A efêmera dança dos corpos: articulações entre imagens indizíveis1
Vivian Marina Redi Pontin (Unicamp/Brasil)
A representação coloca a fidelidade como palavra cuja escrita lhe perfaz, uma vez que
torna semelhante, análoga, idêntica a relação entre escrita e mundo. Um
filme-documentário possui um caráter informativo, didático e/ou de divulgação de
determinado tema. Nesse jogo, um documentário traz à tona uma representação do
mundo, em que suas imagens são fiéis em relação à sua temática. Diante disso, é
possível uma re-criação junto a uma cartografia fílmica e documental? Como as
representações do real entram em variações junto a um filme-documentário que se
propõe a vazar sentidos e significações do próprio real? Esse trabalho se propõe a uma
traição, uma perturbação desse regime de representação e imagem documental por vias
que fraturam o real e abrem imagem e escrita para outras relações, ritmos, tempos.
Parte-se, pois, do documentário La danse de Wiseman (2009) para se pensar na
produção de fissuras entre o mapeamento de uma instituição – a companhia Le ballet de
l'opera de Paris e o que dela ecoa por seus corredores; entre o corpo de balé e os ensaios
incessantes; entre o documento e a própria escrita e os seus sentidos. Articulações que
diferem do falar com autoridade, da intermediação, da simbolização arbitrária,
correspondente entre mundo e sujeito/imagem visando à exatidão, referência. Mas
possibilitam mediações entre os componentes dessa escrita e suas proliferações,
afetando uns aos outros, devolvendo ao corpo dançante o sensível partilhado entre
indizíveis fracassos.
Palavras-chave: Dança; Filme-documentário; Corpo.
1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03e 06 de agosto de 2014, Natal/RN.
1
matérias-primas
A realidade é a matéria-prima, a linguagem é o modo como voubuscá-la – e como não acho. Mas é do buscar e não do acharque nasce o que eu não conhecia, e que instantaneamentereconheço. A linguagem é o meu esforço humano. Por destinotenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias.Mas – volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dadoatravés do fracasso de minha linguagem. Só quando falha aconstrução, é que obtenho o que ela não conseguiu.
Clarice Lispector. A paixão segundo G.H. (1988, pp. 112-113).
A representação coloca a fidelidade e a racionalidade como palavras cuja escrita do
mundo lhes perfaz, ou seja, a escrita representacional do mundo é fiel e racional. Fiel
porque faz semelhante, análoga, idêntica a relação entre escrita e mundo. Racional, já
que essa fidelidade é verificável pelas vias da razão, do razoável. Nesse sentido, é como
se a personagem de Clarice encontrasse o que fora buscar na realidade com a
linguagem, ou, achasse na linguagem o que fora buscar na sua matéria-prima, a
realidade.
Colocar a representação enquanto problema não se trata de dizer que a escrita, imagem,
linguagem representacionais são meras reproduções do real, mas de que almejam a
produção de verdade sobre e com esse real. Para Gilles Deleuze em Diferença e
repetição2, a representação possui quatro aspectos fundamentais: a identidade do
conceito, a oposição dos predicados, a analogia do juízo e a semelhança da percepção3.
O que esses aspectos colocam em jogo é a subordinação do conceito de diferença ao
idêntico, à oposição e à contradição, bem como a diferença de natureza entre a repetição
e a semelhança e a equivalência.
2 DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Tradução Luiz B. L. Orlandi e Roberto Machado.Rio de Janeiro: Graal, 1988.
3 A identidade do conceito constitui a forma do Mesmo na recognição. A oposição nadeterminação do conceito faz com que determinar implique comparar os predicadospossíveis com seus opostos via rememoração ou reencontro/recriação. A analogia do juízoreparte-o pela determinação do conceito na relação entre conceito e objeto (objetificação doconceito). E a semelhança no objeto remete à semelhança como requisito de continuidade narelação entre o objeto do conceito em si com outros objetos (continuidade na percepção).
2
Persistir no regime da representação elimina o encontro que força a pensar, para manter
o preenchimento pelo reconhecível. A recognição pressupõe o exercício do sentido e de
outras faculdades num senso comum, o sentido não se sustenta, necessita de sua relação
com o objeto lembrado, imaginado, concebido. Diferente do encontro, em que nasce
uma sensibilidade no sentido e a qualidade deixa espaço para o signo que assalta, o ser
sensível abre para o ser do sensível e o dado, não mais em si, força a pensar o próprio
dado por aquilo que o torna dado. Assim, o erro é, para a recognição, o negativo do
pensamento, a falsa recognição, falsa repartição dos elementos da representação
(analogia, semelhança, identidade e oposição).
A covardia, a crueldade, a baixeza, a besteira não são simplesmentepotências do corpo ou fatos de caráter e de sociedade, mas estruturasdo pensamento como tal. A paisagem do transcendental se anima;deve-se introduzir aí o lugar do tirano, do escravo e do imbecil – semque o lugar se assemelhe àquele que o ocupa e sem que otranscendental seja decalcado sobre as figuras empíricas que ele tornapossível (DELEUZE, 1988, p. 148).
Diante da persistência nesse regime, a escrita, imagem, linguagem empreendem-se,
querem solicitar, investem numa classificação e nas maneiras de lê-las. O que, para
personagem de Clarice, além de encontrar o que fora buscar no real, estabelece o
processo de que isso se dá pela linguagem e de que, posteriormente, é possível
classificar a narrativa produzida.
Para a Antropologia essa problematização também se torna plausível, já que dizer que a
representação liga-se às coisas como elas são merece ser contestada, ou no mínimo
revista. Seja a antropologia visual, comparada, estrutural, colaborativa, cultural, social,
simétrica etc. – a maneira como a pesquisa antropológica lida com seu objeto precisa
ser pensada. Daí refletir sobre como se dá a articulação entre antropologia e/do cinema,
antropologia e/da dança, antropologia e/do esporte, por exemplo. Não se trata, aqui, de
pormenorizar as vertentes e ramificações antropológicas, dizer de suas diferenças e
semelhanças, explicar seus procedimentos – mas, isso sim, de colocar a problemática da
representação para a Antropologia, é nela que se configura, é nesse campo de combate
que essa luta deve ser travada, não noutros campos de produção de conhecimento.
3
O que se quer pensar com essa problemática, qual seja da representação, são maneiras
de abrir os procedimentos entre a pesquisa, a escrita e a imagem. “Muita gente tem
interesse em dizer que todo mundo sabe 'isto', que todo mundo reconhece isto, que
ninguém pode negar isto (...) A forma mais geral da representação está, pois, no
elemento de um senso comum como natureza reta e boa vontade” (DELEUZE, 1988, p.
129-130) [grifo do autor]. Para o filósofo, a imagem do pensamento regulada pela
doutrina da Verdade possui a forma da representação, na qual pensar se torna
equivalente de reconhecer, em que o modelo da recognição4 é aquele que define o que
significa pensar.
Expandir os procedimentos evitando a clausura que essa forma de pensar corrobora,
pois no mundo da representação a diferença não é pensada em si mesma – somente
apreendida através da recognição, repartição, reprodução, semelhança... Mas o que
significa pensar a diferença para a Antropologia?
Marcio Goldman (2005)5 escreve num texto sobre Jeane Favret-Saada que seu
procedimento de pesquisa se envereda para o afeto: “Não de afeto no sentido da
emoção que escapa da razão, mas de afeto no sentido do resultado de um processo de
afetar, aquém ou além da representação” (p. 150), ora convocar o afeto como
procedimento de pesquisa é, para a própria Favret-Saada uma maneira, ou modo não
antropológico de se fazer antropologia6, que tem que ver com a diferença em si mesma
e não numa relação de oposição ao fazer antropológico; uma analogia ou semelhança
dos afetos e outras metodologias da própria antropologia ou de outras áreas do
4 “A recognição se define pelo exercício concordante de todas as faculdades sobre um objetosuposto como sendo o mesmo: é o mesmo objeto que pode ser visto, tocado, lembrado,imaginado, concebido...” (DELEUZE, 1988, p. 131), faculdades essas de um sujeitopensante universal (todos sabem o que é pensar – é natural, é da natureza humana edecorrente de uma boa vontade do sujeito). Reconhecer é estar em consonância entre todasas faculdades e o objeto (identidade do e no objeto).
5 GOLDMAN, Marcio. Jeanne Favret-Saada, os afetos, a etnografia. Cadernos de campo. n.13, pp. 149-153, 2005.
6 “há em mim, uma espécie de perpétua retroação entre um modo não partidário de ser empolítica e um modo não escolar de fazer a pesquisa” (FAVRET-SAADA, 1984 apudGOLDMAN, 2005, p. 153).
4
conhecimento.
Destituir a consonância das faculdades e estabelecê-las como diferentes, ou seja, tornar
aquilo que é visto diferente daquilo que é tocado, imaginado, lembrado, é entrar em
outra relação que não a do regime da representação e isso para pesquisa, escrita,
imagem é dar a possibilidade de partilhar o sensível7 dos objetos com os quais se lida.
Pois, com efeito, o objetivo de uma antropologia contemporânea nãopode ser mais a de encontrar o sucedâneo da glândula pineal que fazos humanos “diferentes” do resto da “natureza”. Tanto quanto possainteressar à natureza, essa diferença não faz muita diferença. Osantropólogos estarão mais bem ocupados estudando as diferenças queos humanos são efetivamente capazes de fazer; a diferença entre elese os demais viventes é apenas uma entre muitas delas, e nãonecessariamente a mais nítida, a mais estável ou a mais importante(VIVEIROS DE CASTRO, 2007, p. 109)8 [grifos do autor].
Somada ao combate da representação, quando se escreveu anteriormente sobre a
articulação entre a antropologia e os objetos, essa é pensada com Bruno Latour (2008)9
diferindo do falar com autoridade, da intermediação, da simbolização arbitrária,
correspondente entre mundo e sujeito (objeto) visando à exatidão, referência.
7 Referência ao conceito de Jacques Rancière. Conceito político sobre o encontro dissonantedas percepções de cada parte. Política essa, essencialmente estética, do mundo sensível,assim como a expressão artística. Partilha enquanto convite da multiplicidade demanifestações dentro de um comum. “Denomino partilha do sensível o sistema deevidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortesque nele definem lugares e partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa portanto, aomesmo tempo, um comum partilhado e partes exclusivas. Essa repartição das partes e doslugares se funda numa partilha de espaços, tempos e tipos de atividade que determinapropriamente a maneira como um comum se presta à participação e como uns e outrostomam parte nessa partilha” (RANCIÈRE, 2005, p. 15) [grifos do autor] “É um recorte dostempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra e do ruído que define ao mesmotempo o lugar e o que está em jogo na política como forma de experiencia” (p. 16).RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Tradução Mônica CostaNetto. São Paulo: EXO experimental org.; Ed. 34, 2005.
8 VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Filiação intensiva e aliança demoníaca. Novos Estudos.n. 77, março, 2007.
9 LATOUR, Bruno. Como falar do corpo? A dimensão normativa dos estudos sobre a ciência.In: NUNES, João Arriscado; ROQUE, Ricardo (orgs.). Objetos Impuros: experiências emestudos sobre a ciência. Porto: Edições Afrontamento e autores, 2008.
5
Para Latour (2001)10, manter o conhecimento como diagonal resultante entre de um
lado poder, sociedades, paradigmas e emoções humanas e do outro a natureza e a
realidade, não com essas palavras, mas aqui se faz pertinente, é manter-se no mundo da
representação. Tampouco a invenção de outras metáforas, tais como a do teatro
(encenação), do fetiche, da visão (óptica), industrial e da trilha, satisfazem o combate.
Afinal, como se pode ver com Viveiros de Castro (2007), a metáfora é essencialmente
representacional11.
“O que tenho buscado desde o início do livro é uma alternativa ao modelo de assertivas
que postulam um mundo 'lá fora' e cuja linguagem tenta alcançar uma correspondência
por sobre o abismo que os separa” (LATOUR, 2001, p. 163), abismo entre coisas e
linguagem. A articulação é uma mudança topográfica entre a verticalidade desse abismo
e a horizontalidade da circulação de referências (“série de transformações progressivas
e rastreáveis”) (op. cit.).
La danse: dança e corpo e indizíveis fracassos
Um documentário se diz de um conjunto de imagens de caráter informativo, didático
e/ou de divulgação de determinado tema. Uma escrita imagética que representa tal tema.
Nesse jogo, um documentário traz à tona uma representação do mundo, em que suas
imagens são fiéis e razoáveis em relação à sua temática. Diante disso, é possível uma
re-criação junto a uma cartografia fílmica e documental? Como as representações do
real entram em variações junto a um filme-documentário que se propõe a vazar sentidos
e significações do próprio real?
10 LATOUR, Bruno. A esperança de Pandora: ensaios sobre a realidade dos estudoscientíficos. Trad. Gilson César Cardoso de Souza. Bauru: EDUSC, 2001.
11 “Assim, observa-se já há algum tempo um deslocamento do foco de interesse, nas ciênciashumanas, para processos semióticos como a metonímia, a indicialidade e a literalidade – trêsmodos de recusar a metáfora e a representação (a metáfora como essência da representação),de privilegiar a pragmática sobre a semântica, e de valorizar a parataxe sobre a sintaxe (acoordenação sobre a subordinação)” (VIVEIROS DE CASTRO, 2007, p. 95).
6
Essa parte do trabalho se propõe a uma traição, uma perturbação desse regime de
representação e imagem documental por vias que fraturam o real e abrem imagem e
escrita para outras relações, ritmos, tempos.
As articulações entre antropologia, filme-documentário, filosofia, escrita e imagem se
fazem por fracassos da representação, de um oferecimento do reconhecível do mundo,
significando e representando interesses e conveniências, de uma representação do
mundo enquanto ponto de vista, interpretação. O que se quer é dar potência àquela
dissonância das faculdades, da diferença entre o que se vê, imagina, lembra etc.
O que dá corpo à ficção, de fato, não é a invenção de uma história, é aconstrução de uma rede de signos e de agenciamento de signoscapazes de quebrar o regime ordinário do desfile de imagens e daassociação de palavras às coisas. Desse ponto de vista, a importânciaque assume a forma documentária não trai um repúdio à ficção, mas,ao contrário, um interesse renovado pelos recursos ficcionais própriosà arte cinematográfica (RANCIÈRE, 1997, s.p.)12.
Diante de todo esses traçados, parte-se, pois, do documentário La danse de Frederick
Wiseman (2009)13 para se pensar na produção de fissuras entre o mapeamento de uma
instituição – a companhia Le ballet de l'opera de Paris e o que dela ecoa por seus
corredores; entre o corpo de balé e os ensaios incessantes; entre o documento e a própria
escrita e os seus sentidos.
Os filmes de Wiseman buscam o funcionamento das instituições:
… a sua maior virtude, a substância do gênio particular do Sr.Wiseman, é a maneira como nos transporta para o funcionamentointerno de uma instituição, que de outro modo nem sequer nosinteressaria. A observação de grupos de pessoas que trabalham numespaço profissional ou num contexto social claramente definidos temsido o principal interesse do Sr. Wiseman desde o seu primeiro filme,“Titicut follies” [1967], o qual expôs os trabalhos do Hospital
12 RANCIÈRE, Jacques. O novo endereço da ficção. Folha de São Paulo. 13 de dezembro de1998. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs13129803.htm>. Acessoem 13 de abril de 2014.
13 WISEMAN, Frederick. La danse. Le ballet de l'opera de Paris. Direção de FrederickWiseman. França/EUA: Clap Filmes, 2009. 1 DVD (159 min.).
7
Estadual Bridgewater destinado a criminosos com problemaspsiquiátricos em Massachussets (SCOTT, 2009, s.p.) [tradução daautora]14.
Além disso, há uma ausência de narração, o que faz com que a montagem e a edição
sejam a possibilidade de explorar as imagens e das imagens seu potencial narrativo .
Não se trata das imagens editadas ocuparem o lugar do narrador, mas delas vazarem os
sentidos.
Em La danse são os corredores vazios, os chãos limpos e as luzes acesas, que fazem
circular aquilo que não pode ser dito e a iminência do erro. Corredores, chão e luzes
indizíveis que são repletos dos sons dos ensaios incessantes da companhia de balé
parisiense. As estruturas que suportam o prédio, os porões, os ductos subterrâneos de
água, as engrenagens e pilares guardam aquilo que não é dito, não há uma descrição. O
funcionamento dessa instituição é explicitado com sutilezas nas imagens. As estruturas
concretas de La danse são elementos imagéticos que dizem daquilo que ninguém vê na
companhia, mas que a suporta, que a sustenta.
Os filmes de Wiseman são tanto eventos na vida das instituições, como as instituições
são eventos nos filmes. Exteriorização de um interior privado e a interiorização de um
exterior público. O obsceno, ou seja, aquilo que está fora de cena, fora do alcance é o
que faz pensar nas territorialidades e desterritorialidades que emanam dos corpos em La
danse.
Articulações que possibilitam mediações entre os componentes dessa escrita e suas
proliferações, afetando uns aos outros, devolvendo ao corpo dançante o sensível
partilhado entre indizíveis fracassos.
Segundo José Pérez de Lama (2009)15, a produção de um mapeamento ou cartografia,
14 SCOTT, A. O. Creating dialogue from body language. In: The New York Times (Movies).Disponível em: <http://www.nytimes.com/2009/11/04/movies/04danse.html?_r=0>.Publicado em 3 de novembro de 2009.
15 LAMA, José Pérez de. La avispa y la orquídea hacen mapa en el seno de un rizoma.Cartografía y máquinas, releyendo a Deleuze y Guattari. Pro-Posições, Campinas, v. 20, n. 3
8
que se desloca do regime da representação, não representa um espaço já dado, mas gera
novas relações, novas formas, produz novos desejos.
Essa escrita busca articular as imagens do documentário La danse de Frederick
Wiseman (2009), o corpo, a dança e as imagens, e pensar no que produz fissuras por
entre as exigências do corpo de balé, da territorialidade do corpo exercitado para a
dança, a máquina de produção do espetáculo, que visa à perfeição, à reprodutibilidade, à
repetição tal qual o modelo, a glorificação dos bailarinos e da companhia.
Tudo isso é invadido pelo desconcerto, pelas falhas iminentes, por vezes imperceptíveis,
pelo precário. O corpo de balé é cortado por uma máquina de guerra, nômade
(DELEUZE; GUATTARI, 1997)16 da iminência do erro; por um corpo que dança e não
necessariamente sabe o movimento exato que fez para poder repeti-lo, desorganizado
entre falhas e acertos, que experimenta um corpo dançante sem que os significantes lhe
sejam necessários, úteis, sem que os sujeitos se fixem – os movimentos são impossíveis
e estão em devir.
Pergunta-se, pois, com quantos indizíveis e fracassos se faz um passo de dança? Como
criar uma escrita do indizível e do fracasso de uma dança ou que inscreva o indizível e o
fracasso nos corpos que dançam?
(60), pp. 121-145, set./dez. 2009.
16 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs. capitalismo e esquizofrenia, vol. 5.Tradução Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. São Paulo: Ed. 34, 1997. Em Conversações, Deleuze escreve: “definimos a 'máquina de guerra' como umagenciamento linear que se constrói sobre linhas de fuga. Nesse sentido, a máquina deguerra não tem absolutamente por objeto a guerra; ela tem por objeto um espaço muitoespecial, espaço liso, que ela compõe, ocupa e propaga. O nomadismo é precisamente estacombinação máquina de guerra-espaço liso”. (DELEUZE, Gilles. Conversações. Trad. Peter Pál Pelbart. 3ª ed. São Paulo: Ed. 34, 2013,p. 47).
Ainda sobre a máquina de guerra, Zourabichvili (2004) escreve que este conceito é umaforma de expressão do nomadismo e embora não tenha a guerra como objeto, algumaspotências da máquina de guerra se manifestam na guerra, como a guerrilha. “(...) é ele [oconceito de máquina de guerra] que confere um verdadeiro teor problemático à crítica doEstado como forma ou como modelo”. (ZOURABICHVILI, François. O vocabulário de Deleuze. Trad. André Telles. Rio deJaneiro: Relume Dumará, 2004, p. 34).
9
O indizível e o fracasso que Clarice alertou17, nessa escrita, fazem com que a dança
experimente uma repetição que não é fiel ao modelo, mas numa cartografia na qual se
cria.
A displicência dos movimentos nos ensaios, que deveria ser apagada no espetáculo
numa espécie de assepsia, é incorporada como aquilo de indizível que habita o corpo
desde os ensaios. O obsceno, o que está fora da cena do palco, fora do alcance é
incorporado e faz pensar nas imagens que emanam a construção que tanto sustenta o
prédio da companhia, como cria o inefável nos corpos dançantes. Produção desejante
em que mais do que a perfeição do movimento, do retrato razoável, faz, pois, com que
os corpos/imagens se liguem, conectem-se.
Os detalhes, bastidores, cortinas produzem uma dança heteróclita, pois as gramáticas do
corpo anatômico são insuficientes para se dizer da própria dança. Indizível e fracasso
que invadem os corpos dançantes e como escrevem Deleuze e Guattari – os corpos são
esvaziados ao invés de plenos e o que os povoa, o que os ocupa, o que neles passa e
atravessa são tão somente intensidades que deslizam nas superfícies dos corredores
vazios, chãos limpos, das notas musicais, na superfície-tela de um documentário que
desenha La danse como espalhamento de potência nos interstícios dos corpos dançantes.
17 “Mas – volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso deminha linguagem. Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu”(LISPECTOR, 1988, pp. 112-113).
10
1 – Imagens capturadas do filme La danse.
11
Referências
DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Trad. Luiz B. L. Orlandi e Roberto Machado.Rio de Janeiro: Graal, 1988.
______ . Conversações. Trad. Peter Pál Pelbart. 3ª ed. São Paulo: Ed. 34, 2013.
______ ; GUATTARI, Félix. Mil platôs. capitalismo e esquizofrenia, vol. 5. Trad. PeterPál Pelbart e Janice Caiafa. São Paulo: Ed. 34, 1997.
GOLDMAN, Marcio. Jeanne Favret-Saada, os afetos, a etnografia. Cadernos de campo.n. 13, pp. 149-153, 2005.
LAMA, José Pérez de. La avispa y la orquídea hacen mapa en el seno de un rizoma.Cartografía y máquinas, releyendo a Deleuze y Guattari. Pro-Posições, Campinas, v. 20,n. 3 (60), pp. 121-145, set./dez. 2009.
LATOUR, Bruno. A esperança de Pandora: ensaios sobre a realidade dos estudoscientíficos. Trad. Gilson César Cardoso de Souza. Bauru: EDUSC, 2001.
______ . Como falar do corpo? A dimensão normativa dos estudos sobre a ciência. In:NUNES, João Arriscado; ROQUE, Ricardo (orgs.). Objetos Impuros: experiências emestudos sobre a ciência. Porto: Edições Afrontamento e autores, 2008.
LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G. H.. Edição crítica (Benedito Nunes –coord.) Paris: Association Archives de la littérature latino-américaine, des Caraïbes etafricane du XXe. siècle; Brasília: CNPq, 1988.
RANCIÈRE, Jacques. O novo endereço da ficção. Folha de São Paulo. 13 de dezembrode 1998. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs13129803.htm>.Acesso em 13 de abril de 2014.
______ . A partilha do sensível: estética e política. Trad. Mônica Costa Netto. SãoPaulo: EXO experimental org.; Ed. 34, 2005.
SCOTT, A. O. Creating dialogue from body language. In: The New York Times(Movies). Disponível em: <http://www.nytimes.com/2009/11/04/movies/04danse.html?_r=0>. Publicado em 3 de novembro de 2009.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Filiação intensiva e aliança demoníaca. NovosEstudos. n. 77, março, 2007.
WISEMAN, Frederick. La danse. Le ballet de l'opera de Paris. Direção de FrederickWiseman. França/EUA: Clap Filmes, 2009. 1 DVD (159 min.).
ZOURABICHVILI, François. O vocabulário de Deleuze. Trad. André Telles. Rio deJaneiro: Relume Dumará, 2004.
12