dora longo bahia tese

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    Do Campoa Cidade

    Tese apresentada Escola deComunicaes e Artes da Universidade

    de So Paulo para a obteno do ttulo deDoutor em Artes Visuais

    rea de Concentrao: Poticas Visuais

    Orientadora: Profa. Dra. Maria do CarmoCosta Gross

    So Paulo2010

    DORA LONGO BAHIA

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    Bahia, Dora LongoDo Campo a Cidade / Dora Longo Bahia. -- So Paulo : D. L. Bahia, 2010.284 p. : il.

    Tese (Doutorado) Departamento de Artes Visuais / Escola deComunicaes e Artes / USP, 01/04/2010.Orientadora: Profa. Dra. Maria do Carmo Costa Gross.Bibliografia

    1. Arte Brasil Sculo 21 2. Antiarte 3. Arte Jovem So Paulo (SP)I. Gross, Maria do Carmo Costa II. Ttulo.

    CDD 21 ed. - 700

    Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, porqualquer meio convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa.

    Catalogao da PublicaoEscola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo

    BAHIA, Dora LongoDo Campo a Cidade

    Tese apresentada Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So

    Paulo para a obteno do ttulo de Doutor em Artes Visuais.

    Aprovada em:

    Banca Examinadora:

    Prof. Dr. Instituio

    Julgamento Assinatura

    Prof. Dr. Instituio

    Julgamento Assinatura

    Prof. Dr. Instituio

    Julgamento Assinatura

    Prof. Dr. Instituio

    Julgamento Assinatura

    Prof. Dr. Instituio

    Julgamento Assinatura

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    Para Isabel e Augusto, meus pais, eCarmela e Nelson, meus mestres.

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    Do Campo a Cidade uma reflexosobre o estatuto da obra e do artistacontemporneos. Trata da compara-o entre o percurso dos jovens ar-tistas Marcelo do Campo (1951 - ?) eMarcelo Cidade (1979 - ?). Por meioda investigao e reproduo do cor-po de trabalhos de ambos, exploraquestes fundamentais para a arte:qual a natureza do autor contem-porneo, qual a importncia do con-texto de produo da obra para suainterpretao, e quais os limites en-tre a obra de arte, a documentao,a citao, a falsificao e o plgio.

    Do Campo a Cidade um objeto-livro. Concebido como um texto-imagem, prope uma experinciade arte disfarada de narrativa. Emsua apresentao grfica, como emseu contedo textual, expe umareflexo sobre a relao entre o ar-tista e a universidade, eliminandoa lacuna entre a prtica e a teoria,entre o fazer artstico e sua investiga-o acadmica. Pretende responder,assim, s exigncias da rea de Po-ticas Visuais, que privilegia pesquisastanto tericas quanto experimentaissobre os processos artsticos.

    ResumoBAHIA, D. L. Do Campo a Cidade. 2010. 284 p. Tese (Doutorado) - Escola de

    Comunicaes e Artes, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2010.

    Palavras-chave: Arte. Poltica. Autoria. Documentao. Plgio.

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    Do Campo to Cidade is a reflectionon the status of contemporary artistsand their work. It is a comparisonbetween the trajectories of the youngartists, Marcelo do Campo (1951 ?)and Marcelo Cidade (1979 ?). Bymeans of the investigation and re-production of the body of work ofeach one of them, it explores funda-mental questions about art: what isthe nature of the contemporary au-thor; what is the importance of thecontext in which the work of art isproduced for its interpretation; andwhat defines the borders betweena work of art, a documentation, a

    quotation, a falsification and a pla-giarism. Do Campo to Cidade is abook-object. It was conceived asa text-image to propose an art ex-perience disguised as a narrative.In its graphic presentation as wellas in its textual content, it exposesthe relation between the artist andthe university, eliminating the gapbetween practice and theory, betweenthe making of art and its academicinvestigation. In this way, it aimsto meet the demands of the VisualPoetics field that favors both theo-retical and experimental researchesabout the artistic processes.

    Key-words: Art. Politics. Authorship. Documentation. Plagiarism.

    AbstractBAHIA, D. L. Do Campo to Cidade. 2010. 284 p. Tese (Doutorado) - Escola de

    Comunicaes e Artes, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2010.

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    PRLOGO

    MARCELO DO CAMPO

    MARCELO CIDADE

    EPLOGO

    BIBLIOGRAFIA

    Sumrio15

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    103

    253

    275

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    Prlogo

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    Quando rejeitou o cubismo, Du-

    champ estava na realidade recusan-do a autossuficincia da pintura, suaseriedade excessiva, sua concep-o sagrada de misso e fervor reli-gioso1. Suas investigaes estticaseram permeadas pelo vulgar, peloobsceno e pelo escabroso. Evidencia-vam sua posio contra uma obrade arte autnoma e resguardada dequalquer contato com o mundo real.

    Duchamp comprovou que o modode produo dos signos afetava oprprio processo de conhecimento.Abriu caminho para prticas artsti-cas inusitadas que pretendiam resta-belecer a afinao entre a arte e omundo real. Essas investidas forma-tavam a insatisfao dos artistas com

    relao progressiva converso da

    obra de arte em mercadoria, e in-vadiam outras reas como as dopoltico e do social. Apesar de mui-tas vezes espantarem o pblico e ir-ritarem a crtica, acabaram por sub-verter paradigmas comportamentaise alterar os processos simblicos eimaginrios.

    Com o passar do tempo, o vulgar, oobsceno, o escabroso e outros procedi-mentos artsticos antes inusitados foramabsorvidos pelo mercado. As mani-festaes culturais marginais foramcapturadas, os procedimentos de re-sistncia popularizados, a subversotransformada em mercadoria2. Todainsubordinao artstica foi completa-mente anulada pelo capitalismo3.

    1 KRAUSS, O fotogrfico, 2002, pp. 77-78.

    2 J em 1956, Guy Debord e Gil Wolman, em Um guia prtico para o desvio, identificavam a necessidade de ultra-passar o mero escndalo e utilizar a herana literria e artstica da humanidade com objetivos de guerrilha: J quea oposio noo burguesa de arte e gnio artstico se tornou h muito um sapato velho, o bigode que Duchamppintou na Mona Lisa no mais interessante do que a prpria Mona Lisa sem bigode. Ns precisamos empurrar esteprocesso ao ponto de negar a negao (DEBORD, Um guia prtico para o desvio [A users guide to dtournement],em Les Lvres Nues, 1956).

    3 Rosalind Krauss descreve o capitalismo como o senhor do dtournement pois ele absorve todo protesto de van-guarda, desviando-o em proveito prprio. Da mesma maneira, toda crtica institucional acaba sendo sugada pelasmesmas instituies de marketing global das quais depende para seu sucesso e apoio (KRAUSS, A voyage on theNorth Sea, 2000, pp. 33-34).

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    Na atual conjuntura, toda novi-

    dade4

    j surge obsoleta, como re-sultado de uma corrida frentica einfrutfera contra um mercado ine-lutvel que tudo devora, digere eregurgita. Qualquer ao, situaoou experincia de arte marginal anulada por meio de sua coisificaoe mercantilizao, ou esvaziada pormeio de sua espetacularizao. Pelosimples fato de existir, torna-se tomercadoria quo uma pintura ouescultura tradicional5. Quanto maismarginal e vanguardista for oepteto adotado pelo artista, mais sa-tisfeito fica o mercado ao incorpor-loao sistema, e comprovar, assim, suaonipotncia sobre a pretensa sub-verso. Quais so ento as opes

    do artista? Assumir o papel de bobo

    da corte? Reivindicar a posio alie-nada de silncio poltico? Bravatearum comportamento marginal? Masmarginal a qu, se, no mundo capi-talista, no existe fora?

    Do Campo a Cidade uma investi-gao a respeito dessas questes. uma fico equvoca, na qual o pro-tagonista Marcelo Cidade perso-nifica o artista insatisfeito. Esfora-sepor subverter as relaes amigveisentre a arte e o poder representadopelo mercado, numa sociedade apri-sionada num eterno presente que seautoconsome ininterruptamente. Suahistria foi criada em paralaxe6 deMarcelo do Campo, motivo de minha

    dissertao de mestrado. Do Campo

    corporifica aquele artista ingnuoque, em meados do sculo passado,acredita ser capaz de subverter omercado e agir na marginalidade,evidenciando o entrecruzamento en-tre arte e ao poltica7.

    Marcelo Cidade Marcelo do Cam-po, renomeado, adaptado e trans-ferido para o capitalismo tardio8. Suahistria prope um jogo simblico dedesestabilizao social, revela as con-

    tradies imbricadas no fazer artstico

    e propicia a formao de constela-es revolucionrias com o presente9.

    Reafirma minha crena na relaoentre arte e ao poltica10, e na res-ponsabilidade do artista, tanto porsua obra quanto por suas implicaespblicas. Da mesma forma que umgovernante, um cientista, um profes-sor ou um religioso, o artista tem queestar ciente das articulaes de suaobra com as instituies de poder se-jam elas, o Estado, a mdia ou o poder

    4 Walter Benjamin define o novo como uma qualidade independente do valor de uso da mercadoria. a origemdesse halo intransfervel das imagens produzidas pelo inconsciente coletivo. a quintessncia da falsa conscinciacujo agente incansvel a moda. Este halo do novo se reflete, tal como um espelho noutro, no halo do sempre-outra-vez-igual (Walter Benjamin, Poesa y Capitalism: Iluminaciones II, trad. Jess Aguirre e Roberto Blatt [Madrid, Taurus,1980], p. 186, citado em BUCK-MORSS, Walter Benjamin, 2005, p. 44).

    5Na sociedade de consumo massivo, o artista marginal desapareceu como figura especfica, pois a atitude percep-tual que ele encarnava antes, agora impregna a conscincia histrica. O mesmo se pode dizer das figuras histricasbenjaminianas a prostituta, o flneure o colecionador nas quais todos nos transformamos. (BUCK-MORSS, 2005,op. cit., p. 123).

    6 Segundo o filsofo esloveno Slavoj Zizek, a paralaxe no simtrica, composta de dois pontos de vista incom-patveis do mesmo X: h uma assimetria irredutvel entre os dois pontos de vista, uma toro mnima. No temos doispontos de vista, temos um ponto de vista e o que foge a ele, e o outro ponto de vista preenche o vazio do que nopodemos ver do primeiro ponto de vista (ZIZEK, A viso em paralaxe, 2008, p. 47).

    7 A palavra poltica pode ser definida como a arte de lidar com a cidade (do gregopolitik: tkhn[arte] epolis[ci-dade]), ou seja, agir sobre a sociedade, questionar paradigmas, sinalizar novas formas de organizao e preconizarmudanas.

    8 Utilizo o termo capitalismo tardio para referir-me ao perodo caracterizado pela expanso das grandes corporaesmultinacionais, pela globalizao dos mercados e do trabalho, pelo consumo de massa e pela intensificao dosfluxos internacionais do capital. No capitalismo tardio, a acelerao do tempo de giro do consumo e a superao dasbarreiras espaciais transforma a produo de imagens e sistemas de signos na mercadoria ideal para a acumula-o do capital (HARVEY, Condio ps-moderna, 1992, p. 260).

    9 Segundo Walter Benjamin, a arte tem um aspecto dialtico que desempenha uma funo poltica vital: a mtuadesmistificao entre realidade material e expresso esttica. Por um lado, a arte necessita de elementos da histriamaterial para sua interpretao para que esses tesouros culturais deixem de ser apetrechos da classe dominante. Poroutro lado, ela proporciona uma iconografia crtica para decifrar essa mesma histria material, de maneira que seuselementos ainda possam constituir uma constelao revolucionria com o presente (BUCK-MORSS, 2005, op.cit, p. 40).

    10Acredito que a arte uma ao poltica pois interfere nas aes, no comportamento e nas crenas da comu-nidade, conectando memria e porvir, sujeito e objeto, situao e existncia. Para salientar o paralelo entre arte epoltica (ou seria a paralaxe?), aproprio-me da definio dada pelo filsofo esloveno Slavoj Zizek para o ato polticoradical e aplico-a ao ato artstico experimental. Segundo Zizek, um ato poltico radical u ma interveno especficanum contexto sociossimblico. Apesar de sempre estar situado num contexto concreto, no inteiramente determi-nado por ele. Este Ato sempre envolve um risco radical, j que um passo no desconhecido, sem garantias quantoao resultado final por que? Porque um Ato altera re troativamente as prprias coordenadas em que interfere (ZIZEK,Bem-vindo ao deserto do real, 2003, p. 75).

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    econmico privado, representado

    pelos colecionadores e investidores.Se no est satisfeito com o estadodessas articulaes, deve tentarsubvert-las por meio de estrat-gias condizentes com a conjunturaem que vive. Reproduzir manobrasutilizadas pelas vanguardas histri-cas to ingnuo quanto fazer umailustrao da situao. Reivindicaruma posio de silncio poltico ,mais que ingnuo, perigoso con-siderando o destino dos artistas nosregimes totalitrios ou mesmocriminoso atentando para o poderpblico dos artistas11.Em meio ao ar-

    rasto cultural promovido pelo mer-

    cado que tudo consome e padroni-za, o artista precisa criar estratgiasde guerrilha.

    Marcelo Cidade foi estruturado so-bre essas estratgias. uma ima-gem disfarada de verdade12. Apre-senta um autor constitudo por meioda utilizao do plgio e da criaocoletiva, que precipita sua prpriadiluio. um discurso de resistn-cia sequestrado da antiarte e dossituacionistas, que justifica procedi-mentos idiotas, sarcsticos e aflitivos. uma obra composta por trabalhos

    11LIPPARD, O dilema, em B ATTCOCK, A nova Arte, 1986, p. 185.

    12 No primeiro volume de Em busca do tempo perdido, Marcel Proust define a imagem como o nico elemento es-

    sencial na estrutura das emoes humanas: Esses acontecimentos eram os que sucediam no livro que eu lia; naverdade, as personagens a quem afetavam no eram reais, como dizia Franoise. Mas todos os sentimentos que nosfazem experimentar a alegria ou o infortnio de um personagem real s se produzem em ns por meio de uma ima-gem dessa alegria ou desse infortnio; todo o e ngenho do primeiro romancista consistiu em compreender que, sendoa imagem o nico elemento essencial na estrutura de nossas emoes, a simplificao que consistisse em suprimirpura e simplesmente as personagens reais seria um aperfeioamento decisivo. Um ser real, por mais profundamenteque simpatizemos com ele, percebemo-lo em grande parte por meio de nossos sentidos, isto , continua opaco parans, oferece um peso morto que nossa sensibilidade no pode levantar. Se lhe sucede uma desgraa, esta s nospode comover em uma pequena parte da noo total que temos dele, e ainda mais, s em uma pequena parte danoo total que ele tem de si mesmo que sua prpria desgraa o poder comover. O achado do romancista con-sistiu na idia de substituir essas partes impenetrveis alma por uma quantidade igual de partes imateriais, isto ,que nossa alma pode assimilar. Desde esse momento, j no importa que as aes e emoes desses indivduos deuma nova espcie nos apaream como verdadeiras, visto que as fizemos nossas, que em ns que elas se realizame mantm sob seu domnio, enquanto viramos febrilmente as pginas, o ritmo de nossa respirao e a intensidadede nosso olhar (PROUST, No caminho de Swann, 2006, p. 118).

    13O professor Luiz Renato Martins, em seu curso Forma-o e desmanche de um sistema visual brasileiro mo-derno, chama de desmanche a situao atual da arte

    visual brasileira: A tnica dominante se mostra bemoutra desde o incio da dcada de 1980. A tendnciapr-capitalista predomina e permeia todos os setores davida social e simblica. A lgica deste ponto de vista a de que no existe alternativa ao capitalismo e globalizao, ou a de que o mercado constitui a nicarealidade possvel. Concomitantemente, entraram emdesuso as prticas de reflexo histrica. O fim do ciclohistrico da arte moderna ou das vanguardas, que noBrasil constituram fenmenos tardios e vigentes at adcada de 1970, foi acompanhado pela e xtino da es-fera simblica e social da crtica. (MARTINS, Formaoe desmanche de um sistema visual brasileiro moderno,acesso em: julho de 2008).

    alheios, precrios, triviais e com di-

    vulgao incontrolada, que anulamseu valor de troca.

    Sua existncia mitolgica e suasobras de autoria duvidosa manifes-tam a supresso de qualquer resqu-cio de herosmo do artista marginalou de aura da obra de arte. Con-traditrio, impreciso e escorregadio,ilustra o desmanche13 cultural daconjuntura atual, sinaliza o apareci-mento de novos processos simblicose submete-os reflexo histrica.

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    Do Campo

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    Para meus alunos.

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    Ay, no; no, ay; for I must nothing be;Therefore no no, for I resign to thee.

    Now mark me, how I will undo myself...

    (RICHARD II, VI, I, 201-03)

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    ANOS 80 Universidade, punk, AIDS.

    A volta dos sem-futuro

    ANOS 90 Pichao, hip-hop, priso.Dirio de um detento

    MTAW A transio para a arte.Cenas da vida cotidiana

    FAAP A educao artstica.Marrom

    Consumir e gozar! E no estocar!

    O Museu do Vazio

    OCUPAO O monumento em colapso.O monumento em colapso

    FICHA TCNICA

    AGRADECIMENTOS

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    Marcelo Cidadenasceu em 1979, emSo Paulo, no mesmodia em que Sid Viciousmorreu. Seu pai eraum grafiteiro punk.Chamava-o, aindano berrio, de Sid.Quase foi registradocomo Sid Cidade, massua me, uma estu-

    dante universitria,proibiu. Achava cafo-na nomes aliterados eassonantes.

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    InfnciaA recm-constituda famlia Cidade morava no She-

    raton do CRUSP, o bloco F. A jovem Me passava asmanhs na aula e as tardes em casa, pilotando suaOlivetti. Escrevia textos sobre msica, anarquia, cine-ma, guerra, poesia, religio, moda e sexo. Ilustrava-oscom colagens de fotos de amigos, imagens de revistas,xerox de capas de discos, livros e tudo o mais que lhecasse s mos.

    Todo sbado, pela manh, encocurutava o pequenoMarcelo s costas e rumava para o centro da cidade.Fazia uma parada no Largo So Bento, para ver os ami-gos. Ia para as Grandes Galerias, na 24 de maio, apeli-dada de Galeria do Rock pelos punks. L transformavasua produo matinal em pginas de um fanzine.

    Fazia 50 cpias de sua produo grfico-literria e dei-xava para vender na Baratos Afins. Ficava l ouvindoas cassetes recm-gravadas, namorando os vinis im-portados, compulsando os fanzines nacionais e espi-olhando os finlandeses, alemes, franceses e italianos.

    Enquanto Marcelo e a Me embrenhavam-se naGaleria do Rock, o Pai dormia at tarde no CRUSP.Quando acordava, pegava o trem, o nibus etc., e iaat a Vila Piau. Na casa de amigos, tocava guitarra,fumava maconha, escrevia poemas e recortava es-tnceis, para grafitar pela cidade.

    O Conjunto Residencialda Universidade de So

    Paulo (CRUSP) foi invadidoem 1968 pelos militares.Tanques e soldados arma-dos expulsaram os cerca de1500 estudantes que mora-vam ali. O CRUSP s reabriuem 1979, com quatro blocosa menos, dois demolidospara o alargamento de umaavenida e outros dois toma-dos para sediar a reitoria.

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    Na poca de exames e seminrios da Me, o Pai levavaMarcelo Vila Piau. Na casa dos amigos do Pai, almda guitarra e da maconha, tinha um monto de tintas epapis, e uma penca de revistas em quadrinhos.

    O comeo do fim do mundo,primeiro festival punk de SoPaulo, aconteceu no SESCPompeia, em 27 e 28 de no-vembro de 1982. Foram con-vidadas vinte bandas punkde So Paulo e da regio doABC, que, durante esses doisdias, fizeram uma trguanas rivalidades territoriais.O pblico era relativamenteecltico, constitudo de punks,moradores dos arredores,curiosos e, pela primeira veznum evento punk, algunsjornalistas.

    O futuro negro, eu sei...A viso apocalptica cor-

    respondida pelo espectroda ameaa de uma guerranuclear. Novos ares nohorizonte do Cristo Reden-tor? Novas nuvens talvez.No pense que perspectivassombrias desafiam a lnguaafiada da cidade... Quemmatou Salomo Ayalla?Voc j foi Bahia? No?Pois , eu tambm no!Noutro dia uma senhoradisse: Mas isso no combinacom meu sof. Ora, minhasenhora, troque de sof!Editorial de Wilson Jos parao nmero 19 da revista Fan-zine Madame Sat, de 1985.

    Pato Donald, Mickey, Homem-Aranha, SurfistaPrateado, Super-Aventuras Marvel, Super-Amigos,Super-Homem, Super-Isto e Super-Aquilo.

    Marcelo acreditava piamente que a Vila Piau ficavaem algum lugar no meio do caminho entre Patpolis eGotham City.

    Ainda na Vila, o Pai e Marcelo se distraam assistindoaos ensaios dos amigos Ratos de Poro. Aos olhos doprimeiro, eles eram o supra-sumo do punk, e aos ouvi-dos do segundo, eram o mximo do rudo.

    Alm da USP, das Grandes Galerias e da Vila Piau, o Paie a Me dividiam seu tempo entre os concertos punk, asmanifestaes estudantis e os grafites na madrugada.Marcelo os acompanhava. Assistiu precocemente aofestival O comeo do fim do mundo, em 1982. Mani-festou-se junto aos estudantes pelas DIRETAS J em 1983e 1984. Aprendeu a fugir da polcia, grafitando ilegal-mente nos tneis da cidade, em 1985, 1986, 1987...

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    Em 1985, a Me tornou-se possuidora de um diplomauspiano. Serviu-se de seu registro virgem de jornalistapara legalizar a revista-fanzine do amigo Wilson Jos,um dos donos da danceteria Madame Sat. Wilsonera o responsvel por toda a vida cultural do Sat.Isso inclua desde a publicao do Fanzine MadameSat, a organizao da agenda de shows eclticosque aconteciam no poro da casa, at o convitecorajoso a jovens inexperientes e artistas marginaispara apresentar performances, desfiles, filmes, vdeose poemas. Tudo aquilo que quisessem ou que fossechamado de sucata pelo establishment cultural.

    Wilson apaixonou-se por uma das histrias escritas eeditadas pela Me, que, de tanto ir ao Madame Sat,transformou seus frequentadores em personagens desua fico. A prosa semiliterria, xerocada e distribu-da pela Me nos subterrneos paulistas, mostrava amulher-repolho como lder da guerrilha urbana quepululava por uma megalpole decadente imaginria.

    A figura despudorada que degustava folhasde repolho cru numa jaula suspensa no teto doMadame Sat converteu-se em super-anti-heronanum futuro indeterminado.

    De p contra o muro, dep contra a lei, pra ser

    condenado, pra ser fuzilado,no h esperana pra eue voc. Letra da msica

    Condenados, dos Ratos dePoro, banda punk formada

    em 1981, cujos ensaiosMarcelo assistia com seu

    pai, na Vila Piau.

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    O Madame Sat era umacasa noturna na Bela Vistaque sediava shows de rock,

    performances, desfiles demoda e exposies de arte.

    Era frequentado por umagrande variedade de tribos,desde punks, carecas, gti-

    cos, travestis e prostitutas,at estudantes, socialites,

    atores, escritores e artistas.

    A Madame Sat erasdica? Masoquista?

    Acreditava em super-heris, e sonhava em serum mito? Tinha sanguealemo e alma nazista?

    Chamava bofe de veado,entendia tudo errado,

    ou foi uma bicha velha,jamais velada porque no

    morreu, desintegrou-se?Ela era brasileira, morena,

    amarela? Morreu deAIDS ou de tdio? Pulavacarnaval, ou foi sapato

    que tomou ch de cadeiraa vida inteira? Tinha f,

    tinha gula, tinha prazer?Ou morreu virgem, foi

    canonizada e, hoje em dia,virou maldita? Era aflita ounordestina? Inteligente ou

    cretina? Tomava vodka oucreolina? Votou, em vida?

    Quem era ela? Filiada, filhada puta ou s mal falada?

    Fazia terapia? Cheirava

    p? Tinha ressaca?... Ouela foi mero pretexto pra

    vocs abrirem esse bafom?Madame Sat um super-

    heri?Texto de MonicaMontoro para o nmero 20

    da revista Fanzine MadameSat, 1986.

    A Me passava, no s as noites, mas tambm

    as tardes no bairro da Bela Vista, na casa/edi-tora/produtora de Wilson Jos. Se mandava paral, todos os dias bem cedinho, empolgada com aproduo da revista Fanzine e de projetos de ex-posies que levariam a marginlia cultural pau-lista s capitais do pas.

    Para l tambm ia Marcelo, bocejando a tiracolo,embalado pela cantilena do motor do nibus. Demanh frequentava a escola do bairro. tarde, opandemnio cultural da casa do Wilson, onde faziaa lio de casa assistido por punks, artistas, poetas,travestis, atores e msicos.

    Assim foi a infncia nada tradicional de MarceloCidade. Punks, universidade, madrugada, ilegali-dade. Da USP Bela Vista, de l Galeria do Rock,ao Viaduto do Ch, ao Largo So Bento, perife-ria, ao ABC. Aprendeu a andar de nibus, de trem,de skate. Aprendeu a ouvir punk rock, se vestir depreto e no lavar o cabelo.

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    Nesta altura do texto,caberia tambm pergun-tar: medo de qu? Umaindagao que bagunariao ti-ti-ti das futilidades quese transformam em verdadecultural nessa haciendachamada Brazil. Trecho doeditorial de Wilson Jos parao nmero 21 da revista Fan-zine Madame Sat, 1986.

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    artsticos no tradicionais promovi-

    dos por Andy Warhol, na Factory.

    Malcom McLaren e Bernie Rhodes,empresrios, respectivamente, doSex Pistols e do Clash, foram figurasimportantes para o surgimento dopunk. Inspiraram-se abertamentena esttica de apropriao, no non-sense e na anarquia Dada, quandoestabeleceram as fundaes do punkbritnico. Aes como as de MarcelDuchamp, procedimentos como osde John Heartfield e atitudes como asde Yves Tanguy poderiam retroativa-mente ser chamadas de punks. Du-champ, na mostra Dada, em Colnia,em 1920, fez os patronos da exposioentrarem pelos banheiros de um cafe depararem-se com uma jovemvestida para primeira comunho,

    recitando versos obscenos. Heartfieldutilizava recortes de fotografias paracompor uma nova imagem, frag-mentada e distorcida, que tornou-se oprocedimento mais utilizado nos fan-zines punks. Yves Tanguy, em 1924,usava um corte de cabelo arrepiado eextravagante, e dizem que fazia per-formances comendo aranhas vivas.1Alm da influncia do Dada nafundao do punk, as ideias de Guy

    Debord e dos situacionistas foram se-

    questradas e adaptadas pela msicae moda punk. As letras ingnuas eagressivas das canes punks mes-clam slogans dos grafites de maio de1968 com a depravao vulgar dosescritos da gerao Beat. Allen Gins-berg, Gregory Corso, Jack Kerouac,Charles Bukowski e William Bur-roughs tinham elevado a degrada-o e a banalidade categoria deliteratura, abrindo as portas para aspoesias simplrias sobre drogas edecadncia moral.

    O culto juventude degradadafoi tambm estimulado pelo artistanorte-americano Andy Warhol, quemisturava arte com cinema, modae rock, e movia-se entre a alta socie-dade, a elite cultural e o submundo

    das drogas e da prostituio. Rece-bia em seu estdio a Factory co-lecionadores, artistas, travestis, per-formers, poetas, msicos e modelos.Alm dessa colagem social, Warholproduzia filmes debochados nos quaisapresentava uma juventude amoral,drogada e sem ideologias. Foi o re-sponsvel tambm pelo surgimentodo Velvet Underground, que influen-ciou a msica punk pelo barulho e

    QUE VERGONHA - OLHO SECO (1980)

    NO, NO, EU NO SEI, O QUE E OQUE NO , POR QUE O MUNDO ANDAEM GUERRA, GERANDO VIOLNCIA. QUEVERGONHA! QUE VERGONHA!

    Nos anos 1980, em So Paulo, formou-se uma frtil cena artstica alternativa,influenciada pelas ideias e atitudespunk. Pela primeira vez na histria doBrasil, um movimento cultural nascedo proletariado e promove um cal-deiro igualitrio de classes sociais eintelectuais. Anarquista e sem-futuro,o punk j nasceu morto. Entretanto,deixou vestgios e herdeiros entreativistas, msicos e artistas.

    A frase chave do movimento punkera faa-voc-mesmo. Para a cena

    inglesa, era uma crtica ao mundocapitalista, sociedade de consumo,e representava o tdio cultural e adecadncia social dos subrbios in-dustriais. Para ns aqui no terceiromundo, sem grandes recursos finan-ceiros ou culturais, era o aval paraa produo pobre e tosca corrente.As partituras musicais punks eramsupersimplificadas e as letras dascanes eram curtas, diretas e pouco

    elaboradas. Qualquer um podia to-

    car um instrumento ou gritar no vo-cal de uma banda punk; qualquerum podia compor uma msica de,no mximo, trs acordes e fazer umaletra autntica mas banal; qualquerum podia fazer uma fita cassete, umfanzine xerocado, escrever errado,desenhar mal, pintar mal etc.

    UNIO ENTRE PUNKS DO BRASIL- FOGOCRUZADO (1981)QUEREM EXTERMINAR, QUEREM ACA-BAR, QUEREM MAIS ESPAO PRO MUN-DO SE ESTOURAR. UNIO ENTRE PUNKSDO BRASIL! VAMOS NOS JUNTAR, TEMOSQUE NOS UNIR PRA, JUNTOS, LEVANTARO MOVIMENTO QUE NO PODE PARAR.UNIO ENTRE PUNKS DO BRASIL.

    O punk era basicamente uma ati-tude anarquista, niilista e delibera-damente contra. Suas caractersticasremontam ao Dada e suas manifesta-es subversivas e provocadoras, aoculto ao plgio e ao anonimato deGuy Debord, aos slogans dos situa-cionistas, viagem pelo submundourbano do movimento Beat america-no, e miscelnea social e de meios

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    a formao de lderes estudantis e

    acentuavam, ainda mais, o despre-paro geral da juventude suburbana.Alm disso, a economia local tinha so-frido um grave estrangulamento de-vido ao colapso do milagre brasileiroe a controvrsias internacionais: acrise do petrleo, a linha dura da eraThatcher + Reagan, os conflitos in-terminveis na Amrica Central, nasia e na frica, promovidos pelaincansvel interveno americana,a AIDS... A luta dos jovens por umasociedade igualitria e pacfica notinha dado muito certo. Ter esperan-a j no fazia mais sentido.

    PAPAI NOEL VELHO BATUTA - GAROTOSPODRES (1982)PAPAI NOEL, FILHO DA PUTA, REJEITA

    OS MISERVEIS. EU QUERO MAT-LO!AQUELE PORCO CAPITALISTA, PRESEN-TEIA OS RICOS E COSPE NOS POBRES.

    Quando chegaram periferia de SoPaulo no final dos anos 1970, o tdiocultural e a decadncia social dopunk ingls se transformaram numaforma de aceitao da condio demarginalidade social dos subrbios

    industriais e de rejeio cultura

    tropicalista nacional. Para os jovenssuburbanos da grande So Paulo eradifcil acreditar no mito tropicalistada nao otimista. No conviviamcom as belezas naturais do pas, notinham uma tradio folclrica daqual se orgulhar e no se encaixa-vam nas reivindicaes regionalistasde outras cidades brasileiras. Iam demetr ou nibus visitar as lojas de dis-cos e trocar figurinhas no centro deuma cidade cinzenta e sem graa,ou deselegante e discreta como asmeninas da msica Sampa, escritapor Caetano Veloso, em 1978.

    No comeo dos anos 1980, o largo SoBento e a Galeria do Rock, na Rua 24de maio, tinham tornado-se pontosde encontro de jovens suburbanos.

    Ambos eram lugares abertos, pon-tos de passagem que propiciavama vascularizao da atitude punk.No Largo So Bento, os encontrosaconteciam na estao do metr.Na Galeria do Rock, aconteciam naslojas de discos. Em 1978, Luiz Calan-ca inaugura a loja Baratos Afins,colocando discos do John Travoltano cho para os roqueiros pisarem.Em 1979, Fbio, futuro vocalista do

    QUE VOC VIVA. DESTRUA O SISTEMA

    ANTES QUE ELE O DESTRUA. NO ACRE-DITE EM FALSOS LDERES POIS TODOSELES VO TE TRAIR. ANARQUIA! OI!

    No Brasil, pra variar, vivia-se tem-pos de crise. Em 1975, o generalErnesto Geisel comeara o processode redemocratizao lenta, gradu-al e segura do pas, que culminacom as eleies diretas em 1989.O projeto poltico dos 21 anos deditadura militar foi enormementeeficiente em degradar o sistemaeducacional e desmobilizar o movi-mento estudantil no Brasil. A sededa UNE foi invadida e incendiadapelos militares em 1964, e obrigadaa atuar na ilegalidade. O CRUSP,fechado em 1968, s voltou para

    as mos dos estudantes em 1979.Em dezembro de 1968, o AI-5 esta-beleceu o estado de stio, proibindoqualquer tipo de reunio, determi-nando a censura prvia e suspen-dendo o habeas corpus para oschamados crimes polticos. Os cen-tros acadmicos foram substitudospelos diretrios acadmicos indica-dos pela diretoria da Universidade.Todas essas medidas dificultavam

    violncia do som, pelas poesias un-

    derground e pelas atitudes niilistas.

    Uns dizem que o punk comeou emNova Iorque, em 1975, com o Ra-mones, suas canes superaltas esuperrpidas. Outros, que comeouem Londres, em 1977, com MalcomMcLaren, o Sex Pistols e os slogansDo it yourself[Faa voc mesmo] eNo future [Sem futuro ou Nada defuturo]. Mas, independentementede seu local de origem, o punkalastrou-se como uma teia no ofi-cial por entre as periferias urbanas.A nao tradicional, definida porfronteiras geogrficas e polticas,deu lugar a um tipo de nao quecrescia por capilaridade, agluti-nando os resduos das sociedadesindustriais que constituam seus

    limites. Uma nao configuradavia msica, afinidades descober-tas, sentimentos de identidade cria-dos e instituies compartilhadas.

    ANARQUIA OI- GAROTOS PODRES (1982)UM DIA VOC VAI DESCOBRIR QUE TO-DOS TE ODEIAM E TE QUEREM MORTO,POIS VOC REPRESENTA PERIGO AO PO-DER!!! ANARQUIA! OI! ELES NO QUEREM

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    e sujeira. Eram expostas por meio

    da figurao e do texto, pelo uso dogrotesco, da linguagem urbana, demateriais precrios, de refernciasliterrias, musicais, populares ou eru-ditas. Caractersticas que so facil-mente reconhecveis no trabalho dejovens artistas norte-americanos eeuropeus transformados em estrelas,como Jean-Michel Basquiat e Fran-cesco Clemente.

    A pintura retratava o submundodas drogas e do rock ou do hip-hop que, no incio dos 1980, podiaser definido como o punk das perife-rias urbanas afro-europeias ou afro-americanas. Procurava acompanhara esttica tosca das canes punks.Misturava um estilo deliberadamentegrosseiro com um senso de humor

    negro e cido. Acreditava poderdestruir sua condio histrica de ob-jeto com qualidades estticas, feitopor uma elite intelectual para umaclasse dominante. Era malfeita, sujae rpida, para contrapor-se ideia depintura como virtuosismo. Era grandee pesada, sobre suportes precrios etransitrios (como os panos para de-corar shows) ou fixos (como os grafitesem muros e paredes), para opor-se

    pintura de cavalete feita para o pra-

    zer da burguesia. Era figurativa e nar-rativa, para contrariar o hermetismointelectual das artes abstrata, moder-nista e conceitual. Mesclava procedi-mentos dos grafites urbanos que, nes-ta poca, eram politizados, proibidose annimos, com referncias advin-das da histria da arte, da literatura,da msica e do teatro. Reutilizavasmbolos conhecidos em contextosbizarros, esvaziando-os de sentido.Desprezava regras histricas e va-lores estticos e utilizava figurao etexto, esperando atingir e relacionar-se de forma direta com observadoresque no tivessem conhecimento dasquestes da arte ou no estivesseminteressados na arte pela arte.

    A pintura era teatral. Era um palco

    de imagens, discursos e outras mani-festaes, juvenis, espontneas e in-consequentes. Alm da miscigena-o com o teatro e com a msica, apintura resvalava na literatura, daqual estava distante desde o comeodo sculo passado. Textos autorais,slogans polticos, citaes literriasou letras de msica eram incorpora-dos como imagem pictrica ou comottulo da obra.

    Olho Seco, abre a Punk Rock Discos.

    Em 1982, mesmo ano do festival doSESC, lanou o disco Grito Suburbano,iniciando o primeiro selo brasileiro demsica punk. As lojas de rock do cen-tro da cidade importavam discos devinil, copiavam-os em fitas cassete evendiam por preos acessveis.

    A condio voltil da msica facilitouainda mais a transmisso das ideias eprocedimentos punks que se alastra-ram subterraneamente, ramificando-se tambm pelas periferias de outroscentros urbanos. Em So Paulo, sur-gem as casas noturnas inspiradasno modelo do Melkweg, de Amster-dam. So casas para danar, assistira shows, cinema, performances,desfiles de moda etc.: o Napalm, nocentro da cidade, que fechou depois

    de alguns meses devido a uma brigade morte; o cido Plstico, na frenteda antiga Casa de Deteno de SoPaulo, no Carandiru; o Carbono 14 eo Madame Sat, na Bela Vista, queorganizavam exposies de arte,apresentaes de teatro, dana, per-formances e de bandas de rock detodos os tipos. Em 1985, o MadameSat organiza, na FUNARTE do Riode Janeiro, uma exposio chamada

    Conexo Urbana. A exposio tinha

    participao de 250 artistas, entremsicos, atores, poetas e artistasvisuais. Pretendia ser a primeira deuma srie de exposies levando aproduo artstica urbana para di-versas cidades do Brasil.

    BURACOS SUBURBANOS PSYKZE (1981)O DIA ANOITECEU E A NOITE ESCLARE-CEU A REPRESSO POLICIAL, O CU SEFECHOU E A CHUVA COMEOU A INUN-DAR ESTE PAS. FAVELADOS SE MUDAN-DO E A CHUVA INUNDANDO OS BURA-COS SUBURBANOS.

    No mbito das artes visuais, o em-blema da gerao 1980 foi a voltada pintura. Da mesma forma que a

    msica e os fanzines, a bad painting(ou m pintura, como ficou conheci-da por suas caractersticas pictricas)conecta artistas em diversos lugaresdo mundo que, independentementede nacionalidade ou lngua, discu-tem problemas semelhantes com es-tratgias semelhantes. As diferenassociais, a falta de futuro e a desilusocom o sistema eram apresentadascom muito peso, tamanho, rapidez

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    mento e esttica punk no foi alada

    para o domnio da histria da arte.Nem ento, nem agora. Tambm nasmostras retroativas recentes sobre aproduo artstica nos anos 1980, nose faz referncia aos punks ou s mani-festaes alternativas da poca.

    Por um lado, os problemas sociais, aviolncia e as desigualdades dos cen-tros urbanos formados no capitalismotardio no interessavam e no interes-sam, em nada, ao mercado de artenacional. S interessam ao mercadointernacional como uma forma pa-liativa de redeno da culpa geradapor sculos de explorao. Por outrolado, os jovens dos anos 1980 que noacreditavam no futuro e sua produovisual no sobreviveram at os diasde hoje. Alguns morreram, vitimados

    pela violncia, AIDS ou abuso das dro-gas. Alguns sobreviveram e tiveramque administrar um futuro inesperado,adequando-se ao sistema que conde-navam e morrendo criativamente.A produo visual desses jovens ex-futuros-artistas nunca foi documen-tada adequadamente. Afinal de con-tas, qual o sentido de se documentarqualquer coisa, se no existe futuro?

    HAVER FUTURO?- OLHO SECO (1980)

    MOS ESTENDIDAS, MOS TRMULASDE UM CORPO FRACO, MOSTRANDOSEMPRE A PALMA DA MO. HAVERFUTURO? OLHARES TRISTES, CORPOS EN-CARDIDOS APENAS OBSERVAM O MOVI-MENTO DESTA VIDA. HAVER FUTURO?HOUVE PASSADO, HAVER FUTURODESTES QUE OBSERVAM O MOVIMENTODA VIDA. HAVER FUTURO?

    O movimento e a atitude punk, ape-sar de pouco documentados, dei-xaram uma herana que pode seridentificada em algumas manifesta-es artsticas contemporneas lo-cais. A primeira delas a pichaopaulista. Apesar de ser vista comosujeira e vandalismo pela maioriada populao da cidade, umadas manifestaes artsticas urbanas

    mais interessantes da cena brasilei-ra atual. A segunda uma novaforma de arte de resistncia, surgidanos ltimos anos.

    Assim como o punk, o picho tam-bm um movimento cultural prove-niente da periferia e ramificado portoda cidade. Entretanto, lida com otecido urbano como um suporte, umterritrio selvagem ocupado por meio

    A presena do texto na pintura ou em

    seu ttulo ampliava o campo de sig-nificados das imagens. Funcionavacomo uma legenda aberta que pos-sibilitava a sobreposio de histriasvariadas, pictricas ou no, que liga-vam a pintura a outros contextosque no o da prpria pintura. Assimcomo as outras manifestaes visuais fanzines, capas de disco e moda , apintura apropriava-se, sem qualquerpreocupao com o politicamentecorreto, de elementos da alta cultura,cones populares, imagens obscenas,itens sadomasoquistas e smbolospolticos, que variavam desde susti-cas e crucifixos, at foices, martelos eestrelas de Davi.

    A SANTA IGREJA MERCENRIAS (1982)

    O HOMEM QUER SUBIR NA VIDA EM BUS-CA DE FAMA E PRAZER. DA ENCONTRACOM JESUS E SEU ESPRITO DE LUZ, VAIRENASCER. VAI SE FODER! SALVE! SALVE!A SANTA IGREJA! O HOMEM SE REVOLTAEM SUAS CONDIES, LUTA PRA PODERSOBREVIVER. DA ENCONTRA COM JESUS,E S POR ESTAR VIVO, VAI AGRADECER.VAI SE FODER! SALVE! SALVE! A SANTAIGREJA! O JOVEM REBELDE E CRIATIVOQUESTIONA E DESOBEDECE O PODER.

    DA ENCONTRA COM JESUS E AS LEIS

    DA SANTA IGREJA VAI OBEDECER. VAI SEFODER! SALVE! SALVE! A SANTA IGREJA! OHOMEM CONSCIENTE DOS SEUS DIREITOS,COM MALCIA, SABE SE CONDUZIR BEM,POIS ESPERTA A SANTA IGREJA, QUEGRAAS AOS INGNUOS SABE VIVER MUI-TO BEM! SALVE! SALVE! A SANTA IGREJA!

    As pinturas toscas e sujas dos anos1980 foram, contudo, rapidamenteapropriadas pelo mercado de arteinternacional. O discurso crtico dasobras foi esvaziado, deglutido e re-gurgitado na forma de fetiche damarginalidade e relquia da juven-tude. Alm disso, pelo fato de seusautores serem jovens do submundodas drogas e do rock, o mercado re-cuperou o mito do artista romntico

    marginal e problemtico , quevinha sendo arduamente questiona-do e banido pelas vanguardas artsti-cas das ltimas dcadas.

    No caso nacional, a pintura jovem va-lorizada pelo mercado de arte recm-formado oscilava entre um discursoinfanto-hedonista e uma recuperaodo formalismo greenberguiano. Aproduo plstica ligada ao movi-

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    VOC MESMO SEUS NOVOS DOGMAS,

    FAA VOC MESMO SEU MUNDO NOVO,FAA VOC MESMO SEU TAPA-OLHOS. 7EP TEM PBLICO PRA CONSUMIR, PREODE CAPA TEM PBLICO PRA CONSUMIR,BORN AGAINST TEM PBLICO PRA CON-SUMIR, MANLIFTINGBANNER TEM P-BLICO PRA CONSUMIR. EU CONSUMO,EU CONSUMO. EU ASSUMO, EU ASSUMO.FAA VOC MESMO SUA CENA POLTI-CA, FAA VOC MESMO SUAS EVASIVAS,FAA VOC MESMO SUA DEMAGOGIA,FAA VOC MESMO SUA HIPOCRISIA.

    1 COLEGRAVE, Punk., 2004, p. 18.

    2A nova arte de resistncia a que me re firo difere cate-goricamente da antiarte produzida atualmente. Esta uma repetio de estratgias de negao da arteusadas nos anos 1960-70, com o objetivo ingnuo de criticar o mercado de arte e o sistema capitalista.Na realidade, s est alimentando-o e perpetuando-o,pois prev a documentao de suas obras efmerasou processuais antes mesmo da obra se realizar. Estadocumentao transforma qualquer manifestaocontra em mercadoria, visto que feita como umprojeto de insero futura no mercado.

    de grafismos codificados e compreen-

    didos apenas pelos integrantes datribo urbana. Estes utilizam pseudni-mos que os identificam para seuspares, mantendo-os paradoxalmenteno anonimato pblico. Assinam comas iniciais da aliana a que perten-cem, diluindo entre todo o grupo aautoria e a glria pela conquista doespao pblico.

    Alm da criao de uma lngua ur-bana e da transformao da cidadeem suporte real de comunicao en-tre gangues, os pichadores paulistasdesenvolveram um procedimento euma grafia prprios. Por falta de re-cursos para comprar sprays, pintamcom rolinhos ou esponjas de engra-xar sapatos, amarrados em cabos devassoura. Pendurados pelas pernas

    ou equilibrando-se em parapeitos,conquistam os espaos pblicos fi-xando suas bandeiras grficas: pala-vras cifradas que imitam a verticali-dade da cidade.

    A segunda manifestao artsticacontempornea que pode ser rela-cionada com a atitude punk aproduo precria e banal de al-guns artistas jovens. Sua existn-

    cia mitolgica e autoria duvidosa

    burla os parmetros tradicionais devalorizao das obras de arte. Medi-ante o sequestro de discursos de re-sistncia como o da antiarte ou dossituacionistas, esses artistas realizamobras idiotas e aflitivas, que ilustramo absurdo de se fazer arte na socie-dade contempornea. Destruindo oautor atravs do plgio, da criaocoletiva e da divulgao incontro-lada, ludibriam os parmetros queestabelecem o valor das obras. Suasobras toscas e sem valor de troca nosfazem lembrar que a arte um jogosimblico de desestabilizao social,e no somente uma mercadoria semvalor de uso.2

    FAA VOC MESMO SICKTERROR (2000)

    FAA VOC MESMO O SEU PRODUTO,FAA VOC MESMO O SEU CONSUMO,FAA VOC MESMO O SEU TRABA-LHO, FAA VOC MESMO O SEU MER-CADO. FANZINE FEITO A MO TEMPBLICO PRA CONSUMIR, MAXIMUNROCKNROLL TEM PBLICO PRA CON-SUMIR, VICTORY RECORDS TEM PBLI-CO PRA CONSUMIR, HARTATTACK TEMPBLICO PRA CONSUMIR. FAA VOCMESMO SUAS PRPRIAS DROGAS, FAA

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    No incio de1993, o Pai

    morre de AIDS.A Me descobreser portadorado HIV. Caiem profunda

    depresso emorre poucotempo depois.

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    Os desenhos da adolescn-

    cia de Marcelo refletem asinfluncias de seu convviocom o grafite e os quadri-nhos. As experincias de suainfncia reaparecem emanotaes que se transfor-maro, a partir dos anos1990, em pixaes e tags.

    Aps a morte dos pais, Marcelo vai morar sob a

    guarda de sua av materna, na zona sul de SoPaulo. Sua vida muda completamente. Horrio pradormir, pra comer, pra estudar. O centro de SoPaulo, o CRUSP, o punk ficam longe. Outra cidade,outra poca, outro mundo.

    Marcelo acometido por uma nostalgia que oleva apatia e ao esmorecimento. Raramente saicom seu skate pela vizinhana, como se fosse umalheado em terras estrangeiras, flanando pelasruas cinzas e poludas das redondezas do LargoTreze. L, conhece um povo do hip-hop. apresen-tado ao mundo empolgante do rap engajado daperiferia paulista.

    Volta a frequentar o centro de So Paulo, no maisvestido de preto, com a estampa dos Ramones nopeito, mas com as calas caindo, uma camiseta GGe um moleton com capuz. Na mesma 24 de maioem que sua me vendia fanzines, Marcelo agoracascavilha tintas, canetes e sprays.

    Acaba por juntar-se grife Os+Im. Explora os edif-cios abandonados do centro em escaladas suicidas.Ocupa os muros dos subrbios com grafismos her-mticos. Encara o tecido urbano como uma selvaque pede para ser conquistada.

    Adolescncia

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    Marcelo explora as quebradas dacidade, encarnando o super-heri dasHQs de sua infncia. Em mergulhosquimricos de pontes e viadutos, tentasuperar a si mesmo, voar e vencer aurbe adormecida.

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    Marcelo constri sua iden-tidade visual, revestindo osmuros da cidade com suasassinaturas grficas. A partirde 1995, junta-se alianaOs+Im (Os Mais Imundos),uma organizao de vriosgrupos de pichadores dazona sul de So Paulo. Elesexecutam pichaes em lo-cais de difcil acesso comopontes, viadutos e arranha-cus com instrumentos pre-

    crios, tais como bastes deengraxar sapatos cheios detinta ltex e amarrados emcabos de vassoura. Um dosintegrantes do grupo seguraaquele que faz o pixo pelosps, de modo que ele fiquependurado de ponta-cabeae inscreva sua assinaturacodificada nos prdios dacidade.

    Em fevereiro de 1997, Marcelo atinge a maioridade.Para comemorar, sai prum rol com os amigos daaliana. Depois de umas muitas e outras vrias, ter-mina a noite numa violenta briga com os Os*Rgs,eternos rivais dOs+Im.

    Marcelo preso com outros pichadores no Centro deDeteno Provisria de So Bernardo do Campo. De-pois de quase dois anos aguardando a sentena, aca-

    ba sendo condenado a cinco anos e quatro meses.

    transferido de So Bernardo para a penitenciriade Marab Paulista, onde trabalha na biblioteca,na cozinha e no parque agrcola. Fica culto, forte ebronzeado...

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    O convvio com a alianaOs+Im infiltrou Marcelo

    na ilegalidade. A grifefrequentemente entravaem grandes brigas comoutras alianas, queacabavam em confrontosviolentos com a polcia. Issoacontecia, principalmente,quando a outra aliana eraOs*Rgs (Os Registrados doCdigo Penal), grupo arqui-inimigo dOs+Im. At hoje,h conflitos sempre que asduas faces se encontram.

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    Marcelo foi preso no dia emque completou 18 anos. De-vido a uma falha no sistemade assistncia judiciria doEstado, sua fiana no podeser paga.

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    So Paulo, dia 1 de outubro de 1992, 8h da manh.

    Aqui estou, mais um dia.Sob o olhar sanguinrio do vigia.Voc no sabe como caminharCom a cabea na mira de uma HK.Metralhadora alem ou de Israel.Estraalha ladro que nem papel.Na muralha, em p, mais um cidado Jos.Servindo o Estado, um PM bom.Passa fome, metido a Charles Bronson.Ele sabe o que eu desejo. Sabe o que eu penso.O dia t chuvoso. O clima t tenso.Vrios tentaram fugir, eu tambm quero.Mas de um a cem, a minha chance zero.Ser que Deus ouviu minha orao?Ser que o juiz aceitou a apelao?Mando um recado l pro meu irmo:Se tiver usando droga, t ruim na minha mo.Ele ainda t com aquela mina.Pode crer, moleque gente fina.Tirei um dia a menos ou um dia a mais, sei l...

    Tanto faz, os dias so iguais.Acendo um cigarro, vejo o dia passar.Mato o tempo pra ele no me matar.Homem homem, mulher mulher.Estuprador diferente, n?Toma soco toda hora, ajoelha e beija os ps,E sangra at morrer na rua 10.Cada detento uma me, uma crena.Cada crime uma sentena.Cada sentena um motivo, uma histria de lgrima,Sangue, vidas e glrias, abandono, misria, dio,

    DIRIO DEUM DETENTO

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    Sofrimento, desprezo, desiluso, ao do tempo.

    Misture bem essa qumica.Pronto: eis um novo detentoLamentos no corredor, na cela, no ptio.Ao redor do campo, em todos os cantos.Mas eu conheo o sistema, meu irmo, h...Aqui no tem santo.Rttt, preciso evitar que um safadofaa minha me chorar.Minha palavra de honra me protegePra viver no pas das calas bege.Tic, tac, ainda 9h40.O relgio da cadeia anda em cmera lenta.Ratatat, mais um metr vai passar.Com gente de bem, apressada, catlica.Lendo jornal, satisfeita, hipcrita.Com raiva por dentro, a caminho do Centro.Olhando pra c, curiosos, lgico.No, no no, no o zoolgicoMinha vida no tem tanto valorQuanto seu celular, seu computador.

    Hoje, t difcil, no saiu o sol.Hoje no tem visita, no tem futebol.Alguns companheiros tm a mente mais fraca.No suportam o tdio, arruma quiaca.Graas a Deus e Virgem Maria.Faltam s um ano, trs meses e uns dias.Tem uma cela l em cima fechada.Desde tera-feira ningum abre pra nada.S o cheiro de morte e Pinho Sol.Um preso se enforcou com o lenol.Qual que foi? Quem sabe? No conta.

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    Ia tirar mais uns seis de ponta a ponta (...)

    Nada deixa um homem mais doenteQue o abandono dos parentes.A moleque, me diz: ento, c qu o qu?A vaga t l esperando voc.Pega todos seus artigos importados.Seu currculo no crime e limpa o rabo.A vida bandida sem futuro.Sua cara fica branca desse lado do muro.J ouviu falar de Lcifer?Que veio do Inferno com moral.Um dia... no Carandiru, no... ele s mais um.Comendo rango azedo com pneumonia...Aqui tem mano de Osasco, do Jardim DAbril,Parelheiros, Mogi, Jardim Brasil, Bela Vista,Jardim Angela, Helipolis, Itapevi, Paraispolis.Ladro sangue bom tem moral na quebrada.Mas pro Estado s um nmero, mais nada.Nove pavilhes, sete mil homens.Que custam trezentos reais por ms, cada.Na ltima visita, o neguinho veio a.

    Trouxe umas frutas, Marlboro, Free...Ligou que um pilantra l da rea voltou.Com Kadett vermelho, placa de Salvador.Pagando de gato, ele xinga, ele abusa.Com uma nove milmetros embaixo da blusa.Brown: A neguinho, vem c, e os manos onde que t?Lembra desse cururu que tentou me matar?Blue: Aquele puta ganso, pilantra corno manso.Ficava muito doido e deixava a mina s.A mina era virgem e ainda era menor.Agora faz chupeta em troca de p!

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    Brown: Esses papos me incomoda.

    Se eu t na rua foda...Blue: , o mundo roda, ele pode vir pra c.Brown: No, j, j, meu processo t a.Eu quero mudar, eu quero sair.Se eu trombo esse fulano, no tem p, no tem pum.E eu vou ter que assinar um cento e vinte e um.Amanheceu com sol, dois de outubro.Tudo funcionando, limpeza, jumbo.De madrugada eu senti um calafrio.No era do vento, no era do frio.Acertos de conta tem quase todo dia.Ia ter outra logo mais, eu sabia.Lealdade o que todo preso tenta.Conseguir a paz, de forma violenta.Se um salafrrio sacanear algum,Leva ponto na cara igual FrankensteinFumaa na janela, tem fogo na cela.Fudeu, foi alm, se p!, tem refm.Na maioria, se deixou envolverPor uns cinco ou seis que no tm nada a perder.

    Dois ladres considerados passaram a discutir.Mas no imaginavam o que estaria por vir.Traficantes, homicidas, estelionatrios.Uma maioria de moleque primrio.Era a brecha que o sistema queria.Avise o IML, chegou o grande dia.Depende do sim ou no de um s homem.Que prefere ser neutro pelo telefone.Ratatat, caviar e champanhe.Fleury foi almoar, que se foda a minha me!Cachorros assassinos, gs lacrimogneo...

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    Quem mata mais ladro ganha medalha de prmio!

    O ser humano descartvel no Brasil.Como modess usado ou bombril.Cadeia? Claro que o sistema no quis.Esconde o que a novela no diz.Ratatat! sangue jorra como gua.Do ouvido, da boca e nariz.O Senhor meu pastor...Perdoe o que seu filho fez.Morreu de bruos no salmo 23,Sem padre, sem reprter.Sem arma, sem socorro.Vai pegar HIV na boca do cachorro.Cadveres no poo, no ptio interno.Adolf Hitler sorri no inferno!O Robocop do governo frio, no sente pena.S dio e ri como a hiena.Ratatat, Fleury e sua gangueVo nadar numa piscina de sangue.Mas quem vai acreditar no meu depoimento?Dia 3 de outubro, dirio de um detento.

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    Dirio de um detento

    um rap dos Racionais Mc,lanado em 1997, no lbumSobrevivendo no Inferno.Foi escrito em colaboraocom o ex-detento Jocenir.Aborda a rebelio do pres-dio do Carandiru, ocorridaem 2 de outubro de 1992,quando 111 presidiriosforam mortos pela polcia.O evento ficou conhe-cido como Massacre doCarandiru.

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    Marcelo ficatrs anos mo-fando em cana.

    Consegue umhabeas corpus,num processocoletivo de ummano pichador.

    Sai da cadeia evolta pra casada Av.

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    Aps sair da cadeia, Mar-celo abandona a aliana

    de pixadores e retoma osgrafites de sua adolescncia.

    Descrente da justia brasilei-ra e sem esperanas devir a conhecer um mundomelhor, assina a maioriade seus grafites como Ateu.Pinta sobre veculos elugares de passagem.Vive um momento de tran-sio, um intervalo entre aexperincia traumtica napenitenciria e um futuroignorado.

    Marcelo no se anima mais com nada. Fica horas

    sentado sozinho, tomando sereno, vento, chuva;sentindo o calor do sol, a melancolia do luar, opeso da poluio. Quando sai de casa, no meioda noite, munido de seus sprays velhos e de seuscanetes ressecados para pichar tneis empoeira-dos e trens enferrujados. A Av insiste para que elefaa alguma coisa til. Preste vestibular, arranje umemprego, tome jeito na vida. Ele s quer saber derespirar, ouvir msica e fumar maconha.

    At que um dia, bate uma saudade, e Marcelo re-solve ir procurar os amigos. Vai ao Centro CulturalSo Paulo, num encontro de pichadores, ver se en-contra algum das antigas. Mas em quatro anos,muita coisa mudou. Muita gente morreu ou desvi-ou-se dessa vida.

    Sem encontrar ningum conhecido e sem nada maisinteressante pra fazer, Marcelo resolve dar uma ban-da pelo Centro Cultural. Fica intrigado com o que v.A partir de ento, passa a frequentar as exposiesde arte, bisbilhotar a biblioteca, assistir aos concertosgratuitos, aos filmes, s peas de teatro.

    Formao

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    Numa dessas perambulaes peloCCSP, Marcelo conhece alguns inte-grantes de um movimento artsticocom pretensas atividades polticas(ou vice-versa), o Movimento TerroristaAndy Warhol (MTAW).

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    O Movimento TerroristaAndy Warhol (MTAW)

    recuperava as ideias domovimento homnimo sur-gido em So Paulo, no final

    dos anos 1970. Formado porjovens artistas e estudantes

    de arte e arquitetura devrias faculdades, o MTAW

    baseava-se nas aes deantiarte dos anos 1960-1970,

    na ironia niilista de AndyWarhol e na incoerncia

    entre a figura do artista popnorte-americano e a ideia

    de terrorismo. Realizavaintervenes no espao de

    instituies ligadas s artes,com o intuito de fragmen-

    tar sua estabilidade social,escancarar a apatia polticados artistas e desmascarar a

    falta de tica que assolavaas elites brasileiras.

    Na FAAP, o MTAW pintoucom cores fortes, em apenas

    15 minutos, todas as portasdas salas de aula da Facul-

    dade de Artes Plsticas.A ao foi um protesto con-

    tra as recentes reformas quepromoviam ambientes ora

    luxuosos e intocveis, ora as-spticos e conformados.

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    Marcelo interessa-se pelas aes do MTAW, mesmosem entender por completo a parte artstica. Asso-cia-se ao grupo em suas intervenes, passeatas eatentados, ora inofensivos e quase bobos, ora vio-lentos e perversos. Participa ativamente do plane-jamento de seus atos pblicos, e passivamente desuas discusses artsticas. Julga tediosos os inter-minveis debates sobre autoria, conceito, contextoe demais lenga-lengas.

    Em maio de 2000, Marcelo se apresenta como r epre-sentante do MTAW no Seminrio Movimentos Popu-lares e Universidade, organizado por estudantesda Universidade de So Paulo (USP), pela Centraldos Movimentos Populares (CMP) e pela Unio dosMovimentos de Moradia (UMM).

    Na Pinacoteca, numa dascomemoraes pelos 500

    anos do descobrimento doBrasil, os integrantes do

    MTAW, com camisetas emscaras de Mickey Mouse,

    ofereceram narizes depalhao para os convida-

    dos VIP. Alardeavam a

    grande palhaada que eracomemorar 500 anos decolonialismo, opresso, cor-

    rupo e bandalheira.

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    Marcelo entra em contato com diversos gru-pos de ativismo, desde movimentos sociais,pastorais e organizaes de base, at coleti-vos de mdia independente, arte e teatro.

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    Cerca de cinco mil pessoasparticiparam, na sexta-feira,dia 20 de julho de 2001, deum protesto contra a ALCA(rea de Livre Comrciodas Amricas). Os manifes-tantes incluam estudantes,representantes de partidospolticos de esquerda,membros da CUT (Centralnica dos Trabalhadores)e do MST (Movimento dasTrabalhadores sem Terra).Saram da Praa OsvaldoCruz, prxima ao metrParaso, e dirigiram-se ao

    Consulado dos EstadosUnidos, na rua Padre JooManoel. O protesto foi umadas manifestaes deflagra-das pela reunio do G8, emGnova, Itlia. Apesar dealguns punks e anarquistasprovocarem o policiamento,o evento na capital paulistacomeou e terminou semincidentes.

    Em dezembro, Marcelo colabora na fundao cole-tiva do Frum Centro Vivo, organizao que articu-lava as pessoas e as organizaes que lutam pelodireito de permanecer no centro da cidade, trans-formando-o num lugar melhor e mais democrtico.

    No ano seguinte, participa de grande nmerode manifestaes. Em janeiro, viaja para PortoAlegre por ocasio do Primeiro Frum SocialMundial. Em fevereiro, toma parte do F6, mani-festao contra a homofobia. Em maro, ocupauma festa da Nokia, no MAC da USP, em protestocontra a apropriao do sistema universitrio porempresas privadas. Em abril, protesta contra acriao da ALCA. Em julho, contra o encontro doG8, em Gnova,...

    A Av vive de cabelo em p. Morre de medo deque ele seja preso novamente.

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    (Senhora recostada numa chaise lon-

    gue Luis XVI, vestindo um pegnoircor-de-rosa e sandlias de salto damesma cor. Ela fala num telefoneapoiado numa mesinha redonda demahogany. Um abajur Lalique ilu-mina a cena. Na parede, um grandemural do artista americano Sol Lewittcompe o cenrio.)

    Voc tem que ir. Todo mundo vaiestar l!

    (Voz feminina em of f) Ah, mas daltima vez que fui a um coqueteldesses, foi horrvel! Foi naquela ex-posio no Giardino, em Venezia. Es-tava um calor indecente, lotadssimode gente da pior qualidade e, aindapor cima, destru meus Jimmy Choometlicos naquele piso de pedrinhas

    brancas horroroso...

    Mas este coquetel vai ser timo! Vaiser um petit comitcom convidadosselecionadssimos. Alm do mais, novai ser preciso andar quilmetros sobum sol de amargar: noite e obvia-mente h manobristas no local.

    Voc no foi no outro coquetel, na

    semana passada...

    Voc foi??!! No acredito que vocfoi na casa daquela p pontinhos!!!Voc sabe que eles so rivais, n?Vai parecer que voc est apoiandoela...

    Ai, que coisa... E depois, a festinhaera na casa dela... Porque ele temque escolher esse lugar to fora demo? no centro, no verdade? Londe tem um monte de drogados...Dizem que um ambiente pesads-simo... Cinemateca, no ?

    - Pinacoteca.

    - . Foi isso que eu quis dizer.

    CENA 1 CENA 2(Vrios estudantes de faculdade es-

    to reunidos na sala esfumaada deum sobrado velho. As paredes tmp direito alto, infiltraes, cartazese rabiscos. Os mveis so dois col-ches, algumas almofadas, uma an-tiga prensa de gravura, uma banca-da de marcenaria e um aparelho desom. Vrios livros, discos e CDs estoempilhados pelos cantos.)

    No meu tempo era da hora. Podiaentrar quem quisesse na aula quequisesse. Se a aula do professor eralegal, tava sempre cheia de bico. Edizem que, nos anos 1980, tinha ummonte de grafites nas paredes e queo jardim era aberto pra quem qui-sesse ir passear com cachorro, andarde skate... Hoje em dia no podenem bater um prego na parede!

    Grafite ento, nem pensar! Tem queestar tudo branquinho, bem nosconformes.

    E outro dia que uma mina foi fazeruma performance e dois seguranasficaram seguindo ela, com medo queela tirasse a roupa!

    U? E o nu artshtico!!?? E o Renoir e

    os truta machista dele, l da histriada arte? J se esqueceram deles?

    , cara. Neguinho pelado nem pen-sar! Acho que faz parte da poltica delimpeza deles.

    Meu, e aquela catraca pra entrar?Tambm poltica de limpeza? Pa-rece um clube, sei l. E a voc entrae parece um shopping: granito, dou-rado, cmeras de vigilncia e ummonte de loira de cabelo liso.

    . Pra entrar, tem que dizer quevai no museu, no teatro ou pagaralguma dvida. A, sim, eles deixamvoc entrar correndo. Pra assinar ocheque, sempre pode.

    Eu queria soltar umas mil bombasl! Ia voar merda dourada pra tudoquanto lado!!

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    (Mulher sentada na frente de um Ma-

    cintosh branco, sobre uma mesa detrabalho branca, numa sala branca.Entra um homem de terno branco e sa-patos coloridos. Vrias pinturas colori-das, emolduradas em branco, esto en-costadas na parede. No centro da sala,h uma jaula de ao inox de aproxi-madamente 200 x 100 x 100 cm.)

    ele Voc vai pra Nova Iorque, mon-tar seu trabalho?

    ela Ainda no sei se vou participarda itinerncia... voc vai?

    ele U, por que no?

    ela E esse escndalo todo, no vaidar sujeira?

    ele Ah! E voc acha que vai fazeralguma diferena voc boicotar aexposio? No acredito que voc to ingnua! S vai acabar sobrandopra voc mesma.

    ela Voc acha que todo mundo vaitopar continuar fazendo parte da ex-posio, mesmo depois de tudo?

    ele Claro! Vamos pro MOMA e etc.

    Depois de uns anos, ningum vai selembrar de mais um escndalo decorrupo no Brasil. E depois, umbanco ou o outro... D tudo na mes-ma, ou voc acha que o outro banco do bem?

    ela Ai, que eu no entendo nadadessas coisas...

    ele Vai ter um catlogo lindo, e onosso trabalho vai estar mais valori-zado e inserido em todas exposies,revistas e colees internacionaisque importam! E depois todo mundovai estar l...

    ela Ai, t bom, t bom... E a, porfalar nisso, voc trouxe um teco?

    CENA 3 CENA 4(Uma punk toda no visu conversa

    com um rapaz gordinho de camisapolo sentado na calada. A rua estdeserta mas cheia de panfletos, vi-dros quebrados, pedras e fumaa.)

    Acho que teve tipo uns 100 feridos.A polcia foi super truculenta. Pareceque tudo o que fizemos no valeu denada: as oficinas de sit in, a ocupa-o de rua no violenta... Ela veiomesmo disposta a silenciar os atos...

    , a gente no fala a mesma ln-gua. Voc acredita que acabaramde me ligar de um hospital aqui pertoda Paulista, contando que os mdi-cos se recusaram a atender os mani-festantes?!

    Pior que isso, s a cara de pau do

    coxinha dando entrevista. Ele disseque perdeu a identificao duran-te a baguna... Sei... E o que vocachou dos sindicatos?

    Putz, foi difcil desde o comeo. Denovo, a gente no se entende. A ga-lera autnoma temeu comprometeressa tal autonomia, se envolvendodemais nos esquemas burocratizados.

    Eu t ligada. A gente tava pensan-

    do era numa manifestao tipo pac-fica, com street party... mas os carasainda esto nesse mesmo esquematipo carro de som e liderana dan-do a linha pro movimento.

    . Mas eu acho que a luta antiglo-balizao no acaba aqui e que agente t caminhando pra um enten-dimento, na organizao e at naforma dos atos...

    Haha! Foda que entidade ligadaaos ruralistas manja muito isso de tra-torar decises...

    . difcil dialogar com quem falamais alto porque tem um carro desom... Bom, mas nossas divergnciasinternas no vo ajudar ningum na

    fila do hospital, n? Bora l?

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    Influenciado pelosamigos do MTAWe pressionado

    pela Av parafazer uma facul-dade qualquer,pelo amor deDeus!, Marcelo

    decide prestarvestibular paraArtes Plsticas.

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    No incio de 2002, Marcelo aprovado no curso no-

    turno da Faculdade de Artes Plsticas da FundaoArmando lvares Penteado (FAAP). Receia matri-cular-se, devido s mensalidades exorbitantes. En-tretanto, como tinha rodado nos exames da USP eda UNESP, fica sem opo. Decide tentar uma bolsae pagar pra ver.

    Na FAAP, descobre a histria da arte e seu mercadomilionrio. Toma conhecimento tanto das investidasda neovanguarda e da antiarte contra os sistemasde poder, quanto do vnculo desses mesmos siste-mas com a produo, mercantilizao, manuten-o e divulgao das obras de arte.

    Em junho de 2002, convidado, com outros vintejovens artistas e estudantes de arte, a participar daexposio inaugural da Galeria Vermelho.

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    A FAAP foi fundada em1947, num prdio classicistadesenhado por Auguste Per-ret. Abriga o Museu de ArteBrasileira desde 1961 e aFaculdade de Artes Plsticasdesde 1967.

    Desmanche

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    Cidade acredita ser capaz de coordenar sua vivn-cia nas ruas, transpassada por violncia, anonimatoe adrenalina, com sua recente experincia com agrande arte, protegida, autoral e reflexiva.

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    Os primeiros trabalhos deCidade, na FAAP, eram im-pregnados de uma violnciapattica e regidos por umhumor negro simplrio. A s-rie de aes Desencubandoe o vdeo #10, por exemplo,relacionam nomenclaturas,procedimentos e formasartsticas com condutas evocabulrios cotidianos.

    Em Desencubando, de 2002,

    Cidade ataca a forma racio-nal perfeita, paradigma dasartes moderna e conceitual:o cubo. Cubos de diversosmateriais so destroadospacientemente numa sriede aes privadas, filmadasem vdeo. No primeiro vdeoda srie, um cubo feito decarne macerado cominstrumentos de marcenaria,at virar um tecido disformeque devorado por umco. O massacre resulta nadestruio da forma, nadesapario do corpo e,posteriormente, na deglu-tio derradeira das sobras.Nos demais vdeos da srie,Cidade destroa cubos deferro, madeira e gordura,entre outros.

    Em #10, tambm de 2002,Cidade grampeia o prprio

    brao, num cenrio minima-lista. O instrumento usadona academia de artes paragrampear folhas, telas e teci-dos, sobre a madeira ou aparede, utilizado sobre umsuporte, simultaneamenteinusitado e vulgar: o corpodo artista.

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    Em Artista descendoa escada no3, Cidadeexplicita sua admiraopor Marcel Duchamp.Protegido apenas comum capacete de bicicleta,serra as pernas de umaescada de madeira queacabara de subir, despen-cando vertiginosamente.A releitura tragicmica daobra-prima Nu descendo aescada no2de Duchamp

    subverte a posio doartista, transformando-o emmodelo de uma empreitadapattica de autossabotagem.A tarefa rdua de serrara escada culmina com aqueda do artista/modelode seu pedestal precrio.

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    A partir da metade do sculo XX, a

    obra de arte adquire uma naturezacada vez mais complexa. O ter-ritrio das artes visuais se expandepara outras reas artsticas, comoa msica, a literatura e o teatro, einvade os campos da arquitetura,da cincia e do desenvolvimento so-cial. Nessa situao de contamina-o entre meios, reas e discursos,como se estabelecer uma definioobjetiva para a obra de arte?

    At a 2a Guerra Mundial, existiamcritrios formais objetivos para definiruma obra de arte. As caractersticasda estrutura plstica de um objetodeterminavam sua qualidade artsti-ca. O recm-criado mercado de arteusufrua de critrios objetivos, comomaterialidade, unicidade e autoria,

    para estimar comercialmente o ob-jeto artstico. Uma obra de mrmorevalia mais do que uma de feltro;uma pintura, mais do que um mlti-plo; e uma escultura feita por ummestre, mais do que uma feita porum de seus discpulos.

    No entanto, os experimentos artsti-cos ocorridos a partir do ps-guerraocasionam a expanso da definio

    de arte, flexibilizando suas fron-

    teiras com outros campos, como acincia, a filosofia ou simplesmentea vida cotidiana. Com as pesqui-sas artsticas de nomes como YvesKlein e James Lee Byars, e, no Bra-sil, Hlio Oiticica e Lygia Clark, aobra de arte deixa de ser apenasum objeto a ser possudo para tor-nar-se um sistema de relaes a serexperimentado. J em 1962, Kleinapresenta Zone de sensibilit pic-turale immatrielle, anunciando adesnecessidade do objeto materialpara a fruio da experincia dearte. A partir de ento, vrios artis-tas desmontam ainda mais a nootradicional de obra de arte. AndyWarhol radicaliza a proposta du-champiana de que qualquer objetopoderia ser arte. Com as caixas de

    sabo Brillo Box, de 1964, Warholrelativiza a importncia da forma,fragilizando os limites entre obje-tos artsticos e bens de consumo.Joseph Beuys invade o territrioda sociologia, pregando que todohomem um artista, que todo tra-balho fsico um trabalho criativo eque a criatividade o capital gera-dor dos bens mais importantes parao fortalecimento de uma economia.

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    MARROM

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    A exposio Marrom, na

    Galeria Vermelho, aconte-ceu de 7 de junho a 10 deagosto de 2002. Consistiuna ocupao do espaoda galeria com conversas,palestras, jantares, festas,concertos musicais e inter-venes artsticas, efmerase experimentais. Delaparticiparam jovens artistase estudantes de arte cujaspropostas questionavam oslimites da obra de arte e aspossibilidades de se fazeruma arte experimental,utpica e subversiva. Amostra alardeava a crenainsistente na arte como umvetor capaz de interagir,questionar, subverter ousimplesmente misturar-se realidade poltica eeconmica.

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    Finalmente, ainda nas dcadas de 60

    e 70, nos Estados Unidos, os artistas dachamada neovanguarda comeama formular uma teoria e prtica dearte que se concentrava menos naexecuo de um objeto que fosseformalmente pertinente e terminadodo que numa arte que revelasse osprocessos de sua execuo ou ine-xecuo. A relao tempo-espaotorna-se um fator fundamental paraa experincia de arte. Alm de reali-zarem trabalhos efmeros, os artistassituam a obra fora do espao tradicio-nal da arte, ressaltando a importn-cia da durao e do percurso paraque ela seja compreendida.

    A obra de arte definida como umaestrutura slida e compacta com ummnimo de estabilidade, unidade e

    composio desaparece, tornando-se difusa e quase imperceptvel. Suaaura agonizante se dissipa por com-pleto devido utilizao cada vezmaior de tecnologias industriais. Apossibilidade de reproduo de umobjeto e de uma imagem indefinida-mente, sem prejuzo de qualidade es-ttica, faz a obra de arte totalmenteimpessoal e extingue a relao indi-cial que esta mantinha com o artista.

    Ele, muitas vezes, no chega nem

    mesmo a toc-la, terceirizando suaexecuo e montagem. Alm disso,a matriz digital, diferentemente dasutilizadas nas prticas tradicionaisde gravura ou fotografia, alm depoder ser reproduzida, no se des-gasta com uma tiragem grande.Tanto a matriz, quanto o original eas cpias passam a ser formal e con-ceitualmente idnticos.

    A estrutura plstica de uma obradeixa, portanto, de ser determinantepara seu estatuto de arte. Assim comoum objeto artstico pode ser igual a umartefato domstico, industrial ou mes-mo a um acidente natural, uma ima-gem de arte pode ser formalmenteidntica a uma imagem documental,publicitria ou cientfica. Uma obra

    de arte passa a ser qualquer coisafeita por um artista. Essa indefinioda obra de arte faz com que o mer-cado alicerce seus paradigmas sobrea crena renascentista na condiogenial do artista e em seu toquemgico. Enquanto no Renascimentoessa crena se reportava a uma habi-lidade tcnica do artista, hoje em diaela fundamenta-se apenas na sua in-teno em fazer arte.

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    O nome Marrom geleia

    indefinida de matizes suge-ria a mistura anulatria decores com significados polti-cos, artsticos ou simblicos,como o verde e amarelo danao, o branco do espaoexpositivo tradicional, opreto do lugar de formaoda imagem fotogrfica e overmelho das revolues,das vanguardas, e do nomeda galeria. Ambicionavadespertar uma sensaode indefinio, sujeira,merda, e conectar-se, assim,ao Brasil diarreiade HelioOiticica. Em seu texto de1969, (in Arte Brasileira Hoje,org. Ferreira Gullar), Oiticicadefine a formao brasileiracomo diarrica. Declaraque para se construir algono Brasil necessrio se re-conhecer a falta de carterde sua formao e dissecar

    as tripas dessa diarreia, ouseja, mergulhar na merda.

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    Devido vulgarizao do objeto

    artstico, essa inteno do artista tor-na-se essencial para a definio dearte, e sua marca registrada, funda-mental para a valorizao da obra.A autoria passa a ser determinantepara a avaliao de um trabalhoartstico. Um objeto qualquer maisvalorizado do que outro por ter sidomagicamente tocado por este ouaquele criador. O artigo de arte dis-tingue-se, assim, de seu similar noartstico, porm confunde-se com ofetiche ou com a relquia histrica.Objetos banais so colocados emredomas de cristal e passam a sertratados como pedras preciosas e ra-ras, por terem sido tocados por deter-minado artista, numa determinadapoca. Coisas como um guardanapocom a caligrafia de Basquiat ou um

    carto postal com a assinatura deBeuys passam a ser consideradasfalaciosamente obras de arte. O quediferencia esses objetos do capaceteassinado de Ayrton Senna ou do re-trato autografado de James Dean?

    Obras efmeras, criaes coletivas,intervenes especficas e todo tipode experincias contaminadas soalgumas das inmeras tentativas de

    resistir reificao da experincia de

    arte e de confrontar a recuperao devalores antigos como a ideia renas-centista do toque mgico do artistagenial. Apesar de todas essas inves-tidas que, nos ltimos 50 anos, trans-formaram radicalmente as noesde obra de arte, o mercado continuaditando as regras da produo artsti-ca. Alm de atribuir excessivo valor afatores obsoletos e extrnsecos obrade arte contempornea como auto-ria, unicidade1e materialidade2, es-timula a proliferao dessas mesmasmanifestaes artsticas, que surgi-ram originalmente com o objetivo decritic-lo ou subvert-lo.

    As tais obras efmeras, criaes co-letivas, intervenes especficas eexperincias contaminadas trans-

    bordam por todas as partes, adqui-rindo o mesmo estatuto que vieramcondenar. A experincia artsticacontempornea, na realidade, espe-lha o capital fictcio. Ambos podemser definidos como um processo dereproduo da vida social por meioda produo de mercadorias. Asregras so concebidas de maneiraa garantir que ele [ou ela] seja ummodo dinmico e revolucionrio de

    A exposio pretendia

    recuperar a ideia do espaoexpositivo operacionalidealizado por Walter Zanininos anos 1970. Zanini foi ocurador de uma srie deexposies no Museu deArte Contempornea daUniversidade de So Paulo,chamadas Jovem ArteContempornea(JAC). Eleacreditava que o museu de-via ser um espao operacio-nal que pudesse abrigar aarte conceitual, processual edesmaterializada que vinhasendo feita. Em 1972, na VIJAC, os espaos expositivosforam loteados e sorteadosentre os artistas inscritos, ge-rando uma exposio ecl-tica e polmica. O projeto deGenilson Soares e FranciscoIarra, por exemplo, era ode incluir, em um lote deexcludos, artistas que eles

    consideravam importantese que no tivessem sidocontemplados no sorteio.

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    organizao social que transforma

    incansvel e incessantemente a so-ciedade em que est inserido[a].3Mascara, fetichiza e cresce medi-ante a destruio criativa. O capitalfictcio, assim como a obra de artedesmaterializada, gira sem lastro.Agora, a mercadoria j no maisa experincia de arte, difusa e im-palpvel, e sim o prprio artista,substitudo a cada nova estao.A produo contnua de jovens ar-tistas mantm o novo sempre sobcontrole sempre igual e priva amodernidade de seu direito a se tor-nar antiguidade.4

    Cabe aos artistas contemporneosestabelecer uma resistncia contraa reificao da experincia de artee a mercadizao do artista. No

    devem se contentar com a aborda-gem capitalista e perversa da obrade arte. Devem, por meio da criaoe divulgao de espaos para de-bates e troca de reflexes sobre o ter-ritrio expandido da arte, lutar pormanter as conquistas das geraesanteriores, aprender com seus desa-certos e procurar, assim como seusantecessores, ampliar ainda mais asfronteiras da arte.

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    1 O estabelecimento de limites reproduo ilimitadade uma obra de arte produzida por meios tecnol gicos um dos artifcios de valorizao criados pelo mer-cado, com a finalidade nica de atribuir-lhe um valorpostio de raridade.

    2A desmaterializao da obra de arte suscita a ne-cessidade da documentao que acaba por substitu-la como obra, deturpando seu estatuto artstico origi-nal. A documentao de uma experincia de arte ,portanto, problemtica. Por um lado, ela mantm a di-menso utpica da obra por remeter a ela de maneiraincompleta. Por outro, dilui essa dimenso ao tornar-seuma relquia ou um fetiche.

    3 HARVEY, Condio ps-moderna, 1992, p. 307.

    4 Baudelaire descrevia a tarefa da arte como um fazerpor merecer se tornar antiguidade (BENJAMIN, CharlesBaudelaire, 1989, p. 80).

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    Na Marrom, Cidade coordenouo happening Guerra tica, noltimo dia da exposio. Elegeu,entre amigos e jovens artistas,duas equipes adversrias: o timeda arte, cujo territrio era o espaode exposio e a farda era umacamiseta branca, e o time darua, vestido com camiseta cinza ealojado fora do porto de entradada galeria. Muniu ambos os timescom mscaras, culos protetores,estilingues, armas e munio dejogos depaintball. Fixou umabandeira em cada territrio, quedeveria ser arrancada pelo timeadversrio. Em poucos minutos,o time da rua invadiu e ocupouo territrio da arte, maculandode laranja as vestes e as paredesbrancas do adversrio, roubandosua bandeira e vencendo aguerra-jogo entre arte e vida.Para Cidade, Guerra ticarepre-sentava a luta simblica entreo mundo da arte e o mundo davida. A vitria do time da ruafoi um sintoma da morte da artecomo resistncia efetiva ao poder,j que, ao ocupar o espao daarte, a vida transforma-se rapi-damente em fetiche simblico ourelquia histrica.

    Aps a exposio, Cidade chega concluso de que toda experin-cia artstica, por mais subversivaque seja, engolida ainda recm-nascida pelo mercado da arte.Desiste de seus ideais de mesclara ilegalidade arte e percebe ainefetividade da antiarte, na atua-lidade. Acredita que os artistas-marginais da dcada de 1960,a quem tanto admirava, foramtransformados em heris parapoderem ser domesticados pelosistema capitalista. Passa a realizaraes sem pretenses artsticas oupolticas. Brincadeiras infantis, oraarriscadas, ora singelas, de vio-lncia idioptica e marginalidadesem nenhum herosmo.

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    QUALQUER ATO DE SUBVERSO,

    QUANDO ASSUMIDO PELO CON-TEXTO ARTSTICO, PERDE OCARTER TRANSGRESSOR E TOR-NA-SE APENAS MAIS UMA MER-CADORIA. MC

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    Em Encarn-ao, de 2003,Cidade debocha do usode drogas para alcanarestados alterados de cons-cincia. Registra rpidasperdas de domnio do corpoe da mente, conquistadaspor meio de hiperventi-lao. Destri-se a si e aseus companheiros desesso, alterando o lugardo entorpecimento na arte:de instrumento de criaoda obra para atividade dedestruio (fsica e moral)do artista e/ou do modelo.

    Em Desenho + livre,tambm de 2003, Cidadetatua o brao de um amigocomo se estivesse fazendoum rabisco numa folha depapel, sem um modelo,luvas ou preparao ade-quada. A liberdade infantildo desenho se sobrepe inconsequncia juvenil da

    tatuagem caseira. A atitudepunk que preconizava aausncia de futuro e o faa-voc-mesmo reaparece semrevolta e sem ideologia.Cidade aceita e acomoda-se inexistncia do porvir.

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    A partir de 2003, Cidade incorpora em seu traba-

    lho procedimentos que, apesar de marginais ouilegais, so comuns entre os jovens. Explora prti-cas como as tatuagens e as drogas que se tor-naram moda, transformando-se num simulacrode marginalidade. Ridiculariza a proliferao, en-tre seus colegas de faculdade, de tatuagens iguaiss da mfia japonesa e de roupas inspiradas nostraficantes dos guetos americanos.

    Sem emprego fixo, Cidade vive de bicos, que vodesde a montagem de exposies at assistnciapara artistas. Tem dificuldade para pagar as exor-bitantes mensalidades do curso de artes plsticas.Inadimplente, passa a frequentar as aulas clan-destinamente, burlando o sistema de vigilnciarepressor da faculdade. Seus trabalhos transfor-mam-se num reflexo de suas experincias. Identi-ficam-se, muitas vezes, mais com atos de sabota-gem do que com arte.

    00

    Em 1999, o artista espanholSantiago Sierra tatuou umalinha de 250 cm sobre seispessoas remuneradas com

    trinta dlares cada uma,em Havana. Seis jovens

    cubanos se deixaram tatuar,sem nenhum engajamentoideolgico. O artista escan-cara a natureza niilista do

    contrato de trabalho atual eos jogos de poder implcitosna arte. Porm, Sierra nofez mais do que perpetuar

    uma situao colonialista deexplorao do mais fraco.Apesar do consentimentodos jovens cubanos, elesestavam em situao de

    inferioridade em relaoao artista. Para um artista

    espanhol, trinta dlares cor-respondem a uma refeio.

    Para um cidado cubano,a dois meses do salrio de

    um mdico. A desigualdadeentre o empregador e o

    empregado retoma inadver-tidamente uma tradio deexplorao. Cidade repete

    a ao de Sierra. Porm, nolugar da remunerao, surge

    a celebrao; do discursopoltico, surge o humor negro

    de um suicdio grupal mal-feito; do formalismo da linha

    negra, irrompe a violnciailustrativa do corte vermelho;

    da arte, assoma o burlesco.

    Em Suicdio burro (a.k.a.Sierra Benetton), de 2003,

    Cidade realiza uma cerim-nia coletiva, na qual uma

    linha vermelha tatuada naparte superior do pulso de 6

    amigos. A obra uma stira obra do artista Santiago

    Sierra e campanha publi-citria da Benetton. Ilustrauma tentativa de suicdiomalsucedida o corte nolado errado do pulso e

    declara a burrice suicidada prpria ao o perigode contaminao pela uti-

    lizao da mesma agulha etinta em todas as tatuagens.

    201

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    Setenta empresrias e socialites se

    reuniram numa manso do JardimEuropa, na semana passada, paraouvir uma palestra do filsofo doluxo Silvio Passarelli, coordenadordo MBA da FAAP sobre o tema. En-tre flutes de Chandon ros, cum-buquinhas de bob de vieira e ca-maro e copinhos com salmo, relishde beterraba e ovas, elas assistiram palestra O Seu Tempo o Seu Luxo,em que o economista, a convite darevista Wish Report, fala sobre o tem-po, o marxismo. o hedonismo e oprazer inigualvel do consumo semgrilos ou culpas de qualquer espcie.

    A predominncia do pensamentomarxista impregnou o sculo 20,disse o professor. Depois da supera-

    o do materialismo histrico, todosviveriam felizes e iguais. E eu mepergunto: como, se um tem cabelosloiros, o outro moreno; um tem Q.I.de inteligncia bruta maior, outrotem inteligncia emocional?

    J o atual liberalismo, diz, inauguroua era do padro individual de esco-lhas. Mas preciso tempo. De nada

    adianta acumular os bens se no

    temos tempo de usufru-los, disse oprofessor. isso mesmo! isso mes-mo!, gritava, batendo palmas, aempresria Yara Baumgart, seguidapelas demais mulheres presentes.Ser a grande batalha do sculo 21:consumir e gozar, consumir e gozar! Eno estocar, completava Passarelli.Sabe a Imelda Marcos [ex-primeira-dama das Filipinas] e os 500 cala-dos? Ser que elas os conhecia a to-dos? Ser que estabeleceu com cadaum deles uma histria pessoal?

    A anfitri, Carin