: minha filosofia é conhecer Jesus, e Jesus crucificado.
No Sermão sobre o conhecimento e a ignorância, Bernardo não critica a Filosofia.
Pelo contrário, exalta quem busca o saber.
Posso estar dando a impressão de querer lançar em descrédito o saber, de repreender os doutos, de proibir o estudo das letras. Longe de mim, tal atitude! Conheço muito bem o inestimável serviço que os homens doutos têm prestado à Igreja: seja refutando os adversários dela, seja na instrução dos simples. Com efeito, o que li na Sagrada Escritura foi: “Como rejeitaste o saber, também Eu te rejeitarei, para que não exerças Meu sacerdócio” (Os 4,6). E mais: “Os doutos resplandecerão com o brilho do firmamento, e os que tiverem ensinado a muitos a justiça, brilharão como estrelas em perpétuo resplendor” (Dn 12,3). (BERNARDO DE CLARAVAL, Sermão 36, II).
Porém, logo em seguida, deixa claro que a busca do saber deve ser livre de soberba
e auto-suficiência, orientada pelo temor de Deus e pelo desejo da salvação. Nesse ponto,
fica claro o ponto de divergência entre ele e Abelardo, este último representando, em
10
importantes partes de suas obras, um exemplo de soberba para Bernardo. Assim, ele
continua seu sermão, justificando a nulidade do saber orientado pela vaidade.
Vede que há saberes e saberes: há um saber que produz o inchaço e há um saber que contrista. [...] há quem busque o saber por si mesmo, conhecer por conhecer: é uma indigna curiosidade. Há quem busque o saber só para poder exibir-se: é uma indigna vaidade. Estes não escapam à mordaz sátira que diz: “Teu saber nada é, se não há outro que saiba que sabes” (Persius, Satyra 1,27). Há quem busque o saber para vendê-lo por dinheiro ou por honras: é um indigno tráfico. Mas há quem busque o saber para edificar, e isto é amor (BERNARDO DE CLARAVAL , Sermão 36, III).
Neste trecho percebemos que o pensamento de Bernardo de Claraval é totalmente
orientado pelos ensinamentos da Patrística. Desde o século VI, o estudo das sete artes
liberais seguia as diretrizes dadas por Santo Agostinho no De Doutrina Christiana e a
compreensão das Sagradas Escrituras era o motivo para a leitura de outras obras latinas. A
gramática, a retórica e a dialética auxiliaria o entendimento dos escritos sagrados. Era
nessa perspectiva monástica tradicional que Bernardo ensinava e escrevia seus sermões e
tratados. Sua expressão se fazia “pelo comentário alegórico e místico do texto sagrado,
preparado na meditação, na oração e na humildade (VERGER, 1994, p.62)”. Nesse
sentido, se contrapunha totalmente à tendência do ensino nas escolas catedrais,
principalmente às práticas de Pedro Abelardo (1079-1142) que embora não ignorando os
mistérios divinos, pensava que “graças à dialéctica”, se podia, de maneira evidentemente
aproximativa, analógica, apresentar as verdades reveladas (como o dogma da Trindade) de
maneira tal que ao menos parecesse que não estavam em contradição com as exigências da
razão (VERGER, 1994, p.62). Contra esse princípio racional Bernardo escreve um tratado
em 1140 destinado aos estudantes de Paris que eram aspirantes ao clero. Sua intenção é
desviá-los para Claraval e seu futuro biógrafo, Geoffroy d’Auxerre está entre os vinte
estudantes que ele conseguiu convencer.
No capítulo I desse tratado, Bernardo deixa claro que a conversão se faz pela
Palavra de Deus e não pelas palavras humanas e por isso, se deve buscar a verdade e a
autenticidade da vida clerical na fé e não na razão.
11
Porque¿ quién se atreverá a comparar a los dichos humanos aquello que se dice haber dicho Dios? Viva y eficaz es la Palabra de Dios y su voz está llena de magnificiencia y poder.[...] Asi, ciertamente, la conversión de las almas es obra de la voz divina, no de la humana. [...] Si hablamos mentira, ésta se deberá atribuir a nosotros. Se podrá quizá también juzgar que es nostra propia voz y no la del Senõr si buscamos nostros intereses y no los de Cristo. No obstante, aunque hablemos la justicia de Dios y busquemos su gloria, sin embargo, em orden al efecto, Es necesario esperar solo de el y pedirle que junte a su voz la de la virtud. A esta voz interior, pues, os amonestamos que apliqueis vivamente vuestros óidos, de modo que procureis más bien oír a Dios, que habla dentro, que al hombre, que habla fuera (BERNARDO DE CLARAVAL, Sobre la conversion,1955,p.710).
Para Bernardo, a primeira fonte de verdade está nas Sagradas Escrituras e, em
segundo lugar nos ensinamentos da Patrística. Por isso percebemos nesse trecho a teoria da
iluminação de Agostinho. Para ele é por meio da iluminação de Deus que a razão humana
pode compreender primeiro a si mesmo, depois o mundo. É pela voz de Deus que a razão
pode, como num livro, perceber, repreender, julgar e discernir.
A base teológica de seus escritos e ações, no século XII, conferiu a sua pessoa
legitimidade e poder. Considerado o último patrístico, conservou os ensinamentos
seculares da Igreja tendo em vista a conservação de sua autoridade diante do crescimento
dos valores laicos. No limiar de sua época, a imagem de santidade, historicamente
conferida aos monges ainda era fortemente reconhecida em sua pessoa, por seus costumes
austeros e ascéticos. Era essa imagem que lhe dava força de intervenção nos assuntos
políticos e sociais da sociedade em que vivia. Sua sensibilidade exerceu uma pressão moral
e emotiva, revelando seus princípios de coerência com os valores cristãos. Essas
características fizeram de sua pessoa um “protagonista attivo della storia, non più solo
monástica, dell’Europa del suo tempo (PIAZZONI, 1990, p.34)”.
REFERÊNCIAS:
BERNARDO DE CLARAVAL (1955). Sobre La Conversion. In: Obras Completas de San Bernardo. Madri: Autores Cristianos, vol II.
12
BERNARDO DE CLARAVAL (1955). Sermone 36. El conocimiento de las ciências y de las letras. In: Obras Completas de San Bernardo. Madri: Autores Cristianos, vol II.
CHABANNES, Jacques (2001). Bernardo di Chiaravalle místico e político. Roma: Cittá Nuova.
GILSON, Étienne (2007). A filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes.
LECLERCQ, J. (1980). São Bernardo e o espírito cisterciense.Trad. Tarcisio Teixeira. São José do Rio Pardo.
MICCIOLI, Giovanni (1989). Os monges. LE GOFF, Jacques. O homem medieval. Lisboa: Presença.
PIAZZONI, Ambrogio M. (1990). Bernardo de Chiaravalle - Il dovere di amare Dio. Milano: Paoline.
SANTOS, L. A. R. (2001). Um monge que se impôs ao seu tempo. RJ: Musa Editorial.
VERGER, Jacques (1994). Abelardo, escolas no claustro. In: BERLIOZ, Jacques (Org.). Monges e religiosos na Idade Média. Lisboa: Terramar.