A Arte Indígena sob o olhar da identidade e da diferença no livro
didático “Arte em Interação”
Mariana Schnorr Thomas1
Universidade Luterana do Brasil
O livro didático de Arte
Os livros didáticos, artefatos que embora exista uma ampla tradição de
produção, a distribuição, com recursos públicos, para o ensino de Arte é algo recente.
Em 2015, o Programa Nacional do Livro Didático – PNLD, lançou pela primeira vez
um Edital2 voltado para a seleção de livros didáticos de Arte para o Ensino Médio. O
processo de avaliação resultou na seleção de duas obras: Por toda Parte e Arte em
Interação. Ambos foram selecionados para distribuição gratuita nas escolas públicas e
após enviados para professores e estudantes, com recursos do FNDE.
Algumas das obrigações que os livros deveriam atender é a abordagem das
culturas indígenas, afro-brasileiras e africanas que vêm através de normativas, ou seja,
formas de regulação que determinam que as escolas em disciplinas específicas, tratem
destes assuntos como modos de garantir a valorização destas culturas em nosso
território.
A partir da leitura íntegra dos dois livros didáticos, percebi que apenas um deles
apresenta um capítulo específico para abordagem destas culturas e artes dos povos
indígenas, afro-brasileiros e africanos. É o capítulo dois do livro Arte em Interação,
intitulado “Identidade e Diversidade”. Com isso, optei por analisar este capítulo no
livro com o objetivo de observar e refletir quais textos e imagens são utilizadas para
nomear e caracterizar a arte e a cultura indígena brasileiras3.
Voltando aos livros didáticos, muitos dos já existentes, que vêm sendo
analisados por pesquisadores dos campos de História, Artes, Educação, por exemplo,
“privilegiam abordagens genéricas, alicerçadas em versões oficiais dos acontecimentos
1 Mestranda em Estudos Culturais em Educação pela Universidade Luterana do Brasil. Professora de Arte
do Colégio ULBRA São Lucas (Sapucaia do Sul-RS). E-mail: [email protected].
2 Edital 01/2013 – CGPLI, Edital de convocação para o processo de inscrição e avaliação de obras
didáticas para o Programa Nacional do Livro Didático PNLD 2015. 3 Dada a extensão do artigo, não foi possível abordar a arte e a cultura afro-brasileiras e africanas.
históricos, que legitimam processos coloniais e genocídios, nomeando-os como atos de
bravura, coragem, ousadia do conquistador” (BONIN, 2010, p. 80).
Nesse sentido, Bonin (2009, p. 100) afirma que “a narrativa genérica de “índios
nus” vivendo na floresta, habitando ocas, adorando o sol e a lua, marca ainda muitos
discursos cotidianos, midiáticos e didáticos que constitui pano de fundo para se pensar o
lugar dos índios”. Isto se dá, segundo a autora, quando a presença dos índios em
espaços urbanos é motivo de estranhamento para as demais pessoas. Contudo, há uma
pluralidade cultural muito mais abrangente do que costumamos pensar.
Problematizando a arte indígena na educação
Embora tenham sido amplamente contestados os padrões universais que
definiriam o que é arte, cabe lembrar que a própria emergência de um campo
disciplinar, o da “História da Arte”, grafada assim, no singular e em maiúsculas,
prenuncia uma concepção unificada, a partir da qual algumas manifestações artísticas
figurariam como representantes legítimas do melhor que se produziu, no mundo, sendo
estas alçadas ao lugar de arte autêntica. As manifestações artísticas selecionadas para
integrar “uma” história da arte – ordenadas sob um viés eurocêntrico – configuram uma
versão dessa história que foi largamente aceita e reiterada.
Conforme dito anteriormente, a arte indígena entra como obrigatória no
currículo escolar através da Lei nº 11.645/2008 determinando que: “nos
estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-
se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena” (BRASIL, 2008).
Além disso, estes conteúdos deverão ser ministrados em todo currículo escolar
principalmente nas disciplinas de Arte, Literatura e História Brasileiras.
Após a promulgação desta lei, em 2011, o Ministério da Educação – através da
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão – reeditou o
Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação
para as Relações Étnico-raciais, objetivando que os sistemas e instituições de ensino
cumpram o estabelecido na lei 11.645/08.
Sendo assim, além da comunidade escolar, os livros didáticos também deveriam
contar com conteúdos que contemplassem a cultura indígena. Contudo, a forma como
são inseridos estes conteúdos normalmente dá-se sob um viés eurocêntrico. Sobre isso,
a análise da arte de determinados povos ocorre pelo conceito geral de arte oriundo da
cultura ocidental, nascida da experiência europeia, relacionando-se com a contemplação
estética. Isto se distingue da função da arte produzida pelos povos indígenas e africanos,
que a produzem para outros fins como rituais cerimonialísticos. Por isso, Nunez (2011)
orienta que deve-se ter o cuidado com reducionismos e a falta de problematizações que
há nas análises destes livros, que acabam por esconder uma forma de colonização.
O mesmo autor também afirma que a “arte indígena liga-se a uma imensa
variedade de estilos e manifestações, onde não há uma arte como atividade diferenciada
da produção de objetos úteis” (2011, p. 146). Para Nunez, a nossa definição de arte não
é necessária para os povos indígenas, ou seja, o que eles produzem, não se relaciona a
fins contemplativos e estéticos, conforme já referido.
O próprio termo indígena já categoriza vários povos a partir do processo de
colonização, “colocando os diferentes como sendo iguais entre si, ou seja, quem não era
branco, europeu, passou a ser indígena independente de seu território, dos costumes e
modo de vida”, segundo Barbero (2010, p. 304).
Examinando o capítulo 2 do livro didático, o primeiro aspecto que se sobressai é
a abordagem da arte indígena (e também da arte africana e afro-brasileira) como uma
“arte outra”, uma arte que integraria a diversidade cultural e que precisaria, então, ser
valorizada. E o apelo à diversidade se expressa de forma direta ou indireta, como
pretendo mostrar neste artigo, que se dá principalmente, por meio do discurso
multiculturalista.
O discurso multiculturalista e os conceitos de identidade e diferença e
representação
A perspectiva multiculturalista pode ser vista como parte de uma engrenagem a
partir da qual se governa ou administra problemas gerados em sociedades
multiculturais. O multiculturalismo apoia as ideias da diversidade e da pluralidade
humana, através do apelo à tolerância e ao respeito. Entretanto, conforme Hall 2008,
este termo naturaliza as diferenças e dificulta as lutas específicas de grupos
posicionados na diferença, pois desconsidera as relações de poder. Desconsidera, ainda,
a tensão existente entre o reconhecimento da diferença e a realização da igualdade. O
“outro” cultural seria, assim, um problema a ser administrado, uma vez que sua
presença coloca em xeque a nossa própria identidade.
Os Estudos Culturais tem problematizado as perspectivas multiculturalistas, a
partir das quais se celebra uma suposta diversidade constituinte de nossa “natureza”
humana e que formulam a questão sob o apelo à tolerância, e coloca a perspectiva da
diferença – conceito que leva a pensar nos processos de produção, classificação,
hierarquização das culturas, e nas relações de poder que definem quem seriam os
diferentes.
No espaço acadêmico são muitas as discussões sobre o multiculturalismo e estas
têm mobilizado pesquisadores filiados a diferentes perspectivas teóricas. Na obra
Ciladas da diferença, Pierucci (1999, p. 7), por exemplo, indaga: “Somos todos iguais
ou somos todos diferentes? Queremos ser iguais ou queremos ser diferentes?” Em
seguida, ele explica que a resposta a estas indagações pendia, até algum tempo, para a
noção de igualdade (como expressão do humano, da nação, por exemplo). Porém, a
partir dos anos 1980 (em diversas partes do mundo ocidental) “passamos a nos ver
envoltos numa atmosfera cultural e ideológica inteiramente nova, na qual parece
generalizar-se, em ritmo acelerado e perturbador, a consciência de que nós, os humanos,
somos diferentes de fato” (ibid.) Consolida-se o chamado “direito à diferença”, o que
implica tanto o direito de ser diferente, quanto o de ter acesso aos recursos culturais,
econômicos e educacionais.
Sobre esta questão da diferença, está um dos principais conceitos defendidos
pelos Estudos Culturais, o da identidade e da diferença. Conforme já dito, este conceito
não reconhece o discurso multiculturalista, pois o mesmo classifica todos como iguais,
não reconhecendo a diferença. Para os Estudos Culturais, identidade e diferença são
produzidas na linguagem através de uma construção de significados e de nomeações.
Porém, a linguagem também vacila, onde nem sempre há a presença do significado e do
referente, demarcando as relações de poder.
A identidade está sempre ligada a uma forte separação entre "nós" e "eles".
Essa demarcação de fronteiras, essa separação e distinção, supõem e, ao
mesmo tempo, afirmam e reafirmam relações de poder. "Nós" e "eles" não
são, neste caso, simples distinções gramaticais. Os pronomes "nós" e "eles"
não são, aqui, simples categorias gramaticais, mas evidentes indicadores de
posições-de-sujeito fortemente marca das por relações de poder.(SILVA,
2000 p. 2).
Além disso, há uma tendência de uma força homogeinizadora da identidade
normal que desta forma se sobrepõe as diferenças, deixando-as em situação inferior.
Neste sentido, “afirmar a identidade significa demarcar fronteiras como “nós” e “eles”,
estabelecendo posições de sujeitos marcados pelas relações de poder” (SILVA, 2000, p.
3).
Logo, a identidade e a diferença estão estreitamente relacionadas às formas pelas
quais a sociedade produz e utiliza classificações, hierarquizando e atribuindo valores.
Um exemplo disso são as oposições binárias como o positivo e o negativo em que um
deles sempre é o privilegiado. Outro aspecto a se considerar com relação à este
conceito, é com relação à representação, pois através dela que a identidade e a diferença
existem.
Sendo representação um conceito central na maioria das pesquisas que articulam
Estudos Culturais e temática indígena, tais pesquisas permitem entender que há, via de
regra, uma reiteração de certas marcas culturais e de certos estereótipos quando os
povos indígenas são narrados nos mais variados artefatos e produções.
O conceito da representação é, segundo Hall (1997b), a relação entre as coisas,
os conceitos e os signos através da linguagem, e nesta relação é que se dá a produção de
significados. “As coisas”, neste contexto são tudo aquilo que se expressa com uso da
linguagem, não são o real em si mesmo. Reforço que, para este autor, “o significado
surge, não das coisas em si – a “realidade” – mas a partir dos jogos da linguagem e dos
sistemas de classificação nos quais as coisas são inseridas. O que consideramos fatos
naturais são, portanto, também fenômenos discursivos” (HALL, 1997a, p 10).
De forma mais específica, o autor explica que
representação é a produção do sentido dos conceitos da nossa mente
pela linguagem. Ela é o elo entre conceitos e linguagem que nos
permite referir ao mundo ‘real’ dos objetos, pessoas ou eventos, assim
como ao mundo imaginário de objetos, pessoas e eventos
fictícios.(HALL, 1997b, p. 3).
O campo dos Estudos Culturais analisa como uma representação é construída a
partir de contextos específicos, de situações vividas, de narrativas, de artefatos culturais,
por exemplo. Somos nós que damos significados a partir do uso que fazemos das coisas,
e tais significados nunca são estáveis, nunca são definitivos. Conforme o referido autor,
produzimos e negociamos significados dentro da cultura, usando a linguagem, os signos
e as imagens (Hall, 1997b). Em algumas circunstâncias, os sentidos que construímos
dentro de sistemas de representação vão sendo reiterados, são constantemente ativados,
e por isso nos parecem “naturais” pois são rapidamente reconhecidos. Mas a esta
sensação de serem naturais alguns significados, se produz em relações de poder e por
investimentos.
Analisando o capítulo identidade e diversidade
Ao ler este segundo capítulo do livro Arte em Interação, procuro analisar
algumas estratégias representacionais presentes no mesmo, que são sustentadas em
abordagens multiculturalistas. Neste momento, coloco em discussão duas estratégias
representacionais presentes nas obras: a primeira diz respeito a uma celebração da
diversidade e a segunda refere-se a uma visão genérica do termo indígena.
Uma forma de valorização da diversidade indígena é sobre um dos tipos de arte
desta cultura mais recorrentes no capítulo. Estas são as cerâmicas das bonecas Karajá,
produção do povo Karajá4. Há imagens e textos verbais desta arte em quatro páginas do
capítulo, como mostra a imagem a seguir
Figura 1: Bonecas que expressam a identidade do grupo Karajá
4Grupo indígena que habita a região dos rios Araguaia e Javaés (GO, MT, TO e PA). Sua língua é
a língua carajá (denominada, pelos carajás, como inyrybe, que significa "a fala dos iny"),. Sua população
atual é de 2 927 pessoas, distribuídas em 21 aldeias.
FONTE: (BOZZANO; FRENDA; GUSMÃO, 2013, p. 62)
Estas bonecas aparecem no livro como bens culturais imateriais reconhecidos
pelo IPHAN5. De acordo com a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural
Imaterial e com auxílio da UNESCO, conforme o site do IPHAN, no Brasil, em 2006,
foi ratificado que bens imateriais são compostos por práticas, representações,
expressões, conhecimentos e técnicas – junto com os instrumentos, objetos, artefatos e
lugares culturais que lhes são associados – que as comunidades, os grupos e, em alguns
casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu Patrimônio Cultural.
Até então, apenas bens materiais eram reconhecidos como patrimônios culturais
e através deste reconhecimento, há a representação e a valorização deste objeto que é
produzido há centenas de anos, numa tradição que persiste até os dias de hoje e que
serve como fonte de renda para as mulheres deste povo, segundo o livro didático.
Sobre a produção destas bonecas, o livro afirma que “muitos grupos e
comunidades, em especial as que vivem em maior proximidade com a natureza, fazem
sua arte com argila, que é retirada diretamente do meio em que vivem” (BOZZANO;
FRENDA; GUSMÃO, 2013, p. 57). Afirmações como esta reforçam e naturalizam a
representação do índio como sujeito que vive junto à natureza. Valendo-me de
argumentos de Hall (1997), penso que reduzir as culturas indígenas à natureza é “uma
estratégia representacional destinada a fixar a ‘diferença’ e assim garanti-la para
sempre”. Esta é, aliás, uma estratégia discutida por diversos pesquisadores do campo
dos Estudos Culturais que abordam a temática indígena, conforme, Bonin, Ripoll e
Aguiar (2015). No conjunto de 15 teses e dissertações que os autores selecionaram para
análise, eles identificaram que em quase todos há uma preocupação em problematizar o
par cultura/natureza, e, como efeito, o vínculo estabelecido entre índio e natureza.
Assim, a articulação produzida entre índio e natureza funcionaria
como uma espécie de chave de leitura, sendo os povos indígenas
narrados como habitantes naturais da floresta, lugar geográfico e
social que produz também um conjunto de atributos, colados ao corpo
e apresentados como sendo próprios da “natureza indígena”.
Habitando o mundo natural, os povos indígenas teriam características
5 Instituto do Patrimônio Histórico e Estatístico Nacional, responsável pela preservação do acervo
patrimonial material e imaterial do país.
como primitivismo, espontaneidade e ingenuidade (BONIN; RIPOLL;
AGUIAR, 2015, p. 66).
Por outro lado, no mesmo capítulo do livro, se insere um Box intitulado
“Conexão” e nele se apresenta a arte das bonequeiras do Vale do Jequitinhonha, região
norte de Minas Gerais. O texto explica que a seca expulsou muitos homens e, então, as
mulheres passaram a fabricar bonecas de cerâmica para sustentar as famílias. Isto se
percebe neste trecho: “Elas são, em sua maioria, bonequeiras e retiram o barro,
abundante na região, direto da natureza (BOZZANO; FRENDA; GUSMÃO, 2013, p.
64).
O recorte anterior me faz pensar que também neste caso se estabelece uma
vinculação entre as ceramistas e a natureza (na atividade que lhes assegura a
subsistência). Assim, pode-se dizer que a ideia de vínculo com a natureza não se produz
apenas quando se trata dos povos indígenas.
Voltando a ideia do discurso multiculturalista, o mesmo promove o sentido de
valorização da diversidade, através da busca da conquista da igualdade. Sendo assim, é
possível perceber a ideia deste discurso neste outro trecho do livro:
No Brasil, há uma mistura de várias culturas com identidades diferentes.
Com o processo de colonização, buscou-se impor a arte e a cultura de
origem europeia. Isso não impediu a manutenção de outras culturas
ancestrais, como a indígena e a africana, que estão enraizadas em nossa
formação cultural (BOZZANO; FRENDA; GUSMÃO, 2013, p. 58).
Neste recorte, apesar de os autores iniciarem destacando a imposição da cultura
e da arte europeia, reafirmam a ideia da mistura, noção que reativa a representação de
unidade, formada por partes que se somam e se mesclam formando “uma cultura”, o que
coloca as culturas dos outros povos como unidades menores, subjugadas a uma
totalidade maior. Hall (2003) afirma que a invenção dessa totalidade – correspondente a
uma identidade nacional – se dá por diferentes estratégias, e seria constituidora de uma
ideia de nação miscigenada.
O uso da noção de miscigenação parece ser comum em discursos
multiculturalistas que, desse modo, tornam visíveis as diferenças, mas de um modo que
mantém assimetrias e uma relação de subordinação. Neste contexto, as culturas
indígenas (e africanas) que teriam originado a sociedade brasileira tal como a que
conhecemos são reconhecidas como “ancestrais”, caracterizando um sentido de passado.
Neste sentido, nas primeiras páginas do capítulo, há também um box chamado
América Pré-Colombiana que informa que a cerâmica já era utilizada, muito antes da
chegada dos portugueses, pelos povos indígenas e teria sido transmitida, de geração em
geração, “na mistura entre povos que ocuparam o Brasil” (BOZZANO; FRENDA;
GUSMÃO, 2013, p. 60). Naturaliza-se, assim, a representação do povo brasileiro
originado na “mistura” entre distintas etnias, por atributos culturais de diferentes
matrizes justapostas, algo que, conforme afirma Zilá Bernd (1992, p. 14), “circunscreve
a realidade a um único quadro de referências”. A construção de uma identidade
brasileira se dá, na literatura (e também na literatura didática) inicialmente por
mecanismos de exclusão (que a autora caracteriza como a ocultação ou invenção do
outro) e de transgressão (caracterizada por ações como o resgate dos discursos dos
excluídos).
As identidades, tanto quanto as diferenças, precisam ser narradas: “uma
coletividade ou um indivíduo se definiria, portanto, através das histórias que ela narra a
si mesma sobre si mesma e, dessas narrativas, poder-se-ia extrair a própria essência da
sua definição” (BERND, 1992, p. 17). Por isso, também, a ideia de diversidade ganha
expressão em muitos materiais que vemos circular nas escolas hoje, assim como em
manuais, em diretrizes curriculares, em pronunciamentos de especialistas de Educação,
em produções acadêmicas, entre outras.
Conforme destaquei no início desta seção, uma das estratégias de inserção da
arte e da cultura indígena no livro didático Arte em Interação diz respeito a contestação
e deslocamento da visão genérica de índio. Esta visão pode ser vista nos trechos a
seguir: “Mas apesar dessa forte presença, muitos brasileiros desconhecem essas
culturas, ou as veem somente de um jeito estereotipado” (BOZZANO; FRENDA;
GUSMÃO, 2013, p. 58), e ainda
[...] uma visão europeia, a visão dos colonizadores, de mundo e da
sociedade, fez-se dominante, o que faz com que, ainda hoje, haja um grande
desconhecimento dessas culturas ancestrais das quais somos herdeiros. As
culturas indígenas no Brasil, por mais que se encontrem dentro do território
em que vivemos, ainda são vistas por muitas pessoas com olhar
estereotipado e equivocado. De um modo geral, não se conhecem seus
modos de vida, visão de mundo, as semelhanças e diferenças entre seus
povos. Há, inclusive, uma tendência de se entender os indígenas todos da
mesma maneira. Diz-se o “índio”, no singular, sem diferenciar as centenas
de povos indígenas que vivem no território brasileiro (Ibid, p. 59).
Na sequencia, o texto explica os contextos de uso dos termos “índio” e
“indígena”, relacionando-os com outros termos como “autóctone” e “nativo”. Várias
estratégias vão sendo utilizadas para pluralizar o sentido do termo “indígena”. Uma
delas é a inserção de dados estatísticos que permitem entender quantos são, quantas
etnias existem e quantas línguas são faladas. No box “Capsulas”, inserido na mesma
página, apresentam-se dados extraídos de sites de organizações não governamentais e
dados do IBGE sobre a presença indígena no país.
Uma outra estratégia é a inserção de exemplos relativos a determinados povos
indígenas. São exemplos contextualizados na cultura e arte de um povo indígena
específico. Por exemplo, entre as páginas 60 e 61 são inseridas fotografias do povo
indígena – os Karajá – em distintas situações cotidianas. Junto às imagens, são
colocadas questões para orientar o olhar:
O que caracteriza cada uma das imagens? Procure observar os lugares,
gestos e posturas [...] Que relações você vê entre elas? Quais elementos
possuem em comum? Que materiais você identifica? Quais seus usos e
relações entre as imagens? (ibidem, p. 61).
Figuras 2, 3 e 4: Cenas da cultura Karajá
FONTE: (BOZZANO; FRENDA; GUSMÃO, 2013, p. 62)
Após este diálogo direto com o leitor, o texto prossegue explicando que as
imagens são do povo Karajá e que sua autodenominação é Iny, que significa “nós”,
sendo Karajá um nome adotado em língua portuguesa, originado do Tupi. O texto
explica que esse povo vive em seus territórios tradicionais, numa extensa faixa do Rio
Araguaia, na Ilha do Bananal e que os Karajá estão presentes nos estados de Tocantins,
Goiás e Mato Grosso. Há breves informações sobre os mitos deste povo e sua relação
com a arte. São destacados elementos artísticos que o leitor também pode observar nas
fotografias – as pinturas corporais, a arte plumária, por exemplo. Há também
informações sobre o processo de produção da cerâmica e das tintas utilizadas para
colorir estes objetos e para produzir pinturas corporais.
Desse modo, o texto expressa um sentido mais abrangente de arte, que estaria
presente em várias instâncias da vida indígena e discute, inclusive, padrões e abstração
em pinturas corporais de povos como os Karajá e os Munduruku6, do Alto Tapajós.
Segundo Silva e Vidal (1998), a cultura ocidental cria, muitas vezes, visões estanques
das sociedades indígenas, mas a arte para os índios é movimento, dinamismo,
representando uma experiência coletiva. Neste aspecto, o livro didático Arte em
interação parece partilhar o ponto de vista das antropólogas citadas acima. Neste
sentido, penso que as afirmações presentes no livro reforçam as ideias do discurso
multiculturalista que promove o reconhecimento da diferença e das lutas que promovem
este fortalecimento do pluralismo cultural.
Palavras finais
Em um artigo que analisa a diferença na literatura para crianças, Silveira, Bonin
e Ripoll (2010) afirmam que o tema das diferenças eclode e adquire visibilidade nos
dias atuais, em parte porque serve ao consumo (a diferença vende, tem apelo, faz
circular mercadorias), em parte porque vivemos atualmente um tempo de contestação
dos discursos unificadores sobre identidades e de valorização da diversidade. Para elas,
hoje são produzidos e circulam variados artefatos que colocam em destaque os grupos
6 Povo que habita a região do vale dos Tapajós nos estados da AM e PA, contando com uma população de
mais de 11.000 indivíduos.
minoritários, com suas demandas específicas e suas diversificadas maneiras de pensar.
Desse modo, “os discursos multiculturais produzem, como tendência geral, uma
positivação das diferenças, tomadas como essenciais, autorreferenciais, com valor em si
mesmas (SILVEIRA; BONIN; RIPOLL, 2010, p. 101).
Apesar de as sociedades atuais serem constituídas por diferentes culturas, isso se
dá não porque naturalmente sejamos diferentes e sim porque há diferentes
posicionamentos e identificações que se constroem e nos quais se investe. Na
perspectiva dos Estudos Culturais existem múltiplas culturas. Não se trata apenas de
diferentes práticas culturais ligadas a distintas etnias, e sim de culturas marcadas por
diferentes pertencimentos – falamos, nos estudos produzidos neste campo, de culturas
surdas, culturas juvenis, culturas infantis, culturas laborais, entre outras.
Desta forma, minha análise mostrou, que há uma reiteração da noção de
diversidade, que colabora para a naturalização de certos atributos indígenas. Pude
também observar que são postas em operação estratégias que deslocam e contestam
representações comuns dos povos indígenas, dentre as quais destaquei a contestação da
noção genérica de índios.
Sendo assim, o discurso multiculturalista apesar de enaltecer a diversidade e de
promover um deslocamento no sentido genérico de índio, da mesma forma apresenta
limites ao não contestar as relações de poder. Portanto, os efeitos deste discurso são de
uma arte indígena que aparece de forma celebrativa e não conflitiva, ou seja, uma
política de tolerância. E, tolerar afirma uma atitude implicada com o poder (quem tem o
poder de tolerar, quem está na condição de ser tolerado?). A diversidade é naturalizada
e, assim, não é vista como algo a ser dissolvido num todo homogêneo, não devendo ser
integrada.
Deste modo, finalizo este artigo com uma citação de Silva apud Pardo
[...] Respeitar a diferença não pode significar "deixar que o outro seja como
eu sou" ou "deixar que o outro seja diferente de mim tal como eu sou
diferente (do outro)", mas deixar que o outro seja como eu não sou, deixar
que ele seja esse outro (1996, pg. 54).
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