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    Cinema brasileiro e pblico: o que a educao tem a ver com isso?

    Ronaldo Rosas Reis 1

    1. CINEMA BRASILEIRO E PBLICO: MAPEANDO A QUESTO POLTICA

    O cinema brasileiro encontra-se hoje diante da situao paradoxal de ter

    ultrapassado um sculo de existncia sem que tenha conquistado, efetivamente, uma

    dimenso pblica, uma presena social institucionalizada.

    verdade que tal situao de no se saber se existe ou no existe um mal

    crnico das artes em nosso pas2. Todavia, contrariamente a uma exposio de artes

    plsticas, por exemplo, a obra cinematogrfica traz como exigncia a presena de um

    pblico de massa estimado em dezenas de milhares3

    Dentre os principais fatores a serem considerados no exame desse problema est

    a necessidade de otimizao da freqncia do pblico mediante a conquista de um

    nmero maior de salas e de um tempo mais prolongado de exibio das cpias de um

    filme no circuito.

    , o que no Brasil adquire o contorno

    de um problema complexo devido aos fatores que examinarei em seguida.

    De acordo com o Secretrio Nacional de Audiovisual do MinC (Ministrio da

    Cultura), professor Jos lvaro Moiss, entre meados dos anos 80 e no incio dos 90 o

    cinema brasileiro perdeu mercado, chegando a ocupar em 1990/91 perodo em que o

    governo Collor praticamente inviabilizou a produo cinematogrfica nacional - menos

    de 1% das salas de exibio. A partir da, quando foram introduzidas as leis de

    incentivo cultura e sua produo voltou a crescer, houve o incio de uma recuperao

    1 Ronaldo Rosas Reis Doutor em Comunicao e Cultura (UFRJ), Ps-Doutor em Educao (UFMG) e Professor do Programa de Ps-Graduao em Comunicao Imagem e Informao da Universidade Federal Fluminense e da Faculdade de Educao da mesma Universidade. E-mail: [email protected] 2 Sobre esse aspecto ver FILHO, P.V. "Lugar nenhum: o meio de arte no Brasil". In Arte Brasileira Contempornea. Caderno de Textos 1. Rio de Janeiro: Funarte, 1980, pp.23-25 3 A esse propsito disso, j em 1927, Walter Benjamin chamava a ateno para o fato de que para ser rentvel, "um longa metragem precisaria atingir um pblico de nove milhes de pessoas". Cf. "A obra de arte ao tempo de sua reprodutibilidade tcnica". In Obras Escolhidas, vol. 1. Magia, Arte e Poltica, So Paulo, Brasiliense, 1985, pp. 171-172.

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    de espao e de pblico, sendo que de 1994 a 1998, cerca de 80 filmes foram produzidos

    no pas4

    Apesar dos nmeros confirmarem tal recuperao, o otimismo revelado pelo

    Secretrio do MinC no seu artigo deve ser relativizado, pois os nmeros (relativos e

    absolutos) da ocupao de salas e da freqncia do pblico ainda se mostram

    incipientes. De fato, entre 1997/98 apenas 5% de salas foram ocupadas e, em 99, 8%.

    Em termos de pblico, entre 1995/98, o cinema brasileiro foi assistido por mais de 10

    milhes de pessoas e, em 1999 - at meados de junho -, cerca de 3,7 milhes de

    espectadores assistiram filmes nacionais, o que muito pouco considerando-se, dentre

    outras coisas, que h 30 anos esses filmes eram assistidos por cerca de 35% de pessoas

    que freqentavam as ento 3600 salas de projeo existentes em todo pas.

    .

    Na outra ponta do problema h que se considerar o tempo de exibio do filme

    brasileiro nas salas de projeo, hoje em dia excessivamente limitado. Considerando-se

    que a produo de um filme exige, no mnimo, 18 meses entre a captao de recursos e

    a entrega das cpias aos distribuidores, e o tempo de exibio nas salas de todo o

    territrio brasileiro tem sido, na melhor das hipteses e salvo as rarssimas excees, de

    apenas 2 meses (a mdia de 3 semanas), verifica-se a uma relao assimtrica entre o

    capital investido - incluindo a o trabalho dos realizadores, atores, tcnicos e produtores

    - e a distribuio do produto final, as cpias, no circuito nacional.

    No que diz respeito questo do trabalho na atividade cinematogrfica, vale

    notar que esse mesmo problema que amarra produo-distribuio-exibio do filme

    brasileiro a uma condio perifrica em seu prprio pas, funciona igualmente como

    elemento inibidor das possibilidades de renovao dos quadros de realizadores,

    diretores, artistas e tcnicos, e, por extenso, do prprio cinema como atividade cultural.

    Conforme salienta o jornalista Jaime Biaggio, a falta de condies para produzir

    continuamente a principal razo para que uma significativa quantidade de jovens

    realizadores abandone a profisso ainda no seu incio. De acordo com o jornalista "a

    safra de cariocas e paulistas que renovou a cara do cinema brasileiro na segunda metade

    dos anos 80 e que, justo quando ia deixar de ser promessa e virar fato, foi engolida pela

    4 Cf. MOISS, Jos lvaro. Quem tem medo do cinema brasileiro?. In www.estado.estadao.com.br Acessado em 21/08/2001, baixado em 22/10/2001.

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    nova realidade (a canetada mortfera de Collor no corao da atividade cinematogrfica

    nacional)"5

    Muito embora nos ltimos sete anos a postura governamental tenha sido a de

    minimizar ou, na melhor das hipteses, relativizar a existncia de uma concorrncia

    norte-americana desleal e predatria no mercado distribuidor e exibidor de filmes, o fato

    que ela no apenas ocorre na atualidade como historicamente tem sido uma das

    principais a responsveis pela condio perifrica do cinema brasileiro mencionada

    mais acima.

    .

    Com efeito, desde a dcada de 1920 os executivos da indstria cinematogrfica

    norte-americana tm montado um cartel internacional de distribuidores no sentido de

    impedir o crescimento do pblico, e por conseguinte o lucro e o progresso do cinema

    brasileiro. Segundo Arnaldo Jabor, o cardpio de maldades dos lobistas das

    distribuidoras norte-americanas parece ser inesgotvel, sendo que os mtodos desses

    executivos consistem, dentre outras coisas inominveis, de ameaas aos congressistas

    brasileiros de retaliao comercial6

    Os obstculos criados pela indstria cinematogrfica norte-americana para

    dificultar a colocao do produto nacional no mercado local no so, certamente, os

    nicos responsveis pelos problemas que amarram a produo cinematogrfica

    brasileira sua sempiterna subalternidade lgica dos distribuidores. Tambm conspira

    a favor desse estado de coisa a ausncia de um planejamento estratgico de mdio e

    longo prazo formulado com base em resultados de pesquisas com metodologia e

    mtodos objetivos para a obteno sistemtica de indicadores confiveis sobre o perfil

    sociocultural do pblico freqentador/consumidor, seu gosto e a sua opinio sobre o

    cinema brasileiro. A falta de esprito pblico resultante da histrica unio de setores

    fisiolgicos da classe poltica e da intelligentsia nacional, interessados to somente em

    ocupar posies de destaque no governo, impede que se exija dos realizadores,

    produtores, financiadores, distribuidores e exibidores os indicadores mencionados para

    a formulao de um planejamento estratgico. Em contrapartida, o mtodo comumente

    utilizado por aqueles setores para atacar a crise permanente de pblico que vive o

    cinema em nosso pas tem sido o de criar solues to mgicas quanto bizarras.

    .

    5 Cf. BIAGGIO, Jaime. "Crnica da gerao perdida". Rio de Janeiro, O Globo, Segundo Caderno, primeira e segunda pginas, segunda-feira, 6/08/2001. 6 Cf. JABOR, Arnaldo. "O velho imperialismo americano no mudou nada" in www.globo.com/globonline/colunas . Acessado em 27/07/2001, baixado em 01/08/2001.

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    Seria ocioso recuarmos ao tempo da Embrafilme, do Concine e da

    obrigatoriedade de exibio (anos 70) e das Leis Sarney e Rouanet (anos 80), ou,

    ainda, relembrar a j mencionada canetada mortfera de Collor para percebermos a

    existncia de uma longa lista de disfunes gestadas a partir dessas idias. Apesar disso,

    mais uma vez aqueles setores tm o que comemorar: trata-se da criao da ANCINE

    atravs de medida provisria promulgada em 2001. Celebrada pelos cinco maiores

    produtores de cinema do pas e rejeitada pelos mdios e pequenos produtores, em sua

    expressiva maioria documentaristas, curta-metragistas e distribuidores independentes, a

    ANCINE nasce sob a presidncia de um antigo freqentador dos corredores palacianos

    e dos gabinetes de parlamentares, o cineasta Gustavo Dahl7

    O esprito do projeto que deu origem a ANCINE basicamente o mesmo que

    criou os outros demais citados, e pressupe uma matemtica distributiva com o dinheiro

    pblico na qual o lucro da venda de um filme para o mercado externo auferido na

    conta dos produtores privados nacionais e internacionais, e o prejuzo decorrente da

    bilheteria no mercado interno socializado entre os pagantes de impostos, a sociedade

    brasileira. Como conseqncia prtica, isso significar mais restries de acesso ao

    mercado para os mdios e pequenos produtores e realizadores, e tambm a limitao das

    aes das distribuidoras e exibidoras independentes que trabalham com a importao de

    filmes de mercados no hegemnicos

    .

    8. Em suma, como analisa o jornalista Diogo

    Mainardi, fazer filmes no Brasil implicar (mais uma vez) em submeter-se tutela do

    Estado e sua chantagem: o triunfo do cinema chapa-branca com as contas no

    vermelho9

    .

    2. O QUE A EDUCAO TEM A VER COM ISSO?

    A hiptese que pretendo construir a partir do mapeamento crtico acima a de

    que, ao contrrio do que tem ocorrido historicamente, a institucionalizao do cinema

    7 Sobre esse assunto ver a entrevista de Artur Xexo com o cineasta: Um cineasta poltico. Vinte anos depois de perder a Embrafilme, Gustavo Dahl ganha a Ancine. In O Globo, Segundo Caderno, pp.1 e 3, quarta-feira, 24 de outubro de 2001. Nunca demais lembrar, mesmo porque na matria do Globo no citado o fato, que o mesmo Dahl participou, junto com o cineasta Ipojuca Pontes, do governo Collor, tendo sido um dos responsveis pela poltica de terra-arrasada imposta ao cinema brasileiro entre 1990 e 1992. 8 Cabe notar, sob esse ltimo aspecto, a incoerncia da crtica do Secretrio do Audiovisual a existncia de um modelo cultural nico baseado na oligopolizao do mercado, pois ao restringir a importao de filmes da Europa central, latino-americanos, africanos, do Oriente Mdio e asiticos, acaba reforando a presena dos produtos norte-americanos no mercado brasileiro de filmes. 9 MAINARDI, Diogo. Cinema chapa-branca. In Revista Veja, So Paulo, 10 de outubro de 2001, p.149.

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    brasileiro na sociedade no pode nem deve estar restrito apenas ao fator econmico

    relacionado com a produo e a comercializao de filmes. A minha percepo a de

    que tal restrio alimenta o crculo vicioso falncia-retomada-falncia do cinema

    brasileiro, impedindo o reconhecimento por parte do pblico do locus histrico desse

    cinema a partir das linhas de continuidade existentes entre os gneros, os estilos e as

    narrativas de diferentes perodos. Nesse sentido, percebo que o debate em torno da

    questo da presena social do cinema brasileiro deve ser abordado igualmente luz de

    uma economia poltica que leve em conta a necessidade urgente de formao de platias

    como um movimento a ser realizado de forma sistemtica e intencional na escola, nos

    movimentos sociais, nos sindicatos.

    Recorrerei a dois argumentos para justificar essa opo, ambos referenciados

    num que aspecto que me parece central na anlise de Gaudncio Frigotto sobre as

    mudanas dos paradigmas conceituais no campo educacional no ambiente ps-moderno.

    Trata-se da estratgia a ser adotada pelos educadores progressistas face quilo que

    podemos afirmar ser a ideologia do capitalismo tardio: o neoliberalismo10

    Ao criticar o estilhaamento dos processos educativos e de conhecimento

    provocado pela demanda neoliberal o autor lembra que a concepo gramsciniana de

    escola histrico concreto a base terica e politicamente mais avanada para entender-

    se que a autntica pluralidade e diferena pressupe a democratizao e igualdade das

    condies. Por conseguinte, salienta que a direo de um projeto educativo que

    desenvolva as mltiplas dimenses do humano no pode prescindir da percepo de

    que a formao e qualificao humana como atividade e prticas sociais no-neutras

    [...] (so) elas mesmas elementos constituintes da luta hegemnica. E, finalmente,

    tendo em vista a construo de alternativas democrticas e socialistas ao projeto

    neoliberal excludente, conclui ser necessrio desenvolver um esforo sistemtico de

    compreenso crtica da crise do capitalismo hoje [...] (com base) num projeto educativo

    que desenvolva as mltiplas dimenses do humano

    .

    11

    Diante dessas consideraes, o primeiro argumento a ser apresentado diz

    respeito a exigncia de socializao intencional e sistemtica tanto do capital simblico

    .

    10 Cf. Os delrios da razo: crise do capital e metamorfose conceitual no campo educacional. In GENTILI, Pablo. Pedagogia da excluso. Rio de Janeiro, Vozes, 2000, pp. 77-108. 11 Op.cit. pp.86-87 e 103-105.

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    acumulado pelo cinema brasileiro quanto do conhecimento terico produzido com base

    nesse capital.

    Ora, no curso da existncia centenria do cinema brasileiro acumulou um capital

    simblico extraordinariamente rico e pluralista de gneros, estilos e narrativas,

    estimulando, em decorrncia, a produo de uma igualmente rica e pluralista massa

    crtica, ambos fundamentais nos planos artstico e terico para a formao esttico-

    cultural da sociedade brasileira. Sob esse ponto de vista pode-se dizer que tanto a

    prtica cinematogrfica quanto a teoria configuram uma taxionomia crtica consistente e

    nos levam ao reconhecimento da materialidade histrica do cinema brasileiro, porm,

    conforme procurarei demonstrar em seguida, tal reconhecimento apenas parcial.

    Com efeito, na medida em que inexistem mecanismos que garantam a

    socializao formal, sistemtica e intencional daquele capital simblico e da produo

    terica correspondente, a apreenso das questes estticas e da linguagem por parte da

    sociedade tem se dado de forma estilhaada. De um modo geral o pblico levado a

    buscar nos grandes jornais e, eventualmente, na TV e no rdio, as informaes sobre o

    cinema, os quais, por fora do mundanismo que os caracterizam, tendem torn-las

    andinas. Salvo as raras excees de praxe, a predominncia do carter palpiteiro da

    chamada "crtica cinematogrfica" nos principais jornais do pas tem levado a

    estigmatizao de gneros e linguagens nascentes e/ou que sejam assumidamente

    experimentais12

    O segundo argumento a ser apresentado diz respeito a necessidade de ampliao

    do quadro conceitual que abriga os parmetros curriculares da rea Arte de modo a

    permitir a incluso do cinema e dos diferentes meios de expresso que se utilizam das

    linguagem audiovisual como a TV, o vdeo e o CDROM, ao lado das artes visuais, da

    msica, do teatro e da dana. Embora seja desnecessrio lembrar que as limitaes de

    . A precria e instvel interao cinema-pblico o prejuzo mais

    evidente decorrente desse processo, sendo o menos evidente porm mais intenso e

    duradouro a dificuldade de reconhecimento do locus histrico desse cinema a partir das

    linhas de continuidade existentes entre os gneros, os estilos e as narrativas de

    diferentes perodos, conforme os termos da hiptese apresentada mais acima.

    12 Recorrendo a determinados mitos consolidados pela prpria mdia em outras pocas, tais como, a de que ao cinema brasileiro falta empatia, que tem uma narrativa difcil de ser assimilada pelas grandes massas populares e que existe uma obsesso temtica dos realizadores por sexo, violncia e misria, a as colunas que versam sobre cinema elidem o significado histrico da sua presena entre ns, condenando prematuramente jovens realizadores a uma espcie de limbo do mercado, do qual muitos dificilmente conseguem sair.

  • 7

    espao para expor extensivamente a proposta impe igualmente limites para a sua

    apreciao, penso que seja importante comentar um aspecto que me parece anteceder a

    todas as demais questes conceituais pertinentes ao debate da proposta, evidentemente

    que sem a menor pretenso de esgot-lo.

    Trata-se, portanto, da histrica resistncia utilizao do cinema na prtica

    educativa verificada entre os educadores, o que no meu entender explica mas no

    justifica o fato de que apenas um limitadssimo quadro de pesquisadores de reas

    estranhas Comunicao e Artes tem procurado tensionar o potencial de estudos

    interdisciplinares que o cinema oferece. Se no se pode negar que esses estudos existem

    em algumas poucas escolas superiores, indispensvel observar que os mesmos

    sobrevivem de forma quase isolada e com raras inseres em fruns ampliados.

    Analisando a trajetria da relao entre o cinema e a educao desde a iniciativa

    pioneira do Instituto Nacional do Cinema Educativo (INCE)13

    A favor dessa resistncia a professora Marlia Franco observa que o fato do

    cinema educativo ter surgido a partir da viso oficial do Estado, comprometido portanto

    com uma viso arbitrria do mundo, teria sido decisivo para que diversas geraes de

    educadores deixassem de adotar o cinema como um recurso pedaggico

    , criado h mais de

    sessenta anos pelo antroplogo Edgar Roquette Pinto, observamos que a inexistncia de

    linhas de continuidade nos estudos do assunto refora a idia de uma perspectiva

    histrica instvel e sujeita a um eterno recomear, o que nos obriga a refletir sobre as

    razes da resistncia que tm os educadores em geral para com o cinema na prtica

    educativa.

    14. Para a

    professora tal quadro de resistncia vem se modificando gradualmente desde o incio

    dos anos 80, quando percebe-se uma tmida mudana entre os educadores no sentido de

    quebrarem os preconceitos contra a linguagem audiovisual e promoverem a sua

    penetrabilidade no esprito das platias15

    13 Segundo o pesquisador Joo Luiz Vieira, o INCE foi o primeiro rgo oficial no Brasil especificamente planejado para o cinema, possuindo uma funo estritamente pedaggica [...], tendo como definio principal [...] fornecer um programa geral para a educao das massas que valorizasse, principalmente, os aspectos variados e desconhecidos da cultura brasileira. In RAMOS, Ferno. Histria do Cinema Brasileiro. So Paulo, Crculo do Livro, 1987, pp. 149-150.

    .

    14 Segundo a autora, o que houve foi uma generalizao a partir da idia de que o cinema educativo era uma coisa chata. Cf. FRANCO, Marlia. Cinema e Educao. In Revista Imagem Tecnologia Educao. Rio de Janeiro, UFRJ, 1988, p. 46. 15 FRANCO, Marlia, op.cit., p. 46.

  • 8

    Todavia, a percepo que tenho a de que tais preconceitos foram apenas

    recalcados pelos educadores, permanecendo subjacentes na forma de utilizao do

    cinema na prtica educativa. O que me dado a perceber que o cinema e qualquer

    outro meio que adote a linguagem audiovisual tem servido somente como um veculo

    para a abordagem de temas relativos aos contedos propostos e desenvolvidos pelo

    professor. Tal apropriao do cinema (assim como do vdeo, da TV e mais recentemente

    do CDROM) traz subjacentemente uma viso utilitarista e perifrica do meio e, nesse

    sentido, despotencializadora da fora comunicativa e expressiva da linguagem que lhe

    prpria, alm de reproduzir no processo de mediao esttica os instrumentos de

    dominao presentes na lgica dominante do capitalismo tardio16

    Por ora cabe notar que parte dessas dificuldades advm, por um lado, de um

    determinante histrico geral da nossa aculturao identificado por Brito e Resende

    como rarefeita. Para eles, a ausncia entre ns de uma tradio de visualidade que

    indique a existncia de uma materialidade histrica da arte brasileira resultante de um

    longo processo no qual o saber da arte foi colocado num plano secundrio

    , mais adiante voltarei

    a isso.

    17

    Quanto a esse aspecto quero apenas observar que tal hegemonia levou a que se

    oficializasse um instrumental terico-metodolgico de historicizao do ensino de arte

    no pas equivocado, porquanto fundado num modelo de anlise evolutivo e seqencial

    dos programas curriculares, dos seus padres e modelos, dos seus mtodos de ensino, de

    suas tcnicas e objetivos, de suas finalidades e aplicao. Tal modelo exclui de todo

    modo as anlises sobre a questo do espao social de legitimao histrica da arte a

    partir da transformao das linguagens, deixando indeterminado as condies concretas

    do aparecimento e desenvolvimento dos fatos que articulam e relacionam a trajetria do

    ensino de arte com o meio de arte nos termos expostos, no apenas subtraindo do senso

    comum a possibilidade de se esclarecer sobre o que seja o trabalho de arte e o que ele

    . Por outro

    lado, penso tambm que as dificuldades apontadas dizem respeito longa hegemonia

    das teses da Arte-Educao no quadro das lutas dos educadores pela afirmao do

    ensino de arte no pas.

    16 Sobre esse assunto ver BARBERO, Jsus Martn. Dos meios s mediaes. Rio, UFRJ, 1997. 17 Sobre esse assunto ver BRITO, Ronaldo e RESENDE, Jos. Mame belas-artes. In DUARTE, Paulo Srgio, Arte contempornea brasileira. Rio de Janeiro, FUNARTE, Caderno de Textos 1. 1980.

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    produz, como obscurecendo a leitura que pretendem oferecer sobre o estatuto social da

    educao e da arte18

    Quero, finalmente, articular os comentrios acima com o que disse antes a

    propsito da viso utilitarista e perifrica dos educadores sobre o cinema e sobre o tipo

    de inibio que isso provoca no processo de mediao esttica.

    .

    Parece-me claro que a resistncia nos termos aqui expostos no se resume

    apenas s linguagens audiovisuais, e em particular ao cinema, mas se estende

    totalidade do conjunto de linguagens no verbais, incluindo as que j se encontram

    contempladas no PCN-Arte. Nos moldes at aqui colocados o que existe no campo

    educacional o domnio estratgico de um certo saber sobre a arte, instncia de

    conhecimento superficial porquanto baseada na ideologia no-orgnica a partir das

    demandas do mercado e institucionalizada arbitrariamente19

    O cinema brasileiro (e a arte brasileira) portador de um capital simblico

    extraordinrio, de um saber produzido na intensidade de um trabalho ainda pouco

    conhecido e valorizado. Sequer existe um acervo sistematizado de toda a sua produo

    centenria. Uma galeria formidvel de tipos e personagens criados por atores como

    Grande Othelo, Oscarito, Mazzaropi, Z Trindade, Zlia Hoffman, Zez Macedo,

    dentre muitos outros, vivem apenas na memria de geraes passadas, elidindo a

    possibilidade de novas geraes de atores e atrizes se espelharem, oferecendo s platias

    de hoje a idia de um percurso. Obras primas como Limite, de Mrio Peixoto, filmada

    em 1929, e considerada em todo mundo como um dos dez mais importantes filmes da

    histria do cinema, so desconhecidas das platias brasileiras. As exuberantes

    filmografias de Humberto Mauro, de Nelson Pereira dos Santos, de Jlio Bressane e

    . Em outras palavras, o que

    quero dizer que tal saber levado a desconhecer o trabalho de arte como a instncia

    de legitimao da arte na vida social, e, por outro lado, a reconhecer apenas a

    dimenso histrica atribuda a arte pelo mercado, reproduzindo, nesse sentido, a viso

    de mundo burguesa sobre a arte presente na lgica cultural do capitalismo tardio.

    Parece-me claro tambm que, a partir disso, o processo de mediao esttica funcionar

    sempre com base nos valores inculcados, os quais, cabe sempre repetir, no

    reconhecem o trabalho de arte como instncia produtiva da sociedade.

    18 Tal comentrio baseado nas teses que introduzem o PCN-Arte. Cf. BRASIL, MEC. 19 Sobre essa definio ver a primeira nota do texto de Gaudncio Frigotto citado anteriormente. Cf. nota 9.

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    mesmo as dos cineastas mais citados pelos meios de comunicao, como Glauber

    Rocha, Cac Diegues, Ana Carolina e Arnaldo Jabor, jazem empilhadas precariamente

    em arquivos empoeirados, em grande parte ao alcance apenas dos cinfilos.

    Ao atribuir exclusivamente lgica do mercado a freqncia do pblico ao

    cinema, a mentalidade poltica vigente, tal como procurei mapear resumidamente no

    presente trabalho, exclui de forma deliberada a participao da sociedade brasileira na

    construo do saber do cinema. De outra parte, ao no perceber a sua importncia para

    a formao de platias, compreendendo-a como parte de um embate contra-hegemnico,

    o educador certamente estar contribuindo para essa excluso. Reconhecer pois, que a

    nova realidade histrica demanda conhecimentos calcados na episteme, como salienta

    Frigotto20

    , significa dar o primeiro passo em direo do saber do

    cinema.

    20 Op. cit. p.105.


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