UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
A colocação dos pronomes clíticos em O Patrocínio : periódico da imprensa negra de Piracicaba
Ana Regina Vaz Calindro
Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação do Departamento de Letras Clássicas
e Vernáculas da Universidade de São Paulo. Para a obtenção do título de Mestre em Letras, na Área de de Filologia e Língua Portuguesa.
Orientador: Profa. Dra. Maria Aparecida Torres-Morais
São Paulo
2009
2
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________________________ Orientadora: Professora Doutora Maria Aparecida Torres-Morais – DLCV / USP ______________________________________________________________
Professora Doutora Márcia Santos Duarte Oliveira – DLCV / USP
_______________________________________________________________ Professora Doutora Tania Maria Alkmim – IEL/UNICAMP
3
Ao meu marido, Matheus
pelo companheirismo e amor em
todos os momentos da minha vida.
4
AGRADECIMENTOS À minha família: meus pais, Ana Beatriz e Waldomiro, por sempre terem
me incentivado nos estudos e pelos primeiros livros que mesmo sem palavras já
me encantavam; ao meu irmão Marcos, pelo carinho e apoio incondicional em
tudo que faço; à minha irmã Ana Cristina que mesmo distante sempre me
incentivou a buscar meus sonhos e ideais; ao meu sobrinho Nicholas, por me
trazer muitos momentos de alegria; e à minha Tia Maria José, pelo apoio e
carinho.
À minha orientadora Cida Torres, pelo estímulo, recomendações e,
principalmente, paciência durante esse longo e árido caminho.
Às amigas: Carolina e Thaís, companheiras na alegria e na tristeza;
Bruna e Aline, parceiras em meus apuros acadêmicos; Ana Amélia e Simone,
companheiras de colégio e de muitos bons momentos na vida. Ao meu amigo
Roberto, companheiro de estudo e de aprendizado de línguas. E aos colegas do
Colégio CLQ e da ZAP idiomas pelo apoio e incentivo durante esse processo.
Ao Dorival, Marilda e Ana Helena pelo apoio, ajuda e carinho.
Ao amigo e jornalista Érich V. Vicente pela imensa ajuda na busca de
informações sobre a imprensa piracicabana. Ao professor e jornalista Noedi
Monteiro pelas informações preciosas acerca da população negra de Piracicaba.
Aos membros do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba pelo
auxílio nas constantes visitas ao seu arquivo. E aos membros da Sociedade 13
de Maio, em especial à Marly Pimenta, pelo auxílio na minha constante busca
por mais informações.
Ao grupo do Projeto para a História do Português Paulista, em especial à
prof. Rosane Berlinck, pelas palavras de incentivo e apoio. E à Sabrina
Balsalobre pelas trocas valiosíssimas no decorrer dos estudos.
Às professoras Marcia de Oliveira e Tania Alkmim pela leitura cuidadosa
e comentários valorosos durante a qualificação deste trabalho.
Enfim, agradeço a todos aqueles que de alguma forma contribuíram para
a realização deste trabalho. Muito obrigada!
5
CALINDRO, Ana Regina Vaz. A colocação dos pronomes clíticos em O Patrocínio: periódico da imprensa negra de Piracicaba. 2009. Dissertação de Mestrado em Filologia e Língua Portuguesa – FFLCH, Universidade de São Paulo, São Paulo.
RESUMO
Esse trabalho baseia-se no estudo da colocação pronominal, pois este já é reconhecidamente um fator crucial na identificação de diferenças gramaticais entre PE e PB, verificadas desde o século XVIII.O objetivo deste trabalho é verificar se há alguma característica na linguagem dos jornais de imprensa negra que os diferencie dos da imprensa de circulação mais ampla e de outros documentos da época. E, assim, confirmar a diferença entre as variantes brasileira e europeia da língua portuguesa não é apenas superficial, mas gramatical, uma vez que enquanto o PE se tornou uma língua de colocação enclítica dos pronomes átonos, o PB tornou-se a mais proclítica das línguas românicas. Sendo assim, foram analisados dois jornais: O Patrocínio (1925-1930), um periódico da imprensa negra da cidade de Piracicaba; e, a título de comparação, A Gazeta de Piracicaba (1882-1937), um exemplar da imprensa majoritária da época. Os jornais são constituídos de textos de diversos gêneros que trazem, portanto, dados que possuem características distintas e particulares em um mesmo periódico. Nesse contexto, o interesse pela imprensa negra surgiu da possibilidade de analisar textos escritos majoritariamente por negros e para negros. Devido a fatores sociais ligados à escolarização da população negra do período, havia a possibilidade do vernáculo da época encontrar-se mais exposto nesse material. Sendo assim, pretendia-se observar se a colocação brasileira se apresentava de forma mais saliente nesses textos que nos da imprensa majoritária. Porém, a história social mostrou que esses periódicos foram escritos por negros que haviam tido acesso, das mais diversas formas, aos padrões cultos da língua. Dessa maneira, a fim de se adequar aos padrões da sociedade da época, buscavam manter a variante culta da língua em sua escrita. De fato, na comparação dos dados da imprensa negra com os da imprensa majoritária foi possível perceber - no que se refere ao fenômeno estudado - uma grande semelhante entre ambos os jornais. Em particular, verificou-se que esses periódicos apresentam padrões de colocação próximos, ou seja, ambos mostram, ao lado da colocação lusitana, a colocação brasileira em percentuais que não se diferenciam significativamente. PALAVRAS-CHAVE: Imprensa Negra, História do Português, sintaxe, clíticos.
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CALINDRO, Ana Regina Vaz. A colocação dos pronomes clíticos em O Patrocínio: periódico da imprensa negra de Piracicaba. 2009. Dissertação de Mestrado em Filologia e Língua Portuguesa – FFLCH, Universidade de São Paulo, São Paulo.
ABSTRACT
This research is based on the investigation of clitic placement in Portuguese, since this a factor of great importance to identify grammatical differences between Brazilian Portuguese (BP) and European Portuguese (EP), acknowledged since the eighteenth century. The main aim is to verify whether there is any specific characteristic on the texts from the so called black press that distinguishes them from the major press from the period. And, then, confirm that the differences between the Brazilian and European variants exist not only superficially, but also in their inner grammar features. While EP has become a language that prefers enclitic placement, BP is the most proclitic of all romance languages. Hence, two newspapers have been analyzed: One of them, named O Patrocínio (1925-1930), represents the so black press, and the other one, called Gazeta de Piracicaba (1882-1937) is from the major press. Newspapers consist of different text genres, thus this data contains different and particular features among the same paper. In this context, the analysis of a black press newspaper is particularly interesting once the texts were mainly written by afro-descendents people, to afro-descendents. Therefore, the language that was actually used by the people at that time was expected to be found. However, the social and historical aspects of the period showed that, somehow, the main writers of these papers had access to the normative grammar of the language. So, as their purpose was to fit in the society of the period, they tried to maintain, in their texts, what was considered to be the correct grammar at the time. Hence, when the data from both papers was compared, it was verified that they have a very similar clitic placement. That is, both of them present the standard European placement along with the Brazilian placement with very similar percentages. KEYWORDS: Black press, Portuguese History, syntax, clitic placement.
7
SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................................9
1. PIRACICABA E O CORPUS ESCOLHIDO .................................................13
1.1 Piracicaba ..................................................................................................13
1.2 O caipira .....................................................................................................19
1.3 O negro em Piracicaba .............................................................................. 25
1.4 Escolarização ............................................................................................. 32
1.4.1 Escolarização da população negra do século XIX ao XX ............. 32
1.4.2 Escolarização na cidade de Piracicaba ......................................... 41
1.5 A imprensa negra e o jornal O Patrocínio ................................................... 46
1.6 A Gazeta de Piracicaba .............................................................................. 57
2. A COLOCAÇÃO DOS PRONOMES CLÍTICOS .......................................... 58
2.1 Introdução .................................................................................................... 58
2.2 Língua-I e Língua-E ..................................................................................... 60
2.3 Fatos históricos ........................................................................................... 62
2.3.1 Periodização .................................................................................. 62
2.3.2 O percurso histórico do português brasileiro ................................ 70
2.4 A colocação dos pronomes clíticos no século XX ...................................... 79
2.4.1 Questões fonológicas, morfológicas e sintáticas ........................... 79
2.4.2 Quadro dos pronomes pessoais .................................................... 88
2.4.2.1 Mudança no paradigma e uso dos pronomes clíticos........... 91
2.4.3 Contextos sintáticos para o estudo da colocação dos pronomes
clíticos ........................................................................................... 98
2.4.3.1 Características particulares ................................................... 98
2.4.3.2 Estruturas com verbos simples ............................................100
2.4.3.2.1 Contextos V1 e V>........................................................100
8
2.4.3.2.3 Sentenças reduzidas de infinitivo, gerúndio e
particípio .....................................................................103
2.4.3.3 Grupos Verbais .....................................................................104
2.4.3.3.1Grupos com verbo auxiliar, de controle, causativo e
perceptivo ......................................................................106
2.5 Propostas teóricas recentes para a abordagem da colocação dos clíticos.
2.5.1 O português europeu.................................................................... 110
2.5.2 Uma proposta teórica para a colocação pronominal em português
brasileiro .......................................................................................115
3. ANÁLISE DOS DADOS ...............................................................................122
3.1 Introdução ..................................................................................................122
3.2 Características particulares da linguagem de cada periódico ....................123
3.3 Características intrísecas dos pronomes encontrados no corpus ..............132
3.4 Análise dos contextos de colocação dos pronomes clíticos .......................136
3.4.1 Verbos Simples.............................................................................136
3.4.1.1 Contextos V1 e V>1 ............................................................ . 136
3.4.1.2 Sentenças infinitivas preposicionadas e reduzidas de
gerúndio ...........................................................................................142
3.4.2 Grupos Verbais ............................................................................ 146
3.4.2.1 Grupos com verbo auxiliar, de controle, causativo e
perceptivo..........................................................................................147
3.4.2.2 Verbo + Infinitivo, Verbo + Gerúndio e Verbo + Particípio.. .153
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................ .159
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................161
ANEXOS ..........................................................................................................169
9
INTRODUÇÃO Este estudo faz parte do subprojeto - Mudança Gramatical no Português
de São Paulo: expressão pronominal e preposicional dos argumentos, o qual
está inserido no Projeto de História do Português Paulista (PHPP – Projeto
Caipira). Dentro desse contexto, este trabalho toma por base dois periódicos
escritos na cidade de Piracicaba – um da chamada imprensa negra1, O
Patrocínio (1925 a 1930)2, e outro da imprensa majoritária3, a Gazeta de
Piracicaba (1882 a 1937).
A propósito da formação de um corpus para o estudo diacrônico da
língua, Torres - Morais (2002, p.69) afirma:
Uma das dificuldades para quem está envolvido com estudos diacrônicos, em
particular com a mudança sintática, é a da formação de um “corpus” que defina a
documentação representativa, a qual expresse desde uma linguagem mais
informal, geralmente veiculada em cartas particulares e narrativas pessoais, até a
mais formal, ou elaborada, típica dos documentos oficiais e da produção de cunho
literário.
Os jornais são, portanto, uma boa fonte para o estudo de aspectos sócio-
históricos das variedades do português brasileiro (de agora em diante PB), pois
apresentam textos com características diversas no mesmo exemplar. Segundo
Pinto (1968, apud TORRES-MORAIS, 2002), “Os textos jornalísticos sacrificam,
às vezes, o ideal de correção gramatical em favor de uma expressão direta em
que se neutralizam os diferentes níveis da linguagem”. A linguagem jornalística,
portanto, tem por objetivo principal a comunicação e, apesar de estar
comprometida com a norma, seu principal compromisso é o de comunicar.
Por conta desse contexto e em razão de não haver estudos que
contemplem especificamanente a linguagem dos jornais de imprensa negra, foi
1 Esse termo foi cunhado por estudos históricos que foram os primeiros a analisar esse grupo de jornais escritos por negros. Voltaremos a esses trabalhos no próximo capítulo. 2 Vide anexos A e B com exemplos dos dois periódicos. 3 Usaremos o termo “imprensa majoritária” ou “imprensa de circulação mais ampla” somente para poder contrastar esse periódico com o de imprensa negra.
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feita a escolha de analisar os dois jornais em questão. E, como afirma Kato
(2006) “(...) não temos no Brasil, um estudo sistemático da gramática de nossos
jornais e escritores contemporâneos e nem juízos sobre o seu saber sobre a
escrita”.
A respeito dos jornais de imprensa negra do início do século XX, há
muitos trabalhos de cunho histórico. Entretanto, os estudos especificamente
linguísticos desse corpus se iniciaram com o PHPP - Projeto Caipira, com o
intuito de verificar se há alguma característica na linguagem dos mesmos que os
diferencie dos da imprensa de circulação mais ampla e de outros documentos da
época.
Galves (1993, p.387) afirma: “É nos documentos do século XIX, em
particular da segunda metade, que surgem os fenômenos que caracterizam a
sintaxe do português falado atualmente no Brasil”. O estudo de textos do início
do século XX são, portanto, de extrema importância.
Outro ponto relevante de um jornal representante da imprensa negra é a
característica de ter sido escrito majoritariamente por negros, uma vez que eles
têm papel relevante na nossa história – milhões de africanos aportaram no Brasil
trazendo diversas línguas e culturas. Segundo Guy e Holm (apud BONVINI,
2008, p.19)
O Brasil absorveu aproximadamente 40% dos escravos transportados para as
Américas, isto é, cerca de 3,6 milhões de indivíduos; (...) Em certas regiões,
houve concentrações demográficas afro-brasileiras bastante elevadas, de
maneira que, em certos períodos, a população afro-brasileira era
nitidamente superior à europeia.
Já a partir do século XVII, com mais ênfase no século XIX, os negros
foram sendo assimilados à vida urbana. Esse movimento pode ter contribuído
para uma nova etapa de contato linguístico, que continuou a ser verificado no
século XX, como afirma Lucchesi (2001, apud TORRES-MORAIS, 2002, p.100):
“(...) a partir do século XX, os efeitos do contato entre a elite e a plebe
acentuam-se em razão do deslocamento da população rural para as cidades.” A
11
partir desse contexto, autores como Lucchesi (op. cit.) e Mattos & Silva (2001,
apud TORRES-MORAIS, 2002) enfatizam que, conforme se consiga recuperar o
passado linguístico brasileiro, a importância dos negros africanos e de seus
descendentes na formação e difusão do PB popular será revelada, auxiliando no
entendimento da realidade sócio-linguística polarizada, entre a norma culta e a
norma popular, presentes no PB desde os primórdios.
Para auxiliar no entendimento dessa polarização, o fenômeno da
colocação dos pronomes clíticos foi escolhido por apresentar modificações no
percurso histórico de diferentes línguas românicas. Em português, esse
fenômeno é particularmente interessante, pois é um dos divisores de águas
entre as variantes brasileira e europeia do idioma. Desde o século XVIII, em
ambas as variantes, a colocação pronominal envolve reanálises gramaticais que
caracterizam períodos de variação e mudança linguística.
Essa mudança gramatical na colocação pronominal verificada por
diversos estudos – que serão apresentados ao longo deste trabalho - tanto em
português brasileiro como em português europeu (de agora em diante PE)
confirma a contatação de Kato (2006, p.1): “No Brasil, ao contrário do que ocorre
em Portugal, a ‘gramática’ da fala e a ‘gramática’ da escrita apresentam uma
distância de tal ordem que a aquisição desta pela criança pode ter natureza de
aprendizagem de uma segunda língua.”
Acreditamos, portanto, que o corpus analisado nesses estudos contribuirá
para o entendimento de como o português brasileiro evoluiu e qual deve ser a
base para que ensinemos a língua escrita para as crianças nas escolas, sem
que elas sintam estar lidando com algo estranho à sua realidade linguística.
O corpus desse trabalho, além disso, colaborará posteriormente com a
descrição mais precisa dessa evolução, por abranger o início do século XX e ser
um texto inédito e inexplorado, uma vez que esse tipo de linguagem nunca fora
abordada anteriormente.
Parti da hipótese de que a linguagem dos jornais da imprensa negra, por
se tratarem de textos escritos por um parcela da população que possuiu acesso
diferenciado à escolarização, poderia trazer novos dados para a descrição do
PB da época. Para verificar a veracidade dessa hipótese, fiz uma comparação
12
com um periódico de imprensa majoritária, que apresentaria textos escritos por
uma parcela da população escolarizada preocupada com um padrão mais
condizente com a norma culta baseada no português lusitano.
A análise, contudo, nos mostrou que em ambos os casos os padrões de
colocação são muito semelhantes entre si e já, em alguns pontos, apresentam
características diferentes do que é prescrito pelo padrão normativo da língua.
Para tratar de tais questões, o trabalho obedecerá à seguinte divisão:
No capítulo 1, será realizado um levantamento do contexto sócio-histórico
dos locais e períodos que são base para o estudo – a história de Piracicaba, que
exibe características linguísticas reconhecidamente relevantes no âmbito
dialetal, e questões sociais relativas a esse importante município do estado. Em
seguida, será feito o enquadramento do negro na sociedade piracicabana, de
sua escolaridade e do papel da Imprensa Negra nessa cidade e no estado de
São Paulo como um todo.
No capítulo 2, farei um levantamento da colocação dos pronomes clíticos
em diversos estudos linguísticos acerca do percurso histórico do fenômeno em
PB e em PE e de constatações sobre seu status atual nas duas variantes. Além
disso, apresentarei como a ordem dos pronomes é tratada pelas gramáticas
normativas que regulam o padrão culto da língua.
No capítulo 3, será realizada a análise dos dados retirados de O
Patrocínio em contraste com a Gazeta de Piracicaba, a fim de averiguar como é
a colocação dos pronomes clíticos em cada um deles. E, por fim, serão
apresentadas as considerações finais do trabalho.
13
1. PIRACICABA E O CORPUS ESCOLHIDO
No presente capítulo será realizada uma avaliação de Piracicaba, de seu
povo e, mais precisamente, um relato sobre o papel do negro na cidade. Aqui, o
leitor tomará conhecimento de alguns personagens e acontecimentos
importnates do município em sua formação histórica e sua relevância no cenário
do estado de São Paulo.
Em seguida, é levantada a questão do caipira e da população negra no
contexto piracicabano no início do século XX. Além disso, tratarei da
escolarização da população do período, com ênfase na carência de
instrumentos educacionais, principalmente para a população negra da época,
bem como a presença de um grupo intelectual negro que possibilitou o
surgimento dessa imprensa e movimentos de combate e reinvidicação.
1.1. Piracicaba
O nome Piracicaba é originário da língua tupi-guarani e significa “lugar
onde o peixe chega” ou “lugar onde o peixe para”. A região ganhou esta
denominação dos índios Paiaguá4, que se estabeleciam próximos ao Salto do
Rio. Pelo fato do rio Piracicaba ser uma “estrada fluvial”, ele chamou a atenção
de pequenos grupos de roceiros que também se estabeleceram em suas
margens formando um arraial.
Em 1722 e 1723, foi contruído um “picadão” de Itu ao Salto do Rio
Piracicaba. Essa via, arquitetada por Felipe Cardoso, era parte do Picadão de
Mato Grosso que estava sendo aberto por Luís Pedroso de Barros. Este, um
sertanista que procurava obter perdão por um crime que não cometera; e
aquele, considerado primeiro povoador da cidade, recebeu da coroa real
portuguesa uma área de uma légua quadrada que circundava o porto do rio em
recompensa aos serviços prestados.
4 Os índios Paiaguá eram um povo guerreiro e temido. Habitavam as margens do rio Jaguary, estendendo-se aos sertões Mato-Grosso de Goiás.
14
Apesar dessa referência a Felipe Cardoso, há registros de existência de
uma sesmaria5 em Piracicaba já em 1693. Entretanto, não é claro se seu
proprietário chegou a viver na região, conforme observa Guerrini (1970, p.1):
1693 – 15 de novembro – Doação da primeira sesmaria, na região de Piracicaba,
a Pedro de Morais Cavalcanti, pelo capitão-mor Manuel Peixoto da Motta. O
peticionário alegava que a iria povoar com tôda a sua família, de uma a outra
banda do rio Piracicaba, ficando o Sato no meio.
Através do “picadão” passavam comboios com destino a Cuiabá que,
assim, tinham por Piracicaba um dos pontos de sua jornada. Portanto, em 1726,
muitos sertanejos, posseiros e possuidores de cartas de sesmarias passam a
congregar em torno do Salto, dando início ao povoado que daria origem à
cidade.
Em 1766, o Capitão-Geral D. Luís Antonio Botelho de Souza Mourão,
“Morgado de Mateus”, encarregou o Capitão Antônio Corrêa Barbosa, de fundar
uma população na foz do Rio Piracicaba. Seu objetivo era o de facilitar o
transporte de mantimentos e munição para as tropas da Vila Militar do Iguatemi,
instaladas nas fronteiras com o Paraguai para proteger as fronteiras do país; e,
ainda, auxiliar as navegações que desceriam o rio Tietê em direção ao rio
Paraná.
Desobedecendo à ordem do Capitão-Geral, Corrêa Barbosa decide
instalar o novo povoado junto ao Salto. O local, que fica a 90 quilômetros da foz
do rio, ofereceria melhor acesso a outras vilas da região, como Itu, onde já havia
posseiros.
Dessa maneira, Piracicaba foi fundada em 1º de Agosto de 1767, na
margem esquerda do Rio. Em 1774, o povoado foi elevado à categoria de
Freguesia (Distrito). Em 1784, a sede do local passa para a margem direita do
Rio, devido ao terreno irregular e infértil de sua margem esquerda. Durante este
5 “Sesmarias eram concessões de terras a todos quantos se propusessem povoar e cultivar os sítios requeridos. Dois anos depois, confirmadas tais promessas, vinha de Portugal a ordem régia dando título de posse ao requerente”. (GUERRINI, 1970).
15
período, a navegação do Rio Piracicaba e o cultivo da cana-de-açúcar
sustentam o desenvolvimento da região.
Segundo Canabrava & Mendes (1935 p.306 e 307 apud RODRIGUES,
1970):
A história do povoamento de Piracicaba é, no seu início, a história das
vias paulistas para a região de Mato Grosso: concentra-se em torno
do Rio Piracicaba, que em fins do século XVIII atráe o sertanejo paulista, para
fixá-lo no século XVIII, impulsionando os seus engenhos ainda rudes e
alimentando o gado de suas primeiras sesmarias. (...) O rio é a via que conduz
ao Tietê, estrada natural do bandeirismo paulista, que leva ao sertão, às
famosas minas de Cuiabá; na segunda metade do século XVIII, ele se torna o
escoadouro de todos os produtos da região que descem para a fóz em canôas
carregadas.
Dado o progresso alcançado através dos engenhos e das tropas
cargueiras, em 1816, os políticos liberais desejavam elevar a Freguesia à
condição de Vila, o que ocorre no ano de 1822. Piracicaba, então, adota o nome
de “Vila Nova da Constituição”, em homenagem à Constituição Portuguesa
promulgada naquele ano.
O recenseamento do mesmo ano aponta que o Distrito da Vila Nova da
Constitição contava com 648 fogos (lares) e uma população estimada em 3.762
indivíduos, incluindo negros livres e escravos. O Distrito abrangia as atuais
Piracicaba, Santa Bárbara, Limeira, Rio Claro e Pirassununga. A população
urbana não ultrapassava os 700 habitantes, distribuídos entre o Itapeva (atual
avenida Armando de Sales Oliveira) e a rua da Praia (do Porto), a rua do
Concelho (rua Prudente de Moraes) e a rua dos Ourives (rua Rangel Pestana).
Já no ano de 1836, o “Quadro Estatístico da Província de São Paulo”,
aponta que Piracicaba contava com 10.291 habitantes e tinha o maior número
de alfabetizados de toda a Província: 395 de seus moradores. Itu contava com
16
166 alfabetizados de seus 11.146 moradores e Curitiba6 apenas 152 de 16.157
habitantes (cf. ELIAS NETTO, 2002/03).
A Vila foi elevada à condição de Cidade no ano de 1856, permanecendo
com o nome de “Constituição”. Já em 1877, por intermédio de uma petição de
Prudente de Moraes – então vereador e futuro presidente da República – a
cidade voltou a adotar o nome mais antigo e popular “Piracicaba”. Abandonando
a denominação portuguesa de “Vila Nova da Constituição”, que não soava muito
bem aos ouvidos republicanos da época. No mesmo ano, a cidade passa a ter a
ligação ferroviária da Companhia Ytuana de Estradas de Ferro com Itu e Jundiaí,
via Capivari e Indaiatuba.
No século XIX, a cidade de Piracicaba encontra-se vinculada ao cultivo da
cana de açúcar, contrariando a tendência cafeicultora – que se tornara o motor
da economia do Oeste Paulista. Por essa razão, a região era um dos principais
pólos de escravidão, com grande presença de escravos e, posteriormente, de
libertos negros.
O Engenho Central de Piracicaba é fundado em 1881, nas margens do
rio. Nesta época, a cidade começa a substituir o trabalho escravo pelos
imigrantes assalariados, recebendo importantes contingentes de portugueses,
italianos, alemães, espanhóis e sírio-libanêses. O relatório oficial da Secretaria
de Negócios do Interior de São Paulo de 1895 chegou a registrar a chegada de
1.200 imigrantes na cidade.
Em 1894, segundo documentos no Arquivo do Estado de São Paulo,
Piracicaba era a terceira cidade mais importante do interior, seguindo apenas
Campinas e Sorocaba. Naquele ano a população era de 15.000 habitantes e a
cidade produzia 4,16% do algodão e 6,32% de frutas cítricas do estado.
No século XX, Piracicaba firma-se como um dos maiores pólos
produtores do estado de São Paulo. Em 1900, era a quarta maior cidade do
estado, contava com 8.054 habitantes brasileiros e 3.006 estrangeiros. Com um
certo declínio de Itu após 1890, a cidade tornou-se a mais importante da região.
6 A comparação foi feita com a cidade de Curitiba, pois esse foi o único dado encontrado no material estudado para esse trabalho.
17
Precisamente naquela época, Campinas era menor e mais pobre que
Piracicaba.
No relatório (7 de janeiro de 1901) do Presidente da Câmara, Dr. Paulo
de Moraes Barros, acerca do triênio 1899 -1901 – publicado pelo jornal de
Piracicaba, em sua edição especial “Assim nasceu Piracicaba” – é feito o
seguinte apelo: “O que é indispensável e urgente é congregar todos os esforços,
a fim (sic) de conseguir-se outra via de communicação com a capital e com o
Oeste, pois essa é a condição para o municipio de Piracicaba alcançar logar que
lhe compete entre os mais adiantados do Estado de S. Paulo”.
Esse mesmo documento apresenta os resultados detalhados do
recenseamento urbano de 1899:.
18
Em 1922, Piracicaba passa a ter um ramal da Companhia Paulista de
Estradas de Ferro. Nessa época, com o fim do ciclo do café e a queda nos
preços da cana de açúcar, a economia piracicabana começa a se estagnar. O
setor industrial começa a se desenvolver, apesar de ainda se basear muito no
cultivo da cana-de-açúcar, o que impediria um declínio maior da cidade, mas
não sua estagnação.
Depois de 1950, Campinas começa apresentar um rápido crescimento, o
que causa crise ainda maior no desenvolvimento de Piracicaba. A partir da
década de 1970, foram tomadas providências para alavancar a economia
piracicabana: é construída a Rodovia do Açúcar e são criados distritos
industriais, promovendo a chegada de novas empresas à cidade. Ao mesmo
tempo, o Programa Nacional do Álcool (Pró-Álcool) ajuda a modernizar e
revigorar a produção canavieira. Com esses projetos, Piracicaba sai da
estagnação, porém não volta a ter o status de antes.
19
Gráfico I - A evolução da população de Piracicaba
00.000
50.000
100.000
150.000
200.000
250.000
300.000
350.000
400.000
1775 1797 1828 1836 1872 1886 1900 1890 1920 1940 1960 1980 2000 2007
Ano
N. d
e H
abita
ntes
1.2. O Caipira
Após o fim do ciclo dos bandeirantes, no século XVIII, fixou-se ao solo
paulista uma população com características bem definidas. De acordo com
Antonio Candido, havia no Brasil:
Um lençol de cultura caipira, com variações locais, que abrangia partes
das Capitanias de Minas, Goiás e mesmo Mato Grosso. Cultura ligada a formas
de sociabilidade e de subsistência que se apoiavam, por assim dizer, em
soluções mínimas, apenas suficientes para manter a vida dos indivíduos e a
coesão dos bairros. (CANDIDO, 2003, p.103)
A cidade de Piracicaba faz parte desse “lençol de cultura caipira”. Um dos
fatores que a tornaram conhecida e interessante linguisticamente é seu notório
dialeto caipira, que, mesmo na área urbana, tem grande força. Rodrigues (1974),
autora do estudo entitulado “O Dialeto Caipira de Piracicaba”, transcreve um
trecho de uma notícia do “Jornal da Tarde” a respeito de um jogador de futebol
piracicabano para exemplificar o status da fala da cidade no Brasil:
20
No vestiário, Chicão lembrava que em quatro anos como jogador
profissional ele só havia recebido prêmios nos jogos entre pequenos, dados por
emissora de rádio do interior: alguns ele recebeu entre 1968 e 1970 (sic),
quando defendia o XV de Piracicaba, onde começou, e outros em 1971.(...) Com
22 anos e o sotaque característico de Piracicaba, Chicão era incapaz de
esconder a sus timidez e humildade depois do jogo de ontem.
(Jornal da Tarde, S. Paulo, 3-IV-1972.p.16, apud RODRIGUES, 1974)
Ao explicar a origem do dialeto “caipiracicabano”, Elias Netto (2002/03)
observa que o Vale do Paraíba e o Vale do Tiête – onde se encontra Piracicaba
– mantêm resquícios do português arcaico7. Sendo que, a própria palavra
“caipira” faz referência a essa “cultura antiga” que ficou à margem dos rios
percorridos pelo colonizador e onde habitavam os tupis-guaranis. “Cá i pira” em
tupi significa “a mata que acompanha o rio”.
A linguagem dos indígenas da região se misturou ao português arcaico,
tanto que diversos topônimos da região são de origem tupi-guarani, o próprio
nome “Piracicaba”; os distritos de Tupi, Caiubi e Anhumas; os bairros Jupiá,
Bongue, Piracicamirim; e as cidades próximas como Capivari, Tiête, Mombuca e
Itu.
Amadeu Amaral, em seu livro de 1920, O Dialeto Caipira faz observações
sobre o português das zonas de Capivari, Piracicaba, Tietê, Itu, Sorocaba e São
Carlos. De acordo com ele, o vocabulário caipira seria muito restrito devido a
simplicidade da vida destes falantes e seria formado pelos seguintes fatores:” a.
de elementos oriundos do português usado pelo primitivo colonizador, muitos
dos quais se arcaizaram na língua culta; b. De termos provenientes das línguas
indígenas; c. de vocábulos importados de outras línguas, por via indireta; d. de
vocábulos formados no próprio seio do dialeto” (1976 [1920], p.55).
Para chegar a essa conclusão, o autor baseiou-se em documentos do
século XV e XVI, como a carta de Pero Vaz de Caminha, na qual afirma ter
encontrado termos que aparecem no dialeto caipira, palavras tais como:
despois, inorância, alevantar. Em seu estudo, Amaral divide esses arcaismos em
7 Para Mattos e Silva (2001) o termo “Português Arcaico” abrange o período entre os séculos XIII e XV.
21
arcaismos de forma: dereito, escuitá, fruita, premêro, saluço, etc; de sentido:
dona por senhora, praça por povoado, reiná(r) por fazer travessuras, etc; de
forma e sentido: contia (quantidade qualquer), modinha (cançoneta), etc; e
locuções arcaicas: a modo que, antes tempo (sem preposição, significando
antecipadamente), a par de (junto de), etc.
Em seguida, no âmbito da morfologia, o autor aponta o uso do gerúndio
nas perífrases, do tipo anda cantando, como outro fator que remete o português
brasileiro ao quinhentista. Essa forma era comum no português arcaíco e caiu
em desuso em Portugal, onde há a preferência pela construção com o infinitivo
anda a cantar.
Para Amaral, o caipira conservaria os arcaísmos por viver da mesma
maneira há 200 anos, assim os falantes não sentiam a necessidade de
incorporar novos termos, pois sua realidade era estática. Dessa maneira, foram
mantidos no dialeto caipira termos que apesar de vivos em português europeu
são desconhecidos no Brasil, tais como: chêda, tamoeiro, náfego, etc.
Reváh (1959, apud BONVINI, 2008, p.55) apoiado no estudo supracitado
de Amadeu Amaral e confirmando-o, aponta que: “o sistema fonético e
morfológico é mais ou menos o mesmo em toda a parte e os traços distintivos
que o isolam, em certa medida, o falar caipira são arcaísmos portugueses bem
caracterizados, que seria impossível atribuir à influência tupi”.
Acerca da participação das línguas africanas, Amaral afirma que a sua
contribuição ao dialeto caipira não difere da que exerceu em relação ao
português em geral, tanto na sua variante brasileira quanto europeia, como é o
caso da inserção na fala corrente de palavras como: batuque, cachaça,
missanga, quilombo, etc.
Segundo Bonvini (2008), porém, Silva Neto (1950) relaciona os dialetos
rurais à “falares africanos episódicos”:
Silva Neto sustenta que no Brasil houve somente falares africanos
episódicos, crioulos e semicrioulos, que eram apenas uma deformaçãoe uma
simplificação do português. Seus verstígios atuais são os dialetos rurais. Foi a
ascensão social do mestiço que tranformou o português padrão em ideal
22
linguístico e levou ao desaparecimento dos crioulos e não crioulos. (BONVINI,
2008, p.17/18).
Além do dialeto propriamente dito, outro fator associado ao estatuto do
“caipira” é a questão da formação do mercado de trabalho e da identidade
brasileira após a abolição da escravatura. Na passagem do século XIX para o
século XX, o país recebia levas de europeus que vinham para substituir o
trabalho escravo. Dessa forma, o povo brasileiro passou a ser definido em
contraposição ao europeu, considerado superior culturalmente e racialmente,
apesar da grande maioria dos imigrantes ser analfabeta e provir de regiões
carentes. Assim, a identidade do povo brasileiro passou a ser representada pelo
caboclo, sertanejo e caipira, resultados da missigenação das etnias formadoras
da nação (cf.OLIVEIRA & KEWITZ, 2002).
Os imigrantes estrangeiros que aqui chegavam contavam com diversos
privilégios, como a demarcação de lotes para estabelecer sua própria lavoura. A
população livre despossuída e os negros tornavam-se agregados ou partiam
para as áreas despovoadas do sertão. Dessa maneira, esse indivíduo passou a
ser visto como despraparado para a cidadania, como é o caso do personagem
Jeca Tatu de Monteiro Lobato – representante do caipira geral, um indivíduo
sombrio, sem iniciativa e parasita da sociedade (cf. CANDIDO, 2003 e
.OLIVEIRA & KEWITZ, 2002).
Esta questão está, ainda, relacionada à valorização da vida urbana e do
estrangeiro (branco) em detrimento da vida rural e do elemento nacional
(mestiço).
Confirmando a tese a respeito da crença de que o imigrante europeu era
mais culto que o brasileiro mestiço, Oliveira & Kewitz (op. cit.) mencionam uma
observação feita por Saint Hilaire (1976, apud OLIVEIRA & KEWITZ, 2002), na
qual o viajante observa que os habitantes da zona rural de São Paulo “falavam
muito mal o português” porque eram mestiços, enquanto na zona rural de Minas
Gerais falava-se um português próximo ao europeu, por ser habitada por
descendentes de portugueses.
23
Já Cornélio Pires (1921, apud OLIVEIRA & KEWITZ, 2002, p.152), a fim
de valorizar o tipo de caipira trabalhador, elaborou uma tipologia étnica dos
mesmos, mas que, de acordo com Naxara (1991, OLIVEIRA & KEWITZ, 2002),
acabou por acentuar a desqualificação nacional:
a. o caipira branco descendente de povoadores portugueses. É gentil,
hospitaleiro, solidário entre iguais e bem humorado; b. o caipira negro é
trabalhador e progressista, educado e alegre; c. o caipira mulato é o mais
vigoroso, o mais independente e o mais patriota; e d. o caipira cabloco, tipo
próximo ao índio, é arredio ao trabalho e à educação.
(CORNÉLIO PIRES, 1921, apud OLIVEIRA & KEWITZ, 2002, p.152)
O estereótipo do “caipira”, portanto, se formou em contraponto ao colono
estrangeiro, estando relacionado ao atributo “caipira” dado ao paulista a partir da
instalação da Corte no Rio de Janeiro, onde tomaram os padrões europeus no
modo de trajar, de portar-se e de falar. Daí, Oliveira & Kewitz (op. cit.) definem
três acepções para a noção de “caipira”: 1. o que vive no campo em oposição à
cidade; 2. o descendente dos bandeirantes; 3. o indivíduo preguiçoso em
contraposição ao colono europeu.
Diante disso, uma maior contratação de colonos estrangeiros poderi ter
ocorrido devido à segunda acepção exposta acima. Os imigrantes se mostravam
mais atraentes aos fazendeiros, uma vez que mantinham a relação de depência
senhorial semelhante a dos negros, e se contrapunha ao comportamento
ousado dos bandeirantes desbravadores, herdado pelos caipiras.
O caipira paulista valorizava a sua independência, a liberdade e a
dignidade devida à herança do espírito aventureiro, corajoso e bruto dos
bandeirantes. A este respeito, Candido (2003, p.110) afirma que a submissão e
a obediência do caipira é “sempre relativa e muito precária, comparada à do
negro, escravo ou ex-escravo, e mesmo à do colono europeu, fruto duma
sociedade rural rigidamente hierarquizada sobre os restos do senhorio e da
servidão”.
Em oposição a isso, no estudo já citado de Rodrigues (1974), foram
colhidas entrevistas com habitantes de uma área do município considerada
24
subdesenvolvida – os distritos de Artêmis e Ibitiruna. A autora afirma que seus
informantes têm relativa consciência que o caipira é visto como “ingênuo” ou
“atrasado”: “O informante n.o 17 escolheu a mulher porque era “muito
educadinha, muito caipira”, e que acabou por abandoná-lo e a cinco filhos. (...) O
informante n.o 4 se julga caipira porque não tem instrução. Já o informante n.o
21, conhecido pelo gênio turbulento, embora fosse afável durante a entrevista,
acreditava que, no fundo, a gravação serviria para zombar dos caipiras.
Rodrigues, visando um estudo mais abrangente, levou essas gravações
para o Laboratório de Fonética da Universidade de Lisboa. As pessoas que as
ouviram disseram unanimamente que era “uma língua incompreensível, cujo
ritmo e certas realizações lembravam o inglês”. (RODRIGUES, 1974, p.33).
Parte ainda dessa pesquisa, foi um teste sócio-linguístico aplicado a
moradores da zona urbana de Piracicaba. Pessoas de diferentes níveis socio-
culturais ouviram um trecho de uma das gravações. Todos a identificaram como
fala da roça e de um trabalhador inculto, no entanto, a maioria a considerou
razoavelmente bonita. Além disso, mais da metade das pessoas a avaliou como
agradável ou muito agradável. A maioria afirmou que muita gente ainda fala
assim e todos caracterizaram a fala como caipira, contudo muitos justificaram
que essa designação não era de cunho pejorativo, uma vez que relacionam esse
dialeto à falta de oportunidade de escolarização do falante.
A autora, ainda, registrou que na zona rural da cidade havia forte
preconceito contra os negros que para lá foram expulsos após a abolição. Na
pesquisa citada, havia apenas um informante negro que trabalhava como
camarada, para alguns proprietários. Os moradores da região referem-se a ele
como aquele que “comete crimes e não tem educação”.
Nesse contexto apresentado, em que mesmo o caipira branco sofre
grande desvalorização por ser considerado preguiçoso e ignorante, como fica a
questão do caipira negro, não sendo bem visto pelos próprios habitantes da
zona rural pela cor de sua pele e nem pela sociedade urbana por ainda ser
caipira?
25
1.3. O negro em Piracicaba
De acordo com dados históricos o Brasil absorveu cerca de 40% dos
escravos transportados para as Américas, chegando a cerca de 4 milhões de
indivíduos, em sua maioria jovens do sexo masculino, trazidos para o Brasil
entre 1550 e 1850 (cf. FAUSTO, 2002). Em algumas regiões do país, a
população negra era mais numerosa que a de portugueses e seus
descendentes, em regiões como a Bahia e o Rio de Janeiro.
Desde o princípio do povoamento de Piracicaba, a presença do negro na
região é expressiva. Já em 1728, um sesmeiro chamado Francisco Coelho
Santiago, fez uma requisição de terras à corte portuguesa por possuir muitos
escravos e precisar de espaço onde pudesse fazer roças para seu sustento.
Como no sertão entre Piracicaba e a vila de Itu existiam muitas terras devolutas,
seu pedido foi prontamente acatado pelo capitão geral Antônio da Silva Caldeira
Pimentel.
O primeiro registro da fuga de escravos para a formação de quilombo
data de 5 de março de 1804. O sargento-mor Carlos Bartolomeu de Arruda
Botelho pede que o governo da Província tome providências, uma vez que os
escravos estavam fugindo para um quilombo que se encontrava na cabeceira do
Rio Corumbataí, perto de Araraquara.
No ano de 1836, o Marechal D. P. Muller registrou no “Almanak de São
Paulo” que havia em Piracicaba 1756 escravos negros homens e 622 mulheres.
Contudo, Maria Celestina Mendes Torres (apud ELIAS NETTO, 2007), em um
estudo sobre a evolução da propriedade rural em Piracicaba, observa que o
número de escravos já era maior, pois em 1828 a cidade contava com 8.311
moradores, destes 2.303 (27,7%) eram negros escravos, 90 mulatos e 42
agregados8.
Anos depois, “A Província de São Paulo” – antigo nome de “O Estado de
São Paulo” – noticiou em 1875 um conflito entre os moradores do bairro de
Anhumas, em Piracicaba, e um quilombo de escravos fugidos, o que resultou em
8 O termo agregado engloba: escravos libertos, índios, criados livres, parentes pobres, mães viúvas, tias e irmãs solteironas que viviam com uma família.
26
diversos combatentes gravemente feridos. Ainda, um ano antes da abolição, em
1887, Piracicaba era o terceiro município paulista com o maior número de
escravos (5.663 – cerca de 25,7% da população), atrás apenas de Campinas
(15.427) e Bananal (6.903), de acordo com o “Almanak Comercial de São
Paulo”.
Após a abolição, no entanto, os negros não foram integrados à
sociedade. Seu trabalho nas fazendas foi substituído pela mão de obra
estrangeira, o que os levou a uma situação de subemprego, ou seja, a uma nova
forma de escravidão. Citando Gylberte Freire, Elias Netto (2002/2003) aponta:
No Brasil, a influência não foi da raça negra, mas do escravo e da
escravidão. Pois, como escravos, os negros tiveram a sua verdadeira cultura
violentada, usando de artifícios para manter o núcleo dela diante da violentação
do homem branco. Em Piracicaba, obviamente, ocorreu o mesmo. E, também,
os mesmos preconceitos. Ainda no Século XX, estes eram, ainda, frequentes,
apesar das grandes campanhas de concientização contra preconceitos raciais.
Como mencionado anteriormente, os negros partiram para regiões
despovoadas, a fim de encontrar meios de sobrevivência. Esse fato pode ser
comprovado através da comparação entre os censos realizados no século XIX e
XX. Nesse período, houve em Piracicaba a diminuição expressiva da população
negra, como demonstram os dados do gráfico a seguir:
Gráfico II: A População Negra em Piracicaba
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
1828 1836 1887 1940 1980 2000
27
Os jornais oficiais piracicabanos do final do século XIX e início do XX,
entre eles, Gazeta de Piracicaba e O Jornal de Piracicaba, nos dão pistas
indiretas da discriminação imposta aos negros no cotidiano da vida urbana. A
imprensa local reclamava da algazarra dos “pretos desordeiros” que se reuniam
em botequins da rua Direita, no Largo São Benedito e no Largo da Santa Cruz.
Da mesma forma, as festas dos negros eram tidas como imorais, por causa das
suas umbigadas, requebros e descompromisso com a moralidade branca.
Uma pesquisa realizada pelo professor José Luis Simões, com base nos
jornais de Piracicaba entre 1900 e 1922 (apud ELIAS NETTO, 2002/03), indicou
que a violência também estava muito presente naquela época, pois praticamente
todas as edições traziam notícias de roubos, espancamentos, brigas,
assassinatos, etc. Os negros, imigrantes e ciganos são apontados como os
“intrusos” da época e, através dos artigos, o autor classificou a sociedade da
época como “uma sociedade dual, nitidamente dividida entre as elites que
buscavam desenvolvimento e progresso e os desocupados, embriagados,
negros e imigrantes que cotidianamente protagonizavam os acontecimentos de
violência e desordem social”.
É interessante verificar que, como relatado na seção anterior desse
capítulo, o imigrante do final do século XIX era considerado trabalhador e culto
em oposição ao brasileiro mestiço “caipira”, considerado preguiçoso e ignorante.
Nesse estudo de José Luis Simões, sobre o começo do século XX, entretanto, o
imigrante encontra-se na mesma posição do negro, sendo também responsável
pelas desordens sociais.
Outro registro a respeito da condição do negro na virada do século XIX
para o XX em Piracicaba são as memórias do agrônomo Francisco Assis
Iglésias (2003). Nessa obra, há um trecho em que o autor descreve que mesmo
às vésperas do século XX, ouviu em uma casa que visitava gritos vindos da
cozinha, que seriam ordens para que a cozinheira fosse chicoteada: “bacalhau
na negra, bacalhau na negra”. Na mesma obra, há outro registro do preconceito
em relação aos negros. Referindo-se às suas festas, o agrônomo concorda com
a repressão branca:
28
Em Piracicaba, as autoridades municipais tomaram medidas que deram
muito resultado: toda pessoa de cor que perambulasse pelas ruas da cidade
sem ter o que fazer era detida e recolhida na Cadeia Velha, amarela, como era
conhecida pelo Zé Povinho, e só podia sair com emprego arrumado
Até mesmo nos relatos que tentavam mostrar a ausência do preconceito,
este ficava nítido, como neste outro excerto de Iglésias:
(...) nos últimos dias do século passado por ocasião da Semana Santa,
foi convidado, pelos organizadores dos festejos religiosos, o maestro Manuel
dos Passos, preto, para reger a requinta da Igreja Matriz. Integrou o grupo dos
cantores a exma. Sra. dona Maria Amélia Silveira Mello, filha do dr. Prudente de
Moraes e esposa do dr. João Batista Silveira Mello. Dona Lalau, como era
chamada carinhosamente pelos seus familiares e pessoas que tinham a honra
de pertencer ao rol de seus amigos, possuía excelente voz de soprano
dramático. A filha do notável brasileiro, ex-presidente da República, não se
sentiu diminuída ao obedecer a batuta do maestro negro!
Domingues (2003) ao falar da situação de segregação dos negros no
início do século XX, cita uma carta9 escrita ao jornal O Patrocínio, acerca de um
episódio ocorrido em Piracicaba:
Pode ou não pode um negro sentar-se ao lado de um branco em qualquer casa
de diversões, desde uma vez que satisfaça todos os requisitos que requer a boa
sociedade? Compreendo perfeitamente que não estou na altura de fazer
semelhante interrogatório, porquanto a minha capacidade é ainda insuficiente para
suscitar esse assunto. Mas a verdade é que não posso calar-me diante desse
ridículo preconceito que surge em certas casas de luxo, tais como: em cinemas,
cafés, bares, bilhares, etc.
Pergunto eu; por que é que existe esse mesquinho preconceito, é por causa da
cor, ou por ser pobre e não andar decentemente trajado; ou ainda no caso mais
sério, será porque o negro não sabe portar-se com a devida polidez que esses
lugares requerem?
9 Essa carta está no exemplar de 18-12-1927. Este periódico não foi localizado nos arquivos em que se encontram os outros.
29
Acho que os pontos precipitados não suficientes para satisfazer a minha
pergunta. Porque assim como há negros pobres, mal trajados, mal-educados, há
também brancos, amarelos e vermelhos nas mesmas condições e que, entretanto,
não lhes são vedadas as entradas nesses lugares que se dizem ser de luxos.
Ao ter conhecimento que em um de nossos cinemas tinham sido cortadas as
entradas das pessoas de cor, na plateia, procurei me informar do caso e o
resultado foi afirmativo. Procurei ainda saber, de quem me pudesse informar, se
algum preto tinha procedido de maneira incoveniente ao ponto de obrigar a
empresa a tomar aquela medida, fiquei informado de que ninguém tinha se
portado de modo incorreto, que a empresa tinha tomado tal medida porque
andavam propalando que o cinema era frequentado só por preto.
Que haja preconceito em sociedades particulares, que haja preconceito em
família é natural. Mas haver preconceito em casas que são franqueadas ao
público? É o cúmulo [...]
(“O Patrocínio” – 1927 – 18/12, apud DOMINGUES, 2003: 175,176)
De acordo com Elias Netto (2007), até pessoas esclarecidas da cidade,
como Leandro Guerrini - diretor do Jornal de Piracicaba e autor do livro História
de Piracicaba em Quadrinhos – eram preconceituosos ao referir-se aos
indivíduos da negros, dirigindo-se a eles como “classe preta”. O autor trancreve
um trecho de um artigo escrito por Guerrini, com o pseudônimo de “Lau de Lino”
em 1928, a respeito dos negros e do Jornal O Patrocínio:
A classe preta de Piracicaba, salvo pequena excepção, há muito que se tornou
um agrupamento que honra a cidade. Dizemos assim porque, em se nomeando a
classe preta, gente parece que desunida por índole, formando uma casta
heterogênea e vivendo quase à parte da sociabilidade commum, nos vem à mente
a vida um tanto nômade "desses filhos dilectos do Brasil", segundo o poeta. A
classe preta da cidade é uma bonita excepção à regra. Seus indivíduos são
perfeitamente sociáveis e a prova disso está na pujança da Sociedade Beneficente
13 de Maio, uma agremiação, sem favor algum, das mais ricas de Piracicaba (...)
Também, sobre o jornal O Patrocínio, da Sociedade 13 de Maio, Leandro
Guerrini escreveu: "Não é preciso ser perspicaz para descobrir os benefícios
dessa folha. Forçando os interessados à leitura, traz-lhes, pouco a pouco, uma
30
elevada intenção moral, que é justamente o que ainda falta um pouco à classe
negra do Brasil”.
Apesar da ressalva de Elias Netto quanto ao uso do termo “classe preta”,
o conteúdo do artigo de Leandro Guerrini é favorável à “classe preta” da cidade.
Além do que, este, isoladamente, não pode ser considerado uma manisfestação
racista, pois os próprios negros a utilizavam para referirem-se à sua classe. Nos
nove exemplares analisados de O Patrocínio, a palavra “negro” ocorre 68 vezes,
sendo o termo com maior frequência, tanto “classe preta” como “homens pretos”
surgem 6 vezes cada, o que demostra o uso corrente das mesmas. Acrescido a
esses exemplos há, também, o termo “de cor” que aparece 18 vezes no corpus.
Para compreender melhor essa questão, Nascimento (2003) observa que
a partir do segundo período10, inaugurado com a fundação do jornal “O Clarim”,
mais tarde O Clarim da Alvorada, por Jayme de Aguiar e José Correia Leite, há
uma mudança na linguagem utilizada em seus textos. O termo “negro” passa a
substituir a expressão “homens de côr” ou “população de côr”. Leite (apud
Nascimento, 2003:229) cita que Vicente Ferreira, um destacado orador da
época, foi o responsável pela introdução do termo “negro”, “para substituir o
então vazio e usado ”homem de côr”. Segundo Ferreira, “Homem de cor também
é o amarelo e o índio; acabou com essa baboseira de homens de cor, que não
quer dizer nada”.
Sendo assim, a expressão “classe preta” utilizada por Leandro Guerrini,
não pode ser caracterizada como preconceituosa, pois era a forma de referência
utilizada tanto por brancos quanto por negros naquela época. Como exposto, a
alteração na terminologia ocorre posteriormente a esses textos.
A grande presença dos negros em Piracicaba, ao longo do século XX,
mostra que não se conseguiu impedir a influência dos negros africanos e de
seus descendentes. De fato, esta pode ser verificada na cultura
“caipiracicabana” através da culinária – como o famoso cuscuz da Rua do Porto,
nas festas populares – como a do Divino, no sincretismo religioso, nas lendas,
10 Os periódicos de Imprensa Negra foram divididos por Roger Bastide em três períodos, que serão mais bem detalhados na seção seguinte.
31
na língua, na música, nos esportes e na dança – que tem como herança a
batucada.
Ademais, a cidade possui um bairro chamado Vila Africa, onde a maioria
dos habitantes é de afro-descendentes. Ainda, o município oferece outra
referência negra que é a igreja de São Benedito, localizada atrás do prédio da
Câmara Municipal, que pertenceu a Confraria de Nossa Senhora do Rosário dos
Homens Pretos11.
Piracicaba conta, além disso, com a Sociedade Beneficente 13 de Maio.
Fundada em 1901 com o nome de Sociedade Beneficente “Antonio Bento”, em
homenagem ao Patriarca da Liberdade – Antonio Bento de Souza Castro. De
acordo com a primeira ata da associação: “Luiz Dias de Araújo aventou a ideia
de organisar-se uma sociedade de contribuição pecuniaria para o fim especial
de commemorar-se condignamente a aurea lei de treze de maio, no anno de
1902”.
Sendo assim, a entidade foi idealizada por abolicionistas brancos,
segundo relatos, ligados à maçonaria. O objetivo da congregação era criar um
espaço onde os ex-escravos e seus descendentes pudessem reunir-se e assim,
integrar-se à comunidade em geral. Contudo, além das festividades, a
associação prestava serviços médicos, farmacêuticos, jurídicos e educacionais à
comunidade.
O nome atual da entidade surgiu em 1908, quando passou a ser
administrada pela comunidade negra piracicabana. A nova sede da Sociedade
Beneficente 13 de Maio foi inaugurada em 1948, resultado de uma campanha
que recolheu todo tipo de doações. Segundo o professor e jornalista Silvio
Aguiar Souza (apud ELIAS NETTO, 2002/03), um de seus idealizadores, o local
foi construído com “material de primeira ordem, o forro do salão nobre de
celotez; o soalho, de tacos; a laje que garante a resistência entre o pavimento
térreo e o primeiro andar com espessura de 18 cm, com resistência suficiente
para o sapateado da negrada (sic); a iluminação do salão de luz fluorescente”.
11 Associação religiosa que comprava alforrias e trazia o culto às religiões afro-brasileiras.
32
Em 2001, o prédio foi tombado como Patrimônio Histórico Cultural. A
Associação é hoje a terceira mais antiga do país, tendo completado em 2008
100 anos de existência com a denominação atual e 107 desde a sua fundação.
O periódico O Patrocínio – exemplar da Imprensa Negra de Piracicaba -
estava diretamente ligado à Sociedade13 de Maio como será melhor explicitado
posteriormente.
Antes de falar da imprensa negra propriamente, é necessário esclarecer a
questão da escolaridade da população negra na época e como foi possível criar
orgãos de imprensa feitos somente por negros.
1.4 Escolarização
1.4.1. Escolarização da população negra do século X IX ao XX.
Diversos textos sobre a escolarização dos negros, tais como, Gonçalves
& Silva (2000), Cruz (2005) e Morais (2007), afirmam que o estudo dessa
questão é dificultado pela falta de fontes históricas a esse respeito. Muitas delas
foram destruídas no processo de dominação, e, depois dele, quando Rui
Barbosa decidiu queimar diversos documentos sobre a escravidão no intuito de
“limpar a nossa história”.
Cruz (2005, p.22) aponta detalhadamente para a carência de trabalhos
históricos acerca das experiências escolares dos indígenas e do afro-
descendentes:
O estudo, por exemplo, da conquista da alfabetização por esse grupo;
dos detalhes sobre a exclusão desses setores das instituições escolares oficiais;
dos mecanismos criados para alcançar a escolarização oficial; da educação nos
quilombos; da criação de escolas alternativas; da emergência de uma classe
média negra escolarizada no Brasil; ou das vivências escolares nas primeiras
escolas oficiais que aceitaram negros são temas que, além de terem sido
desconsiderados nos relatos da história oficial da educação, estão sujeitos ao
desaparecimento.
33
Apesar dessas dificuldades, há alguns estudos em história da educação
que dão indícios de que nos séculos XVII e XVIII os negros foram decisivos para
a difusão do português no Brasil. Morais (2007), por exemplo, realizou um
trabalho sobre a familiaridade dos escravos com a escrita, baseando-se em
anúncios de jornais e documentos da região de Minas Gerais. A autora mostra
que escravos alforriados sabiam usar a escrita mesmo sendo proibidos de
frequentar escolas e afirma: “Ter profissão especializada, como alfaiate, pedreiro
ou carpinteiro, que exigia o uso de medidas e cálculos, indica um grau refinado
de ‘letramento’, termo que ajuda a entender os usos sociais, culturais e
históricos atribuídos à palavra escrita”. Em seu trabalho, a autora pretendia
determinar o grau de letramento (de 1 -rudimentar a 5- mais personalizada) dos
escravos da região através de suas assinaturas nos documentos, uma vez que,
saber assinar aumentava o status do negro em uma sociedade basicamente
iletrada na época.
Nesse período, havia em Minas Gerais muito mais negros que brancos
(cf. FONSECA, 2005). A população livre desse estado em 1830 era de 270 mil
habitantes dentre os quais 59% eram negros, além dos 130 mil escravos locais.
Havia pretos e mulatos nos mais diferentes papéis na sociedade, inclusive como
professores. Por exemplo, em 1831, dos 39 alunos que frequentavam a Escola
de Primeiras Letras em Cachoeira do Campo, 34 (91%) eram pardos. Fonseca
aponta, contudo, que apesar dos negros serem maioria nas escolas primárias,
nos níveis mais altos os brancos ainda predominavam.
A esse respeito, Gilberto Freyre faz a seguinte afirmação em “Casa
Grande e Senzala”: “Nas senzalas da Bahia de 1835 havia talvez maior número
de gente sabendo ler e escrever que no alto das casas-grandes” (apud MORAIS,
2007, p.4). Há, além disso, registros de escravos que dominavam a escrita não
somente do português, mas de outras línguas, como os Malês, que por serem
islâmicos, escreviam em árabe suas orações a Alá. Segundo Alcântara (2008),
os escravos letrados da Bahia e de Minas podem ter sido exceção, e aponta,
mais uma vez, para a necessidade de mais pesquisa sobre a relação dos
escravos com a língua portuguesa e quais eram suas práticas de leitura e escrita
na época do Império.
34
A Reforma Couto Ferraz de 1854 apresentou o decreto 1.331, que
estabelece a obrigatoriedade da escola primária para crianças maiores de sete
anos e que as escolas primárias e secundárias da corte deveriam ser gratuítas.
Contudo, não seriam admitidas nas escolas crianças com doenças contagiosas
ou escravas e não havia menção nessa lei a respeito da educação de adultos.
Apesar desse impedimento, os negros conseguiam, em muitos casos, receber
uma educação informal, como relatam Araújo & Silva (2005, p.69): “ a educação
informal (...) poderia acontecer tanto no meio rural como no meio urbano por
meio da observação silenciosa das aulas das sinhás-moças e da instrução
religiosa dos padres, entre outras situações improvisadas”. Ademais, de acordo
com Morais (2007), no século XIX era comum confiar a educação de um filho
livre ou forro, ou, até mesmo, de um escravo pequeno, a um mestre artesão ou
professor particular. No caso dos escravos, existe a possibilidade de que alguns
senhores contratavam professores particulares para alfabetizá-los, com a
intenção de lucrar com eles.
Como citado acima, os escravos estavam proibidos de frequentar as
escolas, contudo as escolas estavam abertas para negros libertos. Portanto,
uma pequena porcentagem de ex-escravos, resguardados social e
economicamente por ex-senhores, teve acesso à educação escolar. As crianças
negras tinham que provar a sua condição e possuir certos requisitos para poder
frequentar a escola, como vestimentas adequadas, um adulto responsável para
realizar a matrícula e recursos para adquirir o material e a merenda. Isso nem
sempre era possível, salvo os casos em que a renda provinha do ex-senhor.
Além do mais, em muitos casos, a família não valorizava a educação formal,
muitas vezes por causa da pobreza que levava as famílias a utilizar o trabalho
das crianças como fonte de renda extra. Barros (2005, p.88) transcreve o
relatório de um professor, em 1876, queixando-se dos pais de alunos. No texto,
não há menção específica a respeito da etnia dos alunos, apenas o indício de se
tratar de crianças pobres:
Tenho sempre ouvido queixas contra o magisterio. É bom que o
magisterio opponha tambem algumas aos pais de familia brazileiros, não
35
aquelles pais de boa-sociedade, que conhecem o valor da educação da familia,
mas sim ao commum dos pais. Entendem estes, só aquem me refiro, que é
bastante mandar os filhos a escola. Com dificuldade dão-lhes o que é preciso.
Fazel-os estudar em caza as lições passadas na escola, nenhum o faz. Os
meninos ahi andão pelas ruas tardes inteiras a correr após um arco de barril, ou
adiante de um volante aereo, ou em bandos a jogar capoeira, entregando-se
desde cedo a devassidões. Eu, por mais que faça, não consigo que um alumno
venha para a escola com as lições de Grammatica ou Arithmentica decoradas.
Entretanto, essas lições, que dependem do exercício da memória, devem ser
estudadas em casa, só explicadas ou praticadas na escola, para que o tempo,
que gastam em decorar, fosse empregado em qualquer outro exercício. Quanto
ao procedimento, todos os alumnos o tem bom na escola. Apenas dois alumnos
irmãos que, com quanto não procedão de modo a ser requerida sua expulsão,
são ivenciveis quanto aos habitos da vadiação e falta de aceio com que se
aprezentão na escola.
O jornalista Correia Leite, do Clarim da Alvorada, relata sua condição
quando criança, similar ao que foi exposto acima: “Quando comecei a tomar
consciência das coisas, percebi que era um menino sem poder entrar em escola
porque não tinha quem se reponsabilizasse por mim. (...) Os que frequentavam
grupo escolar tinham pai e mãe”. (CORREIA LEITE, 1992, p..23 e 26)
Através desses relatos, é possível perceber que uma parte da camada
negra valorizava a instrução formal de seus filhos, em contrapartida, uma outra
parcela desse grupo não compartilhava do mesmo pensamento, principalmente
devido à sua realidade financeira mais carente. Contudo, há informações de
casos em que as crianças eram alfabetizadas em casa pelos pais, não sendo
enviadas às escolas.
Ainda em relação ao século XIX, Barbosa (apud CRUZ, 2005, p.28)
afirma que em 1871, ano em que começou a vigorar a Lei do Ventre Livre, havia
em Campinas cerca de cinco escolas públicas voltadas para os “negros libertos
e escravos”. Dentre elas, o São Benedito, criado em 1902 para alfabetizar os
filhos dos negros, e o Colégio Perseverança ou Cesarino, primeiro colégio
feminino fundado em 1860 por Antônio Cesarino e sua esposa, que eram
negros. Dessa forma, ao contrário do que se pensava, os escravos, em certas
36
circunstâncias, conseguiam ter acesso à escolarização 17 anos antes da
abolição da escravatura. Porém, segundo Gonçalves & Silva (2000, p.141), das
403.827 crianças nascidas12 entre os anos de 1871 e 1885 apenas 113 (0,02%)
frequentaram estabelecimentos de ensino.
Cruz aponta para estudo de Souza (1999, apud CRUZ 2005), em que o
autor identifica crianças negras em fotografias de diferentes grupos escolares de
Campinas entre os anos de 1897 e 1925, em caso semelhante ao das
fotografias do Grupo Moraes Barros de Piracicaba, nas quais há a presença de
negros em fotos de 1912 e 1917.
A grande expansão da rede pública de ensino no Brasil se deu na década
de 1960, porém, se os negros só tivessem começado a ter acesso mais amplo
aos estudos nessa época, como teria sido possível criar as organizações
negras, escolas e a imprensa negra?
Após a abolição, os grupos negros, através de seus clubes recreativos e
associações como a 13 de maio de Piracicaba, criavam suas próprias escolas.
Muitas vezes recebiam instrução de outras pessoas, o aprendiam por si só,
como é o caso de Correia Leite, em um depoimento o militante negro afirma: “Eu
não sou autodidata porque cursei determinada disciplina e, por não poder me
formar, me tornei autodidata. Não. Eu sou autodidata mesmo, porque não tenho
nem curso primário”. (CORREIA LEITE, 1992, p.20). Porém, em alguns casos,
conseguiam adentrar a rede pública e escolas particulares. Como era o caso do
outro fundandor do Clarim da Alvorada, Jayme de Aguiar, que segundo Leite,
“(...) era um menino bem educado, a família dele protegida por antigos senhores
de escravos – os Paula Souza. Era matriculado no Coração de Jesus, um
colégio em que não entrava qualquer um naquele tempo”. (op. cit. p.26).
Em um âmbito mais geral, Gonçalves & Silva (2000, p.139 e 140) afirmam
que: “A escolarização, entre os homens negros nascidos no início do século XX,
quando ocorreu, foi, em sua maioria na idade adulta. Já as mulheres eram
encaminhadas a orfanatos, onde recebiam preparo para trabalhar como
empregada doméstica ou como costureira”.
12 O texto não menciona com precisão se esse número se refere a todo o país, ou a uma região específica.
37
A primeira chance real de inserção dos negros na educação formal,
portanto, teria ocorrido no final do século XIX e início do XX, com o
desenvolvimento industrial, que, inclusive, impulsionou o surgimento do ensino
popular e do ensino profissionalizante. As primeiras escolas nesse formato
foram criadas em 1907 após o decreto 7.556 do presidente Nilo Peçanha. De
acordo com Pahim Pinto (1994, apud GONÇALVES & SILVA, 2000) a primeira
notícia a respeito de uma instituição de ensino para negros aparece no jornal O
Propugnador, em 1907, informando sobre o curso diurno e noturno da
Irmandade de Nossa Senhora do Rosário.
Segundo Araújo & Silva (2005, p.73), “Pretos e pardos que obtiveram
sucesso nesta direção formaram uma nova classe social independente e
intelectualizada. A mobilização desta classe configurou-se como um mecanismo
de autoproteção e resistência, servindo de base para a (re)organização das
primeiras reinvicações sociais negras no pós-abolição e o surgimento dos
movimentos negros” . Exemplos desses movimentos são os jornais negros e a
entidade de cunho político Frente Negra Brasileira13. A imprensa negra foi um
veículo que tentou mostrar à população negra a importância da educação
formal, como será melhor explicitado na seção seguinte.
No pós-abolição, os negros precisavam ser educados para tornarem-se
bons cidadãos e bons trabalhores, ou seja, para poderem participar efetivamente
da sociedade. No final do século XIX, o país foi tomado por um “entusiasmo pela
educação”, a fim de, através da escolarização, tornar o Brasil uma nação
“civilizada” aos moldes da Europa e da América do Norte. Barros (2005
p.81)afirma: “a exigência de organizar o trabalho livre trouxe, simultaneamente,
a necessidade de educar o homem para o trabalho”.
13 A Frente Negra Brasileira foi fundada em São Paulo no ano de 1931, por Arlindo Veiga dos Santos, intelectual negro. Possuía núcleos no Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia, Rio Grande do Sul, Pernambuco e interior paulista. Essa entidade pretendia irradiar por todo o Brasil a união política e social da população negra e, assim, afirmar seus direitos históricos e reivindicar seus direitos sociais e políticos. Além disso, objetivavam a elevação moral, intelectual, artística, técnica, profissional da população negra e prestavam assistência, social, jurídica, econômica e de trabalho à comunidade. Suas ideias eram difundidas através de cabos distritais que viajavam pelo país arregimentando adeptos e fundando núcleos.
38
De acordo com Gonçalves & Silva (2000, p.145), os líderes desses
movimentos negros pensavam que a educação era responsabilidade da
comunidade negra e não somente do Estado:
Quanto mais informações reunimos, mais nos convencemos de que,
respeitadas as diferenças regionais e até mesmo locais, a forma como os negros
militantes buscaram reagir à precária situação educacional de seu grupo étnico
exigiu deles um tipo de compromisso pessoal, de engajamento direto para
resolver um problema que não era exclusivamente dos negros, mas era um
problema nacional.
Para (Florestan) Fernandes (1986), o clima político do início do século,
impregnado de ideologia liberal, moldava os indivíduos, ao ponto de imaginarem
que a tão almejada integração social, dependia exclusivamente do esforço de
cada um.
O exemplo mais significativo de uma instituição educacional organizada
por uma entidade negra foi a escola da Frente Negra Brasileira, cujo programa
de alfabetização atendeu a cerca de 4000 estudantes, já a escola primária e o
curso de formação social atenderam a 200 alunos.
Os textos dos jornais de imprensa negra eram compostos, na sua
maioria, por membros de uma elite intelectual, preocupada com a norma culta.
Como mencionado anteriormente, Jayme de Aguiar frequentou o colégio regular,
Correia Leite, apesar de se intitular autoditada teve acesso à norma padrão,
principalmente através de seu colega Jayme de Aguiar: “Ele ia duas vezes por
semana e me dava aulas de matemática e português. Comecei a melhorar. (...)
Consegui ingressar num curso de contabilidade” (CORREIA LEITE, 1992,
p.29).Com a saída do colega de O Clarim da Alvorada, em 1929, Correia Leite
faz a seguinte afirmação: “– O jornal pode sair com vírgula errada, com erro de
concordância, mas vai sair. Porque agora eu tenho umas ideias” (op. cit, p.40)
Lino Guedes, um dos fundadores de O Getulino, exemplar de Campinas,
foi filho de ex-escravos, cuja família era protegida do líder político da cidade de
Socorro. Estudou no grupo escolar de Socorro, tendo sido um dos fundadores
do jornal O Espião, em 1908. Quatro anos depois, obtém seu primeiro emprego
39
como revisor auxiliar do jornal O Diário do Povo. E em 1918, é contratado como
revisor-chefe do Correio de Campinas.
Os três autores mencionados eram colaboradores de O Patrocínio de
Piracicaba. O redator-chefe dessa folha foi Alberto de Almeida. Apesar de
documentos e registros a seu respeito não terem sido encontrados nas atas de
reuniões da Sociedade 13 de Maio, por exemplo, soube-se que veio para
Piracicaba do Rio de Janeiro para estudar e, na cidade, morava e trabalhava em
uma república estudantil da Escola de Agronomia Luiz de Queiroz (ESALQ-
USP). Porém, não se sabe mais detalhes a respeito de sua origem e
escolarização, contudo, através de seus textos é possível crer que, de alguma
forma, Almeida teve acesso à norma culta escrita da língua.
Tem-se notícia que Bento Escobar, colaborador do jornal piracicabano,
era jornalista e tabelião, cargo raramente exercido por um negro na época,
devido à necessidade de instrução para exercê-lo.
Concluí-se, portanto, que a maior parte dos indivíduos que organizaram
os jornais de imprensa negra, tiveram acesso a alguma forma de estudo. De
acordo com Garcia (1997, p.32) : “A diferença desse grupo de intelectuias
reponsáveis pela Imprensa Negra em relação à maioria da sociedade, não só
paulistana mas brasileira, residia no fato de serem alfabetizados, e nesse
sentido, contituírem uma ‘elite’ ”.
Dessa maneira, como será verificado no capítulo 4, que trata da análise
dos dados, é possível perceber uma grande preocupação com a adequação à
norma culta vigente na maioria dos artigos. Como exemplifica Correia Leite, no
seguinte trecho em que relata uma conversa com o orador Vicente Ferreira:
O Vicente Ferreira falava muito bem, sabia muita coisa, mas não escrevia. Ele
só ditava e a gente tinha de interrompê-lo para colocar uma vírgula, ver uma
concordância ou qualquer coisa. Ele ficava danado e dizia que o pensamento dele nada
tinha a ver com a gramática. O que ele queria é que a pessoa pegasse as ideias, o que
prevalecia eram as ideias. E dizia que não tinha nada a ver com a vírgula e a
concordância. Então eu fui começando a dar mais valor às minhas ideias do que a
qualquer erro de gramática. Fui perdendo aquela bitola do Jayme de Aguiar e outros
muito preocupados com a gramática. (CORREIA LEITE, 1992, p.196)
40
Os editores dos periódicos de imprensa negra, além disso, incentivavam
seus leitores a enviar textos e muitos deles eram publicados. Em O Patrocínio,
há vários exemplos desse tipo.
Apesar desses artigos serem publicados, em periódicos, como O Alfinete,
sabe-se que alguns textos eram reeviados com um pedido de adequação do
conteúdo, após avaliação dos editores. Inclusive, nesse jornal havia uma coluna
entitulada “Caixa do Alfinete”, em que o autor denominado “Cabo da Guarda”
dava dicas sobre a maneira correta de escrever de acordo com a norma culta.
Como no exemplo transcrito por Garcia (1997, p.81) : “... Snr. Baptista: - Seu
sòneto não póde ser publicado falta a metrificação, que é o essencial. Um
conselho: -Leia o tratado de metrificação de Olavo Bilac, na parte que trata dos
sonetos”.
Apesar dos jornais serem elaborados por indivíduos que tiveram
instrução, os seus conteúdos chegavam indiretamente àqueles que não sabiam
ler, como descrevem Gonçalves & Silva (2000, p.141):
Não se pode esquecer que ela se vaiculava entre os poucos que eram
alfabetizados na população negra brasileira. Ou seja, não se destinava à massa mas
aqueles que tinham em seus currículos uma história, pequena que fosse, de
escolarização (Gonçalves, 1997). Entretanto, junto a muitos desses reunia-se ‘gente sem
estudo para ouvir as notícias’. ‘Avó, pai sem leitura, comprava o jornal, para que os
netos, os filhos lessem para eles’, conta Antunes Cunha (2000).
Nessa seção, foi realizado um panorama da escolarização dos negros no
século XIX e início do XX para identificar que fatores possibilitaram o surgimento
de uma imprensa escrita somente por negros. E, ainda, de acordo com o nível
se instrução, poder levantar hipóteses acerca do tipo de liguagem encontrada
nestes textos, se está mais próxima ou distante da norma culta vigente no
período.
Para compreender com mais clareza o estatuto linguístico do periódico
analisado nesse estudo, é necessária uma exposição da escolarização
especificamente da cidade de Piracicaba e da população negra que lá habitava.
41
1.4.2. Escolarização na cidade de Piracicaba
Piracicaba chegou a ser conhecida como “A cidade das escolas”,
denominação atribuída à cidade pelo escritor Thales Castanho de Andrade
(1890-1977), em sua obra de 1922 (cf. MONTEIRO, 1988). Realmente, desde a
independência do Brasil, a Câmara Municipal preocupava-se com a necessidade
de que se instalasse na cidade a “Mestria Régia de primeiras letras”. De acordo
com o estudo entitulado Piracicaba “a cidade das escolas” (1988), do jornalista e
professor Noedi Monteiro, a primeira escola de primeiras letras para meninos,
com 30 estudantes, instalou-se na cidade em 1826.
Em 1829, é enviado ao governo o primeiro mapa de alunos, informando
que havia 36 estudantes na cidade.Já em 1836, como mencionado na seção
2.1, o Quadro Estatístico da Província de São Paulo, aponta que 395 - 3,8% dos
habitantes da cidade eram alfabetizados, enquanto que Itu contava com 166
alfabetizados (1,5% de seus moradores) e Curitiba com apenas 152 (0,95% da
população).
No ano de 1844, é aberta mais uma escola primária masculina, com mais
de 200 alunos. Três anos mais tarde, é criada a primeira escola feminina de
Piracicaba.
Segundo Monteiro, em 1871, a cidade contava com cinco escolas
públicas (duas para o sexo masculino e três para o sexo feminino) e alguns
estabelecimentos particulares, como o colégio Santa Sofia, que possuia um
gabinete de leitura com mais de 2000 exemplares. A primeira biblioteca pública
da cidade foi inaugurada em 1873.
No ano de 1883, Piracicaba possuía seis escolas para ambos os sexos e
contabilizava 286 alunos. Em 1893, havia 10 colégios públicos e 11
estabelecimentos particulares – dentre eles, oito para o sexo masculino, sete
para o feminino e seis mistos – perfazendo um total de 762 alunos matriculados
e 602 frequentes, dos quais 492 meninos e 270 meninas.
Em 1894, é inaugurado o primeiro grupo escolar denominado
“Piracicaba”, hoje com o nome de “Barão do Rio Branco” – o quinto a ser criado
42
no estado de São Paulo. No mesmo ano, é inaugurada a Escola Agrícola Luiz de
Queiroz, primeiro estabelecimento de ensino agrário do país.
Segundo o “Relatório ao Secretário de Estado dos Negócios do Interior”,
no ano de 1896, havia em Piracicaba 29 escolas: 13 preliminares, 10
intermediárias e seis provisórias.
Em 1897, é inaugurada a “Escola Complementar de Piracicaba”, hoje
“Colégio Sud Mennucci”. Foi a segunda escola normal (estabelecimento de
educação acima do grau primário) instalado no interior do Brasil – Itapetininga
recebeu a primeira.
No estudo de Monteiro, até o ano de 1897, não há menção quanto à raça
dos alunos destes estabelecimentos, nem de qual seria a situação educacional
dos negros após a abolição em Piracicaba. Somente em 1898, há o registro da
inauguração da “Escola Igualitária de instrução primária e secundária para o
sexo masculino”. O estabelecimento era mantido pela Sociedade Igualitária, na
rua 13 de Maio n° 11 e dirigido por Joviano Pinto. De acordo, com Monteiro
(1988, p.9):
A escola representa a classe de homem de cor da cidade. Veio à lume por
iniciativa de Franklin César de Carvalho Filho, João Cotrim, José Francisco Lázaro e
Hermógenes da Conceição (prof. de música em uma classe mista). Cherubim
Sampaio, José Bonifácio, Fernando Moraes e Otávio Ferraz foram professores na
escola.
Nesse ano, também, é organizada, na fazenda Pau D’Alho, a primeira
escola rural da região. E, em 1900, é inaugurado o segundo grupo escolar da
cidade, o “Moraes Barros”, que contava com 320 alunos de ambos os sexos.
Em seu relatório14 de 1902, como presidente da Câmara de Vereadores
de Piracicaba, o Dr. Paulo de Moraes Barros, afirma: “É bastante animador o
estado actual da instrução no municipio, quer na parte devida á acção do
Estado, quer na parte devida á acção da Camara Municipal, quer na parte
devida á acção particular”. Em seguida, o vereador tece comentários a respeito
14 Como mencionado anteriormente, esse relatório foi publicado em um caderno especial do “Jornal de Piracicaba”, em 3 de agosto de 1980.
43
de cada uma delas, mencionando as suas condições gerais (instalações,
localização, etc.) e o número de alunos, apresentando, por fim, um quadro com
o número de alunos de cada estabelecimento:
Por fim, Moraes Barros aponta que Piracicaba é a cidade com maior
número de estabelecimentos de instrução do estado de São Paulo e afirma que
“para conseguir esse resultado, a sua Camara Municipal não tem poupado
sacrifícios e esforços, devendo ser citada, entre outros, a lei que izenta se
impostos os directores e professores de collegios e escolas”.
O recenseamento de 1900, contudo, mostra era de 2.372 o número de
habitantes do perímetro urbano em idade escolar. Portanto, havia ainda 491
44
crianças sem receber nenhuma instrução e, segundo o relatório, “(...) destas
mais de 300 que não recebem porque não encontraram logar nas escolas”.
Piracicaba, dessa forma, mostrou-se uma cidade preocupada com a
instrução da população. Apesar de não haver referências específicas à classe
social e raça dos alunos, parece que havia esforços para que o ensino
abrangesse a grande parcela da população. Sendo que, em 1902 o município
possuía duas escolas em bairros mais distantes do centro, uma em Charqueada
e outra em Tanquinho, e quatro escolas noturnas, com alunos majoritariamente
operários (Escola Nocturna Estadual, Escola Noturna Municipal, Escola
Cooperativa da Fábrica de Tecidos e Escola Igualitária Instructiva), a última teria
sido aberta para atender à população negra. Contudo, não há confirmação se
esse estabelecimento era frequentado somente por negros.
Inclusive, em foto publicada em um artigo de “A Província de Piracicaba”
a respeito da Escola Cooperativa da Fábrica de Tecidos, há a presença de um
aluno negro:
Devido aos anos em que o jornal O Patrocínio foi publicado (1925 a
1930), é possível crer que seus autores devem ter aprendido as primeiras letras
no final do século XIX e início do XX. Sendo assim, podem ter participado desse
movimento em relação à escolarização da população Piracicabana.
A fim de averiguar a porcentagem de negros nos grupos escolares da
época, foi feita uma tentativa de verificar a documentação existente nas escolas.
No colégio Barão do Rio Branco, restou apenas o registro dos alunos a partir de
1940. Na escola Sud Mennucci, essa documentação encontra-se em um arquivo
45
que pode apenas ser acessado pelo diretor do colégio, cujo contato ainda é
aguardado.
Por fim, no Grupo Moraes Barros, ocorreu uma agradável surpresa. Os
livros de registro dos alunos encontravam-se em armários, muitos bem
armazenados e conservados, e o acesso a eles foi concedido prontamente.
Esses registros datam de 1911 em diante. Contudo, constam apenas o nome
dos alunos, naturalidade e filiação, não há nenhuma menção à raça. Porém, o
colégio possui um arquivo de fotos antigas. Em uma foto de 1912, reproduzida
abaixo, há um aluno negro. Em uma outra de uma classe, de 1917, entre 30
alunos, há dois (6,7%) negros. Em seguida das fotos, apresento um gráfico com
a porcentagem de pessoas alfabetizadas na cidade de Piracicaba:
46
Gráfico III: População alfabetizada de Piracicaba
3,80%
21,90%
64,20%
77%
85%
94,95%
0%
20%
40%
60%
80%
100%
1836 1900 1940 1960 1980 2000
os jornalistas que viriam a colaborar com O Patrocínio e, também, os
leitores desse periódico estão, provavelmente inseridos nesse contexto. Através
do histórico apresentado tem-se a impressão de que no começo do século XX
havia uma grande tentativa na cidade de Piracicaba de alfabetizar as crianças,
não importando sua origem e posição social. Havendo na cidade além de
escolas para a população infantil, também escolas noturnas para adultos e
operários, inclusive uma para a população negra.
1.5. A imprensa negra e o jornal O Patrocínio
A escolha de um exemplar da imprensa negra como corpus desse estudo
é relevante, pois os afro-descendentes têm importância reconhecida na
formação da cultura e, consequentemente, da língua no Brasil. O próprio negro
se vê como parte essencial da formação do país, como é possível verificar neste
trecho de O Getulino (1924 – ano I, n.32:2/3 apud Ferrara, 1986: 90, 91): “Brasil
não é filho do extrangeiro, não é tão pouco só o branco nacional que, si existe
com as modalidades actuaes, é porque o preto amamentou, o embalou, e com
inaudito esforço arroteou os campos, desbravou florestas e formou fazendas,
sitios, arraiaes”.
47
Essa imprensa está diretamente relacionada ao movimento negro -
mencionado anteriormente - surgido no início do século XX, sendo herança da
luta quilombola que atravessou todo o período colonial e do império, e que
marcou a história com figuras abolicionistas importantes, tais como Luís Gama,
José do Patrocínio e os irmãos Rebouças.
O movimento negro do início do século XX carecia de poder econômico e
político. Era formado por entidades, como a própria Sociedade 13 de Maio de
Piracicaba, que estavam sujeitas à falta de recursos, infra-estrutura, espaço
físico e apoio de outros setores da sociedade civil. Como exemplifica o jornal O
Patrocínio, no qual seu redator-chefe Antonio de Almeida fala sobre a situação
do periódico: “Não é sem dificuldades que chegamos a vencer mais um anno de
lucta; pois num ambiente pobre como o nosso, só mesmo a custa de muita força
se pode conseguir alguma coisa”. (Pat. – 19/10/1930, p. 1)
Além disso, muitos desses periódicos eram sustentados com recursos
dos próprios colaboradores, como afirma Correia Leite neste trecho do “Clarim
da Alvorada”: “Ninguém comprava e nós dávamos os jornais gratuitamente.
Pagávamos o papel com nosso dinheiro e sempre tínhamos prejuízo” (apud
FERRARA, 1986, p.52).
É patente que a imprensa negra deste período estava ligada a essas
diversas associações sociais e recreativas afro-brasileiras. Apesar de serem
entidades de cunho social, elas também estavam engajadas em uma
mobilização pela cidadania, através de ações para a inclusão do negro no
mercado de trabalho, no sistema de ensino e na sociedade civil em geral, ou
seja, lutavam contra o preconceito e a exclusão que o negro pós-abolição sofreu
em todas as esferas. Os negros clamavam pelo que consideravam uma segunda
abolição, uma vez que a primeira não havia sido capaz de promover a
verdadeira liberdade. Essa falsa liberdade a que os ex-escravos foram lançados,
de tal maneira, é chamada por muitos de “mentira cívica”.
Florestan Fernandes (1964 apud Nascimento, 2003, p. 224,225) observa
que:
48
Apesar das limitações insanáveis [...], [essas organizações do
movimento negro] tiveram êxito em três pontos. Suscitaram um nôvo estado de
espírito, que polarizou as aspirações integracionistas e assimilacionistas em
direções reinvidicativas de teor igualitário. Despertaram o interêsse pelo
conhecimento objetivo da “realidade racial brasileira”, como condição de
esclarecimento da “população de côr” e de sua atuação conciente na cena
histórica. Mobilizaram o “elemento negro”, tentando inseri-lo, diretamente, no
debate e na solução dos “problemas reciais brasileiros”, o que representava, em
si mesmo, um acontecimento revolucionário.
Tais jornais, escritos e dirigidos por negros, funcionavam como uma “imprensa adicional”, uma vez que, de acordo com Bastide (1951, p.110), os indivíduos letrados liam a imprensa dos brancos para informar-se. Para Correia Leite:
A comunidade negra tinha necessidade dessa imprensa alternativa. Não se tinha outro meio a não ser copiar o que as colônias estrangeiras faziam. O negro, de certa forma, era também uma minoria, como os italianos, os alemães, os espanhóis. E todos eles tinham jornais e sociedades. As publicações negras davam aquelas informações que não se obtinha em outra parte.
(CORREIA LEITE, 1992, p.33)
Cabia a esses periódicos, portanto, tratar de questões raciais e sociais
em relação à comunidade negra. Bastide (op.cit.) observa que: “Esses jornais
procuram primeiramente agrupar os homens de cor, dar-lhes o senso da
solidariedade, encaminhá-los, educá-los a lutar contra o complexo de
inferioridade”. Portanto, o primeiro objetivo desta imprensa era a educação, o
protesto ficava em segundo plano.
Na mesma direção, Ferrara (1986, p.115), em ampla pesquisa
antropológica em 56 jornais da Imprensa Negra escritos entre 1915 e 1963, faz a
seguinte constatação acerca do objetivo principal dessas publicações:
A integração do negro na sociedade brasileira constituiu a preocupação
máxima dos produtores dos jornais que analisamos. Para tanto, perceberam a
necessidade de formar o negro em seus diferentes aspectos: educação, cultura,
instrução, e, principalmente, concientizá-lo de sua posição na sociedade
brasileira, e mostrar-lhe qual poderia ser a sua atuação, como participante do
grupo negro, e da sociedade mais ampla.
49
Esses fatores podem ainda ser confirmados em diversos textos do jornal
O Patrocínio, em que há a convocação para o primeiro Congresso da Mocidade
Negra do Brasil:
Si Piracicaba goza a fama de culta, representada pelos seus filhos
brancos, é necessário que os filhos negros de Piracicaba procurem dar-lhe igual
valor. Precisamos seguir o exemplo maravilhoso dos homens de cor de
Botucatu, que não trepidaram em formar uma commissão composta de nomes
de reconhecida idoneidade moral, com o fim unico de pugnar pelo congresso,
angariando donativos com os quaes possam auxiliar a commisão organisadora
do primeiro Congresso da Mocidade Negra do Brasil.
(Pat.-20/10/1929, p.6)
Além de concientizar os negros, esses jornais criticavam atitudes tidas
por infames. Condenavam o alcoolismo e faziam um apelo à moralidade e à
dignidade nas relações sociais. Também, lutavam contra estereótipos,
comumente ligados à criminalidade, à indolência, ao deboche, à preguiça e à
falta de iniciativa. Chegavam até a condenar os “batuques”, os sambas e as
danças populares.
Dessa maneira, Bastide (1951), afirma que a imprensa negra
caracterizou-se por ser um grande instrumento de puritanismo negro. Os artigos
clamavam pelo comportamento adequado nas relações entre homens e
mulheres, falavam da maneira correta de se vestir e de boas maneiras. De
acordo com Nascimento (2003, p.227): “Tal postura reflete a necessidade de
afirmar, contra a imagem esteriotipada cultivada pelo racismo, outra (sic) limpa e
positiva, de honorabilidade e polidez, para contrapor à imagem do negro como
selvagem”, questão essa que pode ser verificada no seguinte trecho de “O
Patrocínio”:
Não gosto desses negros que vivem por ahi, enfulhados por esses
botécos. Não gosto dos gestos desses homens, que ao levar o copo á bocca
quebrando o pulso no ar, destacam para o lado o dedo minimo meio arqueado.
Aquillo è feio é rediculo. E geralmente os que assim procedem, são sempre
50
pretenciosos e convencidos. Não gostam que se lhes apontem o mal que pode
acarretar esse pernicioso vicio.
Os homens nestas condições, são muitas vezes inuteis á sociedade ---
essa sociedade em que vivemos e que eu a comparo a uma comedia, onde
cada um representa muito bem o seu papel.
(O Pat.-7/4/1928, p.2)
Em muitos artigos, os autores chamam a atenção para a responsabilidade
do próprio negro quanto à sua situação, alertando-os para a necessidade de
disciplina. Ferrara (op. cit) trancreve o seguinte trecho de A Voz da Raça:
Os únicos culpados são os próprios negros que ainda não sabem ser
disciplinados, para o seu próprio bem. Sem disciplina, o homem é como um
navio sem bussula: no mar ai sabor da tormenta. Não tem educação de espirito,
não tem atitude de vida, nada lhe serve porque a ideia de desordem impera e
assim julgando, tudo para ele é imprestável.
(“A voz da Raça”, 1933 – ano I, n.12:10/06, apud Ferrara, 1986, p.119)
Além disso, um dos obstáculos para a ascensão do negro era o seu
senso de inferioridade em comparação ao branco. Esse complexo faz com que o
negro comporte-se ambiguamente em relação ao branco. Bastide (1952, p.142)
cita um anúncio de jornal que confirma esse caráter: “Cabelos crespos! ... Tem
quem quer (...)” “Oh! Você ainda não alisou seus cabelos?(...)”.
Sendo assim, a imprensa negra pretendia valorizar o negro. Para tanto,
trazia em seus exemplares artigos históricos e biografias de grandes homens,
como neste exemplo de O Patrocínio, de 29 de junho de 1930, acerca do
abolicionista Luiz Gama:
51
Para o estudo da imprensa negra paulista, autores propõem
periodizações diversas, de acordo com os objetivos e o corpus de sua perquisa.
Bastide (1951) divide os jornais em três fases. A primeira, de 1915 a 1930, foi
iniciada com O Menelick, de São Paulo. Essa data coincide com a Primeira
Guerra Mundial e o desenvolvimento do ensino gratuito primário no Brasil. O
segundo período se extende de 1930 a 1937. No entanto, entre essa fase e a
próxima há uma lacuna de oito anos. Com o restabelecimento do regime
democrático, a imprensa negra retorna em sua terceira fase, de 1945 em diante.
Diferentemente, Ferrara (1986) considera que o primeiro momento vai de
1915 a 1923. Os jornais negros dessa época, bem como os periódicos
provincianos não negros, são essencialmente veículos de comunicação e
52
divulgação social, como falecimentos, casamentos, festas religiosas,
quermesses, mexericos, entre outros. Segundo Bastide (1951), para a classe
negra era importante mostrar que eles conheciam as regras de polidez, faziam
parte da sociedade e celebravam sua existência, portanto não eram os
selvagens que muitos imaginavam. Conforme o periódico, as notícias sociais
ocupavam entre 30 e 60% do número de colunas.
No ano de 1923, o jornal O Getulino foi fundado em Campinas. Este
periódico apesar de ainda trazer as notas sociais dos anteriores, possuia um tom
mais reinvidicatório, abrindo, por essa razão, a segunda fase da imprensa negra
que perduraria até 1937, quando há a instauração do Estado Novo.
Ainda na segunda fase, em 1924, surge em São Paulo O Clarim da
Alvorada, fundado por José Correia Leite e Jayme de Aguiar, no qual o carater
combativo acentua-se e começa a se aprimorar. A sua intenção era a de
reerguer a memória das lutas passadas e convocar a comunidade a reorganizar-
se para dar continuidade às mesmas. A esse respeito, Nascimento (2003) cita o
seguinte extrato de Correia Leite:
Se analysamos o valor dos nossos antepassados, veremos, atravez da
história, a sublime coragem de uma raça que, embora escravisada, não se
deixou dominar na lucta, em conquista de seus direitos. [...] Quantas gottas de
lágrimas, custou a liberdade àqueles pobres martyres, que foram um dos
primeiros obreiros do progresso e da ordem de nossa patria. O bom nome da
nossa classe depende do nosso procedimento. É o nosso dever o de introduzir
na evolução social o valor de nossa raça. Devemos trabalhar muito numa
concordia infidavel, para que possamos ver o fructo de nossos esforços, refulgir
no progresso da nossa terra. Para isso seria preciso uma convocação geral dos
homens pretos, e tratar da fundação de uma caixa beneficente, eleger a
directoria, enviar manifestos a todos os estados do Brasil e, emfim, fundar a
sociedade “Confederação dos homens pretos”, segundo as ideias de varios
patricios. (“O Clarim da Alvorada”, 1924, n.4 apud Nascimento, 2003, p. 229)
Apesar do tom reivindicatório, o jornal traz, ainda, as notas socias do
primeiro período. José Correia Leite apresenta a seguinte justificativa para tal
fato: “O jornal O Clarim oferecia notícias pra que a gente pudesse ter aceitação
53
no meio das entidades negras. Então eram anunciadas festas, bailes,
casamentos... Através desse expediente, conseguíamos que a entidade
distribuísse os jornais”. (CORREIA LEITE, 1992, p.59).
Em seguida, no ano de 1931, ocorre a fundação do movimento político
negro, Frente Negra Brasileira15, cujo orgão oficial é A voz da raça. Neste
momento, há uma passagem de reivindicação jornalística para reividicação
política (cf. BASTIDE, apud FERRARA, 1986).
O Clarim da Alvorada foi criado como um “orgão literário, noticioso e
humorístico” e tornou-se um veículo de luta contra a situação do negro no Brasil.
Em 1928, passa a ter o subtítulo “Pelo interesse dos homens pretos,
NOTICIOSO, LITERÁRIO E DE COMBATE”. Jayme de Aguiar era seu principal
redator e, para dar mais importância ao periódico, assinava os artigos com
diversos pseudônimos: Maria Rosa, Moysés Cintra, Jim de Araguary, Praxedes,
Ana Maria e Jim do Vale.
Este periódico trouxe a ideia de realizar o “I Congresso à Mocidade
Negra” no ano de 1929. A convocação para esse evento aparece, ainda, em O
Patrocínio, como fora mencionado anteriormente. Para Correia Leite: “Não era
mais um jornal de versinhos, de artiguinhos, de ensaiozinhos. Nós estávamos
socialmente prestando algum serviço” (op. cit. p.80). Segundo Garcia (1997,
p.116) o periódico, ainda, tinha abrangência em todo o estado: “Uma das
propostas políticas do Clarin d’ Alvorada era promover a união dos negros para
um desenvolvimento conjunto. Por isso o jornal tinha representantes em
diversas cidades do interior, como Botucatu, Campinas, Riberão Preto, entre
outras”.
Em 1945, com a redemocratização do país, os grupos negros começam a
se reorganizar e, consequentemente, a imprensa negra ressurge, representada
principalmente pelo periódico Alvorada, da Associação dos Negros Brasileiros,
tendo como um de seus idealizadores José Correia Leite. Essa terceira fase
15 Ferrara (1986) apresenta a seguinte citação de Pedro Paulo Barbosa sobre os primórdios da Frente Negra Brasileira: “(...) começou nos baixos do relógio da Sé, com reuniões ao ar livre; de lá fomos para o Palacete Santa Helena e depois para a Rua da Liberdade no 196 (onde hoje é a casa de Portugal). E lá nós progredimos. Tivemos escola, gabinete dentário, banda de música, teatro, cursos educativos e muitos outros departamentos”.
54
dura até 1963, ano em que a imprensa negra sofre uma paralisação para
reorganizar-se e ressurgir na década de 70, porém com um caráter distinto do
anterior. Tanto que setores do movimento negro e do meio intelectual dos dias
de hoje tomam a década de 70 como o início da militância afro-brasileira.
Além de muitos desses periódicos apresentarem tiragens pequenas e de
curta duração, o registro histórico dessa documentação dos movimentos negros
da primeira metade do século XX é muito escasso (cf. NASCIMENTO, 2003).
Esse fator pode ser confirmado com o acervo disponível de O Patrocínio, objeto
escolhido para este estudo. Através de informações encontradas ali, esse
periódico surgiu em 1925 e perdurou até seu quinquaségimo quinto exemplar,
datado do dia 19/10/1930. Contudo, restaram apenas nove exemplares: sete
encontrados no Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), da Unicamp, e quatro no
Arquivo do Estado de São Paulo, sendo dois iguais aos do AEL, perfazendo
assim, nove edições.
Como revela seu subtítulo, O Patrocínio é um “orgam, literario, critico e
humoristico” – contava com notas sociais de casamentos, aniversários,
batizados, falecimentos, poemas, contos, notas esportivas e anúncios, mas
apresentava, ainda, artigos de protesto e reinvidicação, na linha de “O Getulino”.
Portanto, esse periódico faz parte da segunda fase descrita tanto por Bastide
(op. cit) quanto Ferrara (op. cit).
O redator-chefe dessa folha Alberto de Almeida assina artigos em todos
os nove exemplares. Em sua maioria são textos de protesto e concientização da
classe negra, como neste exemplo:
Quando iniciamos nesta pequena lucta verdadeiramente infausta e
desigual, tivemos em mira unicamente um fim: -- prestar pequenissimos e
desinteressados serviços á nossa classe, que na opinião de muitos é a ultima na
escala social. Queriamos e queremos ver os homens de cor unidos, trabalhando
todos para o bem estar commum, reunidos em sociedades que nos educassem
e elevassem nos a um certo grau social, de modo a não ficarmos tão
distanciados das outras classes.
(Pat. -23/3/1930, p. 2)
55
O jornal conta com diversos colaboradores inclusive de Campinas e São
Paulo, como Gervásio Moraes, Feijó e José Correia Leite. Havia colunas
assinadas, a exemplo de “Machadadas” e “Rebarbos” (esta do autor Bento
Escobar), sem identificação, bem como diversos outros textos do periódico.
O principal colaborador desta folha é Jayme de Aguiar do jornal
paulistano O Clarim da Alvorada. Nos nove exemplares coletados, há artigos e
poemas do jornalista em seis exemplares, inclusive um em que assina com um
de seus pseudônimos - Moysés Cintra. Moura (2002) coletou um depoimento do
jornalista a respeito dos jornais O Patrocínio e O Getulino de Campinas, fundado
pelos irmãos Andrade, Lino Guedes e outros:
Esses dois jornais foram um sucesso. A vinda, logo após a revolução,
de jornalistas campineiros negros para São Paulo, como Gervásio Oliveira,
Benedito Florêncio, Lino Guedes e outros, possibilitou a sua participação
também na grande batalha em prol da grandeza do negro. Todos eles irão
participar da imprensa negra paulistana.
O Patrocínio teve, ainda, repercussão, na imprensa local, de algumas
notas publicadas. Como é possível verificar na seguinte ‘resposta’ enviada ao
Jornal de Piracicaba de 8 de abril de 1928:
56
De acordo com Schwarcz (1987), era característico dos jornais de São
Paulo do século XIX trazer a parte editorial na primeira página. O Patrocínio,
como os outros exemplares da imprensa negra, apresentava nas primeiras
colunas os artigos mais relevantes, abordando questões relativas à luta e
conscientização da população negra para seus problemas. Possuía o formato in-
57
quarto16 e suas matérias eram distribuídas arbitrariamente pelas páginas, dando
a impressão que o objetivo era ocupar todos os espaços do periódico. Era um
jornal quinzenal, saía no sábado ou domingo, e podia ser vendido avulso ou por
assinatura.
1.6 A Gazeta de Piracicaba
Para efeito de comparação serão analisados dados do jornal da imprensa
majoritária Gazeta de Piracicaba editado na mesma época de O Patrocínio.
Esse jornal era o mais antigo da cidade na época, tendo sido fundado em junho
1882 e perdurado até 1938.
A Gazeta de Piracicaba era a principal fonte de informação imprenssa da
cidade no período de transição do Brasil Império para a República. Circulava
três vezes por semana, às terças, quintas e sábados.
Desde seu início, foi um periódico ligado ao ideal republicano, tendo sido
divulgador dos propósitos do futuro presidente Prudente de Moraes, natural de
Itu e morador da cidade de Piracicaba até seu falecimento em 1902. Durante
sua vida política, o jornal Gazeta de Piracicaba foi um importante aliado, desde
sua candidatura a deputado em 1883, pois divulgava e propagandeava os ideais
republicanos na região. O caráter político e republicano desse periódico pode
ser confirmado até a data de seu fechamento em 1938.
Essa folha, além disso, foi dirigida pelo sobrinho de Prudente de Moraes,
Antônio de Moraes Barros, por seu irmão, Paulo de Moraes Barros, e no período
entre outubro de 1928 e janeiro de 1930, seu redator - chefe era o Doutor João
Batista Silveira Melo, advogado, casado com a Sra. Maria Amélia Silveira Mello
(Dona Lalau), filha de Prudente de Moraes.
16 Segundo Schwarcz (1987) Popkin usou essa denominação para descrever os jornais de quatro páginas na França revolucionária no século XVIII.
58
2. A COLOCAÇÃO DOS PRONOMES CLÍTICOS
2.1 Introdução
Neste capítulo, pretendo mostrar que a colocação dos pronomes clíticos é
um fenômeno característico do processo de evolução e transformação do
português brasileiro (PB de agora em diante) em paralelo ao português europeu
(PE de agora em diante). Diversos estudos, os quais, inclusive, serão abordados
ao longo deste capítulo, comprovaram que as alterações verificadas nesse
fenômeno, ao longo da história, o revelam como um dos fatores indicativos de
como o PE e o PB evoluíram, transformando-se em duas variantes distintas em
muitos aspectos.
Com verbos simples, por exemplo, o PB apresenta, em geral, o clítico
anteposto ao verbo, enquanto em PE, há variação entre próclise e ênclise de
acordo com regras bem definidas.
(1) A Maria me viu. (PB)
(2) A Maria viu-me. (PE)
(3) * A Maria me viu. (PE)
Em PE, portanto, a próclise só ocorre em sentenças finitas quando há a
presença de palavras atratoras antes do verbo, tais como: complementizadores,
negação, quantificadores e alguns advérbios. Voltaremos mais adiante a esse
conjunto de atratores, porém, não é objetivo deste trabalho estudar qual seria o
funcionamento dessas regras17.
A próclise tornou-se a colocação padrão em PB, enquanto a ênclise
aparece em alguns contextos escritos. Essa próclise, entretanto, tem
características próprias que a diferem da dos períodos anteriores e da próclise
verificada em PE atualmente.
17 Questiona-se atualmente, se em PB esses operadores realmente têm uma atuação sintática, uma vez que há próclise generalizada.
59
Com construções com dois verbos, o padrão de colocação também
ocorre diferentemente nas duas variantes, como pode ser verificado nos
exemplos abaixo:
(4) A Maria pode me encontrar hoje. (PB) e (*PE)
(5) A Maria pode-me encontrar hoje. (PE)
(6) A Maria pode encontrar-me hoje. (PE)
Comprovando a afirmação de que, mesmo quando há próclise, ela não
ocorre da mesma forma em PB e PE, Galves (1998, p.83) apresenta os dados
abaixo, retirados do corpus do NURC18:
(7) Agora não tinha me lembrado.
(8) Essas indústrias novas que estão se implantando.
Esses dois casos, por conterem operador, requerem próclise mesmo em
PE (exemplos 9 e 10) , porém, ela ocorre de maneira distinta dos exemplos
anteriores:
(9) Agora não me tinha lembrado.
(10) Essas indústrias novas que se estão implantando.
A partir dessas sentenças, temos que a próclise em PB e PE não se dá
ao mesmo elemento na frase. Em (9) e (10), o pronome encontra-se proclítico ao
verbo auxiliar, enquanto em (7) e (8) ele está proclítico ao verbo do qual ele é
complemento. Segundo Galves (op. cit. p.83), em relação aos dados do PB:
“Isso aponta para uma relação mais lexical, com o verbo fonte da interpretação – 18 Projeto NURC – Projeto de Estudo da Norma Urbana Culta. Seu corpus consiste em mais de 1500 horas de língua falada, registradas durante os anos 70 nas cidades de Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo. E todos seus informates possuiam formação universitária.
60
do que gramatical – com o verbo auxiliar portador dos morfemas de tempo e
concordância”.
2.2 Língua-I e Língua-E
Para poder desvendar qual teria sido o caminho percorrido pelo PE e pelo
PB para chegar no seu status atual, primeiramente, é necessário trabalhar com
a noção de qual é a gramática do falante a ser considerada. Partindo dos textos
de Galves (1998 e 2007), seguiremos a afirmação da autora de que:
Para inferir a Língua-I19 de um autor, e da sua época, a partir da Língua-E dos seus
textos, a noção de ‘competição de gramáticas’ introduzida por Kroch (1994, 2001), é
essencial porque, em regra geral, os textos não são a expressão pura da Língua-I
adquirida pelos seus autores no processo natural da aquisição, mas vêm misturados
com elementos produzidos por uma outra gramática, de maior prestígio na comunidade.
(GALVES, 2007, p.513)
Sendo assim, em relação à Língua – I, ou seja, à gramática, o PE e o PB
são duas línguas diferentes. Esta questão ficou evidente na análise do corpus de
imprensa negra, o que será abordado no próximo capítulo, uma vez que há
diversos exemplos em que um autor na mesma sentença apresenta variação.
Ou seja, há um embate entre a sua gramática interna e o que é ditado não
simplesmente por uma gramática externa, mas por regras gramaticais baseadas
em uma norma distinta em muitos aspectos do que é comum ao uso. Esse fator
pode ser verificado no exemplo abaixo:
(11) e... numa arrancada brutal, me arrebatava, atirando-me ao terreno arido da desillusão. (Pat.- 19/10/1930, p.3)
19 Definição de Bloomfield do que é uma língua, citada por Chomsky (1985 apud, GALVES, 1998, p.80): “A língua-E pode ser definida como ‘a totalidade dos enunciados que podem ser produzidos numa comunidade de fala’. A língua-I, ao contrário, é um objeto mental, o saber que as pessoas têm da língua, que lhes permite não só falar e entender essa língua, mas também ‘atribuir um estatuto a cada evento físico relevante, digamos cada onda sonora’.”
61
Nesse sentido, a colocação dos pronomes clíticos em PB é um dos
fenômenos mais caros aos estudos linguísticos, dedicados ao embate entre a
Língua-I e a Língua-E. Na variante brasileira, tanto a ênclise como os clíticos de
3ª pessoa seriam adquiridos durante a educação formal. Kato (2006) considera
que, no processo de letramento, a escola pretende recuperar ‘perdas’
linguísticas, uma vez que as inovações podem ocorrer na fala, mas não na
escrita. A escolarização, contudo, consegue resgatar com algum êxito as formas
clíticas, mas não sua colocação. Desta forma, tanto na linguagem oral, quanto
escrita, os falantes brasileiros mantêm a colocação proclítica.
A fim de verificar esses fatores mais adequadamente, Kato, Cyrino e
Correa (1994, apud KATO, 2006) realizaram um trabalho cruzando dados de
diacronia e de aprendizagem escolar, para verificar como a escola conseguia
recuperar a perda do clítico de terceira pessoa. As autoras obtiveram o seguinte
quadro:
Tabela 2.120: Distribuição (%) de objetos diretos anafóricos por nível educacional em textos
escritos (KATO, CYRINO & CORREA, 1994, apud KATO, 2006, p.7).
Tipo 1ª /2ª 3ª /4ª 5ª /6ª 7ª /8ª Letrado
Objeto Nulo 59 64 48 52 10
Pronome Pleno 8 6 14 11 -
NP 33 18 13 5 5
Clítico - 12 25 32 86
A partir desses dados, Kato (2006, p.7) conclui que:
(...) embora a escola procure recuperar a gramática do passado, consegue simulá-
la apenas parcialmente, produzindo um conhecimento diferente daquele que o
falante do século XVIII obteve no desenvolvimento da fala, no qual o movimento
longo do clítico existiu enquanto havia clíticos de terceira pessoa.
20 As tabelas e gráficos reproduzidos de outros trabalhos nesse estudo foram renumerados de acordo com a ordem que aparecem no presente texto.
62
Além disso, em estudos sobre a escrita de universitários foram
encontrados exemplos de ênclise em orações subordinadas, relativas e
negativas, nas quais deveria ocorrer próclise. Esses dados apontam que a
ênclise reflete uma atitude de hipercorreção por parte de certos indivíduos.
Trata-se, portanto, de uma assimilação imperfeita dos padrões normativos da
colocação pronominal imposto pelo ensino gramatical.
Ao longo deste capítulo, observaremos diversos estudos linguísticos
comprovando que o PE e o PB percorreram caminhos diferentes a partir da
época do português clássico, o que acarretou a diferença entre o padrão de
colocação pronominal nas duas variantes do português.
2.3. Fatos históricos
2.3.1 Periodização
Há uma grande discussão na literatura acerca da periodização da língua
portuguesa. Após diversos estudos, Galves (2007) propõe a periodização que
será relatada a seguir, baseando-se justamente na colocação dos pronomes
clíticos. A princípio, Martins (1994) fez um estudo da colocação dos clíticos
considerando o período entre os séculos XIII e XVI. Para tanto, descarta os
contextos em que o verbo está em primeira posição (V1), quando a ênclise é
obrigatória, e as sentenças em que há termos desencadeadores de próclise. A
autora propõe o seguinte quadro com os seus resultados (MARTINS, 1994 apud
GALVES, 2007, p.516):
Tabela 2.2: Colocação dos clíticos entre os séculos XIII e XVI.
1250-99 1300-49 1350-99 1400-49 1450-99 1500-50
Cl-V 6,7% 18,8% 7,8% 71,4% 94,4% 100%
V-Cl 93,3% 81,2% 62,2% 26,8% 5,6% 0%
Como mostra a tabela, o século XIII é essencialmente enclítico. Contudo,
a variante pós-verbal vai gradativamente dando lugar à próclise, fator também
63
atestado por Lobo (1992, apud GALVES, 2007) em um corpus de cartas do
século XVI.
Para ilustrar a evolução da colocação pronominal do século XVI ao XIX,
Martins (1994, apud GALVES, 2007, p.517) apresenta o seguinte quadro:
Tabela 2.3: A evolução da colocação pronominal do século XVI ao XIX.
Cl-V V-Cl
Afonso de Albuquerque (1462?-1515) 73,5% 26,5%
Damião de Gois (1502-1575) 97,1% 2,9%
Fernão Mendes Pinto (1510?-1583) 98,1% 1,9%
Diogo de Couto (1542 – 1616) 72,5% 27,5%
Francisco Manuel de Mello (1608 – 1666) 92,3% 7,7%
Antonio Vieira (1608-1697) 31,6% 68,4%
Luis Antonio Verney (1713-1792) 27,3% 72,7%
Almeida Garrett (1799-1854) 19,3% 80,7%
Oliveira Martins (1845-1894) 2,4% 97,6%
De acordo com Martins, a gramática do PE moderno – essencialmente
enclítico - já podia ser verificada nos sermões do Pe. Antonio Vieira (séc XVII)
em que há 45% de ênclise.
Galves (2003, apud GALVES, BRITTO E PAIXÃO DE SOUSA, 2005)
aponta que a colocação pós-verbal dos Sermões deve-se a um recurso
estilístico, apresentando construções nas quais dois termos são contrastados
enfaticamente, como nos exemplos abaixo entre Elles/Christo e Deus/os
homens:
(11) Elles conheciam-se, como homens, Christo conhecia-os, como
Deus.
(12) Deus julga-nos a nós por nós; os homens julgam-nos a nós por si
(GALVES, p.519)
64
Além disso, ao comparar Vieira com outros autores da época como
Francisco Manuel de Melo e, mesmo com suas próprias cartas, em que a ênclise
aparece em apenas dois porcento das ocorrências, percebe-se que há variação
quanto à colocação pronominal.
Galves, Britto e Paixão de Sousa (2005), ao analisar o Corpus Anotado
do Português HistóricoTycho Brahe21, afirmam que a evolução em PE para uma
colocação cada vez mais enclítica ocorre substancialmente a partir do século
XVIII, o que, inclusive, pode ser verificado no quadro de Martins (op. cit.). Há, de
acordo com Galves (2007, p.520) :
Várias evidências empíricas que a virada do século 18 representa um marco para
a história gramatical do português europeu vêm surgindo a partir de trabalhos
recentes com base no corpus Tycho Brahe (...) Temos, portanto, uma
convergência de índices de que a mudança gramatical que afetou a colocação de
clíticos e a posição do sujeito tem seu início por volta de 1700. Essa mudança, que
corresponde ao nascimento do português europeu moderno (PE) e ao fim do
chamado português clássico (PCI), (...).
Tradicionalmente, no entanto, o século XVI é considerado o grande
divisor de águas do português. Porém, segundo Kroch (1989, apud GALVES,
BRITTO & PAIXÃO e SOUSA, 2005), quando há competição entre duas
variantes por um período de tempo, a mudança gramatical deve ser localizada
no começo dessa competição e não no final. Sendo assim, baseando-se em
diversos trabalhos22, as autoras consideram, diferentemente de Martins (1994),
que o português europeu moderno teve inicio no final do século XVIII. Uma vez
que nessa época constatou-se a queda na frequência do uso de próclise ao
mesmo tempo em que a ênclise não era mais somente associada às estruturas
V1.
Esse fator aponta para a necessidade de uma fase gramatical
intermediária entre o português arcaico e o português moderno, denominada por 21 Esse corpus reúne textos de 41 autores portugueses nascidos entre a primeira metade do século 16 e a primeira metade do século 19. 22 Galves e Galves (1995), Galves e al. (1998), Salvi (1990), Torres-Morais (1995) e Britto (1999)
65
Galves de português médio. No gráfico a seguir, Galves (op. cit., p.521)
apresenta, na linha de cima, as periodizações tradicionais e, abaixo, a sua
proposta:
Gráfico I: Revisitando a Periodização da Língua Portuguesa
Para Galves (2007, p.521): “O que distingue fundamentalmente esta
proposta das tradicionais é o fato de ela deslocar seu objeto da Língua – Externa
para a Língua – Interna, ou seja, de pôr o foco na gramática. Um dos efeitos
desse deslocamento é o século 16 perder o estatuto de divisor fundamental.”
Segundo a autora, um dos grandes argumentos para essa análise é o
fenômeno da interpolação23. Entre 1350 e 1450, ocorre a perda da adjacência do
clítico com o complementador em orações negativas (cf. NAMIUTE, em 23 A interpolação define-se como o fenômeno em que uma grande variedade de elementos da frase, entre neles, o sujeito, advérbios, complementos, podem se interpor entre o pronome clítico e o verbo. O fenômeno se manifestou com grande intensidade na fase arcaica do português e tem sido estudado por muitos pesquisadores. Os exemplos abaixo ilustram a interpolação: (i) negação - ... que me nom n~ebram (NO, 1268) (iii) o sujeito - Isto que lhes eu mãdo (NO, 1275) ( Martins,1994)
66
andamento, apud GALVES, 2007). Torres – Morais (1995, p.136) em seu estudo
a partir de textos do XVIII, afirma que:
(...) uma das evidências que pode corroborar a hipótese das diferenças entre
ênclise e próclise nos vem da fase antiga das línguas românicas ibéricas através da
interpolação, um fenômeno que não é mais produtivo.24 Como vimos, a interpolação
é caracterizada como a possibilidade que verbos e clíticos apresentam de ocupar
posições sintáticas distintas, permitindo que material fonológico intervenha entre
eles. A característica notável da interpolação, porém, foi a de que ela sempre
ocorreu em contextos de próclise obrigatória, nunca nos contextos de ênclise.
A partir dos dados expostos, Galves (2007) conclui que o PB evoluiu
desse português médio:
(...)o português brasileiro compartilha ao menos dois traços sintáticos superficiais
com o português médio. O primeiro, mais visível, é a próclise nos contextos
definidos acima, que distingue ambos tanto do português europeu quanto do
arcaico. O segundo, menos óbvio, é o fato de que a posição pré-verbal não é
própria do sujeito, entendido como argumento externo do verbo, mas pode ser
preenchida por qualquer constituinte do VP. (...) estudos diversos têm afirmado o
caráter de língua de tópico do português brasileiro (cf. entre outros Galves, 1987 e
Negrão 1999). O português médio também pode ser caracterizado como língua de
tópico, no sentido de que o elemento pré-verbal não é, como nas línguas de
sujeito, obrigatoriamente o sujeito.
(GALVES, 2007, p.523)
No século XVIII, além disso, ocorreram outras mudanças relevantes para
o estatuto do português brasileiro. Em 1758, o Marquês de Pombal, expulsa os
jesuítas a fim de tirar os intermediárioa no processo de colonização do Brasil e
proíbe o uso da língua geral – daí Galves afirmar que o português falado no
século XVIII, cuja gramática já é a do PE, é relevante na formação do PB. Nessa
época também, são feitas as primeiras alusões ao português falado no Brasil (cf.
24 Benincà e Cinque (1990) apresentam ainda outros argumentos para evidenciar as particularidades da ordem enclítica através das estruturas de coordenação. Argumentos semelhantes são apresentados por Rouveret (1992) e Uriagereka (1995).
67
TEYSSIER, 2007), como, por exemplo, o fato dos brasileiros não distinguirem as
pretônicas abertas (ex: pàdeiro, prègar, còrar) e as fechadas (ex: cadeira,
pregar, morar). Segundo Galves (2007, p.525):
(...) o PB atual já estava na mente dos brasileiros do século 18 e (...) a mudança
em Portugal não chegará a afetar a aquisição das gerações futuras. O seu papel
de fato se limitará a modificar a língua de prestígio e introduzir um terceiro termo
na competição de gramáticas instanciada nos textos (cf. CARNEIRO, 2005)
A análise de Galves, Britto e Paixão de Sousa (2005) confirma que a
mudança relevante na sintaxe do PE ocorre no século XVIII. Para o seu estudo
as autoras consideram três contextos que apresentam variação entre próclise e
ênclise: Sujeito-V, Advérbio-V e Sintagma Preposicional-V. A tabela a seguir
mostra os resultados da colocação enclítica nos contextos mencionados pelas
autoras:
68
Tabela 2.4: Colocação enclítica com Sujeito-V, Advérbio-V e Sintagma Preposicional-V
As autoras trabalham, ainda, com outros dois contextos que apresentam
variação, como é possível verificar nos gráficos abaixo: verbo no início da
segunda coordenada (a) e do verbo precedido por uma oração dependente (b)
(p.49/50):
69
(a) Achou-os ditosamente, falou-lhes, e rendeu-os a largarem aquela
vida brutal, e virem a ser filhos da Igreja, e vassalos do Império
Português. (A. Barros, 1675)
Gráfico II: Próclise vs. Ênclise com verbo no início da segunda coordenada.
b) Para começar a render, animou-os com donativos, língua a todas as
Nações não menos intelígivel, que grata. (A. Barros, 1675).
70
Gráfico III: Próclise vs. Ênclise verbo precedido por uma oração dependente
Apesar da variação entre próclise e ênclise ocorrer nos dois casos
mostrados nos gráficos, é interessante notar que há uma grande ocorrência de
ênclise desde o século XVI. Galves, Britto & Paixão de Sousa (op. cit., p.49)
apontam que: “(...) a colocação dos clíticos nesses contextos, que parece muito
idiossincrática, é realmente sensível a fatores prosódicos até o século 18”.
2.3.2 Percurso histórico do português brasileiro
Em relação ao estudo histórico da colocação dos pronomes clíticos no
português brasileiro, serão destacados dois trabalhos em particular:
Cyrino (1990, apud, CYRINO, 1993) realizou um estudo sobre objetos
nulos em PB, utilizando como corpus peças brasileiras escritas entre os séculos
XVIII e XX. A autora analisou, também, a perda do clítico de 3ª pessoa, uma vez
que a maior ocorrência de objeto nulo nos textos ocorre concomitantemente a
essa perda a partir do século XIX. Portanto, a posição dos clíticos em PB
também estaria relacionada ao fenômeno do objeto nulo.
71
Pagotto (1992, apud PAGOTTO, 1993) analisou 1436 dados retirados de
cartas e documentos oficiais brasileiros a partir do século XVI. Com grupos
verbais (V + Infinitivo, V + Gerúndio e V + Particípio), o autor apresenta os
seguintes resultados mostrados na tabela abaixo considerando: a. próclise ao
verbo auxiliar, b. ênclise ao verbo auxiliar, c. próclise ao verbo principal e d.
ênclise ao verbo principal:
Tabela 2.5: Colocação dos pronomes clíticos com grupos verbais:
a b c d T
I 96% 3% 0 1% 75
XVI G 100% 0 0 0 6
P 100% 0 0 0 11
I 97% 0 0 3% 38
XVII G 100% 0 0 0 3
P 100% 0 0 0 27
I 85% 0 2% 14% 59
XVIII G 80% 0 20% 0 5
P 100% 0 0 0 15
I 67% 17% 0 17% 12
XIX G 100% 0 0 0 1
P 89% 11% 0 0 18
I 11% 3% 50% 36% 36
XX G 8% 0 84% 8% 13
P 75% 0 25% 0 8
Total 80% 2% 10% 8% 100%
(261) (7) (33) (26) (327)
72
Os dados mais interessantes para esta discussão são os das colunas a e
c. Como é possível verificar na tabela, a próclise ao primeiro verbo (coluna a) é
majoritária do século XVI ao século XVIII (13). Nesta colocação, ocorre a subida
do clítico25 e é possível perceber que, a não ser com o particípio, esse tipo de
colocação tornou-se rara em PB.
(13) “... afim deque entrando povo, quesem estabelecimento o não quer
fazer ...” (Documentos históricos do Espiríto Santo, 1ª metade do
século XVIII, apud PAGOTTO, 1993, p.191).
A coluna c mostra a colocação inovadora do PB atual, pois com exceção
de um dado do século XVIII – que, inclusive, o autor aponta como duvidoso – a
colocação com o clítico anteposto ao segundo verbo (tipo c) surge somente no
século XX (14):
(14) “Estamos nos deliciando com a presença da Sylvinha” (Arquivo de
cartas pessoais S. L., — 2ª metade do século XX, apud
PAGOTTO, 1993, p.191)
O autor explica essas colocações da seguinte forma (PAGOTTO, 1993,
p.193):
Ao tentar dar conta da cliticização em estruturas com dois verbos em
que o primeiro verbo subcategoriza uma S, os pesquisadores optam por dois
caminhos básicos: ou entendem que no processo de cliticização há algum tipo
de reestruturação, em que os dois verbos formam uma espécie de complexo
verbal, e a cliticização ao primeiro verbo passa a ser lícita, tal como em
estruturas em auxiliares (RIZZI, 1976; DUARTE, 1983; e mesmo ROUVERET,
1989); ou optam por trabalhar com um movimento independente do clítico, da
sentença mais baixa para a sentença mais alta, razão por que ficou conhecido
como subida do clítico (no inglês clitic climbing) (cf. KAYNE, 1989). (...)tentarei
25 Quando o clítico é argumento de um predicado e se cliticiza ao auxiliar ou modal, geralmente pela presença de um atrator, ocorre a subida do clítico. Isto ainda é possível no PE, mas muito raro no PB: (i) eu disse que lhe tinha dado o dinheiro. (PE) (ii) eu disse que tinha lhe dado o dinheiro. (PB)
73
argumentar por que, no presente caso, é mais interessante tratar o português
clássico pela segunda vertente.
Em relação à questão dos grupos verbais, Cyrino (1993) afirma,
confirmando os resultados de Pagotto (op. cit.), que no século XVIII, o clítico
podia subir para uma posição até acima de NEG (13). No século XX, contudo,
ele está sempre proclítico ao verbo mais baixo numa locução verbal (14),
No século XX, além disso, a autora verificou que a variante pós-verbal
ficou restrita ao pronome de terceira pessoa quando há um infinitivo. É possível
verificar na tabela 2.5 que esta colocação (coluna d) tem, realmente,
porcentagens muito baixas.
A fim de confirmar a semelhança nos dados dos dois autores, apresento
a seguir uma tabela com os resultados dos estudos de Cyrino (op. cit.) e Pagotto
(op. cit.) quanto às locuções com gerúndio e infinitivo pessoal, na qual é possível
verificar a semelhança no resultado de ambos os estudos:
Tabela 2.6: Ênclise com gerúndio
Cyrino Pagotto
1ª met. séc. XVIII 100% 96%
1ª met. séc. XIX 100% 100%
2ª met. séc. XIX 100% 89%
1ª met. séc. XX 25% 89%
2ª met. séc. XX a 66% 67%
2ª met. séc. XX b 0% -
Tabela 2.7: Ênclise com infinitivo pessoal
Cyrino Pagotto
1ª met. séc. XVIII 100% 94%
1ª met. séc. XIX 100% 100%
2ª met. séc. XIX 86% 93%
1ª met. séc. XX 56% 100%
2ª met. séc. XX a 25% 25%
2ª met. séc. XX b 0% -
74
Em seguida, Cyrino apresenta uma tabela de resultados com o pronome
proclítico ao verbo principal em locuções verbais, equivalente à coluna c de
Pagotto (op. cit.) na tabela 2.5:
Tabela 2.8: Pronome proclítico ao verbo principal em locuçãoverbal estrutura matriz
1ª met. séc. XVIII 0%
1ª met. séc. XIX 7,7%
2ª met. séc. XIX 17,6%
1ª met. séc. XX 52,9%
2ª met. séc. XX a 63,6%
2ª met. séc. XX b 100%
Esses dados com locuções verbais mostram, portanto, um aumento no
uso da próclise ao verbo auxiliar e decréscimo no uso da ênclise tanto ao verbo
auxiliar quanto ao verbo principal ou a próclise ao verbo auxiliar. Sendo assim,
no século XX o clítico se fixa no verbo mais baixo. Como, também havia
atestado Pagotto (1993) na tabela 2.5.
Sendo assim, Cyrino afirma que, na primeira metade do século XVIII são
comuns sentenças como:
(15) João queria falar-lhe.
(16) João queria-lhe falar.
(17) João lhe queria falar.
No decorrer do tempo sentenças do tipo (18) começam a aumentar, como
mostra a tabela acima:
(18) João queria lhe falar
75
A autora confirma que, mesmo quando há partícula atratora de próclise, o
clítico, no século XX, mantém a tendência de fixar-se à esquerda do verbo
principal:
Tabela 2.9: Posição do clítico em presença de partícula atrativa
NEG/CP cl “AUX” 26 V NEG/CP “AUX” cl V
1ª met. séc. XVIII 100% 0%
1ª met. séc. XIX 87,5% 12,5%
2ª met. séc. XIX 90% 10%
1ª met. séc. XX 0% 100%
2ª met. séc. XX a 20% 80%
1ª met. séc. XX b 0% 100% Os dados da autora mostram, portanto, que no PB atual, em uma oração
com verbo simples o clítico está afixado ao V que carrega concordância. Já em
uma locução verbal, o clítico está afixado ao V mais baixo que não carrega
concordância.
(19) João me deu o livro.
(20) João vai me dar o livro.
(21) * João me vai dar um livro.
A esse respeito, Cyrino (1993, p. 170 / 171) afirma que:
Uma vez que (10)27 é impossível em PB atual, mas costumava ocorrer no PB
do século XIX e séculos anteriores, propus naquele estudo, que a mudança que
houve em relação à cliticização do pronome átono em PB estaria relacionada ao
fato de este pronome ter sido livre para, ou subir, ou manifestar-se em alguns
casos (imperativas afirmativas, estruturas gerundivas ou com infinitivo pessoal)
com ênclise. Atualmente, porém, o clítico é quase exclusivamente afixado à
esquerda do V mais baixo.
26A autora considera “auxiliar” tanto os verbos auxiliares como os modais e aspectuais também. 27 (10) está renumerado neste trabalho como 21.
76
Minha proposta incluía a observação de que para esta mudança ocorrer,
houve uma reanálise para a posição do clítico, a partir de sentenças matrizes
(root) contendo locução verbal, onde a ênclise era possível ao verbo “auxiliar”.
Assim, ao ouvir sentenças do tipo:
(11) João vai-me dar um livro
a criança pode ter interpretado o pronome não como enclítico ao verbo “auxiliar”, mas
como proclítico ao principal.
Cyrino (op. cit.) argumenta que esses resultados dão fortes indícios que a
mudança da posição dos pronomes clíticos, de ênclise majoritária em PB para
próclise está relacionada ao fenômeno do objeto nulo e apresenta a seguinte
tabela com seus resultados:
Tabela 2.10: Objetos nulos no tempo (dados Cyrino, 1990a, apud 1993)
Século Objetos Nulos (%)
1ª met. XVIII 14.2
1ª met. XIX 41.6
2ª met. XIX 23.2
1ª met. XX 81.7
De acordo com a autora, seus dados mostram que no século XVIII havia
85% de ocorrência de clíticos contra 17% de posições vazias – objetos nulos, na
primeira metade do século XIX, a ocorrência dos clíticos cai para 58% contra
42% de sentenças sem clítico.
Finalmente, após o relato do percurso histórico percorrido pelo PE e pelo
PB, temos que, ao longo do século XVII, emergiu em Portugal uma nova
gramática que se estabelece nos textos escritos no século XIX e acarreta uma
nova competição das gramáticas utilizadas nos textos brasileiros.
Há, no Brasil, do século XVIII ao XIX um aumento considerável de ênclise
seguido imediatamente de seu decréscimo. Este é um dado incomum, em
situação de competição de gramáticas, pois há, primeiramente, uma mudança
77
gramatical, no caso de próclise para ênclise e logo em seguida a língua volta a
usar a variante pré-verbal.
Carneiro (2005, apud GALVES, 2007, p.525), em sua analise de cartas
pessoais escritas entre 1809 e 1907, confirma esse aumento da ênclise em
textos brasileiros escritos no século XIX, como se pode verificar no gráfico a
seguir:
Gráfico IV: Ênclise em sentenças não dependentes por período de tempo
A esse respeito, Galves sugere que essa alteração – próclise - ênclise –
próclise novamente - não é resultado do efeito de uma mudança gramatical e
sim “de um empréstimo crescente, durante o século 19, de construções
produzidas por uma gramática de maior prestígio” (GALVES, 2007, p.526). Logo,
essa mudança ocorrida em Portugal no século XVIII não influencia a Língua
Interna desenvolvida no Brasil, mas somente a Língua Externa, como é possível
verificar na competição entre duas gramáticas atestada nos textos escritos no
século XIX no Brasil.
Por sua vez, o estudo de Pagotto e Duarte (2004) confirma as
constatações anteriores. Os autores analisaram a colocação dos clíticos em um
conjunto de cartas escritas entre 1879 e 1892 pelo casal Cristiano Benedito
78
Ottoni (nascido em 1811) e Barbara Albina Ottoni (nascida em 1822) aos seus
netos. De acordo com Pagotto e Duarte (op. cit., p.2): “Suas cartas representam
uma espécie de instantâneo entre dois mundos: o do português brasileiro
vernáculo e o do português normativo. Ambos estavam em formação nesse
período (...)”
Os brasileiros daquela época tinham que optar ou por uma norma culta
que ainda se encontrava em construção e tinha características marcantemente
europeias (com padrão enclítico), ou por um português popular (proclítico) que,
apesar de não receber respaldo normativo, cada vez mais fazia parte dos seus
hábitos liguísticos.
Foi atestada uma diferença substancial entre os avós, como pode ser
visto na tabela abaixo (PAGOTTO & DUARTE, 2004, p.7):
Tabela 2.11. Posição dos clíticos vs contexto sintático Avó Avô Próclise Ênclise Próclise Ênclise Operadores 27(100%) 0 25(100%) 0 Prep+infin. 2 (100%) 0 1 (17%) 5 (83%) Sprep 8 (100%) 0 1 (50%) 1 (50%) Coord. 6 (86%) 1 (14%) 1 (14%) 6 (86%) SN sujeito 4 (80%) 1 (20%) 2 (50%) 2 (50%) Iníciode oração 1 (100%) 0 0 4 (100%) Início absolute 3 (60%) 2 (20%) 0 9 (100%) Total 51(93%) 4 (7%) 30 (53%) 27(47%)
Através desses dados, os autores concluem que o casal (PAGOTTO &
DUARTE, op. cit., p.11):
(...) se encontra em campos opostos: o avô senador do império, cioso
de seu papel na educação dos netos, procuraria imprimir a seu texto uma marca
linguística modelar, a fim de que eles aprendessem a boa linguagem. Já a avó
traduziria nas cartas uma gramática mais próxima do português coloquial de
então.
Como veremos no capítulo seguinte, o corpus desse estudo, apesar de
representar o início do século XX têm características próximas aos padrões
79
verificados no final do século XIX. Observa-se que o padrão culto se apia na
norma lusitana para a língua escrita, porém, é possível verificar, mesmo em
textos escritos com características próprias do português brasileiro vernacular do
período, bem como nas cartas da avó.
A seguir, será apresentado um apanhado dos trabalhos linguísticos que
abordaram a colocação dos pronomes clíticos em períodos mais recentes. Será
realizado um contraponto entre esses estudos e as regras prescritas pelas
gramáticas normativas para o fenômeno em questão, e sua interação com
outras características da língua, tais como: o tipo de pronome analisado e o
rearranjo no quadro pronominal brasileiro devido à entrada do você no lugar do
tu e do a gente em concorrência com nós.
2.4 A colocação dos pronomes clíticos no século XX
2.4.1 Questões fonológicas, morfológicas e sintátic as.
A investigação da colocação dos clíticos, na verdade, deve ser
compreendida como um tema que possui diversas interfaces, por essa razão
vem sendo estudado por tantos pesquisadores. Além disso, por também
abranger questões fonológicas e morfológicas, seu posicionamento não pode
ser analisado como um fenômeno estritamente sintático. Do ponto de vista
fonológico, por exemplo, é necessário averiguar quais são os elementos
prosódicos e acústicos que determinam o parâmetro da colocação. Quanto à
morfologia, deve-se verificar qual é a natureza dos pronomes átonos em cada
uma de suas variedades. Já em relação à sintaxe, é preciso considerar as
estruturas gramáticais internas da língua (cf. Galves e Abaurre, 1996).
A esse respeito, Said Ali (1957) já afirmava que o deslocamento do
pronome se dá devido a uma atração puramente fonética:
Vagamente falando, não se erra dizendo que é questão de ouvido. Escapam, de
fato, à sintaxe, escapam à gramática tradicional, mas não se engana na
aplicação prática quem tem o sentimento da linguagem. (...) Que o ouvido
tem de ser consultado prova-o melhor ainda o caso do infinitivo com flexão
80
pessoal. Basta a sílaba átona da desinência para que ao português clássico
repugne o acréscimo do pronome, isto é, de outra sílaba átona.
(SAID ALI, 1957, p. 29,30)
Dessa forma, o autor reconhece que esta questão não pode ser analisada
apenas sob o viés sintático, mas, sim, através de uma perspectiva sintático-
fonológica: “(...) a pronúncia brasileira diversifica da lusitana; daí resulta que a
colocação pronominal em nosso falar espontâneo não coincide perfeitamente
com a do falar dos portugueses” (Said Ali, 1969, p.279 apud Bechara
2002[1999]:587).
Paulo Duarte, no prefácio do Dialeto Caipira, de Amadeu Amaral (1976
[1920], p.32) faz a seguinte afirmação, no mesmo viés do raciocínio de Said Ali:
Fato inegável é a grande diferenciação entre a prosódia brasileira e a
portuguesa. Os nossos acentos, lembra Amadeu, na prolongação total de um
grupo de palavras, não são os mesmos que teria esse grupo em boca portuguesa;
as pausas que dividem tal grupo na linguagem corrente são mais abundantes e
diferentemente distribuídas entre nós. O mesmo relativamente à duração das
vogais duas vezes mais longas, talvez no falar brasileiro.
Galves e Abaurre (1996) realizaram um estudo sobre essa questão, e
afirmam que em Portugal, os pronomes são realmente átonos, o e final em me,
te, se é tão abafado que mal se ouve. Já no Brasil, há uma certa acentuação
quando o pronome vem antes do verbo, pronunciando-se mi, ti, si. Os
portugueses possuem um ritmo mais acelerado na fala, portanto a ligação entre
as palavras é mais comum, enquanto a pronúncia brasileira é mais cadenciada.
Outro estudo, que aborda a questão fonológica na colocação dos clíticos
é Nunes (1993). O autor observa que a cliticização no português brasileiro
passou a ser direcionada fonologicamente da esquerda para a direita e não o
contrário, como é o caso do português europeu. Portanto, em exemplos com
locuções verbais como (22) do PB e (23) do PE, tem-se no primeiro caso
próclise ao verbo principal e no segundo ênclise ao verbo auxiliar, que é
inclusive marcada pelo hífen.
81
(22) João tinha me visto
(23) João tinha-me visto
(NUNES, 1993, p.214)
De acordo com Carvalho (1989, apud NUNES, 1993), em PE os clíticos
estão sempre enclíticos fonologicamente, portanto a cliticização ocorre da direita
para a esquerda. Essa é uma das razões que bloqueiam as sentenças iniciadas
por clíticos em PE. Trabalhos de Mattos e Silva (1990, apud NUNES, 1993)
sustentam a hipótese de que em português antigo a cliticização também ocorria
da direita para a esquerda. Em PB moderno, contudo, a direção da cliticização é
da esquerda para a direita, portanto permite que os clíticos ocorram em início de
sentença.
Autores de gramáticas normativas, como Bechara (2002 [1999]), também
admitem que para explicar este fenômeno no português brasileiro é preciso
considerar um conjunto de fatores rítmicos, estilísticos e históricos, entre outros.
Cunha & Cintra (2001), ao final da sua explicação acerca da colocação
pronominal, fazem observações quanto às diferenças entre o PB coloquial e o
PE. Eles atentam, por exemplo, para o fato da possibilidade do pronome átono
iniciar a sentença (24); indicam a prefêrencia pela próclise em sentenças
absolutas, principais e coordenadas, mesmo não havendo atratores (25); e
observam a próclise ao verbo principal em locuções verbais (26).
(24) – Me desculpe se falei demais.
(Érico Veríssimo, apud CUNHA &CINTRA, 2001, p.317)
(25) – Se Vossa Reverendíssima me permite, eu me sento na rede.
(José Montello, apud CUNHA &CINTRA, 2001, p.317)
(26) Será que seu pai não ia se dar ao respeito?
(Autran Dourado, apud CUNHA &CINTRA, 2001, p.317)
82
Esses autores valem-se de uma citação do Professor Martinz de Aguiar
para justificar esta última colocação. Bechara (op. cit) utiliza o mesmo trecho,
porém também como explicação do pronome átono em posição inicial no
período:
A colocação de pronomes complementos e português não se rege pela fonética,
nem é o ritmo, o mesmo binário-ternário, em ambas as modalidades, brasileira
e lusitana, que impõe uma colocação aqui, outra ali, não. Ela obedece a um
complexo de fatores, fonético (rítmico), lógico, psicológico (estilístico), estético,
histórico, que às vezes se entre-ajudam e às vezes se contrapõem. Numa frase
como ele vem-me ver, geral em Portugal, literária no Brasil, o fator lógico
deslocou o pronome me do verbo vem, para adjudicá-lo ao verbo ver, por ser ele
determinante, objeto direto, do segundo e, não, do primeiro. Isto é: deixou a
língua falada no Brasil de dizer vem-me ver (fator histórico, por ser mera
continuação do esquema geral português), para dizer vem me-ver (escrito sem
hífen), que também vigia na língua, ligando-se o pronome ao verbo que o rege
(fator lógico). Esta colocação de tal maneira se estabilizou, que pouco se diz
vem ver-me e trouxe consequências imprevistas:
1ª) Pôde-se juntar o pronome ao particípio, procliticamente:
Aqueles haviam se-corrompido.
2ª) Pôde-se pôr o pronome depois dos futuros (do presente e do
pretérito: Poderá se-reduzir, poderia se-reduzir). Deixando de ligar-se
aos futuros, para unir-se ao infinitivo, deixou igualmente de interpor-se-
-lhe aos elementos constitutivos.
3ª) Em frases como vamos nos-encontrar, deixando o pronome de
pospor-se à forma verbal pura, para antepor-se à nominal, deixou
igualmente de determinar a dissimilação das sílabas parafônicas,
podendo-se então dizer vamo-nos encontrar.
(MARTINZ DE AGUIAR, apud BECHARA, 2002
[1999],p. 591 e CUNHA &CINTRA, 2001, p.318)
Apesar destas considerações finais, no entanto, os gramáticos normativos
não citam os diversos resultados de pesquisas linguísticas desenvolvidas acerca
da colocação pronominal no PB. Assim, para a gramática tradicional, a norma
para o uso dos pronomes clíticos no português brasileiro continua baseada nas
constatações a respeito do padrão lusitano. Apesar de apresentarem algumas
83
observações sobre o PB, essas obras não adotam como corretas algumas
variações que já são verificadas, inclusive, entre falantes letrados.
Além disso, também desconsideram os trabalhos que demonstram que o
uso dos clíticos depende não somente de fatores linguísticos, mas também de
aspectos extralinguísticos, tais como a escolaridade e a região de onde provem
o indivíduo, como, mais uma vez, já havia notado Said Ali:
As línguas alteram-se com a mudança de meio; e o nosso modo de falar diverge
e há de divergir, em muitos pontos da linguagem lusitana. (...) A verdadeira
conclusão científica não pode ser senão esta: em Portugal é certa a colocação
peculiar dos pronomes por ser de uso geral; no Brasil também é certo o nosso
modo de empregar os pronomes por ser igualmente de uso geral. Em que pese
aos gramáticos, o único critério para julgar da correção da linguagem é, como
muito bem diz o filólogo SAYCE: Custom alone can determine what is right and
wrong, not the dictum of grammarians, however eminent. (SAID ALI, 1957, p.53)
O PB, como já mencionado anteriormente, apresenta próclise
generalizada ao verbo principal, flexionado ou não. Para corroborar esta
afirmação, vale lembrar o estudo de Schei (2003), também baseado no material
do projeto NURC. A autora mostra que a próclise é predominante, ocorrendo em
cerca de 90% dos casos.
Assim, a variante pré-verbal tornou-se o padrão básico nos domínios
finitos e não finitos, tanto em orações independentes ou coordenadas como em
orações subordinadas e imperativas. Vieira (2004) é outro estudo em que
encontramos a afirmação de que a próclise no PB é a colocação categórica,
mesmo com a presença de elementos não atratores em posição pré-verbal,
entre eles, um SN sujeito, como mostra o exemplo (27).
(27) O menino se referiu ao fato (VIEIRA, 2004, p.198)
Ademais em PB, também são comuns casos em que o pronome aparece
em posição inicial absoluta da sentença (V1) no lugar do verbo, sendo essa a
grande inovação do português brasileiro, uma vez que não há nenhum exemplo
84
desse tipo de colocação na história do português europeu. Essa propriedade
também influenciou a perda da próclise, ou ênclise, ao auxiliar em determinadas
locuções verbais (cf. TORRES – MORAIS & RIBEIRO, 2005)28:
(28) – Me devolva o livro – disse. (PB)
(29) – Devolva-me o livro – disse. (PE)
(30) – Tem sonhos, se emociona, e está apaixonado por uma mulher
do deserto. (PB)
(31) – Tem sonhos, emociona -se, e está apaixonado por uma mulher
do deserto. (PE)
(TORRES – MORAIS & RIBEIRO, 2005, p.32,33)
Contudo, apesar do uso da variante pré-verbal ser mais produtivo em PB,
a variação ainda existe. A escrita e a fala cultas ainda mantém a ênclise,
principalmente quando a ocorrência da variante pré-verbal é estigmatizada,
como no caso dos contextos do verbo em posição inicial (V1).
Segundo Galves e Abaurre (1996), com a base no corpus do NURC, os
falantes, em situação formal, parecem sustentar a restrição do clítico em
primeira posição, porém as razões pela escolha entre próclise e ênclise não
parecem ser as mesmas do PE. As autoras afirmam que (p.291):
Esses fatos mostram que mesmo quando a sintaxe dos falantes cultos parece
aproximar-se da norma portuguesa, ela tem características próprias (...) as
alternativas próclise / ênclise parecem derivar, também no PB, de
condicionamentos prosódicos.
Além disso, os pronomes acusativos de terceira pessoa estão sempre
enclíticos quando são o objeto de um verbo no infinitivo. Alguns estudos
28 Nesse estudo, as autoras fizeram um levantamento dos dados da obra original O Alquimista, de Paulo Coelho, e sua versão ‘adaptada’ para o português europeu. Voltaremos a tratar desse estudo mais adiante.
85
verificaram ainda que o pronome se indeterminador e o apassivador29 do sujeito
ocorrem enclíticos com maior frequência que o se reflexivo e o inerente (cf.
SCHEI, 2003; VIEIRA, 2003 e 2004; TORRES – MORAIS & RIBEIRO, 2005).
Schei (2003) afirma, portanto, que três contextos apresentam maior variação
entre próclise e ênclise no PB: posição inicial (V1), conjunção coordenativa e
advérbio não proclisador30.
Como apontado anteriormente, apesar destas considerações, as
gramáticas tratam a ênclise, ao invés da próclise, como a posição lógica e
normal do pronome em relação ao verbo, uma vez que o pronome átono ocupa
a função de objeto direto ou indireto do verbo (cf. CUNHA & CINTRA 2001).
Baseando-se no padrão europeu, as gramáticas normativas fundamentam-se na
tradição literária, sem considerar, principalmente, as tendências particulares da
variante falada do português brasileiro.
Dessa forma, para a gramática tradicional a ênclise é obrigatória quando
o verbo abre o período (32), o sujeito vem antes do verbo (33) e nas orações
coordenadas sindéticas (34). Contudo, nos dois últimos casos a anteposição
pode ocorrer, por puro arbítrio ou gosto do falante (cf. ROCHA LIMA, 1962), não
havendo os chamados “elementos proclisadores”. A mesóclise, por sua vez, é a
posição obrigatória quando o tempo verbal da sentença é o futuro do presente
ou pretérito (condicional) (35).
(32) Deu-me a notícia (BECHARA, 2002 [1999], p. 587)
(33) Os dois amavam-se desde criança. (ROCHA LIMA, 1962, p.475)
(34) Persegui-o, mas ele fugiu-me. (ROCHA LIMA, 1962, p.476)
29 Nesse estudo será adotada a seguinte nomenclatura para os diversos tipos de se: se reflexivo - o João se machucou; se apassivador - o anel se quebrou ; se indeterminador - discutiu – se o aumento da mensalidade;) e se inerente - ele se arrependeu do preço que cobrou. 30 A autora considera que advérbios como agora, então e aí (no sentido de então) não provocam próclise, como outros advérbios o fazem. Na fala essas palavras funcionariam como marcadores conversacionais.
86
(35) Teodomiro recordar-se-á ainda de qual foi o desfecho do amor de
Eurico. (Alexandre Herculano, apud BECHARA, op. cit., p.589).
Com o infinitivo solto, a escolha da ênclise ou próclise é facultativa, porém
Cunha & Cintra (op. cit.) apontam que há uma tendência para a primeira (36).
Rocha Lima (op. cit.) também prescreve a posposição, exceto no caso do
infinitivo estar na forma pessoal (37). Quanto ao gerúndio solto, o pronome mais
uma vez deve vir posposto ao mesmo (38) :
(36) Viver é adaptar-se. (ROCHA LIMA, 1962, p.478)
(37) Não nos cansarmos demais – foi a recomendação primeira do
médico. (ROCHA LIMA, 1962, p.479)
(38) O Professor entregou o prêmio ao filho, abraçando-o com emoção.
(ROCHA LIMA, 1962, p.479)
A próclise é preferencial nos seguintes casos, em que há os chamados
“ativadores de próclise”:
a. quando o pronome é precedido palavras negativas, como não, nunca,
jamais, ninguém e nada:
(39) Ninguém nos convencerá da tua culpa.
(ROCHA LIMA, 1962, p.477)
b. em orações iniciadas por pronomes e advérbios interrogativos, do tipo
quem, por que e como:
(40) Quem me explicará a razão dessa diferença?
(Machado de Assis, apud BECHARA, 2002 [1999], p.589)
87
c. em orações iniciadas por palavras exclamativas, bem como nas que
exprimem desejo (optativas):
(41) Bons ventos o levem! (BECHARA, 2002 [1999], p. 591)
d. nas orações subordinadas desenvolvidas, mesmo que a conjunção
esteja oculta:
(42) Confesso que tudo aquilo me pareceu obscuro.
(Machado de Assis, apud BECHARA, 2002 [1999], p. 588)
e. com gerúndio regido pela preposição em:
(43) Ninguém, desde que entrou, em lhe chegando o turno, se
conseguirá evadir à sala.
(Rui Barbosa, apud BECHARA, 2002 [1999], p.591)
f. com certos advérbios,como bem, mal, ainda, já, sempre, só, talvez, ou
com expressões adverbiais (44) – quando não há pausa que os separe, pois
esta entre o atrator e o verbo licencia a ênclise(47) (cf. CUNHA & CINTRA,
2001) :
(44) Sempre me recebiam bem. (BECHARA, 2002 [1999], p. 589)
(45) Ele esteve alguns instantes de pé, a olhar para mim; depois
estendeu-me a mão com um gesto comovido.
(Machado de Assis, apud BECHARA, 2002 [1999], p. 589)
g. quando a oração se inicia por objeto direto ou predicativo:
(46) Tiram mais que na ceifa; isso te digo eu.
(Alves Redol, apud CUNHA & CINTRA, 2001, p.309)
88
h. quando o sujeito da oração contém o numeral ambos ou algum dos
seguintes pronomes indefinidos: todo, tudo, alguém, outro, qualquer, etc :
(47) Todos os barcos se perdem,
entre o passado e o futuro.
(Cecília Meireles, apud CUNHA & CINTRA, 2001, p.313)
i.nas orações alternativas:
(48)– Das duas uma: ou as faz ela ou as faço eu.
(Sttau Monteiro, apud CUNHA & CINTRA, 2001, p.313)
Segundo estudos linguísticos, porém, para compreender melhor a
colocação dos pronomes clíticos em PB, é preciso verificar: 1. mudança do
paradigma dos pronomes pessoais 2. características intrísecas de cada
pronome clítico; 3. características particulares de certos verbos e de
determinadas construções; e 4. certos contextos sintáticos;
2.4.2 Quadro dos pronomes pessoais
Para uma melhor abordagem da questão da colocação dos pronomes
clíticos, faz-se necessária a apresentação do quadro dos pronomes pessoais
como um todo. De acordo com estudos linguísticos, mudanças ocorridas com os
pronomes tônicos acarretaram variação em relação ao uso dos pronomes
átonos.
Em relação aos pronomes tônicos, gramáticas como a de Cunha & Cintra
(2001), Rocha Lima (1962) e Bechara (2002 [1999]) apresentam um quadro
amplo dos pronomes pessoais. Curiosamente, os autores acrescentam formas
pouco usadas ou em desuso no território nacional, como tu e vós, em detrimento
a formas amplamente utilizadas como você(s) e a gente. Inclusive, a respeito
dessas, são feitas apenas pequenas observações, comumente apresentando a
primeira na sessão sobre pronomes de tratamento, e a segunda apenas
89
caracterizada como o substantivo gente precedido de a, utilizado coloquialmente
para fazer referência a um grupo de pessoas que inclui a que fala (cf. Bechara
2002 [1999]).
Lopes e Rumeu (s/d) afirmam que diversos estudos comprovam que o
uso majoritário do tu é substituído por você por volta dos anos 20-30 do século
XX. Contudo, Menon (s/d) aponta que já no século XVIII, você era utilizado ao
lado de tu, como na peça Esopaída, de 1734.
Verificou-se também um retorno do pronome tu à fala carioca sem marca
flexional de segunda pessoa no século XX. De acordo com Machado (2006), o
português do Rio de Janeiro apresenta três momentos: a variação entre tu e
você, a consolidação de você e o ressurgimento do pronome tu, sem a marca
flexional de segunda pessoa em classes mais baixas.
Ademais, observa-se certa frequência no uso de tu em Florianópolis,
onde sua utilização é menor que a de você, mas apresenta flexão marcada. E
em Porto Alegre, onde tu é mais comum, porém sem a flexão verbal.
Nas gramáticas tradicionais, os pronomes átonos são apresentados com
características e funções bem definidas. O clítico acusativo ocupa a função de
objeto direto anafórico (49) ou sujeito anafórico de orações infinitas reduzidas de
infinitivo (50) ou de gerúndio (51) que completam os verbos denominados
causativos e sensitivos.
(49) Nunca a encontramos em casa. (Cunha & Cintra, 2001:277)
(50) Mandei-o entrar. (Rocha Lima, 1962:304)
(51) Deixei-as dormindo. (Rocha Lima, op. cit)
Outra forma licenciada de realização do objeto direto de terceira pessoa é
a utilização do pronome reto precedido da preposição a (52), ou do pronome
indefinido todos (53) ou do advérbio só (54). De acordo com Bechara (op. cit), o
pronome ele, no português moderno, pode ser objeto direto se dotado de
acentuação enfática em prosa ou verso (55).
90
(52) Nem ele entende a nós , nem nós a ele.
(Camões, apud ROCHA LIMA, 1962, p.302)
(53) No latim eram quatro os pronomes demonstrativos. Todos eles
conserva o português. (BECHARA, 2002 [1999],p.175)
(54) Em meio a tanto barulho, queria ouvir só ela. (FREIRE 2000, p.5)
(55) Olha ele! ( Eça de Queirós, apud BECHARA 2002 [1999]:175)
Os gramáticos rejeitam a combinação da formas átonas se e o (e flexões)
(56), apresentando como alternativa a omissão do pronome objetivo direto (57a)
ou substituição do pronome o (e flexões) por ele (e flexões) (57b).
(56) * Não se o quer
(57a) Não se quer ___
(57b) Não se quer ele (cf. BECHARA, 2002 [1999],p.180)
Freire (2000), contudo, aponta para o fato de que a categoria vazia e o
pronome reto nas construções (57a) e (57b) são aceitas pelos gramáticos
porque são, na verdade, sujeitos da passiva. Essas sentenças configuram uma
voz passiva sintética ou pronominal, pois o clítico se está junto a verbos
transitivos.
Assim, apesar das exceções descritas acima, as gramáticas normativas
não admitem outra realização do objeto direto se não o uso dos clíticos
acusativos. Não há menção acerca da possibilidade de omitir o objeto anafórico,
nem de retomar o sintagma nominal ou utilizar demonstrativos – estratégias
amplamente utilizadas, inclusive, por falantes cultos, para evitar tanto o uso de
formas estigmatizadas do tipo “vi ele” , como os clíticos acusativos de terceira
pessoa, como veremos nas seções seguintes.
91
Por sua vez, os clíticos dativos ocupam a função de objetos indiretos
anafóricos (58a) podendo ser substituídos pelo pronome reto regido pela
preposição a (58b) e também podem ser utilizados com valor possessivo (59):
(58a) Ninguém lhe disse a verdade. (BECHARA, 2002 [1999], p. 589)
(58b) Ninguém disse a verdade a ela.
(59) Escutaste-lhe a voz? Viste-lhe o rosto?
Osculaste-lhe as plantas?
Tocaste-lhe os vestidos resplendentes?
(Fagundes Varela, apud CUNHA & CINTRA, 2001, p.303)
Os pronomes átonos, na forma de objeto indireto, podem substituir
adjuntos adverbiais (60) e (61) (cf. BECHARA, 2002 [1999]).
(60) Deu um abraço no pai - Deu-lhe um abraço
(61) Fugiu de mim - Fugiu-me
Quanto ao clítico se, este tradicionalmente pode ocupar três funções: de
reflexivização (62), formação da voz passiva sintética ou pronominal (63) e a
indeterminação do sujeito (64):
(62) Viu-se ao espelho, cadavérico.
(Tavares Rodrigues, apud CUNHA & CINTRA, 2001, p.305)
(63) Fez-se novo silêncio.
(Coelho Netto, apud CUNHA & CINTRA, 2001, p.306)
(64) Vive-se ao ar livre, come-se ao ar livre, dorme-se ao ar livre.
(R.Brandão, apud CUNHA & CINTRA, 2001, p.306)
92
Além de todos os casos supracitados, há, ainda, verbos que têm como
parte integrante pronomes átonos, por exemplo: admirar-se, apiedar-se,
arrepender-se, indignar-se, queixar-se, suicidar-se, vangloriar-se, etc. Segundo
Cunha & Cintra (op. cit.) são verbos que geralmente exprimem sentimento ou
mudança de estado, e para Rocha Lima (op.cit.) estes são pronomes sem
função, estão “fossilizados”.
2.4.2.1 Mudança no paradigma e uso dos pronomes clí ticos
Além de desconsiderar a introdução e o uso frequente das formas você e
a gente pelos falantes de PB, como abordado na seção anterior, a tradição
gramatical ignora o desaparecimento gradativo das formas pronominais átonas
de 3ª pessoa e aparecimento das formas nulas. Levando esses fatores em
consideração, nesta seção, portanto abordarei estudos que descrevem o
estatuto dos pronomes clíticos no PB atual.
Cyrino (1993, p.175), citando o estudo de Duarte (1986) e Corrêa (1991),
faz a seguinte afirmação:
Uma mudança paramétrica deve estar relacionada a outras mudanças na língua.
Através da análise de dados diacrônicos, há motivos para supor que a reanálise
que levou ao objeto nulo do PB estaria relacionada às reanálises diacrônicas que
levaram à mudança no sistema de clíticos dessa língua. Todas essas mudanças
teriam tido como consequência, então, a refixação do parâmetro relacionado ao
objeto nulo.
A autora, em seguida, apresenta a seguinte tabela para mostrar a
mudança na ocorrência dos clíticos no período entre os séculos XVI e XX:
93
Tabela 2.12: Tipo de preenchimento através do tempo (% sobre total de preenchimento * = uma ocorrência; ** clítico plural
Período Cl. Cl. Cl. Cl. Tônico Tônico Tônico
1ª p. 2ª p. 3ª p. “o” 1ª p. 2ª p. 3ª p.
(NP) (prop)
1ª XVI 29.0 29.4 34.8 6.8 - -
2ª XVI 30.6 12.6 43.3 13.5 - -
XVII 20.3 16.4 52.3 11.0 - -
1ª XVIII 36.5 19.3 37.8 6.4 - -
2ª XVIII 40.1 15.8 37.0 7.1 - -
1838-44 32.5 10.7 51.2 5.1 - - 0.5*
1857 23.3 11.4 57.9 2.8 0.6* - 4.0
1891 15.9 12.1 48.1 2.8 - - 11.1
1940 49.1 22.4 26.7 - 0.9* - 0.9*
1960 51.1 - 16.3 - 2.2* 11.9 18.5
1973 28.0 24.0 4.0** - - - 44.0
Diversos trabalhos confirmam os resultados do quadro, uma vez que
constataram a queda na frequência dos clíticos dativos e acusativos de 3ª
pessoa no português brasileiro. Além disso, nas raras vezes em que os dativos
são utilizados, a forma é mantida, porém o uso é de segunda pessoa (cf.
GALVES, TORRES-MORAIS & RIBEIRO, 2005). Ainda, observa-se que este
fato influenciou no desaparecimento, na língua falada, dos grupos de clíticos:
mo, to, lho, lha, no-lo, se-lhe, etc. Galves e Abaurre (1996, p.90) notam que a
quantidade de clíticos de 3ª pessoa no corpus brasileiro é muito menor que no
europeu, confirmando esses fatores expostos acima. E concluem:
(...) a menor frequência de uma construção pode ser devida ao fato de ser tal
construção não mais um produto da gramática do falante (sua língua-I), mas um
vestígio de estágios anteriores da língua. É o caso dos clíticos de terceira pessoa,
que os seguintes fatos, além de sua raridade nos corpora, evidenciam como fóssil:
- são totalmente ausentes da fala de crianças em idade pré-escolar (Duarte,
1989), o que aponta para sua aprendizagem tardia.
94
- na língua dos adultos escolarizados, aparecem nitidamente como uma escolha
estilística. No corpus do projeto NURC usado por Abaurre e Galves, que totaliza
quinze entrevistas, uma só locutora é responsável por metade das ocorrências.
- é fortemente favorecido pela forma infinitiva do verbo, que também condiciona
a posição rara do clítico, a ênclise. No PE, todos os clíticos apresentam a mesma
distribuição.
- em próclise, obedece a uma regra de colocação distinta da dos outros clíticos
(ele tem que se adjungir ao auxiliar, quando os outros se adjungem ao verbo
temático).
- os grupos clíticos formados de um clítico dativo e um clítico acusativo de
terceira pessoa mo, to, lho, no-lo, vo-lo, são totalmente ausentes da fala dos
locutores do PB.
Todos os fatos arrolados acima constituem evidências de que o PB e o PE
correspondem a duas Línguas – I diferentes.
A ausência dos objetos clíticos de terceira pessoa é, inclusive, um
aspecto importante do PB falado. Diversos estudos31 já atestaram que a perda
deste pronome é praticamente terminante na língua oral, independente da
escolaridade, faixa etária ou sexo do falante. Contudo, Monteiro (1994, apud
MORITO MACHADO, 2007) atesta que os alomorfes dos clíticos acusativos de
3ª pessoa ainda são muito utilizados, pois se tratando de texto escrito, pode-se
dizer que os pronomes o, a (s), após infinitivo verbal, são a estratégia
preferencial dos estudantes para os contextos de ênclise. Sendo assim, é
possível concluir que a escola busca implementar não só o clítico acusativo de
terceira pessoa, mas também este na posição enclítica.
Existem três estratégias para a substituição dos clíticos: uso pronome
nulo anafórico no lugar do clítico (65a e b); a retomada do próprio sintagma
nominal (66a e b); e o uso do pronome tônico (67a e b). Neste último caso, o uso
da preposição evita que o pronome seja usado na posição de objeto direto, pois
esta ocorrência, muito comum na língua falada, é altamente estigmatizada na
escrita. No entanto, como se pode verificar na tabela 2.12 de Cyrino (1990, apud
31 Cf. Omena (1978), quanto ao Rio de Janeiro, Duarte (1986 e 1989), quanto a São Paulo e Malvar (1996) quanto ao Distrito Federal, todos os textos apud Freire (2000).
95
ALVES, 1993, p.390) esse tipo de preenchimento tornou-se altamente produtivo
no século XX.
(65a) O rapaz acordou uma a uma – (PB) (as ovelhas)
(65b) O rapaz acordou-as uma a uma (PE)
(66a) Então começaram a bater no rapaz. Espancaram o rapaz ...(PB)
(66b) Então começaram a bater no rapaz. Espancaram-no ... (PE)
(67a) Vamos, pergunta a ela! (PB)
(68b) Vamos pergunte-lhe! (PE)
(GALVES, TORRES-MORAIS & RIBEIRO, 2005, p.153,154)
O apagamento das formas lexicais afeta também os clíticos dativos de
terceira pessoa, que são simplesmente apagados (69a e b) ou substituídos por
pronomes possessivos (70a e b):
(69a) Um certo amigo tinha – indicado a loja ... (PB)
(69b) Um certo amigo tinha-lhe indicado a loja... (PE)
(GALVES, TORRES-MORAIS & RIBEIRO, 2005, p.153)
(70a) ... a velha segurava suas mãos (PB)
(70b) ... a velha lhe segurava as mãos (PE)
(TORRES-MORAIS & RIBEIRO, 2005, p.30)
Quanto à relação entre o tipo de pronomes clítico e a sua colocação na
sentença, Lobo (1992) observou que em posição inicial o pronome se aparece
enclítico mais frequentemente do que me. Na mesma linha, Vieira (2004) atesta
que, tanto em PE como em PB, o clítico acusativo de terceira pessoa aparece
enclítico às locuções verbais com mais frequência que os outros. O que leva a
autora a considerar que este pronome teria características sonoras “frágeis” que
o desfavoreceriam dentro de um complexo verbal, por exemplo.
96
Além desse caso, observa-se que o se reflexivo e o inerente tendem a
ficar adjacentes ao verbo principal tanto no PE (71) como no PB (72), ao tempo
que o se indeterminador e o apassivador costuma aparecer ligado ao verbo
auxiliar PE (73) e (74) e PB (75) e (76):
(71) vai encontrar-se
(72) vai se encontrar
(73) tinha-se falado do caso
(74) não se tinha falado do caso
(75) tinha se falado do caso
(76) não tinha se falado do caso
Ainda nesse âmbito, Morito Machado (2007), em seu estudo a partir de
redações escolares de estudantes do Rio de Janeiro, verificou que
principalmente o pronome o/a(s) favorece a ênclise, seguido de lhe e de se, uma
vez que com o clítico acusativo de terceira pessoa a frequência é de 48%, se
indeterminador 23% e lhe 20%. Já os pronomes de primeira e segunda pessoas
desfavorecem a variante pós-verbal.
De acordo com Morito Machado (op.cit.), estes resultados confirmam o
trabalho de Vieira, Nunes & Barboza (2004, apud MORITO MACHADO, 2007),
que também estudaram os fenômeno em redações escolares, concluindo que o
aprendizado da ênclise na escrita escolar começa pelos contextos menos
comuns em relação ao seu uso na fala, como na utilização dos pronomes o, a
(s) em estruturas acompanhadas de infinitivo verbal.
A esse respeito, Nunes (1993, p.217/218) apresenta duas tabelas
adaptadas do trabalho de Corrêa (1991) que demonstram a relevância da
escolaridade na manutenção dos clíticos acusativos de terceira pessoa em PB
escrito:
97
Tabela 2.13: Objetos diretos anafóricos encontrados na fala.
Série % Tipo de
Objeto
Adultos
analfab.
% 1ª / 2ª 3ª / 4ª 5ª / 6ª 7ª /8ª Univers.
Total
%
Obj. Nulo 66,6 72,4 77,7 71,2 71,1 67,8 72,0
Pron. Tônico 25,6 24,1 8,6 19,1 20,1 7,1 18,2
NP Anafórico 7,6 3,4 13,6 7,4 7,6 14,2 8,3
Clíticos - - - 2,1 0,9 10,7 1,3
Tabela 2.14: Objetos diretos anafóricos encontrados na escrita.
Série % Tipo de
Objeto
1ª / 2ª 3ª / 4ª 5ª / 6ª 7ª /8ª Univers.
Total
%
Obj. Nulo 57,5 65,6 52,3 53,5 9,5 51,4
Pron. Tônico 7,5 6,2 15,3 10,7 - 9,8
NP Anafórico 35,0 18,7 13,8 5,3 4,7 15,4
Clíticos - 9,3 18,4 30,3 85,7 23,3
A tabela 2.13 mostra que os clíticos não ocorrem na fala dos adultos
analfabetos e começam a surgir na fala dos alunos somente na quinta e sexta
séries, em uma fase em que já concluiram o período de aquisição da linguagem.
Além disso, o autor aponta que em uma das instâncias computadas dessa faixa
etária há hipercorreção:
(77) para o identificá-lo.
Na tabela 2.14, o uso do clítico por alunos de quarta a oitava são
referentes à 32 instâncias de uso correto. Além deles, Corrêa registrou oito
casos de hipercorreção como em (77). Na escrita dos universitários, contudo, a
autora não encontrou nenhum dado de hipercorreção.
Outros estudos, porém, sobre a escrita de universitários apontam para
exemplos em que há o uso da ênclise em orações subordinadas, relativas e
negativas, nas quais deveria ocorrer próclise. Este fator confirma as pesquisas
98
que demonstraram que tanto a ênclise como os clíticos acusativos e dativos de
3ª pessoa são adquiridos durante a educação formal. Desta maneira, a ênclise
tem uma imagem de forma culta e correta de colocação dos clíticos. Vieira
(2003, p.44) afirma que: “(...) embora se aprenda o Português, no Brasil, como
língua materna, adquiri-se na escola, uma norma muito diferente da que é
naturalmente aprendida, o que sugere uma espécie de situação de ‘diglossia’”.
Schei (op. cit.), no entanto, faz uma observação interessante acerca do
nível de formalidade do texto. Em seu levantamento dos estudos com o corpus
do NURC, a autora verificou que, considerando os diversos tipos de pronome, a
ênclise é mais comum nos DID e D232 dos que nas EF, portanto o nível de
formalidade não estaria favorecendo a variante pós-verbal.
2.4.3. Contextos sintáticos para o estudo da coloca ção dos clíticos
Anteriormente, a questão da colocação dos pronomes clíticos foi
abordada sob o viés de estudos diacrônicos acerca do tema. Nesta última parte
desta subseção, abordarei o fenômeno em diferentes corpus de língua escrita e
oral, a fim de traçar uma sequência para a realização da analise dos dados no
capítulo 3.
Assim, primeiramente, apresentarei características particulares de alguns
verbos que influenciam na colocação do clítico na sentença. Em seguida,
abordarei os contextos relevantes quanto à colocação pronominal. Então,
tratarei dos verbos simples e por fim dos grupos verbais.
2.4.3.1 Características Particulares
Como já mencionado, a ênclise não é somente favorecida por alguns
pronomes, mas certos verbos colaboram com essa variante (cf. SCHEI, 2000 e
32 Abreviações EF, DID e D2 foram utilizadas pelo projeto NURC para denominar três tipos de inquéritos: EF-elocução formal (palestras e aulas); DID - diálogo entre informante e documentador; D2 – diálogo entre dois informantes.
99
2003). Em português brasileiro há certas “formas cristalizadas” 33 que seriam
verbos favorecedores da variante pós-verbal34.
Em 1925, Mário de Andrade já havia observado este fato: “Nós
brasileiros, geralmente antepomos o pronome ao verbo. Geralmente. Tem
porém alguns verbos em que se formou como uma locução de pronome e verbo
com este antes. Assim como o verbo sentar” (apud PINTO, 1990, p. 233,234).
São exemplares dessa categoria: casar-se, chamar-se, tornar-se. No corpus
compartilhado do projeto NURC, foram encontrados três exemplos em que o
pronome está posposto ao verbo em uma frase subordinada, ou seja, em
contexto favorecedor de próclise (cf. Schei, 2003).
Para confirmar a hipótese apresentada, Schei (op. cit) analisa dados do
corpus PEUL35. Nas 15 ocorrências encontradas, as “formas cristalizadas”, mais
uma vez, apresentam maior ocorrência de ênclise (33%) do que os verbos com
se reflexivo/pronominal (7%).
Vieira (2003, 2004), também analisou a questão da colocação
pronominal a partir de corpora de três variantes para a língua falada: Corpus de
Referências do Português Contemporâneo (CRPC)– para o português europeu;
Panorama do Português Oral de Maputo (PPOM) – para o português
moçambicano (doravante PM); o NURC, o PEUL e o Atlas Etnolinguístico dos
Pescadores do Estado do Rio de Janeiro (APERJ) – para o português brasileiro.
Para a modalidade escrita foram analisados editoriais e crônicas de jornais e
revistas dos três países.
A autora verificou que a ênclise pode ocorrer na oralidade, porém não
necessariamente de acordo com a norma prescritiva. Encontra-se ênclise com
formas de futuro (78) e em contextos com “atratores” (79). Sendo assim, não se
sustenta a suposição de que a ênclise no PB pertence esclusivamente à
modalidade escrita.
33 A denominação “formas cristalizadas” foi adotada por Pereira (1981), Schei (2003) aponta para o fato desta nomenclatura talvez não ser a mais adequada, uma vez que estes verbos não tornam a ênclise obrigatória, mas apenas a favorecem. 34 Os estudos sobre este assunto não esclarecem se a ênclise com estes verbos é favorecida com todos os pronomes clíticos ou se apenas com se. 35 PEUL – Programa de Estudos do Uso da Língua. Desta amostra constam gravações com informantes do Rio de Janeiro cuja escolaridade é menor que os do NURC.
100
(78) estudaria-se a questão ... (VIEIRA, 2004, p.198)
(79) o médico viu que trata-se de doença grave (VIEIRA, 2004, p.198)
Estudos sobre o assunto trabalham com a hipótese de hipercorreção
nesses casos, ou seja, os falantes usam a ênclise para parecerem eruditos, mas
erram ao usá-la em contextos de próclise ou mesóclise. Contudo, a autora
observa que não são somente os falantes letrados, que possuem uma noção da
norma prescritiva, que produzem esse tipo de enunciado. Em seu corpus,
grande parte nas ocorrências de ênclise com verbo na 3ª pessoa do singular e
se indeterminador e o apassivador foram realizadas por falantes analfabetos
(80) e (81) (cf. VIEIRA, 2002 apud VIEIRA, 2004).
(80) aqui trata-se embarcação
(81) aqui encontra-se muito camarão (VIEIRA, 2004, p.198)
A autora aponta como possíveis explicações a eufonia, ou que a estrutura
da ênclise com se poderia estar se gramaticalizando em uma estrutura
específica de indeterminação, seguindo o raciocínio de estruturas “cristalizadas”
proposto por Schei (op. cit.).
2.4.3.2 Estruturas com verbos simples
2.4.3.2.1. Contextos V1 e V>1 36
Como dito anteriormente, em sentenças com verbo em posição V1, a
ênclise é categórica em PE, enquanto em PB ela apresenta variação. A próclise
com V1, por sua vez, é favorecida pelo imperativo (82 a e b), no qual os clíticos
acusativos de terceira pessoa o/a(s) comportam-se diferentemente dos outros
36 Considerarei contextos V>1 neste capítulo e no seguinte, as sentenças em que há algum elemento antecedendo o verbo, tais como SN Sujeito, sujeito pronominal, topicalização, uma oração, um advérbio ou uma conjunção coordenada.
101
clíticos – é possível encontrar a sequência inicial me viu, mas não o viu.
Ademais, na variante brasileira, há uma preferência pela realização do sujeito
pronominal, evitando o clítico em posição inicial (83a e b), o que ocorre para
todas as formas de clíticos.
(82a) Me dê um décimo de suas ovelhas (PB)
(82b) Dá-me um décimo de tuas ovelhas (PE)
(TORRES-MORAIS & RIBEIRO, 2005, p.32)37
(83a) Ele me pede coisas e não me deixa dormir ... (PB)
(83b) Pede-me coisas e não me deixa dormir ... (PE)
(TORRES-MORAIS & RIBEIRO, 2005, p.33)
Com a ordem V1, o PB apresenta variação na colocação de acordo com o
contexto em que aparecem: se estão em formas verbais simples ou duplas. Com
as primeiras, a próclise ao verbo flexionado é padrão; com formas complexas, o
pronome aparece proclítico à forma nominal do verbo. Sendo assim, em PE o
pronome está sempre enclítico ao verbo principal, no PB há variação
próclise/ênclise ao verbo principal.
Em contextos com algum elemento antecedendo o complexo verbo +
clítico, em PE, a ênclise é categórica em orações afirmativas raíz (84a e b) a
menos que o verbo esteja no escopo de alguma oração focalizada ou
quantificada (caracterização destes tipos de quantificadores que geram próclise
cf. MARTINS, 1992 e DUARTE,2003).
(84a) Ele me parece mais velho e mais sábio (PB)
(84b) Ele parece-me mais velho e mais sábio (PE)
(GALVES, TORRES-MORAIS & RIBEIRO, 2005, p.146)
37 A maior parte dos exemplos dessa seção foram retirados do estudo de Torres-Morais & Ribeiro, já citado anteriormente, por haver em todo trabalho um interessante parelelo entre construções do PB e do PE.
102
No PB, a variação próclise/ênclise, nestes dois contextos, em que o verbo
encontra-se em posição V1 ou possue antecedente, pode ser interpretada como
efeito de gramáticas em competição, nos moldes de Kroch (2001). Apesar da
ênclise ocorrer em variação com a próclise, ela não seria parte da gramática
adquirida na fase de aquisição da língua materna, e, sim, integrante de uma
outra gramática aprendida na escola, como atestam Corrêa (1991) e Kato (1994)
(apud , TORRES-MORAIS & RIBEIRO, 2005).
Em orações iniciadas por conjunções coordenadas aditivas, adversativas
ou alternativas, a forma pós-verbal é obrigatória no PE. Já no PB, apesar da
variação, a próclise é a colocação normal (85 a e b). Em Portugal, no entanto, a
próclise é evitada, inclusive, através o uso da mesóclise (86a e 86b).
(85a) – ... e me levava até as Pirâmides do Egito. (PB)
(85b) – ... e levava-me até às Pirâmides do Egito. (PE)
(86a) – O dinheiro permite que eu viva melhor, e lhe devolverá as suas
ovelhas em pouco tempo. (PB)
(86b) – O que eu ganho permite-me viver melhor, e devolver-te-á as tuas
ovelhas em pouco tempo. (PE)
(TORRES-MORAIS & RIBEIRO, 2005, p.31)
Na presença de advérbios de modo, tempo, lugar antecedendo o
complexo verbo + clítico, a ênclise é categórica no PE. No PB predomina a
próclise, apesar de não ser categórica.
(87a) Depois me ensinou belas coisas. (PB)
(87b) Depois ensinaste-me belas coisas. (PE)
(TORRES-MORAIS & RIBEIRO, 2005, p.32)
103
2.4.3.2.2 Sentenças reduzidas de infinitivo, gerún dio e particípio
Nas orações infinitivas, a próclise ao verbo principal continua sendo o
padrão em PB (88 a e c). Em PE, o clítico pode estar enclítico ao verbo no
infinitivo (principal) (88b), ou adjungido ao verbo flexionado (auxiliar) (88d) –
neste último caso, a escolha de ênclise segue a regra geral das orações finitas.
Como em outras línguas românicas, o alçamento do clítico ao verbo
flexionado depende do tipo de verbo, mas não é obrigatória, como pode ser
verificado nos seguintes exemplos do PE:
(88a) Entretanto, quero lhe pedir um favor. (PB)
(88b) Entretanto, quero pedir-te um favor. (PE)
(88c) E quando ela foi me mostrar o local exato. (PB)
(88d) E quando ela me foi mostrar o local exato. (PE)
(GALVES, TORRES-MORAIS & RIBEIRO, 2005, p.150)
No estudo de Galves, Torres-Morais & Ribeiro (2005), as orações
preposicionadas apresentam diferença entre a colocação em PB e PE, pois há
uma grande variação em ambas as variantes. Com as preposições para e de
,ocorre variação entre próclise e ênclise tanto em PE como em PB. Em PB, há
variação com a preposição a, porém, a ênclise é particularmente favorecida
neste contexto com os clíticos acusativos de terceira pessoa o/a(s). Já em PE, a
ênclise com esta preposição é categórica. Nesse contexto, a variação também é
uma questão de gramáticas em competição.
(89a) ... o único conselho que eu tenho para lhe dar ... (PB)
(89b) ... o único conselho que tenho para te dar ... (PE)
(90a) Começou a lhe contar as coisas. (PB)
(90b) Começou a contar-lhe as coisas. (PE)
(GALVES, TORRES-MORAIS & RIBEIRO, 2005, p.151,152)
104
Em relação à influência aos tipos de oração na colocação pronominal,
Lobo (1992) observou que, quando o pronome é objeto de um gerúndio não
preposicionado, a ênclise é favorecida, uma vez que ocorre em 69% dos casos.
Contudo, a autora também observa que a maioria dos gerúndios aparece no
início da frase, o que particularmente explicaria a maior frequência de ênclise.
2.4.3.3 Grupos Verbais
Voltando aos grupos verbais, Teyssier (2007 [1980]) em seu estudo já
apontava que outro aspecto importante na diferença entre PE e PB é a
colocação dos pronomes clíticos em sequências verbais. Nessa seção, portanto,
apresentarei mais dados e exemplos que serão posteriormente relacionados
com os dados retirados do corpus deste estudo.
Como visto anteriormente, a colocação dos clíticos em grupos verbais
pode ser divida em quatro grupos. Nessa seção e no capítulo seguinte, adotarei
a seguinte nomenclatura: 1. clítico anteposto ao grupo – cl V1 V2 (91); 2. o
pronome entre os verbos, porém ligado ao V1 por hífen – V1-cl V2 (92); 3. o
clítico entre os verbos, mas sem o hífen – V1 cl V2 (93); e por fim, o pronome
enclítico a todo o grupo verbal – V1 V2 cl (94)
(91) suponho eu... claro que não me tenho dedicado aos problemas
do ensino (PE oral, inq. 1378, apud VIEIRA, 2003)
(92) Dias Loureiro não queria regressar à estrada mas ao ver como
candidato presidencial o homem que permitiu o bloqueio da ponte
deve ter-se lembrado de Pedro Abrunhosa: “Não posso mais!”
(PE escrito, Diário de Notícias, 28/05/2000, p.2, apud
VIEIRA, 2003)
(93) mamãe não podia me acompanhar... então nem cheguei a ir
(PB oral/NURC, inq 261, apud VIEIRA, 2003)
105
(94) porque posso dizer que é a partir do namoro que pode vir a
manter-se um casamento rijo que dificilmente será –
poderá divorciar-se (PM oral, inq AM23VRA, apud VIEIRA, 2003)
De acordo com Vieira (2003, 2004), tanto na variante lusitana como na
moçambicana38, a colocação preferida é a V1-cl V2 (92), de forma que a maioria
dos casos apresentem ênclise ao verbo auxiliar. Há, ainda, ocorrências da
variante 1. cl V1 V2 (91), influenciada pela presença do atrator no contexto
anterior à locução verbal, quando o clítico em questão é o se indeterminador ou
o apassivador e o segundo verbo está no particípio.
A colocação pós-verbal (94), por outro lado, apresenta variação entre PE
e PM. Na variante europeia ela é privilegiada quando a segunda forma do verbo
é infinitiva e os clíticos são os acusativos de terceira pessoa (o/a(s)) e o se
reflexivo e o inerente. Já no PM oral, a variável extralinguística “faixa etária”
mostra que com o passar do tempo os falantes utilizam cada vez mais a variante
pré-verbal em detrimento da pós-verbal.
A colocação predominante, também nesse estudo, na variante brasileira,
é a três. V1 cl V2 (93), ocorrendo em 90% dos casos. Contudo, diversamente do
PE e do PM, como já falado anteriormente, o clítico parece estar proclítico ao V2
e não enclítico à V1, devido aos contextos de interposição de elementos no
complexo verbal. Na verdade, as construções pós-verbais estão relacionadas ao
fator escolaridade: quanto maior a instrução do informante maior a possibilidade
de ocorrência desta variante. A variante quatro é ainda mais rara, surgindo
apenas quando a segunda forma verbal está no infinitivo e com o clítico
acusativo de 3ª pessoa.
Outros estudos que apresentam exemplos interessantes com grupos
verbais são os de Torres-Morais & Ribeiro (2005) e Galves, Torres-Morais &
Ribeiro (2005), a respeito da colocação pronominal no livro O Alquimista de
38 Estamos fazendo referência apenas à variante moçambicana em detrimento das outras variantes de português encontradas na África, pois essa foi a variante utilizada pela autora da obra referida neste trabalho.
106
Paulo Coelho (1988), cuja versão original e sua versão “adaptada” em Portugal
serviram de base a um estudo comparativo.
Apesar da preferência do PB pela variante pré-verbal em contextos nos
quais a variante pós-verbal é categórica em PE, o autor apresenta uma variação
entre ênclise e próclise. Essa variação na colocação dos clíticos se mantém,
inclusive, na presença de pronome pessoal ou demonstrativo neutro quando
exercem a função de sujeito sintático.
(95a) Os cavalos vão se cansando aos poucos. (PB)
(95b) Os cavalos vão-se cansando aos poucos. (PE)
(TORRES-MORAIS & RIBEIRO, 2005, p.38)
2.4.3.3.1 Grupos com verbo auxiliar, de controle, c ausativo e
perceptivo.
Galves, Torres-Morais & Ribeiro (2005) analisam, dentro dos grupos
verbais, o par auxiliar + particípio. A príncipio, neste caso, a diferença parece
estar relacionada à presença ou ausência de hífen. Em PB, a falta do hífen
mostra que o clítico está proclítico ao verbo principal no particípio, enquanto em
PE o pronome encontra-se enclítico ao verbo auxiliar. Esta é outra inovação da
variante brasileira, pois o português europeu não permite que o clítico se ligue a
particípios.
(96a) E tinham se entendido perfeitamente (PB)
(96b) E tinham-se entendido perfeitamente (PE)
(GALVES, TORRES-MORAIS & RIBEIRO, 2005, p.148)
Em presença de conjunções subordinadas como, onde, cada vez mais,
entre outras, não há variação na colocação dos clíticos em PB, o pronome
continua ligado ao verbo temático, independentemente do que ocorre na
periferia esquerda da oração (cf. GALVES e ABAURRE, 1996). No entanto, em
PE, os clíticos passam a apresentar próclise ao verbo auxiliar:
107
(97a) Como tinha se comportado de maneira correta ... (PB)
(97b) Como se tinha comportado de maneira correta ... (PE)
(TORRES-MORAIS & RIBEIRO, 2005, p.39)
Outro grupo verbal levado em consideração é o que apresenta verbos de
controle, com significação modal ou aspectual, constituído por predicados
epistêmicos, volitivos e conativos, como querer, desejar, prometer, poder, dever.
Tais verbos permitem a subida do clítico, podendo estar tanto proclítico quanto
enclítico ao verbo principal. Dessa forma, o clítico se move da sua posição
argumental para uma posição mais alta na estrutura frasal para ser licenciado,
uma vez que não encontra tais codições dentro da completiva. Segundo Torres-
Morais & Ribeiro (2005, p.41): “os verbos de alçamento do clítico estabelecem
uma dependência semântica em relação ao verbo da completiva que não se
manifesta nos casos em que não ocorre o movimento”. Daí em PE ocorrer
ênclise ao verbo principal não finito e em PB haver próclise ao verbo principal –
outra inovação desta variante:
(98a) ... e prometiam me ensinar os segredos da Arte. (PB)
(98b) ... e prometiam ensinar-me os segredos da Arte. (PE)
Apesar de fazerem parte deste subitem de grupos verbais, os verbos
causativos (mandar, fazer, deixar) e perceptivos (ver, ouvir, sentir), fazem parte
das orações substantivas objetivas diretas, de acordo com a gramática
tradicional. As orações completivas que estes verbos selecionam são
construídas com verbos no infinitivo flexionado e não-flexionado, diferentemente
dos verbos de controle em que o sujeito da completiva deve ser realizado:
108
(99a) O policial quer [PRO]39 multar o ciclista
(99b) O policial viu [PRO] fugir
(99c) O policial viu [o ciclista fugir]
(99d) O policial viu ele fugir (PB coloquial)
Constata-se, ainda, que essa inovadora construção do PB coloquial é
bastante estigmatizada na variante escrita.
No PE, portanto o pronome pode ocorrer enclítico ou proclítico ao verbo
da oração principal dependendo da presença ou não de operador de próclise. Já
no PB, o pronome aparece proclítico ao verbo da oração principal. Torres –
Morais & Ribeiro (2005, p.44) observam: “O interessante é que, tanto a ênclise
lusitana, quanto a próclise brasileira com verbos perceptivos ou causativos,
configuram o fenômeno da subida dos clíticos”.
(100a) As sentinelas o deixaram passar (PB)
(100b) As sentinelas deixaram-no passar (PE)
(101a) As pessoas me viam chegar e me recebiam bem (PB)
(101b) As pessoas viam-me chegar e recebiam-me bem. (PE)
(TORRES-MORAIS & RIBEIRO, 2005, p.44)
As gramáticas normativas, no entanto, afirmam que devem ser repeitados
alguns princípios gerais em relação às locuções verbais, ignorando as questões
39 PRO é uma categoria pronominal nula fonologicamente, gerada como sujeito de frases infinitivas completivas ou adjuntos. Nestes contextos sua interpretação é controlada pelo sujeito ou complementos da sentença principal. PRO pode também ser sujeito de subordinadas subjetivas: (i) O José decidiu [PRO abandonar esta idéia] (ii) O José abandonou esta idéia [para PRO economizar grana] (iii) [PRO abandonar esta idéia] ajudaria o José PRO também pode ter uma interpretação arbitrária: PRO é proibido fumar
109
apresentadas acima e desconsiderando os diferentes tipos de verbos presentes
nos grupos verbais:
Nas locuções do tipo auxiliar + infinitivo, o pronome pode estar tanto
proclítico (102) quanto enclítico (103) ao verbo auxiliar, ou posposto ao verbo
principal (104), sempre ligado ao verbo por hífen nos casos pós-verbais. Ainda,
o pronome pode ocorrer posposto ou anteposto ao verbo quando o infinitivo
surge acompanhado de preposição (105a e b).
(102) Eu lhe quero falar.
(103) Eu quero-lhe falar.
(104) Eu quero falar-lhe . (BECHARA, 2002[1999], p.590)
(105a) Jamais deixei de ajudar-te.
(105b) Jamais deixei de te ajudar. (ROCHA LIMA, 1962, p.480)
Nas locuções verbais com gerúndio, observam-se: ênclise ou próclise ao
auxiliar (106a) (106b) e ênclise ao gerúndio (106c):
(106a) As visitas foram-se retirando.
(106b) As visitas se foram retirando.
(106c) As visitas foram retirando-se. (ROCHA LIMA, 1962, p.480)
Quanto às locuções com particípio, o pronome pode estar enclítico ou
proclítico ao auxiliar (107a) (107b):
(107a) Os alunos tinham-se levantado.
(107b) Os alunos se tinham levantado. (ROCHA LIMA, 1962, p.481)
110
2.5 Propostas teóricas recentes para a abordagem da colocação dos
clíticos.
Nesta seção, pretendo traçar um panorama de abordagens que alguns
linguistas gerativistas têm apresentado para tratar a questão da colocação dos
clíticos em PE e PB. Como já mencionado, o PE se diferencia de outras línguas
românicas, entre elas o francês, espanhol e o italiano, e do PB, por apresentar a
ênclise categórica no contexto dos verbos finitos, na ausência de elementos
proclisadors pré-verbais.
De acordo com o Programa Minimalista de Chomsky (1995), a variação
linguística pode ser consequência da variação morfológica refletida na sintaxe.
Dentro desta perspectiva, diversos autores, entre eles, Raposo (2000), Barbosa
(1996, 2000) e Duarte & Matos (2000) assumem que a distribuição dos clíticos
talvez não possa ser explicada apenas pela morfologia: os fatores de natureza
sintática também são relevantes. Em particular, destacam-se os fatores
relacionados ao movimento dos clíticos, as restrições deste movimentos em
relação ao movimento dos verbos, para o diferentes núcleos funcionais que se
projetam na estrutura frasal.
2.5.1 O português europeu
Na década de 90, diversos autores tentaram solucionar a questão de se
os clíticos deveriam ser colocados em uma categoria funcional que se situasse
numa posição frasal entre os núcleos C e I. Esta categoria foi proposta
principalmente para dar conta dos fatos da ênclise no PE.
Desta forma, Raposo (2000), seguido de Costa e Martins (2003, apud
GALVES, TORRES-MORAIS & RIBEIRO, 2005), baseando-se nos estudos de
Uriagereka (1995b), propõe um núcleo funcional F (Foco) , projetado entre Infl e
C, como representado na estrutura (A):
111
(A) TopP
V
spec Top’
V
T CP
V
spec C’
V
C FP
V
spec F’
V
F IP
V
spec I’
V
I VP
Na representação (A) há uma posição periférica para sujeitos e elementos
deslocados à esquerda, chamados de tópicos, acima de CP. Para Raposo, esta
projeção de tópico encontra-se na projeção funcional mais alta, cujo Spec é a
posição para os elementos em questão. Para a questão da ênclise e da próclise,
o autor sugere a ocorrência do seguinte: quando [Spec, F] é preenchido por um
operador ocorre próclise, enquanto quando [Spec, F] está vazio ocorre ênclise.
Para Raposo, portanto, [Spec, F] está sempre preenchido em Português
Europeu (PE), tanto quando há próclise ou ênclise, uma vez que ou ele é
preenchido pelo clítico ou por um operador de próclise.
A ênclise seria o resultado da movimentação do verbo através do clítico
para o especificador de F, como em (B):
112
(B)
… FP (t the trace of InflI containing V)
V
I F’
V V
V I F IP
g V V
demos cl F I’
g V
lhe t ...
(muito vinho)
O autor argumenta que quando a ênclise é selecionada e o sintagma
encontra-se à esquerda do verbo, isso acontece porque o sintagma não está em
uma posição que poderá abrigar F. Esse fato ocorre com NP fronteados,
sintagmas preposicionados e advérbios. Com sujeitos preverbais, no entanto, a
situação requer outra análise, uma vez que de acordo com Barbosa (1991, 1993,
apud RAPOSO, 2000), esses sujeitos ocupam uma posição periférica em PE –
spec/TOP.
Na próclise, considerando os trabalhos de Uriagereka (1995b) e de
Martins (1994), o verbo está em Infl e nunca em F, somente quando ocorre
ênclise o verbo é alçado para F:
113
(C) FP
V
muito vinho F’
V
F IP
V V
F lhe I’
V
I VP
V
V I
g
demos
Em outra abordagem acerca do PE contemporâneo, Duarte e Matos
(2000), apresentam os chamados clíticos argumentais e não argumentais
encontrados em outras Línguas de Objeto Nulo. Como é possível perceber
através do contraste apresentado nas sentenças (108) e (109). Os clíticos não-
argumentais obedecem às mesmas condições de localização de clíticos
argumentais, sendo a ênclise o padrão básico de frases com ou sem tempo
verbal. E a próclise é obtida através do c-comando40 do operador:
(108) a. Nós rimo-nos da Maria.
b. O gelado derreteu-se (com o calor).
c. Estes livros vendem-se bem.
40 A definição clássica de c-comando é: α c- comanda β se e somente se: (i) α não domina β e β não domina α; (ii) cada nódulo ramificante de γ que domina α também domina β Esta é uma noção fundamental para explicar de várias relações entre os constituintes, incluindo as que dizem respeito à distribuição de pronomes e anáforas
114
d. Venderam-se ontem 100 cópias do artigo dela.
e. Diz- se que o parido do governo vai perder as eleições.
(109) a. Todos nós nos rimos da Maria.
b. O gelado não se derreteu (com o calor)
c. Estes livros também se vendem bem.
d. Sei que se venderam ontem 100 cópias do artigo dela.
e. Raras vezes se diz que o partido do governo vai perder as
eleições.
Sendo assim, percebe-se que o PE tem um comportamento diverso de
outras Línguas Românicas, bem como o PB, em relação ao posicionamento dos
clíticos. As autoras argumentam que em PE, os clíticos podem ser considerados
elementos similares a afixos que são gerados diretamente abaixo de um núcleo
ou são núcleos de DPs gerados como argumentos de algum verbo e depois
movidos para V ou para alguma projeção funcional focado pelo verbo.
Este comportamento especial dos clíticos em PE foi explicado por
diversos autores através da presença ou força de projeções funcionais a cima do
Sistema I (cf. Madeira 1992; Rouveret 1992; Martins 1994; Uriagereka 1995),
como já foi colocado anteriormente.
A próclise, portanto, pode ser o resultado de duas configurações distintas.
Em uma, o WP não é projetado – este é o caso das interrogativas Qu com V/2, e
em sentenças com orações focadas em Spec de F(oco)P, em que a próclise
deriva de uma adjunção à esquerda do clítico ao V em AgrS e de alçamento
posterior do complexo clítico-V à C ou F.
No caso (110), o clítico e o verbo são dois núcleos funcionais diferentes
(W e AgrS, respectivamente), portanto cliticização é um processo PF.
(110) a. Afirmo [CP [ C que] [ WP ele [W o] [AgrSP leu...]]].
say-I sing that he CL-accus-3singmasc reas-PAST-3sing
‘I say that he read it.’
115
b. [CP Que livro [WP o João [W lhe] [AgrSP ofereceu ... ]]]?
which book the João CL-dat-3sing gave-3sing?
‘Which book did João give him/her?’
c. [Se [WP a memória [W me] não falha, ...]]]
if the memory CL-dat-I sing not betrays ...
‘If memory does not betray me …’
A ênclise em PE contemporâneo seria o resultado de alçamento de V a
um núcleo externo à AgrSP, deixando o clítico preso em AgrS. Desta forma, os
pronomes enclíticos são apenas clíticos fonológicos, uma vez que nem no Spell-
Out nem em LF eles ocorrem no mesmo núcleo funcional do verbo.
2.5.2 Uma proposta teórica para a colocação pronom inal em
português brasileiro
A príncípio, em português medieval, a ênclise surgia apenas quando se
corria o risco de violação da lei Tobler Mussafia41
Em seu estudo, Galves, Britto e Paixão de Sousa (2005, p.51) propõem
que há duas derivações possíveis para a ênclise. Em português clássico, a
ênclise se dava somente em estruturas em que o verbo estava na primeira
posição no CP, sendo a próclise a outra opção nos demais contextos:
(111) # [ V → V cl
# [ XV → X cl V
Para que essa análise também seja possível em estruturas XV, X deve
ser sempre um adjunto, que se encontra interno à oração, podendo ser, um NP
fronteado ou um sintagma preposicionado ou um advérbio. Daí temos: 41 Essa lei garante que o clítico não pode der o primeiro constituinte de um sintagma. Nas línguas em que essa lei opera, próclise é a posição default e a ênclise ocorre apenas em estruturas iniciadas por verbo.
116
(112) X # [ V → X V cl
(113) # [ XV → X cl V
Barbosa (1996, 2000, apud GALVES, BRITTO & PAIXÃO de SOUSA,
2005) propõe que os sujeitos pré-verbais42. sejam analisados como adjuntos
Sendo assim, em estruturas SV, a ênclise é a colocação padrão em PE, como
atestam diversos estudos (cf. DUARTE E MATTOS, 2000; GALVES, 1992, 2000;
RAPOSO, 2000)
As autoras propõem que em PE a ênclise não está somente condicionada
a V1, mas está relacionada à seguinte restrição em nível morfológico: “O clítico
não pode ser o primeiro elemento da primeira oração X-barra” (p.52), portanto
toda vez que I-barra é a primeira X-barra, ocorre ênclise:
(114) [CP [ IP [ I V cl
Como essa restrição é aplicada em nível X-barra, a presença do sujeito
em spec de IP é irrelevante, sendo assim, a ênclise é produzida:
(115) [ CP [ IP sujeito [ I V cl
A próclise ocorre quando há uma projeção X-barra mais alta, com a
presença dos operadores de próclise, como nas subordinadas, que requerem a
projeção de uma categoria mais alta que Infl, aqui representada por Σ:
(116) [ CP XP [ C [ IP [I cl V
[ CP [ que [IP [I cl V
[ CP [ Σ XP [IP [I cl V
42 Barbosa (2000) concorda com a observação de Raposo (2000), de que a sintaxe dos sujeitos e dos clíticos estão relacionadas. Para Barbosa os sujeitos em Português nunca se encontram em Spec, IP. Na verdade, eles seriam deslocados à esquerda, sendo adjungidos ao CP. Daí a autora sugere que a cliticização está relacionada ao Parâmetro do Objeto Nulo, quando Spec, IP é ocupado por pro o clítico tem que seguir o verbo.
117
A ênclise em português clássico e no português europeu atual deriva de
condições distintas. Como demonstrado acima, em PC o domínio é o primeiro
XP, em que a ênclise pode aparecer somente com adjuntos e sujeitos
topicalizados. Em PE, no entanto, o domínio é o primeiro X-barra, no qual a
ênclise pode surgir apenas com sujeitos sem adjuntos:
(117) PC S # [ V → S V cl
PE # [ S V → S V cl
Já no século XVIII há um aumento significativo de ênclise com verbos em
posição V3, levando a um novo padrão de organização dos constituintes XSV.
Esse fator confirma que o aumento do uso da ênclise fora acompanhado por
uma mudança na posição do sujeito.
Essas evidências reinforçam que o PB não evoluiu a partir do PE, pois a
mudança gramatical que levou ao PE atual foi verificada nos autores da primeira
metade do século XVIII. Para que essa mudança ocorresse no Brasil, ela
deveria ter sido trazida pelos emigrantes portugueses e daí seguir-se a mudança
na direção oposta ao que ocorreu em Portugal. Portanto, a conclusão plausível é
a de que tanto o português europeu como o brasileiro evoluiram
independentemente do português clássico.
Para explicar como funciona a colocação no português brasileiro, Galves
(1991, apud 1993, p.395) considera o elemento de concordância da flexão do
PB como “fraco”: “(...) definindo essa noção da seguinte maneira; é fraca a
concordância que não contém pessoa, ou contém pessoa como um traço
puramente sintático.” Esse tipo de concordância, já foi atestada em textos da
segunda metade do século XIX no Brasil.
A flexão (IP) pode ser dividida em dois componentes: Tempo (T) e
Concordância (Agr):
118
(D) AgrP
V
NP Agr’
V
Agr TP
V
T VP
V
V (NP)
A autora argumenta que um componente de concordância ‘fraco’ é
gerado como um simples afixo de T, logo no início da derivação, abaixo da
flexão:
(E) TP
V
NP T’
V
T- Agr VP
V
V (NP)
Em uma língua cuja concordância é forte o sujeito recebe caso
nominativo na posição de especificador de Agr. Quando a concordância é fraca,
há uma dissociação entre o morfema Agr e o núcleo Agr e a posição Comp
torna-se de difícil acesso para o verbo, uma vez que um núcleo se coloca entre
a posição normal do verbo (Tempo) e Comp. Esses fatores levam a língua à
tendência Sujeito-Verbo, fator verificado a partir do século XIX. Assim, o objeto
nulo, fenômeno característico do PB, é legitimizado pelo núcleo de Agr (cf.
GALVES, 1991). E através dessas considerações é possível relacionar o
surgimento do pronome objeto nulo à fraqueza da concordância.
119
(F) Agr P
V
Proj Agr’
V
Agr TP
V
NP T
V
T- Agr VP
V
V proj
A questão dos clíticos está intimamente relacionada à do objeto nulo em
PB. Os clíticos são pronomes cuja caracterização lexical é serem núcleos, e não
sintagmas, que se movem para a flexão no momento da derivação sintática, o
que implica uma concordância forte.
Alguns clíticos, como mencionado anteriormente, mesmo com um uso
diminuto, sobreviveram em PB, portanto, por poderem ser reinterpretados como
pronomes plenos e não mais como núcleos, movendo-se para Agr. A seguir a
posição do clítico com um só verbo:
(G) TP
qp
NP T’
g V
eu lhe T’
V
V – T – Agr VP
g V
disse tv NP
g
t
120
Segundo Galves, Torres-Morais e Ribeiro (2005, p.164), contudo, os
clíticos acusativos de terceira pessoa, por serem adquiridos tardiamente na
escola, tendem a seguir o padrão europeu, ou seja, juntam-se à Infl. As autoras
consideram, portanto, a frase (118b), mais natural que (118a), contrastando com
dados como (119), (120) e (121) (p.148/149), pois os clíticos de primeira,
segunda pessoa e o reflexivo parecem não apresentar o mesmo padrão:
(118) a. *? Não tinha o visto.
b. Não o tinha visto.
(119) a. E você está me guiando em silêncio ... (PB)
b. O senhor está-me a guiar em silêncio ... (PE)
(120) a. Como tinha se comportado de maneira correta ... (PB)
b. Como se tinha comportado de maneira correcta ... (PE)
(121) a. e da praça onde haviam se encontrado um dia; (PB)
b. e da praça onde se tinham encontrado um dia;
A posição preverbal dos clíticos no português brasileiro moderno,
portanto, não se encontra na mesma estrutura do português clássico, apesar de
ambas variantes serem essencialmente proclíticas. Como foi possível observar,
as construções com locuções verbais reinteram essa afirmação.
No português clássico, o clítico juntava-se à forma flexionada do verbo,
ou seja, é um elemento ligado à Agr. Em PB, o clítico é gerado sempre com o
verbo principal, na posição de adjunção à categoria funcional, como ilustrado a
seguir:
121
(H) TP
ei
NP T’
g ei
pro T VP
g V
(não) tinha V Asp P43
g V
t lhe Asp P
V
V- Asp VP
g V
dito V NP
g g
t t
Os clíticos em PB, portanto, não são alçados até Infl, mas ligam-se ao V.
Para Galves, Torres-Morais & Ribeiro (2005), esses fatores apontam para uma
evidência de que a colocação dos clíticos não seria governada apenas pela
sintaxe, mas pela morfologia, uma vez que os clíticos apresentam
comportamento de afixos, (p.165): “Assumimos que os clíticos não são
elementos sintaticamente autonomos, mas a consequência morfológica de
traços funcionais, como qualquer outro afixo”.
Seguiremos para análise do corpus, tendo em mente todas as questões
levantadas nesse capítulo.
43 Asp P aqui é o sintagma aspectual complemento do verbo auxiliar ter.
122
3 ANÁLISE DOS DADOS 3.1 Introdução
Neste capítulo, serão analisados contrastivamente os exemplos de
colocação dos clíticos encontrados no jornal de imprensa negra O Patrocínio e
os da imprensa de circulação mais ampla a Gazeta de Piracicaba.
Tal contraponto será apresentado a fim de verificar a hipótese de que nos
jornais de imprensa negra poderia haver um distanciamento maior da norma
culta, baseada na língua lusitana, trazendo, assim, características mais próximas
do português vernacular do período. Acredita-se que a imprensa majoritária, por
ser considerada fruto de indivíduos que possuíam maior escolaridade na época,
representaria o padrão considerado culto da língua.
A análise linguística será pautada nos trabalhos apresentados no capítulo
anterior. Para o detalhamento da ordem dos pronomes clíticos, as informações
foram divididas nos diversos aspectos e contextos analisados por outros estudos
linguísticos do tema. Contudo, os dados com verbos simples em que havia
operadores de próclise foram desconsiderados44, uma vez que tais contextos
não apresentam variação por esses atratores tornarem a próclise obrigatória em
ambas as variantes. Nos exemplos com grupos verbais, porém, como há
variação em relação à presença destes elementos proclisadores, as sentenças
com atratores foram consideradas.
Dos nove exemplares de O Patrocínio, foram computados 394 dados em
que há a ocorrência de clíticos nos contextos abordados no capítulo anterior.
Para esse estudo, foram selecionados nove exemplares da Gazeta de
Piracicaba, entre os muitos disponíveis no IHPG – Instituto Histórico e
Geográfico de Piracicaba. Foram escolhidos exemplares com datas semelhantes
as dos nove números do jornal de imprensa negra. Na Gazeta de Piracicaba há
312 ocorrências de clíticos nas condições expostas.
44 Foram descartados também os poucos dados em que ocorria mesóclise, pois essa colocação não pertence propriamente ao fenômeno de cliticização, uma vez que nesses casos o clítico de comporta mais como um afixo.
123
3.2 Características particulares da linguagem de ca da periódico
Antes de entrar propriamente na análise da colocação dos pronomes
clíticos, abordarei alguns aspectos dos dois periódicos que já revelam o uso do
característico do PB em seus textos, tais como o uso informal das formas de
você e a gente, e a presença ou ausência de hífen junto ao pronome enclítico.
Foram encontradas no corpus de O Patrocínio 38 ocorrências do
pronome você (s). Dessas, 29 (76%) encontram-se em uma seção específica do
jornal denominada Machadadas – coluna diferenciada por ser extremamente
coloquial e apresentar diversos traços, possivelmente característicos do
vernáculo da época. Tais textos – bastante semelhantes à coluna do jornalista
José Simão, do jornal A Folha de São Paulo – fazem comentários sobre a
postura de algumas figuras da cidade, retratando-as como personagens de tiras
humorísticas.
Veja a seguir um exemplo do texto em questão, retirado de O Patrocínio
de 28/9/1929, no qual há oito ocorrências do pronome você:
124
125
Foi possível, além disso, verificar no corpus de O Patrocínio a presença
da forma nominal a gente sendo usada em detrimento do pronome nós em nove
ocorrências, encontradas aleatoriamente em seis dos nove periódicos
analisados, como no poema abaixo, extraído do exemplar do dia 20/10/1929:
Na Gazeta de Piracicaba, não foi encontrada nenhuma ocorrência de
você. Esse dado pode nos levar a supor que a maior ocorrência do você em O
Patrocínio, somada a um maior número de pronomes de primeira e segunda
pessoa, como veremos na seção seguinte, poderia indicar um caráter mais
informal dos textos do periódico de imprensa negra, com uma presença maior do
vernáculo do período.
Há na Gazeta, no entanto, cinco ocorrências de a gente em todo o corpus
como no final do primero parágrafo do trecho a seguir, retirado de um artigo
entitulado “Correntes emigratórias”, do exemplar do dia 20/8/1930:
126
Outro fator interessante no corpus analisado é o uso do hífen, que não
segue um padrão em ambos os periódicos. Apesar da regra padrão
regulamentar o uso do mesmo, quando o clítico se encontra enclítico ao verbo,
tanto em O Patrocínio quanto na Gazeta de Piracicaba, em muitos casos, o
pronome não vem acompanhado de hífen. Além disso, para caracterizar a falta
de um padrão claro, na Gazeta de Piracicaba, em muitas ocorrências, o hífen é
substituído por apóstrofo, como no exemplo (01) a seguir, no qual a marca
gráfica também é usada como acento agudo:
(01) E’ assim que meia hora depois, caso não haja numero na primeira
assembleia, eleger’se’ão, como já o dissemos os novos directores.
(Gaz. – 23/3/1930, p.4)45
(02) Mais barato e ... melhor, deve’se accrescentar, não só pelo
capricho com que foram feitas as compras, como por se tratar de
sortimento recentemente feito. (Gaz. 23/3/1930, p.2)
Em O Patrocínio, de 235 dados com ênclise em sentenças com apenas
um verbo, 163 (69%) estão com hífen e 72 (31%) sem. Na Gazeta de
Piracicaba, das 188 ocorrências com ênclise, um número menor está sem hífen
27 (14%) e 161 (86%) está acompanhado do mesmo.
45 A referência obedecerá ao seguinte padrão: o jornal O Patrocínio será abreviado por Pat. e a Gazeta de Piracicaba por Gaz., em seguida será apresentada a data e a página em que o item se encontra.
127
Em relação aos grupos verbais, no exemplar da imprensa negra, das 31
ocorrências com o clítico entre os dois verbos 11 (35%) está com hífen e 20
(65%) sem. No periódico de imprensa majoritária o resultado é praticamente o
mesmo, em seis (40%) dos 15 dados há a marcação e em nove (60%) não. A
falta do hífen ao verbo auxiliar, na maioria dos dados de ambos os jornais,
revela que os mesmos já seguiam a tendência do PB atual – na locução verbal,
o pronome está na realidade proclítico ao verbo principal, e não enclítico ao
auxiliar como mencionado no capítulo anterior.
(03) ... em dado momento a linha azul e branco investe com firmeza
contra a cidadella setembrina e Ary de posse da pelota atira á
meta, indo esta cahir nas mãos de Miguel que segura mal,
deixando-a cahir para ver então varada a sua cidadella.
(Pat. – 7/7/1929, p.4)
(04) Para se evitar a grippe e os resfriados, deve-se tomar de manhã e
À noite um calice pequeno de Cognac de Alcatrão Xavier.
(Gaz. – 28/9/1929, p.2)
(05) — E’ Alcides; quer me parecer que voce tem um pouco de razão.
— Tenho toda, moço. (Pat. – 22/4/1928, p.2)
(06) Por enquanto vamos nos contentando com as leis de esgottos e
de construcções, ... (Gaz. – 13/5/1928, p.1)
É possível questionar se a presença ou ausência do hífen seria,
realmente, uma evidência valida para caracterizar a colocação dos clíticos com
grupos verbais. Contudo, apesar dessa limitação, essa é uma hipótese viável,
uma vez que, como abordado no capítulo anterior, a próclise e a colocação V1 cl
V2 é o padrão normal do PB moderno.
128
Quando o clítico está depois do grupo verbal a presença do hífen é maior.
Em O Patrocínio, dos 24 casos, 18 (75%) têm hífen e seis (25%) não. Na Gazeta
de Piracicaba, a porcentagem de uso é ainda maior – dos 27 dados, 25 (93%)
apresentam a marcação e dois (7%) não.
(07) Com tudo isso sou de accorde, mas,... a saudade, oh! a
saudade... esse termo que somente no idioma portuguez
poderemos encontral-o, significa o pezar e a magua que
sentimos pela perda de um bem que ja foi nosso.
(Pat. – 29/6/1930, p.1)
(08) O unico remedio que conseguiu livral-a desses tormentos foi a
prodidiosa Cafiaspirina. (Gaz. – 19/10/1929, p.2)
(09) A principio foi apenas a dor do ciume (sic.) de quem ama;
porém, quando fui tiral a para dançar o nosso tango, “ella” toda
indifferente, respondeu-me que ja estava compromettida.
(Pat. – 23/3/1930, p.1)
(10) Continua a falta de dinheiro, portanto urge suavisal a.
(Gaz. 13/5/1928, p.3)
As ocorrências mais interessantes no corpus, contudo, são aquelas em
que o autor opta pela ênclise na construção desconsiderando a presença do
operador de próclise na sentença. Em O Patrocínio, foram encontrados 11
exemplos em que os pronomes estão enclíticos ao verbo, mesmo havendo um
operador de próclise na sentença. Já, na Gazeta de Piracicaba, há cinco dados:
(11) Ella também segurou-o e gritou, o guarda noturno acudiu.
(Pat.-7/4/1928, p.3)
129
(12) Assim fez o meu Antonio que esquecendo-se do patrão, em defeza
do rico jardim. (Pat. – 22/4/1928, p.3)
(13) Tudo findou-se, tudo foi arrazado pela mão cruel e inexorável do
destino. (Pat. – 7/9/1928, p.1)
(14) Foi forte, resistiu todos os embates que então apresentou-se, mais
um foi mais forte que aniquilou-o por completo.
(Pat. –7/9/1928, p.1)
(15) Foi forte, resistiu todos os embates que então apresentou-se, mais
um foi mais forte que aniquilou-o por completo.
(Pat. –7/9/1928, p.1)
(16) Não sou egoista, por isso julguei que elle distinguia-a assim, para
me ser agradavel. (Pat. – 7/7/1929, p.2)
(17) Um dia soube que ele trahia-me, duvidei; era impossivel que elle
que eu adorava me fosse infiel. (Pat. – 7/7/1929, p.2)
(18) Quando lá chegámos eu fiquei satisfeitissima por encontrar todas
as minhas amiguinhas, que acolheram-me com os seus afaveis
sorrisos, provas evidentes de sinceridade. (Pat. – 7/7/1929, p.2)
(19) Elle de olhar sombrio, e aprehensivo o que me fez suppor que
algo extraordinario passava-se no seu intimo.
(Pat. – 7/7/1929, p.2)
(20) Passa uma mulher, bella mulher, todos erguem-se, offerecem seus
amores, com olhares apaixonados; (Pat. – 7/7/1929, p.3)
130
(21) Qual não foi porém, a minha dor, quando procurando a com os
olhos pelo salão repleto, vejo-a dançando nos braços de outro.
(Pat. – 23/3/1930, p.1)
Os exemplos do (16) ao (19) são de um mesmo texto, escrito por Laura
de Brito Santiago, uma colaboradora de São Paulo - a página em questão está
no anexo C.
Na Gazeta de Piracicaba foram encontrados os seguintes exemplos:
(22) Para o mesmo fim realizou se hontem um esplendido sarau
dansante que prolongou se, com harmonia e cordialidade, até
altas horas. (Gaz. – 8/4/1928, p.2)
(23) ... era o dr. Borges de Medeiros, um caracter sem igual , um dos
maiores brasileiros mas, agora que S. Excia, collocou-se no ponto
de vista unico que o bem publico aconselha, todas as virtudes lhe
negam. (Gaz. – 23/3/1930, p.1)
(24) No Rio prevalece ainda o emigrante portuguêz que por mil e uma
razões de ordem effectiva, achar-se lá como em a sua patria de
origem. (Gaz. – 20/8/1930, p.1)
(25) Recommendando-a aos que se dedicam a taes estudos, nada mais
fazemos que render-lhe justiça. (Gaz. – 20/8/1930, p.1)
(26) Do contrario, ver’nos’emos forçados a não publical’as.
(Gaz. – 19/10/1930, p.4)
Em seu corpus de cartas pessoais brasileiras escritas entre 1809 e 1907,
Carneiro (2005, apud 2007, p.526) encontrou o mesmo tipo de construção com
131
operadores de próclise e o pronome enclítico46. A autora notou em seu estudo
que os textos com mais construções típicas do PB, com próclise em posição
inicial e ao verbo não finito em grupos verbais, são os que mais apresentam
ênclise:
(...) inclusive em contextos onde a ênclise é impossível em português europeu
moderno, como nas orações introduzidas por um operador. Isso aponta para uma
aquisição imperfeita da língua de prestígio, que se expressa principalmente nos
autores menos cultos, exatamente os mesmos que mais deixam escapar o
vernáculo.
A hipótese mais viável para explicar essas ocorrências, portanto, é a de
hipercorreção, pois esses dados demonstram que os autores dessas sentenças
não dominam a norma padrão lusitana. Ao tentarem se adequar à norma culta
para mostrar plena habilidade com a língua, o indivíduo comete equívocos,
utilizando a ênclise em contextos de próclise ou mesóclise.
46 Vieira (2004) encontrou o mesmo tipo de construção em seu corpus, como mencionado no capítulo anterior.
132
3.3 Características intrísecas dos pronomes encontr ados no corpus
A seguir serão apresentados dois gráficos com a distribuição geral dos
pronomes clíticos em O Patrocínio e na Gazeta de Piracicaba:
Gráfico V: Distribuição dos pronomes clíticos em O Patrocínio.
O Patrocínio
me18%
te4%
o/a (s)19%
se39%
lhe8%
nos11%
vos1%
me
te
o/a (s)
se
lhe
nos
vos
Gráfico VI: Distribuição dos pronomes clíticos em a Gazeta de Piracicaba.
Gazeta de Piracicaba
me4%
te0%
o/a (s)14%
se68%
lhe7%
nos7%
vos0%
me
te
o/a (s)
se
lhe
nos
vos
Verifica-se na diferença percentual dos dados dos dois periódicos que O
Patrocínio apresenta uma quantidade maior de pronomes de primeira pessoa
perfazendo 29% e de segunda pessoa, cinco porcento do total de seu uso de
133
pronomes. Além disso, foram encontradas 31 ocorrências do pronome lhe,
dativo de terceira pessoa, sendo que destas, cinco dão de segunda pessoa, o
que resulta em 16% do total, exemplo (27).
Apesar deste percentual não parecer tão significativo, ele mostra que o
uso do lhe como segunda pessoa, comentado no capítulo anterior, já se fazia
presente e estava “invadindo” o âmbito da língua escrita. Além do mais, esses
exemplos foram retirados de diálogos, o que, portanto, poderia ser composto no
intuito de aproximar-se da língua oral da época, tal o item abaixo:
(27) – Eu, afinal vim até aqui para lhe convidar a dar uma chegada até
a nossa sede, hoje ha baile por lá e nós fazemos gosto que o Snr,
compareça. (Pat – 7/4/1928,p.2)
Na Gazeta de Piracicaba, no entanto, a taxa de clíticos de primeira
pessoa é bem menor, perfazendo 11% do total. A quantidade dos de segunda
pessoa foi de 0,5% com ocorrência de te e vos – percentual tão baixo que no
gráfico apresentado foi computado como zero.
Em ambos os jornais, a maior incidência é do clítico se, 39% em O
Patrocínio e 68% na Gazeta de Piracicaba. Como abordado no capítulo anterior
o pronome se é um dos clíticos que ainda sobrevive no português brasileiro
atual. Em seu estudo, Schei (2003) apresenta a hipótese de que há estruturas
em PB que são cristalizadas com as quais sempre ocorre ênclise, independente
da presença de um operador ou não. A autora apresenta como exemplos dessa
categoria verbos como: sentar-se, casar-se, chamar-se, e tornar-se.
A porcentagem de clíticos de primeira e segunda pessoa em O
Patrocínio, portanto, mostram o caráter mais pessoal do jornal, que realmente
traz muitos textos de orientação literária e humorística em que, como
mencionado no item anterior e no capítulo dois, apresentam uma linguagem
mais próxima do vernáculo da época. A Gazeta de Piracicaba apresenta
pouquíssimos textos literários, a maioria são artigos sobre política e há muitos
anúncios. É possível afirmar que a grande ocorrência do clítico se associada a
134
esses fatores demonstra que esse periódico tem características mais impessoais
que O Patrocínio.
Em relação a colocação geral dos pronomes clíticos, contudo, as
porcentagens são praticamente idênticas, como se pode verificar nos dois
gráficos a seguir:
Gráficos VII e VIII: Resultado geral da colocação dos clíticos no corpus.
O Patrocínio
24%
76%
Próclise Ênclise
Gazeta de Piracicaba
25%
75%
Próclise Ênclise
A fim de uma análise mais completa, faz-se necessária a junção dos dois
fatores abordados acima: a frequência dos pronomes e sua colocação nas
sentenças. Cruzando esses dois pontos temos os gráficos em seguida:
Gráfico IX: A colocação dos pronomes de acordo com o tipo de clítico.
O Patrocínio
3038
2212 16
34
677062
7888 84
66
33
0
20
40
60
80
100
me te o/a (s) se lhe nos vos
Próclise
Ênclise
135
Gráfico X: A colocação dos pronomes de acordo com o tipo de clítico.
Gazeta de Piracicaba
40
010
27 28 25
0
60
10090
73 72 75
100
0
20
40
60
80
100
120
me te o/a (s) se lhe nos vos
Próclise
Ênclise
Nunes (1993) argumenta que, em relação ao seu posicionamento nas
frases, os clíticos acusativos de terceira pessoa apresentam um comportamento
diferenciado dos demais, como exemplificado abaixo:
(28) a. Me chame amanhã
b. Te chamo amanhã
c. Lhe telefono amanhã
d. * O chamo amanhã.
O autor mostra que essas diferenças existem porque em PB, como
mencionado no capítulo anterior, houve uma mudança na direção da cliticização
fonológica ocorrida no século passado, que impossibilitou o licenciamento da
sílaba dos clíticos afirmativos de terceira pessoa em início de oração.
No corpus analisado, nota-se, portanto, que essa diferença começa a se
mostrar em textos escritos, pois a ocorrência de ênclise com os clíticos de
terceira pessoa (80% das 176 ocorrências de clíticos de terceira pessoa em O
Patrocínio e 75% dos 205 dados na Gazeta de Piracicaba ) é maior se
compararmos aos de primeira e segunda no corpus (68% de 70 dados em O
Patrocínio e 63% de 11 ocorrências na Gazeta). Apesar da diferença não ser
muito grande, é inegavel que temos um dado relevante.
136
3.4 Análise dos contextos de colocação dos pronome s clíticos Para a análise dos dados deste corpus, seguiremos a divisão adotada na
exposição dos resultados dos estudos linguísticos do capítulo anterior.
3.4.1 Verbos Simples
3.4.1.1 Contextos V1 e V>1
Primeiramente, será apresentado um gráfico com os resultados gerais da
colocação dos pronomes clíticos com verbo em posição inicial V1(P:96; G:91)47
e com elementos que podem anteceder o verbo em orações com verbos
simples, sendo eles: SN sujeito (P:37; G:36), sujeito pronominal (P:19; G:4),
topicalização (P:3; G:1), advérbios (P:25; G:23), orações (P:7; G:11) e
conjunções coordenadas (P:39; G:22):
Gráfico XI: A colocação dos pronomes clíticos com verbos simples, nos contextos
selecionados em O Patrocínio.
O Patrocínio
1
33
74
23
36
0
30
99
67
26
67 64
100
70
0
20
40
60
80
100
120
V1
SN S
ujeito
Suj. P
rono
mina
l
Topic
aliza
ção
Advé
rbios
Oraçõ
es
Conj. C
oorden
adas
Próclise
Ênclise
47 Entre parênteses está a quantidade de dados encontrada no corpus de O Patrocínio, abreviado por P. e a Gazeta de Piracicaba, abreviada por G.
137
Gráfico XII: A colocação dos pronomes clíticos com verbos simples, nos contextos selecionados
na Gazeta de Piracicaba.
Gazeta de Piracicaba
0
44
100 100
48
0
23
100
56
0 0
52
100
77
0
20
40
60
80
100
120
V1
SN Sujeit
o
Suj. P
rono
mina
l
Topic
aliza
ção
Advé
rbios
Oraçã
o
Conj.
Coo
rden
ativa
Próclise
Ênclise
Como atestaram diversos estudos, uma das grandes inovações do
português brasileiro do século XX é a possibilidade do pronome encontrar-se
proclítico ao verbo que inicia uma oração, ou seja, em posição V1. No corpus
estudado, porém, nos dois periódicos, há apenas a ocorrência de 1 caso de
próclise em posição V1 em O Patrocínio e nenhum caso na Gazeta. Essa
inovação do PB, portanto, ainda não conseguira transpor totalmente a norma
reguladora da linguagem escrita.
(29) — E’ verdade; me esqueci que a professora está na obrigação de
apresentar o discipulo. (Pat. – 23/3/1930, p.1)
Em relação às construções com sujeito referencial (SN) e sujeito
pronominal, o padrão europeu apresenta a ênclise, como exemplifica Mira
Mateus (2003, p.827):.
(30) As crianças lavaram-se rapidamente antes de ir para a escola.
(31) Ele viu-me ontem na praia.
138
De acordo com Galves, Britto e Paixão de Sousa (2005), este é o padrão
majoritário desde o século XIX. Contudo em PB, quando o verbo é antecedido
por um sujeito referencial, a colocação comum é a próclise. Em seu estudo das
cartas dos avós, abordado no capítulo anterior, Duarte & Pagotto (2004)
atestaram que já havia variação no PB do século XIX. Com SN Sujeito, a avó
realiza próclise em 80% dos casos e o avó em 50% dos casos.
No corpus analisado, em O Patrocínio, ocorre 33% de próclise com SN
Sujeito (32). Já, com sujeito pronominal ( (33) – retirado de um poema de Jayme
de Aguiar), a porcentagem aumenta para 74%, assemelhando-se aos dados de
Duarte e Pagotto (op. cit.). Na Gazeta de Piracicaba, há próclise em 44% dos
casos com SN Sujeito (34), além disso, nos quatro dados com sujeito
pronominal (35), ocorre próclise.
(32) Afasto a com repugnancia e pavor. Esta mulher me aterrorisa...
Corro vertiginosamente. Estou nervoso, corro mais ainda.
(Pat. –23/3/1930, p.3)
(33) A um céo aberto, ja me fez transpor,
de ardentes labios, divinaes... querida!
eu te daria a minha propria vida,
por esse beijo teu, querido amor.
(Pat. – 28/4/1928, p.3)
(34) Quando eu era pequenina, meus Paes me deram Emulsão de
Scott. Continuei a tomal-a quando ás vezes me sentia atacada da
menor debilidade e por isso poucas vezes estive adoentada.
(Gaz. – 23/3/1930, p.2)
(35) — Vendo-te assim remoçada, eu me revolto com a sorte que foi
tão injusta commigo: deu-me os peores Incommodos Uterinos aos
quaes devo este aspecto vencido, de velhice prematura.
(Gaz. – 23/3/1930, p.4)
139
Em relações às construções de tópico, Torres-Morais (1995, p.112)
afirma:
(...) um dos aspectos que mais nos interessam em relação à construção de TOP é
o de que ela envolve a ênclise obrigatória dos pronomes complementos tanto na
sentença principal como na sentença encaixada, caracterizando uma propriedade
única do PE em oposição, por exemplo, ao espanhol, francês, italiano e português
brasileiro.
Com tópico, portanto, ocorre ênclise em PE e próclise em PB. No corpus
estudado há apenas quatro ocorrências dessa natureza que, inclusive, não
revelam um padrão ordenado entre próclise e ênclise, como pode ser verificado
a seguir:
(36) Si a gente de esperar se cança
Por um bem que nunca alcança.
Deve tirar o coração esta esperança
Sem odio, sem rancor e sem vingança.
(Pat. – 23/3/1930, p.2)
(37) Estas considerações conhece as o redactor, é um moço negro,
sonhador. (Pat. – 29/6/1930, p.3)
(38) O amor que nutria, atirou-o para sempre
no lamaçal do olvido, inutilisando para
sempre um desgraçado coração, ...
(Pat. – 7/9/1928, p.1)
(39) ... era o dr. Borges de Medeiros, um caracter sem igual, um dos
maiores brasileiros mas, agora que S. Excia, collocou-se no ponto
de vista unico que o bem publico aconselha, todas as virtudes
lhe negam. (Gaz. – 23/3/1930, p.1)
140
A respeito das sentenças com conectivos, Torres-Morais (1995, p.167)
analisa as ocorrências com os conectivos e e mas. Segundo a autora, quando
há próclise com esses elementos, eles podem ser analisados como advérbios
que atuam na sentença ‘salvando’ o clítico da posição inicial, licenciando a
próclise. Em seu corpus, verifica que há mais ocorrências de próclise com o
conectivo e.
Em seu estudo Pagotto & Duarte (2004) verificaram que, nas sentenças
com esses elementos, a avó realiza próclise em 86% dos dados e o avô,
igualmente, apresenta ênclise em 86% dos casos.
No corpus deste trabalho, tanto no exemplar de imprensa negra como no
de imprensa majoritária, a ênclise é predominante na presença da conjunção e
(40) e (41), como verificado na tabela abaixo. Na Gazeta de Piracicaba não há
dados com mas, e em O Patrocínio, nos cinco dados com essa conjunção, três
apresentam próclise e dois ênclise (42) e (43). Esses dados mostram que,
apesar da preferência pela ênclise, já há variação no corpus.
Tabela 3.1: Próclise e ênclise em sentenças coordenadas com as conjunções e e mas.
Conjunção Próclise Ênclise
E 9 (28%) 23 (72%)
O Patrocínio Mas 3 (60%) 2 (40%)
E 5 (28%) 13 (72%) Gazeta de
Piracicaba Mas Ø Ø
(40) Escravisaram no, libertou-se; queriam-no ignorante, aprendeu a ler
e instruiu se; puzeram-lhe a cabeça a premio; redobrou-lhe o vigor
e a audacia na defesa da grande e nobre causa de que se
constituira paladina. (Pat. – 29/6/1930, p.2)
(41) Procuremos evitar a tuberculose, fortificando os nossos pulmões e
alcatroando-os com Cognac de Alcatrão Xavier.
(Gaz. – 28/9/1929, p.2)
141
(42) Não digo com certeza quem é o felizardo, porque não sou
linguarudo; mas me parece que é o Luiz Dias.
(Pat. – 29/9/1929, p.2)
(43) Mas, vindo esta em meu auxilio, trouxe-me ás mãos um volume.
(Pat. – 19/10/1930, p.3)
Os advérbios de tempo, modo e lugar não são ativadores de próclise,
mas os elementos sentenciais terminados em –mente o são. Nesses casos, a
colocação comum em PE é a ênclise, e, segundo Torres-Morais & Ribeiro
(2005), apesar da próclise predominar em PB, esta não é categórica.
No corpus, houve maior ocorrência de ênclise, porém a quantidade de
próclise é bastante significativa. Dos 25 exemplos verificados no exemplar de
imprensa negra 36% apresentam próclise e 64% ênclise. No periódico da
imprensa majoritária, dos 23 casos, 40% dos clíticos antecedem os verbo e 60%
estão pospostos.
(44) ...; depois, passado alguns annos, nos separamos por motivo de
sua mudança para outro bairro.
(Pat. – 7/4/1928, p.1)
(45) A tempos tive a necessidade de ir a S. Paulo, e por acaso la
encontrei-me no Jardim da Luz com o nosso heroe, o Pedro
Isca. (Pat. – 7/9/1928, p.2)
(46) Lá se achavam todos: mandados e mandões.
(Gaz. – 8/4/1928, p.2)
(47) Desse modo procurou-se alliar a cortezia de um convite ao
respeito ás crenças alheias. (Gaz. – 7/9/1928, p.2)
142
Por fim, quando o antecedente do par verbo-clítico é uma oração, todos
os dados do corpus apresentaram ênclise:
(48) Destas, o homem deve sorrir menosprezando-as e, com
enthusiasmo e ardor, avançar na senda do progresso.
(Pat. – 29/6/1930, p.1)
(49) Pede-se a quem o encontrou entregal-o nesta refacção, que será
bem gratificado. (Gaz. – 23/3/1930, p.2)
3.4.1.2 Sentenças infinitivas preposicionadas e r eduzidas de gerúndio
No caso das orações infinitivas preposicionadas, estudos atestam que
tanto na variante brasileira quanto na europeia, há alternância entre próclise e
ênclise, com as preposições para e de. Em relação à preposição a, o uso da
variante pós-verbal é taxativo em PE, enquanto em PB ocorre variação.
Os gráficos a seguir apresentam os resultados obtidos com a análise do
corpus em questão:
Gráfico XIII: Colocação dos pronomes clíticos em sentenças
preposicionadas de O Patrocínio.
O Patrocínio
6673
333427
67
0
10
20
30
40
50
60
70
80
para de a
Próclise
Ênclise
143
Gráfico XIV: Colocação dos pronomes clíticos em sentenças
preposicionadas da Gazeta de Piracicaba.
Gazeta de Piracicaba
82
54
36
18
46
64
0
10
20
30
4050
60
70
80
90
para de a
Próclise
Ênclise
Os dados revelam que, com para – (50) a (53) – e de – (54) a (57) – há
variação, porém parece haver uma preferência pela próclise em ambos os
jornais. Já, com a preposição a – (58) a (61) – maioria dos casos apresenta
ênclise.
(50) Possuindo-se esta indispensavel qualidade, por certo todas as
barreiras serão movidas e vencidos todos os obstaculos que
apparecerem para se anteporem ao nosso intento!
(Pat. – 20/10/1929, p.8)
(51) A’s 11 horas, sob a marcação do apreciado Jazz S. José, tiveram
inicio as contra dansas que decorreram animadissimas,
interrompendo se a 1 hora, para proceder-se a escolha da
senhorita Patrocinio, a qual recahiu em Esmeralda de Campos,
que foi acclamada vencedora por maioria de votos.
(Pat. – 20/10/1929, p.5)
(52) Para se evitar a grippe e os resfriados, deve-se tomar de manhã e
à noite um calice pequeno de Cognac de Alcatrão Xavier.
(Gaz. – 28/9/1929, p.2)
144
(53) E agora, já avançada em annos, para livrar-se dos achaques da
velhice, continúo a tomar a Emulsão de Scott.
(Gaz. 23/3/1930, p.2)
(54) Entretanto, è de se esperar que, a comprovada generosidade dos
corações bem formados da maioria do povo piracicabano não
permittirá certamente que este modesto jornalzinho sossobre nas
aguas turvas da indifferença e do esquecimento como infelizmente
ja tem acontecido a outros. (Pat. – 7/4/1928, p.1)
(55) É o dia em que a mulher negra brasileira das gerações futuras, ha
de encher se de orgulho pelas tradicções dos seus antepassados.
(Pat. – 28/9/1929, p.1)
(56) Os progressos da sciencia conseguiram descobrir o meio de se
evitar a tuberculose e que consiste em se evitar as grippes e os
resfriados. (Pat. – 28/9/1929, p.2)
(57) ... declaro aos interessados que passei temporariomente meu
cargo de presidente do Tiro de Guerra 542 desta cidade ao sr.
Severiano Alberto Ferraz actual secretario, afim de apresentar-me
sob as ordens do sr. Tenente-coronel Grimualdo Teixeira Favilla ...
(Gaz. – 19/10/1930, p.2)
(58) E quando o vento tornar a vos trazer outra vez a estes lugares,
talvez haja passado já muito tempo! (Pat. – 19/10/1930, p.2)
(59) O teu andar é fascinante. Parece possuir no movimento, duas
correntes attrativas que nos impelem a seguir te
despreocupadamente. (Pat. – 28/9/1929, p.1)
145
(60) ... são convidados a comparecerem nesta Faculdade ... e bem
assim os que estejam com a idade de 16 a 20 annos e não tiverem
os seus nomes na presente lista a se apresentarem, afim de não
prejudicarem ... (Gaz. – 13/5/1928, p.2)
(61) ... procedido hoje ao sorteio dos vinte e oito jurados que devem
servir na segunda sessão ordinaria do Jury, desta comarca, no
corrente anno, a iniciar se no dia 7 de Maio vindouro, às onze
horas, ... (Gaz. – 8/4/1928, p.3)
De acordo com Galves, Torres-Morais & Ribeiro (2005, p.152), a variação
nesse contexto entre próclise e ênclise em PB é: “(...) uma questão de
competição de gramáticas. A ênclise é resultado de uma aquisição tardia tanto
em sentenças finitas como infinitivas, e é favorecida pelo clítico “o/a”, também
adquirido tardiamente”.
Quanto ao gerúndio, Lobo (1992) observou que tanto o português
europeu quanto o brasileiro parecem favorecer a ênclise. Esse fator pode ser
confirmado com os dados desse corpus, uma vez que entre as 62 ocorrências
de gerúndio em ambos os jornais, há apenas um caso de próclise em O
Patrocínio, em que a construção é acompanhada da preposição em (62):
(62) O momento não é mais de se fazer silencio em se tratando de
assumpto tão importante para a classe negra de S. Paulo...
(Pat. – 20/10/1929, p.7)
(63) Sou eu quem humildemente vos peço, amparar a modesta folha,
dai o vosso generoso concurso, o vosso apoio decidido,
assignando – a e fazendo propaganda dos seus nobres fins
(Pat. – 7/4/1928, p.1)
146
(64) Todavia, declamou bem, recebendo muitos applausos todos os
numeros, destacando se “O baile das sete cores”, “Xoxô Papão”,
e “Dindinha Lua” que viveram na sua vóz momentos de rara
felicidade. (Gaz. 28/9/1929, p.2)
3.4.2 Grupos Verbais
Como apontado no capítulo anterior, a colocação dos pronomes clíticos
em grupos verbais em PB atual difere em diversos aspectos do PE moderno e
do que é prescrito pelas gramáticas normativas. Para esta análise
consideraremos o primeiro verbo da construção V1 e o segundo V2. Como
explicitado no capítulo anterior, há quatro possibilidades de colocação dos
pronomes clíticos com grupos verbais: 1. clítico anteposto ao grupo – cl V1 V2;
2. o pronome entre os verbos, porém ligado ao V1 por hífen – V1-cl V2; 3. o
clítico entre os verbos, mas sem o hífen – V1 cl V2; e por fim, o pronome
enclítico a todo o grupo verbal – V1 V2 cl48.
Gráfico XV: Resultado geral com grupos verbais em O Patrocínio.
O Patrocínio
36%
14%21%
29%
cl V1 V2
V1- cl V2
V1 cl V2
V1 V2 cl
48 Esse dados algumas vezes apresentam hífen e em outras não, porém como nesse caso esse fator não interfere na interpretação dos dados, ele não será computado.
147
Gráfico XVI: Resultado geral com grupos verbais na Gazeta de Piracicaba.
Gazeta de Piracicaba
30%
10%
15%
45%
cl V1 V2
V1- cl V2
V1 cl V2
V1 V2 cl
De acordo com diversos estudos já mencionados, a colocação usual dos
clíticos em PB atual com grupos verbais é a terceira (V1 cl V2) em que o
pronome encontra-se, na realidade, proclítico ao segundo verbo e não enclítico
ao primeiro, como é o padrão normativo.
No corpus analisado, essa colocação acontece com mais frequência em
O Patrocínio, onde ela aparece em 21% dos casos. Esse padrão somado ao
valor do grupo V1-cl v2 resulta em 35%, a maior porcentagem nos dados. Na
Gazeta de Piracicaba, por outro lado, a colocação majoritária é a quarta, com
45%, porém, 15% dos dados já apresentam o padrão V1 cl V2. Isso revela,
portanto, que o vernáculo do período já pode ser notado nesse corpus escrito.
Para analisar com mais clareza esses contextos, na seção a seguir os
verbos serão divididos primeiramente em verbos auxiliares (P: 26; G:17) , de
controle (P:38; G:31), causativos e perceptivos (P: 21; G:12)e, em um segundo
momento, os dados serão redivididos em verbo + infinitivo (P:69; G:47), verbo +
gerúndio (P:7; G:7) e verbo + particípio (P:9;G:6).
3.4.2.1 Grupos com verbo auxiliar, de controle, c ausativo e perceptivo Observe os gráficos gerais de colocação dos pronomes clíticos com
grupos verbais no periódico O Patrocínio e na Gazeta de Piracicaba:
148
Gráfico XVII: Resultados gerais de colocação com verbos auxiliares, de
controle, causativos e perceptivos em O Patrocínio.
Gráfico XVIII: Resultados gerais de colocação com verbos auxiliares, de
controle, causativos e perceptivos na Gazeta de Piracicaba.
Gazeta de Piracicaba
47
19
33
03
3330
1017
23
68
17
0
10
20
30
40
50
60
70
80
V. Auxiliar (17) V. Controle (31) V. Causativo /Perceptivo (12)
cl V1 V2
V1-cl V2
V1cl V2
V1 V2 cl
O Patrocínio
39
25
52
11
0
3335
25
1015
50
5
0
10
20
30
40
50
60
V. Auxiliar (26) V. Controle (38) V. Causativo /Perceptivo (21)
cl V1 V2
V1-cl V2
V1 cl V2
V1 V2 cl
149
Nos grupos verbais com auxiliares ter, haver, estar, ir, de acordo com a
norma, os pronomes devem estar enclíticos ao verbo principal, ou ao verbo
flexionado. O PB apresenta uma inovação, pois o pronome pode estar proclítico
ao verbo principal, padrão não encontrado em textos históricos. Além disso,
pode haver um movimento longo do clítico que aparece proclítico ao verbo
flexionado, em PE essa subida ocorre somente na presença de atratores de
próclise.
Mira Mateus (2003, p.857, 858), define o fenômeno da subida do clítico
em relação ao PE, da seguinte maneira:
(...) consiste na seleção de um verbo do qual o pronome clítico não é
dependente para hospedeiro verbal. As frases seguintes exemplificam este
fenômeno, encontrando-se nelas sublinhado o verbo principal de que o clítico
depende.
(43e) O convite não lhe foi nunca enviado.
(43f) O João não se ia esquecendo do convite.
Os exemplos (43) ilustram casos de Subida de Clítico com verbos auxiliares que
seleccionam formas participiais e gerundivas. Nestes casos, como o contraste
entre (43) e (49) mostra, não existe alternativa à Subida do Clítico, devendo o
pronome clítico ocorrer obrigatoriamente proclítico ou enclítico ao verbo auxiliar:
(49e) * O convite não foi nunca lhe enviado / enviado-lhe
(49f) * O João não ia se esquecendo / esquecendo-se do convite.
Em O Patrocínio, a colocação predominante com verbos auxiliares é cl V1
V2, com 39% (65), das quais 50% com operador de próclise (66). Essa
colocação é seguida por V1 cl V2 com 35% (67), mostrando já no corpus escrito
o padrão do PB atual.
150
(65) Ainda que ja ha dois seculos se haja estabelecido nos Estados
Unidos a raça negra, ha apenas tres annos que se começaram a
organizar, e por-se em contato uns com os outros os differentes
grupos catholicos pertencentes a essa raça ...
(Pat. – 7/9/1928, p.1)
(66) O nosso prezado orgam é um dos orientadores desta geração
que tem labutado em pról da nossa raça, afim de que lhe seja
reintegrado os seus direitos concretisados seus prestigios, na
realidade dos factos. (Pat. – 20/10/1929, p.1)
(67) Cheio de odio, de dor, de ciume, tudo misturado, fui me colocar ao
lado de uma cesta de rosas, mas (sic) ebrio do que um alcoolatra.
(Pat. – 23/3/1930, p.1)
Na Gazeta de Piracicaba, a colocação predominante também é cl V1 V2,
com 47% (68), sendo 63% com atratores (69), seguida de V1 cl V2 com 30%
(74).
(68) Ella não diminue a ninguem: porque visa engrandecer o vulto moral
da Patria, engrandece e dignifica a quantos com sinceridade de
animo se encontram unidos nesta santa cruzada de paz entre os
brasileiros. (Gaz. – 28/9/1929, p.2
(69) Não quero acreditar que o sr. Júlio Prestes, que é um moço de
inegavel honestidade, esteja a par do que se vem praticando em
seu nome. (Gaz. – 28/9/1929, p.1)
(70) Este novo gremio futebolistico local vae se impondo, dia a dia, pelo
numero de adhesões, que vem obtendo. (Gaz.– 20/8/1930, p.2)
151
O segundo grupo verbal a ser levado em consideração é o que apresenta
os chamados verbos de controle – com significação modal ou aspectual –
constituídos por predicados epistêmicos, volitivos e conativos, como querer,
desejar, prometer, poder, dever. De acordo com a norma, o pronome deve
ocorrer enclítico ao verbo principal não finito. No PB, porém, há próclise ao
verbo principal – outra inovação desta variante. A esse respeito, Galves, Torres-
Morais & Ribeiro (2005, p.41) afirmam que “A subida do clítico ao verbo
flexionado, nas estruturas de controle, é altamente marcada no PB e varia muito
de autor para autor”.
Os resultados com verbos de controle, portanto, diferem dos dados com
verbos auxiliares. O uso dos clíticos com esse grupo de verbos segue com mais
fidelidade o padrão normativo da língua. No periódico de imprensa negra, 50%
dos casos seguem a norma culta V1 V2 cl (71); os outros casos apresentam
25% cada (72) e (73); e não há nenhum exemplo de V1-cl V2. No exemplar da
imprensa majoritária, a colocação normativa também é preponderante,
equivalendo a 68% do corpus (74).
(71) A vida é tudo nesse mundo; tu estando viva, posso amar-te onde
tu estiveres, porque em todas as partes há cèu, flôres e Deus.
(Pat. – 7/9/1928, p.3)
(72) ... ; pois num ambiente pobre como nosso, só mesmo a custa de
muita força de vontade se pode conseguir alguma cousa.
(Pat. – 20/10/1929, p.1)
(73) Ella não se extingue, porém, pode se abrandal-a, o que, si não o
fizermos havemos de nos arrepender, pois, a sua retenção poderá
nos causar desagradaveis consequencias.
(Pat. – 29/6/1930, p.1)
152
(74) Mas o seu orgulho ferido impediu-a de ver claro. Desvairada pela
sua cólera, ella desde logo tomou partido violento contra o cardeal
e quiz abatel-o. (Gaz. – 20/8/1930, p.1)
O último grupo dessa seção é o dos verbos causativos – mandar, fazer,
deixar – juntamente aos perceptivos – ver, ouvir, sentir. Nesse caso, a colocação
normativa é a ênclise ao verbo da oração principal (V1-cl V2) e a colocação
inovadora em PB é próclise ao verbo da oração principal (cl V1 V2). Galves,
Torres-Morais & Ribeiro (op.cit, p.44) apontam que “O interessante é que, tanto
a ênclise lusitana, quanto a próclise brasileira com verbos perceptivos ou
causativos, configuram o fenômeno da subida dos clíticos”.
Em O Patrocínio, a colocação segue o padrão inovador brasileiro com
52% de cl V1 V2 (75) e 43% seguem o padrão culto, no entanto, 33%
apresentam hífen (V1-cl V2) (76), e 10% não V1 cl V2 (77).
(75) E’ a saudade que vive e viverá sempre n’alma sofredora, porque
a essencia do passado a faz nascer. (Pat. – 7/9/1928, p.1)
(76) Deixae-o morrer em paz, não lhe toqueis porque seria inutil
animal - o para a vida. (Pat. – 7/9/1928, p.1)
(77) Tambem, outro não fora o meu intuito, senão o de deixal a esperar
bastante, para que tivesse uma porção de coisas bellas para me
dizer. (Pat. – 23/3/1930, p.1)
153
Na Gazeta de Piracicaba, a norma culta (V1-cl V2) é majoritária em 50%
dos dados. Contudo, 33% apresentam hífen (78) e 17% não (79). O padrão
inovador cl V1 V2 está presente em 33% das ocorrências (80).
(78) ..., o vermifugo de Xavier, tonifica as creanças, fal-as crescer sadia
e fortes e é receitado pelas sumidades medicas.
(Gaz. – 28/9/1929, p.4)
(79) A Scena impressionante em que o velho paralythico, num esforço
supremo, sente se convulsionado por uma commoção violenta.
(Gaz. – 8/4/1928, p.4)
(80) O nitrato de prata, causa o verdadeiro terror nos doentes e de
muitas cegueiras, o faz desapparecer.
(Gaz. 28/9/1929, p.3)
3.4.2.2 Verbo + Infinitivo, Verbo + Gerúndio e Verb o + Particípio
A fim de analisar com mais detalhamento a questão da colocação dos
pronomes clíticos com grupos verbais, os dados de ambos os periódicos foram
redivididos em três grupos abordados por outros estudos linguísticos: 1.verbo +
infinitivo; 2.verbo + gerúndio; e 3.verbo + particípio.
Em ambos os jornais verificou-se a ocorrência majoritária do grupo com
infinitivo, 69 ocorrências (81%) em O Patrocínio, 47 (78%) na Gazeta de
Piracicaba. Em relação ao gerúndio e ao particípio, no exemplar de imprensa
negra foram encontrados sete (8%) e nove (11%) casos respectivamente, e no
jornal de imprensa majoritária sete (12%) e seis (10%).
A seguir apresento um gráfico com os resultados da colocação dos
pronomes clíticos com as estruturas em questão:
154
Gráfico XIX: Colocação dos pronomes clíticos em O Patrocínio, com os grupos verbais:
verbo+infinitivo, verbo + particípio e verbo + gerúndio.
O Patrocínio
33
78
1410 11
43
22
11
4335
0 00
10
20
30
40
50
60
70
80
90
V + Infinitivo (69) V +Particípio (9) V+ Gerúndio (7)
cl V1 V2
V1-cl V2
V1 cl V2
V1 V2 cl
Gráfico XX: Colocação dos pronomes clíticos na Gazeta de Piracicaba, com os
grupos verbais: verbo+infinitivo, verbo + particípio e verbo + gerúndio.
Gazeta de Piracicaba
23
50
43
13
0 0
7
50
5757
0 00
10
20
30
40
50
60
V + Infinitivo (47) V + Particípio (6) V+ Gerúndio (7)
cl V1 V2
V1-cl V2
V1 cl V2
V1 V2 cl
A fim de avaliar os resultados apresentados, farei uma comparação dos
dados deste corpus com os de Pagotto (1992, apud PAGOTTO, 1993)
mencionados no capítulo anterior, no qual o autor analisou 1436 extratos de
155
cartas e documentos oficiais brasileiros a partir do século XVI. No momento, nos
interessarão os resultavos relativos aos séculos XIX e XX49, como se pode
verificar na tabela (adaptada) abaixo:
Tabela 3.2: Colocação dos clíticos em grupos verbais.
a b c d T
I 67% 17% 0 17% 12
XIX G 100% 0 0 0 1
P 89% 11% 0 0 18
I 11% 3% 50% 36% 36
XX G 8% 0 84% 8% 13
P 75% 0 25% 0 8
Em relação ao infinitivo, os resultados de O Patrocínio e a Gazeta de
Piracicaba são bem distintos. No primeiro, as variantes entre si têm distribuição
porcentual semelhante (cf. gráfico acima). Além disso, os dados diferem,
também, dos resultados de Pagotto, pois seu estudo demonstrou que há uma
preferência pela colocação V1 cl V2 no século XX. Na Gazeta, contudo, há uma
predileção pela colocação V1 V2 cl, com 57%:
Tabela 3.3: Contraste entre resultados de colocação pronominal em grupos verbais.
cl V1 V2 V1-cl V2 V1 cl V2 V1 V2 cl
Pagotto
séc. XX
11%
3%
50%
36%
Gazeta de
Piracicaba
23%
13%
7%
57%
O Patrocínio 33% 10% 22% 35%
49 O autor considera a. cl V1 V2, b. V1-cl V2, c. V1 cl V2 e d. V1 V2 cl.
156
Esses dados comprovam a hipótese de que o exemplar de imprensa
negra apresenta características mais próximas ao vernáculo, uma vez que em
seus textos já mostra a preferência pelo clítico próclitico ao verbo principal (81),
e não mais enclítico a ele (82), como nos dados da imprensa majoritária.
(81) Porisso mesmo desejo
Que a negra morte
Venha me levar
(Pat. – 7/4/1928, p.4)
(82) O 28, tendo perdido já, um jogo, quando enfrentou o XV, espera
reabilitar-se, vencendo o Motorista.
No caso da costruções com infinitivo, portanto, a Gazeta de Piracicaba se
mostra mais normativa, inclusive que os próprios documentos analisados por
Pagotto, uma vez que estes apresentam maior porcentagem da colocação
tipicamente brasileira V1 cl V2.
Quanto às construções com particípio os dados são semelhantes nos três
contextos, pois a predileção pela posição cl V1 V2 se mostra desde o século
XIX. Em O Patrocínio, essa colocação ocorre em 78% dos casos (87). Na
Gazeta, 50% dos dados aparecem como cl V1 V2 (88), e a outra metade, V1 cl
V2 (89).
(83) Eva acaba de exercer pela 1ª vez, o direito cívico do voto. Onde?
Naturalmente onde lhe foi conferido pela primeira vez esse direito;
no Rio Grande do Norte. (Pat. – 22/4/1928, p.2)
157
(84) Ella não diminue a ninguem: porque visa engrandecer o vulto moral
da Patria, engrandece e dignifica a quantos com sinceridade de
animo se encontram unidos nesta santa cruzada de paz entre os
brasileiros. (Gaz. – 28/9/1929, p.2)
(85) O alvi-celeste, depois de sua inesperada victoria sobre o Palestra,
viu o enthusiasmo augmentar em suas fileiras e a continuos treinos
tem se submettido afim de continuar a colher louros para as suas
cores. (Gaz. – 23/3/1930, p.4)
De acordo com Galves, Torres-Morais & Ribeiro (2005), a possibilidade
de ocorrer a colocação V1 cl V2 mesmo com verbos no particípio, é uma
evidência de que os clíticos em PB não são realmente licenciados pela flexão e,
sim, pelo verbo que atribui papel temático a eles.
Por fim, nas construções com verbo+gerúndio, tanto no Patrocínio quanto
na Gazeta, a predileção é pelas construções V1 cl V2 (P:43%: G:57%) (86) e
(87) e V1-cl V2 (P:43%) (88), assim como no corpus de Pagotto (op. cit.). Nos
dados em que ocorre a colocação cl V1 V2, há operadores de próclise em todos
os casos (89).
(86) Diz ainda o poeta, que O Patrocinio só procura rebaixar a classe
preta desta terra. Saiba o ilustre pandego que esta folha surgiu e
está se mantendo há mais de um anno com os 200 reis de uns e
de outros como diz você, mas tão somente para elevar o nome da
nossa raça e não para desmoralisal-a, como vocè quer dizer.
Quem procura desmoralisar a classe preta desta cidade, é você
mesmo com as suas palhaçadas. (Pat. – 22/4/1928, p.3)
(87) — Meus collegas, como devem saber, ha seculos que os sabios
vêm se debatendo a respeito do desenvolvimento humano e
sempre inultimente. (Gaz. – 8/4/1928, p.2)
158
(88) Foram-se indo de vez em quando trocavam algumas impressões.
Eram impressões dos dias anteriores.
(Pat. – 7/4/1928, p.3)
(89) E’ claro que, com essa penhora de consumidores, a vida havia de
se tornar, como se vem tornando cada vêz mais pesada e mais
cara. (Gaz. – 20/8/1930, p.1)
Todos esse dados, portanto, nos mostram que, ao contrário do esperado,
os dois jornais são muito semelhantes em diversos aspectos, como veremos no
capítulo seguinte.
159
CONSIDERAÇÕES FINAIS Contrariamente ao esperado, o jornal de imprensa negra e o de
circulação mais ampla apresentaram diversas características semelhantes. O
pressuposto de que os colaboradores dos jornais negros teriam menor grau de
escolaridade que os da outra imprensa não se sustentou – esses periódicos
tinham participação, em sua maioria, de uma elite negra autodidata, que
conseguiu driblar a dificuldade do acesso a uma educação formal, conforme
revelado no capítulo dois.
Como observado em O Patrocínio e em outros exemplares da imprensa
negra, como o Clarim da Alvorada e o Getulino, os negros queriam se igualar
aos brancos e, através desses jornais, eles tentavam demonstrar que poderiam
viver em sociedade como qualquer outro cidadão. Além disso, os negros sabiam
que o letramento e o domínio da norma culta eram fatores fundamentais para
que a população negra pudesse ascender na sociedade.
Os colaboradores do jornal de imprensa majoritária, no entanto, por
fazerem parte da elite da cidade, tiveram acesso à escolarização formal com
facilidade. Inclusive, porque, como também atestado no capítulo dois, Piracicaba
era uma cidade com grande preocupação quanto à educação, pelo menos em
seu meio urbano. Sendo assim, é perceptível também a preocupação com a
norma culta por esses autores.
Como explicitado no capítulo três, essa norma culta almejada pelos
colaboradores de ambas as imprensas é, até os dias de hoje, pautada na norma
característica do PE e não do PB. No período em questão, o português brasileiro
já mostrava características próprias, diversas da variante europeia, como
mostrado no item acerca do percurso histórico das duas variantes (cf. Galves,
2005; Cyrino, 1990 e 1993; Pagotto 1992 e 1993, entre outros).
Os resultados desses dados confirmam a questão de que o falante de PB
está sempre em um embate entre duas gramáticas: a sua gramática interna, ou
seja, sua Língua-I; e parâmetros normativos externos adquiridos na escola.
Nesse contexto, a colocação dos pronomes clíticos é um fenômeno
relevante para verificar essas constatações, pois o uso dessas estruturas
160
possibilita observar que o falante brasileiro trava uma batalha entre dois
mundos: a sua colocação essencialmente proclítica, pautada por diversas
questões fonéticas, além de sintáticas e morfológicas; e uma colocação formal,
baseada em construções prioritariamente enclítica, utilizadas pelos portugueses.
Outro fator interessante encontrado em ambos os jornais foram as
diversas sentenças em que mesmo com a presenção de um operador de
próclise, o autor faz uso de ênclise. Provavelmente, como mostram diversos
trabalhos, a ênclise possui um status de língua culta e correta. Entretanto, ao
deslizar e lançar mão da ênclise quando até um falante do PE utilizaria próclise,
o brasileiro demonstra que aquele padrão de colocação realmente não faz parte
do inventário de estruturas computadas em sua gramática interna.
Em outros casos, em que não há uma regulamentação clara para o
falante brasileiro quanto à ênclise, foi possível perceber, nos dois exemplares, a
presença do vernáculo do período, tal qual nos casos com SN sujeito e sujeito
pronominal antecedendo o verbo, nos quais a porcentagem de próclise foi bem
mais alta.
Os dados com grupos verbais também apresentaram resultados
interessantes. Foi possível verificar, nos dois jornais, a ocorrência crescente da
colocação do pronome proclítico ao verbo principal do grupo verbal, que vem
sendo atestada desde o século XIX e tornou-se a colocação comum no PB atual.
Podemos constatar, enfim, o fato de ser possível observar características
próximas ao vernáculo do período nos dois exemplares de linguagem escrita
analisados. Tal fator aponta a relevância desse corpus – ele confirma
características particulares do PB do século XX já notadas por outros estudos.
161
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169
ANEXOS
ANEXO A
170
171
172
173
ANEXO B
174
175
176
177
ANEXO C