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r ao Maracanã é um ritual muito mais com- plexo do que um leigo sem time pode imagi- nar. Não significa ape- nas ir ao estádio. Implica várias outras coisas, como o encontro com os amigos no bar, o chop- pinho gelado... o gramado, as bandeiras, os santinhos, terços e outras superstições e, é claro, as t o rcidas. Sem elas, um jogo não acontece. O apito do juiz até pode ser o barulho que anuncia o começo da partida. Mas, o ruído que movimenta o jogo vem do coro uniforme dos torc e- d o res. “Não existe nada igual ao prazer de entrar pelo ‘Maraca’, subir aquelas rampas já ouvindo o grito da torcida, e quando chego à arquibancada, aquela imagem maravilhosa: o grama- do, com todos os jogadores em campo”, narra Andressa Leite, 21 anos. “A torcida é um espetáculo dentro do clássico. Todos gritan- do a mesma música como um hino. É lindo”, completa Andre s- sa, que só foi assistir a um jogo de seu time no estádio há um ano. E não é só de hinos que vivem as torcidas. Muitas vezes, t rechos de músicas também são adotados como gritos de guerr a contra o time adversário. “Le- vantou poeira!’ Só de escutar eu já fico todo arrepiado”, co- menta Paulo Carrilho que, quando não está torcendo, pode ser encontrado lecionando físi- ca na UFRJ. Para a grande maioria dos cari- ocas – jogadores e torcedores, jovens e velhos – ir ao Maracanã é um espetáculo à parte. O está- dio, com 54 anos, passou recente- mente por uma reforma, mas já esteve ameaçado de ser demolido para a construção de outro mais moderno. Hoje, ele continua a dar alegria aos cariocas e tem muita história para contar. Foi o palco onde quase 200.000 pes- soas choraram a derrota brasi- leira de 1950 para o Uruguai, onde ocorreram gols fantásticos como o de Roberto Dinamite, em 1976, contra o Botafogo. Presen- ciou glórias e conquistas ines- quecíveis. Enfim, brigas, amor, ódio e felicidade, confraterniza- ção e patriotismo. “O Maracanã não é um sim- ples estádio de futebol, e só quem já viveu uma final de Maracanã lotado entende esta afirmação. É comparável somente à arena de gladiadores do Império Romano. Com uma diferença fundamen- tal: os romanos traziam a morte, enquanto os ‘gladiadores’ moder- nos, como Pelé, Garrincha, Zico, Roberto Dinamite e tantos outros, trouxeram e trazem para sempre vida e felicidade a uma multidão de apaixonados”, filosofa o estu- dante de direito Alex de Souza. Seja qual for o time, o carioca veste a camisa e cria um apar- theid social, em que cada torcida possui seu gueto, seu bar. Que o diga a criatividade das torcidas contrárias ao Flamengo, que pa- rodiaram a música “Poeira”, de Ivete Sangalo, (adotada pelos fla- menguistas) e a transformaram em: “Favela...favela... favela... silêncio na favela”. Peneirando o p reconceito racial e social da ANDRÉ BÜRGER, JOANA JAHARA E LETÍCIA FRANCO Domingo, eu vou ao Maracanã Com muito prazer 17 A dor e a alegria de torcer “Se o Vasco perde no domingo, é cara emburrada na segunda” Daniel Silva I

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r ao Maracanã é umritual muito mais com-plexo do que um leigosem time pode imagi-n a r. Não significa ape-

nas ir ao estádio. Implica váriasoutras coisas, como o encontrocom os amigos no bar, o chop-pinho gelado... o gramado, asbandeiras, os santinhos, terços eoutras superstições e, é claro, ast o rcidas. Sem elas, um jogo nãoacontece. O apito do juiz atépode ser o barulho que anunciao começo da partida. Mas, oruído que movimenta o jogovem do coro uniforme dos torc e-d o res. “Não existe nada igual aoprazer de entrar pelo ‘Maraca’,subir aquelas rampas já ouvindoo grito da torcida, e quandochego à arquibancada, aquelaimagem maravilhosa: o grama-do, com todos os jogadores emcampo”, narra Andressa Leite,21 anos.

“A torcida é um espetáculod e n t ro do clássico. Todos gritan-do a mesma música como umhino. É lindo”, completa Andre s-sa, que só foi assistir a um jogode seu time no estádio há umano. E não é só de hinos quevivem as torcidas. Muitas vezes,

t rechos de músicas também sãoadotados como gritos de guerr acontra o time adversário. “ L e-vantou poeira!’ Só de escutar eujá fico todo arrepiado”, co-menta Paulo Carrilho que,quando não está torcendo, podeser encontrado lecionando físi-ca na UFRJ.

Para a grande maioria dos cari-ocas – jogadores e torc e d o re s ,jovens e velhos – ir ao Maracanãé um espetáculo à parte. O está-dio, com 54 anos, passou recente-mente por uma reforma, mas jáesteve ameaçado de ser demolidopara a construção de outro maismoderno. Hoje, ele continua adar alegria aos cariocas e temmuita história para contar. Foi opalco onde quase 200.000 pes-soas choraram a derrota brasi-leira de 1950 para o Uruguai,

onde ocorreram gols fantásticoscomo o de Roberto Dinamite, em1976, contra o Botafogo. Presen-ciou glórias e conquistas ines-quecíveis. Enfim, brigas, amor,ódio e felicidade, confraterniza-ção e patriotismo.

“O Maracanã não é um sim-ples estádio de futebol, e só quemjá viveu uma final de Maracanãlotado entende esta afirmação. Écomparável somente à arena degladiadores do Império Romano.Com uma diferença fundamen-tal: os romanos traziam a morte,enquanto os ‘gladiadores’ moder-nos, como Pelé, Garrincha, Zico,Roberto Dinamite e tantos outros,trouxeram e trazem para semprevida e felicidade a uma multidãode apaixonados”, filosofa o estu-dante de direito Alex de Souza.

Seja qual for o time, o cariocaveste a camisa e cria um apar-theid social, em que cada torcidapossui seu gueto, seu bar. Que odiga a criatividade das torc i d a scontrárias ao Flamengo, que pa-rodiaram a música “Poeira”, deIvete Sangalo, (adotada pelos fla-menguistas) e a transform a r a mem: “Favela...favela... favela...silêncio na favela”. Peneirando op reconceito racial e social da

ANDRÉ BÜRGER, JOANA JAHARA E LETÍCIA FRANCO

Domingo, eu vouao Maracanã

Com muito prazer17

A dor e a alegria de torcer

“Se o Vasco perdeno domingo, é cara

e m b u rrada na segunda”Daniel Silva

I

música, não podemos esquecerque a torcida rubro-negra repre-senta a massa, o “povão” cario-ca. Já os vascaínos são chamadosde portugueses, o famoso “baca-lhau”, tendo como ícone os co-merciantes e, principalmente, osdonos de botequins. O Flumi-nense não esconde o conser-vadorismo e traz uma torc i d amais tradicional, e o Botafogoatrai a classe média urbana.“Emdia de jogo não posso passar coma camisa do meu time por algunslocais, onde sei que torc i d a srivais se encontram”, re c l a m aValdenício Pereira, torcedor doVasco.

Mas o mesmo espírito que se-para e contrapõe grupos tambémune pessoas. O torcer acabasendo mais que um ato, torna-seuma devoção, uma obrigação

civil-religiosa para os milhares deassociados de torcidas org a n i-zadas. Para fazer parte de umadelas não é preciso muito. “Bastadar R$ 15,00 e levar uma foto3x4. E se for menor de idade, tra-zer uma autorização do pai”,explica Rodrigo Pelluzzo, inte-grante da Jovem Fla.

A filiação à torcida dá direito adescontos em produtos, comocamisas, bonés e ingressos dejogos. “E garante mais que isso. Éa carteira que comprova sua liga-ção com o clube do coração,como se você fosse parte inte-grante dele”, completa Rodrigo.Ele considera que estar no meioda torcida organizada é muitomais emocionante e que o senti-mento de grupo faz o clássicoainda melhor. “Se pudesse esco-lher as coisas que mais gosto de

fazer, o ato de torcer estaria esca-lado entre os primeiros itens”,declara.

Há 57 anos os estádios brasi-leiros são freqüentados por torci-das organizadas. A Charanga doFlamengo, fundada por Jaime deCarvalho em 1942, foi a primeirado Brasil. Nos anos de repressãoveio a segunda geração defacções, surgida entre 1967 e1970. Não inovou, mas tentou seafirmar em um período difícil,em que as baionetas calavam asvozes da liberdade. A terceira ge-ração surgiu nos tempos de aber-tura e é a última formação dasgrandes facções brasileiras.

Em abril de 1976 nascia a RaçaRubro-Negra, tendo Cláudio Cé-sar como primeiro pre s i d e n t e .Segundo Cláudio, ela foi umaresposta aos “portugueses” do

Janeiro/Junho 200418

A Raça Rubro Negra é a maior torcida organizada do Rio de Janeiro

Vasco da Gama. E aos poucos foise tornando a maior torc i d ao rganizada do Rio de Janeiro .“No dia da estréia da Raça nóstínhamos confeccionado 300 ca-misas, mas apenas 50 forampostas à venda. No jogo seguinte,outras 50, e assim as pessoasviam que a Raça estava crescen-do”, conta Cláudio César. Algunsanos antes, surgia a Força Jovemdo Vasco que, com a To rc i d aOrganizada, tornou-se uma dasprincipais torcidas vascaínas,tanto em número como em pres-tígio e poder dentro do clube.

A organização não fica só nonome, e as torcidas levam isso asério. Como maestros, o monitor

e o puxador de cada uma delasrege uma orquestra de milharesde vozes apaixonadas, acompa-nhadas por uma bateria “nota10”, bandeiras e camisas pa-dronizadas. “Já perdi a conta dequantas vezes chorei ao ver a tor-cida do meu time, toda vestidacom suas cores, numa sincroniaperfeita, batendo palmas, can-tando e louvando nossos craques.Estar aqui é totalmente diferentede que ver o jogo de casa”, contaFernanda Cerqueira, 20 anos.

Brigas diminuem a festa?Mas em alguns lugares a festa

pode não ser tão completa assim.Depois de inúmeras brigas nos

estádios, a Justiça de São Paulop roibiu a entrada de torc i d a so rganizadas, mastros, bandeiras ecamisas das facções. “Mas não é ofato de entrar sem um mastro quetira a alegria do futebol”, defendeA n t e ro Greco, re p ó rter esport i v odo jornal O Estado de S. Paulo ecomentarista da ESPN Brasil.

Para ele, muitos fatores con-tribuem para a baixa na alegriado futebol brasileiro. O principalé a violência. “As torcidas organi-zadas maiores se tornam um or-ganismo à parte. Torcem por elaspróprias e não pelos clubes, for-mando um mundo paralelo det o rc e d o res”, completa. Segundoele, os torcedores podem ir per-

Com muito prazer 19

O contraste (letras de hinos misturam palavras de briga e paz)FLUMINENSE

ôôôôô...a Young é a torcida de porrada...A Young é torcida do terrorI R R ...R R (é a versão adaptada pelo Vasco)

A bêêêênção João de Deus...A bênção João de Deus, nosso povo te abraça...Tu vens em missão de paz...Sê bem vindo e abençoa esse povo que te ama!

VASCO

Garota eu sou da FORÇA JOVEMVou ver meu time de cinemaEu vou pra praia de IpanemaPra curtir o mar legal

Eu dou a volta, eu picho o muroEu fumo bagulho, assalto bancoNa minha vida ninguém manda nãoEu vou aonde vai o VASCÃO!!!

Eu dou porrada pra valerEu boto a Jovem pra correrDurante o jogo eu vou torcerDepois do jogo eu vou beber!!!

BOTAFOGO – (a exaltação do torcedor)

Onde o Botafogo estiverEu estarei com meu coraçãoPara exaltar o preto e brancoE cantar com toda emoçãoEu sou Fogão, sou FogãoDa Jovem eu souEssa estrela solitária guiaEsse time do meu coraçãoEssa estrela solitária guiaEsse time vai ser campeão,sou Fogão, sou FogãoDa Jovem eu sou....

FLAMENGO: (Música de adaptação de um cantode guerra da UNE, foi modificada na década de1970)

Oh! meu MengãoEu gosto de vocêQuero cantar ao mundo inteiroA alegria de ser rubro-negroCante comigo MengãoAcima de tudo rubro-negroCante comigo MengãoAcima de tudo rubro-negro

feitamente ao estádio sem essesartifícios, mas a proibição não foisuficiente para trazer de voltamuitos admiradores, muito me-nos mulheres e crianças, já que aviolência continua antes e depoisdos jogos. “As torcidas organi-zadas apenas mudaram denome, mas continuam indo aosjogos com suas camisas e ban-deirões. A lei não é cumprida”,conclui.

E é justamente no confronto quese firma a maioria das músicas det o rcidas. Exaltando a violência e arivalidade, muitas são feitas com oúnico intuito de provocar o outrog rupo, desmoralizando-o e geran-do desavenças. “Dentro do estádioeu sou mais o meu time, mas forame sinto mais um defensor da tor-cida da qual faço parte. Já brigueie volto a brigar por ela”, Rodrigona saída de um jogo em que seutime perdeu por 2x1, de virada.

Seja flamenguista, vascaíno,botafoguense ou tricolor, se otime ganhou no domingo, équase lei vestir o “manto sagra-do” no dia seguinte. Lei mesmo édebochar do perdedor por váriosdias. E torcedor que é torcedornão deixa a chance passar embranco. Perdeu, então vai ter quee s c u t a r. “Ah, quando o timãoganha, eu vou de sala em salaprovocando todo mundo no meutrabalho. Não tem essa de penanão”, afirma Paulo Carrilho.

Mas nem sempre se ganhatodas. Um dia seu time pode estarjogando mal, e aí, é placar desfa-vorável sem dúvida. E uma daspiores coisas para qualquer torce-dor é quando seu time ganha nasemana anterior e, na semanaseguinte, quando se está aindacom a “bola cheia”, o time delaperde de goleada. “O mundo li-teralmente desaba. A camisa do

time é escondida embaixo detodas as cobertas e você não quersair de casa de tanta vergonha”,comenta a psicoterapeuta VeraLúcia Batista Soares.

E lá vai o triste torcedor receberde volta todas as “brincadeiri-nhas” que ele fez com seus cole-gas de trabalho. Para DanielSilva, vascaíno doente, como elemesmo se intitula, ver seu timeperder é o mesmo que tomar umtapa na cara. “Se o Vasco perdeno domingo, é cara emburradana segunda. O pior é que o pes-soal brinca comigo e eu fico maisi rritado ainda”, conta Daniel,único vascaíno da produtora devídeo do SENAC, onde trabalhacomo contra-regra.

Chorar, gritar, xingar. Torcer étudo isso e mais um pouco. Éa c reditar em alguma coisa. Éamar e esperar como retorno avitória.

Janeiro/Junho 200420

Torcida do Fluminense: uma das mais charmosas do Brasil