Transcript
  • Resenha(Edion37)

    "HistriadaAntropologia",porMariaClaudiaCoelho(*)

    Dadosdolivroresenhado:Ttulo:HistriadaAntropologiaAutores:ThomasHyllandErikseneFinnSivertNielsenEditora:VozesNmerodePginas:261

    ThomasH.ErikseneFinnS.Nielsen,autoresdeHistria daAntropologia,lanadonoBrasil pelaEditoraVozes, soprofessores respectivamentenaUniversidadedeOsloenaUniversidadedeCopenhague.Estasinseresaomesmotempoprximasedistantesdomainstreamantropolgicopodemnosservircomoportadeentradaparaumareflexosobreaconcepodahistriadaantropologiaqueelaboramemseulivro.

    No ltimo captulo (Reconstrues), os autores procuram identificar, emmeio incerteza que apontam como sendo a marca dos anos 90, e adespeito da falta de distncia histrica para se esboar uma viso deconjunto,ascontinuidadeserupturaspresentesnahistriadadisciplina.Emmeioaesteesforo,relativizamodesenhoquepropem,ressalvandoestarele comprometido com o que chamam de poder definicional, ou seja, aimbricao entre poder e linguagem na prpria constituio do campoantropolgico. Deste modo, sua escolha por examinar as tradiesantropolgicasdelnguasalem,francesaeinglesa,emboraautorizadapelahistriadadisciplina,exigeaomesmotempoumesfororeflexivo,umavezque, conforme os prprios autores apontam, se a antropologia brasileirativessesidoregularmente traduzidaparao inglseparao francs, todaahistriadaantropologiapoderiatersidodiferente.

    Esta observao, presente nas ltimas pginas do livro, torna sua leituraextremamenteprovocadoraparaosantroplogosbrasileiros.Estamostodosacostumados a ler volumes de introduo antropologia que principiamrecuperando as principais idias do evolucionismo (eventualmenteretrocedendoumpoucoembuscadas razes filosficasdestemovimento),seguindo ento por exposies dos debates e rupturas tericas quemarcaram o surgimento das escolas consagradas do culturalismo, dofuncionalismo,doestruturalismoedointerpretativismo.OtrabalhodeErikseneNielsennofogeregraemseuscaptulos iniciais.Osautores,contudo,voalm, aventurandosea tentar identificar linhasmestras presentes nosmomentosdeestilhaamentodocampo,aomesmotempoemquebuscamcontemplaradiversidadedeperspectivasqueconvivemaolongodahistriadaantropologia.

    Estesdoisaspectosabordadosaressalvaemrelaoaoprpriotrabalhocontidananoodepoderdefinicionaleapreocupaoemoferecerumavisodo camposimultaneamente fragmentada e coesa (com o perdo doparadoxo) do o tom do livro. A histria da antropologia de Eriksen eNielsenumtrabalhoreflexivo,sendoassimexemplardomovimentoatualda disciplina ao mesmo tempo, contudo, uma escuta atenta percebe apresena recorrente das marcas de nascena do empreendimentoantropolgicooqueohomem?oquecultura?oquesociedade?,as quais, um pouco maneira de um contrabaixo que sustenta umaharmonia s se fazendo notar ocasionalmente, garantem que se estejafalandomesmodahistriadeumadisciplina.

    No que os autores se furtem a comentar e explorar as relaes daantropologia com outras reas do saber. Suas comparaes entre aantropologia e a sociologia abordam desde suas dvidas e compromissosparacomosmomentoshistricosesuasquestesemergentesataatualconjuntura,quefariadaantropologiahojeumsucessodepblicoscustasdasociologia.Oestadodaartedosdebatesentreumavisobiologizantedohomemeaperspectivaculturalizantedaantropologia tambmmereceatenoemmuitosmomentos,bemcomoeventuaisinflunciasdemodelostericosoriundosdeoutrasreasdeconhecimento.Emnenhummomento,contudo,estaatenoparaosdilogoscomoutrasdisciplinasganhaaresdepanorama, estando sempre rigorosamente a servio de um comentriosobreaelaboraodaidentidadedisciplinardaantropologia.

    Olivroestestruturadoemnovecaptulos.Oprimeirodelesdedicaseaumaprhistria da antropologia, e j a seu tom reflexivo fazse notar.Voltandoaosgregosembuscadaorigemdequestesquenamodernidadefundariamaantropologiaoproblemadaalteridadeeoparadoxofilosficoentre universalismo e relativismo , os autores comentam ser esse umprocedimentopadro de toda cincia europia: buscar nos gregos suaancestralidade...Ocaptulotrazaindaumarevisodasheranasclssicasdaantropologia,taiscomooproblemadafidedignidadedarepresentaodooutro colocado pelas grandes navegaes as influncias iluministas eromnticaseoslegadosdeKanteHegel.Aocontrrio,contudo,deapenasrastrear essas continuidades, os autores j a introduzem tambm umaperguntaqueevidenciaaquelapreocupaocomoequilbrioentrerupturaecontinuidade comentada acima como sendo amarca de seu trabalho: por

  • ques tomais tarde iremos falarem antropologia,se todasasgrandesquestes parecem estar presentes j h tanto tempo? Resposta: aantropologia seria ao mesmo tempo um produto da modernidade e umacombinaodedoisgneros:osrelatosdeviagemeafilosofiasocial.

    O segundo captulo abre com uma comparao entre o surgimento daantropologiaeda sociologia.Enquantoaprimeira decorreria das relaesimperialistas,asegundasurgiriacomaindustrializaoeapremncia,deladecorrente,decompreensodeseuimpactosobreasrelaesdeclasse.Emsendoassim,asduasdisciplinasteriampedrasfundamentaisdistintas:paraaantropologia,aalteridadeparaasociologia,amodernidade.Antropologiaesociologiateriamaindamarcasdenascenaprprias:enquantoopontochave de toda reflexo antropolgica seria o princpio de uma unidadepsquicadahumanidade,oalicercedetodoopensamentosociolgicoseriaanoodasociedadecomoumarealidadeautnoma.Ocaptuloprosseguecomoexameda obra de alguns ancestrais e/ou fundadores, com seesespecficasdedicadasaLewisH.Morgan,KarlMarx,mileDurkheimeMaxWeber.

    O terceiro captulo dedicase ao exame das contribuies de quatro paisfundadores, centrais na constituio das trs grandes tradiesantropolgicas(norteamericana,inglesaefrancesa):FranzBoas,BronislawMalinowski, A. R. RadcliffeBrown e Marcel Mauss. A preocupao dosautoresemequilibrarasparticularidadescomosgrandesquadrosntidaneste captulo, em que as posies dos quatro fundadores, ainda queapresentadasemsees separadas, so postas em dilogo. Assim queErikseneNielsendestacam,comoumacontribuiofundamentaldeBoas,aindissociabilidade entre mtodo e moral no princpio do relativismo,distinguindo entre trabalho de campo e observao participante paracaracterizar a segunda como legado de Malinowski. Ambos, contudo,compartilhariamdaatenopara com o detalhe e da preocupao com oponto de vista nativo, distinguindose ainda no plano das grandespinceladas na ateno dada s reconstrues histricas. Este captulo,desenhadodemodoapermitirestedeslizamentoconstanteentrediferenasesemelhanas,particularidadeselinhasmestras,prosseguecomRadcliffeBrown,que,dividindoacenaantropolgica inglesacomMalinowskiecomestecompartilhandoadesconfianaemrelaohistoricizaodosestudossobresociedadestribais,deleseafastariapelolugardadoaoindivduo:umfundamentodavidasocialparaMalinowski,umepifenmenoparaRadcliffeBrown.ApreocupaofundamentaldeRadcliffeBrownapresentadacomosendoas formasda integraosocial, suapostura tericaaproximandoseassimdaqueladeMarcelMaussoquartopaifundador,quetrariadesuaheranadurkheimianaumaconcepoholsticadasociedade.

    O esforo dos autores em apresentar de forma coesa um campo que sefragmentatornaseaindamaisclaroapartirdoquartocaptulo.RecorrendoaottulodeumartigodeAdamKuper,osautoresempreendemumaanliseda rotinizao do carisma na antropologia, procurando a partir de entomostrar de quemodo a seduo inicial do empreendimento antropolgicoinstitucionalizousenacriaodosprincipaisdepartamentosdeantropologianosEstadosUnidos, na Inglaterra enaFrana.Um terceiro grandemritodesta histria da antropologia aparece aqui. Discutindo a formao dosprincipaiscentros(entreelesOxford,LondonSchoolofEconomics,ColumbiaeChicago),ErikseneNielsenentrelaamtrajetriaspessoais,processosdeinstitucionalizaoedebatestericos,desenhandoumamalhaintricadaemquequemestavaonde,quemestudaracomquemequempesquisavaoqucombinamsenaconstruodeumahistriavivadosrumosdopensamentoantropolgico.

    Os captulos 5 e 6 abordamos anos 50 e 60, sendo divididos por temas:estabilidade/mudana e coesosocial/agncia individual no captulo 5, asteoriasdosignificadonocaptulo6.Opontofortedocaptulo5asugestodequeaentradaemcenadapolticacomoumtemanobredasagendasdepesquisa um fator que teria impulsionado a crtica ao estruturalfuncionalismo,umavezque,sendoapolticaaartedopossvel,seuestudoteriacolocadoemxequeaconcepodavidasocialcomocoesaeestvel.

    Muitos grandes nomes surgem em cena no captulo 6, entre eles VictorTurner, Mary Douglas, Clifford Geertz e Claude LviStrauss. Oentrelaamento entre as trajetrias individuais e a formao das grandestradies nacionais permanece uma preocupao marcante dos autores,como por exemplo na discusso sobre a rejeio inglesa ao estudo dosignificado sem ateno para a organizao social, tal como teria sidopropostopelosnorteamericanosCliffordGeertzeDavidSchneider.Ao fimdeste captulo, o esboo do estado da arte em 1968 aponta para umaexpansonumricaeparaumadispersogeogrficadaantropologia,comodesenvolvimentodadisciplinaemnovasregieseuropias(Holanda, Itlia,EspanhaeEscandinvia)ecomaexpansodasantropologiasindgenasnaAmricaLatina.Aqui,destacaseasensibilidadedosautoresparaariquezade um outro tipo de dado nesta reconstruo da histria da disciplina: onmerodenovosdoutores,quepassa,nosEstadosUnidos,de22em1950para409em1974.

    Ocaptulo7principiacomumnovodadodestetipo:apresenademaisdedezmilmembros pagantes naAssociaoAmericana deAntropologia emfinsdosanos90,apresentadocomoevidnciadoenormedesenvolvimento

  • dadisciplina.Ofocodocaptuloestnosanos70.Devidoenormedifusodesteperodo,osautoresoptamporvoltaraatenoparaoexamededuascorrentesdegrandeimpacto:omarxismoeofeminismo,responsveispelaincluso na agenda antropolgica dos temas do gnero e do poder.Examinando as dificuldades e contribuies de cada corrente, os autoresdestacamcomoproblemacentraldasantropologiasmarxistas(assimmesmo,noplural)aformadeconceberarelaoentreomaterialeoideacional.Jofeminismoapresentado como tendodadoduas contribuiesdeenormerelevncia: a noo de que o conhecimento antropolgico necessariamenteposicionadoeaaberturadenovasreastemticas,entreelas a antropologia do corpo, os estudos de gnero e o estudo daresistncia entre grupos oprimidos. Os autores abordam ainda nestecaptuloosurgimentodosestudossobreetnicidade,dateoriadaprtica(eseuimpactosobreosestudosdocorpo)edasociobiologiamovimentoesteem que o tema fundamental da antropologia acerca da relao entrenaturezaeculturareemergecomcontundncia.

    Psmodernismoepscolonialismosurgemnocaptulo8,dandootomdosanos 80, caracterizados pelos autores como uma poca de dvida, emoposioaocompromissoquemarcaraaantropologianadcadaanterior.apocatambmdaantropologiaurbanaedoesmaecimentodasfronteirasentre as tradies nacionais. Ambos os movimentos radicalizam a viradareflexiva, passando a encarar a prpria disciplina como um regime deconhecimento. Apesar desta semelhana, contudo, os autores apontamcomo uma distino fundamental entre os dois movimentos a naturezaepistemolgica da motivao psmodernista, em oposio motivaopolitizadadomovimentopscolonialista.Eaquiresideumacrticapossvelaestahistriatorefinadadaantropologia,poisnojustamentenacrticaepistemologia da antropologia ocidental que reside a essncia poltica domovimento pscolonialista? E, por sua vez, todas as revisesepistemolgicas do psmodernismo norteamericano a ateno dada poltica das representaes, a desconstruo da noo de cultura, aconcepo da etnografia como um gnero narrativo no podem serpensadascomoumalentadomeaculpamovidoporumapercepotardiadaimbricaoentreempreendimentointelectualeatitudepoltica?

    O ltimo captulo explicita a preocupao com o equilbrio entrepermannciaserupturasqueperpassa todoo livro.Osautoressublinham,entre outras continuidades, o apreo pela observao participante e ointeresse pela tenso entre o universal e o particular. Entre as rupturas,destacam a mudana na relao antroplogonativo e suas implicaesticasaperdadesentidodaoposiotradicionalmodernoeaimplosodanoo de espao provocada pelas conexes transnacionais, com seuenorme impacto sobre o conceito de campo, to central na constituiooriginal do pensamento antropolgico. Elegem ainda, para reflexo final,duastendnciasrecentes:osestudossobreglobalizaoeaaproximaoentrebiologiaecultura.

    Nosestudossobreglobalizao,osautores sublinhamapermannciadasquestes o que cultura e o que sociedade na discusso sobrebiologiaecultura,destacamaretomadadaperguntaoqueserhumano.Questesfundadorasdaantropologiaemseusprimrdios,estesproblemaspontuam toda essa histria da antropologia de Eriksen e Nielsen,reaparecendoaquieacol,algumasvezescomopanodefundo,outrasnoproscnio, garantindo que instituies, pessoas e idias permaneamentrelaadasnaconstituiodestavisoquerecorreoraaotelescpio,oralupa,comoinstrumentosdeobservao.

    assimquepolmicas famosasaparecemtratadas:ocasoSokalusadopara falar da tenso entre humanismo e cientificismo o caso ChagnonTierney e a polmica SahlinsObeyesekere, para discutir a tensouniversalismorelativismo. E neste recurso a episdios famosos daantropologiaparadiscutirquestesfundadorasquecristalizasecomtodaaclarezaaafirmaoqueErikseneNielsenfazemjmaisparaofinaldolivro,equeparececondensartodooseuprojeto:Devemossempre lembrarnosdequeastrajetriasintelectuaisraramentesosimplesequeasfronteirasraramentesoclaras.

    (*) Maria Cludia Coelho antroploga e professora adjunta doDepartamentodeCinciasSociaisdaUERJ.

    Copyright2000::AllRightsReserved


Top Related