Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.
A Doutrina de Segurança Nacional e sua influência sobre os cursos de formação de
agentes do Serviço Nacional de Informações, 1972-1978
Fabiana de Oliveira Andrade *
1) A Doutrina de Segurança Nacional e seu desenvolvimento no Brasil
A criação da Escola Superior de Guerra
A criação da Escola Superior de Guerra, segundo Eliezer Rizzo de Oliveira em “As
forças armadas: política e ideologia no Brasil (1964-1969)”, surgiu, principalmente, em
razão dos seguintes fatos: 1) participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial, ao lado dos
Estados Unidos; 2) debate político a respeito da exploração do petróleo.
De fato, após a Segunda Guerra Mundial, muitos oficiais retornaram ao Brasil
convictos da necessidade de acelerar o desenvolvimento econômico do país, pois isso
proporcionaria o desenvolvimento do próprio aparato militar. Por sua vez, os Estados
Unidos, que almejavam a aproximação com o Exército Brasileiro desde o governo de
General Eurico Gaspar Dutra (1946-1950), ofereceram acesso aos oficiais brasileiros as suas
escolas militares, a fim de substituir a influência francesa no Exército.
A partir dessa influência da escola de guerra norte-americana, oficiais brasileiros
retornaram com proposta de desenvolver um sistema de segurança nacional inspirado na
National War College. Para a consecução desse objetivo, foi enviado ao Brasil uma missão
norte-americana, no ano de 1948, com o fim de orientar, doutrinária e ideologicamente, a
fundação da Escola Superior de Guerra. A ESG, desde os primeiros anos de seu
funcionamento:
esquematizou a doutrina americana: objetivos nacionais, poder nacional, segurança
nacional, conceito estratégico nacional. Essas categorias englobam todos os aspectos da
realidade nacional. O esquema abstrato do Estado futuro já está claramente concebido
(COMBLIN, 1978: 155-156)
Em razão da ausência legal de previsão da grade curricular a ser ministrada na ESG,
houve uma ampla liberdade atribuída àdireção da Escola, assim como conferiu-se poderes de
* Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Estadual Paulista – UNESP, bolsista do CNPq. Orientador: Prof. Dr. Samuel Alves Soares
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direção ao próprio Estado Maior das Forças Armadas. É possível, ainda, verificar, com base
na estrutura educacional, que havia uma tendência de formação de uma elite dirigente,
composta por civis e militares, com fins de estudo de assuntos referentes à segurança
nacional.
A Doutrina de Segurança Nacional e a Escola Superior de Guerra
Trabalhos acadêmicos já esclareceram que a Escola Superior de Guerra foi a criadora e
principal propagadora da Doutrina de Segurança Nacional (DSN), pois a própria escola
militar foi criada com a finalidade de implantar a doutrina, assim como para aprimorá-la,
embora seja difícil, conforme salienta Eliezer Rizzo de Oliveira em “As forças armadas:
política e ideologia no Brasil (1964-1969)” , avaliar a profundidade de penetração da DSN na
Escola, pode-se observar que a principal crença da doutrina era a integração do Brasil ao
cenário político internacional, pelos seguintes motivos: a) grande população e extensão
territorial do Brasil; b) posição geopolítica, fornecendo uma posição estratégica perante as
relações políticas internacionais; c) sua vulnerabilidade ao comunismo, pelas dificuldades
intrínsecas da vida social brasileira, como, por exemplo: pobreza da população e políticos
corruptos.
Diante dessas situações, a ESG elaborou teorias que ofereceriam possíveis soluções
para tal amplitude de problemas. Para que se atingisse o ideal de segurança definido pela
ESG, primeiramente deveria haver o desenvolvimento econômico do país a fim de que o
destino brasileiro de “grande potência” fosse reforçado, concomitantemente, dever-se-ia
construir mecanismos internos para o combate ao comunismo.
A partir de 1964, com a crise de hegemonia do Estado brasileiro, o Estado é tomado
pelas Forças Armadas, fundamentadas pelos pressupostos elaborados pela Doutrina de
Segurança Nacional. A intervenção das Forças Armadas inicia-se, no Estado Brasileiro, a
partir da ideologia criada pela Escola Superior de Guerra onde a atuação da Escola é ponto
chave na definição dos novos rumos políticos do país, devido à sua posição estratégica nas
Forças Armadas e ao desenvolvimento de uma doutrina que defendia a subordinação política
da classe operária e a participação do Brasil na estratégia do mundo ocidental capitalista, cuja
supremacia pertencia aos Estados Unidos.
A Doutrina de Segurança Nacional é concebida num momento em que se operam transformações profundas na sociedade brasileira e no contexto internacional. A
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insistência no combate ao ‘neutralismo’, a propugnação do envolvimento incondicional do Brasil no Bloco Ocidental, a ênfase na defesa do continente americano de agressões ‘externas’, apontam para além de uma identificação ideológica com o ‘Mundo Livre’ (OLIVEIRA, 1976: 26)
É observada, na doutrina, a interligação entre o Estado e a tendência à predominância do
grande capital, este considerado indispensável para a concretização dos objetivos nacionais,
quais sejam, objetivando o desenvolvimento econômico e a implementação de uma política de
segurança nacional, já definidos pelas Forças Armadas.
Para minimizar as influências da ESG e da Doutrina de Segurança Nacional dentro do
aparato estatal e na sociedade, haveria a necessidade de aprofundamentos da democracia,
quer pela institucionalização e desenvolvimento de mecanismos de representação política e
alternativas de participação direta da população nas esferas do poder de Estado. Entretanto, o
tipo de regime que se estabelecera no Brasil culminara com o afastamento das massas da
condução e do controle das decisões do Estado.
Conceitos da Doutrina de Segurança Nacional
Conceito de Segurança Nacional
Dentro da Doutrina de Segurança Nacional não consta a explicação ou conceituação do
termo “Segurança Nacional”; este conceito está sempre implícito. O objetivo da Segurança
Nacional é proporcionar a conquista e manutenção dos Objetivos Nacionais2.Segundo
Antônio de Arruda, no momento de implantação da Escola Superior de Guerra, o conceito
tradicional de Segurança – ligado à Defesa, de cunho estritamente militar, vinculado à
exploração do potencial econômico – já era substituído por outro mais abrangente – político –
que defendia o resguardo de toda a nação, à participação do Brasil no bloco ocidental e à
continuidade da sociedade capitalista: “A noção de Segurança é mais abrangente que a de
Defesa, esta entendida como um ato diretamente ligado a determinado tipo de ameaça,
caracterizada e medida.” (Manual Básico da ESG, 1975: 95).
Joseph Comblin tenta definir conceito de Segurança, baseado nos estudos de José
Alfredo Amaral Gurgel: “A Segurança Nacional é a capacidade que o Estado dá à Nação para
impor seus objetivos a todas as forças oponentes [...] Trata-se da força do Estado, capaz de
2 Golbery do Couto e Silva acredita que os objetivos nacionais consistem em “integração nacional, autodeterminação ou soberania, bem-estar, progresso
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derrotar todas as forças adversas e de fazer triunfar os Objetivos Nacionais” (COMBLIN,
1978: 54). A segurança é a força do Estado aplicada, e essa força está presente em todos os
lugares onde se suspeite haver focos comunistas. Embora sejam vagos os conceitos que
versam sobre a onipresença do comunismo e a atuação da Segurança Nacional, conseguem
estabelecer a crença, estimulada pela DSN, da presença do comunismo em todos os setores,
em todos os fragmentos da sociedade. Nas palavras de Comblin:
O conceito de segurança nacional torna-se muito operacional desde o momento em que se define o inimigo. A segurança nacional talvez não saiba muito bem o que está defendendo, mas sabe muito bem contra quem: o comunismo. Sua indefinição é que faz sua eficiência: o comunismo pode aparecer em todos os setores da sociedade. [...] A segurança nacional é a força do Estado presente em todos os lugares em que haja suspeita do fantasma do comunismo. (COMBLIN, 1978: 55)
Perante a evidência da presença constante do comunismo na sociedade, a Segurança
Nacional também deve ser onipresente, permeando todos os aspectos da vida social. Nesta
ideia se faz presente aspectos comuns entre a análise de Comlin e o estudo de Arruda. Para
Comblin, o propósito da ESG é que todos os cidadãos cooperem em prol da segurança,
considerando que o comunismo e a subversão ideológica sejam problemas onipresentes na
sociedade, como versa a DSN.
“Guerra revolucionária” e a atividade de informação
A partir da década de 60, o sentimento de “guerra contra o Comunismo Internacional”
fortaleceu-se a partir da incorporação do conceito de guerra revolucionária, entendida como
uma nova estratégia do comunismo internacional, sendo o melhor método de conquista do
mundo ocidental. A guerra revolucionária personificava apenas um inimigo: o comunismo
internacional, agora internalizado ao país. Todos os processos revolucionários (subversão,
terrorismo, guerra de libertação nacional, guerrilhas, etc.) são apenas fases distintas do
processo da guerra revolucionária.
Nesta modalidade, o Serviço de Inteligência é extremamente necessário, pois é
responsável pela identificação dos inimigos. Cabe à Inteligência a detecção de todos os
envolvidos com a subversão, através da “espionagem” dos locais profissionais, sociais, entre
outros frequentados pelos suspeitos. Perante à guerra revolucionária, a arma mais importante
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é a capacidade de coletar informações, e diante desse fim necessário e indispensável, o
emprego de quaisquer meios é considerado válido.
A análise da ESG é que a guerra revolucionária deforma a realidade. Na América
Latina não houve movimentos semelhantes aos da China e de Cuba; não havia uma guerrilha
revolucionária, porém a realidade nacional é tratada como se essa ameaça fosse iminente e
que colocava em risco todos os setores da sociedade.
2) Montagem e estruturação do Serviço Nacional de Informações
O golpe militar de 1964 foi resultado de uma conspiração que estava sendo articulada
desde o momento em que fora assegurada a posse do presidente João Goulart. Os conhecidos
fatos de março de 1964 apenas contribuíram para o emprego da força.
A partir do primeiro mandato presidencial do regime autoritário, com o general
Humberto de Alencar Castelo Branco, escolhido pelo Congresso em 11 de abril de 1964,
posturas dualistas – legalistas, que apoiavam Castelo Branco e a linha-dura, liderada por
Costa e Silva, que se originaram pela ausência de uma ideologia homogênea dentro das
Forças Armadas, o que suscitou, ao final, a construção de um aparelho repressivo que se
mostrava como incompatível com o regime democrático defendido com o golpe.
O campo de ideias dos autores da “Revolução de 64” vai se delineando
progressivamente, e, nas palavras de Jacob Gorender, era permeado pela “... obsessão
anticomunista, a obsessão da imposição à sociedade civil da disciplina e hierarquia
características do ethos militar, [...] a obsessão da construção de uma grande nação” (FICO,
2001: 13), ideias estas que só encontraram solo fecundo a partir da lógica da Guerra Fria, da
Doutrina de Segurança Nacional e da influência política norte-americana sobre todo o
continente.
Em junho de 1964, o recém-nomeado chefe do Serviço Nacional de Informações, o
general Golbery do Couto e Silva recorreu ao auxílio norte-americano para a montagem do
novo órgão de informações brasileiro. Através de um acordo entre EUA e Brasil, os Estados
Unidos se comprometeram em “fornecer pistas operacionais” que tratavam da subversão para
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o Serviço e, em troca, o SNI também forneceria à CIA informações coletadas sobre a ação
esquerdista em território nacional.
Com a finalidade de orientar as ações, foi estabelecido o primeiro Plano Nacional de
Informações (PNI), aprovado em junho de 1970. O Plano foi sendo elaborado pelo SNI por
iniciativa de sua Agência Central, contando, concomitantemente, com o auxílio de diversas
pessoas, tanto civis quanto militares. Sua intenção era otimizar e regular a coleta, a análise e a
divulgação das informações, estabelecer os canais de exploração das fontes e de estabelecer e
coordenar as prioridades do SNI.
Uma das atribuições mais importantes do PNI foi a definição do órgão responsável
pela elaboração da doutrina de informação brasileira. Segundo Lucas Figueiredo, esta
responsabilidade não poderia ser atribuída à Agência Central do SNI, pois o chefe deste órgão
era ligado ao Presidente da República. Restava ao EMFA a incumbência de tal tarefa, porém,
o almirante que o chefiava a negou, julgando ser uma responsabilidade demasiada para o
Estado Maior, propondo, dessa forma, ao general Médici, presidente à época, a criação de
uma nova escola, a Escola Nacional de Informações, que seria responsável pela elaboração da
doutrina nacional de informações brasileira.
Porém, a urgência da criação de uma escola de informações não se devia apenas à necessidade
de formulação do Plano Nacional de Informações. Priscila Antunes nos esclarece:
Paralelamente à necessidade de uma agência responsável pela elaboração da Doutrina Nacional de Informações, oficiais responsáveis pela atividade de informações se encontravam extremamente preocupados com a qualificação de seus agentes, que até então era feita principalmente no exterior. Havia poucas alternativas na área de treinamento de informações no Brasil. Na Escola Superior de Guerra, antes mesmo de 1964, funcionava um curso de informações considerado de bom nível, mas que não abordava necessariamente a área de operações e contra informações. (ANTUNES, 2002: 56)
A criação da Escola Nacional de Informações
No dia 31 de março de 1971 foi criada a Escola Nacional de Informações – EsNI,
através do decreto n° 68.448/71. A escola incorporou o acervo dos cursos ministrados na
ESG. Os objetivos da Escola, parafraseando Ayrton Baffa, eram: “cooperar no
desenvolvimento da Doutrina Nacional de Informações e na pesquisa para a obtenção de
melhor rendimento das atividades do sistema nacional de informações”(BAFFA. 1989: 15).
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Desta forma, era responsável também pela capacitação dos recursos humanos que integrariam
os órgãos de informações e contrainformações do Sistema Nacional de Informações, uma vez
que a intenção era a transformação do Serviço Nacional de Informações em uma agência civil
semelhante a CIA norte-americana.
O general Ênio dos Santos Pinheiro foi o militar responsável pela montagem da EsNI.
Convidado pelo presidente norte-americano Richard Nixon e pelo FBI, viajou, juntamente
com o almirante Sérgio Doherty, a Washington no início de 1971. Através desse contato, os
instrutores norte-americanos propuseram ao general Enio Pinheiro eixos e perspectivas para a
montagem de uma escola de inteligência. Além de orientações institucionais e
administrativas, os parceiros norte-americanos ofereciam ensinamentos práticos, como por
exemplo, a abordagem durante um interrogatório:
A primeira providência, ensinaram os americanos, era tirar toda a roupa do prisioneiro – um modo de evitar acidentes com objetos escondidos ou mesmo cintos e cadarços e também uma forma de humilhar o preso, quebrando sua resistência. Enquanto um interrogador fazia perguntar, outro tomava nota e um terceiro assistia a tudo numa sala contigua escondido por um espelho falso. [...] em outra aula, o general e o almirante viram como os agentes secretos americanos faziam o controle da embaixada russa em Washington e vigiavam os espiões de Moscou disfarçados de diplomatas. Era uma operação ultra complexa que impressionou os militares brasileiros [...]” (FIGUEIREDO, 2005: 222-223)
Ao retornar ao Brasil, o general Ênio responsabilizou-se pela formulação do material
da escola brasileira baseando-se em informações, relatórios e documentos trazidos dos
Estados Unidos, sem deixar claro, como ele próprio confessa à Maria Celina d’Araujo, a
fonte. Portanto, é nítido o embasamento teórico provindo dos materiais da CIA e do FBI
permeando o primeiro material da escola de informações brasileira.
Lucas Figueiredo nos apresenta outro material ideológico e metodológico de apoio
utilizado pela Escola: o livro A produção de Informações Estratégicas, de Washington Platt,
general de reserva do Exército americano, escrito em 1957 e publicado pela Biblioteca do
Exército em 1967. Através de um texto complexo, o livro apresentava técnicas para a
produção de informações por via ostensiva.
A Escola se instalou em uma área com mais de duzentos mil metros quadrados, no
Setor Policial Sul, em Brasília. Por questões de segurança e de confiabilidade, a obra foi
executada em vários blocos separados, pois a construção e estruturação do prédio da EsNI
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deveria seguir o quesito básico do campo da inteligência: a compartimentação da informação.
A preferência na escolha da equipe de instrutores da Escola era de pessoas que tinham
experiência na área de informações, porém, Ênio Pinheiro chama a atenção para a intenção de
mesclar militares e civis dentro do quadro de funcionários. Ademais, para entrar na escola, era
necessária a realização de exame psicotécnico, psicológico, para que se estabelecesse o perfil
do homem brasileiro integrante do sistema de informações. Quando questionado, o general
discute dois tipos de pessoas admitidas na Escola: “um, intelectual, e outro, que trabalhava no
campo de operações”, após a seleção era “feito um código de honra e um código de ética para
o pessoal”.
Cursos para formação de agentes de informação até 1970
O jornalista Lucas Figueiredo, em seu livro “Ministério do Silêncio” atribui a
formação dos agentes do Serviço Nacional de Informações e do Sistema Nacional de
Informações, durante o período anterior à inauguração da Escola Nacional de Informações, às
academias militares, tendo em vista o combate a subversão.
Até 1967, os temas abordados nas aulas versavam sobre conceitos, planejamento
estratégico, análise comparativa de serviços secretos estrangeiros, entre outros. Porém, a partir
deste momento o material didático do curso de informação passa a incorporar o debate sobre a
subversão, seus métodos de combate e a forma de organização dos grupos subversivos.
Não era, entretanto, a totalidade dos funcionários do SNI que tinham a oportunidade
de cursar os bancos escolares da ESG, e quando tinham, seus ensinamentos eram difusos e
pouco contundentes. “O serviço secreto carecia de um centro de formação que ensinasse as
técnicas de espionagem, que lecionasse várias línguas, que formasse analistas de informações
ultra-especializados e ainda fosse capaz de reciclar as chefias” (FIGUEIREDO, 2005: 221).
Era notável a necessidade de uma escola que fornecesse cursos específicos para o SNI.
No ano de sua inauguração, em 1972, a EsNI funcionou com apenas um curso piloto,
passando, apenas em 1973, a contar com duas turmas - os cursos “B” e “C”.
Os futuros alunos da Escola foram indicados pelo comandante de suas unidades
militares, e suas sua faixa etária abrangia entre 21 e 24 anos. Eles deveriam ter cumprido o
serviço militar obrigatório em corpos de elite do Exército, além de ainda ocuparem, nas
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Forças Armadas, o posto de segundos-tenentes. Posteriormente, havia uma rigorosa seleção
que incluía investigação social, exames médicos na Policlínica da Aeronáutica e psicotécnico.
Após aprovados, Lucas Figueiredo nos indica que os candidatos eram convidados a abandonar
seus postos nas Forças Armadas e cursar a Escola, entretanto, o curso na escola de informação
não garantia efetivamente um emprego na SISNI ou no SNI.
Segundo o general Enio Pinheiro informa na coletânea realizada por Maria Celina
D’Araujo3, além do funcionamento do curso de idiomas, também eram oferecidos cursos
permeados por uma doutrina anticomunista, divididos em três categorias: A) Altos Estudos,
com duração de um ano letivo; B) Fundamentos e, C) Operações. Os dois últimos com
duração de um semestre. Todos tinham aula de segunda à sexta feira, em período integral,
contando com turmas de, no máximo, trinta alunos. Formando, por ano, cerca de 120 pessoas.
O curso “A” era voltado para a formação de chefias, sendo como uma pós-graduação,
já que se exigia que o aluno-estagiário fosse formado no curso “B” ou “C”, no ensino superior
ou, no caso de militares, no curso de Estado-Maior. O tema das aulas abordava assuntos
políticos, econômicos e sociais da realidade brasileira, tendo em vista a análise de conjuntura
e estudo de casos.
A segunda categoria de cursos, “B”, era destinada à formação de analistas de
informações, com a abordagem de matérias como sociologia, história, geografia e ciências
políticas. Inicialmente, o aluno estudava a história do comunismo, desde o surgimento da
doutrina, com Karl Marx, perpassando pela Revolução Russa em 1917, e finalizando com a
Revolução Cubana e seus efeitos na América Latina. Também se analisava e debatia-se a
questão de propagandas ideológicas soviéticas presentes nos meios de comunicação.
Neste momento, focamos a temática do trabalho. Através da análise da “Apostila da 2ª
Jornada de Estudos de Informações”, de 1973 podemos observar a descrição da história do
comunismo do Brasil, estudada neste curso, enfatizando o surgimento do Partido Comunista
Brasileiro (PCB), enfatizando a constante preocupação com a propaganda comunista:
3 D’ARAUJO, Maria Celina, SOARES, Glaucio Ary Dillon, CASTRO, Celso. Os anos de chumbo: a memória militar sobre a repressão. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
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Na América Latina, a atual propaganda comunista, usando da técnica de denúncias de tortura e perseguições, que em certa época foi preponderante contra o Brasil, visa no momento também o Chile [...] a orquestração das numerosas fontes[comunistas], de todos os órgãos de apoio da propaganda da URSS e de seus agentes de influência, tem como um dos principais objetivos no momento a desmoralização do atual governo do Chile e também do Brasil, a maior potencia emergente na América do Sul. (Apostila da 2ª Jornada de
Estudos de Informações IN: FIGUEIREDO, 2005: 226)
Para a abordagem mais específicados materiais e das informações, o curso ensinava como
analisar um documento, redigir um relatório de forma clara e concisa, a cruzar informações e
analisá-las, e ainda, analisar as fontes. A terceira modalidade de cursos era responsável pelo
campo prático da atividade de informações e contava com um processo de seleção mais
rígido, ou seja, seu objetivo era a formação dos “agentes de rua” do SNI, a atividade mais
perigosa e delicada.
Os temas do curso abordavam métodos de escutas telefônicas, do uso de microfone
para gravação de conversa, técnicas de vigilância, métodos de interrogatórios, de disfarces,
etc. Nas aulas que versavam sobre entrevistas e interrogatórios, o agente era ensinado sobre os
melhores métodos de aproveitamento das fragilidades do interrogado. A apostila
“Interrogatório de suspeitos (2) – Técnicas e processos”, de 1973, instruía sobre o
reconhecimento de mentiras, verificados através dos sintomas como: pulsação da carótida,
atividade excessiva do pomo-de-adão, secura na boca, juras pela verdade, memória ruim, etc.
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Reproduzido BAFFA, Ayrton. Nos porões do SNI: o retrato do monstro de cabeça oca. Rio de
Janeiro: Objetiva, 1989. P. 27, 28 e 29.
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Este curso ainda ensinava técnicas de combate e defesa, como jiu-jítsu, contando com
aulas teóricas e práticas, observadas na apostila “Programa de Defesa Pessoal e Exercícios
Correlatos”.
Além dos cursos regulares, a EsNI oferecia os denominados “cursos extraordinários”,
ministrados para adidos militares e funcionários públicos que trabalhavam com informações
estratégicas.
Outro curso extraordinário era destinado os Ministros de Estado, contanto com uma
carga horária de 48 horas. Segundo o general Enio Pinheiro, todos os ministros deveriam
fazer esse curso, embora separados, para lhes ensinar o que era informação, como usar essas
informações que lhes eram repassados, sua utilidade e importância.
Desde sua criação, a EsNI teve sua missão de elaborar uma doutrina de informações
para o Brasil, porém, apenas em 10 de dezembro de 1976 foi publicado o Manual de
Informações da EsNI – já utilizado em caráter experimental desde 1973 – que, segundo o
general Enio Pinheiro, regulamentava a doutrina de informações brasileira.
A partir das considerações apresentadas neste trabalho, é claramente observável a
presença norte-americana em vários aspectos ideológicos e da infraestrutura do serviço de
informações no Brasil: desde o auxílio para a montagem da Escola Superior de Guerra, em
1958, o envio de um oficial para atuar em conjunto com Golbery do Couto e Silva com vistas
à estruturação do Serviço Nacional de Informações, e até mesmo em cursos oferecidos ao
general Ênio Pinheiro para a constituição da Escola Nacional de Informações.
As ideias presentes nos relatórios e nas apostilas são permeadas de atitudes
anticomunistas, a própria ideia de ameaça constante de uma guerra já demonstra, em termos
gerais, a presença da Doutrina de Segurança Nacional no Brasil. Emtretanto, também se
constata a presença de conceitos chave, tais como guerra revolucionária, guerra absoluta,
Objetivos Nacionais, que demonstram a relação entre a prática dos oficiais membros do
Serviço Nacional de Informações e os teóricos que as formularam a partir do material de
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ensino coletado nos Estados Unidos até os cursos e a bibliografia fornecida pela Escola
Superior de Guerra, no Brasil. Assim, pode-se enxergar a aplicação da ideologia da segurança
nacional nas instituições de ensino responsáveis pela formação de agentes, que posteriormente
integrariam não somente o SNI, mas todo Sistema Nacional de Informações.
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