doutorado em psicologia social - tede2.pucsp.br do nascimento... · em memória dos que jazem no...

304
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Luiz do Nascimento Carvalho VIOLÊNCIA POLICIAL MILITAR EM GOIÁS: SOFRIMENTO E RESISTÊNCIA DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL São Paulo 2013

Upload: ledan

Post on 19-Jan-2019

239 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULOPUC-SP

Luiz do Nascimento Carvalho

VIOLNCIA POLICIAL MILITAR EM GOIS: SOFRIMENTO E RESISTNCIA

DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

So Paulo2013

PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULOPUC-SP

Luiz do Nascimento Carvalho

VIOLNCIA POLICIAL MILITAR EM GOIS: SOFRIMENTO E RESISTNCIA

Tese apresentada ao Programa de Estudos Ps-Graduados em Psicologia Social da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutor em Psicologia Social. Desenvolvido sob a orientao da profa. Dra. Bader Burhian Sawaia.

DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

So Paulo2013

Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP)

C33v Carvalho, Luiz do Nascimento. Violncia policial militar de Gois: sofrimento e resistncia [manuscrito] / Luiz do Nascimento Carvalho. So Paulo, 2013. 350 f.: il. Orientadora: Profa. Dra. Bader Burhian Sawaia. Tese (doutorado) Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, Programa de Estudos Ps-Graduados em Psicologia Social, So Paulo, 2013. 1 Estrutura semntica da conscincia. 2 Violncia policial militar. 3 Direitos humanos. 4 Cognio e afeto. I. Sawaia, Bader Burhian. II. Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. III. Ttulo. CDU: 159.922:316.48

Catalogao na Fonte: Lana Keren de Mendona CRB1/2486

Banca examinadora:

__________________________________________________

_________________________________________________

________________________________________________

________________________________________________

________________________________________________

________________________________________________

Em memria dos que jazem no silncio. E dos que ressuscitam suas vozes.

AGRADECIMENTOS

A realizao do presente trabalho contou com a colaborao direta ou indireta de muitas pessoas e instituies, s quais no poderiam deixar de mencionar, mesmo sob o risco de cometer a injustia de esquecer alguns nomes.

Profa. Dra. Bader Buhrian Sawaia, que me acolheu como seu orientando, e com quem aprendi lies, no apenas sobre o pensamento em psicologia social, mas tambm sobre solidariedade, respeito, amizade e, sobretudo, com quem pude sentir a felicidade produzida pela experincia do pensamento que aproxima imanncia e liberdade.

Aos professores que participaram de minha banca de qualificao, Profa. Dra. Anita Cristina Azevedo Resende, Profa. Dra. Jeanne Marie Gagnebin, Prof. Dr. Marcos Czar Alvarez, Prof. Dr. Odair Furtado, pelos apontamentos crticos e as sugestes de mudanas para empreender a qualificao do trabalho.

Aos professores do Programa de Estudos Ps Graduados em Psicologia Social da PUC-SP, Antnio da Costa Ciampa, Bader Burihan Sawaia, Flvia Rosemberg, Maria Cristina Vicentin, Maria do Carmo Guedes, Mary Jane Paris Spink, Miriam Debieux Rosa, Raul Albino Pacheco Filho, Salvador Antnio Mireles Sandoval. Nesse microcosmo do programa, animam-se os debates que direta ou indiretamente participam o presente estudo.

A Marlene Camargo, secretria do Programa de Estudos Ps Graduados em Psicologia Social da PUC-SP, pelo apoio e pelas dicas sempre muito valiosas, sempre acompanhadas de um belo sorriso.

Universidade Federal de Gois (UFG), na pessoa do magnfico reitor Prof. Dr. Edward Madureira Brasil e toda sua equipe de gesto. Lembro-me de uma mensagem de felicitaes, das que, costumeiramente se envia aos servidores da instituio, na ocasio de seus aniversrios. O contexto era segunda metade de dezembro de 2008, quando as possibilidades de realizar o projeto de doutoramento, ao qual o presente trabalho est vinculado, parecia cada vez mais invivel. A mensagem que receb em seu nome, atribuda a Johan Wolfgang von Goethe, dizia: seja qual for o seu sonho, nunca desista dele. Em parte o presente trabalho vincula-se certa sensibilidade institucional de compactuar sonhos e efetivar o que, na imediaticidade, aparece como impossvel.

Pr-Reitoria de Ps-Graduao e Pesquisa (PRPPG), na pessoa da Profa. Dra. Divina das Dores de Paula Cardoso, que, por meio do Programa de Capacitao Docente (PCD) da Pr-Reitoria de Ps-Graduao e Pesquisa (PRPPG), viabilizou a licena por quatro anos, para realizao do doutoramento e, no perodo de formao, tambm forneceu orientaes fundamentais para o bom cumprimento das demandas e prazos.

Ao Campus Catalo, da Universidade Federal de Gois (CAC/UFG), na pessoa de seu coordenador, Prof. Dr. Manoel Rodrigues Chaves, e a todos os colegas de trabalho, professores e pessoal tcnico-administrativo, que forneceram o apoio necessrio para iniciar, percorrer e completar esta jornada.

Aos meus colegas de trabalho do Curso de Psicologia, do Campus Catalo (CAC/UFG), pelo apoio no processo de liberao para realizar essa formao.

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq), por beneficiar-me com uma bolsa por um ano, que permitiu concluir o presente estudo.

Ao Programa Internacional de Bolsas de Ps-Graduao da Fundao Ford The International Fellowships Program (IFP) na pessoa de Joan Dassin, coordenadora do

programa internacional. E Fundao Carlos Chagas (FCC), pela coordenao no Brasil do programa IFP, na pessoa da Profa. Flvia de Barros Mott Rosemberg. Por meio do programa IFP, tive a oportunidade de beneficiar-me de uma bolsa de estudos por trs anos, partilhar experincias com muitos outros bolsistas e receber apoio de uma equipe competente e comprometida com os fins do programa.

Ao corpo docente do Spring International Language Center (SILC) da University of Arkansas (Arkansas-USA), Profa. Dra. Leyah Malcha Bergman-Lenier (diretora), Alanah Massey (coordenadora de programas especiais) e s professoras Stephanie Smith, Colin Large, e Adriana Treadway, e demais professores, com quem pude partilhar momentos intensos de aprendizado.

Aos bolsistas e ex-bolsistas IFP eles e elas com quem pude empreender esta jornada, participar dos seminrios em conjunto, conhecer e discutir os projetos e os resultados das pesquisas, que se misturam com as trajetrias de vidas compartilhadas.

Ao integrantes do Ncleo de Estudos da Dialtica Excluso-Incluso Social (Nexin) do Programa de Ps-Graduao em Psicologia Social, da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP). sua coordenadora, Profa. Bader B. Sawaia. Aos veteranos do Ncleo: Marlito Sousa Lima, Maria Helena Coelho, Margarida Barreto Meg, Rose Lilian Ceri Ramia, e tambm aos contemporneos de ncleo, Ana Silvia Ariza, Camila Miyagui, Ccile Diniz Zozzoli, Daniel Kina, Dilson Wrasse, Fabiana de Andrade Campos, Fabiana Itaci, Fbia Silva, Patrcia D'Elboux, Jamila Cassimiro, Ftima Maria Bertini, Rachel C. Franchito, Vanessa Furtado, Lvia Gomes dos Santos, Ivonete Gardini, Lavnia Lopes Salomo Magiolino, e tanto outros com quem foi possvel partilhar experincias de aprendizados no Ncleo.

Ao Centro de Estudos Assessoria e Pesquisa sobre Juventude Casa da Juventude Pe. Burnier (Caju) pela luta de seus integrantes da qual pude extrair a razo primeira da escolha do tema abordado, pelos dilogos, disponibilizao de material de pesquisa do Centro de Documentao (Cedoc), e pelo apoio e incentivo no decorrer desta empreitada. ento coordenadora do Ncleo de Pesquisa da Caju Carmem Lcia Teixeira pelo apoio, e tambm aos integrantes do ncleo e da oficina de Afetividade e Sexualidade da Caju, Shyrlei Gabina Baltazar, Valterci Vieira, Divino de Jesus Rodrigues, Eliane Nascimento, Gercilene, Rosngela Fernandes, Lucas Emanuel, Divina e demais colegas do ncleo.

Ao Cajueiro Centro de Formao, Assessoria e Pesquisa sobre Juventude: rvore-semente da vida, cujas razes fincadas no cho da histria fornecem-lhe a fora para enfrentar ventanias, continuar o caminho. Carmem Lcia Teixeira, Lourival Rodrigues da Silva e demais fundadores: vida longa ao Cajueiro!

Ao psiclogo Ms. Valterci Vieira, por ter disponibilizado materiais dos arquivos pessoais de sua pesquisa, por meios dos quais pude dar continuidade ao trabalho das nossas reflexes sobre o tema tratado.

Comisso de Direitos Humanos e Legislao Participativa da Assembleia Legislativa do Estado de Gois, na pessoa de seu presidente, o Deputado Estadual Mauro Rubem (PT), por ter disponibilizado informaes e documentos, que subsidiaram o presente estudo.

Ao Pe. Geraldo Marcos Labarrre Nascimento, inspirao para muitos temas suscitados pelo presente trabalho e cuja descrio de suas contribuies para o mesmo, extrapolariam os limites de uma simples meno.

A Profa. Dra. Omari Ludovico Martins, cuja convivncia solidria e partilha no processo de formao, j se encaminha na direo da segunda dcada. Em relao ao presente estudo no

foi diferente, Omari participou de cada momento, partilhando seus conhecimentos, sua biblioteca. Agradeo tambm pela leitura atenta do trabalho e pelas sugestes indicadas, alm disso, por me permitir experimentar uma relao de amizade to intensa e cheia de desprendimento, to rara quanto preciosa, em um tempo onde a coisificao do outro vigora como regra.

Ao Jonas Martins Borges, pelo entusiasmo, incentivo e apoio, que acompanham a realizao deste trabalho e alm dele. Com Omari, acompanhou passo a passo essa jornada, compartilhando as dores, os desafios, e fornecendo apoio nos momentos mais crticos. Trata-se, de uma grande amizade.

Profa. Dra. Darci Roldo Carvalho Sousa, pela leitura empreendida sobre o segundo captulo, e todo o apoio que tambm acompanha nossa trajetria, desde os tempos da Casa de Estudantes Universitrios da UFG (CEU III). Uma amizade que se estende tambm ao Antnio Fernandes de Sousa.

Darcy Costa, pela reviso do texto e pelas sugestes de alterao e pelo aprendizado que uma amizade e um bom encontro produz.

Aos amigos e amigas da Pastoral de Juventude (PJ) da Diocese de Tocantinpolis, dos anos 1990, com quem pude acumular sentidos e experincias que forma uma constelao em torno do tema tratado neste estudo: Pe. Sebastio Bezerra do Nascimento, Bismarque Roberto, Jos de Arimatia, Pedro Delfino, Ftima Aparecida Silva.

minha esposa, Alciene A. Ferreira, e nossa filhota, Maria Luiza Ferreira Carvalho, que viveram cada instante dessa trajetria, no equilbrio tenso entre o cotidiano, suas demandas e o fluxo dos aconteceres da vida, e a ateno que quer se prender em um ponto, reduzir os movimentos e importar o universo para dentro de si mesmo. Espero que ainda possamos ter tempo para brincar, ou seja, suspender o tempo.

A minha me, Luiza dos Santos Carvalho e a meu pai Florncio Dias Carvalho, pela aceitao, mesmo sem compreender exatamente onde pretendo chegar com tanto estudo.

A meus irmos e seus descendentes, Maria dos Anjos, Jos de Ribamar (Riba), Evaristo Neto (Neto) e Marcos Csar, que, de longe, incentivam e apoiam a trajetria de vida que venho percorrendo, nos labirintos da formao.

Ao Aurisberg Matutino, pelo apoio atento no tratamento e diagramao do presente trabalho.

A impotncia em que nos encontramos em dado momento, impotncia que nunca deve ser encarada como definitiva, no pode dispensar que se permanea fiel a s mesmo, nem desculpar a capitulao ante o inimigo, seja qual for a mscara que ele use. E, debaixo de todos os nomes sob os quais ele pode se disfarar, fascismo, democracia ou ditadura do proletariado, o inimigo bsico o aparelho administrativo, policial e militar. No o da frente, que nosso inimigo tanto quanto de nossos irmos, mas o que se diz nosso defensor, que nos transforma em seus escravos. Em qualquer circunstncia, a pior traio possvel aceitar a subordinao a esse aparelho e pisar, para servi-lo, em si mesmo e nos outros, todos os valores humanos

Simone Weil (1909-1943)

RESUMO

O presente estudo analisa o tema da violncia policial militar em Gois (2000-2011), enfatizando o problema do modo como se articulam a experincia de perda de entes queridos em aes violentas de policiais militares e a busca de compreenso de tais eventos com os recursos semnticos presentes na conscincia dos que foram vitimados indiretamente em situaes de assassinato ou desaparecimento de pessoas. Para analisar essas situaes, adotado como aporte terico a noo de estrutura semntica da conscincia (ESC) de L. S. Vigotski (1896-1934), inspirado na sua procura pela constituio de uma teoria monista da conscincia, que relacione intelecto (cognio) e afeto. A anlise centrou-se sobre o contedo de jornais impressos, processos arquivados na Comisso de Direitos Humanos e Legislao Participativa da Assembleia Legislativa do Estado de Gois, ata de audincia pblica realizada no primeiro semestre de 2006, que objetivou discutir o problema da violncia policial, documentos com registros de relatos verbais de acontecimentos vivenciados direta ou indiretamente pelos depoentes. Os resultados revelam que, do ponto de vista da apreenso das ocorrncias, h uma tendncia, nos depoimentos de pessoas vitimadas indiretamente, a uma concepo fatalista que concebe o destino conforme a forma de lei de talio, centrado na noo de dvida. Em relao configurao do sofrimento expresso nos depoimentos, a noo de dvida tambm comparece, em um sentido negativo, na definio de morte de um inocente, que, aliado certeza da impunidade em se tratando da justia humana, produzem nos depoentes diferentes expresses de sofrimento. Essas expresses em grande medida vinculam-se forma do acontecimento, se assassinato ou desaparecimento, bem como na posio ativa ou passiva dos depoentes em relao aos acontecimentos. A produo de sentido e a localizao dos depoentes no tecido social impactam na forma de expresso do luto pela perda. As implicaes para a discusso do problema da relao conscincia e afeto so discutidas.

Palavras-chave: estrutura semntica da conscincia, violncia policial, direitos humanos, cognio e afeto.

RSUM

Cette tude examine la question de la violence policire militaires Gois (2000-2011), mettant l'accent sur le problme de savoir comment articuler l'exprience de la perte des tres chers dans des actions violentes de policiers et de la recherche de la comprhension de ces vnements avec appel Smantique disponibles indirectement victimes de personnes en situation d'assassiner ou de la disparition de personnes. Pour analyser ces situations, est adopt comme la notion thorique de la structure smantique de la Conscience (ESC) de L. S. Vygotsky (1896-1934), inspir par sa recherche de la constitution d'une thorie moniste de conscience qui concerne l'intellect (cognition) et d'affection. L'analyse a port sur le contenu de trois sources: a) les journaux, b) plaintes dposes la Commission des droits de l'homme et de l'Assemble lgislative de la lgislation participative de l'Etat de Gois, c) Procs-verbal de l'audience publique tenue dans la premire moiti de l'anne 2006, afin de discuter du problme de la violence documents d) de police avec des enregistrements de rapports verbaux qui relatent les vnements vcus directement ou indirectement par les dposants. Les rsultats montrent que, du point de vue de la recherche de la comprhension de ce qui s'est pass, il ya une tendance dans le tmoignage d'une conception fataliste qui voit la cible sous la forme du droit taleo, centre sur la notion de dette. En ce qui concerne la configuration de la souffrance exprime dans les entrevues, la notion de dette apparat galement dans la dfinition de la mort d'un innocent, qui, combine avec la certitude de l'impunit quand il s'agit de la justice humaine, de produire les dposants diffrentes expressions de la souffrance. Ces expressions en grande partie lie la forme de l'vnement, que ce soit assassiner ou de disparition, ainsi que la position - active ou passive - des personnes interroges en relation avec les vnements, ce qui entrane l'expression de la douleur de la perte. Les implications pour la discussion du problme de la relation entre la conscience et l'affection sont discuts.

Mots-cls: structure smantique de la conscience, la violence policire; cognition et affectent.

ABSTRACT

This study examines the issue of military police violence in Gois (2000-2011), emphasizing the problem of how articulate the experience of losing loved ones in violent actions of police officers and the search for an understanding of such events with appeal Semantic available indirectly victimized by people in situations of murder or disappearance of persons. To analyze these situations, is adopted as the theoretical notion of the Semantic Structure of Consciousness (ESC) of L. S. Vygotsky (1896-1934), inspired by his search for the constitution of a monistic theory of consciousness that relates intellect (cognition) and affection. The analysis focused on the content of three sources: a) newspapers, b) lawsuits filed in the Commission on Human Rights and Participative Legislation Legislative Assembly of the State of Gois, c) Minutes of the public hearing held in the first half of 2006, in order to discuss the problem of police violence d) documents with records of verbal reports that narrate the events experienced directly or indirectly by the deponents. The results show that from the point of view of the search for understanding of what happened, there is a tendency in testimony to a fatalistic conception that sees the target in the form of law taleo, centered on the notion of debt. Regarding configuration of suffering expressed in the interviews, the notion of debt also appears in the definition of death of an innocent, which, combined with the certainty of impunity when it comes to human justice, produce the deponents different expressions of suffering. These expressions largely linked to the shape of the event, whether murder or "disappearance" as well as the position - active or passive - of respondents in relation to events, resulting in the expression of grief for the loss. The implications for the discussion of the problem of the relationship between consciousness and affection are discussed.

Keywords: semantic structure of consciousness; police violence; cognition and affect.

LISTA DE SIGLAS

ALEGO Assembleia Legislativa do Estado de Gois

BA Batalho Anhanguera

BPM Batalho de Polcia Militar

Caju Casa da Juventude Pe. Burnier

CAODH Centro de Apoio Operacional de Direitos Humanos

CAOEx Centro de Apoio Operacional do Controle Externo da Atividade Policial

CDDPH Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana

CDH Comisso de Direitos Humanos e Legislao Participativa

CEDCA Conselho Estadual dos Direitos da Criana e do Adolescente

Cerrado Assessoria Jurdica Popular

Comit Comit Goiano Pelo Fim da Violncia Policial

CIDH Comisso Interamericana de Direitos Humanos

CPI Comisso Parlamentar de Inqurito CJP Comisso de Justia e Paz da Arquidiocese

de Goinia

CUT Central nica dos Trabalhadores

DEIC Delegacia de Investigao Criminal

DEM Democratas

DF Distrito Federal

ESC Estrutura Semntica da Conscincia

EUA Estados Unidos da Amrica

FEEGO Federao Esprita do Estado de Gois

FHC Fernando Henrique Cardoso

GRC Grupo de Represso ao Crime

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

Ibrace Instituto Brasil Central

IML Instituto Mdico Legal

IPEA Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada

MJ Ministrio da Justia

MNMMR Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua

MP-GO Ministrio Pblico do estado de Gois

MPF Ministrio Pblico Federal

MS Mato Grosso do Sul

MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

MT Mato Grosso

MTL Movimento Terra Trabalho e Liberdade

NEV Ncleo de Estudos da Violncia

OAB Ordem dos Advogados do Brasil

OEA Organizao dos Estados Americanos

OJC Organizao Jaime Cmara

ONG Organizao No Governamental

ONU Organizao das Naes Unidas

PC Polcia civil

PC do B Partido Comunista do Brasil

PFL Partido da Frente Liberal

Piaps Plano de Integrao e Acompanhamento de Programa Sociais de Preveno

Violncia Urbana

PJ Procuradoria de Justia dos Direitos do Cidado

PL Partido Liberal

PM Polcia militar

PMDB Partido do Movimento Democrtico Brasileiro

PMGO Polcia militar do estado de Gois

PMN Partido da Mobilizao Nacional

POP Procedimento Operacional Padro

PP Partido Popular

PR Partido da Repblica

PR Presidncia da Repblica

PSDB Partido da Social Democracia Brasileira

PT Partido dos Trabalhadores

Rotam Rondas Ostensivas Tticas Metropolitanas

SNSP Secretaria Nacional de Segurana

SEDH Secretaria Especial de Direitos Humano

SSP Secretaria de Segurana Pblica

SSPJ Secretaria de Segurana Pblica e Justia

Susp Sistema nico de Segurana Pblica

TAT Teste de Apercepo Temtica

TJ-GO Tribunal de Justia do Estado de Gois

UFG Universidade Federal de Gois

URSS Unio das Repblicas Socialistas Soviticas

USP Universidade de So Paulo

VPM Violncia policial militar

ZDP Zona de desenvolvimento prximo

SUMRIO

RESUMO.............................................................................................................. ixRESUM.............................................................................................................. xABSTRACT.......................................................................................................... xiINTRODUO.................................................................................................... 16Caminhos da pesquisa........................................................................................... 21Estrutura dos captulos.......................................................................................... 25CAPTULO I EXPRESSES DA VIOLNCIA POLICIAL NO BRASIL...... 291.1 Sistema burocrtico-militar e o problema da obedincia................................ 441.2 Violncia policial militar em Gois................................................................. 601.3 Organizao das famlias e a resistncia violncia de policiais militares.... 681.4 A ao do Estado e a reao de policiais militares.......................................... 72CAPTULO II ESTRUTURA SEMNTICA DA CONSCINCIA.................. 842.1 Gnese e desenvolvimento do conceito.......................................................... 952.2 desenvolvimento do pensamento.................................................................... 113CAPTULO III SOFRIMENTO E RESISTNCIA.......................................... 1363.1 Narrao como tcnica de investigao.......................................................... 1383.2 Testemunho de dona Zlia............................................................................... 1403.3 Anlise da narrao......................................................................................... 1433.4 Relao tempo-espao no interior da narrao............................................... 1443.5 A conscincia das conscincias e o engajamento subordinado....................... 1483.5.1 Travessia....................................................................................................... 1823.5.2 Engajamento................................................................................................. 186CONSIDERAES FINAIS................................................................................ 205Dialtica do sofrimento tico-poltico................................................................... 211Justia.................................................................................................................... 218Danos Morais........................................................................................................ 219Joio e Trigo............................................................................................................ 222Tragdia de destino............................................................................................... 223REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.................................................................. 225APNDICES......................................................................................................... 233Apndice A Relao de prises de policiais militares em Gois no perodo de 1999 a 2011...........................................................................................................

233

Apndice B Sntese dos enunciados de dona Zlia e outros indicadores........... 234ANEXOS............................................................................................................... 236

Anexo A Iconografia......................................................................................... 236Figura 1 Cartaz Campanha de Dencia contra a Violncia Policial............... 236

Figura 2 Marca Institucional do Comit........................................................... 237

Figura 3 Convite para Acompanhamento do Jri - Caso Azara......................... 237

Figura 4 Reunio de partilha na Casa da Juventude Goinia-GO.................. 238

Figura 5 Celebrao na Casa da Juventude Goinia-GO................................ 238

Figura 6 Reunio de preparao para o lanamento do Comit........................ 239

Figura 7 Manifestao do Comit na Praa dos Bandeirantes - Goinia-GO.... 239

Figura 8 Figura 8 - Evento de lanamento do Comit em 28 de abril de 2006, na Assembleia Legislativa Goinia-GO............................................................ 240

Figura 9 Reunio com o Ministrio Pblico para registro de denncia Goinia-GO........................................................................................................... 240

Figura 10 Manchete do Jornal O Popular, do dia 30 de novembro de 2011. 241

Anexo B Enunciados de seis integrantes do Comit, incluindo dona Zlia 242

INTRODUO

O presente estudo analisa o tema da violncia policial militar em Gois, enfatizando

o problema do modo como se articulam a experincia de perda de entes queridos em aes

violentas de policiais militares e a busca de compreenso de tais eventos com os recursos

semnticos presentes na conscincia dos que foram vitimados indiretamente em situaes de

assassinato de pessoas. Nesse problema, torna-se particularmente relevante considerar a

relao que se estabelece entre a violncia sofrida e seu impacto na subjetividade e na

conscincia, tanto em termos do modo como o indivduo, com os recursos conceituais e

lingusticos de que dispe, busca refletir sobre o acontecimento, e o inserir no universo de sua

compreenso, quanto ao modo como a comunicao, as narrativas e os dilogos na forma

pblica, particularmente na forma da linguagem oral (VIGOTSKI, 2001) revelam elementos

da configurao da conscincia e suas formas motivacionais, subjacentes aos sentidos, aos

afetos e orientao para a ao, no contexto do enfrentamento da violncia constitutiva do

aparelho repressivo do Estado, e que legitimada por uma ordem jurdica e poltica

(BENJAMIN, 2011), expressa no interior da formao social brasileira.

O uso da fora repressiva pelo Estado, como forma de garantir a ordem poltica e

social, coloca os indivduos, durante sua existncia, virtualmente sob a espreita de um poder

de morte. Ao mesmo tempo, a existncia do Estado pressupe, necessariamente, um aparelho

repressivo, como condio de garantia da estratificao social, em que no passado como no

presente, se revela sempre como o direito-do-mais-forte-sobre-o-mais-fraco. A violncia

policial, uma forma administrativa, elevada condio de tcnica de controle e vigilncia

social, tambm poder capaz de engendrar e produzir de forma concentrada ou difusa os

sentimentos de culpa, medo e terror, o que converte a entidade estatal, para os indivduos e

coletividades, em uma espcie de poder de destino, medida que regula e administra suas

vidas seus eventos vitais fundamentais como o nascimento e a morte. Nesse sentido, o poder

de polcia, capaz de desencadear eventos traumticos que despertam, no indivduo e nas

coletividades, temas que dizem respeito ao problema da existncia, bem como a sentimentos

de medo e de esperana acerca do porvir. Pode, portanto, ser considerado tcnica de governo

que se exerce sobre o corpo e sobre a psique de uma massa de indivduos e grupos, dos

extratos mais baixos de uma coletividade, de forma a preservar uma ordem jurdica que

sustenta prestgio, riqueza e poder de uma minoria de privilegiados, justificando seus atos nos

marcos da chamada razo de Estado. A despeito da vinculao do poder de polcia a uma

16

ordem, a experincia cotidiana com os personagens, os smbolos, os rituais litrgicos da

instituio militar, a imagem pblica que do vida, existncia e efetividade noo de ordem

que lhe subjacente em um sistema jurdico e poltico especfico, os programas de TVs que

introduzem em cada lar a rotinas da ao policial, os filmes do gnero policial, constroem o

que pode ser definido como sua imagem pblica. Tambm o contato cotidiano, face a face, a

experincia de observar a ao policial, de sentir e sofrer os efeitos de sua ao destrutiva,

podem contribuir para a constituio de um complexo especfico1 (VIGOTSKI, 2001). Esse

complexo, por sua vez, pode passar a ocupar a psique do indivduo, relacionando-se com

outros complexos e conceitos que, em conjunto, participam da estruturao semntica da

conscincia, dando a tnica da relao subjetiva entre a totalidade de sentidos [Smyrls], cujo

influxo pode ser apreendido por meio do conjunto de todas as palavras, frases e conjunto de

frases, que o tema suscita no corpo e no psiquismo do indivduo social. Desse modo, esse

poder de morte est vinculado conformao social dos sentimentos e da sensibilidade na

forma de uma diviso social do medo entre as classes.

Essa ideia especfica, da diviso social da forma e do contedo dos sentimentos, cuja

peculiaridade recebe o trao da desigualdade social real, foi enunciada por Marilena Chau

(2006).

No presente estudo, essa ideia fora ser tomada como base por dois motivos. A

primeira, pelo fato de situar nos marcos histricos e sociais e culturais, a conformao dos

sentimentos e das sensibilidades, os quais sofrem os efeitos diretos da estrutura social,

econmica, poltica e cultural de uma dada formao social. O segundo motivo, derivado do

primeiro, por considerar que a subjetividade correspondente a esta diviso social dos

sentimentos e das sensibilidades, individualiza-se sob o impacto dessa insero social,

expressos por seus efeitos na experincia, nas relaes e na interao social ocorridas na

trajetria de vida das personificaes em que se configuram certos sentimentos e

sensibilidades.

Com base nessa perspectiva, concebe-se que os integrantes do Comit Goiano Pelo

Fim da Violncia Policial2, que tiveram entes querido assassinado por policiais militares, se

1 Complexo constitui uma comunalidade de imagens, objetos, que se vinculam a uma palavra, sem, entretanto, cumprir os critrios do que define um conceito, como um tipo de conceito no conceitual. Trata-se de um aglomerado de imagens que, se no funcionam como operao lgica, no cotidiano assume a funo de eliciar memrias e sentimentos vinculados a elas. So imagens que se acumulam e se consolidam na histria individual e coletiva mais ou menos extensa de um grupo (Vigotski, 2001).

2 Comit Goiano Pelo Fim da Violncia Policial, doravante Comit.Lanado em Goinia no dia 22 de abril de 2006, o lanamento do Comit contou com a participao de representantes das seguintes entidades: Casa da Juventude; Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), Promotoria de Justia do Estado, Movimento Nacional de Direitos Humanos, Instituto Brasil Central (Ibrace), Departamento de Cincias Sociais/Programa de Ps-Graduao em Sociologia da Universidade Federal

17

engajam na dupla tarefa, de efetuar a travessia de uma situao de sofrimento que marca a

perda de um ente querido e o processo de enfrentamento da violncia policial.

Nesse sentido, tratou-se, fundamentalmente, de apreender o conjunto de fenmenos

subjetivos suscitados pela violncia policial e expressos por uma ou mais singularidade

pertencente a um segmento da populao: pessoas das camadas populares que tiveram entes

queridos assassinados, como efeito de aes policias, e que participaram do movimento de

organizao e fundao do Comit Goiano pelo Fim da Violncia Policial. Tem como centro,

mas no exclusivamente, o testemunho de uma mulher e me e a rede de relaes que foi

sendo tecida em torno do enfrentamento da violncia policial no estado de Gois. O problema

das transformaes que se processam, na esfera da subjetividade social e individual tratado

diretamente, por meio da anlise narrativa. O problema do aparelho repressivo do Estado,

deduzidos com base em seus desdobramentos diretos ou indiretos na conscincia psicolgica

desses atores, no processo de interao com as personificaes institucionais e jurdicas do

Estado brasileiro.

Os documentos analisados no presente estudo, forneceram os elementos necessrios

para reconstituir a trama dos acontecimentos, identificar vrias posies no debate sobre o

tema e, sobretudo reconstituir a trama subjetiva que fornece indicadores relevantes para

apreenso indireta das imagens, tramas e personagens, vinculadas ao tema da violncia

policial militar em Gois entre 2000 e 2011. A escolha desse perodo de tempo deu-se em

razo de que cobre um quadro temporal significativo, do ponto de vista da anlise das

situaes de mortes e desaparecimento de pessoas no estado de Gois. Antes do ano 2000, em

se tratando do perodo democrtico-liberal-representativo-formal, no havia grandes

repercusses de denncias de mortes e desaparecimento de pessoas na proporo que se deu

no perodo indicado. Uma comparao realizada pelas instituies de defesa de direitos

humanos no Estado e divulgada amplamente pela imprensa local constata que a proporo de

mortos e desaparecidos em todo o perodo democrtico formal (1985-2011) ultrapassou em

muito o nmero de desaparecidos em razo de ao policial, de todo o perodo do regime

autocrtico-civil-militar mais recente (1964-1984). Esse indicador, por s s, j suficiente

para comprovar que alguma coisa na estrutura repressiva no Estado mudou para pior,

considerando-a em rota explcita de coliso com o discurso de cunho democrtico. Esse

perodo tambm foi atravessado por um debate suscitado em decorrncia de cada ao de

assassinato com desaparecimento ou no do corpo de pessoas, produzido por ao policial,

de Gois (UFG). Foram divulgados cartazes, camisetas e uma carta de apresentao, espcie de manifesto. Foram tambm apresentados depoimentos e testemunhos de dor, luta e resistncia dos familiares, alm de falas de entidades que participam do Comit, como a Casa da Juventude Pe. Burnier.

18

que recebeu ateno institucional e miditica, e adentrou a agenda pblica. O debate entre

atores representantes institucionais, tratava da seguinte questo: h ou no grupo de

extermnio organizado no Estado, com participao de policiais? Essa questo atravessou a

dcada e continua, ainda, a despeito de evidncias e indcios, marcando uma fratura entre

dois grupos: os que dizem sim! Formado, sobretudo, por representantes do Ministrio Pblico

estadual e federal, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica, da

Comisso de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), da Comisso de Direitos

Humanos e Legislao Participativa (CDH) da Assembleia Legislativa do estado de Gois

(ALEGO), e os que dizem no! Formados por representantes da Secretaria de Segurana

Pblica do estado de Gois, sobretudo, vinculados ao comando da policial militar. Essa

posio tambm defendida por algumas associaes de policiais militares e por policiais

militares com mandatos nos legislativos municipal, estadual e federal. Estes ltimos, embora

no explicitem, ou explicitem mais timidamente na esfera pblica, sua censura pauta de

defesa de direitos humanos no Brasil, colocam-se reticentes em relao a ela em termos do

modus operandi predominante em certos segmentos das instituies policiais no estado.

A despeito da importncia desse debate, e dos temas que ele envolve, ele forma, no

interior do presente trabalho, o pano de fundo, o contexto em que se evidenciam os processos

subjetivos expressos em cada relato, em cada debate, em cada ressuscitao das vozes e dos

atores envolvidos na trama subjetiva que conformam os relatos circunscritos ao tema, aos

resultados, s repercusses da violncia policial sofrida de forma direta ou indireta, por meio

da perda de entes queridos, por familiares de mortos e de desaparecidos como efeito de ao

policial, integrantes do Comit Goiano Pelo Fim da Violncia Policial. Essa trama subjetiva,

suas expresses de sofrimento, colocam em ltima instncia o problema das motivaes que

levam participao no processo organizativo para o enfrentamento da violncia policial no

estado de Gois.

A diferena motivacional, por exemplo, resulta da interpretao retrospectiva do

conjunto dos eventos dos quais os depoentes estiveram envolvidos, a chamada tragdia, como

em geral designam os eventos que resultaram na perda de entes queridos, a tragdia de

destino, a qual supe a presena de foras que extrapolam o mbito do controle da ao

humana, como foras incontornveis que determinam o curso dos acontecimentos, ou a

tragdia de carter, que supe a participao das aes humanas na determinao do curso

dos acontecimentos.

Nesse pequeno exemplo, sugerido por um depoimento especfico, pode-se identificar

estruturas de significao dos acontecimentos relativamente distintas, vinculadas diretamente 19

ao que Martin-Bar (2001; 2003) definiu como sndrome fatalista. O autor identifica a

sndrome fatalista em amplas parcelas da populao salvadorenha e latinoamericanas em geral

e que se refere a um tipo de pensamento que subtrai toda e qualquer possibilidade de

produo de mudanas como resultado de aes humanas, de modo que o fluxo dos

acontecimentos so concebidos como seguindo uma ordem extra-humana sobre a qual suas

aes no tm impacto nem alcance. Trata-se de uma concepo, h que ressaltar, que no

diferente de algumas concepes filosficas ou acadmicas que reduzem toda a esfera dos

acontecimentos scio-histricos, ao plano de uma estrutura. Martin-Bar (1998), concebe que

o fatalismo constitui um processo psicossocial que se relaciona ao modo como os indivduos

experimentam suas condies de vida, sendo-lhe caracterstico o conformismo causado e

reforado pelas estruturas opressivas macrossociais, resultando em uma mitificao das foras

histricas como natureza divina.

O problema da sndrome fatalista, identificado nas narrativas e enunciados

analisados, aponta imediatamente para o problema da conscincia, ou mais precisamente, ao

modo como ocorrem ou no mudanas estruturais na organizao da sua estrutura semntica,

bem como da forma com que se conectam as estruturas conceituais e os afetos, em um

complexo que pode retroagir e alterar as estruturas, reorganizando tambm a forma de

apreenso da realidade. Este , em termos gerais, o modelo legado por L. S. Vigotski (2001)

para explicar a questo da criatividade, da inovao cientfica bem como da inovao social.

Trata-se, no mbito da atividade criadora, da destruio de estruturas de generalizao e

formao de outras, por meio do deslocamento dos complexos/conceitos, de uma estrutura de

generalizao a outra. Essa concepo, no entanto, esboada em sua obra mais conhecida,

Pensamento e fala , ou Pensamento e linguagem (2001) como se convencionou denomin-lo

na verso mais difundida dessa obra, a norte-americana. Uma obra necessita do recurso

contextualizao histrico-social para se apreender seu potencial germinativo para o presente.

Considerando a relao entre afetividade (afeto e emoo) e participao, um dos

componentes constitutivos da conscincia, na concepo monista3 de Vigotski (2001), vale

ressaltar a ideia presente no emblema do Comit Goiano pelo Fim da Violncia Policial, que

sugere, a seu modo, tambm um processo de mudana de ordem afetiva. Essa sugesto est

contida no enunciado: quando a dor vira resistncia. Esses termos remete ideia no apenas

de mudana, mas de transformao, e transformao, parafraseando Vigotski (2001), para

3 O projeto de uma teoria monista da conscincia, presente na obra de Vigotski, inspira-se na obra de Espinosa, que busca superar o dualismo presente na obra de seu contemporneo: Descartes. O captulo da obra de Vigotski, sobre as emoes, busca elaborar esse tema sem, contudo, estabelecer um sistema completo de conceitos que sistematize esse intento, porm busca superar as dicotomias entre intelecto e afeto, razo e emoo, objetividade e subjetividade, com recurso ao mtodo dialtico.

20

sugerir o tipo qualitativamente distinto de alteraes emocionais propiciados pelo fenmeno

esttico, no apenas quantitativa, como na imagem fixada na cultura, do milagre da

multiplicao dos pes, mas naquela em que gua transformada em vinho. Trata-se da

emoo que no resqucio de uma poca arcaica, tendente a desaparecer, mas que consolida

aquilo que marca na psique o que propriamente humano. Destacar que o sofrimento,

subjacente ao significado da palavra dor, ao virar, ou seja, transformar-se em resistncia,

consiste em uma aposta em um tipo de metamorfose subjetiva, que medeia uma mudana ou,

quem sabe, transformaes sociais objetivas em uma dada estrutura e conjuntura.

So os termos sugeridos por tais transformaes que so tratados no presente estudo,

no qual se busca apreender, com base na anlise dos documentos, em que medida e em que

condies, a dor da perda de um ente querido se converte ou no, para empregar uma

terminologia da filosofia do sculo XVII, em potncia de agir ou padecimento e, em que

medida, possvel captar nos relatos sobre os acontecimentos e nas dores que eles suscitam,

algumas dessas tendncias. A tese defendida no presente estudo, sugere que as mudanas nas

estruturas de pensamento relaciona-se com os afetos, ou com as ideias dos afetos no contexto

de insero em uma rede organizativa, que generalize a luta iniciada em defesa da justia e da

punio para o ente querido especfico, para o mbito de comunalidades e generalizaes do

sentimento de preocupao com os outros. A experincia de perda, fornece um sentido especial

para a ao, quando o evento imediato suscitado como complexos em torno de algumas

palavras, reorganiza sua estrutura de generalizao em um padro de solidariedade genrico.

Caminhos da pesquisa

Vigotski (1999), ao definir o mtodo analtico objetivo, destaca que cada coisa pode

ser considerada um microcosmo, cada pessoa um modelo em miniatura, da sociedade ou

classe social a que pertence, refletindo-se nela a totalidade das relaes sociais. Para o autor

O conhecimento do singular a chave de toda a psicologia social, de modo que devemos

conquistar para a psicologia o direito de considerar o singular, ou seja, o indivduo como um

microcosmo. Como um tipo, como um exemplo ou modelo da sociedade (Vigotski, 1999, p.

368). Com base nesse pressuposto, destaca a necessidade de definir os limites exatos do

principio geral e com ele o grau de aplicabilidade s diferentes espcies de um determinado

gnero (p. 370). Como exemplo do mtodo analtico-objetivo no estudo do fenmeno

esttico, Vigotski (2001) buscou analisar a natureza e os mecanismos de toda reao esttica

por meio da anlise de uma fbula um romance e uma tragdia, abstraindo de seus traos

concretos enquanto gnero e concentrando-se no essencial da reao esttica.21

No presente estudo, buscou-se analisar o modo como se articulam a experincia de

perda de entes queridos e a compreenso de tais eventos, por meio de um percurso

metodolgico que resultou no acesso a certas expresses gerais, por meio da anlise de

singularidades. Essas anlises foram feitas com base no mtodo reconstrutivo-interpretativo

(VIGOTSKI, 1999) que busca reconstruir um fenmeno por meios indiretos, o que se fez com

base em dois momentos, que podero ser apresentados esquematicamente, como se segue.

Primeiro momento:

Reconstituio do cenrio histrico-social no perodo de 2000 a 2011, no qual

emerge a denncia e publicizao da violncia policial militar em Gois, a organizao da

resistncia com participao das famlias que tiveram entes queridos assassinados pela

polcia, via Comit, e dos desdobramentos em termos de aes do Estado e reaes de

policiais militares. Para tanto, recorreu-se a trs tipos de fontes. A primeira, constituda por

jornais impressos de circulao local (O Popular, Jornal Daqui e Dirio da Manh) e

nacional (Folha de S. Paulo). A segunda fonte, constituda por dossis de casos de violaes

de direitos humanos registrados na Comisso de Direitos Humanos e Legislao Participativa

(CDH) da Assembleia Legislativa do Estado de Gois (ALEGO) e tambm Ata de Audincia

Pblica realizada em 2 de fevereiro de 2006, promovida pela Comisso Estadual de Direitos

Humanos e registrada nos anais da ALEGO, e que teve como tema: maus tratos, ao

policial (GOIS/CDH/ALEGO, 2006). Essa audincia muito significativa do ponto de

vista da resistncia, por ter reunido, em um mesmo espao de discusso, as instituies

envolvidas com o tema da violncia policial, nas vrias esferas de governo, incluindo

familiares de mortos e desaparecidos em ao policial que participaram do movimento de

organizao do Comit e a representao parlamentar. Nessa audincia familiares fizeram

seus depoimentos e reclamaram por justia. Dos arquivos da CDH-ALEGO tambm foi

consultado relatrio sobre violaes de direitos humanos publicado em 2012

(GOIS/CDH/ALEGO, 2012). A terceira fonte constou de documentos institucionais de

domnio pblico, que permitiram, em conjunto com os j citados, reconstituir alguns marcos

do processo de organizao do Comit Goiano Pelo Fim da Violncia Policial.

O segundo momento da pesquisa consistiu na anlise de um conjunto de sete

entrevistas com membros fundadores do Comit contidas nos arquivos de Vieira (2009). A

anlise da narrativa efetuou-se, primeiramente, por meio de uma abordagem reconstrutiva.

Desse conjunto foi escolhida a narrao de uma das mulheres que tiveram o filho assassinado

por policiais militares, e que revelou uma significncia qualitativa para o presente estudo, tais

como o posicionamento da narradora escolhida, no processo de organizao para o 22

enfrentamento da violncia policial e pelo seu engajamento, pelo contato direto com os

algozes de seu filho, e o esforo por proteger sua vida. Finalmente, pelo seu contato com as

estruturas administrativas da polcia e do Ministrio Pblico.

Para realizar as anlises buscou-se uma leitura do conjunto dos documentos que

registram os relatos, dilogos e narraes, buscando identificar o enredo e as relaes espao-

temporais, presentes nas narraes, o fluxo do pensamento sugerido pela leitura, o temas

relevantes, conforme as tcnicas de anlise clssica de contedo (BARDIN, 2002; BAUER,

2003) orientada pela teoria do pensamento e da linguagem de Vigotski (2001) que busca na

expresso verbal elementos que possam indicar a dimenso semntica da conscincia e os

elementos de significao das palavras e sentidos, que remetem ao conjunto de todos os

fenmenos psicolgicos sucitados por meio de uma palavra ou enunciado. Para realizar essas

anlises, alm do recurso anlise clssica de contedo, como recurso auxiliar, adotou-se

tambm o recurso do chamado mtodo Alceste (IMAGE, 2010), que, pela amplitude de

recursos fornecidos ao pesquisador para operar com a anlise de grandes volumes de

produo verbal, permitiu operar por uma triangulao de procedimentos, paralelo leitura

feita por imerso nas produes verbais.

Finalmente, operou-se, para anlise de um registro especfico, de indicaes

metodolgicas, provenientes do campo da anlise narrativa, em geral utilizadas nos estudos

denominados de histria oral ou histria de vida, conforme os apontamentos realizados por

Jovchelovich e Bauer (2002). Por meio desses recursos instrumentais buscou-se analisar os

contedos da narrativa eleita no conjunto dos participantes do Comit.

Para abordar os relatos, foram tomados como aportes tericos as reflexes de

Vigotski (2001) sobre pensamento e linguagem, sintetizadas no captulo segundo, nas quais se

evidenciam a elaborao de uma teoria da estrutura semntica da conscincia e da mediao

semitica. Ser destacado, especialmente, o tema da relao pensamento e palavra, e nele, o

esboo de uma teoria monista da conscincia e da subjetividade, na qual o conceito de sentido

comparece como a chave de acesso anlise da formao e dinmica social da psique

criativa, produtiva e no apenas receptora das formas culturais. Dentre os problemas que

foram abordados, nesse caso particular, um deles surge particularmente relevante e refere-se a

relao que se estabelece entre a violncia sofrida e seu impacto na subjetividade e na

conscincia, tanto em termos do modo como o indivduo, com os recursos conceituais e

lingusticos de que dispe, busca refletir sobre o acontecimento, e o inserir no universo de sua

compreenso, quanto ao modo como a comunicao, as narrativas e os dilogos na forma

pblica, particularmente na forma da linguagem oral, estruturados em complexos revelam 23

elementos da configurao da conscincia e suas formas motivacionais, subjacentes aos

sentidos, aos afetos e orientao para a ao. Em suma, procura-se apreender como se

articulam ao e comunicao, comunicao e pensamento, pensamento e afetos, no processo

de resistncia violncia policial por familiares de mortos e desaparecidos.

Nesse enquadre especfico, permanece uma questo mais abrangente sobre a relao

entre subjetividade e poltica, e nela, o papel que desempenham as emoes (o medo, o

sentimento de solidariedade, a esperana, o sentimento de injustia, de reconhecimento, o

sentimento de impunidade e humilhao, dente tantos outros) na passagem expressa no

sugestivo emblema: quando a dor vira resistncia. A anlise dos documentos suscitou o

problema da relao entre subjetividade e poltica, ento convertida, em uma interrogao:

Em que condies o sofrimento traduz-se em formas ativas de resistncia a atos arbitrrios de

agentes do aparelho repressivo do Estado?

A exposio de relatos de experincias e nelas as narraes dos acontecimentos podem

ser tidos tanto como uma forma de avaliar, por meios indiretos, os termos em que se expressam

as dores, quanto das possibilidades de os narradores participarem, ou no, de processo e de

formas ativas de resistncia. A pressuposio da passagem do sofrimento desencadeado por uma

situao de perda passa por uma mediao fundamental, qual seja, do sentido, tanto do

sofrimento experienciado, quanto da orientao para a ao, ou seja, dos nexos estabelecidos

entre as fontes pressupostas como causadoras do sofrimento experienciado e as estratgias

buscadas para fazer frente ou no a essas fontes de sofrimento, j que ele nunca se d sem

mediaes especficas, reduzindo ou aumentando a capacidade de fazer frente s fontes

identificadas e reconhecidas desse mesmo sofrimento. necessrio considerar, portanto, no

apenas a dimenso objetiva das cadeias de violncia em ato, nas quais esto submetidos os

sujeitos, mas, sobretudo, a sua experincia, isto , a forma como o ato concreto de destruio

afeta a dimenso subjetiva, produzindo sentidos e motivando aes na direo da subalternidade

ou da autonomia, na forma da capacidade de mobilizar recursos materiais e organizativos,

vnculos comunitrios e associativos para se fazer frente a tais prticas.

Os nexos que fazem a mediao entre a dimenso objetiva da violncia em ato, as

cadeias de sofrimento desencadeadas por ela e o modo como essa experincia introduzida

em um sistema imaginrio, compreendido por Vigotski (2001) como forma complexa de

atividade psquica, que se desenvolve como efeito da aquisio da linguagem, da

escolarizao e da formao de conceitos4, presentes no processo de constituio dos

4Em A imaginao e seu desenvolvimento na idade infantil, Vigotski (2001) destaca: as possibilidades de atuar com liberdade, que surgem na conscincia do homem esto estreitamente ligadas a imaginao (p. 438).

24

significados das palavras, podem ser deduzidos da produo simblica derivada da narrao

da experincia da violncia sofrida. Ademais, narrar uma tal experincia, e a tornar pblica,

um passo importante, para sair do isolamento e do sofrimento privado, tanto relativo ao

privado domstico, em oposio ao pblico, quanto do privado subjetivo, em termos do

discurso (ou dilogo) interior, ou seja, do pensamento verbal, tal como indicado por L. S.

Vigotski (2001), para a objetivao da atividade comunicativa. Assim, necessrio precisar

que, do ponto de vista do privado subjetivo, que uma subjetividade constituda socialmente,

ou seja, uma subjetividade social, a passagem do pensamento verbal privado para a atividade

comunicativa ocorre tanto por meio da passagem do discurso interior para o exterior, na esfera

privada domstica, quanto na esfera pblica. Tambm ser tratado o conceito de sentido

(Smysl ), concebido como a chave para uma teoria da estrutura semntica da

conscincia (smyslovoe stroenie soznaniia ). Trata-se de

um conceito que, a rigor, como demostram estudos efetuados com base nos arquivos da

famlia Vigotski (ZAVERSHNEVA, 2010a; 2010b), compe a arquitetura de uma teoria

monista da conscincia. Ao mesmo tempo, tambm um dos conceitos que menos tem

recebido ateno, no espectro dos estudos da obra do autor russo, afirmao com seu teor de

verdade, se referida ao espectro mais geral da difuso e recepo da obra do autor russo no

mundo, embora possa ser relativizada nos crculos latinoamericanos e, sobretudo, em alguns

ncleos de pesquisa brasileiros (LANE, 1995; SAWAIA, 1999; NAMURA, 2003;

GONZALEZ REY, 2001; 2004)5.

Estrutura dos captulos

Para estruturar a argumentao em favor desta tese, a presente exposio foi

organizada em trs captulos.

O primeiro captulo Panorama scio-histrico das expresses da violncia policial

tem como eixo norteador a construo de um quadro mais amplo de compreenso da

violncia policial, porque o prprio ato de coloc-la em questo remete imediatamente para o

problema do Estado. Benjamim em Para uma crtica da violncia (2011), destaca que,

realizando-se a crtica pena de morte, atinge-se em cheio e diretamente o fundamento que

sustenta o sistema jurdico-poltico inteiro, ou seja, em se tratando do caso brasileiro, uma

ordem estruturada na dade privilgio-carncia. O discurso lgico-filosfico, tanto

jusnaturalista, quanto contratualista de tipo hobbesiano, incapaz de preencher essa fratura

5 A categoria sentido adotada pelo Ncleo de Estudos Psicossociais da Dialtica Excluso-Incluso (Nexin), como aquela que possibilita superao de dicotomias estabelecidas entre razo-emoo, objetividade-subjetividade, internalidade-externalidade, dentres outras.

25

imanente a todo sistema jurdico-poltico, mas apenas fornece argumentos que justificam o

poder de morte subjacente noo de monoplio do direito legtimo do uso da fora-

violncia-poder, em favor do Estado e em desfavor da violncia privada que ameaa esse

monoplio, ou seja, como violncia conservadora de uma ordem. Esta premissa que guia o

captulo, embora no adentre argumentativamente nesse campo, seno com breves

sinalizaes. Nesse captulo, apontam-se alguns pressupostos de ordem social, econmico,

poltico e cultural, que formam um quadro e um contexto dos efeitos de morte e vida

severinas resultantes da ao policial. A sua especificidade, no entanto, a reconstituio,

com base em informaes de jornais impressos, de circulao local e nacional, bem como de

documentos institucionais, relatrios das comisses de direitos humanos local, nacional e

internacional, que acompanharam o problema da violncia policial em Gois nos onze anos

cobertos pela pesquisa.

Nesse captulo afirma-se que, o que se convencionou chamar, no debate pblico

sobre o tema no estado de Gois, execuo sumria, constitui o produto de uma organizao

de determinado segmento de policiais militares, que formam, os denominados grupos de

extermnio. Seus fundamentos de base encontram-se nos fenmenos de grupo e estamento,

nos valores padres que conjugam a dade hierarquia-obedincia, ou seja, os dois pilares que

sustentam o edifcio da instituio militar, embora no seja algo que lhe exclusivo.

Os segmentos que sustentam a permanncia e funcionamento desses grupos, no

perodo analisado, envolvem parte do comando da corporao e sua sustentao permeia o

poder estatal. A prtica de ocultao de cadveres, suavemente denominada desaparecimento,

uma estratgia que contribui para a manuteno da impunidade. Desse detalhe inscrito nas

prticas desses grupos, identificam-se precisamente aquilo que Benjamin (2011) define como

o fundamento do poder estatal. Ao promover o desaparecimento de pessoas, quais so os

fundamentos dessa prtica, h que se perguntar, e a resposta chega naturalmente. Trata-se de

uma prtica regulada estritamente pelas premissas legais, ou seja, promover o

desaparecimento de pessoas mostra, primeiramente, conhecimento de um aspecto da

legislao penal relativa a crimes de homicdio, e que explcita: sem cadver no h crime

de homicdio. Essa orientao entranhada nas prticas de desaparecimento de pessoas, em seu

conjunto so estritamente reguladas pelo sistema jurdico-poltico, no pelo direito, mas pelo

seu avesso, no pela regra mas pela exceo a ela. As implicaes dessa anlise, no entanto,

interrompe-se em determinado ponto, j que, estritamente falando, no so objeto do presente

estudo, que os trata apenas indiretamente, por meio dos efeitos especficos sobre a conscincia

e o psiquismo dos que foram reduzidos direta ou indiretamente condio de matria 26

humana, pela violncia administrativa, pela fora que transforma barbrie em diverso: era

uma vez um homem, j no mais.

O segundo captulo Estrutura Semntica da Conscincia busca aprofundar alguns

conceitos relativos teoria da estrutura semntica da conscincia de L. S. Vigotski. O centro

dessa busca de aprofundamento dado pela sua obra, Pensamento e linguagem (2001). Como

a prpria composio dessa obra segue caminhos intrincados, ligados ao contexto da Unio

Sovitica dos anos 1930, alguns apontamentos histricos so indispensveis. Esses so feitos

com base sobretudo nos estudos de Van der Veer e Valsiner (2009) bem como em publicaes

mais recentes refente a pesquisas nos arquivos da famlia Vigotski (ZAVERSHNEVA, 2010a;

2010b). O objetivo desse captulo fornecer os conceitos e as premissas para a anlise dos

casos, j que consiste em uma teoria da conscincia, cuja linguagem ocupa um papel

significativo no processo de sua constituio, embora, deve-se ressaltar, a experincia e o seu

substrato afetivo-volitivo, no se restringem a um mero fenmeno lingustico, nos termos da

lingustica clssica, mas constitutiva da vocalizao como elemento que acompanha a

transformao dos seres que fazem de sua atividade vital o objeto de sua conscincia. Como

no h conscincia sem emoo, como destaca Vigotski (2001), est contido na psique

humana o trip conscincia, sentimento e vontade, acrescido da definio de que o sentido

[Smyrl] da ordem da vida. Indica, ainda, que o pensamento no nasce de outro pensamento,

mas da prpria condio de vida, o que assegura o dinamismo da significao e fundamentam

a prpria distino entre significado [Znachenie] e sentido [Smyrl]. A expectativa geral que

anima esse captulo, que, colocado diante dos problemas a que se nos dedicamos, possa-se

abrir um campo para colocar em cena as potencialidades e os limites desse aporte terico.

O terceiro captulo Sofrimento e resistncia chega ao cerne do problema: a

relao entre o sentir, o pensar e o agir, mediada pela constituio de estruturas semnticas

presentes na psique humana. Destacam-se os registros documentais de relatos dos

acontecimentos traumticos vividos por uma me que teve o filho assassinado em ao

policial no estado de Gois. Seguindo a trilha de reconstituio dos acontecimentos que

redundaram na perda do filho, nas expresses afetivas correspondentes, nos personagens que

so ressuscitados pela palavra, no tipo de aes realizadas, buscam-se indicadores indiretos da

relao entre estrutura de generalizao, expresses de sofrimento e de ao. Pretende-se

apreender os sentidos subjacentes s palavras, ou mais especificamente, aps acumular o

mximo de palavras, deduzir de seu conjunto o universo dos sentidos, inscritos na

subjetividade sugerida, nos limites dos documentos analisados. As anlises revelam que a

violncia policial, concebida nos marcos de uma ordem de destino, por meio da qual a 27

experincia de perda do filho, concebida como resultante de fatores supra-humanos. O

Estado, na sua manifestao repressiva, concebido como uma forma de violncia mtica, que

produz a culpa, ligados a valores, concepes de mundo, e lxicos do mundo jurdico e

religioso. Nas consideraes finais, busca-se recompor as categorias e conceitos oriundos das

anlises realizadas. So discutidas algumas especificidades da narrativa analisada, seus limites

e potencialidades para apreender a unidade de pensamento, afetividade e atividade, em

cenrios histrico-sociais determinados.

28

CAPTULO I

EXPRESSES DA VIOLNCIA POLICIAL NO BRASIL

No presente captulo, pretende-se apresentar algumas informaes de carter histrico,

social, econmico, poltico e cultural, acerca da formao social brasileira dos anos 1990 a

2000. Essas informaes tm como objetivo indicar elementos para contextualizao do

problema da violncia policial militar no estado de Gois, durante esse perodo. O eixo dessa

reconstituio considera trs temas inter-relacionados. O primeiro destaca a formao de grupos

de extermnio em Gois, vinculados ao problema das chamadas execues sumrias, que

ocuparam a agenda pblica e miditica com notcias, rumores, suspeitas e mais, com

participao de policiais militares em seu ncleo organizativo. O segundo tema assinala o

processo e organizao de familiares de vtimas de violncia, as denncias e as mltiplas formas

de resistncia e enfrentamento dessa forma de violncia. O terceiro tema considera as aes e

reaes do Estado em seus dois padres clssicos de atuao: represso e a busca do consenso,

com destaque para atores que figuram nesse perodo na representao dos poderes e das foras a

eles vinculados. Realiza tambm comentrio de algumas obras que tem como centro de suas

discusses, o problema da violncia oriunda do aparato estatal relacionados com o duplo tema

subjetividade-e-cultura, ligados questo da adeso a ideologias autoritrias, o problema da

burocracia e da obedincia subjacente ao problema da violncia policial como modalidade de

atos de Estado. Esse captulo no se prope aprofundar nesses temas especficos, que

extrapolam os limites do presente estudo, mas apenas construir alguns anteparos que possam

evitar anlises e julgamentos simplistas sobre o problema da violncia policial militar.

No processo de exposio dos temas, vale destacar que, nem sempre as palavras que

enunciam a argumentao assumem uma pureza conceitual como ocorre, por exemplo, com

os conceitos matemticos de um tipo euclidiano, como prprio do uso cotidiano das palavras

(Vigotski, 2001) em relao ao conjunto de fenmenos a que elas se referem, tal como ocorre

no tipo de fonte documental em que se fundamenta a presente exposio. Nessa esfera da

realidade, em que os significados e os sentidos das palavras alteram-se segundo o uso e o

contexto em que so pronunciadas, escritas, pensadas, imaginadas, nessa esfera em que se

vive e onde se morre, nem sempre, ou quase nunca, os conceitos possuem a pureza

caracterstica dos conceitos matemticos. No obstante, h que se considerar que eles

enunciam realidades na esfera dos acontecimentos e suas doutrinas correspondentes, nas quais

29

se situam as denominadas cincias humanas, e assim efetuam-se no ato comunicativo prprio

de uma exposio. Portanto, os conceitos apresentados seguiro a dinmica da exposio.

Primeiramente, acerca do tema da formao de grupos de extermnio e da prtica de

execues sumrias, no h propriamente conceitos no sentido enunciado, mas emblemas

forjados h no muito tempo, para explicitar as faces da barbrie que se instalou na rotina

noticiosa no cenrio do capitalismo tardio. Os termos, no entanto, j receberam outras

conotaes.

Ao discutir o tema da chamada justia de transio no mundo, em seu livro, Verdades

inominveis, Hayner (2008, p. 28), estabelece uma comparao entre o modus operandi das

foras de represso na frica do Sul e nos pases da Amrica Latina. Para a autora, a anlise

de organismos oficiais institudos para investigar e informar as violaes de direitos

humanos, as chamadas comisses da verdade, em ambos os continentes, sugerem haver uma

diferena no modo como se deram essas violaes na frica do Sul e em pases da Amrica

Latina. Ela afirma que desaparecer os militantes polticos, sequestr-los para acabar por

mat-los e livrar-se de seu corpo sem deixar rastros (HAYNER, 2008, p. 28; traduo livre)

era uma prtica difusa nos pases da Amrica Latina, o que no ocorria comumente na frica

do Sul no perodo do apartheid.

Nesse pas, havia um modo de agir pouco usual das foras da represso, razo pela

qual, o desaparecimento de um militante havia chamado muito a ateno pblica poca. Ela

assim se expressa: houve uma investigao oficial quando desapareceram, e a polcia se

negou energicamente a reconhecer que conhecia seu paradeiro. Sua sorte s pde revelar-se

depois do trabalho da comisso da verdade e da reconciliao da frica do Sul (HAYNER,

2008, p. 28; traduo livre). A autora aposta que havia um padro relativamente distinto nas

formas em que ocorriam as violncias antes dos perodos ditos de transio no apartheid,

comparativamente ao perodo similar nas autocracias latinoamericanas. Para Hayner (2008),

na Amrica Latina, produzir o desaparecimento de pessoas era algo amplamente difundido, ao

contrrio do que ocorrera no perodo do regime de apartheid, na frica do Sul1. A Amrica

Latina, conforme aponta Hayner (2008), caracterizada por ter consolidado uma prtica na

esfera das instituies repressivas, relativamente difusas, de assassinatos seguidos de

desaparecimento do corpo com impacto significativo na forma e no contedo do sofrimento

tico-poltico que, segundo Sawaia (1999), qualifica a forma do sofrimento vivenciado pelos

familiares das vidas interrompidas.

1 No se quer, absolutamente, afirmar que haja um horror maior em um pas, ou menor em outro, ou mesmo se fosse possvel comparar horrores, o que seria um sacrilgio. Vale dizer, que o horror se expressa de muitas maneiras.

30

O contexto da exposio de Hayner (2008) refere-se ao dilema presente no processo

de transio formal de regimes autoritrios para regimes democrticos. Mais especificamente,

trata-se do do dilema que se coloca diante de uma populao profundamente marcada por

horrores, como os vividos durante a guerra de doze anos em El Salvador, de janeiro de 1980 a

julho de 1991, em que 60% das denncias de violaes de direitos humanos referiam-se a

execues extrajudiciais, 25%, a desaparecimento forado, 20%, a denncias de torturas, em

que 85% dos casos foram atribudos a agentes do Estado, grupos paramilitares a ele e aos

esquadres da morte (ONU, 1992, p. 41). A despeito da afirmao de Hayner (2008), de que

o volume de desaparecimento de pessoas no perodo do regime de apartheid no era a prtica

de horror mais usual o relatrio da Comisso da Verdade e Reconciliao da frica do Sul

(SOUTH AFRICA, 1998), volume 6, seo, 4 captulo 1, apresenta uma listagem com 471

nomes de pessoas em situao de sequestro (abduo) e desaparecimento.

Esse modus operandi indicado sugere certa rotinizao da produo de mortes e

desaparecimento de pessoas no perodo mais recente de exceo na Amrica Latina, analisado

por Heyne (2008), e a permanncia no presente de estruturas de outrora, em plena vigncia,

embora a sua extenso seja de difcil ponderao, um problema histrico apresenta-se sempre

que o horror e a barbrie alcanam propores mais ou menos generalizadas. A recorrncia de

denncias de mortes e desaparecimentos de pessoas que envolvem agentes da represso

constituem indicadores da permanncia daquelas estruturas. Portanto, identificar indcios

dessa prtica no aparato estatal brasileiro consiste em colocar em debate o que h de

verdadeiro ou de fico na afirmao de uma transio democrtica e nos prprios limites da

democracia, ou, qual o teor de verdade que certas fices podem evidenciar? Em suma, como

tais prticas, com os rastros que elas insinuam, seus smbolos e ritos, embora envoltos em

novos discursos, se perpetuam em novas roupagens e de que forma se estruturam e se

reproduzem no interior da vida social como prtica corrente?

Desta forma, pode-se indicar a formao de grupos ditos paramilitares, identificados

como os esquadres da morte, tambm em um marco de uma cultura de ordem autocrtica

difusa, na realidade atual, vinculada manuteno da ordem. Dentre as mudanas nos

discursos, que representam essas heranas, podem ser consideradas algumas regras de

linguagens (ARENDT, 1999), que acompanham sua definio. Tornadas algo difusas, alm

dos crculos da mquina burocrtica repressiva, eram definidos como assassinatos seguidos de

destruio dos corpos ou ocultao de cadveres, nos dias atuais, seguindo a definio

utilizada em tratados e relatrios da Organizao das Naes Unidas (ONU), sobre o tema, e

divulgados pelos meios de comunicao como desaparecimento forado ou desaparecimento 31

aps abordagem policial. Os esquadres da morte (ONU, 1992), grupos paramilitares que

atuavam com o consentimento da ordem estabelecida, so atualmente designados como

esquadres de execuo, como denominou a imprensa em um determinado momento

histrico, ou grupos de extermnio. Para utilizar termos adotados por Simone Weil (1996),

transformam o que objeto dessas aes, em matria passiva nas mos de uma burocracia

militar.

Na dcada de 1990, o tema esquadres da morte foi objeto de relatrio produzido

pela Comisso Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), da Organizao dos Estados

Americanos (OEA/CIDH, 1997), o qual apresenta recomendaes ao governo brasileiro sobre

o tema. Este relatrio destaca que as foras de segurana brasileiras foram repetidamente

acusadas de violar de maneira sistemtica os direitos das pessoas e de que h um sistema que

assegura a impunidade dessas violaes (OEA/CIDH, 1997, s. p.). O relatrio trata da

violncia e impunidade policial, dos esquadres da morte, e apresentou seus antecedentes,

composio e estados em que foram identificados esses grupos at aquele momento2. O

relatrio aponta serem esses grupos estabelecidos por antigos oficiais da polcia a fim de

combater o crime, acrescentando que eles remontavam aos anos 1950, quando seus membros

eram popularmente conhecidos como justiceiros (OEA/CIDH, 1997, s. p.). Nos anos 1980,

muitos desses grupos foram denunciados por organizaes de defesa de direitos humanos e

foram objeto de pesquisa conjunta do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua

(MNMMR), do Instituto Brasileiro de Anlises Sociais e Econmicas (Ibase) e o Ncleo de

Estudos da Violncia (NEV-USP). A pesquisa resultou na obra Vidas silenciadas:

assassinatos de crianas e adolescentes no Brasil (MNMMR, 1991).

Nos anos de 1986 e 1987, paralelamente participao no processo constituinte, o

MNMMR denunciava o crescimento assustador do ndice de prises ilegais, torturas e

assassinatos de crianas e adolescentes em todo o pas (MNMMR, 1991, p. 14), alm de uma

srie de outras iniciativas, visando intervir na esfera pblica, buscando levantar informaes

sobre assassinatos de crianas e adolescentes na Baixada Fluminense e em Volta Redonda

(1988), que comprovaram a morte de 306 crianas e adolescentes (MNMMR, p. 15),

suscitando uma srie de intervenes e denncias pblicas de atuao de grupos de extermnio

nas mortes de crianas e adolescentes. Em um dos casos que geraram intervenes pblicas

para coibir violaes de direitos humanos contra crianas e adolescentes, praticadas por

grupos de extermnio, havia um cartaz colocado ao lado do corpo de Patrcio Hilrio, de nove

2 Rio de Janeiro, 15 grupos, Pernambuco, 30 grupos, Espirito Santo, Minas Gerais, Rio Grande do Norte, Acre, Amazonas, Mato Grosso do Sul, Par, Sergipe, dentre outros.

32

anos de idade, encontrado jogado em uma rua do bairro de Ipanema no Rio de janeiro, em

1989. Dizia o cartaz: matei voc porque no estudava e no tinha futuro... o governo no

pode deixar que as ruas da cidade sejam invadidas por menores (MNMMR, 1991, p. 16). A

mensagem evidencia algumas crenas e valores sociais utilizados como justificativa pblica

para o cometimento do assassinato, e que expressa certas noes presentes entre os

integrantes desses grupos. O relatrio da pesquisa que originou a publicao da obra Vidas em

risco (1991), suscitou a divulgao, pelo escritrio da seo britnica da Anistia Internacional,

em diferentes jornais ingleses, da seguinte manchete: O Brasil j encontrou a forma de tirar

suas crianas da rua: matando-as (MNMMR, 1991, p. 19). Esse informe que provocou

reao das instituies da Repblica brasileira acerca dos grupos de extermnio que atuavam

no momento mesmo de passagem formal do regime de exceo para o regime democrtico. O

relatrio da Comisso Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organizao dos

Estados Americanos (OEA, 1997), ao tratar do problema da violncia policial no Brasil , em

grande parte informado pela incluso na agenda pblica nacional, de denncias de violaes

dessa ordem pelos movimentos de defesa de direitos. Segundo o movimento de defesa de

direitos, o constrangimento pblico uma de suas formas tpicas de enfrentamentos.

Em relao ao captulo que trata da organizao policial, a Violncia policial

[esquadres da morte], a impunidade e o foro privativo militar da polcia, o relatrio da

CIDH da OEA (1997), apresenta um certo estranhamento quanto existncia, no Brasil, de

uma polcia civil e uma militar. Esta ltima, segundo o relatrio, estaria cumprindo tarefas

prprias das polcias civis tpicas, subordinando-se diretamente ao poder executivo [e] no

uma fora interna do aparato militar nacional (OEA/CIDH, 1997, s. p.). As aspas adotadas

no relatrio sempre que mencionam ao termo militar para identificar a fora de segurana

responsvel pelo policiamento ostensivo diante dos olhos dos relatores da OEA, justificam-se

por apresentarem uma ambiguidade, j que, no cenrio internacional, se utiliza o termo militar

para indicar as foras armadas e seus integrantes.

Assim, o relatrio destaca aspectos importantes da questo dos mortos e

desaparecidos aps interveno policial, como o despertar de uma tradio militar que vige no

cotidiano das relaes entre os agentes da fora de represso um grupo em que persiste uma

lgica de estruturao e funcionamento relativamente prpria e estvel e no qual muito

forte a viso sobre um ns militares, em oposio a um eles, civis em geral.

Importa considerar os aspectos elencados no relatrio para tentar identificar o modo

como essa tradio, subtendida em uma vinculao dual, respectivamente s foras armadas

por meio dos institutos e foros jurdicos, e, administrativamente, ao poder executivo estadual. 33

Esses aspectos mostram a centralidade da violncia policial sobre a frao populacional

miserabilizada3, que habita reas estigmatizadas das metrpoles e regies metropolitanas das

grandes cidades e capitais.

O mencionado Relatrio da Comisso Internacional de Direitos Humanos da

Organizao dos Estados Americanos (1997, s. p.) refere-se genericamente a denncias

apresentadas por rgos governamentais, pela imprensa e organizaes no governamentais,

sobre a atuao violenta das polcias estaduais, especialmente a militar, tanto no exerccio de

suas funes como fora dele. Destaca ainda que o argumento comumente utilizado pelas

direes das polcias militares sobre as acusaes que lhes eram feitas em relao s mltiplas

mortes enfatiza que ocorreram em legtima defesa ou no estrito cumprimento do dever. A

despeito dessas justificativas, o mesmo relatrio afirma que havia provas de que a reao da

polcia brasileira, via de regra, no apenas excedia os limites do legal e regulamentar, mas

em muitos casos, os policiais [militares] usam seu poder, organizao e armamento para

atividades ilegais. O relatrio apresenta dados parciais do ano de 1994, em que ocorreram

6.494 homicdios em quatorze estados brasileiros, dos quais 8% foram atribudos a policiais

militares, representando, aproximadamente, 260 homicdios. S Alagoas registrava 17% dos

homicdios. Tambm em estados como Amazonas, Amap, Minas Gerais, Par, Paraba,

Pernambuco, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul entre 6% e 9% dos assassinados foram de

autoria de policiais militares. Nos estados de Cear, Esprito Santo, Rio Grande do Norte,

Roraima e Sergipe, o ndice era de 5% ou menos (OEA/CIDH, 1997).

O relatrio da Comisso Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da

Organizao dos Estados Americanos (OEA/CIDH, 1997, s. p.), destaca ainda que, no estado

de Pernambuco, no perodo de janeiro de 1994 a outubro de 1995, registraram-se, 1.176

homicdios, e 215 (18,3%) foram atribudos a policiais militares, e outros 154 (13,1%) a

membros de grupos de extermnio em execues sumrias, contando, tambm, com a

3 Loic Wacquat (2000) utilizou o termo subproletariado para designar as parcelas da classe trabalhadora entendidas como classe estrutural no interior do capitalismo que resultaram como efeitos das polticas de ajustes de cunho neoliberais. Ele faz uma referncia ao conceito de ps-welfare, termo cunhado pelo politlogo neoconservador norte- americano, Lawrence Mead (1943 ), para identificar como se configura a ideia de um estado penal para o subproletariado. O subproletariado, em sua expresso na dcada de 1990, resulta, conforme Wacquant (2000), do efeito histrico-social direto do desemprego estrutural e da precarizao do mundo do trabalho. Dentre as caractersticas mais relevantes indicadas por Wacquat (2000), destacam-se a flexibilizao das condies de despedimento nos postos de trabalho, a corroso dos direitos trabalhistas conquistados nos sculos anteriores, em todas as latitudes, por fora das lutas organizada dos trabalhadores e das trabalhadoras, e o alargamento e a ampliao das condies de explorao da mo de obra. Os dois efeitos mais ntidos resultantes dos chamados ajustes neoliberais analisados por Wacquant (2000) consistem no emblema, cunhado por ele, de uma passagem do Estado providncia para o Estado penal. O subproletariado constituiu, portanto, a parcela da populao submetida as condies de subemprego e, em muitos casos, e includa na categoria dos chamados inimpregveis. Em relao ao termo miserabilizados, pretende-se destacar o carter de despossesso com a desqualificao social que a acompanha.

34

participao de membros da polcia militar estadual que mataram, inclusive adolescentes e

crianas (OEA/CIDH, 1997, s. p.). Essas consideraes indicam que h mais continuidade

do que ruptura nas estruturas que sustentam um padro repressivo que remonta ao perodo

recente da autocracia militar, o que vale dizer que permanece o Estado de exceo, tal como

vigorou no aps 1964, qual seja um Estado arbitrrio, que viola as suas prprias leis,

denominado eufemisticamente de Estado de exceo que na realidade, se transformou em

regra, em Estado de exceo permanente (GERMANO, 2000, p. 23).

Destaca-se, no entanto, que a exausto da ditadura militar, no Brasil nos meados da

dcada de 1980, foi resultado, sobretudo, de embates da classe trabalhadora organizada. Essa

organizao atingiu maior expresso nas greves do chamado ABC paulista (Santo Andr, So

Bernardo e So Caetano) e dos trabalhadores nos servios pblicos, no Movimento dos

Trabalhadores Sem Terra (MST), que foram decisivos para a criao da Central nica dos

Trabalhadores (CUT). Florestan Fernandes (1994) considera que o processo de

desmantelamento da ditadura militar deu-se de baixo para cima, em um contexto favorvel,

em virtude da insatisfao da populao com a espoliao dos trabalhadores e o agravamento

de suas condies de trabalho. Para o autor, muita contradio que a burguesia enfrenta na

atualidade, vm sendo acumuladas ao longo do tempo. A nova Constituio da Repblica

Federativa do Brasil de 1988 o resultado da correlao de foras no movimento da luta de

classes.

No entanto, se os impactos sociais, econmicos, polticos e culturais dos 21 anos de

vigncia do regime autocrtico, de um lado, convergiram, para a conservao do statu quo,

nos dias atuais. A presena do Estado de exceo (Germano, 2000) de outro lado, marcou a

redemocratizao da sociedade, nos anos 1980. Contraditoriamente, a Constituio cidad

(BRASIL, 1988) absorveu muitos aspectos dos princpios emanados da Declarao Universal

dos Direitos Humanos, mas os dispositivos da Doutrina da Segurana Nacional

permaneceram inalterados no que refere, dentre outros dispositivos, legislao sobre a

organizao policial4, a qual estabelece que as polcias militares constituem foras auxiliares

4 A Constituio Federal de 1988 (BRASIL, 1988) destaca que cabe Unio e aos estados organizarem, garantirem e exercerem a segurana pblica. Para tanto, a Unio dispe de uma Polcia Federal (PF), no mbito dos estados, uma polcia civil (PC) e uma polcia militar (PM). A PF subordina-se ao Ministrio da Justia e atua em todo o territrio nacional. As polcias civil e militar submetem-se aos Estados, respectivamente s Secretarias de Segurana Pblica (SSPs) e aos respectivos governadores. A alnea d do pargrafo VII, artigo 144 da Emenda Constitucional no 7, de 13 de abril de 1977 (BRASIL, 1988) que trata dos tribunais e juzes estaduais - assinala: justia militar estadual, constituda em primeira instncia pelos Conselhos de Justia, e, em segunda, pelo prprio Tribunal de Justia, com competncia para processar e julgar, nos crimes militares definidos em lei, os integrantes das policias militares. Depois de muitas tentativas de retirar o foro privilegiado para julgamento de crimes praticados por militares, em agosto de 1996, foi aprovado um projeto substitutivo ao apresentado pelo ento deputado Helio Bicudo, que alterou o Cdigo de Processo Penal Militar Decretos leis nos 1.001 e 1.002, de 21 de outubro de 1969. Acrescentou-se, no primeiro caso, um pargrafo nico ao artigo 9o que destaca: os

35

e de reserva do exrcito brasileiro, para efeito de assegurar a ordem pblica e a paz social

ameaadas, embora sejam, ao mesmo tempo, formalmente subordinadas ao governador de

cada Estado5 ( BRASIL, 1988).

A funo de assegurar a ordem pblica e a paz social ameaadas, consideradas

funo da foras policiais militares, trata o poder de polcia como uma medida tcnica,

voltada para conteno repressiva dos conflitos que emergem necessariamente, em razo do

antagonismo resultante da fratura social estrutural entre dois grupos fundamentais: produtores

e proprietrios. Nessa perspectiva, qualquer manifestao desses conflitos concebida como

uma ameaa a ser contida, em ltima instncia, com recurso tcnico da fora policial.

Fundamentam-se em uma concepo liberal de democracia, conforme definio de Chau

(2012), o regime da lei e da ordem voltado para garantia das liberdades individuais. Essas

liberdades, do ponto de vista liberal, coincide com ausncia de obstculos competio,

significando que, primeiramente, a liberdade se reduz competio econmica da chamada

livre iniciativa, no plano econmico e, no plano poltico, competio entre partidos que

disputam eleies.

A lei f