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Norman Gall é diretor executivo do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial e editor do Braudel Papers. Suas fotos de quatro décadas de pesquisas na América Latina ilustram este ensaio, preparado para a conferência internacional sobre O Futuro da Democracia na América Latina, organizada pelo Instituto Fernand Braudel e FAAP. Os desafios das instituições latino-americanas A democracia está ameaçada? Norman Gall Edição especial Documento do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial Associado à Fundação Armando Álvares Penteado N. 35 2004 Rumo ao mercado no amanhecer, aeroporto El Alto, La Paz, Bolívia, 1985. A América Latina é uma das regiões privilegiadas do mundo, dotada de recursos abundantes em proporção a sua população. Ela possui fartos recursos de energia. Sofre poucos conflitos étnicos, religiosos ou lingüísticos. Fica longe das áreas principais de tensão internacional. Desde a década de 1970, a democracia na América Latina cresceu num clima internacional favorável, mas suas vantagens são prejudicadas pela fraqueza de suas instituições. Apesar disso, ao estancar a inflação crônica nas últimas décadas, os sistemas eleitorais na América Latina crescem e mostram resistência, não obstante o enfraquecimento dos partidos políticos - uma tendência mundial - e a mediocridade da liderança política. Venho fazendo reportagens e pesquisas sobre a América Latina há 43 anos, tendo feito muito trabalho de campo em lugares remotos, de difícil acesso. Fala-se muito em retrocesso, mas o verdadeiro retrocesso consiste na negação do progresso, negação esta que se tornou uma característica comum do discurso político e econômico que solapa a legitimidade das instituições em processo de evolução. As sociedades têm se modernizado muito mais rápido que as instituições públicas. Por isso, quero sugerir três prioridades: • Aumentar a capacidade das pessoas de administrar sociedades complexas, criando centros de excelência na educação. • Tornar as decisões políticas mais representativas e fazer com que aqueles que as tomam tenham que assumir mais responsabilidade por elas. • Ampliar a receita tributária de modo a poder manter um governo moderno e financiar o investimento público. O presente ensaio, preparado para uma conferência internacional sobre democracia para comemorar o 16º aniversário do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, argumentará que a qualidade da organização humana que pode ser conquistada a partir de investimentos em capital humano e na força das instituições ajudará em muito a moldar o futuro da democracia na América Latina. (Para o programa da conferência ver www.braudel.org.br). 1. O desafio do progresso O desafio que as democracias latino-americanas enfrentam hoje reside na mediocridade de seu desempenho econômico e institucional. Os principais obstáculos que se contrapõem ao progresso consistem em: (1) baixos níveis de tributação (excetuando o Brasil, que gasta mal seus recursos fiscais), que impede o financiamento das operações de um governo moderno a não ser pelo recurso ao endividamento pesado e à inflação crônica, e (2) o amadurecimento de suas economias em decorrência da urbanização, impondo custos onerosos de manutenção com poucas chances de melhora na produtividade, aos níveis atuais de organização e ensino público. Está emergindo um novo modelo econômico, modelo esse que exige uma nova estratégia política. O futuro da democracia será influenciado pela qualidade da vontade política e criatividade com que essas dificuldades são enfrentadas, na busca pela manutenção da estabilidade econômica e da ampliação das oportunidades. Está a democracia ameaçada? Não de imediato, mas é fato que instituições públicas fracas podem solapar os ganhos amplos decorrentes da modernização. O futuro será promissor se as instituições democráticas puderem ser fortalecidas nas próximas décadas, se forem superadas as falhas no judiciário, na segurança pública, na infra-estrutura e na regulação econômica. Estes são empreendimentos a longo prazo para satisfazer necessidades amplamente reconhecidas. Sem desdenhar dessas necessidades, esse ensaio procura expor vias para melhorar os mecanismos políticos e desenvolver habilidades para sustentar esses esforços de longo prazo. As principais incertezas que enfrentam estes esforços envolvem novidade e persistência. Como Thomas Mann colocou em The Coming Victory of Democracy (1938): “A vantagem, ou aparente vantagem, das tendências contrárias à democracia é, sobretudo, o encanto da novidade - um encanto a que a humanidade é altamente susceptível”. Projeções das Nações Unidas prevêem para a América Latina um crescimento demográfico moderado ao longo do próximo meio século, sem o envelhecimento acelerado e as perdas de população previstas para a Europa e Japão, nem os piores estragos decorrentes da pandemia da BP35 democr port.p65 10/2/2004, 11:10 1

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Norman Gall é diretor executivo do Instituto Fernand Braudel de EconomiaMundial e editor do Braudel Papers. Suas fotos de quatro décadas de pesquisasna América Latina ilustram este ensaio, preparado para a conferência internacionalsobre O Futuro da Democracia na América Latina, organizada pelo InstitutoFernand Braudel e FAAP.

Os desafios das instituições latino-americanas

A democracia está ameaçada?Norman Gall

Edição especial

Documento do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial Associado à Fundação Armando Álvares Penteado N. 35 2004

Rumo ao mercado no amanhecer, aeroporto El Alto, La Paz, Bolívia, 1985.

A América Latina é uma dasregiões privilegiadas do mundo,dotada de recursos abundantesem proporção a sua população.Ela possui fartos recursos deenergia. Sofre poucos conflitosétnicos, religiosos ou lingüísticos.Fica longe das áreas principais detensão internacional.

Desde a década de 1970, ademocracia na América Latinacresceu num clima internacionalfavorável, mas suas vantagens sãoprejudicadas pela fraqueza de suasinstituições. Apesar disso, aoestancar a inflação crônica nasúltimas décadas, os sistemaseleitorais na América Latinacrescem e mostram resistência,não obstante o enfraquecimentodos partidos políticos - umatendência mundial - e amediocridade da liderança política.

Venho fazendo reportagens epesquisas sobre a América Latinahá 43 anos, tendo feito muitotrabalho de campo em lugares remotos, de difícil acesso. Fala-se muitoem retrocesso, mas o verdadeiro retrocesso consiste na negação doprogresso, negação esta que se tornou uma característica comum dodiscurso político e econômico que solapa a legitimidade das instituiçõesem processo de evolução. As sociedades têm se modernizado muito maisrápido que as instituições públicas. Por isso, quero sugerir três prioridades:

• Aumentar a capacidade das pessoas de administrar sociedadescomplexas, criando centros de excelência na educação.

• Tornar as decisões políticas mais representativas e fazer com queaqueles que as tomam tenham que assumir mais responsabilidade porelas.

• Ampliar a receita tributária de modo a poder manter um governomoderno e financiar o investimento público.

O presente ensaio, preparado para uma conferência internacional sobredemocracia para comemorar o 16º aniversário do Instituto FernandBraudel de Economia Mundial, argumentará que a qualidade daorganização humana que pode ser conquistada a partir de investimentosem capital humano e na força das instituições ajudará em muito a moldaro futuro da democracia na América Latina. (Para o programa da conferênciaver www.braudel.org.br).

1. O desafio do progressoO desafio que as democracias latino-americanas enfrentam hoje reside

na mediocridade de seu desempenho econômico e institucional. Osprincipais obstáculos que se contrapõem ao progresso consistem em: (1)baixos níveis de tributação (excetuando o Brasil, que gasta mal seusrecursos fiscais), que impede o financiamento das operações de umgoverno moderno a não ser pelo recurso ao endividamento pesado e àinflação crônica, e (2) o amadurecimento de suas economias em decorrência

da urbanização, impondo custos onerosos de manutenção com poucaschances de melhora na produtividade, aos níveis atuais de organização eensino público. Está emergindo um novo modelo econômico, modeloesse que exige uma nova estratégia política. O futuro da democracia seráinfluenciado pela qualidade da vontade política e criatividade com queessas dificuldades são enfrentadas, na busca pela manutenção daestabilidade econômica e da ampliação das oportunidades.

Está a democracia ameaçada? Não de imediato, mas é fato queinstituições públicas fracas podem solapar os ganhos amplos decorrentesda modernização. O futuro será promissor se as instituições democráticaspuderem ser fortalecidas nas próximas décadas, se forem superadas asfalhas no judiciário, na segurança pública, na infra-estrutura e na regulaçãoeconômica. Estes são empreendimentos a longo prazo para satisfazernecessidades amplamente reconhecidas. Sem desdenhar dessasnecessidades, esse ensaio procura expor vias para melhorar os mecanismospolíticos e desenvolver habilidades para sustentar esses esforços de longoprazo. As principais incertezas que enfrentam estes esforços envolvemnovidade e persistência. Como Thomas Mann colocou em The ComingVictory of Democracy (1938): “A vantagem, ou aparente vantagem, dastendências contrárias à democracia é, sobretudo, o encanto da novidade- um encanto a que a humanidade é altamente susceptível”.

Projeções das Nações Unidas prevêem para a América Latina umcrescimento demográfico moderado ao longo do próximo meio século,sem o envelhecimento acelerado e as perdas de população previstas paraa Europa e Japão, nem os piores estragos decorrentes da pandemia da

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2 BRAUDEL PAPERS

Instituto Fernand Braudelde Economia Mundial

Associado à Fundação ArmandoÁlvares Penteado (FAAP)

Rua Ceará, 2 - 01243-010 São Paulo, SP - Brasil

Tel: (55 11) 3824-9633 Fax: 3825-2637e-mail: [email protected]

Presidente honorário: Rubens RicuperoConselho Diretor: Luís Carlos Bresser-Pereira (presidente), Roberto CamposNeto (vice-presidente), Alexander Bialer,Claudio de Moura Castro, Maria HelenaGuimarães de Castro, Roberto Teixeirada Costa, Viveka Kaitila, Miguel Lafer,Luis Alberto Machado, Marcelo Basílio deS. Marinho, Idel Metzger, Charles B.Neilson, Mailson da Nóbrega, AntonioCarlos Barbosa de Oliveira, MariditeCristóvão Oliveira, Antonio CarlosPereira, Beno Suchodolski, Joaquim ElóiCirne de Toledo, Diego Theumann, RickWaddell e Maria Helena Zockun.

Diretor executivo: Norman GallCoordenadores: Nilson Oliveira e PatriciaMota Guedes

Patrocinadores

Banco Real ABN-AMROBasf

Boucinhas & Campos AuditoresBradesco

Brascan BrasilBrascan Energia

BrasmotorBritish Gas

ComgasEDP

EricssonFundação Vitae

General Electric FundHospital Alemão Oswaldo Cruz

Instituto UnibancoItaú

KlabinNatura

O Estado de S. PauloPhilipsPirelli

Safra - Projeto CulturalSouza Cruz

Voith HydroVoith Paper

Braudel PapersEditor: Norman GallEditor adjunto: Nilson Oliveira

Braudel Papers é uma publicação doInstituto Fernand Braudel de EconomiaMundial com o especial apoio da FundaçãoTinker e do Grupo Basf.

Todos os direitos reservados aoInstituto Fernand Braudel (2004)

Aids e das guerras civis que já estão provocando aumentosdramáticos de mortalidade na África. Enquanto isso, oaumento na população adulta jovem latino-americana(na faixa dos 15 aos 29 anos) vai subindo a pirâmidedemográfica, depois de alcançar seu pico na década de1980. Nos próximos decênios a participação dos adultosjovens na população total vai cair de 28%, nos anos1980, para 19,7% até o ano 2050, reduzindo a demandaurgente por empregos verificada em praticamente todaparte hoje. Esta é uma oportunidade e um teste críticopara as democracias latino-americanas. O teste consisteem sua capacidade de fazer investimentos bem-sucedidos em capital humano, investimentos esses quelhes dêem condições de reduzir a desigualdade ebeneficiar-se das vantagens estratégicas que possuemem termos de recursos físicos e dinâmica populacional.

Os riscos e as falhas expostos pelo processodemocrático até agora não são capazes de lançar sombrasobre seus benefícios. Estes são: (1) maior liberdade, (2)mais oportunidades para o desenvolvimento humano, e(3) maior influência da maioria dos cidadãos na escolhadas lideranças políticas e das políticas governamentais.Em toda a América Latina, hoje, há poucos lugares emque os governantes não sejam escolhidos por meio deeleições livres, onde a discussão política seja sufocadae onde os cidadãos temam ações arbitrárias das forçasde segurança. Mas os problemas de escala e credibilidadeno processo democrático não foram superados, emboraa organização dos Estados nacionais tenha ampliadohorizontes de maneira nunca antes vista na experiênciahumana, graças a avanços tecnológicos que tiveramlarga penetração.

Negando o progressoNegações do progresso freqüentemente se manifestam

nos estudos de desigualdades contemporâneas, ou entrenações ou no interior de uma mesma sociedade, estudosesses que deixam de levar em conta os avanços feitospelos pobres ao longo de uma linha do tempo de váriasdécadas. Cada vez mais esta negação se incorpora àcultura das agências internacionais, sob a pressão deONGs que promoveram uma verdadeira indústria dadenúncia. “Catastrofismo dá dividendos na profissão deeconomista”, diz um veterano do Banco Mundial commuitos anos de experiência na região “Nenhumeconomista na América Latina dirá que as coisas têmmelhorado muito, apesar dos fatos. Ninguém vai escutar.Ao contrário, ser profeta do desastre rende grandesbenefícios. Isto é cruel e destrutivo, porque alimenta aschamas do populismo”.Um alvo de todas essas denúnciasé o chamado “Consenso de Washington” - nomegrotescamente inapropriado -, que não foi nem maisnem menos do que a defesa do retorno aos fundamentoseconômicos, de modo a fornecer uma base mais sólidapara o progresso, por meio da superação da inflaçãocrônica e da reestruturação do setor público deficitário.A maioria dos funcionários das agências internacionaisnão possui a experiência de campo que lhes permitiriareconhecer esses avanços.

O progresso verificado no último meio século temsido enorme. De 1950 para cá, a população da AméricaLatina e do Caribe mais do que triplicou, tendo aexpectativa de vida aumentada de 51 para 69 anos e amortalidade infantil caído mais de 70%, de 126 para 36em cada 1.000 crianças nascidas vivas. O índice dealfabetização e a proporção de alunos matriculados nasescolas aumentaram tremendamente, embora a baixaqualidade do ensino provoque o desperdício de boaparte dos investimentos públicos em educação. Amelhora nos transportes dá condições aos pobres demigrar, viajar e fazer comércio por longas distâncias. Oacesso quase universal ao rádio e à televisão lhesgarante entretenimento e informação que nunca

estiveram ao alcance das gerações anteriores. Aampliação das redes elétricas fez com que milhões defamílias pudessem adquirir geladeiras e outroseletrodomésticos que melhoraram a conservação e opreparo dos alimentos, melhorando a nutrição e tornandoo trabalho doméstico menos estafante. Nos últimos dezanos, a difusão dos telefones celulares baratosdesenvolveu a capacidade logística e a produtividadedas populações de baixa renda, especialmente nas grandescidades. Todos esses avanços vêm fortalecendo avocação democrática. Todavia, persistem os problemastradicionais da distribuição de poder e benefícios entreo Um, os Poucos e os Muitos, que têm gerado tensõesnas regiões civilizadas desde os tempos antigos. (verartigo na página 5)

Num ambiente de crescimento mais lento da economiamundial, as democracias latino-americanas precisamencarar seus problemas institucionais com maisobjetividade e vontade política, para proporcionarmaiores oportunidades para o talento em estado brutoque reside em suas populações. Esses avançosinstitucionais fortaleceriam a prática democrática eabririam novas possibilidades para a geração de riqueza.Nos últimos tempos, as pesquisas sobre desenvolvimentoinstitucional vêm se transformando num setor emcrescimento nas universidades e organismosinternacionais como o FMI e o Banco Mundial, gerandomuitos chavões, mas poucos resultados concretos. Osestudos modernos não conseguiram avançar para alémdas verdades simples anunciadas por Adam Smith em ARiqueza das Nações (1776):

O comércio e as manufaturas raramente podem florescer pormuito tempo em qualquer Estado que não goze de umaadministração regular da justiça, em que as pessoas não sesintam seguras na posse de seus bens, no qual a boa fé doscontratos não tenha o respaldo da lei e na qual a autoridadedo Estado não seja vista como estando empregada regularmentena cobrança das dívidas de todos aqueles que têm condiçõesde pagar. O comércio e as manufaturas, em suma, raramentepodem florescer em qualquer Estado em que não exista umcerto grau de confiança na justiça do governo.

Se as repúblicas latino-americanas não fixarem comoprioridade clara a busca da justiça e da estabilidade,elas podem em breve ingressar numa fase de “fadiga dereformas”. As instituições atrasadas freqüentementesão enraizadas em incentivos perversos. Definimoscomo incentivos perversos os artifícios nas leis ecostumes que premiam comportamentos que sabotamos propósitos declarados das instituições. A pauta deprioridades superlotada dos anos 1990 propôs reformas“de primeira geração” e “de segunda geração”. Asreformas “de primeira geração” derrotaram a inflaçãocrônica, ao fortalecer as finanças públicas e a políticamonetária, abrindo as economias ao comérciointernacional e privatizando empresas estatais cujosdéficits desviavam os recursos governamentais paralonge dos investimentos públicos necessários. Hoje osenormes déficits orçamentários e a hiperinflação podemser coisa do passado, mas os baixos níveis deinvestimento e de serviços públicos continuamdeficientes.

Várias “reformas de segunda geração” foram propostase amplamente discutidas, criando uma agenda legislativacongestionada nas áreas da regulamentação econômicae da reorganização dos serviços públicos nos setores desegurança pública, ensino, saúde, do judiciário, atributação e as aposentadorias. Essas chamadas“reformas de segunda geração” são de âmbito muitoamplo, envolvem negociações políticas detalhadas econtinuam a ser polêmicas em termos de suas abordagense suas metas finais. Apesar de seus objetivos benignos,

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BRAUDEL PAPERS 3

Ilha de Marajó, 1979.

elas tendem a sobrecarregar o sistema político ea ameaçar os interesses enraizados, e, ao mesmotempo, falta a elas o apoio público urgente quemoveu a luta contra a inflação nas duas últimasdécadas. É preciso limitar a agenda. Por isso, aspolíticas propostas mais adiante neste ensaioestarão focadas na educação, na organizaçãopolítica e na tributação se concentrando nasquestões mais urgentes e negligenciadas.

Liberdade e horizontes mais amplosOs ganhos da gente pobre ficaram mais claros

para mim numa viagem recente à Bolívia e aoPeru, voltando a lugares onde fiz pesquisas decampo no passado. Em 1970 e, novamente, em1973, fiz pesquisas sobre a reforma fundiária edo ensino do Peru na distante HaciendaLauramarca, situada ao lado da estrada de terraque atravessa as montanhas áridas doDepartamento de Cuzco e desce lentamente atéPuerto Maldonado, no meio da selva, a dois diasde distância. Eu vi “um domínio feudal verde-cinza que se estendia por mais de 200 mil acresde puna aberta, varrida pelo vento, de capim,mato e pedra glacial, com uma confusão primevae intricada de cercas de pedra definindo as roçasde subsistência dos índios”. Os camponesestinham conseguido erguer sete escolas, nas quaisprofessores do governo lecionavam de maneirairregular. A escola em Mallma, na extremidadeleste de Lauramarca, era “uma estruturadecadente de adobe caiado, com duas janelasminúsculas e telhado de palha, durante a maiorparte do ano escura e aberta ao vento”, perto“das encostas brancas do monte Ausangate, de6.400 metros de altitude, que abarca todaLauramarca em seu domínio espiritual eecológico. De acordo com os índios, o montebranco é um deus que abandonou seu povo.Esse sentimento de abandono assombra apopulação de Lauramarca no momento em queela emerge de seus costumes tradicionais parauma modernização incipiente.”

Retornando a essa região 30 anos depois, em2003, encontrei grandes transformações,principalmente em termos de liberdade e daampliação dos horizontes. As principais estradasregionais tinham sido pavimentadas, reduzindopara a metade o tempo gasto para se viajar entreLa Paz e Cuzco. A maioria das cidades hojeconta com telefones de discagem direta e postospúblicos de acesso à Internet. O serviçotelefônico e de Internet também já chega atéOcongate, o município do qual Lauramarca fazparte. Com a reforma agrária vieram os direitosfundiários e a libertação das obrigações feudaistais como o trabalho não remunerado em favordo dono da terra. A eletricidade chegou em1993, seguida pela televisão, induzindo asfamílias a mudar-se das choupanas isoladas parapovoados nucleares situados na rede de estradaslocais, que está em expansão. Hoje, mais dinheirocircula nas comunidades camponesas, ampliandoo mercado nacional. As escolas primárias esecundárias proliferaram nessas comunidades,proporcionando às pessoas mais acesso à palavraimpressa. “Antigamente, eles caminhavam porlongas distâncias nas trilhas montanhosas, antesdo alvorecer, para espalhar seus produtos nafeira de domingo, ainda à luz das lamparinas dequerosene”, disse o padre Antonio SánchezGuardamino, jesuíta espanhol que é o pároco deLauramarca há duas décadas. “Hoje, porém,

muitos deles possuem carros e caminhonetesjaponesas de segunda ou terceira mão. Eles sãocapazes de chegar ao mercado apenas às 8h30”.Em agosto passado, num avanço políticonotável, 25 camponeses organizaram uma grevede fome para arrancar uma decisão da justiçanum processo por corrupção movido contra oprefeito de Ocongate. “Fizeram uma reuniãomunicipal em 1995, porque estava faltandomuito dinheiro”, contou o padre Sánchez. “Oprocesso se arrastou por cinco anos no tribunal,com os documentos indo e voltando entre Cuzcoe Lima. Finalmente, depois de passarem oitodias e noites de frio gelado dentro da igreja, semcomida, os campesinos conseguiram que umjuiz em Cuzco condenasse o prefeito a cincoanos de prisão.” Parte dessa atividade políticase deve à difusão do ensino secundário nosAndes nas últimas três décadas. Embora boaparte desse ensino possa ser de baixa qualidade,ele conseguiu equipar uma nova geração delideranças rurais a exercer mais influência do

que poderiam ter feito no passado. Muitos delessão prefeitos eleitos de municípios antesdominados por comerciantes e latifundiáriosmestiços. Enquanto isso, seitas protestantes seespalharam entre as comunidades camponesas,reduzindo o alcoolismo e aliviando oscomuneiros da obrigação de fazer gastos pesadospara financiar as festas católicas tradicionais.Essas seitas evangélicas vêm proliferando portoda a América Latina, ao lado de rádios e TVsreligiosas, gerando um fluxo incessante depregação fervorosa. O fervor religioso toma olugar da política nas esperanças dos crentes.

Aumentos do consumoA expansão das instituições (por mais fracas

que ainda sejam), a melhora das conexões como mundo externo e o aumento no consumo sãofatores ainda mais impressionantes nas zonasurbanas de toda a América Latina. A alta doconsumo dos setores de baixa renda tem sidoespetacular, acelerando o processo de

barateamento e diversificação dos bens deconsumo no longo prazo que data da Europa doséculo 16. Devido à escala de sua economia, oBrasil vem sendo líder nos aumentos de consumorecentes. Para os ricos, o Brasil é o segundomaior mercado mundial de helicópteros ejatinhos executivos e o quarto maior produtorde aviões particulares. Para a classe média e ospobres, o país é o terceiro no ranking mundialem venda de motocicletas, locação de vídeos enúmero de televisores instalados. Os maioresaumentos de consumo têm se dado entre ospobres, conhecidos no jargão do marketing comoas classes C, D e E. Abarcam 110 milhões depessoas, ou 69% da população do Brasil, 77%das famílias urbanas e 40% dos gastos comconsumo. Depois que o Plano Real estancou ainflação crônica, em 1994-95, a estabilidadeeconômica consolidou a renda real das famíliase permitiu a fabricantes e varejistas reduzir oscustos e ampliar o crédito, enquanto a informáticafacilitava as transações.

O Instituto Fernand Braudelde Economia Mundial estáconduzindo pesquisas decampo sobre o consumo debaixa renda na Grande SãoPaulo, cuja população subiu deapenas 31 mil pessoas em 1870para 18 milhões hoje - o maisacelerado crescimento urbanode longo prazo na históriahumana. Observamos numapopulação migrante umprocesso importante deadaptação para um regime debaixa fertilidade, redução dasoportunidades de empregoformal e ampliação aceleradado consumo, apesar daviolência endêmica nametrópole, com 12.000 roubosnos ônibus e 10.000 homicídioscada ano. Nosso jovempesquisador Maurício Santos,morador da região periférica deCidade Tiradentes, observa:“Fica claro que a classe de baixarenda está consumindo mais.O paradoxo consiste no fato deque está mais fácil adquirir bens,

mas as pessoas não sentem que a vida estejamais fácil, principalmente em função da falta deemprego”. Apesar de todas essas dificuldades,nossas entrevistas trazem à tona atitudes muitodiferentes do discurso político focalizado naidéia da exclusão social, discurso esse que éfreqüentemente identificado com as pessoaspobres da periferia. Na realidade, nossasentrevistas nos revelam uma tendência marcanteà adaptação e à abertura para as inovações.

Urbanização e democraciaDesde que surgiu nas cidades-estados gregas,

há 2.500 anos, a democracia sempre teve suasraízes fincadas na vida urbana. Ela se difundiumais rapidamente quando a urbanizaçãotransformou a sociedade humana, no final doséculo 20, acompanhada de ganhos em riqueza,alfabetização e saúde pública. Ao lado de outrasregiões menos desenvolvidas, a América Latinaluta para fazer frente aos efeitos da urbanizaçãoespetacular da população mundial no final do

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4 BRAUDEL PAPERS

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Feira de compra e venda, El Alto, La Paz, Bolívia, 1985.

século 20, um acontecimento único naexperiência humana que contribuiu para ocrescimento econômico e a difusão dademocracia, mas cria desafios políticos efinanceiros assustadores para os próximosdecênios. A população urbana da América Latinamais do que quintuplicou entre 1950 e 2000,ano em que o continente se tornou maisurbanizado do que a Europa, com três quartosde sua população vivendo nas cidades.

Entre 1950 e 2000, a população mundialalcançou o marco dos 6 bilhões, multiplicando-se 2,4 vezes, enquanto o número de pessoas quevivem em cidades quase quadruplicou, chegandoa 2,9 bilhões e elevando a parcela da populaçãourbana mundial de 30% para 48%. O número degrandes cidades, com pelo menos cinco milhõesde habitantes, subiu de oito em 1950, todassituadas em países ricos, para 39 em 2000,sendo que quase todo o aumento se deu empaíses mais pobres. Durante essas décadas,cidades como Lima, Bogotá, Cali, Guayaquil,Santo Domingo, Manágua, Ciudad Juárez eGuadalajara viram suas populações semultiplicar aproximadamente por dez. No ano2000 grandes mega-cidades como São Paulo,Xangai, Cairo e Nova Délhi já tinham maishabitantes do que possuía o mundo inteiro naépoca em que a agricultura foi inventada, e maisou menos tantos quantos tinha a Grã-Bretanhana época da Revolução Industrial. Um exemploextremo é o de Daca, em Bangladesh, cujapopulação cresceu de apenas 417 mil em 1950para 13 milhões em 2001 e que as NaçõesUnidas prevê que vá se tornar a segunda maiormetrópole do mundo até 2015, com 23 milhõesde habitantes.

Na América Latina, a era das cidadesdominantes está chegando ao fim, e, nasrepúblicas maiores, estão surgindo sistemas decidades secundárias para dividir o poder políticoe econômico com a capital. O número de cidadesbrasileiras com pelo menos 1 milhão de habitantessubiu de duas em 1950 (Rio de Janeiro e SãoPaulo) para 14 em 2001 e, de acordo comprojeções das Nações Unidas, deve chegar a 20até 2015. Na segunda metade do século 20,cidades gigantes surgiram como cometas noshorizontes da humanidade, mas a maioria nãodemorou a cair na estagnação ou num menorcrescimento. As grandes cidades são difíceis deadministrar. Elas são sub-taxadas e sub-

financiadas. Como muitos sistemas complexos,a maioria das cidades se desenvolve de maneiraespontânea, mas logo precisa tanto de boa gestãocomo de investimentos em infra-estrutura ecapital humano para evitar a degeneração e adesintegração. Este é um dos problemas chavesda democracia latino-americana.

Democracia e crescimento econômicoO progresso humano no século 20 foi gerado

pelas forças complementares do capitalismo, ademocracia e a educação. As melhoras naorganização e os avanços tecnológicos elevarama produtividade e capacitaram os governos agastar mais para ampliar as redes de cooperaçãoe dependência. A urbanização acelerada ocorridaa partir de 1950 foi movida pelo crescimentoeconômico mais acelerado que o mundo já viu.Angus Maddison, membro de nosso Instituto,divide esse meio século em dois períodos: os“Anos Dourados” (1950-73), quando a economiamundial cresceu ao índice anual inusitado de4.9%, e a “ordem neoliberal” (1974-2000),quando o crescimento real caiu para 3%, o queainda representava o dobro do ritmo da expansãoverificada na primeira metade do século.Enquanto isso, a economia da América Latinacresceu quase 5,3% ao ano durante os “AnosDourados”, mas caiu para 3% desde 1973, comos aumentos anuais de produto interno bruto(PIB) per capita caindo de 2,5% para 1%, umnível muito inferior ao de qualquer outro períodoprolongado desde 1870. Durante esses anos de“ordem neoliberal”, a América Latina sofreu osefeitos do aumento dos preços mundiais dopetróleo, que desaceleraram a atividadeeconômica internacional, levando à contrataçãode grandes dívidas externas e à insolvência pordívidas que marcaram a chamada “décadaperdida” dos anos 1980. Apesar da grandefrustração, a mortalidade continuou a cair e asgrandes cidades, a se expandir, embora em ritmomais lento. Os governos foram forçados a operaruma faxina em suas finanças para pôr fim àinflação crônica, que na Argentina, Brasil,Bolívia, Peru e Nicarágua se transformara emhiperinflação. Nesses anos, a inflação provocouintensa indignação pública, enfraquecendo osregimes militares e acelerando a difusão dademocracia. Embora tenham ocorrido surtos decrescimento na década de 1990, as tensõesforam se acumulando em função do alto nível de

desemprego nas grandes cidades e da transiçãopara a atividade econômica informal.

Apesar da retomada da atividade ocorrida em2003, a economia mundial apresenta poucasperspectivas de crescimento mais rápido delongo prazo. Todas as economias amadureceram,e os efeitos do envelhecimento, da baixa nafertilidade, da entrada maciça das mulheres nosmercados de trabalho, da criação de grandesprogramas de bem-estar social e da urbanizaçãoquase completa passaram a ser sentidos commais força.Deixando de lado os riscos de curto prazo, oamadurecimento das economias reduz oshorizontes de crescimento na América Latina.Muitos economistas argumentam que um altocrescimento econômico de longo prazo, da ordemde pelo menos 5% ao ano, é preciso para estabilizaras sociedades latino-americanas. Minha opiniãoé que altos índices de crescimento ao longo de umperíodo prolongado, apesar de bem-vindos,podem não ser exeqüíveis já que os altos índicesverificados durante os “Anos Dourados” foramdecorrência de fatos que aconteceram uma únicavez na experiência humana, tais como aurbanização e o aumento do crescimento dapopulação em função das quedas aceleradas demortalidade que marcaram a fase inicial datransição demográfica. E esses índices muitoaltos de crescimento econômico tampouco sãonecessários, já que o índice atual de crescimentopopulacional da América Latina mal chega àmetade daquele verificado nos “Anos Dourados”e, segundo previsão da ONU, até 2050 esseíndice deve cair para aproximadamente um sextodo nível de crescimento que se seguiu à 2a GuerraMundial. É possível obter ganhos importantes derenda per capita com índices muito menores decrescimento do PIB. O que é preciso, em qualqueríndice de crescimento econômico, é ofortalecimento das instituições, para garantir uminvestimento mais produtivo do capital e umamelhor distribuição da justiça, da segurança e dasoportunidades.O conceito um tanto vago da ProdutividadeTotal dos Fatores (PTF) pode servir para avaliar,ainda que com alguma imprecisão, os ganhos deeficiência das economias e sociedades resultantesdo fortalecimento das instituições democráticas- da justiça, educação e segurança - que propiciam

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BRAUDEL PAPERS 5

Desde que as formas republicanas edemocráticas de governo surgiram, há cerca de2.500 anos, em Atenas, a relação instável entreo Um, os Poucos e os Muitos – ou seja, entre ogovernante, os privilegiados e os cidadãoscomuns – tem sido alvo de tensões eexperimentos contínuos. Disputas em tornodo Um, dos Poucos e dos Muitos permearam odesenvolvimento das instituições republicanasno Ocidente e continuam presentes na AméricaLatina. Quase todos os países latino-americanosrecentemente superaram o problema históricoda ditadura (o Um), estabelecendo sucessõespresidenciais de modo que a atenção agoraestá concentrada sobre os Poucos e os Muitos.

Nas democracias modernas, retornamos aosdilemas e às oportunidades enfrentados porrepúblicas anteriores. “Foi no canal aberto porAristóteles e o humanismo cívico daRenascença que o rio da tradição republicanafluiu”, argumentou John Pocock em The Ma-chiavellian Moment: Florentine Political Thoughtand the Atlantic Republican Tradition. “Orepublicanismo clássico ao qual aderiu JohnAdams [na Revolução Americana] era,basicamente, uma reformulação renascentistada ciência política apresentada na Política deAristóteles, que possuía uma alta capacidadepara lidar com os fenômenos sociais dos séculos17 e 18.”

O modelo das cidades-estados da Renascençaitaliana foi a rica, imperial e aristocrática repúblicade Veneza, que conservou sua estabilidadepolítica por seis séculos sob uma fórmulacomplexa de divisão do poder pela qual o Um,um doge eleito, exercia o governo vitalício soba influência dos Poucos, seguindo “o princípiode que o doge nunca deveria agir contrariamenteaos conselhos recebidos de seus assessores”,segundo o historiador Frederick Lane. “Amultidão de nobres que cercava o doge quandoele tomava posse era formada por homensacostumados a atuar como juízes e conselheiros.O aumento da população e dos negócios fezcom que cada Doge precisasse de um grupodessa espécie para auxiliá-lo no governo”.

Mas “o povo miúdo” (populo minuto) exigiamais poder. Ele era formado pelos lojistas eartesãos que se fixaram em Veneza e outrascidades prósperas, formando corporações dosgráficos, vidraceiros, joalheiros, farmacêuticos,carpinteiros, construtores de armamentos e denavios, músicos, pintores e outros ofícios ebuscando um papel no governo, conquistandovitórias que encontraram paralelo nas cidadesascendentes de Flandres e da Alemanha. Pessoasque se elevam da pobreza constituem o dínamodo progresso humano, mais do que aquelas queherdam riqueza e conhecimentos, que raramentesão motivadas a fazer descobertas.

Essa história se repete muitas vezes, comvariações, ao longo do desenvolvimento dasinstituições políticas. Veneza foi um ímã paraos migrantes que ampliaram o contingente dopopulo minuto, e, do mesmo modo, em outrostempos e outros lugares, cidades queprosperavam atraíram migrantes novos quereivindicavam direitos e poderes: Florença eoutras cidades italianas na Renascença,

Amsterdã no século 17, Londres nos séculos18 e 19 e Nova York e São Paulo no século 20.

O chamado “humanismo cívico” que emergiuda política violenta das cidades-estados italianasdo século 15 trouxe à tona novamente oargumento de Aristóteles segundo o qual “amelhor comunidade política é formada porcidadãos da classe média. Os Estados queprovavelmente serão bem administrados sãoaqueles nos quais a classe média é grande e, sepossível, mais forte do que as outrasclasses,impedindo o domínio dos extremos”.

Ao longo da história, as classes emergentesexerceram papel crítico para moldar as formasde governo e as divisões do poder que levaramà consolidação da democracia. Em contrastecom as democracias modernas, era difícil paraos cidadãos das cidades-estados italianas fugirde seus deveres públicos. Em 1257, Siena teve860 funcionários, excluindo os militares, numapopulação masculina de 5.000. Eles realizavamtrabalhos que abrangiam desde a vigilâncianoturna até a assessoria de impostos, passandopor manter animais e leprosos fora das ruas.Todos pagavam impostos. “Não surpreendeque os numerosos pobres pagassem seus valorespequenos em impostos diretos, passassem fomee vivessem em condições miseráveis”, escreveu

Daniel Waley. “Os impostos eram para todos.O que parece exigir explicação maior são osvalores muito substanciais pagos pelospoderosos. Isso deve ter se devido à pressãoexercida por aqueles situados imediatamenteabaixo deles em termos de poder e riqueza.”

As disputas em torno da tributação foram aprovação que moldou as novas instituiçõespolíticas no Ocidente. As pressões peloaumento dos impostos surgiam principalmenteem função do custo das guerras, incluindo osjuros sobre os empréstimos contraídos parapagar as tropas. Cada novo avanço da tecnologiamilitar tornava a guerra mais cara, o que exigiainovações nas finanças públicas. Em 1265, acriação da primeira dívida pública financiada, aMonte Vecchio, formada principalmente peloacúmulo de empréstimos compulsórios,coincidiu grosso modo com os avanços na áreanaval: construção, navegação e armamentosque possibilitaram a Veneza ampliar e protegerseu império comercial. Esses artifíciosfinanceiros rapidamente se espalharam paraoutras cidades italianas. Várias delas, em guerraentre si e desesperadas, venderam cargospúblicos, impuseram impostos pesados eempréstimos compulsórios para não seremsaqueadas por suas tropas mercenárias quenão tinham sido pagas.

Para William McNeill, “o recolhimentoeficiente de impostos, o financiamento de dívidas

e a administração militar profissional e hábil”fizeram a diferença na Europa. “Os Estados quedemoraram a desenvolver uma administraçãointerna eficiente da força armada, como Florençae Gênova, continuaram a sofrer surtos deviolência civil. Veneza, a mais bem sucedidainovadora na administração da força armada,escapou por completo dos tumultos domésticos,embora por pouco não tivesse sucumbido aosataques externos provocados pela longa sériede vitórias diplomáticas e militares da Repúblicaem solo italiano.”

Os monarcas aguerridos da França e daEspanha, com os recursos de Estados maiores,impuseram ainda mais impostos e contraíramainda mais empréstimos, à medida que seusexércitos crescentes, utilizando canhões maisavançados naquela que acabou sendo conhecidacomo a Revolução da Pólvora, puseram fim àsoberania das cidades-estados italianas. Durante200 anos, as dimensões dos exércitos semultiplicaram por dez. A Grã-Bretanha passouquase todo o século 18 em guerra. Para pagarpor essas guerras, a receita tributária anual maisdo que triplicou e a dívida pública se multiplicoupor 15. Em The Sinews of Power: War, Money andthe English State, 1688-1783, John Brewer explicacomo a Grã-Bretanha criou os fundamentos dasfinanças públicas modernas, com reformasadministrativas que aumentaram a transparênciae gradativamente reduziam a corrupção, graçasaos “poderes incontestes da tributação nacional,à presença de uma economia comercialcomparativamente simples de taxar e à utilizaçãode conhecimentos fiscais especializados quetransformavam a contração de empréstimosavalizado pela arrecadação em tarefa fácil. (...)Os credores públicos investiam em títulospúblicos, justamente porque eles eram seguros.”

Para saldar essas dívidas, cobradores deimpostos altamente treinados foram mobilizados:“O trabalho desses coletores de impostos eratécnico, complexo e demandava muito tempo.Os novatos no serviço tinham que passar por umexame escrito e outro prático e completar umperíodo de aprendizado... Carregando seuslivros, sete instrumentos, caneta e tinteiroespeciais presos a suas lapelas, os cobradorestrabalhavam por longas horas. Os supervisorescumpriam horários ainda mais longos”. Avançosinstitucionais como esses, deram aos governosocidentais condições de colher parcelascrescentes da renda nacional primeiro para pagarpelas guerras e, mais recentemente, para financiaros Estados democráticos de bem-estar social.

À medida que as sociedades se tornaram maiscomplexas, os monarcas absolutos foramforçados a dividir o poder com interessesemergentes, acelerando a evolução em direçãoàs democracias nacionais. Com o tempo, aeducação pública, a saúde e as aposentadoriasuniversais ganharam status de direitos básicos.Os gastos públicos nos países ricos subiram de13% do PIB em 1913, na véspera da 1a GuerraMundial, para 46% em 1996. Ao mesmo tempoem que as repúblicas latino-americanas tentamassumir as funções de governos modernos, nãoconseguem mobilizar os recursos que levantamas democracias ocidentais.

O Um, os Poucos e os MuitosRepúblicas e Democracias

Pessoas que se elevam dapobreza são o dínamo doprogresso, mais queaqueles que herdamriqueza e conhecimentos

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Continuação da página 4

Mina Siglo Veinte, Catavi, Bolívia, 1966.

um uso mais produtivo do trabalho e do capital.De acordo com cálculos recentes de SamuelPessôa, da Fundação Getúlio Vargas, entre adécada de 90 e de 80 os maiores países daAmérica Latina conseguiram reverter suas perdasanuais de PTF em 1,4%. Isto pode ser umatendência regional de crescimento com grandesvariações nacionais. Brasil, México e Perumelhoraram seus PTFs em aproximadamente 3%ao ano, enquanto os PTFs da Venezuela eColômbia embarcaram em uma espiraldescendente por causa da turbulência política.As dificuldades que as democracias enfrentampara reproduzir os altos índices de crescimentoeconômico aos quais muitos países seacostumaram na segunda metade do século 20postulam questões políticas importantes. Todasas respostas apontam para a necessidade cadavez maior de fortalecer as instituições, paraaumentar a capacidade de gestão da estabilidadedemocrática.

2. Democracia na América LatinaA força da vocação democrática dos povos

latino-americanos foi comprovada pelaexperiência recente. Desde 1989, o Brasil játeve várias eleições presidenciais, estaduais emunicipais ordeiras e sem fraudes, tornando-seum pioneiro mundial nas votações eletrônicas.A Argentina deu uma lição trágica, mostrandocomo o populismo e a inflação crônica podemdestruir o tecido econômico e social de um paíspróspero. O populismo na Argentina foipromovido pela direita e pela esquerda, porregimes civis e militares, gerando uma espiral dedesordem que continua até hoje. Porém, nasúltimas duas décadas, a Argentina persistiu nabusca de soluções democráticas, não obstante ahiperinflação, a queda da conversibilidade dodólar e os fracassos dos partidos Radical ePeronista. Após a desordem inflacionária dosanos de Allende na presidência e dos 16 anos deditadura militar, o Chile restaurou e consolidoua prática democrática, acompanhada de umahabilidosa gestão econômica, durante três

administrações presidenciais desde 1989. Emsua luta por alcançar a estabilidade, o Peru podeter feito um ajuste de baixo nível, acompanhadode insatisfação aguda. Mas os índices demortalidade continuam a cair. Os níveisregistrados de violência pessoal são baixos.Evidentemente, o grande problema urbano é odo emprego, mas que é algo sem solução emquase todos os países. Enquanto isso, depois depassar pelas convulsões da hiperinflação, poruma insurreição guerrilheira, pelo El Niño e pelo“autogolpe” e fuga de Fujimori, a populaçãoperuana optou pela volta à democracia, cominflação baixa e moeda estável. A frágildemocracia da Guatemala foi ameaçada pelastáticas brutais empregadas pelo ex-ditadorgeneral Efrain Ríos Montt (1982-83), quepresidiu sobre um dos massacres mais sangrentosda história latino-americana, para tentar sereleito, apesar da Constituição excluir apossibilidade de antigos ditadores voltarem aexercer cargos públicos. Apesar dos esforços deintimidação por parte de seus partidários, apopulação rejeitou decisivamente a tentativa deretorno ao poder de Ríos Montt. A eleição deua presidência ao conservador Oscar Berger,antigo prefeito da Cidade da Guatemala. NaVenezuela, continua o esforço dos adversáriosdo esquerdista Hugo Chávez, amigo de FidelCastro e da guerrilha colombiana, para afastarChávez do poder, ou com a ajuda de um referendoconstitucional ou por meios violentos, para pôrfim à desordem e decadência econômica. Umacordo intermediado por mediadoresestrangeiros sob a égide da Organização dosEstados Americanos (OEA) prevê um referendode cassação de mandato, sob uma cláusulaincluída na nova Constituição venezuelana pelospróprios seguidores de Chávez.

De acordo com Joseph Schumpeter, “o métododemocrático é aquele dispositivo institucionalpara chegar a decisões políticas no qual osindivíduos ganham o direito de decidir por meiode uma luta competitiva pelo voto popular”. NaAmérica Latina, nas duas últimas décadas, essemétodo democrático vem sendo largamente

aplicado na descentralização dos poderesgovernamentais, com a eleição direta degovernadores e prefeitos e o aumento datransferência de receita para os estados emunicípios. Desde 1980, o número de repúblicasnas quais os prefeitos são escolhidos por eleiçãodireta subiu de três para 17.

A participação na política cresceu com acriação de milhares de cargos eleitos emprovíncias, Estados e municípios. Adescentralização governamental também temimplicado num deslocamento de poder queenfraqueceu os partidos nacionais, abrindoespaço para a proliferação de movimentos locais,o que, em muitos casos ampliou e fortaleceu asociedade civil. As 163 cadeiras da Câmara dosDeputados da Colômbia se dividem entre 39partidos, a maioria dos quais representa interessespolíticos específicos e regionais, pondo fim àtradicional hegemonia dos Liberais eConservadores. Na Bolívia, a Lei de ParticipaçãoPopular de 1994 determinou a eleição direta de310 câmaras municipais e a transferência paraesses municípios de 20% da receita do governocentral. Cinco partidos locais e indígenasconquistaram 64 das 130 cadeiras na Câmarados Deputados boliviana nas eleições de 2002.Na Venezuela, assim como na Colômbia e naBolívia, boa parte desta descentralizaçãogovernamental foi adotada pelos partidostradicionais como medida defensiva parafortalecer a legitimidade do sistema político,mas acabou rendendo resultados inesperadosque ainda estão sendo assimilados. Apesar dasturbulências políticas recentes foi mantido oamplo apoio político para essas inovações.

A história moderna da democracia abrangeperíodos de expansão e retração. Uma décadaatrás, em The Third Wave: Democratization in theLate Twentieth Century, Samuel Huntingtonidentificou três fases na expansão da democraciaverificada desde a Revolução Francesa e asguerras napoleônicas. Até 1926, formasdemocráticas de governo tinham sido adotadasem 22 países. Porém, a Grande Depressãointerrompeu o governo democrático em 11 países

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Rumo a escola, Collique, Lima, Peru, 1973.

latino-americanos. Uma segunda onda dedemocratização (1945-62) restaurou ouacrescentou 41 países ao rol das democracias nomundo. Uma segunda recaída, que se estendeuaté 1975, mais uma vez truncou o governodemocrático em vários países. Desde então, ademocracia vem se desenvolvendo como nuncaantes.

A chamada “terceira onda” de democratizaçãoteve início em meados dos anos 1970, com arevolta militar de esquerda contra a maneiracomo a velha ditadura portuguesa tratava suasguerras coloniais na África, com transiçõespacíficas da ditadura para a democracia naEspanha e Grécia, e com a adoção pelo regimemilitar brasileiro (1964-85) de uma nova políticade distensão “lenta e segura” que levou à voltado governo civil. Muitas dessas transiçõesdemocráticas, na América Latina e Europa doleste e também na Espanha, Turquia e Coréia doSul, mobilizaram lideranças conservadoras. NoBrasil, os políticos civis ligados ao regime militarconservaram papéis chaves após 1985 noCongresso revitalizado e em cargos ministeriais,explorando as debilidades institucionais paratransferir suas “fidelidades” e desenvolver novasoportunidades a cada mudança de governo. Deacordo com a edição 2002 do Relatório deDesenvolvimento Humano da ONU, 81 paísesderam passos “significativos” em direção àdemocracia desde 1980, e 33 regimes militaresforam substituídos por governos civis.

Boa parte desse progresso foi fruto demudanças benignas no clima internacional. Adifusão da democracia foi reforçada pelaglobalização e pelo aumento do acesso àinformação. Fala-se muito na América Latinasobre o papel chave desempenhado pelosEstados Unidos, que, no passado, foi criticadopor ter deixado de promover a democracia. Nasúltimas décadas, porém, isso vem mudando.Em 1974 o Congresso americano começou amanifestar preocupação crescente com asviolações dos direitos humanos, tema que foirapidamente adotado pelo presidente JimmyCarter como questão chave de sua políticaexterna. Em 1984 a administração Reagan criouo Fundo Nacional para a Democracia. No mesmoano, Júlio Maria Sanguinetti, depois de tomarposse como primeiro presidente uruguaio eleitodesde 1971, declarou: “As políticas enérgicasda administração Carter foram a mais importanteinfluência externa sobre o processo dedemocratização do Uruguai”. Diplomatas norte-americanos intervieram para lançar avisos contragolpes militares no Peru, El Salvador, Hondurase Bolívia, além da Coréia e das Filipinas, e foramativos na promoção e restauração da democraciana República Dominicana, Portugal, Chile ePolônia, entre outros países. Mais recentemente,países vizinhos se juntaram para parar um golpemilitar no Paraguai. Em 11 de setembro de 2001a Assembléia Geral da Organização dos EstadosAmericanos, reunida em Lima, adotou umaCarta Interamericana que determina um aparatoe procedimentos diplomáticos para restaurar ademocracia “no caso de uma alteraçãoinconstitucional do regime constitucional queprejudique seriamente a ordem democrática emum Estado membro”.

Sob essas condições melhoradas, a terceiraonda que teve início em 1974 vem difundindo ademocracia de maneira mais prolífica do que as

anteriores, auxiliada, de muitas maneiras, pelosEstados Unidos. Na América Latina, ademocracia continuou a se ampliar, semretrocessos, formando um contraste com o quesucedeu na Turquia, Paquistão, Tailândia,Nigéria e outros países africanos. As democraciasda América Latina souberam enfrentar a inflaçãocrônica de maneira mais eficaz do que os regimesmilitares, uma conquista que as ajudou aconsolidar seu apoio popular.

Apoio para democraciaUma pesquisa conduzida em 17 países pelo

instituto de pesquisas Latinobarómetro foiresumida pela The Economist em sua edição de 17de agosto de 2002, destacando alguns sinaispromissores: “Apesar da turbulência econômicaque domina muitos de seus países, os latino-americanos estão dando apoio maior àdemocracia. Mas têm pouca confiança nospartidos políticos e acreditam que a corrupção éampla e crescente. Eles perderam a fé naprivatização e querem que o Estado assuma umpapel mais ativo na regulamentação daeconomia. Apesar disso, na maioria dos países,a população de modo geral não derivou maispara a esquerda”. As pessoas permanecem, emsua maioria, numa posição centrista, tomandoatitudes mais conservadoras desde 1996 apenasnos países mais turbulentos (Colômbia,Guatemala, Honduras, El Salvador, Nicarágua,Venezuela). Só no Paraguai mais de 30% dapopulação dá preferência ao governo autoritário.

Quando a pesquisa Latinobarómetro foirepetida, em 2003, revelou uma volatilidadesubstancial de um ano a outro e uma queda,desde 1996, na proporção das pessoas queendossam a idéia de que “a democracia épreferível a qualquer outra forma de governo”.Mas quase dois terços dos entrevistados aindadisseram que a democracia é a melhor forma degoverno e o único caminho que leva aodesenvolvimento, enquanto 57% disseram queo desenvolvimento só pode ser alcançado atravésde uma economia de mercado. De fato, 44%disseram que as grandes empresas estão se saindobem na construção de uma sociedade melhor e51% opinaram que os executivos dessasempresas poderiam fornecer uma liderançamelhor do que a classe política atual. Mas apesquisa também trouxe à tona muitaambivalência. No Brasil e no Peru,respectivamente 69% e 60% dos entrevistados

viram a democracia como a solução melhor,mas quase a mesma proporção disse que aceitariaum governo autoritário se ele fosse capaz deresolver os problemas econômicos. Em toda aAmérica Latina o medo do desemprego é muitopresente, com 23% dos entrevistados dizendoque têm dificuldade para pagar suas contas.Entre aqueles que passam por dificuldadeseconômicas, 47% se disseram a favor dademocracia, posição manifestada por 57%daqueles que conseguem poupar com o queganham.

Embora estudiosos tenham produzido umaliteratura vasta sobre a natureza e as perspectivasda democracia, Kurt Weyland, da Universidadedo Texas, observa: “A ciência política não propôsuma teoria unificada e coerente da estabilidadedemocrática”. A ampliação do eleitorado latino-americano se deu com a urbanização de longoprazo. No Peru, o número de eleitores aumentoude apenas 324 mil (5,5%) de uma população deseis milhões, em 1931, para doze milhões (46%)de uma população total de 26 milhões, em 2001.Em 1931, os analfabetos não tinham direito aovoto. Os eleitores, em sua maioria, eram mestiçoscom baixo grau de instrução. Nas regiões ruraisde população ameríndia, poucas pessoasvotavam: apenas 14 mil em Cuzco (número queaumentou para 458 mil em 2001) e apenas dezmil em Puno (522 mil em 2001). Desde de asprimeiras eleições, realizadas em 1850, a fraudeeleitoral era corriqueira.

A violência e a compra de votos eramorganizadas por candidatos que contratavamturbas entre a população urbana pobre paratomar os locais de voto à força. Os proprietáriosde terras, que em muitos países também eram oschefões políticos, arrebanhavam os peões eoutros dependentes nos locais de voto. NoBrasil, as eleições eram decididas com o controlede juízes e delegados de polícia. Em 1872, ummilhão dos nove milhões de brasileiros tinhamdireito ao voto, e apenas 20 mil de fato votaram.De acordo com Richard Graham, “eleições eviolência freqüentemente andavam de mãosdadas. Embora o resultado de eleiçõesfreqüentemente pudesse ser previsto ao nívelnacional, as disputas locais tinham importânciadesesperadora para certos homens”. Osperdedores muitas vezes eram perseguidos,enquanto os vencedores ganhavam patrocínio einfluência de setores tanto acima quanto abaixodeles na hierarquia. Os cargos federais, estaduais

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Menina Trikki, Oaxaca, México, 1967.

Entrada de mina, Siglo XX, Catavi, Bolívia, 1966.

contraste com os governos militares quedominaram na maior parte da região nas décadasde 1960 e 1970. Nas últimas duas décadas, amortalidade infantil caiu pela metade, matrículasescolares cresceram rapidamente e redes detransporte, comunicações, energia elétrica esaneamento básico se estenderam para melhorarpadrões de vida num país muito pobre. Opresidente Gonzalo Sánchez de Lozada, quechefiou o esforço para acabar com ahiperinflação nos anos 1980 e, na década de1990, promoveu reformas políticas importantes,foi forçado a renunciar em outubro de 2003 , aocabo de uma sangrenta revolta popular marcadapor batalhas campais e bloqueios de estrada quepôs fim a seus esforços para reduzir o enormedéficit público (8,5% do PIB) e, ao mesmotempo, tentar negociar as reivindicações dos“cocaleiros”, camponeses sem terra etrabalhadores desempregados das falidas minasestatais. Nenhuma dessas demandas foisatisfeita. O sociólogo boliviano Roberto Laserna

fala de uma “armadilha populista”.A bandeirapolítica da revolta era o protesto contra aexportação de gás natural por um porto situadona costa deserta do Chile, que tomou o territórioda Bolívia na Guerra do Pacífico (1879-84),privando a Bolívia de sua saída para o mar. Arevolta de outubro privou a Bolívia de umachance de chegar a ser uma fonte importante deenergia para as Américas, dotando seu governocom um fluxo seguro e de longo prazo dedivisas. O clímax da revolta foi o bloqueio doacesso a La Paz pela comunidade suburbana deEl Alto, cortando o suprimento de alimentos eoutros produtos à capital. Na primeira vez emque estive em La Paz, em 1965, El Alto erapouco mais do que um agrupamento de choçasde barro ao lado do aeroporto, na extremidadedo altiplano. Em 1984-85, quando fiz um estudodetalhado para o Banco Mundial, El Alto de LaPaz: The Origins and Prospects of Poverty in Bolivia,El Alto estava se transformando num municípioindependente, com 300 mil habitantes. Quandoretornei novamente em 2003, El Alto tinha seconvertido em uma região importante na políticanacional, com uma população de 700 milhabitantes. Esse crescimento rápido não sedevia a um simples inchaço da pobreza. Não setrata de uma cidade que está afundando nadesesperança e miséria. El Alto abrangedesenvolvimento infra-estrutural e expansãocomercial impressionantes, além de um setor deconstrução habitacional sólido. Mas seucrescimento é baseado em uma economiainformal, na qual pequenos comerciantescompetem ferozmente entre eles e fazem viagensárduas a baixo custo, em caminhões e ônibus,por toda parte na Bolívia e nos países vizinhos,para aproveitar as diferenças de preços locais ea isenção de regulamentos e impostos - umcomércio que floresceu nas últimas décadas emfunção da melhoria nos transportes. Ao mesmotempo em que poucos impostos são pagos, ademanda por serviços públicos crescerapidamente. O tipo de populismo típico de ElAlto está presente no novo Congresso.Aproximadamente metade de seus membrossão de origem aimara e quéchua. No entanto, arevolta deixa a Bolívia econômica e politicamente

e municipais totalizavam cerca de 200 mil em1920, um número igual ao dos votos necessáriospara vencer a eleição presidencial de 1919.

Em vista dessa história, é extraordinário queos eleitorados latino-americanos tenhamcrescido tão rapidamente nas duas últimasdécadas, e com tão poucos incidentes de fraudee coerção. De 1945 para cá o eleitorado brasileirose multiplicou por 19, passando de 5,9 milhõespara 119 milhões de pessoas. O parasitismofiscal se ampliou, acompanhando o crescimentodo sistema político. Os Poucos se multiplicaram,graças a regras eleitorais bizarras pelas quaispassam muito tempo sem precisarem prestarcontas aos Muitos. Entre uma eleição e outra, apolítica tende a reduzir-se a maquinaçõesexóticas e misteriosas no interior daquela queficou sendo conhecida como “a classe política”.Os custos da competição e a quantidade deenvolvidos foram aumentando à medida que ospartidos presentes no Congresso proliferaram,com políticos individuais atuando sob bandeirasde conveniência. Após as eleições brasileiras de2002, um quinto dos deputados da Câmaratrocou de partido para bandear-se para o ladovencedor. De meados da década de 70 até1994, as deformações do sistema político eramfinanciadas por empréstimos estrangeiros e pelainflação crônica. Sob o Plano Real (1994-99),esforços para corrigir essas deformidadespassaram a ser financiados tanto pelo aumentode impostos, quanto por dinheiro estrangeiro.Essa mistura ainda é instável.

Retrocessos e frustraçõesRetrocessos na evolução democrática são

previsíveis. Em seus primeiros 150 anos comorepública, a Bolívia sofreu 170 golpes militares.Mais recentemente, o país gozou de duas décadasde democracia constitucional, a partir de 1983,abarcando seis sucessões ordeiras envolvendopresidentes livremente eleitos. Ele superou ahiperinflação e conquistou a estabilidade de suamoeda e dos preços. Juntamente com o resto daAmérica Latina, a Bolívia conquistou o governopelo consentimento dos governados, um legadoprecioso da civilização ocidental, formando um

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Lázaro Cárdenas, Presidente do México (1934-40), Oaxaca, 1967.

à deriva, mais uma vez profundamente feridapela fraqueza de suas instituições.

Nas últimas duas décadas, o regime políticomexicano evoluiu de um presidencialismoautoritário para um presidencialismo limitado,agora dividindo o poder com um Congresso egovernadores estaduais além de seu controle; deum sistema de partido hegemônico sustentadopor eleições manipuladas para um sistemamultipartidário com eleições livres. O governodo presidente Vicente Fox findou 70 anos dedomínio exclusivo do Partido RevolucionárioInstitucional (PRI). No México como no Brasil,as mudanças no sistema político e no financeiroforam provocadas pela crise das dívidas dadécada de 80. Quando o México declaroumoratória na sua grande dívida externa em1982, seu déficit público chegou a 16% do PIB.Ninguém soube quanto o governo estavagastando e quanto devia. O México tem umadas cargas tributárias mais baixas da AméricaLatina. Segundo Héctor Aguilar Camín o“México tem um Estado que gasta comomilionário e cobra como mendigo [com] muitasresponsabilidades e poucas receitas. O Estadoé especialista em não cobrar o que deve cobrarpara evitar custos políticos com ospagadores”.Como no Brasil, a reorganizaçãodas finanças públicas e a democratização políticaandavam juntos num processo que aindacontinua. Fox e seu Partido de Ação Nacional(PAN) sofreram perdas importantes nas eleiçõesparlamentares de julho de 2003, na metade domandato presidencial. Não conseguiu romperum impasse legislativo para poder cumprir suaspromessas de campanha de liberalizar aeconomia, com reformas tributária e trabalhista,e abrir o setor elétrico ao investimento privadopara vencer a falta de energia.

O renascimento da democracia no Peru veiocom a eleição em 2001 do presidente AlejandroToledo, economista de origem indígena, formadoem Stanford, que sucedeu ao governo corruptoe autoritário de Fujimori. O apoio popular queToledo recebe caiu para 7% nas pesquisas deopinião. Sua impopularidade foi atribuída àfraqueza de caráter, ao fato de ele ter elevadoseu salário para US$ 18 mil mensais, em meio àpobreza geral reinante no país, e ao fato de levaruma vida noturna largamente conhecida, aomesmo tempo em que se recusa a reconheceruma filha ilegítima adolescente, apesar dospedidos para que se submeta a testes de DNA.Toledo enfrenta restrições orçamentáriasintransigentes, com receita tributária que chegaa apenas 12% do PIB, o que tende a solapar osbenefícios da estabilidade fiscal e monetária edo crescimento econômico recente, ao mesmotempo em que a atividade guerrilheira retomadacomplica o que alguns observadores descrevemcomo “uma explosão de democracia”. Aausteridade fiscal aprofundou as frustraçõesassociadas à descentralização da autoridadegovernamental e à mobilização agressiva degrupos cívicos e que representam interessesespecíficos, levando ao bloqueio de estradas e auma greve nacional de professores que seprolongou por um mês.

A cúpula de presidentes latino-americanosem Cuzco lançou o seguinte aviso: “O aumentoe intensificação da pobreza, agravada por umnovo período de estagnação econômicaprolongada, constitui ameaça fundamental à

governabilidade democrática, levando àdeterioração da estabilidade institucional e dapaz social”. Mas a revista Caretas comentou:“O caso do Peru é diferente porque não éacompanhado de uma crise econômica, comoem outros países. Pelo contrário, a inflação émínima, a taxa de câmbio da moeda é estável, aeconomia e as reservas de divisas vêm crescendo,e certos investimentos importantes nos setoresde mineração e de gás natural são promissores.Não obstante, a popularidade do presidenteToledo vem caindo como uma pedra, e acredibilidade das autoridades públicas estádiminuindo. (...) Enfrentamos um contágio defrustrações, provocado não apenas pela misériasecular de grandes setores da população e pelasdesigualdades socioeconômicas, mas tambémpelas irritações semeadas pelo próprio governo.Promessas grandiloqüentes, quando não sãosatisfeitas, geram indignação e entregambandeiras de luta de mão beijada à oposição”.

Insatisfação e cidadaniaPode a insatisfação política ser vista como

sinal de progresso? “A desilusão com osgovernantes democráticos e a nostalgia dosautoritários foram um primeiro passo essencialno processo da consolidação democrática”,escreveu Huntington. “Democracia não significaque os problemas serão resolvidos; significa,sim, que os governantes podem ser removidos(...). A desilusão e a redução das expectativasque ela gera constituem os fundamentos daestabilidade democrática. As democracias seconsolidam quando as pessoas aprendem que ademocracia é a solução do problema da tirania,mas não necessariamente de qualquer outracoisa”.

O fim do financiamento fácil, a partir dainflação crônica ou dos empréstimosestrangeiros, impõe novos ônus ao tortuosodesenvolvimento da cidadania. Aqui nos vemosdiante das relações complicadas e em evoluçãoentre o Um, os Poucos e os Muitos que animarama política após as guerras da independência dosanos 1820. Em seu ensaio magistral sobre oscamponeses andinos e a construção das naçõesno século 19, Brooke Larson escreveu:

As reformas foram pouco a pouco abrindo caminhopara sistemas políticos exclusivistas, sociedades civisfrágeis e economias capitalistas incipientes. Asreformas eram regidas, implicitamente, por doisconjuntos de metas: inserir os indígenas na economiacomo trabalhadores de subsistência, mas trancá-lospara fora da nação como cidadãos.

Muitos países latino-americanos continuarama ser governados por uma panelinha ou outrapor muito tempo após a independência, edenúncias de “oligarquia” continuaram a serfeitas até os anos 1960. Mas as oligarquiaslatino-americanas raramente eram monolíticase freqüentemente lutavam entre si, como faziamas famílias “magnatas” nas cidades italianas doinício da Renascença, levando, na maioria doscasos, à instabilidade endêmica. Na Colômbia,é comum desde meados do século 19 falar em“oligarquia liberal” e “oligarquia conservadora”,mas esses rótulos perderam sua nitidez emfunção de diferenças regionais, vendetasfamiliares e rivalidades locais que em muitoscasos se tornaram violentas.

Desde a independência, as repúblicas hispano-americanas proclamaram sua afinidade com osideais políticos das revoluções francesa eamericana, mas a cidadania continuou a ser umproblema. O Brasil foi o último país da AméricaLatina a abolir a escravidão (em 1888), mas nãoera pior do que os outros em matéria de cidadania.A monarquia brasileira foi derrubada em 1889por um golpe militar desferido num clima deindiferença pública. Em 1891, a Constituiçãoda Primeira República (1889-1930) aboliu aobrigação do Estado de prover ensino primário,um mandado legal que não era financiado e quenão era cumprido, mantido oficialmente comoletra morta desde 1824. O historiador JoséMurilo de Carvalho explicou como os direitospolíticos se atrasaram em relação à legislaçãosocial, anuviando as questões de cidadania: “Opovo não tinha lugar no sistema político, nemsob a monarquia nem na República. Para ele, oBrasil era uma realidade abstrata”.

A partir de 1930, a legislação social disparouà frente dos direitos políticos sob a égide de

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Policial de trânsito, Caracas, Venezuela, 1969.

crônica. Cardoso procurou anular o estigma dainflação que afligiu Vargas. De acordo comLevine, “as aposentadorias, que formavam apedra angular do programa social de GetúlioVargas, estavam tão corroídas pela inflaçãoque, na década de 1950, muitas vezes osaposentados não se dispunham a gastar umapassagem de ônibus para ir buscar seus chequesde aposentadoria”. Entre 1960 e 1992 os preçosmundiais se multiplicaram por 17, na pior inflaçãoglobal registrada em toda a história. Duranteessas décadas, a inflação na América Latina setornou uma doença tão crônica que os preços aoconsumidor no continente se multiplicaram nãopor 17, mas por 14 milhões entre 1960 e 1992,sendo que o nível de preços no Brasil semultiplicou por 22 bilhões desde 1960. Nunca,nos anais da inflação mundial, nenhum outropaís conviveu por tanto tempo (34 meses) comaumentos de preço mensais de mais de 20%,graças a técnicas de indexação de salários, preços,impostos, dívidas e saldos bancários. Aindexação funcionou até que a máquina infernalda inflação acelerou e ameaçou se descontrolarmais uma vez, em 1994. Sob a ameaça dahiperinflação, FHC teve seu triunfo políticocom o lançamento do Plano Real, a oitavatentativa brasileira de derrotar a inflação feitadesde 1985 e que, dessa vez, pôs fim à indexação,reorganizou as finanças públicas e reduziu osaumentos anuais de preços de 5.115% em meadosde 1994 para quase zero em 1998. Outrosgovernos democráticos, no Chile, Bolívia, Perue Argentina, conseguiram controlar a inflaçãocrônica nos anos 1980 e 1990, numa conquistahistórica.

3. Os mitos de LulaO novo governo do presidente Luiz Inácio

Lula da Silva e seu Partido dos Trabalhadores(PT) vai testar a força da democracia, e tambémdos apelos opostos entre populismo e governoeficaz. Até agora, seus esforços estão voltadospara uma verdade básica: o povo brasileiro nãoaceitará uma volta à inflação e à instabilidadedos anos 1980 e início dos 1990. Um corolário

dessa verdade é o fato de que as pessoas queremum governo melhor, algo que o PT está tendodificuldade em oferecer. Mas o sucesso obtidopelo governo até agora no controle da inflaçãoe restauração do crédito internacional, além dasimpatia generalizada inspirada pelo novopresidente, homem do povo que prega aredenção da fome e da miséria, vem abafando aoposição política.

Lula atraiu mais atenção internacional do quequalquer outro líder latino-americano desde aascensão de Fidel Castro em Cuba, em 1958-59.Lula se tornou símbolo de mobilidade socialnuma nação de 175 milhões de habitantes quehoje constitui um dos mercados mais dinâmicosdo mundo. A eleição à Presidência do Brasil deum antigo torneiro mecânico e líder sindicalistado subúrbio industrial do ABC paulista, queestudou apenas até a 5a série e nasceu emextrema pobreza no interior do nordestebrasileiro fustigado pela seca, causou sensação.

Cinqüenta anos depois de migrar para SãoPaulo como menino de sete anos num pau-de-arara, Lula venceu o segundo turno eleitoral, em2002, com uma maioria de quase 20 milhões devotos, tendo dominado a arte de fazer campanhapresidencial após as três derrotas anteriores.

Desde que tomou posse, em janeiro de 2003,Lula tem passado cada vez mais tempodiscursando e viajando, deixando a gestão dogoverno, além das complicadas negociações como Congresso sobre seu programa de reformas, acargo de assessores no Ministério da Fazenda eno Planalto. Suas viagens oficiais já o levaram aÍndia, várias repúblicas latino-americanas, aoFórum Econômico Mundial em Davos, Suíça, àcúpula do G-8 na França, às Nações Unidas, aquatro reuniões com o presidente Bush, a cincopaíses da África e outros cinco no Oriente Médio(Líbia, Síria, Egito, Líbano e então o Golfo). Elefoi a atração principal no encontro de presidenteslatino-americanos realizado em Cuzco, no Peru.Em julho, quando ele fez uma palestra numaconferência sobre governança progressista naLondon School of Economics, brilhando mais doque os outros presidentes e primeiros-ministros,a disputa por convites foi tão grande que apalestra foi transferida de um anfiteatro com 400lugares para um auditório com espaço para 1.000,enquanto outras 500 pessoas assistiram do ladode fora, em circuito fechado de TV. “Lula quertransformar o Brasil, mas penso seriamente queele é capaz de transformar o mundo”, exclamouo presidente da LSE, o eminente sociólogoAnthony Giddens. Durante seu primeiro ano degoverno, Lula passou 185 dias fora de Brasília,68 dos quais em viagens ao exterior, fez 236discursos, mas não concedeu nenhuma entrevistacoletiva à imprensa. Seus assessoresagressivamente isolam Lula de contatos informaiscom a mídia.

Lula parece gostar de todas essas viagens, defazer discursos e receber adulação. Mas agora afesta acabou. Lula sabe que o charme e anovidade de seu triunfo eleitoral podem virarpó se ele não produzir resultados para seu povo.O consenso geral vindo de todas as partes doespectro político é que, embora a estabilizaçãoeconômica tenha sido bem sucedida, a políticasocial está falhando. Reconhecendo os fracassosdo primeiro ano de governo, Lula e o PTrealizaram uma reforma ministerial em janeirode 2004 para trazer ministros mais experientes

Getúlio Vargas, que dominou o cenário políticobrasileiro por muitos anos, em fases de reformarevolucionária (1930-37), do Estado Novo,ditadura com apanágios fascistas (1937-45), ede democracia eleitoral (1950-54). Em Pai dospobres? Brasil na era Vargas (2001), o falecidoRobert Levine, membro de nosso Instituto,apresentou com maestria as contradições queopuseram populismo e democracia no momentoem que Vargas “moldava pessoalmente o Estadobrasileiro moderno” e se tornava “o primeiropolítico a oferecer dignidade ao povo brasileiro”.À medida que o governo crescia em todos osseus níveis, escreveu Levine, “Vargas organizavaórgãos regionais para tratar da seca, da energiaelétrica e da produção de commodities. Decretosforam abrindo o caminho para a reforma dofuncionalismo público e a criação do saláriomínimo nacional. O governo davaaposentadorias a categorias de trabalhadoresselecionados, além de lhes garantir estabilidadeno emprego e indenizações. Foi criado umsistema de universidades federais. (...) As novasrodovias geraram empregos, levando a migraçõesmaciças de população, sendo que algumasdécadas antes poucas pessoas se aventuravampara fora de seus locais de nascimento, excetoquando movidas pela fome”. No entanto, ogoverno ditatorial de Vargas distorceu e truncouas instituições políticas, como também o fizeramas duas décadas de governo militar que seseguiram às turbulências dos anos 1950 e oinício dos anos 1960.

Após o fim do regime militar, em 1985, aclasse política civil adotou uma novaConstituição que ampliou em escalainsustentável a legislação social introduzida sobgovernos autoritários, para compensar pelarepressão dos direitos políticos. Após sua eleiçãoem 1994, o presidente Fernando HenriqueCardoso anunciou que sua administraçãorepresentaria “o fim da era de Getúlio Vargas”na história brasileira. Cardoso queria dizer queesperava poder reduzir o domínio do Estadosobre a economia brasileira e os direitosadquiridos dos grupos de interessecorporativistas, que alimentavam a inflação

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Aluna, Lima, Peru, 1973.

para o governo e consolidar o apoio doCongresso. Enquanto isso, o PT luta para geriros efeitos de um escândalo sórdido que envolveo seqüestro seguido de assassinato de CelsoDaniel, o prefeito petista de Santo André, emjaneiro de 2002. Daniel seria o coordenador dacampanha presidencial de Lula. As investigaçõesdo Ministério Público vinculam o assassinato aum esquema de corrupção supostamenteorganizado para extrair recursos para a campanhado PT. Lideranças do partido em Santo André,citados nas investigações, encontram-se agoraservindo o Gabinete de Lula em Brasília.

Em seu discurso de posse, Lula anunciou acriação de um programa de segurança alimentar,o Fome Zero. “Vamos acabar com a fome emnosso país. Vamos transformar o fim da fomeem causa nacional (...). Daremos ênfase especialao nosso projeto Primeiro Emprego, para geraroportunidades para os jovens que enfrentamdificuldades tão grandes para ingressar nomercado de trabalho”.O Fome Zero virou abandeira política dos primeiros meses do novogoverno, mas, basicamente, foi a recriação deprogramas já existentes que há muitos anos vêmdistribuindo alimentos, gás de cozinha, BolsaEscola e outros recursos a comunidades pobresem todo o Brasil. Promovido com um marketingagressivo, o Fome Zero tropeçou em confusãoburocrática e sofreu uma série de reorganizaçõesque ainda prosseguem.

Após um ano no poder, o governo ainda nãofoi capaz de anunciar uma estratégia para seuprograma Primeiro Emprego. Na campanhaeleitoral de 2002, Lula prometeu gerar 10 milhõesde novos empregos, enquanto seu principaladversário, José Serra, prometia criar 8 milhões-o tipo de promessa que é feito com freqüênciapor políticos na América Latina e em outraspartes do mundo. São promessas vazias, já queos governos não podem gerar empregos paramilhões de pessoas. Eles só podem gerarmelhores condições de trabalho. O Brasil perdeu20% de seus empregos em fábricas desde 1994,num processo mundial de encolhimento doemprego industrial, na medida em que asempresas produzem mais mercadorias commenos empregados. O trabalho informal estáaumentando em todo o mundo, especialmentena América Latina, com suas leis trabalhistasrígidas, os altos impostos sobre a folha salarial eos baixos níveis de instrução. As pessoasprocuram novos tipos de atividades. Muitasmanifestam muita criatividade nessa procura.O governo pode apoiar sua adaptação a novascondições, oferecendo a elas um ensino melhor,mercados de trabalho mais flexíveis eestabilidade econômica, como parte de umprograma mais amplo de desenvolvimentoinstitucional.

Lula está orgulhoso por chegar à Presidênciacom só cinco anos de escola, e pode achar queoutros pobres podem fazer o mesmo, e talvezpor isso tenha manifestado pouco interesse peloensino público, que é o instrumento principalpara desenvolver instituições e para promover ajustiça social. Os alunos brasileiros obtiveram oúltimo lugar, entre estudantes de 15 anos de 32países submetidos a testes de compreensão deleitura, em 2000, pela Organização para aCooperação e o Desenvolvimento Econômico(OCDE). O Sistema de Avaliação da EducaçãoBásica (SAEB) do Ministério da Educação não

tem comprovado progressos no aprendizadodesde 1991. A baixa renda e o baixo grau deinstrução andam de mãos dadas. Quase umquarto da população trabalhadora adultabrasileira em 2000 não tinha concluído a 4a

série. Três quartos dos que ganham o saláriomínimo mensal (US$ 83 dólares) ou menos nãoconcluíram a escola primária. Lula gosta deridicularizar os intelectuais, o que pode parecerestranho, haja visto o grande número deintelectuais que integram o PT. “Digo que apolítica não tem segredo”, disse ele em Brasília,alguns dias antes de seu discurso na LondonSchool of Economics. “Se há uma coisa queninguém precisa para entender de política, é umdiploma universitário.”

Apesar de sua falta de escolaridade, Lulapoderia se tornar um grande Presidente-Educador, ao lutar para melhorar as escolaspúblicas brasileiras falidas. Para chegar a isso,ele teria que pressionar a burocracia educacionalpara fortalecer a gestão e supervisão das escolas,melhorar o ensino da leitura no EnsinoFundamental e enriquecer o conteúdo no EnsinoMédio. Para isso, o governo teria que encabeçartransformações institucionais em escala muitogrande, envolvendo muitos milhões deestudantes, professores, administradores e pais.Teria, também, que superar a tradicionalresistência a inovações que afetariam osinteresses enraizados dos sindicatos deprofessores e das universidades, que sempreforam um dos esteios do apoio ao PT, juntamentecom outros setores de funcionários públicos.

Se Lula fosse Educador, ele iria à televisãopara dar aos brasileiros uma lição simples dearitmética em apoio de sua ambiciosa reformada Previdência, que foi dilacerada peloCongresso, dizendo: “O Brasil gasta 12% de seuPIB na Previdência, parte considerável parapagar as aposentadorias precoces dosfuncionários públicos. Isso é uma vergonha.Isso é o que os países europeus pagam parapopulações mais velhas e prósperas. Se podemoscortar o gasto com Previdência por só 1% doPIB, poderíamos aumentar o gasto por aluno noensino fundamental e médio em 25%. Hoje o

Brasil gasta só US$ 150 por aluno/ano noNordeste e US$ 400-$ 500 no Rio de Janeiro eSão Paulo. O que podemos conseguir gastandoessa mixaria na educação de nossos filhos? Nospreocupamos tão pouco com o futuro de nossosfilhos e de nosso país?”.

Lula e o PT têm demorado a reconhecer osproblemas do desenvolvimento institucional, etambém os progressos dos governos anteriores.Muitos destes problemas estão fora do calendárioeleitoral e levam tempo para ser resolvidos. Aomissão diante desses problemas tende a reduzira política pública à esfera da denúncia e dacaridade. No entanto, Lula e o PT poderiamcolher importantes ganhos eleitorais se tornassemo governo mais ecumênico, buscando consensoem questões chaves, como a educação e asegurança pública. Podem convocar de setorese partidos diferentes mais pessoas capazes detraçar e aplicar políticas de longo prazo a seremimplementadas por administrações sucessivas.Eles já o fizeram no esforço de controlar ainflação, com grandes benefícios políticos.

4. Desenvolvimento institucionalApesar de todo seu discurso revolucionário

passado, Lula foi assimilado pelo metabolismoda política brasileira. Tornou a democracia maisecumênica no reconhecimento dos avançosrecentes em matéria de mobilidade social. Lulaenxergou o que os brasileiros queriam:estabilidade com mais justiça social. O esforçoestá só começando. É cedo para prever oresultado. As exigências de estabilidade,segurança e oportunidade são frustradas pelasdificuldades em desenvolver competênciasinstitucionais para lidar com suas possibilidadesfiscais, privilégios de direitos adquiridos e máalocação de recursos. Seguem algumas idéias decomo vencer obstáculos ao desenvolvimentoinstitucional nas áreas críticas do ensino público,organização política e tributação.

4.1 Centros de excelência no ensinoPor volta de 1960, em 14 países latino-

americanos, apenas 1,7% das crianças em idade

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Pescadores, Bahia, 1978.

- com raras exceções - em investirprodutivamente no ensino público. De acordocom o Latinobarómetro, “a educação é um doselementos mais fortes a explicar o apoio àdemocracia”. Entre pessoas com instruçãouniversitária, 65% apóiam a democracia, contraapenas 49% no caso das que têm instruçãoapenas primária. “Nunca antes o acesso aoensino foi tão amplo quanto é hoje”,acrescentou a pesquisa. “Mais educação e rendamaior para mais pessoas geram mais cidadãoscríticos. Mais educação com freqüência é agrande responsável pelos protestos popularescontra a corrupção e o mau desempenhogovernamental”.

Está claro que faltam aos governos latino-americanos os recursos financeiros e humanospara empreender uma melhora maciça do ensinopúblico em escala nacional. A maioria deles,porém, pode melhorar seletivamente. Para geraras habilidades críticas necessárias para odesenvolvimento político e econômico futuro,centros de excelência podem ser criados emcapitais provinciais ou regionais. Eles seriamdotados de cursos enriquecidos e estimulantes,treinamento especial para professoresselecionados e bibliotecas modernas, tecnologiaem informática e quadras esportivas. Critériosde ingresso de alunos e professores nessescentros podem ser estabelecidos em basecompetitiva. Para reestruturar os incentivosperversos, diretores e professores bem sucedidosem seu trabalho podem ser financeiramenterecompensados. Os alunos bem sucedidospodem ser recompensados com bolsas nacionaisde estudos. Os graus de êxito podem ser medidospor exames competitivos e pela competiçãoentre centros de excelência provinciais eregionais, que criariam novos padrões a seremseguidos por outras escolas públicas. Essespadrões de desempenho seriam monitoradosaos níveis nacional e regional por pessoas defora das burocracias do ensino, representandoorganizações da comunidade, os legislativos, osetor privado e doadores internacionais. Hoje aigualdade absoluta no ensino público está forado alcance dos governos em quase todos os

países, ricos e pobres. Os centros de excelência,porém, pelo menos educariam mais pessoas agerir o governo e as empresas com mais eficácia.Também poderiam ajudar a América Latina aemergir de seu papel marginal e insignificanteno desenvolvimento do conhecimento e dosavanços tecnológicos.

4.2 Um padrão democráticoNão se deve esperar o altruísmo na política.

Por isso, é preciso de regras justas e coerentes.Mas as regras partidárias e eleitorais na AméricaLatina constituem um arquipélago que abrigauma ampla diversidade de habitats e espécies.Sistemas políticos arcaicos falharam emacompanhar a modernização das sociedades. Aausência de regras claras nutre distorções que,com freqüência, fazem uma representaçãoerrônea da vontade dos eleitorados eenfraquecem a crença dos eleitores nalegitimidade das decisões do governo, crençaessa que é solapada pela queda na credibilidadede partidos políticos na Argentina, Brasil,Bolívia, Peru, Equador e Venezuela. OLatinobarómetro observa “grande dose decinismo político na região. Enquanto 42% dosentrevistados dizem que votariam em um partidopolítico, apenas 11% expressa confiança nospartidos”. No Peru, segundo Julio Cotler, “existeum sentimento amplo de desilusão com a classepolítica, em função de ela não respeitar oprincípio fundamental da responsabilidade. Adecepção pública acelerou a decomposição dasidentidades políticas e contribuiu para o aumentoda volatilidade das preferências eleitorais e dadesorganização social. (...) O desencanto com a'democracia' tornou-se tão generalizado que amaioria dos peruanos se alegrou abertamentecom o golpe palaciano dado pelo presidenteFujimori em abril de 1992.”

O problema da representação é de importânciacentral para o governo democrático desociedades complexas. Atualmente, na AméricaLatina, os presidentes são eleitosdemocraticamente, enquanto os legisladoresainda podem ser escolhidos pelas oligarquias,agravando tensões entre os Poucos e os Muitos.

escolar alcançava o último ano da escolaprimária. Apesar do idealismo investido noensino rural pela Revolução Mexicana, quatroquintos das 20 mil escolas rurais mexicanas sóchegavam à 3a série. Na Guatemala, apenas5,2% das crianças da zona rural chegavam à 3ªsérie. Dos 12,7 milhões de crianças na zonarural brasileira, apenas 5 milhões freqüentavama escola, e, entre as que o faziam, a maioriaabandonava os estudos ainda no primeiro ano.Em Ten Keys to Latin America (1962), FrankTannenbaum explicou as tarefas que confrontamos governos que procuram satisfazer asnecessidades educacionais modernas:

O governo central precisa encontrar, construir, alugarou desapropriar escolas para os 50% ou mais dapopulação escolar que não tem acesso à escola hoje.Precisa encontrar, formar e contratar o dobro donúmero de professores que possui hoje e incluí-los nafolha de pagamento nacional. Precisa imprimir odobro do número de livros e cadernos, adquirir odobro do número de lápis e lousas. Precisa dobrar onúmero de inspetores escolares, contadores, arquivistas,supervisores e escolas de formação para professores.Precisa fazer tudo isso e muito mais, e precisa fazê-lo rapidamente. (...) É preciso encontrar os recursosnecessários para dobrar o orçamento da educação, sebem que em alguns países este já é grande.

Quatro décadas mais tarde, a maioria dessastarefas gigantescas já foi concluída, mesmo queem níveis de qualidade desanimadores. Emboratenham surgido as escolas, os professores e asburocracias de ensino, os alunos continuam semaprender. Será que esse investimento tremendofoi em vão? Provavelmente não, já que as escolaspúblicas oferecem socialização e aprendizadoque não estariam disponíveis de outra maneiranas grandes cidades. Mas está claro que asescolas latino-americanas não têm conseguindogerar a massa crítica de pessoas necessárias paragerir sociedades complexas, capazes de lançarnovos empreendimentos que gerem empregos eacelerem o crescimento econômico.

Em nossos Círculos de Leitura em escolaspúblicas da periferia da Grande São Paulo,jovens educadores do Instituto Fernand Braudeldiscutem os clássicos da literatura mundial comadolescentes talentosos que se esforçam paraaprender num ambiente em que florescem adesorganização e a leniência. Nessas escolassomos testemunhas do desperdício de talentos,da perda de oportunidades e de contribuições àsociedade que nunca chegam a ser feitas emfunção de aulas enfadonhas e vazias de conteúdo,das faltas habituais dos professores, darotatividade abrupta e acelerada de funcionáriose da violência, do vandalismo e do barulhoensurdecedor nos corredores. Os supervisoresraramente visitam as escolas e quase nuncaentram numa sala de aula. Embora as escolas deSão Paulo possam estar entre as mais violentasda América Latina, a desordem e o fracasso noaprendizado são características de muitos outrossistemas escolares que sofrem os efeitos deincentivos perversos. Com o horário escolaroficial restrito a quatro ou cinco horas por dia namaioria dos países, o tempo de ensino real podechegar à média de menos de três horas por dia aolongo do ano letivo.

Um dos principais desafios à democracia naAmérica Latina é a notória aversão dos políticos

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Ligas camponesas, Pernambuco, 1968.

Pesquisas recentes vêm destacando aimportância de leis eleitorais justas como chavepara estabilidade. A eleição de representantesúnicos de distritos padronizados, uniformes emtermos das dimensões de suas populações, podecorrigir distorções. Para criar padrões derepresentação mais eficazes, respeitando ascondições distintas das repúblicas individuais,pode ser útil organizar uma convenção deespecialistas e políticos profissionais dediferentes países, sob a égide de organismosinternacionais, para redigir uma CartaDemocrática que serva de referencial útil namodernização dos sistemas democráticos.

A debilidade dos partidos é especialmenteaguda no Brasil. A disciplina partidária nuncaexistiu nessa organização política que se tornoude longe a mais complexa da América Latina,graças às dimensões de sua população e seuterritório, a seu federalismo descentralizado e seusistema de grandes cidades espalhadas e distantesumas das outras. A legislação eleitoral favorece aproliferação de partidos pequenos e a trocafreqüente de partidos. Os presidentes nãoconseguem formar maiorias estáveis no Congressoe são obrigados a barganhar individualmentecom parlamentares para conquistar o apoio destesem questões cruciais. Durante o mandato de1991-94 do Congresso, a maioria dos 502deputados trocou de partido. Essas trocas departido se concentram nos Estados pobres eatrasados que são super-representados noCongresso, sob a fórmula imposta pelo regimemilitar em 1977 para garantir seu apoio legislativoe, mais tarde, ampliada por legisladores dessesEstados que, em função da distribuição injustaanterior, puderam dominar a redação daConstituição de 1988.

A fraqueza das instituições políticas é agravadapela má distribuição das vagas no Congresso.Brasil e Argentina são os países que apresentama pior injustiça na distribuição da representaçãolegislativa entre Estados e províncias, conferindoàs regiões mais pobres e menos povoadas umpoder de barganha enorme na negociação detransferências especiais de dinheiro do governocentral. A solução dos problemas fiscais do Brasilvem sendo atrapalhada por essa representaçãodistorcida no Congresso. A estrutura frouxa eatomizada do sistema político brasileiro permitiua emergência de novos partidos depois da ditaduramilitar encerrada em 1985, como o PT de Lula eoutros partidos. As lealdades partidáriasargentinas são mais fortes porque os líderesnacionais e provinciais controlam o acesso àsurnas. As estruturas dos Radicais e Peronistas, ospartidos tradicionais, voltaram praticamenteintactos depois de sucessivas ondas de repressãosob regimes militares, batalhando em um tipo deguerra não ideológica de clãs.

Apesar das dificuldades, as repúblicas latino-americanas vêm fazendo grandes decisõespolíticas nos últimos tempos. A maior de todas asdecisões tomadas pelos novos regimesdemocráticos foi a de pôr fim à inflação crônica,que devastou vários países e provocou ahiperinflação na Argentina, Bolívia, Brasil e Peru.Como corolário da estabilização econômica, essespaíses se abriram mais ao comércio externo eprivatizaram as indústrias estatais que perdiamdinheiro. Diversas repúblicas descentralizaramsuas estruturas de governo. Com mais autonomiaconcedida às autoridades locais, torna-se clara a

necessidades de regras de federalismo claras,uniformes e equilibradas. O Congresso brasileiroaprovou em 2000 uma Lei de ResponsabilidadeFiscal que limita os gastos, tomadas deempréstimos e a contratação de funcionáriospelos governos federal, estaduais e municipais.

Entre 1990 e 1994, nove repúblicas reformaramsuas leis eleitorais. Apesar disso, aindapermanecem distorções enormes. Os distritoseleitorais freqüentemente são grandes demais,aumentando o custo das campanhas para olegislativo e fazendo com que os congressistasnão sejam responsáveis perante nenhuma baseeleitoral local e identificável. Nas eleiçõeslegislativas no Brasil, as votações se dão a nívelestadual e municipal. Em maio de 1985, doismeses após o retorno ao governo civil, o Congressoaprovou uma emenda constitucional para autorizarseus membros a trocarem de partido livrementee para permitir a proliferação dos partidos,abolindo as cotas nacionais mínimas pararepresentação no Congresso. As eleições efinanciamento das campanhas sãopersonalizados, já que os candidatos podemcompetir com vários membros de seus própriospartidos, além de candidatos de outros partidos,num sistema de listas eleitorais abertas. Nomunicípio de São Paulo, todos os 55 vereadoressão eleitos a partir de um único distrito quepossui 6 milhões de eleitores. Eles têm o direitode contratar 21 “assessores” cada, mas nãopossuem fidelidades ou responsabilidades locais.Bairros que possuem 200 mil ou 500 mil habitantesnão contam com representantes identificáveis.

Existe uma literatura enorme reunida poracadêmicos sobre os problemas da democraciana América Latina, mas aparecem poucassugestões para melhorar a prática da democracia.As perguntas clássicas são: Como fortalecerinstituições políticas fracas num momento emque diminui a influência dos partidos políticosem todo o mundo? Como podem os partidospolíticos refletir com precisão e responder aosanseios dos eleitores? Em vista da fraqueza dospartidos, quais são os vínculos que mobilizam aação política? Até que ponto o sufrágio deve seruniversal? Deve o voto ser obrigatório? Quais

são as conseqüências do voto obrigatóriouniversal? Como podem as democracias ofereceraos presidentes apoio legislativo suficiente paraque os governos possam ser eficazes e, ao mesmotempo, garantir o respeito pelos direitos dosmenos privilegiados e minorias? Quais são ascausas e conseqüências dos impasses legislativosprolongados? Por que alguns sistemas sãosobrecarregados por partidos demais, impedindoa tomada de decisões? A quais atores políticos apopulação se volta quando está desesperançada?O que constitui uma emergência? Sob quaiscondições um presidente deve governar pordecreto, se é que deve fazê-lo em qualquermomento? Que papel o Congresso deve ter noprocesso orçamentário? Como corrigir adistribuição injusta de vagas no Legislativo? Comoé possível limitar as emendas menores,representando interesses regionais restritos, aprojetos de lei de alcance maior? Sob quaiscondições os eleitores devem ser consultados emreferendos? Como podem os governos estaduaise locais ganhar poder maior, como agentes dademocracia, sem pegar carona nas finançaspúblicas, aumentando a sobrecarga imposta aestas? Como as transferências orçamentárias e deimpostos para regiões necessitadas podem serdivididas de forma justa, sem gerar abusos?

Como outros sistemas políticos, a democraciapode ser abusada pelos ocupantes do poder,mas pode ser corrigida pacificamente. Acorreção, nas democracias latino-americanas,parece consistir em simplicidade e uniformidademaiores. A simplicidade deveria ser a meta dosprocessos democráticos. A simplicidade dossistemas eleitorais pode aumentar com o nívelde alfabetização e instrução das populações queos constituem. Se os sistemas políticos sãoregidos por questões técnicas de difícilcompreensão, as minorias ganham chancesmaiores de dominar os processos e resultados.Ao simplificar, se pode desenvolver elegância eeficiência, inspirando admiração e confiança.

4.3 Impostos e democraciaUm slogan da luta pela independência dos

Estados Unidos da Grã-Bretanha, no século 18,

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14 BRAUDEL PAPERS

Bairro Guachipita, Santo Domingo, República Dominicana, 1967.

Ministro da Fazenda, diz: “Os investimentospúblicos brasileiros, especialmente os chamadosgastos sociais, beneficiam basicamente os quenão são pobres”.

Contrastando com essa situação, a cargatributária argentina foi de apenas 15% do PIB nasúltimas décadas. México, Colômbia, Peru eBolívia recolhiam apenas entre 12% e 14%, ouseja, menos da metade da parcela do PIB que étaxada nos Estados Unidos e Japão (30-33%) eum terço do que é taxado na Europa (40-50%),todos países muito mais ricos, e até mesmo umterço menos do que o nível da Índia (20%). Essesníveis baixos de tributação privam os governoslatino-americanos dos recursos necessários parasustentar os compromissos fiscais das sociedadesmodernas. O custo e a abrangência dessescompromissos cresceram radicalmente no finaldo século 20, especialmente nas áreas deeducação, saúde e regulamentação e na infra-estrutura física e organizacional dos transportes,comunicações e fornecimento de energia.

A civilização cobra seu preço. Uma pergunta aser feita a todas as democracias é se os cidadãosdevem pagar pela manutenção e expansão dassociedades modernas, ou se os direitos adquiridosdos eleitores os habilitam a pegar carona numprocesso financiado por outros. Como tão bemobservou F.A. Hayek:

A mera existência não confere direito ou pretensãomoral a qualquer pessoa sobre qualquer outra.(...) Osdireitos derivam de sistemas de relações dos quais odemandante se tornou parte, na medida em que ajudaa mantê-los (...). Apenas as expectativas geradas pelaprática prolongada podem criar para os membros dacomunidade deveres em que eles prevalecem, e isso éuma razão pela qual é preciso usar de prudência nacriação de expectativas, para que não se incorra numdever que não se tem condições de cumprir.

Em todos os países, ricos e pobres, a democraciasofre pressões e ameaças constantes, geradaspela reivindicação dos Muitos pela distribuiçãodos recursos limitados do Estado. Essa questãoalcança uma gama ampla de problemasespecíficos, desde aposentadorias até cobrançade tarifas para sustentar serviços vitais de água e

eletricidade. Aristóteles já descreveu o problemamuito tempo atrás:

Qual deve ser o poder supremo no Estado? Amultidão? Ou os ricos? Ou o homem melhor? Ou umtirano? Qualquer dessas alternativas parece envolverconseqüências desagradáveis. Se os pobres, porexemplo, por serem em número maior, dividirementre eles os bens dos ricos, isso não será injusto?Não, pelos céus (será a resposta), pois a autoridadesuprema assim o quis. Mas se isso não é injustiça,então o que, rogo que me digam, o é? E novamente,quando tudo foi tomado na primeira divisão e amaioria volta a dividir os bens da minoria, não éevidente que, se isso continuar a acontecer, a maioriaacabará por arruinar o Estado?

Como podem ser obtidos recursos fiscais paraaumentar a segurança e as oportunidades nessassociedades? Existem duas áreas de debilidade.Uma delas é o baixo índice de impostos sobre arenda (de pessoas físicas e jurídicas) e sobre bensimobiliários. Governos dependem demais deimpostos em cascata, que se elevam para níveismuito altos e, freqüentemente, tornam-seimpossíveis de serem implementados no decorrerda produção e da distribuição. A receita obtidacom os impostos de renda é muito baixa (menosde 5% do PIB) no Brasil, México e Colômbia,especialmente quando comparada ao queacontece em federações mais ricas, comoAustrália, Canadá, Alemanha, Espanha e EstadosUnidos, nas quais a dependência dos impostossobre a renda é grande. Nos países ricos, onúmero de pessoas pagando impostos sobre rendapessoal é quase igual ao número de eleitores. Maso Brasil tem 115 milhões de eleitores com só oitomilhões pagando imposto de renda porque ospobres ficam isentos de impostos pessoais. NosEstados Unidos, impostos de renda geram 51%da receita do governo, contra só 17% no Brasil.Quase metade da receita do imposto de renda épaga pelos ricos (ganhando mais de US$ 200 milao ano nos EUA), enquanto na América Latinaos ricos facilmente fogem dos impostos. Osimpostos sobre propriedade são baixos ouinexistentes. Embora as cidades médias e grandestenham crescido rápido nas últimas décadas,gerando novas demandas por serviços dosgovernos locais, as avaliações de imóveis parafins de cobrança de impostos territoriaiscontinuam a ser muito mais baixas do que asavaliações de mercado. Os imóveis territoriaisrurais praticamente escapam de qualquertributação. Embora a teoria da tributação prevejaa taxação de imóveis pelos municípios, com basena idéia de que a cobrança é facilitada peloconhecimento local, os esforços para aumentar acoleta de impostos locais freqüentementeenfrentam resistência acirrada.

Uma segunda fraqueza é que as principaisrepúblicas latino-americanas vêm aderindorecentemente a uma tendência mundial dedescentralização governamental, que, nos casosdo Brasil, Argentina, Bolívia, Peru, Colômbia,Venezuela e México, tem significado odesenvolvimento de novas formas de distribuiros recursos dos governos centrais entre asautoridades regionais, com diferenças tremendasde riqueza e capacidade administrativa. Desde adécada de 1980, todos esses países vêm lutandopara lidar com formas de federalismo fiscal paraa transferência de fundos do governo central para

dizia que “taxação sem representação é tirania”.O slogan poderia ser invertido, dizendo:“Representação sem taxação é uma farsa”. NaAmérica colonial espanhola, a monarquia deMadri criou um sistema de controles fiscaiscomplexo, mas inoperante. Ordens e decretosreais previam em detalhe como deveria ser feitaa contabilidade dos impostos, para evitar asonegação e malversação num sistema frouxo emque a arecadação dos impostos freqüentementeera franqueada a cobradores fiscais quecompravam do governo o direito de cobrá-los. Ataxação era baseada principalmente no comércioexterior, numa dependência que se estendeu atéos tempos republicanos, chegando ao século 20.Na época da 1a Guerra Mundial, nenhum paíslatino-americano obtinha menos de 50% de suareceita pública das taxas alfandegárias, e, emmuitas repúblicas, essa porcentagem chegava a70%, com renda per capita, em 1913, tão baixaquanto US$ 8 no Brasil e US$ 4 na Bolívia,México, Peru e Venezuela. A parcela maior dosimpostos era usada para saldar a dívida pública.Enquanto isso, a taxação baixa gerava a contraçãode ainda mais impostos e uma políticainflacionária, à medida que cresciam as demandaspolíticas feitas aos governos e que aumentava acomplexidade social. Os governos foramdependendo cada vez mais do impostoinflacionário, isto é, dos lucros obtidos com aimpressão de mais dinheiro, mas eram punidoscom demoras na coleta dos impostos e corrupção,que corroiam a arrecadação num ambienteinflacionário.

A tributação baixa é uma característica estruturaldas economias latino-americanas desde aindependência desses países, com a exceçãorecente do Brasil. O Brasil é a grande exceçãolatino-americana, com seus avançosimpressionantes na cobrança de impostos. Hojemuitos brasileiros se queixam de que sua cargatributária, 36% do PIB, é alta demais para um paísem sua categoria de renda per capita. Entretanto,esse nível de tributação possibilita ao Brasil pagarpor erros e distorções passados e presentes emsua estrutura fiscal, a carga pesada de sua dívidapública e sua distribuição de recursos, com poucoinvestimento público. Maílson da Nóbrega, ex-

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Tomada de terra dos Mapuche, Província de Cautín, Chile, 1972.

os regionais e locais, visando solucionardesequilíbrios políticos e econômicos.

O elo mais fraco no desenvolvimentodemocrático latino-americano é o município,ponto fraco esse que forma um contrastemarcante com o papel crítico exercido pelomunicípio livre na modernização política daEuropa ao longo dos séculos. Os municípioseuropeus eram financeiramente independentes,com poucas obrigações sociais; já os latino-americanos dependem das transferências obtidasdos governos nacional e estaduais, ao mesmotempo em que assumem papéis cada vez maioresna saúde e educação pública, embora recolhampoucos impostos. Entretanto, com o apoiotécnico de organismos federais, os municípiosbrasileiros vêm aumentando a parcela de impostorecolhido, ao longo da década passada desde aaprovação da Constituição de 1988, em ritmotrês vezes superior ao do governo federal e duasvezes maior que os Estados. O recolhimento deimpostos municipais se concentra nas capitaisestaduais e nas grandes cidades, as maiores dasquais permanecem em crise fiscal permanente,do mesmo modo que a maioria das mega-cidadesno resto do mundo. A maior parte do aumentonos impostos recolhidos foi gerada peloinvestimento em sistemas informatizados.

Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica,México, Nicarágua, Peru e Venezuela tentaramelevar o nível de tributação nos anos 1990, emalguns casos apresentando retrocessos, apósavanços iniciais. O Brasil conduziu o esforçodesse tipo mais bem sucedido da América Latina,tanto no longo prazo quanto nos anos recentes.Desde 1947 o Brasil aumentou sua carga tributáriade 14% para 36% do PIB, um aumento de longoprazo pontuado por recaídas ocorridas durante osmomentos de pico da inflação crônica (1958-64e 1982-94). O Peru aumentou sua receita tributáriade aproximadamente 13% do PIB no início dadécada de 1950 para 20% em 1980, masretrocedeu outra vez para 8,5% do PIB diante daturbulência política e inflação crescentes quemarcaram o final dos anos 1980. O aumento maisrecente na taxação brasileira se deu durante aestabilização que teve início em 1994. Aalternativa à elevação dos impostos sob o Plano

Real teria sido a moratória da dívida pública dogoverno, de suas obrigações inchadas comaposentadorias e pensões e das transferênciasfederais para Estados e municípios. Desde 1994a carga tributária subiu de 24% para 36% do PIB,enquanto a inflação mensal caiu de cerca de 50%em 1994 para abaixo de 1% em 2001. Continuama ser travadas disputas políticas furiosas emtorno da distribuição dos recursos. Até agora,entretanto, essas disputas vêm sendo conduzidasdentro do quadro de um maior fortalecimentodas instituições financeiras públicas que vemocorrendo desde meados dos anos 1980, com oesclarecimento gradativo de informações, limitese obrigações que alcançou o auge com a aprovaçãoda Lei de Responsabilidade Fiscal, em 2000. Semesses instrumentos legais, o governo brasileiroteria pouca chance de controlar a inflação.

Muitos brasileiros se queixam de que seu sistematributário é injusto, redundante e complicado emexcesso. Os pobres são menos conscientes dosimpostos que pagam embutidos nos preços novarejo. Os esforços feitos para reformar o sistematêm terminado repetidas vezes em impasse efracasso. Após negociações prolongadas com oCongresso e os governadores estaduais, o novogoverno conseguiu apenas proteger e aumentarligeiramente a receita federal. Embora a reformadas leis tributárias seja um processo políticogradativo e que se conduz em partes, as finançaspúblicas podem ser fortalecidas com oinvestimento em administração tributária,principalmente na informatização dos sistemas eno treinamento de uma burocracia que precisaser vista como apolítica. Para isso, a ReceitaFederal brasileira financia cursos avançados paraseus funcionários de carreira. As avaliações deobrigação tributária devem ser feitas com basenas transações financeiras e nos padrões de vidaaparentes. “Os impostos sobre transaçõesfinanceiras, embora sejam polêmicos, sãoextremamente eficazes e difíceis de sonegar eimplicam em custos baixos de recolhimento”, dizEverardo Maciel, ex-secretário da Receita Federal(1995-2002). “Além disso, eles forneceminformações importantes para outras formas derecolhimento”.A tributação e a viabilidade da democracia são

interligadas pela divisão de cargas para pôr fim aoparasitismo fiscal, deslocando os gastos públicosdo consumo em direção ao investimentoprodutivo. A alternativa perigosa é o retorno àsarmadilhas da dívida e às moratórias em série dopassado, reativando a inflação crônica,desestabilizando a política e empobrecendo asociedade. Desde que conquistou aindependência, na década de 1820, a Venezuelajá declarou moratória de sua dívida pública novevezes, o México, oito vezes, a Colômbia e oBrasil, sete vezes e a Argentina, cinco vezes.Embora as dívidas públicas tenham diminuídona primeira metade da década de 1990, graças àsrenegociações efetuadas sob o Plano Brady, elasvoltaram a subir acentuadamente desde então.Na Argentina, a dívida pública aumentou de 30%do PIB no início da década de 1990 para 150%em 2002, ano em que voltou a declarar moratória.A dívida pública do Brasil subiu de 33% do PIBem 1996 para 58% em 2003. Esse inchaço dadívida é resultado da absorção federal de dívidasdos governos estaduais e do reconhecimento dedívidas passadas mas, principalmente, das altastaxas de juros, que aumentaram de 19% em 2002para 23% em 2003, frente a necessidade decompensar para o risco de calote percebido pelosinvestidores. Os juros da dívida pública subiramde 2,8% do PIB em 1996 para 9,5% em 2003,mais do dobro do vultoso superávit primário(4,3% do PÌB) conseguido pelo governo, e que oBrasil precisava gerar só para conter o crescimentoexplosivo da dívida. Os economistas prevêemque a carga da dívida vai reduzir um pouco em2004, graças a juros menores e maior crescimentoeconômico. Durante 2003 o governo conseguiualongar as dívidas e reduzir sua exposição àvolatibilidade do câmbio e dos juros. Mas serámuito difícil para o Brasil sustentar pagamentosda dívida nesta escala por muito tempo. Será umesforço em vão se as repúblicas latino-americanaspermanecem presas em um cassino de mercadosinternacionais de títulos, com seus ciclos maníaco-depressivos de liquidez e crises, com preçoserráticos. Por que a dívida de um país instávelcomo a Ucrânia tem um prêmio de risco desomente 3% a mais que os títulos do Tesouronorte-americano, enquanto o Brasil hoje paga5% e teve que pagar um prêmio de 24% duranteo pânico do período pré-eleitoral em 2002? Paísespodem se defender contra estas mudançasabruptas somente através da consolidação desuas finanças públicas, um processo que está emandamento em grande parte da América Latina.O Chile oferece um modelo democrático deredução da dívida pública. Depois que seu regimemilitar declarou a moratória de sua dívida externapública, nos anos 1980, o governo democráticochileno que chegou ao poder em 1989 reduziusua dívida de 54% do PIB em 1990 para 21% em2002. O governo melhorou a coleta de impostos,restringiu os gastos, aumentou a receita obtidadas estatais reformadas, proibiu o Banco Centralde fazer empréstimos ao governo e proibiu osgovernos provinciais de contrair empréstimos.Para o Chile, após a desordem criada sob ogoverno esquerdista de Salvador Allende (1970-73) e a repressão da ditadura militar de AugustoPinochet (1973-1989), o que estava em jogo eraa sobrevivência da democracia. Esse é o caminhoque outras democracias terão que trilhar. OBrasil e o Peru, entre outros países, já embarcaramnesse rumo e enfrentam tempos de desafios.

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Tradução de Clara Allain.Assistência editorial de Virginia Rezende Montesino.

Arado incaica, Fazenda Lauramarca, Cuzco, Peru, 1970.

democracia no Ocidente pela mobilização depopulações e recursos para a guerra, como nocaso da luta de um punhado de cidades gregascontra o império persa, da Revolução Francesa,da Guerra Civil Americana, da Alemanha deBismarck e das 1a e 2a Guerras Mundiais, aúltima das quais travada como luta ideológicada democracia contra a tirania, levando à difusãoda democracia por todo o mundo no final doséculo 20. Sobre a Revolução Francesa, McNeillescreve:

Ideais de liberdade, igualdade e fraternidadeincorporados no sufrágio masculino universal foramacompanhados pelo alistamento militar obrigatóriouniversal dos homens jovens. Como resultado,exércitos franceses grandemente ampliados e treinadosàs pressas puderam derrotar sucessivas coalizões deseus adversários europeus.

Na América Latina, com a possível exceçãodo desastre boliviano na guerra do Chaco, contrao Paraguai (1932-35), a mobilização para aguerra contribuiu pouco ou nada à criação deinstituições democráticas. Mas essas repúblicasestavam adotando legislações sociais européiasmuito antes dos ideais da democracia seremdifundidos, durante e após a 2a Guerra Mundial.De fato, tanto a Europa quanto a AméricaLatina se esforçam para conseguir sustentar acarga fiscal pesada do estado de bem-estarsocial, apesar dos compromissos mínimos comgastos militares. Na América Latina, os fatoresde rigidez impostos pela legislação social -impostos pesados sobre a folha de pagamentos,segurança no trabalho e aposentadorias do setorpúblico - desviam os recursos dos investimentos

* * *

O presente ensaio propôs três caminhos parao avanço rumo à consolidação da democracia naAmérica Latina: (1) a criação de centros deexcelência no ensino, (2) a reestruturação dasregras partidárias e eleitorais para melhorar aqualidade da representação, e (3) o aumento dosimpostos, para financiar o governo moderno.Essas metas podem, num primeiro momento,parecer exageradas. Mas elas intimidarão menosse levarmos em conta os avanços conquistadosno último meio século, especialmente nasdécadas recentes. Um obstáculo que dificulta oavanço para novas conquistas é a falta deconvicção de que podemos fazer melhor. A faltade convicção se alimenta da fraqueza dasinstituições e também a reforça.

O avanço do Estado de bem-estar social naEuropa ocidental e nos Estados Unidos formaum contraste com a experiência pós-colonial naAmérica Latina, em termos de seus níveis deriqueza e conhecimento, do papel da cidadaniae da cultura tributária. De fato, sem as pressõesde guerras perenes que impulsionaram odesenvolvimento das finanças públicas naEuropa, as repúblicas latino-americanas vêmcontraindo empréstimos e mais empréstimos jáque não tributam adequadamente. Essasdificuldades agravaram as distorções gritantesna distribuição de recursos entre o Um, osPoucos e os Muitos, sob a forma de jurospesados e de fragilidade fiscal endêmica.

Pode a democracia resistir? Esse é o título de umensaio cético, ainda inédito, do grandehistoriador William McNeill, membro de nossoInstituto e meu amigo, que explica a ascensão da

estratégicos em educação e infra-estrutura egeram obstáculos à flexibilidade do mercado detrabalho necessária para que famílias e naçõespossam adaptar-se às transformações daeconomia mundial.

Minha visão otimista é que, na experiênciahumana, as forças da cooperação são mais fortes,em última análise, do que as forças da dissolução.Não fosse assim, as civilizações não existiriame a humanidade não teria evoluído. Nasdemocracias modernas, nos vemos a todo omomento diante dos dilemas e das oportunidadesenfrentados pelas repúblicas de tempos passados.A maior parte das democracias e repúblicas vivetempos de turbulência. Continuamos expostosaos desafios apresentados pelo humanismocívico da Renascença. Eles envolvem uma lutaantiga descrita por Maquiavel, na linguagem dohumanismo cívico, como uma preocupaçãomoralista intransigente com os problemas daliberdade e da corrupção. É por essa razão quea convicção é tão importante. A convicção nabusca da justiça, do conhecimento e dasoportunidades aumenta as perspectivas desobrevivência e até mesmo excelência nodesenvolvimento de nossas instituições. Pobrezae injustiça são velhas histórias na América Latina,como em outras regiões. Mas estamoscaminhando pra frente, não pra trás, num climade mudanças rápidas. Ter esperanças de avançosfuturos pode mobilizar recursos para umaorganização mais produtiva da política e dasociedade.

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