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2
Do costume de ir à praia à prática do surfe
Todos os anos a história se repete. O verão se anuncia e as grifes de
vestuário já lançaram suas coleções e as tendências da estação. Novas formas de
comportamento surgem. A preocupação com o corpo aumenta e muitas pessoas se
mexem para deixá-lo em “boa forma”, atraente. Esportes são praticados,
atividades comerciais e recreativas ganham força, movimentando essa estreita e
disputada faixa de areia que separa o mar da terra: a praia. Em torno dela muita
coisa acontece, gerando desdobramentos que passam a fazer parte de nosso
cotidiano. Mesmo quem vive no interior é submetido à convites publicitários do
tipo: venha passar suas férias na praia! O costume de ir à praia exerce uma forte
influência sobre o homem, principalmente em nós, brasileiros, privilegiados por
oito mil quilômetros de litoral. Que o diga o carioca da Zona Sul, que tem na praia
uma espécie de extensão da sua casa e praticamente não distingue as estações do
ano para tomar um banho de mar. Mas será que essa vontade de estar na praia
sempre existiu? Como esse hábito tornou-se comum?
Neste capítulo faremos uma viagem pelo tempo para entender como o
ambiente praia foi ocupado, tornou-se “natural” em nossa sociedade. Do território
pouco frequentado ao hoje disputado espaço de lazer, de contemplação, de
esportes, veremos como a prática do surfe chegou a nós e, logicamente, explicar
do que se trata essa atividade. O objetivo aqui é tratar essas questões
compreendendo-as como uma construção, buscando entender os sujeitos que
participam dessas práticas. Portanto, compreender o conceito de cultura pelo
pensamento dos antropólogos nos ajuda a entender os hábitos relacionados à
prática do surfe e sua presença em nosso cotidiano.
Veremos, por exemplo, que a medicina desempenhou papel importante
para que as pessoas frequentassem a praia. O discurso médico foi o responsável
pela recomendação do banho de mar como terapia para curar várias doenças. A
partir daí, a praia, antes um ambiente hostil, vazio, vai se popularizando,
tornando-se sinônimo de saúde e lazer. Os hábitos esportivos e um novo conceito
de estética em relação ao corpo fazem parte desse processo. Dessa forma, verificar
as práticas associadas à praia, como veremos adiante, pode nos ajudar a
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18
compreender a construção de novos costumes da sociedade contemporânea, tais
como a prática do surfe.
2.1
“Cultura de praia”
O surgimento do termo cultura é recente. Laraia (1986) nos conta que em
fins do século XVIII, Edward Tylor (1871) sintetizou as palavras Kultur, de
origem germânica, relativa à espiritualidade, e Civilization , de origem francesa,
simbolizando a materialidade, para criar a expressão inglesa Culture. O conceito
de cultura, como sugeriu Tylor, referia-se a um comportamento aprendido, que
não depende de um fator genético. Em suas palavras, “um todo complexo que
inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra
capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade"
(Apud Laraia, 1986).
A partir da definição de Tylor, hoje superada, o conceito de cultura tornou-
se um incansável objeto de reflexão entre os antropólogos, resultando em
inúmeras concepções sobre o tema. Cabe a nós aqui buscar um conceito que nos
oriente a compreender os processos que tornaram a praia um ambiente popular.
Entender como este espaço é vivido por quem a procura como local de lazer, de
práticas esportivas, como o surfe, por exemplo, e consome produtos vinculados a
essa prática.
O norte-americano Clifford Geertz, um dos mais importantes pensadores
da antropologia, entende a cultura como um sistema de símbolos partilhados por
uma coletividade. Para o antropólogo, a cultura é um código público de
significados transmitido historicamente, partilhado por nós, membros do sistema
cultural, e materializado em comportamentos. Assim, Geertz procura definir o
homem baseado em uma definição de cultura, considerada por ele “não um
complexo de comportamentos concretos, mas um conjunto de mecanismos de
controle, planos, receitas, regras, instruções (que os técnicos de computadores
chamam de programa) para governar o comportamento” (Apud Laraia, 1986).
Segundo Laraia (1986), ao formular o conceito dessa forma, Geertz nos
remete a uma idéia de que todos os homens são geneticamente aptos a receber um
programa e este programa é o que chamamos de cultura. Geertz, portanto, nos
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ajuda a entender que a concepção de cultura está diretamente relacionada à
compreensão do próprio homem, um tema que sempre permeou as reflexões
humanas. Sendo assim, podemos imaginar que a discussão sobre o assunto
dificilmente se esgotará, principalmente se pensarmos que a cultura é dinâmica,
uma vez que os variados sistemas culturais vivem em constante mutação. Cabe a
nós, como nos ensina Laraia (1986), “entender esta dinâmica para atenuar o
choque entre as gerações e evitar comportamentos preconceituosos”.
Uma vez que este capítulo trata do ambiente praia e sua naturalização em
nossa sociedade, vale registrar também o conceito do espaço físico como possível
condicionador da diversidade cultural. Algumas dessas teorias foram
desenvolvidas sobretudo por geógrafos no início do século XX, como, por
exemplo, a de Huntington (1915), para quem o clima podia determinar o
progresso de uma civilização. Mas, segundo Laraia (1986) idéias sobre um
determinismo geográfico em relação à cultura foram suplantadas por outras
concepções mais modernas como a de Geertz. Ainda assim, há quem defenda nos
dias atuais conceitos semelhantes. É o caso do antropólogo Edward Hall (2005).
Em estudo sobre a relação entre o ambiente e o comportamento das
pessoas, Hall desenvolve a idéia que o espaço nos influencia muito mais do que
supomos. O autor nos conta que o homem, desde a antiguidade, sempre teve uma
estreita ligação com a natureza, da qual dependia a sua própria sobrevivência, mas
esta ligação foi declinando com o surgimento das grandes cidades. Para Hall, a
humanidade culturaliza a natureza, sendo um erro pensar o homem como se fosse
uma coisa e o ambiente que o cerca fosse outra: "tudo o que o homem é e faz está
associado à experiência do espaço" (Hall, 2005).
Desde a definição de Tylor, que resumia em uma só palavra todas as
possibilidades de realização do homem, o termo cultura vem sendo empregado de
várias formas para classificar o comportamento da sociedade humana. Por
exemplo, a “cultura nacional”, a “cultura cristã”, a “cultura negra”, a “cultura do
futebol”, a “cultura de praia”. Mas como, afinal, começou a aparecer um conjunto
de práticas associado à praia? Como se deu a naturalização desse ambiente em
nossa sociedade?
O historiador Alain Corbain, em O Território do Vazio: a Praia e o
Imaginário Ocidental, faz uma viagem ao passado para mostrar como surgiu o
costume da beira-mar e a consequente invenção das praias como ambiente de
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20
veraneio. A partir de poesias, romances, pinturas, tratados de medicina e obras
religiosas, o autor faz uma análise de como a sociedade percebe o litoral ao longo
dos séculos XVIII e XIX. A visão antiga sobre o mar era marcada
dominantemente pela interpretação bíblica, do oceano primordial caótico, de
mistérios insondáveis, diluviano e catastrófico. Segundo o autor, esse quadro
começa a mudar com a teologia natural, que preconizava a natureza como um
presente divino dedicado ao homem. A partir daí surge uma concepção medicinal
do mar, onde o outrora hostil ambiente litorâneo se transforma numa alternativa
contra os males da civilização.
Corbain (1989) nos conta que no século XVI e início do século XVII, a
melancolia estava em evidência na Europa. Essa "deleitação mórbida", porém, vai
perdendo força na França de Luis XIV. O vigoroso combate travado pelos jesuítas
contra a acedia medieval – espécie de prostração que acometia o cristão –
contribui para o declínio da "desarmonia do corpo e da alma", tal com era definida
a melancolia à época.
Em 1621, o inglês Robert Burton lançou A História da Melancolia,
exercendo grande influência sobre os aristocratas britânicos. No livro, ele
ensinava que um ambiente puro, preceitos higiênicos e cuidados corporais
combatiam a angustia e tinham ação terapêutica para o espírito, ressaltando a
importância de exercícios físicos, pois, “como todos os seres do universo, o
homem tem necessidade de movimento”. Burton aconselhava ainda a prática dos
chamados rural sports, como a equitação, o football, a pesca e a natação. Até
então, o banho de mar ou de rio era considerado imoral, típico das pessoas sem
educação. Após a obra de Burton, torna-se uma prática autorizada. E, mais do que
isso, além de poder banhar-se, o verdadeiro gentleman deveria saber nadar.
Anos depois, em 1701, o médico britânico Floyer reforça ainda mais os
novos costumes salutares ao escrever a História do Banho Frio. Na obra, o autor
enfatiza os benefícios da água gelada para o homem como tratamento de variados
distúrbios no organismo. Citando uma grande lista de referências antigas, Floyer
lembra que tal prática já era recomendada entre outros por Hipócrates e Galeno3.
3 A clínica médica como é conceituada atualmente teve sua origem há cerca de 2500 anos, na Grécia, com Hipócrates. Foi ele o introdutor da anamnese como etapa inicial do exame médico. Hipócrates também foi o pioneiro na observação clínica, compreendendo a história da doença, que leva o doente a procurar o médico, e o exame físico do paciente em seus pormenores, sempre buscando dados para a elaboração do diagnóstico e do prognóstico. Já no século I, na medicina romana, foi Galeno quem daria os primeiros passos no campo da anatomia e fisiologia.
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Portanto, o costume do banho terapêutico faz parte de um processo enraizado por
remotas convicções como as do poeta grego Eurípedes (485 a.c), para quem “ o
mar lava e limpa toda a sujeira humana”. Ou do pensador inglês Francis Bacon
(sec. XVII) que afirmava que “o banho do corpo na água fria favorece a
longevidade”. O próprio Floyer assim descreveu as virtudes marinhas:
Os banhos gelados provocam uma sensação de frio, e isso, juntamente com o terror e a surpresa, contrai consideravelmente a membrana e os canais dos nervos nos quais residem os humores sutis, e estes, assim mantidos em estado de tensão e compressão, comunicam tanto mais facilmente as expressões externas à alma sensível. Não apenas os sentidos externos ficam mais aguçados com o frio, mas as faculdades animais que nos ajudam a agir e raciocinar adquirem então mais vigor por causa da pressão externa do ar frio (Apud Corbain, 1989).
As palavras de Burton e Floyer reproduziam o discurso de médicos e
higienistas que se iniciou no século XVIII, consagrando as virtudes da água fria
do mar para o homem, bem como as vantagens do contato com as ondas e a
paisagem costeira. Por conta disso, muitos ingleses, sobretudo das classes
dominantes, foram estimulados a buscar refúgios no litoral, levando a crer que a
idéia dessa pequena faixa de areia como lugar de "peregrinação" tenha
possivelmente surgido no Reino Unido. Primeiro como alternativa às estâncias
termais e, só depois, como ambiente de lazer.
O prestígio medicinal do banho de mar marcaria os séculos XVIII e XIX.
Os balneários europeus, sobretudo na Inglaterra, eram o que havia de mais
avançado na cura de todos os tipos de doenças, desde o tratamento de neuroses a
erupções cutâneas. Tal como assinala o médico Richard Russell, em 1750:
A água do mar é capaz de impedir um rápido alastramento da putrefação no interior do corpo, dissolver os tumores endurecidos e limpar e proteger todo o sistema glandular das viscosidades impuras. Além disso, a água do mar possui virtudes que são próprias da água fria, tonifica todas as partes e confere força e vigor ao corpo inteiro (Apud Corbain, 1989). Junto da nova preocupação voltada à saúde, as praias do velho mundo
ganharam bancos para descansar à beira-mar, belvederes para contemplação,
placas de orientação, grandes hotéis, cassinos e uma série de iniciativas voltadas
ao lazer. Pessoas de todos os cantos da Europa procuravam o ar marinho, o iodo,
para revigorar a alma e o corpo contra os males da civilização. O aparecimento do
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transporte ferroviário, associado ao marítimo, estimulou ainda mais as viagens
recreativas aos balneários de verão, dando início ao chamado turismo moderno,
apoiado nos três modismos característicos do século XIX: o termalismo, o
cassinismo e o paisagismo (Gaspar, 2004).
Em estudo sobre a história do turismo moderno, o pesquisador Dario
Paixão (2005) explica que o termalismo surgiu entre os gregos e romanos como
prática de descanso, divertimento e higiene, baseado na idéia da água como fator
terapêutico, tanto para o rejuvenescimento, como na cura de doenças. Ainda
segundo o autor, o costume do cassinismo, ou seja, da prática autorizada dos jogos
de azar, teve estreita relação com o termalismo. Paixão (2005) conta que na longa
história dos jogos sempre houve uma distinção entre o lícito e o ilícito, justificada
entre a habilidade e o azar, o passatempo e o vício. Nos séculos XVI e XVII, os
jogos ganharam força na Europa com o fenômeno do Gran Tour, calcado na busca
de melhor saúde e conhecimento. O surgimento de famosos balneários (centros
termais e climáticos) no século XVIII, dos quais destacam-se Spa4-
Francorchamps, na Bélgica; Biarritz, na França; e Brighton, na Inglaterra,
também contribui para a legalização de espaços para jogos. De acordo com Paixão
(1999), apenas em balneários e estâncias termais de determinados países as casas
de jogos eram permitidas por Napoleão Bonaparte para atrair turistas aos resorts
(complexos turísticos) que aliavam termalismo, cassinismo e paisagismo. No
século XIX, o jogo passou a atividade principal em muitas dessas casas e novos
destinos ganharam projeção, como Monte Carlo, em Mônaco; Nice e Cannes, na
França; Baden Baden5, na Alemanha; a Riviera, na Itália; Estoril, em Portugal;
Atlantic City, nos Estados Unidos; Mar del Plata, na Argentina.
A pesquisadora Claudia Gaspar (2004), em estudo sobre a ocupação da
orla carioca, relata que no Brasil o pioneiro involuntário do mergulho terapêutico
foi o príncipe regente D. João, tudo por conta de uma inflamação provocada por
picada de carrapato que não cicatrizava. Seguindo as ordens médicas para tomar
banho de mar, o monarca comprou uma quinta na praia de São Cristóvão, nos
fundos do, hoje, cemitério do Caju e ali, na então praia de areia branca, de águas
cristalinas e lama medicinal, curou sua ferida.
Mas o costume do banho de mar aparece no Rio de Janeiro, efetivamente,
4 Spa em francês significa fonte e, em inglês, estância mineral. 5 Baden quer dizer banho.
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na segunda metade do século XIX, seguindo as tendências européias. Por volta de
1850, as praias mais frequentadas da cidade eram as centrais, como a Boqueirão
do Passeio, Santa Luzia e D. Manoel. O banho terapêutico trouxe todo um
conjunto de elementos para uma cidade que assumia, cada vez mais,
características de uma estação balneária.
O mergulho ao mar popularizava-se e em pouco tempo as casas de banho
multiplicaram-se. Novos inventos surgiam, como as barcas de banho, onde
chegava-se por meio de bote. Ou a curiosa 'Vestimenta Flutuante', também
chamada de roupa salva-vidas. As casas de banho ligavam o mar à cidade em
forma de extensos corredores, às vezes com mais de 100 cabines para a troca de
roupas. Estabelecimentos comerciais fixavam-se em seu entorno e a função de
banhista profissional, ou seja, do sujeito que acompanhava as pessoas ao banho de
mar, gerava boas quantias. O cronista João do Rio, em artigo nostálgico para o
jornal Gazeta de Notícias, de junho de 1926, descreve a experiência de tomar
banho de mar no Rio de Janeiro do início do século XX (Apud Gaspar, 2004):
Banhos de mar! A princípio eram nas barcas da Ferry, banhos com cordas, em pequenas cabines, uma verdadeira complicação, pois na história da nossa civilização devemos notar que partimos sempre do mais difícil, sem conforto, para o simples e claro. Depois um francês de boa idéia, um francês meio judeu, construiu a famosa casa de banhos do Boqueirão do Passeio, mesmo junto à praia, com uma grande parte de madeira que ia ter alguns metros adentro. Foi o traço de união entre o mar e a urbes. A casa era um estabelecimento suigeneris, uma espécie de labirinto de corredores, tendo de cada lado cochicholos (pequenos quartos) de metro e pouco de largura sobre dois de comprimento, cochicholos feitos de tábua pintada de branco, com um banco, um espelhinho polido e um engradado sobre o cimento. Em cima, os quartos do terraço, que eram de assinaturas, importantes e mais caros! Esses corredores eram tão escuros que tinham bico de gaz para as madrugadas. Os engradados que os forravam estavam sempre molhados, tendo à beira das portas roupas de banho por torcer. Um cheiro de alga, um cheiro sadio de mar era a própria atmosfera, e ouvia-se nas areias a voz das ondas quebrando-se. Percebe-se na descrição acima vários aspectos do cenário da cidade. O arquitetônico, por exemplo, mostrando a casa de banhos como “uma espécie de labirinto de corredores”, composta de pequenos quartos brancos de madeira. Os artefatos são ilustrados pela presença do, “espelhinho”, e das roupas específicas para a entrada no mar. A referência ao cheiro de alga, “cheiro sadio”, retrata a atmosfera saudável que envolvia o hábito do mergulho terapêutico. João do Rio segue discorrendo sobre o cotidiano dos banhistas e as características das casas de banho:
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Entravam pelo corredor de ladrilhos vermelhos, davam no escritório, em forma de rotunda, onde se muniam das chaves dos quartos e das roupas, iam despir-se. Com o subir do sol vinha chegando a gente de mais dinheiro na invasão dos empregados do comércio. E eram funcionários públicos, eram famílias de nome, eram titulares. Algumas vinham de Botafogo, de carro e paravam à porta do Passeio Público fazendo por dentro do jardim o percurso a pé, tanto na ida como na volta. O Passeio tinha mesmo uma porta de comunicação para a rua dos banhos. Das 8 às 9 era positivamente a apoteose, no mar, nos estabelecimentos, no café. Nos estabelecimentos era a entrada e saída, o vai e vem febril, corridas de gente molhada, corridas de gente já vestida, cumprimentos, risos, apertos de mão, a cordialidade dos ajuntamentos, que leva às ligações duradouras, ao amor, ao devaneio sentimental. No mar, eram senhoras assustadas, presas aos banhistas, 'como pregos', eram raparigas aprendendo a nadar e a mergulhar com impetuosos jovens, eram gaiatos e pândegos rebolando na areia e espadanando água, eram palestras como em casa – meio gritaria infernal, sob o sol dourado e o olhar de dezenas de sujeitos que iam para o terraço do Passeio ver aquele espetáculo e dar conta dos beliscões e dos beijos que as ondas nem sempre ocultavam. E no café, com os pulmões iodados, a face fresca, aquele barulho de xícaras batendo nos pires, o café e o leite fumegantes, os brioches tenros, os jornais desdobrados, a festa ao ar livre, antes das ocupações de cada um! Nada porém é eterno. O oceano criava os filhos dos banhistas, como um padrinho amoroso, e esses meninos foram os primeiros campeões de remo e da natação, (...) a nossa mocidade resolveu criar músculos e pediu ao mar a força de Hércules, instituindo as regatas e o turbilhão de clubs de baleeiras.
O relato do cronista nos faz perceber a praia no Rio de Janeiro não apenas
um ambiente terapêutico, mas um espaço de sociabilidade, diversão e paquera,
com “gaiatos e pândegos rebolando na areia e espadanando água (...) sob o sol
dourado e o olhar de dezenas de sujeitos que iam para o terraço do Passeio ver
aquele espetáculo e dar conta dos beliscões e dos beijos que as ondas nem sempre
ocultavam”. A riqueza de detalhes na crônica de João do Rio nos traz um
panorama do cotidiano carioca onde se pode notar diferentes comportamentos
associados à prática do banho de mar. Por exemplo, as sensações do hábito de ir à
praia era traduzida em “risos, apertos de mão, a cordialidade dos ajuntamentos,
que leva às ligações duradouras, ao amor, ao devaneio sentimental”. E no que diz
respeito à saúde, os “pulmões iodados e a “face fresca” provocada pelo contato
com o oceano anunciavam o hábito das práticas esportivas que chegariam com os
“filhos dos banhistas”, os “primeiros campeões de remo e da natação”.
A reforma promovida pelo prefeito Pereira Passos entre 1902 e 1906,
botou abaixo muitas das casas de banho do Centro para que se construísse o Cais
do Porto e a Avenida Beira Mar. A busca por outras praias já chegava ao
Flamengo e Copacabana. Ainda assim, comparado aos dias de hoje, usava-se o
mar com parcimônia.
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Santa Luzia, Rio de Janeiro, 1917. Banhistas sobre a rampa de madeira que adentrava ao mar para facilitar o mergulho terapêutico. As praias do centro da cidade eram ainda as mais frequentadas pela população carioca. Foto: Revista Selecta. 10 fev/1917. Acervo Fundação Biblioteca Nacional. (fonte: Gaspar, 2004)
Segundo as recomendações médicas, convinha ficar na praia somente o tempo
necessário, sempre nas primeiras horas do dia, no máximo cinco minutos dentro
d'água, secagem imediata do corpo e roupa quente em seguida. Vinte a trinta dias
desse ritual no verão eram o suficiente para restabelecer a saúde do paciente.
A exemplo do que aconteceu na Europa, o costume de ir à praia no Rio de
Janeiro foi impulsionado pela medicina. Depois, com a chegada do bonde, foram
os vagões que levaram cada vez mais os cariocas às praias. No final do século
XIX, os trilhos incluíram Copacabana, Leme, Ipanema e Leblon definitivamente
no mapa dos espaços de banho da cidade. Já no início do século XX, eram tantas
pessoas nas praias que as autoridades municipais tiveram que estabelecer regras
para os banhos de mar no Leme e em Copacabana. Normas curiosas foram
impostas referentes aos horários, aos trajes, sinalizações e, curiosamente, aos
ruídos, como ilustra o Artigo 5 do Decreto Munincipal de 1917: “São
expressamente proibidos quaisquer ruídos e vozerias na praia ou no mar durante
todo o período do banho” (Gaspar, 2004).
O vestuário deste novo hábito foi de grande importância na formação de
um conjunto de práticas ligado à praia no Rio de Janeiro. Segundo Gaspar (2004),
o moralismo da época dos primeiros banhos de mar não permitia que homens e
mulheres mostrassem os corpos.
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As cabines para troca de roupas e os trajes de banho típicos do início do século XX. Copacabana, Rio de Janeiro. Foto: Acervo Lamunier (fonte: Gaspar, 2004) Até a Primeira Guerra Mundial, os trajes de banho iam até os joelhos e eram
normalmente confeccionados em tecidos pesados como a lã e o algodão. Os
ombros eram cobertos e golas altas e chapéus eram comuns. Tudo para preservar a
decência e proteger o banhista do vento e do sol. Aos poucos, as incômodas
roupas de lã foram ficando mais leves e menores. A grande evolução veio com o
maiô, em 1912, através do pioneirismo da campeã olímpica de natação, a
australiana Anne Kellermann. Foi ela quem inaugurou a versão feminina dessa
peça, nas Olimpíadas de Estocolmo, na Suécia. Antes de Kellermann, o maiô era
uma vestimenta exclusivamente restrita aos homens. Desde então, o maiô não
parou de evoluir, sobretudo com a criação dos tecidos sintéticos que surgiram com
as Guerras Mundiais, como o Lastex e a Helanca.
A valorização da estética corporal invade as praias, ganhando uma
dimensão nas areias que, outrora, resumia-se à questão do bem estar e da saúde.
Afinal, se o corpo estava cada vez mais à mostra, convinha que estivesse também
"em boa forma". Artigo publicado pela socióloga Ana Lúcia de Castro (1998)
sobre a prática do “culto ao corpo” explica que a partir do século XX, o "estar em
boa forma" passa a ser uma preocupação geral a todas as camadas da sociedade
moderna e o corpo uma fonte de significados que pode revelar hábitos de cada
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indivíduo. Segundo Mike Featherstone (1993), o processo de construção de um
novo ideal físico passa a ter maior importância a partir da década de vinte,
principalmente pelo impacto causado com o avanço das indústrias de cinema, de
cosméticos, da moda e da publicidade. De acordo com Castro (1998), a busca por
corpos esbeltos ganha ainda mais evidência durante os anos 50 e 60 com o
crescente hábito das práticas esportivas diretamente relacionado à expansão do
tempo de lazer - férias remuneradas, aumento de campings nas praias e um novo
conceito de férias de verão - resultando numa maior exposição do corpo.
A australiana Anne Kellermann foi a primeira campeã olímpica de natação, em 1912. Aqui, ela posa com sua “peça única”, o maiô, até então inédito entre as mulheres. Foto: Revista Selecta. 02 jun/1915. Acervo Casa Rui Barbosa. (fonte: Gaspar, 2004)
Castro (1998) aponta também para a questão da exibição do corpo
feminino através do pensamento de Norbert Elias (1994). O autor acredita que
uma das características marcantes dessa nova atitude em relação à exposição do
corpo é resultado de um "relaxamento da moral", ligado também à difusão de
práticas esportivas e à ousadia dos cortes e tecidos que passam a evidenciar as
suas formas. Para o autor, a história da civilização é marcada pelo
desenvolvimento do controle das emoções e pelo sentimento de vergonha. Se o
momento pós Primeira Guerra é marcado por um certo "relaxamento da moral" –
que permite que se exponha algumas parte do corpo antes não permitidas – é
porque, segundo Elias, os indivíduos já atingiram um alto grau de autocontrole de
seus impulsos. O exemplo dos trajes de banho femininos é usado pelo autor para
ilustrar sua tese de que uma mudança de costumes também pode refletir uma
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mudança de sentimento (Apud Castro, 1998):
No século XIX cairia no ostracismo social a mulher que usasse em público os costumes de banho ora comuns. Mas essa mudança, e com ela toda a difusão de esportes entre ambos os sexos, pressupõe um padrão muito elevado de controle de impulsos. Só numa sociedade na qual um alto grau de controle é esperado como normal, e na qual as mulheres estão, da mesma forma que os homens, absolutamente seguras de que cada indivíduo é limitado pelo autocontrole e por um rigoroso código de etiqueta, podiam surgir trajes de banho e esporte com esse relativo grau de liberdade. É um relaxamento que ocorre dentro de um padrão 'civilizado'.
Outro marco importante no processo de construção do corpo como objeto
de representação ocorreu nos anos 80. Castro (1998) observa que jamais em
outras épocas os cuidados com corpo estiveram tão presentes na vida social das
pessoas. A visibilidade e a preocupação com o corpo, outrora evidenciada em
tempos de verão, ganha projeção com a prática regular de esportes e a proliferação
de academias nos centros urbanos. Nesse mesmo período entra em cena o que a
socióloga chama de “geração saúde”, um público que levanta a bandeira da boa
alimentação, da prática de exercícios físicos, da preservação ao meio ambiente, do
sexo seguro e da condenação ao uso de drogas. O Brasil acompanha esse
movimento, tendo na cidade do Rio de Janeiro uma referência dos costumes de
praia e das práticas a ele associados no que diz respeito à exposição do corpo6.
Os primeiros indícios da prática de esportes nas praias no Brasil datam do
final do século XIX e início do século XX, junto com a chegada da República e a
geração dos primeiros campeões de remo e natação. Gaspar (2004) nos conta que
a praia de Santa Luzia, no centro do Rio de Janeiro, foi o berço das competições
de canoas e dos clubes de regatas como o Vasco da Gama e o Boqueirão do
6 Um exemplo ilustrativo sobre a relação do brasileiro com o corpo é dada pela pesquisadora Mirian Goldenberg (2002). A autora revela a “cultura do corpo carioca" sob o ponto de vista social, destacando a figura de Leila Diniz como um marco dessa cultura, um ícone das décadas de sessenta e setenta ao exibir sua barriga grávida, de biquíni, e solteira nas areias de Ipanema. Segundo Goldemberg, Leila Diniz permanece até hoje como símbolo da 'mulher carioca', revelando as especificidades culturais da cidade através do corpo seminu que a autora relaciona com a, “praia, sol, Carnaval, festa, juventude, liberdade, sexualidade, alegria, irreverência, descontração, humor, informalidade, criatividade, hedonismo” (Goldemberg, 2002). No lado masculino, a figura do político Fernando Gabeira de tanga, em Ipanema, no verão de 1979, também ilustra um momento em que a exposição do corpo ganhava espaço nas areias cariocas. O uso da minúscula peça foi uma forma do recém anistiado político expressar sua aversão ao preconceito e ao machismo, época marcada também pelos primeiros registros da prática do topless (biquíni usado apenas com a parte inferior) em nossas praias: “as pessoas, mesmo que não queiram, têm um corpo, e ninguém pode fingir que é puro espírito enquanto está seminu” (em reportagem de Marcello Scarrone para a Revista de História da Biblioteca Nacional. Ed.40, jan.2009).
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29
Passeio. Em 1895, na praia do Flamengo, nascia o Clube de Regatas do
Flamengo, que só tempos depois montaria sua primeira equipe de " football". O
remo e a natação eram os esportes mais praticados pelo carioca no século XIX e o
público lotava as enseadas onde eram disputadas as regatas.
Os esportes ao ar livre ganham destaque no Rio de Janeiro após a gestão
do prefeito Pereira Passos e a reforma urbana promovida no início do século XX.
Trampolins de concreto são construídos na orla para a prática do salto ornamental
e o vôlei, o frescobol e o futebol vão timidamente aparecendo. Na década de
vinte, as praias cariocas já se consolidavam como local de variadas práticas
esportivas, como mostra o trecho da reportagem exibida na revista O Cruzeiro, em
dezembro de 1928 (Apud Gaspar, 2004):
Incomparáveis condensadoras e restauradoras de energia, as nossas praias constituem os tônicos providenciais da população. Elas são recreio e remédio, ginásio e sanatório. Elas estão elevando progressivamente o nível da energia física e mental do carioca. Elas são hoje no Rio o que era o estádio em Atenas.
A década de quarenta viu surgir a pesca submarina esportiva e, nos anos
cinquenta e sessenta, na praia carioca do Arpoador, chegava o surfe.
Resumidamente, o ato de surfar consiste em deslizar sobre a face das
ondas em direção à praia por meio de um instrumento denominado prancha. Vale
ressaltar que o praticante a que estamos nos referindo é o indivíduo que adota a
postura ereta sobre a prancha, o qual vamos denominar surfista. Sendo assim,
surfistas são os praticantes do surfe e eles podem ser amadores ou profissionais.
Deitados sobre a prancha, eles usam os braços para remar e pegar uma onda,
entrar na onda, aproveitando o impulso proporcionado pela inclinação de sua
crista. Uma vez que conseguem a velocidade suficiente para equilibrar-se, adotam
a postura ereta e usam o movimento do tronco e das pernas para projetar sua
prancha ao longo da onda. O objetivo do surfista é deslizar sua prancha na parede
da onda, utilizando-a como uma pista para obter velocidade e executar manobras.
A prática do surfe, portanto, depende da necessidade de ondas e do uso de uma
prancha.
Tanto as pranchas como as ondas podem assumir diversas características.
Assim como no jogo de golfe, onde o jogador usa diferentes tacos para variadas
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Essa imagem ilustra três movimentos do ato de deslizar sobre as ondas. Em primeiro plano, à direita, o praticante rema para obter velocidade e entrar na onda. O surfista do centro já está adotando a postura ereta e, ao seu lado, à esquerda, um terceiro apóia os braços e os pés sobre a prancha antes de se levantar. Honolulu, Havaí, 1925. (fonte: Surf Gênese, cap.1, Árias, 2002)
circunstâncias, tipos de terreno, no surfe o surfista pode usar pranchas com
dimensões diferentes dependendo do tamanho ou da forma da onda que deseja
surfar. Hoje em dia, a maioria das pranchas são feitas com um bloco de espuma
especial, feito de um material derivado do petróleo chamado poliuretano. Depois
de receber a forma desejada, esse bloco é revestido em resina e fibra de vidro.
Antigamente, a madeira era a matéria prima predominante nas pranchas de surfe.
Ainda hoje, mesmo com o advento de sistemas digitais e uso de máquinas
modernas para dar forma aos blocos de espuma, as pranchas continuam sendo
feitas de modo artesanal no que diz respeito ao acabamento final e ao processo de
encapamento em fibra de vidro e laminação.
Pranchas podem ter diversos tamanhos e suas medidas são marcadas em
pés (cada pé tem cerca de 30 centímetros). Há pranchas de cinco, seis, até doze
pés ou mais e surfistas podem encomendar pranchas especiais, de acordo com seu
peso, altura ou tipo de onda que deseja surfar. O fabricante de pranchas é
denominado entre os surfistas como “shaper”. Basicamente, uma prancha é
composta de bordas (parte lateral), bico (parte superior), meio (parte central),
rabeta (parte inferior), “deck” (superfície onde o surfista se deita e fica de pé),
fundo (superfície que fica em contato com a água) e quilha (uma espécie de leme
que serve para direcionar e estabilizar a prancha quando em movimento). No
“deck” , o surfista usa uma espécie de cera, chamada parafina, para dar aderência
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31
e evitar escorregões durante a prática. No fundo da prancha, próximo à rabeta, são
colocadas as quilhas. Elas podem ser fixas ou removíveis e ficam posicionadas
sob pé traseiro do praticante com o objetivo de estabilizar e direcionar a prancha.
Há pranchas com uma, duas, três, quatro ou mais quilhas. De modo geral, elas
estão para as pranchas, assim como os pneus estão para os carros.
As ondas, por sua vez, também possuem diferentes características. Uma
onda boa para a prática do surfe é aquela que permite ao surfista uma face onde
ele possa obter velocidade e desenvolver manobras. Uma onda que estoura de
uma só vez, também conhecida popularmente como “quebra coco” ou “caixote”
não é adequada ao surfe, pois sua parede se desfaz rapidamente. Até um metro de
altura, as ondas são consideradas pequenas entre os surfistas. Entre um e dois
metros metros, são tidas como medianas. Acima disso são consideradas ondas
grandes, podendo atingir a categoria de gigantes acima do patamar de sete, oito
metros de altura.
Além da altura, ondas podem ser longas, curtas, cavadas, cheias,
fracas ou fortes. O principal fator que determina a forma das ondas é o fundo do
mar onde elas arrebentam. Os fundos de areia, conhecidos entre os surfistas como
“beachbreaks”, são os mais comuns no Brasil. Eles podem proporcionar ondas
boas para os surfistas, mas se caracterizam pela irregularidade na formação das
ondas, uma vez que estão constantemente sujeitos a mudanças provocadas pela
direção e força das correntes que atuam no fundo do mar, deslocando a areia de
um lugar a outro.
Os fundos de pedra - “pointbreaks” - e os fundos de coral, chamados de
“reefbreaks”, são os que proporcionam ondas mais perfeitas para a prática do
surfe justamente por estarem sempre no mesmo lugar e não sofrerem a ação de
deslocamento. Lugares como Havaí, no Oceano Pacífico, ou Indonésia, no
Oceano Índico, são procurados entre os praticantes por terem ondas boas que
quebram sobre fundos de coral ou pedra. Por outro lado, um choque do surfista
em um fundo desses pode trazer consequências bem mais graves do que em um
fundo de areia.
Outros fatores como o vento e a maré também podem influenciar a forma
das ondas. Há lugares em que a variação de maré é tão acentuada que pode haver
ondas na maré cheia e elas simplesmente desaparecerem na maré vazia ou vice
versa. Ou ainda uma situação em que a forma da onda está cavada na maré vazia e
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no momento da maré cheia ela adquirir outra formação.
Um exemplo de ondas perfeitas quebrando sobre um fundo de pedra - pointbreak - no Equador.
Estas linhas são como pistas de corrida por onde os surfistas correm com suas pranchas. Foto:
Conrado Conde, 2009
O vento também interfere na formação das ondas. Se o objetivo do surfista
é deslizar sobre a parede, sobre a face da onda, o ideal é que ela esteja sem
saliências, sem “lombadas”, para não desestabilizar a prancha. Assim, o vento, ou
a ausência dele, é responsável pela textura na superfície da onda. Ventos fortes,
laterais ou vindos na direção do mar para a terra são inadequados para a prática do
surfe, pois podem deformar a onda gerando pequenos ressaltos em sua parede. A
preferência dos surfistas é pela ausência de vento ou uma leve brisa do vento
conhecido como “terral”, também denominado “offshore”, aquele que vai de
encontro à face da onda, na direção da terra para o mar. Essas condições tornam a
prática do surfe ideal pois a parede da onda fica lisa e mais vertical.
Há ainda o fator relativo à direção da ondulação. Dependendo da posição
geográfica de cada praia, uma ondulação vinda do Sul, por exemplo, pode ser
melhor para um lugar do que em outro, que por sua vez, recebe melhor ondas
vindas da direção Norte. Portanto, como se pode ver, há uma série de fatores
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naturais que interferem nas condições ideais para a prática do surfe. Não adianta o
vento estar bom, se a ondulação não for adequada. Da mesma forma, de que vale a
ondulação estar na direção certa, se o vento ou o fundo não colaborarem? Além
disso, as ondas não têm hora para chegar. E para os surfistas, quando elas chegam,
tudo o mais pode esperar, pois da mesma forma que repentinamente elas vêm,
repentinamente elas se vão.
Esses ingredientes obrigam o praticante a desenvolver um conhecimento
sobre a natureza fundamental para se pegar ondas boas, tornando-o um indivíduo
em permanente interação com o meio ambiente, dentro e fora da água. Talvez isso
explique porque essa atividade seduz seus praticantes, pois a imprevisibilidade, a
dependência de fatores naturais, faz com que um dia de surfe nunca seja igual ao
outro, da mesma forma que uma onda sempre será diferente da anterior. Será por
isso que surfistas vivem sempre em busca da onda perfeita?
Mas esse é um assunto que veremos mais à frente. O que será tratado
agora é como o costume da prática do surfe como o conhecemos hoje, chegou às
nossas praias. Quais as suas origens?
2.2
A prática do surfe e seu passado
Não se pode afirmar que exista uma teoria que explique exatamente onde e
como a prática do surfe originou-se. O que existe são versões que tentam explicar
o seu surgimento. Em estudo sobre o tema, o pesquisador Marcello Árias (2002)
aponta para correntes que defendem a idéia de que o ato de deslizar sobre ondas
originou-se no Peru, onde por muitos anos, e ainda hoje, pescadores nativos
adotam essa prática em seus “caballos de totora”, uma espécie de embarcação
feita de fibra de junco (semelhante a uma palha), para retornar à terra com mais
rapidez. Recorrente entre os surfistas, porém, é a versão de que os polinésios7
foram responsáveis pela difusão da prática do surfe e seus costumes. Segundo
Árias (2002) e outros estudiosos do assunto, a prática de deslizar sobre ondas, em
posição deitada ou ereta, era um hábito associado à mitologia e a crenças
religiosas entre os polinésios, ou seja, os nativos da Polinésia.
7 Os polinésios foram os primeiros habitantes do Pacífico
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O triângulo polinésio, no centro do Pacífico, com Nova Zelândia ( abaixo, à esquerda), Havaí (acima) e Rapa Nui ou Ilha de Páscoa (à direita) compondo uma área que compreende ainda outras ilhas como Tahiti, Marquesas, Cook e Samoa. (fonte: Árias, 2002)
Rico de Souza (2004), surfista brasileiro com mais de cem visitas ao
Havaí, conta que um exemplo desses mitos é uma música cantada até hoje entre
os havaianos sobre a história do rei Moikeha. Vindo do arquipélago do Tahiti, ele
teria aportado no Havaí para deslizar sobre as ondas. Ao encontrá-las em estado
de perfeição resolveu ficar, casando-se com as duas filhas do rei local e tornando-
se, posteriormente, o rei da ilha havaiana do Kauai.
Outra história contada entre os nativos havaianos nos remete a um ritual
religioso. Segundo Árias (2002), como forma de agradecimento, os ilhéus
dedicavam uma oferenda aos deuses colocando um peixe vermelho na base da
árvore que seria cortada para confecção de uma prancha. Uma vez extraída a
madeira, utilizavam corais e pedras para dar forma à prancha. Após sua
confecção, se não houvesse ondas, os havaianos faziam um ritual batendo no
oceano com algas para “chamar” as ondulações. Essas e outras histórias, como
nos conta o autor, passadas por gerações através de canções, danças e mitos
podem revelar que a prática de deslizar sobre as ondas era algo muito presente no
Havaí primitivo. De acordo com Gutemberg (1989), os escritos mais antigos
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35
referentes a essa prática datam de 1500 anos atrás.
Em tempos mais modernos, fins do século XVIII, coube ao explorador
inglês James Cook8 a tarefa de registrar as primeiras características do povo
polinésio. Cook chegou ao Havaí pela primeira vez em 1778 e relatou em seu
diário a presença de nativos descendo ondas em tábuas de madeira de diferentes
tamanhos. No livro A voyage to the Pacific Ocean (1784), escrito por Cook e
James King, consta o primeiro relato sobre o que viria a se tornar o que
conhecemos hoje por surfe: “ A bravura e a extrema habilidade desses nativos ao
desenvolver as difíceis e perigosas manobras sobre as ondas só pode ser
classificada de estonteante e é algo realmente difícil de acreditar quando
presenciado de fato” (Apud Árias, 2002).
Como vimos no início deste capítulo, Geertz nos ensina que a
compreensão dos hábitos e costumes de uma sociedade está diretamente
relacionada ao entendimento do homem que a compõe. Dessa forma, para melhor
entender o ato de deslizar sobre as ondas convém compreender também como
viviam os nativos que adotavam tal prática.
Um enigma entre os historiadores é saber como os polinésios alcançaram
essas ilhas no meio do Pacífico. Os navegadores europeus não entendiam como
esse povo chegara a uma região tão remota utilizando embarcações de três metros
de comprimento e sem instrumentos básicos, como bússolas e compassos de
navegação. Segundo Árias (2002), Cook começou a desvendar alguns desses
mistérios ao fazer amizade com os nativos. O navegador inglês relata em seu
diário que os astros, a direção das ondulações e a migração dos pássaros marinhos
serviam como referenciais na longas jornadas dos polinésios. Além disso, suas
rudimentares canoas, chamadas Hokule‘a, feitas de troncos, folhas de palmeira e
fibras de coco aparentavam fragilidade, mas eram significativamente mais rápidas
que as caravelas européias e responsáveis por suas grandes travessias marítimas.
Pelas histórias nativas e pelos relatos de Cook, podemos notar que os
polinésios tinham estreita relação com a natureza. É possível considerar que o ato
de correr sobre as ondas é um reflexo de sua intimidade com o mar, mas tais
indícios não são suficientes para determinar quando e onde tal prática começou.
Grande parte das observações feitas por Cook na Polinésia, destaca o
8 A Polinésia tornou-se conhecida no ocidente após sua descoberta pelo explorador inglês James Cook, entre 1768 e 1779.
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arquipélago do Havaí como um local onde a prática sobre as ondas se
desenvolveu mais do que em outras ilhas. A partir dos seus registros, Árias (2002)
nos conta que os havaianos organizavam-se em um sistema monárquico, donde os
reis eram detentores de privilégios. Livres das tarefas do campo, da pesca, eles
tinham mais tempo livre para deslizar nas ondas, fato que pode explicar porque
eram considerados exímios praticantes. Entre os surfistas de hoje é muito comum
ouvir o comentário que o surfe é o esporte dos reis.
Mesmo tendo regalias sobre a população, a prática do He'e nalu – palavra
de origem polinésia para designar surfe ou surfista -, como explica Árias (2002),
era permitida a toda sociedade havaiana, de crianças a adultos, homens e
mulheres. Ainda assim, como em toda monarquia, a hierarquia fazia-se presente
através de distinções como praias exclusivas à prática apenas aos membros da
realeza e também a proibição a qualquer nativo comum de deslizar na mesma
onda que um chefe real. Essas limitações eram denominadas kapu, algo
semelhante ao tabu em nossa sociedade, e o infrator podia ser levado à execução.
Ilustração representando o que seria a prática de deslizar sobre as ondas no Havaí antigo. (fonte:
wbc.wildapricot.org/Default.aspx?pageId=129713)
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Outras restrições diziam respeito ao tipo de prancha. As conhecidas como
paipo, comuns entre a população, eram menores e usadas pelo praticante em
posição deitada. As alaias mediam entre dois e quatro metros de comprimento e
seu uso estendia-se à plebe e à realeza. E, finalmente, as pranchas olo, muito
maiores e mais pesadas que as alaias. Elas chegavam a pesar 50 quilos e eram de
uso exclusivo da monarquia. Ainda hoje é possível ver uma autêntica olo, no
Bishop Museum de Honolulu, no Havaí (Árias, 2002).
Segundo Gutemberg (1989), deslizar sobre as ondas era uma atividade
que misturava o que hoje chamamos de esporte, com cerimônias, rituais, festivais
e competições. Uma das formas de disputa, por exemplo, era composta por
diversos praticantes deslizando na mesma onda, vencendo aquele que primeiro
chegasse à praia. Árias (2002) chama a atenção desses festivais destacando uma
celebração anual, chamada Makahiki, em homenagem a uma divindade, que
mobilizava todo o Havaí. O autor nos conta que de outubro a fevereiro, os ilhéus
paravam com todas as suas atividades e juntavam-se para dançar, relaxar, festejar
e praticar atividades ligadas ao oceano com pranchas e canoas. Portanto, diante da
visão que temos hoje desta prática, ela poderia ser considerada um hábito de lazer,
diversão, passatempo que envolvia toda a sociedade havaiana numa espécie de
festa onde religião e natureza eram elementos dessa celebração.
No entanto, os costumes havaianos foram se perdendo com a chegada dos
missionários ao arquipélago, ao longo do século XIX. Segundo Souza (2004),
junto com os colonizadores vieram doenças, armas e novos valores que causaram
um declínio tanto nos hábitos quanto na população daquelas ilhas. Gutemberg
(1989) também nos conta que desde a chegada dos primeiros ocidentais ao Havaí,
os habitantes foram gradualmente sendo dizimados, pulando dos cerca de 300 mil
para 40 mil nativos em pouco mais de cem anos. A prática de deslizar sobre as
ondas por pouco não foi extinta. De acordo com o autor, aos olhos dos
colonizadores os havaianos levavam uma vida preguiçosa, com hábitos que não
combinavam com a idéia de “progresso” pregada pelo ocidente. Além disso,
consideravam a prática sobre as ondas uma atividade imoral, uma vez que os
ilhéus, seminus, afrontavam a “decência” européia (Gutemberg, 1989).
Segundo Árias (2002), no Havaí do início do século XX restavam apenas
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alguns praticantes do He'e nalu. A repressão havia diminuído e o conjunto das
oito ilhas9 que formam o arquipélago havaiano já eram, desde 1900, parte do
território americano. A praia de Waikiki era um dos poucos locais onde ainda se
podia observar tal prática, agora feita por havaianos e alguns estrangeiros que
também se deixaram encantar pelas ondas. Entre eles estava o irlandês George
Freeth, “o homem que pode andar sobre a água”, como noticiaram os jornais da
Califórnia, em 1907, quando Freeth esteve por lá para uma demostração aos
americanos. Gutemberg (1989) destaca a importância do irlandês para a difusão
dessa prática na Califórnia, onde surgiam os primeiros clubes associando cada vez
mais essa atividade ao aspecto esportivo. Essa relação se tornaria ainda mais
evidente através do nadador Duke Kahanamoku, um legítimo polinésio
descendente da realeza havaiana.
Ganhador de medalhas olímpicas em 1912, 1920, 1924, 1932 e recordista
mundial nos 50, 100 e 220 metros, Duke dizia que o segredo de seu sucesso era a
prática de deslizar nas ondas. Tornou-se um divulgador dessa atividade pelo
mundo, disseminando-a, sobretudo, nos Estados Unidos e Austrália. Devido à
fama adquirida nas piscinas e em suas participações nos filmes de Hollywood,
Duke foi nomeado embaixador do Havaí e tornou-se um ícone por lá. Seu
prestígio ajudou a popularizar a imagem do arquipélago como um paraíso do
turismo e do que os havaianos chamam de espírito Aloha10. (Árias, 2002).
Duas gerações de havaianos. À esquerda, um nativo, em 1890, com um modelo de prancha alaia. Ao lado, Duke Kahanamoku – o último da direita – e amigos em Waikiki, no início do século XX. Fotos Courtesy Bishop Museum (fonte: http://www.surfingforlife.com/history.html.) 9 Compõem o arquipélago do Havaí as ilhas Niihau, Kauai, Oahu, Molokai, Maui, Lanai, Kahoolawe e Havaí 10 Aloha é a palavra universal de “boas vindas no Havaí, mas possui diversos outros significados, tais como “amor”, “amizade”, “lembrança”, “bem-vindo” e outros termos gentis.
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39
A maioria dos autores sobre o tema considera Duke um dos grandes
responsáveis pelo resgate da prática do He'e nalu. A partir do momento que os
Estados Unidos tomaram contato com tal prática, novos adeptos surgiram nas
praias do país e ela passou a ser denominada surfe. Com o passar do tempo, novos
modelos e materiais de pranchas surgiram. A madeira das antigas “alaias” e
“olos” foi substituída por materiais mais leves. Filmes e revistas especializadas
apareceram e bens de consumo relacionados à pratica do surfe foram
desenvolvidos, tema este que será melhor abordado no próximo capítulo.
Segundo Árias (2002), os primeiros filmes sobre o tema, ao final da
década de 50 e início dos anos 60, podiam ser classificados em duas categorias.
Uma delas é a dos filmes produzidos pelos próprios surfistas. Estas películas
retratavam com realidade os costumes e o universo dessa tribo, pois seus
idealizadores eram também os diretores, os câmeras, os patrocinadores, além de,
muitas vezes, os próprios protagonistas das cenas de ação.
A segunda categoria, por outro lado, era a dos filmes realizados pela
indústria cinematográfica de Hollywood. A maioria dessas produções, como
observa Árias (2002), retratava o surfe de forma caricaturizada, visando lucros a
partir da juventude americana recém-contaminada por essa nova prática.
O cineasta Bud Browne, também surfista e salva-vidas na Califórnia, foi
um dos pioneiros do primeiro grupo. Browne, como conta Árias (2002), passou a
documentar as cenas de seu cotidiano e seus filmes tornaram-se um sucesso entre
os surfistas da região, que enchiam as pequenas salas de projeção para
acompanhar as primeiras imagens de surfe registradas na Califórnia. Outros
surfistas também aventuram-se no mundo dos filmes e, entre eles, um em especial
merece ser destacado: Bruce Brown, autor de The Endless Summer (1965).
Exibido nos cinemas brasileiros com o título Aventuras de Verão, o filme
de Brown foi uma das produções de maior êxito realizadas entre os “surfistas
cineastas”. Com um enredo simples, o filme conta a história de dois surfista que
viajam pelo mundo em busca do verão sem fim, passando por lugares exóticos
como Senegal, Africa do Sul, Gana, Nigéria, Austrália, Taithi e Havaí.
Normalmente, esses filmes eram apresentados em circuitos menores e restritos ao
público da Califórnia, como explica Árias (2002). Mas The Endless Summer foi
reproduzido em todo os Estados Unidos e tornou-se um fenômeno de bilheteria,
rendendo uma fortuna a Brown. Fato que merece ainda mais destaque, segundo o
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autor, se levarmos em consideração que o filme foi feito com um investimento de
50 mil dólares e uma narração caseira do próprio cineasta. The Endless Summer
foi passado em várias partes do mundo e, tempos depois de seu sucesso, Brown
relatou o sentimento despretensioso que predominava entre sua geração: “Nosso
objetivo sempre foi encontrar alguma maneira de sobreviver no surfe, para sempre
viver no surfe “(Apud Árias, 2002).
The Endless Summer foi exibido na televisão brasileira e tive a
oportunidade de ver e rever algumas vezes. Apesar de seu enredo tratar de
surfistas, era uma história voltada aos leigos também. A narrativa simples e bem
humorada mostrava a prática e os costumes do surfe através das aventuras de
dois surfistas viajantes - eram praticantes na vida real. Apesar de ser uma história
fictícia, era também um documentário sobre os hábitos dessa tribo, um retrato de
que muito mais do que um esporte, o surfe era um estilo vida que envolvia uma
imagem de liberdade, desprendimento, diversão e amizade. Mas isso é um tema
que trataremos mais para frente. Resta dizer aqui que The Endless Summer
tornou-se um clássico, considerado até hoje entre os surfistas uma referência dos
filmes de surfe.
Outra importante contribuição para a popularização do surfe nesse período
se deu pela indústria de cinema de Hollywood, como observa Árias (2002),
através dos filmes protagonizados por atores profissionais que jamais subiram em
uma prancha. O autor ressalta que apesar de não retratar fielmente o universo dos
surfistas, tais produções serviram para mostrar ao grande público a prática do
surfe e o comportamento que se formava entre os jovens da Califórnia. Alguns
exemplos que ilustram essas descaracterizações eram filmagens onde o praticante
aparecia surfando numa lagoa ou ainda travando diálogos enquanto supostamente
surfava uma onda. Títulos como Gidget Goes Hawaiian (1962), Beach Party
(1963), Ride the Wild Surf (1964), entre outros fazem parte dessa leva de filmes.
Gidget, por exemplo, sobre a história de uma menina no mundo do surfe, acabou
ganhando outras versões e, segundo alguns especialistas, foi um sucesso
responsável pela adesão de muitos praticantes e pela massificação do surfe nos
Estados Unidos (Árias, 2002).
Na década de 30, um fato isolado na cidade de Santos creditou, segundo
Souza (2004), a Osmar Gonçalves o título de primeiro surfista brasileiro.
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GidGet, que virou uma série após ser lançado em 1959. O cartaz de divulgação do filme Surf Fever
(Febre de Surfe) deu origem à mais famosa revista de surfe do mundo, a Surfer. E The Endless
Summer tornou-se um clássico entre os surfistas. (fonte:
http://www.surf.uk.com/acatalog/classic.html)
A partir de uma revista americana chamada Popular Mechanics, o santista
confeccionou sua própria prancha, um modelo oco feito de lâminas de madeira.
Mas, como explica Gutemberg (1989), a história do surfe no Brasil começa
realmente a ser contada no Rio de Janeiro, entre as décadas de 50 e 60.
O autor aponta a praia do Arpoador como o berço dessa prática e os
primeiros surfistas ou "pranchistas", assim denominados pela imprensa à época,
eram esportistas de outras áreas, como o mergulhador profissional, Bruno
Hermanny e o campeão carioca de tenis, Jorge Paulo Lehman. Além deles, entre
outros pioneiros estavam o galã de cinema Arduíno Colassanti, e os "pranchistas"
Irencyr Beltrão e Paulo Preguiça.
O surfe logo foi adotado pela juventude carioca, já familiarizada com o
popular "jacaré", que era a prática de deslizar nas ondas com o próprio corpo. O
pesquisador do Laboratório de História do Esporte e do Lazer da UFRJ, Cleber
Gonçalves Dias (2008) conta que antes mesmo das primeiras pranchas de fibra de
vidro aportarem por aqui, esses pioneiros equilibravam-se nas conhecidas "portas
de igreja", chamadas assim em função de seu formato. Não demorou para as
pranchas aprimorarem-se e surgirem as "madeirites", feitas de compensado naval
por um carpinteiro de Ipanema no início dos anos sessenta11.
11 Revista de História da Biblioteca Nacional. Ed.40, jan.2009
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Osmar Gonçalves é considerado o primeiro surfista brasileiro. Santos, 1938. (fonte: Surf Gênese, cap.V, Árias, 2002)
A produção dos filmes americanos sobre o surfe repercutiu no Brasil. As
primeiras pranchas de fibra de vidro também vieram do Estados Unidos através de
turistas e pilotos de avião. A novidade chegou acompanhada de outros
movimentos da época, como surgimento do rock'n roll, do biquíni e de um certo
liberalismo que se ensaiava ao final dos anos 50.
Arpoador, Rio de Janeiro, anos 60. A juventude carioca experimentava uma nova prática em suas
praias. Foto Alair Gomes, Acervo Fundação Biblioteca Nacional, (fonte: Gaspar, 2004)
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Ainda segundo Gutemberg (1989), até os anos 70 o surfe no Brasil viveria
uma fase marginal, visto com preconceito por boa parte da sociedade, associado a
jovens desocupados e aos hábitos do movimento hippie como o consumo de
drogas, o uso de cabelos longos e tatuagens. Essa imagem, por outro lado, como
observa o jornalista Toni Marques (1997), serviu de inspiração para o compositor
Caetano Veloso escrever Menino do Rio (1979), uma canção que se tornou
sucesso exaltando um surfista do Arpoador chamado Petit. Logo na primeira
estrofe o cantor versava: “Menino do Rio / Calor que provoca arrepio / Dragão
tatuado no braço / Calção corpo aberto no espaço / Coração, de eterno flerte /
Adoro ver-te...” (Apud Marques, 1997)
Podemos perceber na composição de Caetano Veloso vários significados
associados ao surfista Petit e a elementos do seu universo. A exposição do corpo e
o contato com a natureza, por exemplo, estão presentes nos trechos “dragão
tatuado no braço” e “corpo aberto no espaço”; o vestuário do surfista aparece na
palavra “calção”; e a estética do corpo, em “adoro ver-te”.
A música teve tamanha repercussão no Brasil que, em 1980, virou tema
musical de abertura da novela Água Viva, na Rede Globo. Logo em seguida, em
1981, o filme dirigido por Antônio Calmon foi batizado com o título Menino do
Rio. Sucesso entre os jovens, a produção mostrava a natureza e liberdade
experimentada pela juventude carioca através da história de um surfista que se
apaixona por uma moça rica, mas tem de enfrentar o preconceito da família dela.
Daí em diante, a imagem do surfista vai se transformando com a
profissionalização do esporte e o surgimento de bens de consumo envolvendo
vestuário, acessórios, lojas, campeonatos e mídia especializada. Vale destacar
nesse contexto a figura de um jovem carioca que se tornaria uma referência do
surfe e da "geração saúde" que se formava na década de 80. Seu nome: Pedro
Paulo Guise Carneiro Lopes ou simplesmente Pepê12.
12 Criado no Píer de Ipanema, Pepê desde cedo tornou-se conhecido pelo seu arrojo no esporte e sua aptidão para os negócios. Aos 13 anos já era bicampeão carioca de hipismo. Aos 17, finalista do torneio mais importante do surfe mundial, o Pipeline Master, realizado no Havaí. Preocupado com o meio ambiente e com a alimentação, abriu na praia de São Conrado a primeira barraca de sanduíches naturais e, muito antes da comida japonesa virar moda, inaugurou o restaurante Sushi Leblon. Tricampeão brasileiro de surfe, Pepê foi buscar no vôo livre um novo território para suas conquistas. Três anos bastaram para tornar-se campeão mundial de asa delta, em 1982, em Tóquio. Em 1991, voltou ao Japão para tentar o bicampeonato. No último dia de competição, em condições inseguras e não recomendáveis para a prova, Pepê fez seu último vôo. Aos 33 anos, chocou-se contra as rochas e faleceu, deixando um legado que o transformou num ícone do surfe no Brasil. Um ano depois do acidente, um trecho da praia e uma avenida no bairro da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, ganharam seu nome, bem como uma estátua em sua homenagem no mesmo local (Revista de História da Biblioteca Nacional. Ed.40, jan.2009).
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Hoje, a imagem frequentemente divulgada nos meios de comunicação, na
publicidade, reflete o surfe não apenas como uma prática esportiva, mas como um
estilo de vida, manifestado, principalmente, nos seus hábitos, no que diz respeito
às roupas, saúde, corpo e natureza, como veremos nos próximos capítulos.