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A ARTE E AS EPISTEMOLOGIAS DO SUL - A LUTA POR UM DIREITO
EMANCIPATÓRIO E TRANSGRESSOR
Paola Cantarini- UNICAMP- USP- Universidade de Coimbra-CES1
RESUMO
O presente artigo envolve as pesquisas desenvolvidas em sede de pós-doutoramento junto
ao CES - Centro de Estudos Sociais. Visa-se aqui, a analisar o uso não hegemônico do
direito, o direito dos oprimidos, o direito socialmente relevante, aquele que não se reduz
ao direito oficial. Neste sentido, afirma Boaventura de Sousa Santos a existência de um
pluralismo jurídico interno e externo2, a fim de podermos responder à questão essencial:
como reinventar o Direito sem cair na agenda conservadora, como pode ser o Direito
emancipatório e transgressor?
Visa-se, portanto, em um primeiro momento, traçar algumas articulações em torno do
pensamento de Boaventura de Sousa Santos ao propor a ecologia dos saberes, a tradução
intercultural e as epistemologias do Sul em cotejo com o pensamento de Michel Foucault
no que se refere à recuperação dos saberes sujeitados e à conjugação do saber científico
ao saber popular.
Em um segundo momento, pretende analisar se seria possível postular por um outro
Direito e outra política contra-hegemônicos, diante das quatro formas principais de
fascismo social em que vivemos e em um regime capitalista.
1 Advogada e professora universitária (Universidade de Guarulhos). Bacharela em Direito pela UNIFMU.
Mestre e doutora em Direito pela PUC-SP. Doutora em Filosofia do Direito pela Università del Salento
(Itália). Visiting researcher na Scuola Normale Superiore de Pisa –Itália (Roberto Esposito, supervisor).
Pós-doutora pela EGS - European Graduate School, Suíça, em “Filosofia, artes e pensamento crítico”, Pós-
Doutoranda pela Faculdade de Direito da USP – Departamento de Filosofia e TGD – Teoria Geral do
Direito e pelo CES- Universidade de Coimbra. Pesquisadora colaboradora UNICAMP.
2 Boaventura de Sousa Santos, “As bifurcações da ordem. Revolução, cidade, campo e indignação, p.11 e ss.
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Questiona-se como pode ser o Direito emancipatório e transgressor, como articular a arte
à política sem que ocorra a estetização da política e a politização da arte, a partir da análise
das epistemologias do Sul, recuperando experiências da vida que foram suprimidas,
desperdiçadas ou negadas. Analisaram-se quais as condições de um constitucionalismo
transformador, a fim de tornar possível um Direito emancipatório, a exemplo de um novo
“constitucionalismo experimental”, transformador, alheio aos conceitos típicos do
constitucionalismo moderno, quais sejam, uniformidade, unidade e homogeneidade. Tal
constitucionalismo experimental e transformador baseia-se nas ideias de
constitucionalismo intercultural e plurinacional, pós-nacional, “transnacional”,
“pluridimensional” e no surgimento de novos atores sociais coletivos, na maioria dos
casos os povos indígenas ou as minorias nacionais oprimidas, postulando pela
transformação radical do status quo constitucional. Destaca Boaventura de Sousa Santos,
como exemplos mais significativos desses processos as reformas constitucionais da
Bolívia e do Equador.3
PALAVRAS-CHAVE: Direito emancipatório. Epistemologias do Sul. Transgressão.
Epistemologia transgressora
METODOLOGIA
Quanto à metodologia, tem-se que justamente promover o desenvolvimento
metodológico é um dos principais escopos do presente artigo. No entanto, considerando
os clássicos métodos de elaboração do conhecimento, que seriam o dedutivo e o indutivo,
destacamos que iremos privilegiar aquele que ainda no século XIX o filósofo e cientista
norte-americano Charles Sanders Peirce propôs, como o mais apropriado para
impulsionar a criatividade e inovação do pensamento, denominando-o “abdução”, com
evidentes paralelismos com o que outro filósofo e cientista, já do século XX, o francês
Gilbert Simondon denominou de “transdução”, bem como com o juízo reflexionante da
terceira “Crítica” de Kant.
3 Boaventura de Sousa Santos, “Demodiversidade. Imaginar novas possibilidades democráticas”, p. 68 e ss.
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INTRODUÇÃO
Além de um Direito abissal, de uma linha abissal que divide os excluídos e os
oprimidos de um lado e de outro, uma pequena elite, também teríamos o pensamento
abissal, de um lado os saberes científicos, os saberes considerados úteis, inteligíveis e
visíveis, e de outro, os saberes e experiências tidos por inúteis, perigosos, ininteligíveis,
suprimidos ou esquecidos.
Importa ainda questionar se haveria espaço para outras epistemologias ante a
diversidade epistemológica existente, além das epistemologias dominantes, construídas
sob a égide do colonialismo, do patriarcalismo e do capitalismo, ou seja, reconhecer que
estas formas principais de dominação também abrangem uma dominação epistemológica,
suprimindo os saberes dos povos colonizados, restritos à invisibilidade ou a espaços de
subalternidade.
Nesse sentido, pretendeu-se questionar se seria possível falar atualmente em um
Direito emancipatório, vinculado à transgressão e às concepções de conhecimento e
epistemologias ligadas às artes e aos conhecimentos sujeitados, aliados ao sujeito
revolucionário, ou a uma resistência, tomando como ponto de partida a proposta de
Boaventura de Sousa Santos de ser a Sociologia das Ausências um procedimento
transgressivo, uma sociologia insurgente, e frisando a necessidade da transgressão e de
uma subjetividade rebelde4, com vistas a contribuir para a verificação de quais seriam as
condições de um discurso transgressor.
No que segue, postula-se por uma epistemologia transgressora, liberta, tal como a
utilizada por Boaventura de Sousa Santos no seu livro “O direito dos oprimidos”, visando
ao desenvolvimento de uma sociologia empírica da retórica jurídica, utilizando-se de
ideias e conceitos desenvolvidos pela filosofia europeia do Direito5, e postulando por um
tratamento sociológico exigente, condição para a produção da tese de doutorado pela
Universidade de Yale, sendo esta a expressão do padrão de cientificidade então
4 Boaventura de Sousa Santos, “Renovar a teoria crítica, reinventar a emancipação social”, p. 33 e ss.
5 Boaventura de Sousa Santos, “O direito dos oprimidos”, p. 94.
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dominante. Nas palavras de Boaventura de Sousa Santos, utilizando-se de uma
epistemologia transgressora, mas sem se deslocar de uma estratégia científica6:
(...) do que se trata é de utilizar o inestimável conhecimento sociológico obtido
por técnicas de investigação sofisticadas, desenvolvidas sobretudo pela
sociologia positivista, pondo-o ao serviço de estratégias científicas
antipositivistas, depois de epistemologicamente transfigurado.
(...) acabei por adotar uma posição de compromisso, colocando-me a meio
caminho entre objeto e sujeito da ciência e, portanto, numa posição
intrinsecamente ambígua. (...) Cheguei à conclusão de que só violando as regras
podia entender a realidade social e que quanto maior fosse a violação, mais
profunda seria a compreensão. Apesar disso, continuava a seguir, quase
compulsivamente, a regra de ouro da observação participante (...).7 (...) A
construção de uma práxis social alternativa justificava, a meu ver, a inevitável
violação de algumas regras do método científico.8
Levando-se em consideração a teoria social e filosófica, reconhecendo-se a
necessidade da interdisciplinaridade para uma cognição aprofundada do Direito, do ser
humano e das transformações em curso, postula-se pela análise da relação entre a Arte e
o Direito a partir da perspectiva sociológica de Boaventura de Sousa Santos,
reconhecendo que a Arte possui um potencial de comprometimento com a prática social
de transformação. Uma outra forma de produção do conhecimento, contrária às teorias
sociais produzidas por países centrais e não periféricos e que levariam à reprodução das
desigualdades entre Norte e Sul9, e portanto, o reconhecimento de que tal conhecimento
seja conjugado aos conceitos de hermenêutica diatópica, tradução e diálogo interculturais.
Para romper com os cânones do pensamento ocidental dominante há a necessidade da
criação. As ciências têm que ser transgressivas nas suas metodologias, ao contrário das
metodologias dialógicas, extrativistas10. O artista seria, segundo tal análise, o único que
conseguiria caminhar sobre a linha abissal e desta forma conseguiria olhar muito mais
para frente e para trás em comparação com os cientistas. É o ato criador como experiência
profunda dos sentidos, permitindo a libertação dos sentidos.
6 Ibidem, p. 21, p. 46, p. 47.
7 Ibidem, p. 163-165.
8 Ibidem, p. 173.
9 Boaventura de Sousa Santos, “Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social, p. 21 e ss.
10 Boaventura de Sousa Santos, aulas magistrais, Universidade de Coimbra, 25.05.2018, “A arte e as epistemologias do
sul – as imagens da libertação”.
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A proposta de hermenêutica diatópica de Boaventura de Sousa Santos assume
todas as culturas como incompletas, abrindo-se ao diálogo, questão típica do
multiculturalismo e do pluralismo, abandonando-se a ideia de que o outro é um
estrangeiro, um inimigo ou uma ameaça, permitindo-se ir ao seu encontro, ampliando-se
as vozes e os olhares. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e
de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades11.
DISCUSSÃO E RESULTADOS
Após a análise de diversas obras de Michel Foucault e de Boaventura de Sousa
Santos, verificou-se que ambas as propostas partem da análise crítica ao saber científico,
contra a primazia de tal saber, tal como expõe Boaventura de Sousa Santos ao postular
pelas cinco ecologias dos saberes em face das denominadas cinco monoculturas, ante a
crise do pensamento hegemônico das ciências sociais, com fulcro na razão eurocêntrica
e indolente. Trata-se da busca de alternativas ao que denomina de “epistemicídio”, a
morte de conhecimentos alternativos e locais, e das experiências do mundo produzidas
no “Sul”, tal como promovido pelo colonialismo12, em sua tentativa de homogeneização
do mundo, um dos cinco modos de produção de ausências em nossa racionalidade
ocidental, a fim de se criar uma epistemologia do Sul, envolvendo a descolonização do
saber. Destaca-se, pois, a proposta das epistemologias do Sul, contra-hegemônicas,
partindo-se das experiências dos povos oprimidos, dos saberes destruídos ou tidos como
inexistentes, envolvendo o diálogo horizontal entre os saberes, denominado de ecologia
dos saberes, postulando-se pela indispensabilidade da transdiciplinaridade.
Nesse contexto, a importância do pensamento de Foucault revela-se nas próprias
palavras e considerações de Boaventura de Sousa Santos, pelo menos em dois momentos,
no livro “Renovar a teoria crítica, e reinventar a emancipação social”, ao afirmar ser tal
filósofo de grande importância, com seus estudos sobre a normalização para ver como se
11 Boaventura de Sousa Santos, “Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitanismo multicultural.
Introdução: para ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade”, p. 56.
12 Boaventura de Sousa Santos, “Renovar a teoria crítica, reinventar a emancipação social”, p. 29 e ss.
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cria a exclusão13, bem como nos livros “As bifurcações da ordem”14, e “Epistemologias
do Sul”15, em suas palavras:
Vivemos num mundo pós-foucaultiano e, olhando para trás, damo-nos conta, de
repente, de quão organizado era o mundo de Foucault. Segundo Foucault,
coexistem nas sociedades modernas dois modos principais de poder social, por
um lado o poder disciplinas, dominante, centrado nas ciências, e, por outro lado,
o poder jurídico, centrado no Estado e no direito, e a conhecer um processo de
declínio.16
Ambos os autores postulam por um novo Direito. Foucault, por um Direito não
disciplinar e liberto do princípio da soberania, ante a farsa da concepção do ato jurídico
fundador da sociedade e do Direito como base na cessão e no contrato, ante a farsa do
contrato social e da teoria da soberania, a serem substituídos pela teoria da guerra, envolta
na questão da luta de raças. Já Boaventura de Sousa Santos postula por um novo Direito
e uma nova política contra-hegemônicos e pelo cosmopolitismo subalterno, bem como
por um novo Direito internacional, mais democrático e mais participativo, ante a quebra
do contrato social17. Argumenta, outrossim, que os conceitos associados à democracia
liberal baseiam-se em uma ficção quanto a sua universalidade, quais sejam, cidadania,
sociedade civil, direitos e contrato social18.
É possível se falar em um Direito emancipatório, ante a constatação da dualidade
abissal do Direito, mesmo sob a égide do sistema econômico neoliberal, privilegiando o
direito as elites dominantes, onde verifica-se a bifurcação entre o direito dos 1% e o
direito dos 99%, uma dualidade abissal do direito, um direito estatal oficial e um não
estatal, e ante a discrepância entre o law-in-books e o law-in-action? Ou apenas podermos
falar em movimentos, organizações e grupos cosmopolitas subalternos emancipatórios19?
O Direito produzido por estes não seria, portanto, emancipatório? O Direito produzido
pelos oprimidos ou um uso não hegemônico do direito hegemônico, como no caso da
13 Boaventura de Sousa Santos, “Renovar a teoria crítica, e reinventar a emancipação social”, p. 63.
14 Boaventura de Sousa Santos, “As bifurcações da ordem”, p. 31 e ss.
15 Boaventura de Sousa Santos, “Epistemologias do Sul”, p. 453-454 e ss.
16 Boaventura de Sousa Santos, “As bifurcações da ordem”, p. 31 e ss.
17 Ibidem, p. 50, p. 109.
18 Boaventura de Sousa Santos, “Demodiversidade. Imaginar novas possibilidades democráticas”, p. 21
19 Boaventura de Sousa Santos, “As bifurcações da ordem”, p. 110, p. 358 e ss.
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combinação criativa de novas práticas jurídicas e políticas permitindo que as instituições
hegemônicas fossem utilizadas de forma não hegemônica20, a revolução democrática da
justiça através da luta e das estratégias jurídico-políticas de acesso ao Direito e à Justiça,
com destaque para a luta pela terra dos trabalhadores rurais, pela terra indígena e pelas
terras quilombolas, não transformam o Direito em emancipatório, já que neste caso o
direito produzido está voltado à democratização do Estado e da sociedade21? Os exemplos
de casos de justiça popular, tribunal popular, de luta nos Tribunais pelos indígenas,
quilombolas e trabalhadores rurais, apesar de um pequeno número de vitórias, não são
exemplos claros de tentativas por parte dos excluídos e oprimidos de encontrar formas
alternativas de exercer o direito de forma não hegemônica22? As vitórias contra o domínio
de patentes de remédios no caso da Aids e do HIV, o movimento anti-sweatshop, seriam
exemplos de lutas em prol de um direito emancipatório?
É possível, portanto, se falar em desocidentalizar a concepção de Direito, o radical
des-pensar o Direito, o re-inventar do Direito para adequar-se às reivindicações dos
grupos sociais subalternos23?
Podemos ainda falar em democracia real, e quais as condições de uma democracia
“pós-abissal”, uma “democracia sem fim”, aliada a uma humanidade pós-abissal, livre
das linhas abissais de exclusão abissal, desprovida das invisíveis zonas de sub-
humanidade e de desumanidade24, em sociedades politicamente democráticas mas
socialmente fascistas25, já que a democracia foi sequestrada pelas elites do poder aliadas
ao capital financeiro global26 ante a morte do contrato social?
Podemos ainda falar em Estado Democrático de Direito, ou este sobrevive apenas
de forma oficial, pois ainda não foram suspensos oficialmente os direitos fundamentais e
20 Ibidem, p. 339.
21 Ibidem, p. 307.
22 Ibidem, p. 360.
23 Ibidem, p. 29.
24 Boaventura de Sousa Santos, “Demodiversidade. Imaginar novas possibilidades democráticas”, p. 19-20.
25 Ibidem, p. 30.
26 Boaventura de Sousa Santos, “As bifurcações da ordem”, p. 362.
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a nossa Constituição Federal27, ainda vivemos em um Estado Democrático de Direito
apenas porque simplesmente não fora decretada oficialmente a presença de um estado de
exceção? Como afirma Boaventura de Sousa Santos28: “à medida em que a democracia
se esvazia, o estado de exceção se normaliza e a cidadania desliza para a servidão”.
Por derradeiro, pretende-se analisar em que medida as artes poderiam ajudar na
construção das epistemologias do Sul em uma democracia e um direito pós-abissais, ante
suas características de transgressão e de singularidade, permitindo uma múltipla
linguagem e perspectiva.
A relação entre Direito e Arte revela-se a partir da proposta de Boaventura de
Sousa Santos ao mencionar a imaginação sociológica do século XXI, propondo um
exercício de imaginação epistemológica e de imaginação democrática29, e neste sentido
referida proposta poderia ser interpretada no sentido de se reconhecer como postulação
epistemológica a natureza do conhecimento e da teoria como imaginárias, e portanto,
ligadas necessariamente às artes e a tal forma de conhecimento prospectivo, voltando não
a um tempo linear, cronológico, mas kairológico, abrindo-se com isso novos usos e
possibilidades para o Direito e a política.
Assim, conjugando-se as artes à Sociologia e ao Direito, poderíamos, talvez, fugir
ao problema de nossa cultura “logocêntrica”30, destacando Boaventura de Sousa Santos
demais culturas que valorizam o silêncio, a poesia e a espiritualidade. Neste sentido, a
Arte poderá ajudar na descolonização dos discursos e dos imaginários envoltos com a
colonialidade, considerando a produção artística como prática emancipatória da
existência, possibilidade de uma resistência sensível e de uma estética da existência.
A Arte, sendo essencial à criatividade, nos ajudaria na tarefa de criarmos conceitos
novos e nômades31, bem como a fazer transgressões e a lutar contra o desperdício da
experiência que o Ocidente impõe ao mundo e também a si mesmo, uma forma de
27 Ibidem, p. 371.
28 Ibidem, p. 366.
29 Boaventura de Sousa Santos, “Renovar a teoria crítica, reinventar a emancipação social”, p. 43 e ss.
30 Ibidem, p. 47.
31 Ibidem, p. 48-49.
9
postularmos por uma política amorosa, já que Eros envolve os conceitos de outricidade,
do respeito pelo outro, pelo cuidado de si e também de outro, envolvendo, pois toda uma
arte de viver, um “bem viver”.32
Da mesma forma, parte-se da análise acerca da necessidade de uma nova
concepção dos direitos humanos, que reconheça e integre a diversidade cultural, de modo
a permitir a reinvenção de tais direitos como uma linguagem de emancipação, nos termos
de Boaventura de Souza Santos, de “hermenêutica diatópica”, um meio para realizar o
diálogo intercultural entre as diversas concepções da dignidade humana, que reconheça a
incompletude de todas as culturas, uma forma de se reinventar a emancipação social.
Busca-se assim realizar uma crítica aos direitos humanos e fundamentais, do ponto de
vista da temática do multiculturalismo e do pluralismo jurídico, como abordagens
necessárias na defesa de tais direitos e para a concretização de novas políticas públicas.
Um Estado Democrático de Direito deverá estar comprometido com o respeito aos
direitos fundamentais de todas as parcelas da população, concretizados de forma efetiva
por meio de políticas públicas. Neste sentido, no caso de inefetividade de tais direitos, na
prática não estaríamos diante do Estado de Direito e sim de um estado de exceção, onde
grande parcela da população se vê em uma situação de exclusão-inclusiva, ou de
suspensão, conforme a conhecida análise de Giorgio Agamben, ou nas palavras de
Boaventura de Sousa Santos, diante da emergência do fascismo social , em um período
de instabilidade sistêmica, ou de crise sistêmica, crise paradigmática também denominada
de “desmodernização” ou “contramodernização”, com o predomínio dos processos de
exclusão com a imposição de formas abissais ou abismais de exclusão33.
As epistemologias do Sul baseiam-se no reconhecimento mútuo, na compreensão
intercultural e na inovação política com fulcro no respeito pela identidade e pela
diversidade, apoiando as iniciativas que questionem e entrem em diálogo com a tradição
32 Boaventura de Sousa Santos, “Epistemologias do sul”, p. 448.
33 Boaventura de Sousa Santos, “As bifurcações da ordem”, p. 30, 33, 38, 41 e ss.
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epistemológica do Norte, em especial a proposta de novas metodologias e abordagens,
com foco no “conhecer com”, ao invés do “conhecer sobre”34.
O pensamento pós-abissal tem como primeira condição a copresença radical, a
simultaneidade vista como contemporaneidade, a necessidade do abandono da concepção
linear do tempo e a abolição da guerra e da intolerância já que são exemplos da mais
radical negação da copresença. Parte, ainda, do reconhecimento da diversidade
epistemológica do mundo e da pluralidade de formas de conhecimento além do
conhecimento cientifico35. A epistemologia pós-abissal da ecologia dos saberes não parte
do descrédito do conhecimento científico, mas sim de sua utilização não hegemônica,
permitindo desta forma explorar a pluralidade interna da ciência, as práticas científicas
alternativas e reconhecendo a necessidade da interação e interdependência36. O
importante não é o conhecimento apenas abstrato, mas aquele que promova uma
intervenção no real, no mundo, como são exemplo os conhecimentos indígenas que
permitem a preservação da biodiversidade, uma espécie de pragmatismo epistemológico.
Neste ponto, também verificamos certa correlação com o pensamento de Foucault,
que propõe a filosofia como teatro, dando importância para os lugares absolutamente
outros, nas margens, indivíduos e lugares desviantes, o que denomina de heterotopias, o
retomar o não dito, o resto, abrindo a possibilidade de novos usos, um uso anárquico e
uma ação política revolucionária.
A necessidade da transgressão epistemológica e metodológica é destacada por
Boaventura de Sousa Santos como uma forma de luta contra “o colete de força da ciência
moderna”, ao qual teve que estar submetido ao desenvolver a elaboração escrita de sua
tese de doutoramento, apesar de utilizar na prática elementos transgressores, como, por
exemplo, deixando de se pautar pela obsessiva separação entre observação versus
participação, e tomando diversas iniciativas, como interferir com sua opinião em ações e
interações sob observação37 para oferecer apoio jurídico, como fazer intervenções
34 Boaventura de Sousa Santos, “Demodiversidade. Imaginar novas possibilidades democráticas”, p. 11.
35 Ibidem, p. 46 e ss.
36 Boaventura de Sousa Santos, “Epistemologias do sul”, p. 47 e ss.
37 Boaventura de Sousa Santos, “O Direito dos oprimidos”, p. 307.
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políticas e aconselhamento político a líderes comunitários38, reconhecendo a importância
da metodologia transgressora. Neste sentido, o A. entende que “a riqueza do material de
investigação que reunia era afinal uma prova de que a Hidra da ciência moderna podia
reconstituir-se a partir das feridas que a tinham mutilado”39. Em tal ocasião são
questionados dois métodos tradicionais utilizados pela Sociologia, quais sejam, as
entrevistas estruturadas e os inquéritos por questionário, por expropriarem os discursos e
os conhecimentos autônomos dos entrevistados e inquiridos, transformando-os em
matéria-prima para a construção de um conhecimento tido como superior e com grande
poder de controle social, o que ocorreria com a própria Sociologia.40
Acerca da metodologia transgressiva, esta se articularia a uma teoria também
transgressiva, ainda que espontânea, incipiente e intuitiva, e mesmo que esta teoria tenha
ficado a dever à metodologia e ao método transgressor, já que, como afirma Boaventura
de Sousa Santos, o método utilizado teria sido mais radical do que o subsequente
desenvolvimento teórico, servindo, contudo, para a compressão do mesmo no sentido de
“desenredar o positivismo oculto do marxismo convencional, mas também para
questionar a crise paradigmática da ciência moderna” 41.
Aponta Boaventura de Sousa Santos para a transgressão utilizada, em suas
palavras: 42
A riqueza da experiência nada tinha que ver com as palavras rígidas e mortas da
lista de observação. De fato, cheguei à conclusão de que o critério de observação,
implícito na maior parte das check lists que consultei, tendia a orientar a atenção
do investigador para a dimensão técnica da vida social e para o dispositivo
externo, (...) e estes eram os aspectos que se tornavam menos importantes logo
que a participação assumia a sua dinâmica própria. As check lists eram
mecanicistas na sua construção e tendiam a impor uma visão mecanicista da
realidade social. A busca de neutralidade e de detenção do controle por parte do
sociólogo era o equivalente estrutural da dimensão técnica e do dispositivo
externo da realidade social atrás referidos. E tal como qualquer perspectiva
mecanicista envolvia uma ideologia expansionista e uma vontade de dominar,
também a neutralidade do investigador era um meio de neutralizar a realidade
38 Ibidem, p. 315.
39 Ibidem, p. 213.
40 Ibidem, p. 227-229.
41 Ibidem, p. 365.
42 Ibidem, p. 333, p. 335.
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social analisada. Além disso cheguei à conclusão de que o investigador só se
conseguia controlar a si mesmo através do controle que exercia sobre os outros.
Os tipos de violação das regras que a metodologia transgressiva possibilitou
mostraram que esta era, em última análise, uma tentativa de libertar o objeto da
ciência libertando, para isso, o cientista da ilusão de autocontrole.
Vivemos um novo tipo de fascismo, o fascismo social? É o que afirma Boaventura
de Sousa Santos: “o contexto é de fascismo social e político difuso”, o fascismo social
como a nova forma de estado de natureza que prolifera à sombra do contrato social sob
duas formas, o pós-contratualismo e o pré-contratualismo, trivializando a democracia43,
apontando para dois princípios-guia na luta contra tal contexto, caracterizadores de um
longo processo histórico, para a consagração de uma democracia de alta intensidade, ou
radicalização da democracia, quais sejam: “revolucionar a democracia e democratizar a
revolução”. 44 Boaventura de Sousa Santos45 entende que o fascismo social coexiste com
a democracia liberal (sendo a nova forma do estado de natureza) e o estado de exceção
com a normalidade constitucional, da mesma forma como a sociedade civil coexiste com
o estado de natureza, dispondo que “longe de constituir a perversão de alguma regra
normal, fundadora, este estado de coisas é o projeto original da moderna epistemologia e
legalidade (...)”.
Haveria portanto, uma colonialidade na concepção hegemônica e eurocêntrica do
conceito de democracia, reproduzindo um imaginário eurocêntrico, e tornando invisíveis,
irrelevantes ou ininteligíveis as demais formas possíveis de democracia. Neste sentido
vemos aqui outra correlação entre o pensamento de Boaventura de Sousa Santos e de
Michel Foucault, por se tratar tal questão do que Foucau lt entende por construção
histórica de um regime de verdade democrático.
A conclusão à introdução do livro “As bifurcações da ordem”, respondendo à
pergunta se é possível um Direito emancipatório, contudo, é clara ao afirmar não ser
possível, pois o Direito não seria nem emancipatório nem não-emancipatório, já que estes
conceitos estariam relacionados não ao Direito, mas aos movimentos, às organizações e
43 Ibidem, p. 40-41.
44 Boaventura de Sousa Santos, “Esquerdas do mundo, uni-vos!”, Editora Boitempo, São Paulo, 2018, p. 84
45 Ibidem, p. 40.
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aos grupos cosmopolitas subalternos que recorrem à lei para levar as suas lutas adiante46.
Referida análise encontra fundamento igualmente nas revoltas da indignação que parecem
dar um não à proposta de um Direito emancipatório, ou seja, de uma prática não
hegemônica do Direito47, um Direito reconfigurativo, que poderia ser utilizado de modo
a alterar as relações de poder e a reconfigurar a correlação de forças na sociedade, ao
contrário, pois, do Direito configurativo48. Isso porque, na perspectiva dos indignados, o
Direito é basicamente configurativo49, contudo, no entender de Boaventura, as próprias
revoltas da indignação geraram o Direito prefigurativo, de ocupação dos espaços
públicos, que é autoatribuído e não imposto, um Direito de baixo para cima50, a exemplo
de dois outros direitos prefigurativos que existiram em algumas zonas libertadas durante
o movimento de libertação anticolonial e em vigor nos territórios autônomos dos
neozapatistas51.
As lutas cosmopolitas envolveriam a pressão para que sejam elaboradas leis locais
nacionais que criem regimes jurídicos especiais para as organizações econômicas
populares52, mobilizando a legalidade demoliberal de uma forma não hegemônica e pelo
respeito das experiências jurídicas dos grupos vulneráveis, imóveis no sentido de não
conseguirem mover-se além da linha abissal que divide a sociedade atualmente, portanto,
contrário ao desperdício da experiência típico da razão indolente que preenche a
racionalidade dominante.
O cosmopolitismo subalterno ou a legalidade cosmopolita, como condição
necessária para a emancipação social parte de condições ou pressupostos, resultados
principais da sociologia das emergências, sendo exemplos de tal sociologia diversas
inovações institucionais que surgiram das lutas sociais, como no caso dos partidos-
movimento, ou movimento-partido, sendo estes uma aprendizagem a partir do Sul, com
46 Boaventura de Sousa Santos, “As bifurcações da ordem”, p. 110.
47 Ibidem, p. 357 e ss.
48 Ibidem, p. 358.
49 Ibidem, p. 367.
50 Ibidem, p. 368.
51 Ibidem, p. 369.
52 Ibidem, p. 90, p. 96,
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destaque para o partido “Aam Aadmi Party” (AAP), em Nova Deli, dos “5 Stelle” na
Itália e do “Podemos” na Espanha53 e para o movimento “Primavera Árabe”.
A aprendizagem a partir do Sul, com o Sul, possui duas condições, quais sejam, o
entendimento de que tipo de Sul se trata, incluindo o Sul dentro da Europa, representado
por ciganos, imigrantes e filhos de imigrantes, e também os países do Sul da Europa, em
particular Grécia, Espanha e Portugal54; a segunda condição é aceitar que o mundo do
futuro será um mundo pós-europeu. Os objetivos são democratizar, descolonizar e
desmercadorizar, aliados à reivindicação das formas de convivência radicalmente
democráticas.
Trata-se então da necessidade de uma resistência ativa, política e epistemológica
contra o pensamento abissal, o pensamento ortopédico, vinculado à razão indolente que
cria homogeneidades, reduzindo a complexidade, um desafio à tradição epistemológica
canônica do Norte global, “incluindo as ciências sociais e as humanidades”55,
reconhecendo-se a necessidade de um pensamento alternativo de alternativas, sendo
exemplo o cosmopolitismo subalterno.
O cosmopolitismo subalterno se manifesta através dos movimentos e iniciativas
de globalização contra-hegemônicas, sendo um dos principais exemplos o Fórum Social
Mundial, com destaque, dentro deste, para os movimentos indígenas,56 e para a não
necessidade de se buscar um sentido de completude e muito menos de universalismo, já
que esta é precisamente uma das críticas que se faz ao pensamento científico hegemônico,
reconhecendo-se a diversidade inesgotável do mundo, e a diversidade epistemológica do
mundo que continua a ser construída.
A principal condição, contudo, para um Direito emancipatório é a refundação da
democracia, uma democracia real, uma democracia radical, que promova a igualdade
política, social e econômica, o respeito pela igualdade na diferença, aliada a uma
53 Boaventura de Sousa Santos, “Demodiversidade. Imaginar novas possibilidades, p. 23.
54 Ibidem, p. 56, 57.
55 Ibidem, p. 11.
56 Boaventura de Sousa Santos, “Epistemologias do Sul”, p. 42 e ss.
15
reconfiguração profunda das relações de poder e uma profunda reforma do Estado através
de um processo político participativo, por meio de um constitucionalismo
transformador57, tendo em mente alguns processos constitucionais recentes em países da
América Latina como o Equador e a Bolívia.
Seria possível postularmos por um outro direito e uma outra política, tal como
postulam Boaventura de Sousa Santos e Michel Foucault, mesmo sob a égide do regime
neoliberal?
Foucault postula por um novo Direito, antidisciplinar e liberto do princípio da
soberania, um novo uso e possibilidade para o Direito e para a política após a desativação
dos dispositivos a cargo do biopoder, em seu livro “Em defesa da sociedade”, propondo
também a recuperação dos saberes sujeitados, os “conteúdos históricos que foram
sepultados, mascarados em coerências funcionais ou em sistematizações formais”,
desqualificados como saberes não conceituais, como insuficientemente elaborados,
sepultados na erudição, “saberes ingênuos, saberes hierarquicamente inferiores, saberes
abaixo do nível do conhecimento ou da cientificidade requeridos”58, tais como o saber do
doente, o saber do delinquente, o saber das pessoas, no sentido de um saber particular,
um saber local, um saber diferencial. Trata-se do saber histórico das lutas, da “insurreição
dos saberes” contra os efeitos de poder do discurso científico, em especial contra os
efeitos centralizadores de poder59, que são vinculados à instituição e ao funcionamento
de um discurso científico.
Por sua vez, Boaventura de Sousa Santos postula por um Direito e uma política
da globalização contra-hegemônica e do cosmopolitismo subalterno, dos oprimidos,
insurgente60, como formas de luta contra o fascismo social e a exclusão social, utilizando-
se como base a reconstrução teórica do movimento zapatista, por um novo radicalismo
nas lutas pelos direitos sociais. Partindo-se do reconhecimento de que o Direito ao lado
do conhecimento são as duas principais manifestações do pensamento ou da linha
57 Ibidem, p. 371.
58 Michel Foucault, “Em defesa da sociedade”, p. 08.
59 Ibidem, p. 08 e ss.; p. 10.
60 Boaventura de Sousa Santos, “As bifurcações da ordem”, p. 50, p. 53 e ss.
16
abissal61, os quais “embora distintas e operando de forma diferenciada, são mutuamente
interdependentes”.(...) A linha abissal invisível separa de um lado a ciência, a filosofia e
a teologia e de outro os conhecimentos populares, leigos, plebeus, camponeses e
indígenas, “separa o domínio do Direito do domínio do não-direito, fundamenta a
dicotomia entre o legal e o ilegal”, deixando de fora o território sem lei, fora da lei, do a-
legal, ou onde não oficialmente vigoraria outro direito.
No entender de Boaventura de Sousa Santos62, há um fascismo epistemológico,
causando a ignorância acerca de outros saberes, não ocidentais, ou sua inexistência,
destruição ou supressão, também denominado de epistemicídio, sendo combatidos
através da ecologia dos saberes, a epistemologia da douta ignorância, aliada a aposta,
tomando como exemplos Nicolau de Cusa, que reconhecia a importância do saber que
nada se sabe, e Pascal, que postulava pela aposta no caso da impossibilidade de se
confirmar a existência de Deus. Portanto, diante de uma pluralidade infinita de saberes,
cada saber olhando a partir de sua própria perspectiva e desconhecendo os limites e
possibilidades dos demais saberes (diferença epistemológica), há a necessidade do
diálogo intercultural, da ecologia dos saberes, do diálogo entre os saberes, da comparação
recíproca entre os saberes, buscando-se os limites e as possibilidades cruzadas, sendo
necessária uma dupla abordagem, o trabalho de tradução e a artesania das práticas.63
Bastaria, contudo, postular por uma filosofia à venda, ou neste mesmo mercado se
encontrariam também a teologia, as humanidades, ou melhor, todos os conhecimentos
produzidos pelo Ocidente dominante, contrários às epistemologias do Sul, considerando-
se tal sul e norte, não são aqueles geográficos, mas os epistemológicos e políticos?
Foucault postula por um novo uso e possibilidade para o Direito e para a política
após a desativação dos dispositivos a cargo do biopoder, enquanto que Boaventura de
Sousa Santos postula por um Direito e uma política da globalização contra-hegemônica,
pós-abissais, e pelo cosmopolitismo subalterno, dos oprimidos, insurgente64, como
61 Boaventura de Sousa Santos, “Epistemologias do Sul”, p. 30-31.
62 Ibidem, p. 460 e ss.
63 Ibidem, p. 460 e ss.
64 Ibidem, p. 50, p. 53 e ss.
17
formas de luta contra o fascismo social e a exclusão social, utilizando-se como base a
reconstrução teórica do movimento zapatista, por um novo radicalismo nas lutas pelos
direito sociais.
A arqueologia proposta por Foucault seria o método próprio da análise das
discursividades locais e a genealogia, a tática que faz intervir, a partir dessas
discursividades locais, os saberes dessujeitados, a fim de reconstituir o projeto de
conjunto.65 Segundo Foucault, a análise histórico-política, ao contrário da análise
filosófico-jurídica de até então, permitiria descobrir a clivagem dos enfrentamentos e das
lutas que as ordenações funcionais ou as organizações sistemáticas tiveram como objetivo
justamente mascarar, sendo que com o aparecimento desses saberes locais das pessoas é
que foi feita a crítica. Foi pelo acoplamento entre os saberes da erudição e os saberes
desqualificados pela hierarquia dos conhecimentos e das ciências que se decidiu
efetivamente, o que forneceu à crítica dos discursos destes últimos quinze anos a sua força
essencial. Nesses saberes jazia a memória dos combatentes, aquela precisamente que até
então tinha sido mantida sob tutela. Essas genealogias, como acoplamento desse saber
erudito e desse saber das pessoas só foram possíveis com uma condição – que fosse
revogada a tirania dos discursos englobadores, com sua hierarquia, contra a instância
teórica unitária que pretenderia filtrá-los, hierarquizá-los, ordená-los em nome de um
conhecimento verdadeiro.66
Inverte-se em tal obra a posição de Clausewitz, entendendo-se que, na verdade, a
política é a guerra continuada por outros meios e que a decisão final só pode vir da guerra,
ao passo que Boaventura de Sousa Santos postula que o Direito é a política por outros
meios.
A concepção jurídica, liberal do poder político, segundo os filósofos do século
XVIII, trabalha com a questão de um ato jurídico, ato fundador do Direito, como da ordem
da cessão ou do contrato; poder como direito original que se cede, constitutivo da
soberania e tendo o contrato como matriz do poder político. Esquema contrato-opressão,
65 Michel Foucault, “Em defesa da sociedade”, p. 08, p. 10-11.
66 Ibidem, p. 16 e ss.
18
ou esquema jurídico – oposição entre legítimo e ilegítimo -, tal teoria jurídico-política da
soberania data da Idade Média, sendo a reativação do direito romano em torno do
problema da monarquia e do monarca – teoria da soberania -, que serviu de instrumento
para justificação da constituição de monarquias feudais, e depois, de monarquias
administrativas67. O esquema binário da guerra, da luta, do enfrentamento das forças
como o fundamento da sociedade civil, a um só tempo princípio e motor do exercício do
poder político, devendo ser abandonado o modelo jurídico de soberania para a análise
correta das relações de poder. No lugar do discurso filosófico-jurídico que se ordena pelo
problema da soberania e da lei, o discurso histórico-político que decifra a permanência
da guerra na sociedade.68 Propõe Foucault, no lugar da soberania, dominação, o Direito
como instrumento dessa dominação, veículo de técnicas de sujeição polimorfas.69
Surge nos séculos XVII e XVIII uma nova mecânica do poder que incide primeiro
sobre os corpos, que se exerce continuamente por vigilância, absolutamente incompatível
com as relações de soberania, já que a teoria da soberania é vinculada a uma forma de
poder que se exerce sobre a terra muito mais do que sobre os corpos, sobre o deslocamento
e a apropriação pelo poder não do tempo e do trabalho, mas dos bens e da riqueza. Este
novo tipo de poder foi um dos instrumentos fundamentais da implantação do capitalismo
industrial, este poder não soberano, é o poder disciplinar. 70O discurso da disciplina é
alheio ao da lei e ao das regras como efeito da vontade soberana. Traz um discurso que
será o da regra, não da regra jurídica derivada da soberania, mas da regra natural, da
norma, da normalização. Atualmente o poder se exerce ao mesmo tempo através desse
Direito e dessas técnicas da disciplina; que esses discursos nascidos da disciplina invadam
o Direito, que os procedimentos de normalização colonizem cada vez mais os
procedimentos da lei, isso é que se denomina de sociedade da normalização. Propõe uma
teoria da dominação71, e ao invés da tríplice preliminar “lei”, “unidade” e “sujeito” (teoria
da soberania), sugere “técnicas”, “heterogeneidade das técnicas” e seus “efeitos de
67 Ibidem, p. 30.
68 Ibidem, p.225, p. 228.
69 Ibidem, p.23, p. 26-29, p. 40, p. 142, p. 229 e ss,
70 Ibidem, p. 32 e ss.
71 Ibidem, p. 38, 39 e ss.
19
sujeição” que fazem dos procedimentos de dominação a trama efetiva das relações de
poder e dos aparelhos de poder. Aponta para o surgimento de um racismo de Estado, o
qual a sociedade vai exercer sobre ela mesma, sobre seus próprios elementos, um racismo
interno, o da purificação permanente, uma das dimensões fundamentais da normalização
social no fim do século XIX e início do século XX, racismo biológico e centralizado.
Houve então uma transformação das lutas de raças em lutas de classes.72
Outro ponto em que parece poder haver uma convergência entre o pensamento de
Michel Foucault e de Boaventura de Sousa Santos, é no fato de que este último afirma ter
ocorrido a separação das concepções de democracia e revolução73, e que precisaríamos
reunir tais conceitos, almejando o que denomina “democratização da revolução ou
revolução da democracia”. Foucault também coloca que a partir de Boulainvilliers foi
possível o acoplamento dessas duas noções, a de constituição e a de revolução74,
propondo no lugar do selvagem, do homem natural, criado para constituir a sociedade
antes de a sociedade existir, como fundador da sociedade e da soberania, com fundamento
na troca, na reciprocidade e na bondade, substituindo tal concepção pela do bárbaro, o
qual nunca cede sua liberdade e que surge tendo como pano de fundo não mais a natureza,
mas a civilização, sendo seu vetor a dominação, a revolução e a barbárie. Trata-se, pois,
de uma horda bárbara fundadora, e não do contrato social proposto por Rousseau. Houve,
portanto, toda uma tentativa de eliminação de tal discurso do bárbaro, da mesma forma
articulado com a tentativa de eliminação ou redução, colonização do elemento da guerra,
a partir da Revolução Francesa, do discurso da história, retranscrito em crises e em
violências.75
Segundo Foucault, posteriormente o tema da raça vai ser retomado por algo muito
diferente, que é o racismo de Estado, articulado ao fenômeno fundamental do século XIX
que é o biopoder, a assunção da vida pelo poder, uma espécie de estatização do biológico,
72 Ibidem, p. 67, p. 52-53. Marx: “mas nossa luta de classes, (...) nós a encontramos nos historiadores franceses quando
eles narravam a luta das raças”.
73 Boaventura de Sousa Santos. Palestra Tucarena-PUCSP, Semana do livro Político.2017.
74 Boaventura de Sousa Santos, “Epistemologias do Sul”, p. 162.
75 Ibidem, p. 181-182, 198.
20
colocando em xeque a teoria clássica da soberania76. Inverte-se a lógica, pois na teoria
clássica da soberania, o direito de vida e de morte era um dos seus atributos fundamentais,
fazer morrer e deixar viver. Contudo, devido às transformações do direito político do
século XIX, surge um outro direito novo, que não vai apagar o primeiro, mas penetrá-lo,
perpassá-lo, modificá-lo, um poder exatamente inverso: poder de fazer viver e de deixar
morrer, instalando um novo direito, o direito de fazer viver e de deixar morrer.
Nos séculos XVII e XVIII apareceram técnicas de poder centradas no corpo
individual, com foco na equação “disciplina = vigilância + treinamento”, procedimentos
pelos quais se assegurava a distribuição espacial dos corpos individuais, sua separação,
alinhamento, colocação em série e em vigilância e organização de um campo de
visibilidade, com o fim de aumentar-lhes a força útil, técnicas portanto, de racionalização
e de economia estrita de um poder, sistema de vigilância, de hierarquias, de inspeções, de
escriturações, de relatórios (tecnologia disciplinar do trabalho). Durante a segunda
metade do século XVIII, surge algo novo, uma outra tecnologia de poder, não disciplinar
e que não exclui a primeira, mas a embute, a integra, a modifica parcialmente
(mecanismos regulamentadores - biorregulamentação pelo Estado); vai utilizá-la
implantando-se de certo modo nela e incrustando-se efetivamente graças a essa técnica
disciplinar prévia. Agora a nova técnica não se dirige mais ao homem-corpo, mas ao
homem vivo, ao homem-espécie, uma segunda tomada de poder massificante; no lugar
da anatomopolítica do corpo humano, que manipula o corpo com fim de torná-lo dócil e
útil, uma biopolítica da espécie humana, o biopoder, no lugar da tecnologia disciplinar do
corpo a tecnologia regulamentadora da vida77. O direito de intervir para fazer viver, para
aumentar a vida, controlar seus acidentes, suas deficiências. Há a desqualificação
progressiva da morte, tornando-se mais privada e escondida. A morte passa para o âmbito
privado, o poder deixa de lado a morte, e passa a focar na mortalidade.
Esses dois mecanismos disciplinar e regulamentador não se excluem, mas se
articulam. Há um elemento que vai se aplicar da mesma forma ao corpo e à população,
que permite a um só tempo controlar a ordem disciplinar do corpo e os acontecimentos
76 Ibidem, p. 201.
77 Ibidem, p. 205-207.
21
aleatórios de uma multiplicidade biológica, que é a norma. Vivemos na sociedade da
normalização, onde se cruzam a norma da disciplina e a norma da regulamentação. O
racismo inserido nos mecanismos do Estado, como mecanismo fundamental do poder, foi
ocasionado pela emergência desse biopoder, isto é, não há funcionamento moderno do
Estado que, em certo momento, em certo limite e em certas condições não passe pelo
racismo.78 Segundo Foucault, o racismo é o meio de introduzir afinal, no domínio da vida
de que o poder se incumbiu, um corte: o corte entre o que deve viver e o que deve morrer,
estabelecendo uma cesura do tipo biológico no interior de um domínio biológico. Quanto
mais indivíduos anormais forem eliminados, mais a vida tornar-se-ia sadia e pura. A raça
e o racismo são a condição de aceitabilidade de tirar a vida numa sociedade de
normalização, função assassina do Estado. O racismo vai se desenvolver juntamente com
a colonização, com o “genocídio colonizador”. Um racismo de guerra, novo no fim do
século XIX, e o que faz sua especificidade é sua ligação à técnica do poder, à tecnologia
do poder, ao funcionamento de um Estado que é obrigado a utilizar a raça, a eliminação
das raças e a purificação da raça para exercer seu poder soberano. Outra singularidade no
regime do Estado nazista, é que no limite, todos têm o direito de vida e de morte sobre o
seu vizinho, por meio da denúncia, portanto, ocorre o desencadeamento do poder
assassino e do poder soberano através de todo o corpo social, a política deve resultar da
guerra e a guerra deve ser a fase final e decisiva que vai coroar o conjunto.79 Vivemos na
época da generalização absoluta do biopoder e do direito soberano de matar. Época do
Estado racista, Estado assassino, Estado suicida.
Boaventura de Sousa Santos80postula por um cosmopolitismo multicultural, e por
uma concepção multicultural dos direitos humanos, reinterpretando os direitos humanos
como multiculturais e propondo uma hermenêutica diatópica, através de um diálogo
intercultural, permitindo-se uma multiplicidade de vozes. Isto ante a necessidade de novas
formas de democracia e cidadania, que valorizem a criação de espaços de luta, cidadania
assim considerada como possuindo um papel libertador, emancipador, no sentido do
78 Ibidem, p. 214.
79 Ibidem, p. 218.
80 Boaventura de Sousa Santos, “Reconhecer para libertar. Os caminhos do cosmopolitismo multicultural”, Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
22
desenvolvimento de convivialidades e socialidades. Neste sentido é que se impõe a
releitura do papel do Estado e da sociedade civil, ambos comprometidos com o
desenvolvimento e aprimoramento de políticas com foco na ampliação da convivência e
diálogo.
Trata-se de olhar para outros tipos de saberes e culturas não vistas e não
valorizadas pelo discurso homogeneizador da atualidade. Trata-se da luta, portanto, pela
interculturalidade, plurinacionalidade, multiculturalismo, todos interligados e essenciais
ao Estado Democrático de Direito, de um multiculturalismo emancipatório, ao contrário
do que vem prevalecendo nas sociedades ocidentais, qual seja o multiculturalismo
reacionário. A fim de se fazer valer tal multiculturalismo emancipatório deve haver o
reconhecimento da diversidade cultural dos grupos sociais, através de uma
“interculturalidade descolonial”, que seria realizada ao se considerar partir das
experiências das vítimas das diversas injustiças sociais e opressões81.
Boaventura de Souza Santos afirma a necessidade de se reinventar a emancipação
social para novos manifestos, questionando os ideais modernos de emancipação social
lançados pela globalização – neoliberal. Ante o aumento exponencial das desigualdades
sociais entre países ricos e pobres e entre ricos e pobres no interior do mesmo país, se
fazem imprescindíveis novas formas de globalização contra hegemônicas, alternativas,
contrárias à globalização neoliberal; trata-se de iniciativas, movimentos e organizações
que lutam por uma sociedade mais justa e pacífica e de caminhos para emancipação
social.
É a postulação de uma nova concepção dos Direitos Humanos, que reconheça e
integre a diversidade cultural de modo a permitir a reinvenção dos direitos humanos como
uma linguagem de emancipação, uma concepção cosmopolita de humanidade e de
direitos humanos, propondo uma “hermenêutica diatópica”, um meio para realizar o
diálogo entre essas diferentes concepções da dignidade humana que reconheça a
incompletude de todas as culturas. Tal concepção cosmopolita dos direitos humanos
contraria a lógica eurocentrista ou nortecêntrica da concepção tradicional de tais direitos,
81 Boaventura de Sousa Santos, “A difícil democracia” – cap. 4 – politizar a política e democratizar a democracia, p.
116; p. 149,150 e ss.
23
que leva à conclusão de que a maioria da população mundial não é sujeito de direitos
humanos, mas na verdade objeto de discursos de direitos humanos82. Ao contrário da
concepção monocultural e ocidental de direitos humanos, a diversidade de noções de
dignidade humana.
O multiculturalismo pauta-se no reconhecimento da diferença, confrontando os
falsos universalismos e a colonialidade do poder, os quais são intrínsecos ao capitalismo
histórico e à exploração do trabalho assalariado. Um dos exemplos de multiculturalismo
emancipatório é a prática da autodemarcação de terras indígenas, de cunho
emancipatório, ao contrário da tradicionalmente praticada segundo a lógica do Estado.
É essencial uma nova proposta de democracia, partindo da insuficiência do
modelo hegemônico de democracia liberal representativa, que não passa de uma
democracia de baixa intensidade, com a distância crescente entre representantes e
representados, já que estamos vivendo em verdadeira crise de legitimidade e em uma
inclusão política abstrata feita de exclusão social. A democracia liberal representativa e
sua expansão global coincidiu com a crise da dupla patologia nos países centrais, a
patologia da participação e a da representação, a primeira vislumbrada pelo aumento do
número do abstencionismo nas eleições, e a segunda pelos cidadãos cada vez menos se
sentirem representados por seus supostos representantes.
Devemos reinventar a emancipação social conjugada com a invenção de novas
cidadanias baseadas no recurso de uma sociologia das ausências, identificando-se
silêncios, denunciando o que é silenciado, invisibilizado, desvalorizado e tornado
inexistente para além da linha abissal, uma linha radical que divide a realidade social em
dois universos distintos, impossibilitando a copresença nos dois lados da linha, e
permitindo o aumento dos espaços públicos pelas populações marginalizadas, de modo
que as vozes de todos sejam ouvidas, através de uma sociologia das emergências,
identificando a resistência, princípios e práticas que demonstram outras experiências e
outras democracias.
82 Boaventura de Sousa Santos, “Demodiversidade.Imaginar novas possibilidades democráticas”, p. 59 e ss., p. 62 e ss.
24
O multiculturalismo tido como emancipatório e progressista, intercultural visa a
alcançar a diversidade como uma nova dimensão das relações sociais, partindo do
reconhecimento da diferença cultural que subjaz à ideia de interculturalidade, afirmando
a alteridade e o processo de aprendizagem mútua, todos sendo vistos simultaneamente
como educandos e educadores. Uma democracia efetiva só poderá de fato ocorrer em uma
sociedade com cidadãos com consciência verdadeira e uma autonomia individual,
fortalecedores da resistência aos poderes do desenraizamento e a favor da produção do
enraizamento, da valorização do que é próprio.
O multiculturalismo com a questão do respeito ao diferente, ao outro e à diferença
liga-se, pois, à proposta de democracia radical, efetiva, contra-hegemônica, vinculando a
democracia representativa, não mais suficiente, às democracias participativas,
deliberativas, - a exemplo da experiência da América Latina, e em particular do Brasil -
e culturais, pois pressupõe o respeito às diversas culturas e a todos os segmentos sociais.
É essencial uma nova proposta de democracia, partindo da insuficiência do
modelo hegemônico de democracia liberal representativa, que não passa de uma
democracia de baixa intensidade, com distância crescente entre representantes e
representados, já que estamos vivendo em uma verdadeira crise de legitimidade, e em
uma inclusão política abstrata feita de exclusão social; torna-se vital, portanto, reinventar
a emancipação social conjugada com a invenção de novas cidadanias baseadas no recurso
a uma sociologia das ausências (Boaventura de Sousa Santos).
Há a necessidade de novas formas de democracia e cidadania, que valorizem a
criação de espaços de luta, cidadania assim considerada como possuindo um papel
libertador, emancipador, no sentido do desenvolvimento de convivialidades e
socialidades, com o respeito à alteridade, à outricidade e à solidariedade.
Nesse sentido, impõe-se a releitura do papel do Estado e da sociedade civil, ambos
comprometidos com o desenvolvimento e aprimoramento de políticas com foco na
ampliação da convivência e do diálogo. Por isso a importância de uma maior
conscientização, autonomia e liberdade, ensejando assim cidadãos mais politizados, mais
25
ativos como agentes de movimentos sociais, multiplicando-se os espaços de cooperação
e participação.
Considera-se assim a importância da conscientização para uma maior participação
dos grupos vulneráveis em movimentos sociais permeadores de novas consciências e
possibilidades, além de utopias, exemplos de movimentos contra- hegemônicos, bem
como as propostas de democracia radical contra-hegemônicas, com base no
multiculturalismo e no respeito às diferenças, e com base no respeito ao saber popular,
camponês, ancestral, a exemplo daquele dos indígenas, saber corporal, feminino, não
homogeneizador, não eurocêntrico e etnocêntrico, não colonizador, saberes contrários à
colonialidade do saber, nos dizeres de Aníbal Quijano.
Os movimentos sociais são os heróis de nosso tempo? Nossa principal esperança
se encontra nos movimentos sociais, como fonte de globalização contra-hegemônica, nos
dizeres de Boaventura Sousa Santos, e principal instrumento de pressão e cobrança ao
poder público para o respeito aos direitos consagrados constitucionalmente, e no
aperfeiçoamento de políticas públicas a fim de consagrar estes mesmos direitos na prática;
contudo, torna-se imprescindível o diálogo intermovimentos, intercultural, verdadeiro
procedimento de tradução intercultural (procedimento de tradução entre saberes de duas
ou mais culturas diversas) e interpolítico, com o objetivo de ampliarem-se as forças, não
agindo de forma fragmentada, não estabelecendo hierarquias, e ampliando com isso o
conceito de alteridade e respeito à diferença por meio de procedimentos de aprendizagem
mútua.
Os diversos grupos vulneráveis devem, portanto, se articular em movimentos
sociais conjuntos, fortalecendo-se e conquistando o sentido da identidade coletiva e
cidadã. É o que se chama de interseccionalismo, devendo ser tratadas conjuntamente
todas as espécies de opressões, sem hierarquias, e serem trabalhadas conjuntamente as
questões de raça, classe e gênero, tal como já anunciava Ângela Davis,83 militante e
filósofa que merece ser mencionada, especialmente por ser duplamente inferiorizada em
sua condição de mulher e de negra, um expoente na luta contra as desigualdades, as
83 Ângela Davis, “Mulheres, raças e classe”, Editora Boitempo, 2017.
26
exclusões, as opressões e o racismo. As lutas devem ser conjuntas, sem hierarquização de
uma forma de opressão sobre outra, mas atentas ao conceito de interseccionalidade, ou
seja, as lutas devem ser entrelaçadas, havendo intersecções entre raça, classe e gênero, já
que são mútuas e cruzadas. Portanto, no seu entender, classe informa raça, e raça informa
classe, e gênero informa classe.
Em sentido semelhante, Boaventura de Sousa Santos afirma ser essencial a
articulação entre os diversos movimentos e organizações na luta contra todas as formas
de opressão, sendo imprescindível a união das esquerdas no Brasil, em suas palavras,
“politizar a política e democratizar a democracia”, partindo da concepção que a
democratização da democracia passa pela concepção das democracias participativas,
deliberativas e comunais.84 Em seu livro “Esquerdas do mundo, uni-vos!” reitera tal
pensamento, reafirmando a necessidade da luta extra institucional e de uma articulação
permanente com os movimentos sociais e todas as organizações populares. É um convite
para que as forças de esquerda do Brasil se unam, apesar das diferenças ideológicas,
tomando como exemplo Portugal.85
RESULTADOS - CONCLUSÃO
A ecologia dos saberes, como uma epistemologia desestabilizadora e pós-abissal
partiria não do descrédito do conhecimento científico, mas sim do seu reconhecimento e
da sua utilização não hegemônica86, e ao se empenhar por uma crítica radical da política
do possível, envolveria, ao contrário de uma ação conformista, uma ação com-clinamen,
sendo tal conceito originário de Epicuro e Lucrécio, significando a capacidade de desvio
dos átomos, como movimento espontâneo, logo também dos seres humanos. Contudo, ao
contrário do movimento revolucionário, tal criatividade da ação com-clinamen não se
84 Boaventura de Sousa Santos. “Reconhecer para libertar. Os caminhos do cosmopolitismo multicultural”. “A difícil
democracia, reinventar as esquerdas”. Cap. 4 - politizar a política e democratizar a democracia, p. 139 e ss.; p. 149,150
e ss. “Demodiversidade. Imaginar novas possibilidades democráticas”, p. 68 e ss.
85 Boaventura de Sousa Santos, “Esquerdas do mundo, uni-vos!”, p. 21-22.
86 Boaventura de Sousa Santos, “Epistemologias do Sul, p. 47 e ss.
27
assentaria em uma ruptura dramática, mas em um ligeiro desvio, tornando possíveis as
combinações complexas e criativas entre os átomos, seres vivos e grupos sociais87.
A ação com-clinamen encontra alinhamento com o pensamento pós-abissal diante
de sua capacidade para atravessar as linhas abissais. A ecologia dos saberes é constituída
por sujeitos desestabilizadores, dotados de uma subjetividade com especial capacidade,
energia e vontade de agir com-clinamen.
Aqui se faz a conjugação necessária da ação com-clinamen com a abordagem
poética do conhecimento e do reconhecimento da necessidade de se resgatar o vínculo na
verdade indissolúvel entre Filosofia, Direito e Arte, rompido com o formalismo da
modernidade, em especial, a conjugação do pensamento pós-abissal com as artes, ante
seu caráter e função transgressores, permitindo-se a multiplicidade de leituras e a
singularidade e diferença, essenciais ante a luta contra a monocultura dos saberes
científicos. Neste sentido, destaca-se o conceito de clinamen de Harold Bloom88, por estar
relacionado justamente com a atividade poética. Neste sentido a compreensão da
criatividade poética como uma três-leitura que é antes trans-leitura, nas palavras de
Harold Bloom: “um poeta desvia-se do poema do seu precursor executando um clinamen
em relação a ele”. 89
Isso porque a poética permitiria desativar os dispositivos a cargo do biopoder, as
funções meramente informativa e utilitária da linguagem, e encontrar espaço, um resto,
onde um novo uso e novas possibilidades para a linguagem seriam possíveis. Assim, a
arte, a criação são vistas como resistência, permitindo-se um resto entre os processos de
subjetivação e desubjetivação, e novos usos e possibilidades para o Direito e para a
política. Resgatando tal potencial das artes e a ligação das artes com o Direito, seria
recuperada uma ligação na verdade indissolúvel que na modernidade, com o formalismo
87 Ibidem, p. 29 e ss.
88 Ibidem, nota 62, p. 29-30 e ss.
89 Ibidem, p. 462. Nas palavras novamente de Boaventura de Sousa Santos, ao comentar sobre a artesania das práticas
como um dos procedimentos, ao lado do trabalho de tradução, das ecologias dos saberes, envolvendo também as artes:
“A preocupação com a dimensão ética e artística da transformação social pode incluir todos esses saberes e ainda as
humanidades no seu conjunto, a literatura e as artes (...). a ecologia de saberes sinaliza a passagem de uma política de
movimentos sociais para uma política de intermovimentos sociais”.
28
(e com o humanismo) foi rompida; à visão tradicional do Direito como ciência e técnica,
puro, cartesiano, contrapõe-se uma visão alternativa que tem o Direito como poiético,
como criação, fertilizado pelas demais disciplinas, por meio da transdisciplinaridade, e
assim permanecendo vivo, fértil. A função de transgressão das artes necessária para a
autopoiese do Direito, no sentido de sua constante renovação, precisando do elemento da
diferença, da singularidade e da multiplicidade. A Arte nos permite o assombro, o êxtase,
ter de volta a humanidade perdida, a re-humanização do Direito. O êxtase, o abandono de
si, o desprezo de si de que já falava Nietzsche (o mais desprezível dos homens, aquele
que não despreza mais a si mesmo), e é retomado por Foucault, como essencial no cuidado
de si. No mesmo sentido, entendemos a análise de Foucault, ao propor seu interesse pelas
heterotopias, não pelas utopias, ou seja, pelos espaços absolutamente outros, nas margens,
espaços e indivíduos desviantes, postulando por virar no avesso a narrativa e conseguir
outra significação. Uma abordagem que leve em conta o não dito, o resto, possibilitando
novos usos, um uso anárquico e dionisíaco, uma ação política revolucionária. Tais
propostas em tudo se relacionam com a proposta de metodologia e teoria transgressoras
de Boaventura de Sousa Santos, permitindo-se uma postura e uma abordagem abertas,
uma epistemologia transgressora e libertadora, e um conhecimento-emancipação no lugar
do conhecimento-regulação, uma luta contra o positivismo arqueológico90 em busca de
metodologias, epistemologias livres da tentativa de controle social e dominação de classe.
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