1 Introdução
Ligantes chamados “compartimentais” podem ser definidos como uma
classe de ligantes quelantes capazes de se ligarem simultaneamente a dois íons
metálicos pela presença de sítios de coordenação adjacentes. Este conceito foi
introduzido, pela primeira vez, por Robson [1] e, desde a década de 70, muitos
destes têm sido sintetizados. Atualmente, podem ser basicamente divididos em
duas classes: (I) aquela em que os metais compartilham um mesmo átomo
doador em complexos contendo sítios adjacentes (o átomo doador funciona
como uma ponte entre eles) e (II) aquela na qual os ligantes contêm grupos de
átomos doadores isolados (quando os sítios de coordenação estão separados
por um anel aromático, por exemplo) [2].
Dentre os ligantes “compartimentais”, os binucleantes e seus complexos
(homobinucleares ou heterobinucleares) são importantes alvos de estudo. As
particularidades estruturais, de síntese, e o estudo dos complexos obtidos pode
trazer importantes aplicações para tais compostos. Além disso, nos últimos anos,
o estudo de modelos baseados nesse tipo de complexos tem se tornado uma
ferramenta importante para um melhor entendimento das funções de centros
bimetálicos de ocorrência natural, o que levou ao desenvolvimento de muitos
complexos binucleares capazes de desempenhar atividade catalítica [3,4].
Nos sistemas biológicos, tais centros bimetálicos aparecem associados
ao desempenho de funções específicas, principalmente de transporte e
catalíticas. Dentre as muitas metaloenzimas que contem centros bimetálicos
(com ou sem assimetrias) em seus sítios ativos, podemos mencionar:
a) Fosfatases Ácidas Púrpuras:
As fosfatases ácidas púrpuras (PAPs) são metaloenzimas binucleares (do
tipo não-heme) que catalisam a hidrólise de certos ésteres de fosfato e anidridos
em condições ácidas (pH ótimo entre 4,9 e 6,0), além de serem importantes no
controle fisiológico dos níveis de fosfato. A cor púrpura característica do estado
Capítulo 1. Introdução 25
oxidado das PAPs está associado a uma transição de transferência de carga do
tipo Tirosina → Fe(III) [5,6].
As PAPs de mamíferos (~35 KDa) contêm centros redox ativos de ferro.
As PAPs da maioria das plantas, por outro lado, possuem um centro redox ativo
de valência mista, do tipo Fe(III)-Zn(II) [7].
A descrição estrutural da fosfatase púrpura do feijão revela que ambos os
íons metálicos aparecem hexacoordenados e ligados por pontes µ-hidroxo e µ-
carboxilato (de um resíduo de aspartato). A esfera de coordenação do zinco
compreende dois resíduos de histidinas, uma asparagina e uma molécula de
água, enquanto que a do íon férrico é constituída de um resíduo de histidina, um
tirosinato, um aspartato e um hidróxido, conforme ilustrado na figura 1 [8,9].
Figura 1 – Sítio ativo da fosfatase ácida púrpura (PAP) do feijão com
resolução de 2,9 Å, evidenciando a coordenação assimétrica aos centros
metálicos. Extraído da referência [8].
b) Catecol Oxidases:
A metaloenzima catecol oxidase (CO) possui um par de íons cobre(II)
coordenados por resíduos de histidina, típico centro de cobre tipo 3. Estas
enzimas catalisam a oxidação de uma grande gama de o-difenóis (catecóis) às
correspondentes o-quinonas por oxigênio molecular (oxigênio redutases). As
quinonas resultantes são altamente reativas e se auto-polimerizam formando
melaninas polifenólicas marrons, processo que, acredita-se, protege a planta
danificada de patógenos ou insetos [10,11]. Além da sua intrínseca importância in
Capítulo 1. Introdução 26
vivo, a reação específica da CO é importante no diagnóstico médico para a
determinação de catecolaminas hormonais (adrenalina, noradrenalina, e
dopamina).
A estrutura tridimensional da catecol oxidase da batata doce (Ipomoea
batatas, ibCO) já é bastante conhecida e está descrita na literatura [12]. Na figura
2 essa estrutura (com os centros de cobre oxidados) pode ser observada.
Figura 2 – Estrutura tridimensional da catecol oxidase de batata doce
(ibCO) com resolução de 2,7Å. (a) estrutura terciária e (b) estrutura
secundária, com ênfase no sítio ativo. Extraído da referência [12].
Na figura é possível identificar o sítio ativo de cobre na sua forma met
[CuA(II)-OH-CuB(II)]. Cada um dos centros ativos está coordenado por três
resíduos de histidina: com CuA(II) coordenado por His88, His109 e His118; e
CuB(II) por His240, His 244 e His274. A distância intermetálica é de 2,9 Å.
Ambas as esferas de coordenação são do tipo bipiramidal trigonal com His109 e
His240 nas posições apicais. A esfera de coordenação é completada por um íon
hidróxido (atuando como ponte entre os centros metálicos).
A estrutura da enzima no seu estado reduzido revela distância entre os
centros metálicos um pouco maior [Cu(I)∙∙∙Cu(I)= 4,4 Å], mas sem mudanças
conformacionais significativas na proteína. Não há mais ponte entre os centros
metálicos, mas em CuA(I) há uma molécula de água coordenada (Cu-O= 2,2 Å) e
a geometria é trigonal piramidal distorcida. A geometria em CuB(II) é quadrado
planar, com um sítio de coordenação vago.
Capítulo 1. Introdução 27
1.1. Ligantes compartimentais simétricos e seus complexos
Dentre os mais variados tipos de ligantes compartimentais binucleantes,
ou polinucleantes, descritos na literatura, as estruturas simétricas são de grande
importância para o escopo deste trabalho, principalmente aquelas que contêm
braços doadores com grupos fenol.
As descrições de ligantes compartimentais baseados em fenóis parecem
atrair particular interesse, devido ao conjunto de características / funções úteis
que o grupo pode desempenhar, tais como: (i) variação de carga em função do
pH; (ii) a capacidade de formar pontes entre dois centros metálicos próximos e
(iii) a presença de anel aromático, que confere rigidez e certas capacidades de
interação especiais, como - stacking, à estrutura [13].
Há na literatura descrições de ligantes contendo uma ou mais unidades
fenólicas e seus respectivos complexos metálicos, em que se observam pontes
µ-fenoxo. Podemos destacar o trabalho de Neves e colaboradores [14] na
descrição estrutural do ligante simétrico 2,6-[N,N’-bis(2-hidroxifenilmetil)-N,N’-
bis(piridilmetil)aminometil]-4-metilfenol (figura 3-A) e do seu complexo binuclear
de zinco(II) [Zn2L2(OAc)(OH2)]∙CH3CO2H, com coordenação do tipo N2O4 para
cada centro de zinco e ponte exógena acetato entre os metais, descrito por
Adams [15] (figura 4).
Figura 3 – Ligantes compartimentais fenólicos 2,6-[N,N’-bis(2-hidroxi-
fenilmetil)-N,N’-bis(piridilmetil)aminometil]-4-metilfenol (A); 2,6-bis{[bis(2-
piridilmetil)amino]metil}-4-metilfenol (B) e 2-bis{[(2-piridilmetil)-aminometil]
-6-[(2-hidroxibenzil)(2-piridilmetil)]-aminometil}-4-metilfenol (C).
Capítulo 1. Introdução 28
Figura 4 – Estrutura (ortep) do complexo [Zn2L2(OAc)(OH2)]∙CH3CO2H.
Adams e colaboradores [14].
Há também inúmeras descrições de complexos homodinucleares [15-22] e
hetreodinucleares [22-26] do ligante 2,6-bis{[bis(2-piridilmetil)amino]metil}-4-metil-
fenol (figura 3-B) e 2-bis{[(2-piridilmetil)-aminometil]-6-[(2-hidroxibenzil)(2-piridil-
metil)]-aminometil}-4-metilfenol (figura 3-C) [27,28]; muitos deles mostrando pontes
µ-fenoxo entre os centros metálicos. No estudo de Selmeczi e colaboradores [29],
por exemplo, é descrita a síntese de dois complexos de zinco(II) do ligante 2,6-
bis{[bis(2-piridilmetil)amino]metil}-4-metil-fenol (figura 5), com a finalidade de se
obter modelos miméticos para a enzima fosfodiesterase.
Figura 5 - Estruturas em ortep dos complexos de zinco com o ligante
2,6-bis{[bis(2-piridilmetil)amino]metil}-4-metilfenol. Complexo 1: Zn1∙∙∙Zn2=
3,016 Å. Complexo 2: Zn1∙∙∙Zn2= 3,791 Å. Selmeczi e colaboradores [29].
Capítulo 1. Introdução 29
Como pode ser observado na figura 5, o complexo 1 tem ponte exógena
OH, enquanto o complexo 2, não. Ambos os complexos isolados representam
espécies que são parte de um equilíbrio em solução (pKa= 7,60). A avaliação da
atividade catalítica desses complexos mostra que apenas 1 promove a reação
do substrato de RNA utilizado. Já o complexo 2 não mostra atividade. Ou seja, o
aspecto estrutural do complexo 1 foi diferenciador para a atividade catalítica. Nos
complexos de cobre(II) do mesmo ligante, descritos por Torelli e colaboradores
[30], a estrutura é exatamente a mesma dos complexos de zinco mostrados acima
e, semelhantemente, o complexo binuclear com ponte exógena µ-hidroxo é o
único que também apresenta atividade catalítica, como catecol oxidase.
Outras descrições estruturais também são encontradas na literatura, com
ligantes contendo grupo fenol apenas nos braços pendentes. É o caso do estudo
estrutural feito por Neves e colaboradores [31] com os ligantes H2L1 e H2L
2 (figura
6). A reação entre esses dois ligantes e dois equivalentes de cloreto de zinco(II)
produz complexos homodinucleares com interessantes aspectos estruturais.
Figura 6 – Ligantes binucleantes H2L1 e H2L
2 contendo espaçadores
do tipo alcanodiamina e braços pendentes com grupos fenol e piridina.
Neves e colaboradores [31].
Na figura 7 a seguir, onde estão as estruturas obtidas para os complexos,
é possível observar, em ambos os casos, o íon zinco(II) coordenado por todos os
átomos doadores dos ligantes, com os fenóis desprotonados, em um ambiente
de coordenação pseudo-octaédrico. Este complexo, por sua vez, “se comporta
como um ligante” em relação a um segundo íon zinco(II), o qual se encontra em
um ambiente de coordenação tetraédrico. A coordenação ocorre através dos O-
fenolatos, que atuam como pontes entre os metais. A única diferença na esfera
de coordenação dos complexos é que, em [Zn(ZnCl2)L1], os N-piridil estão em
posições relativas cis, enquanto que, em [Zn(ZnCl2)L2], eles estão em posições
Capítulo 1. Introdução 30
relativas trans. Seria presumível supor que o modo de coordenação mais
provável para esses ligantes seria aquele envolvendo a complexação de um íon
metálico por cada braço coordenante; contudo, e comprovando a flexibilidade
estrutural deste tipo de ligante, eles se ligam de forma hexadentada a um
mesmo íon.
Figura 7 – Figura em ortep dos complexos [Zn(ZnCl2)L1] (um dos dois
enantiômeros obtidos) e [Zn(ZnCl2)L1]. Adams e colaboradores [32].
Para complexos de cobre(II), Neves e colaboradores reportam a síntese
do ligante H3bbppnol (figura 8), a partir do qual foram obtidos dois complexos
homobinucleares inéditos, a saber: [Cu2(H2bbppnol)(µ-OAc)(H2O)2]Cl2·H2O [33] e
[Cu2(H2bbppnol)(µ-OAc)(µ-ClO4]ClO4·H2O·EtOAc [34].
Figura 8 – Ligante binucleante H3bbppnol, com braços pendentes
contendo grupos fenol. Neves e colaboradores [33,34].
Capítulo 1. Introdução 31
Esses complexos apresentam geometrias octaédricas distorcidas em
ambos os centros de cobre(II), e os fenóis dos braços pendentes permanecem
protonados após a coordenação. Em testes de atividade catalítica, os complexos
mostraram atividade como catecolase, especialmente [Cu2(H2bbppnol)(µ-OAc)
(H2O)2]Cl2·H2O, que mostrou excelente performance [35].
Para o caso de outros ligantes simétricos, sem presença de grupo fenol,
podemos destacar os trabalhos de Louka e colaboradores [36], que descrevem a
síntese do ligante simétrico 1,4-bis[bis(2-piridilmetil)aminometil]benzeno, e uma
série de quatro complexos de cobre(II) que podem ser vistos na figura 9. Uma
característica importante nestes compostos é a presença do grupo espaçador
(anel benzênico), que torna os sítios metálicos independentes um do outro. Os
centros de Cu(II) são pentacoordenados, com geometria piramidal quadrada.
Figura 9 – Complexos de cobre(II) do ligante espaçador 1,4-bis[bis(2-
piridilmetil)aminometil]benzeno. [Cu2(L)(ClO4)2Cl2], com um valor de τ=0,01;
[Cu2(L)(N3)4]∙2H2O, com τ=0,06; [Cu2(L)(dca)4]∙2H2O, com τ=0,12 e, por fim, [Cu2(L)Cl2(H2O)2](C4O4)∙5,4H2O, com τ=0,08. Louka e colaboradores [36].
Capítulo 1. Introdução 32
Pelo que se pode perceber, compostos de coordenação contendo anéis
rígidos e lineares como espaçadores não são incomuns (tendo como exemplo
algumas estruturas mostradas ao longo desta revisão). Por outro lado, o uso de
ligantes com espaçadores que mostrem alguma flexibilidade conformacional
parece pouco explorado. As possibilidades de estruturas flexíveis de ligantes e
complexos que podem ser obtidos parecem menos previsíveis em virtude das
possibilidades conformacionais que essas estruturas podem adotar, podendo até
mesmo serem obtidas formas poliméricas.
Não apenas devido aos aspectos estruturais, mas complexos contendo
espaçadores (de diferentes naturezas) também podem despertar interesse para
aplicabilidades específicas. Por exemplo, Peng e colaboradores [37], no estudo de
complexos binucleares de zinco(II) contendo espaçadores lineares de diferentes
tamanhos entre poliaminas macrocíclicas, realizaram uma série de estudos de
atividade catalítica na clivagem de DNA em condições fisiológicas. Os resultados
mostraram que os complexos contendo grupos espaçadores funcionaram de
forma muito eficiente como nucleases químicas, em comparação ao complexo
mononuclear (sem o espaçador). Ou seja, a atividade catalítica dos complexos
foi melhorada com a incorporação dos espaçadores na estrutura. Outros estudos
também reportam complexos binucleares, que atuam como nucleases, contendo
espaçadores alifáticos [38] e aromáticos [38-40].
Dentro da perspectiva dos ligantes compartimentais, torna-se importante,
e interessante, explorar estruturas com tais características (em suas diversas
possibilidades) para as mais variadas finalidades, além da riqueza estrutural que
o estudo delas pode revelar.
1.2.Proposta de Trabalho e Justificativa
Nesse contexto, o desenvolvimento de ligantes binucleantes, capazes de
gerar novos complexos binucleares simétricos ou assimétricos é um assunto de
grande interesse do ponto de vista da Química Inorgânica estrutural. Além disso,
ligantes contendo, simultaneamente, os versáteis grupos coordenantes fenólicos
e espaçadores moleculares constituem um campo ainda pouco explorado dentro
da Química de Coordenação. Portanto, a proposta deste trabalho está baseada
no desenvolvimento de três ligantes binucleantes (eventualmente trinucleantes)
simétricos, todos eles N,O-doadores, bem como na preparação e no estudo das
propriedades dos seus complexos bimetálicos de cobre(II) e zinco(II).
Capítulo 1. Introdução 33
Nas figuras 10-12, as estruturas desses ligantes podem ser observadas.
OH
N
N
NOH
OH
N
N
N OH
Figura 10 – Estrutura do ligante 6,6’-[1,2-etanodiilbis(iminometil)]bis
{2-[(2-hidroxibenzil)(2-piridilmetil)aminometil]-4-metilfenol} (H4L1).
OH
N
N
NOH
OH
N
N
N OH
H
H
Figura 11 – Estrutura do ligante 6,6’-[1,2-etanodiilbis(aminometil)]bis
{2-[(2-hidroxibenzil)(2-piridil-metil)aminometil]-4-metilfenol} (H4L2).
O
O
N
N
OH
N
N
OH
Figura 12 – Estrutura do ligante binucleante 1,4-bis[(2-hidroxibenzil)
(2-piridilmetil)amino-metil]-2,5-dimetóxibenzeno (H2L3).
Capítulo 1. Introdução 34
Todos os ligantes apresentam o mesmo braço pendente coordenante,
chamado de hbpa e constituído de um nitrogênio amínico terciário carregando
dois substituintes: os grupos 2-metilpiridina e 2-metilfenol.
Nos ligantes H4L1 e H4L2, esses braços pendentes estão ligados a um
anel fenólico do tipo p-cresol, formando o intermediário hbpamff. Um espaçador
derivado de etilenodiamina (en) conecta duas dessas unidades intermediárias. A
introdução do espaçador no intermediário forma uma ligação imínica, originando
o ligante H4L1, e a posterior redução dessa ligação dá origem ao ligante H4L2.
Apesar de extensivamente utilizado na preparação de ligantes de maior
complexidade estrutural [41,42], não existem, na literatura, registros estruturais de
complexos do intermediário hbpamff.
Já o ligante H2L3, possui o grupo 1,4-dimetoxibenzeno como espaçador.
Uma nova rota de síntese para a obtenção deste centro fora desenvolvida em
nosso grupo de pesquisa, conforme reportado por Nogueira [43].
Um aspecto importante é que todas as três estruturas possuem diferentes
possibilidades de coordenação. Para os dois primeiros ligantes, os nitrogênios
dos espaçadores também podem participar da esfera de coordenação e, para
H2L3, os grupos metoxila podem, eventualmente, se ligar a íons metálicos. A
particularidade dos grupos fenólicos poderem se encontrar protonados ou não
nos complexos (isto é, o status de protonação) pode levar a diferentes cargas
nas espécies resultantes. E, ainda, o oxigênio fenólico pode atuar como ponte
endógena entre os centros metálicos nos complexos. A presença do espaçador
também pode contribuir no sentido de conferir maior flexibilidade (H4L1 e H4L2)
ou rigidez (H2L3) às estruturas. Finalmente, H2L3 pode atuar como um modelo
simplificado de coordenação para os sítios dos ligantes H4L1 e H4L2, de maior
complexidade estrutural.
Há ainda outros aspectos interessantes relacionados ao ligante H2L3. A
literatura descreve algumas classes de ligantes que contêm um anel aromático
substituído como espaçador, destacando a sua potencial atividade anti-HIV,
como é o caso do composto biciclo chamado AMD3100 (figura 13), em que os
grupos coordenantes são constituídos por duas unidades simétricas do anel
tetradentado N4-doador ciclam.
Capítulo 1. Introdução 35
N
N
NH
NH NH
NH NH
NH
Figura 13 – Estrutura do AMD3100.
O AMD3100 é um conhecido inibidor de fusão que interfere no ciclo de
vida do HIV, no estágio de fusão vírus-célula. O processo de fusão do HIV na
membrana celular é auxiliado pelos co-receptores de quimiocinas, CCR5 e/ou
CXCR4, que atuam como receptores essenciais no reconhecimento e invasão da
célula-alvo [44]. O AMD3100 é, comprovadamente, o antagonista mais específico
para o co-receptor CXCR4, e os sítios-chave de interação do AMD3100 com
este receptor são os resíduos de ácido aspártico nas posições 171, 182, 193 e
262, localizados no lado extracelular do CXCR4 [45, 46]. Em particular, os resíduos
171 e 262 (figura 14). Entretanto, apesar da grande especificidade com relação
ao referido receptor, esta molécula apresenta pobre biodisponibilidade devido à
sua alta natureza polar. Além disso, possíveis efeitos cardíacos colaterais foram
observados em testes clínicos de fase II [47].
Capítulo 1. Introdução 36
Figura 14 – Sequência de aminoácidos e organização transmembrana
do co-receptor CXCR4. Os resíduos cruciais de ácido aspártico (posições
171, 182, 193 e 262) envolvidos na interação do CXCR4 com o AMD3100
estão em destaque. Extraído da referência [48].
Sabe-se que a afinidade do AMD3100 pelo CXCR4 pode ser aumentada
pela incorporação de íons metálicos, como Zn(II), Cu(II) ou Ni(II), pois, como dito
acima, o anel ciclam funciona como um braço coordenante tetradentado, pelos
nitrogênios. Isto pode ser devido a uma melhor interação do íon metálico, a qual
deve incluir coordenação, principalmente pelo resíduo de aspartato na posição
262 [49]. Especificamente, acredita-se que isto ocorra por meio de uma interação
concomitante entre um dos oxigênios do carboxilato diretamente com o centro
metálico e o outro oxigênio com um dos nitrogênios do anel ciclam através de
uma ligação de hidrogênio, conforme ilustrado na figura 15 [46].
Capítulo 1. Introdução 37
Figura 15 – Complexo binuclear Cu(II)AMD3100 e sua interação como
metalodroga no co-receptor CXCR4. Extraído da referência [51].
Esté e colaboradores [52], em estudo de complexos metálicos binucleares
com AMD3100, mostraram que o complexo de Zn(II) é dez vezes mais ativo que
o AMD3100 livre na interação com o co-receptor CXCR4. Além disso, existe uma
correlação próxima entre a atividade anti-HIV e a interação nesse co-receptor,
que decresce na ordem: Zn(II)2 > AMD3100 > Ni(II)2 > Cu(II)2 > Co(III)2 > Pd(II)2
[utilizando sais de perclorato, exceto para o cloreto complexo de cobalto(II)]. O
resultado sugere que o complexo de Zn(II) é um importante antagonista in vivo.
O complexo de Co(II) apresenta atividade muito baixa, enquanto que o de Pd(II)
é praticamente inativo.
Podemos destacar também os estudos de Khan e colaboradores [51], em
que, após 24 horas de incubação com células T-Jukart, o complexo de cobre(II)
do AMD3100 apresentou maior porcentagem de inibição no co-receptor CXCR4
do que o AMD3100 não-complexado nas células testadas, comprovando que, de
fato, o complexo tem maior tempo de residência no co-receptor que o ligante.
Conjuntamente com esses dois compostos, outro complexo de cobre(II) de uma
versão modificada do AMD3100 também foi testado e, depois de 48 horas de
incubação, foi o único que se manteve ligado ao co-receptor. Isto significa que o
aperfeiçoamento da estrutura original do AMD3100 promoveu melhor interação
do complexo no CXCR4, aumentando a potência de inibição. E essa interação,
ao que parece, vai muito além da coordenação do íon metálico ao carboxilato.
Provavelmente, para esse novo complexo, ligações de H adicionais favoreceram
Capítulo 1. Introdução 38
o maior tempo de residência no sítio do co-receptor, quando comparado com o
complexo Cu(II)AMD3100.
O estudo de compostos de coordenação com possível atividade anti-HIV
é relativamente recente. A literatura reporta uma variedade de complexos que
apresentam alguma atividade inibitória frente ao HIV [53-61].
Trabalhos como os descritos têm mostrado a importante contribuição que
a Química Inorgânica pode dar ao desenvolvimento de ligantes e complexos com
potencial atividade anti-HIV / AIDS. Principalmente dentro do grupo de agentes
conhecidos como inibidores de fusão, o qual permanece largamente inexplorado.
As limitações associadas à atual terapia antiretroviral altamente ativa
(HAART, do inglês “Highly Active Anti-retroviral Therapy”), tais como os efeitos
colaterais e situações de resistência do vírus, representam um longo obstáculo
na farmacoterapia desta doença a longo prazo. Como consequência da busca
por novas alternativas, as metalo-drogas podem ser incluídas nessa perspectiva.
Acreditamos que o ligante H2L3 possui interessantes características estruturais
que podem fazer dele, assim como de seus complexos, possíveis candidatos a
inibidores de fusão do vírus HIV.