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Teoria de An´ eis 2012 - Notas de Aula Departamento de Matem´ atica Universidade Federal do Paran´ a Prof. Marcelo Muniz Silva Alves digita¸c˜ ao: Marcelo Muniz Silva Alves Francieli Triches Milayne Guimar˜ aes 1. umeros inteiros Nesta parte, recordaremos alguns conceitos e resultados sobre n´ umeros inteiros. Esta se¸ c˜ao e a seguinte, sobre inteiros m´odulo m, formam um “microcosmo” do que estudaremos neste curso. 1.1. Propriedades alg´ ebricas b´ asicas dos inteiros. Recorde que Z satisfaz (i) a +(b + c)=(a + b)+ c, para todos a, b, c Z (associatividade da soma) (ii) Existe 0 Z tal que a +0=0+ a = a, para todo a Z. (elemento neutro da soma) (iii) Para cada a A existe um elemento b Z tal que a + b = b + a = 0. (oposto para soma) (iv) a + b = b + a para todos a, b Z. (comutatividade da soma) e o produto satisfaz (v) a(bc)=(ab)c para todos a, b, c, Z (associatividade do produto) (vi) a(b + c)= ab + ac e(a + b)c = ac + bc para todos a, b, c Z (distributividade `a esquerda e`adireita) (vii) Existe 1 Z,1 6= 0, tal que a · 1=1 · a = a para todo a Z (elemento neutro do produto) (viii) ab = ba para todos a, b Z. (ix) (cancelamento para o produto) Se ab = ac e a 6= 0 ent˜ ao b = c. Conjuntos que tˆ em opera¸ c˜oes de soma e produto satisfazendo (i) - (viii) s˜ ao chamados de an´ eis comutativos; um dom´ ınio de integridade ´ e um anel (comutativo) onde vale tamb´ em o cancelamento para o produto. Dizemos que a divide b em Z se b ´ e m´ ultiplo de a, ou seja, se existe c Z tal que b = ac. Entre outras propriedades, segue direto da defini¸c˜ao que (i) Se a|b e b|c ent˜ ao a|c (ii) Se a|b e a|c ent˜ ao a|(am + bn) para quaisquer m, n Z (iii) Se a|b e b 6= 0 ent˜ ao |a|≤|b|. Logo, quando a, b 6= 0, segue que a|b e b|a se e somente se a = ±b. Quando a - b, ainda podemos fazer uma “aproxima¸c˜ ao” de a por um m´ ultiplo de b usando a divis˜ ao com resto. Teorema 1.1 (Algoritmo da Divis˜ ao). Dados a, b Z com b 6=0, existem ´ unicos q,r Z tais que a = bq + r e 0 r< |b|. A ideia da demonstra¸c˜ ao ´ e considerar o conjunto {a - bx; x Z e a - bx 0}. Este ´ e um conjunto n˜ao-vazio de inteiros que ´ e limitado inferiormente por 0, e por isso tem um m´ ınimo r = a - qb. Este m´ ınimo ´ e o resto da divis˜ ao, e o q correspondente ´ e o quociente. Este ´ e um resultado simples mas central em teoria de n´ umeros, e tem consequˆ encias muito importantes para a estrutura de anel de Z. 1

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Teoria de Aneis 2012 - Notas de AulaDepartamento de MatematicaUniversidade Federal do Parana

Prof. Marcelo Muniz Silva Alves

digitacao: Marcelo Muniz Silva AlvesFrancieli TrichesMilayne Guimaraes

1. Numeros inteiros

Nesta parte, recordaremos alguns conceitos e resultados sobre numeros inteiros. Esta secaoe a seguinte, sobre inteiros modulo m, formam um “microcosmo” do que estudaremos nestecurso.

1.1. Propriedades algebricas basicas dos inteiros. Recorde que Z satisfaz

(i) a+ (b+ c) = (a+ b) + c, para todos a, b, c ∈ Z (associatividade da soma)(ii) Existe 0 ∈ Z tal que a+ 0 = 0 + a = a, para todo a ∈ Z. (elemento neutro da soma)

(iii) Para cada a ∈ A existe um elemento b ∈ Z tal que a+ b = b+ a = 0. (oposto para soma)(iv) a+ b = b+ a para todos a, b ∈ Z. (comutatividade da soma)

e o produto satisfaz(v) a(bc) = (ab)c para todos a, b, c,∈ Z (associatividade do produto)

(vi) a(b+ c) = ab+ ac e (a+ b)c = ac+ bc para todos a, b, c ∈ Z (distributividade a esquerdae a direita)

(vii) Existe 1 ∈ Z, 1 6= 0, tal que a ·1 = 1 ·a = a para todo a ∈ Z (elemento neutro do produto)(viii) ab = ba para todos a, b ∈ Z.(ix) (cancelamento para o produto) Se ab = ac e a 6= 0 entao b = c.

Conjuntos que tem operacoes de soma e produto satisfazendo (i) - (viii) sao chamados deaneis comutativos; um domınio de integridade e um anel (comutativo) onde vale tambem ocancelamento para o produto.

Dizemos que a divide b em Z se b e multiplo de a, ou seja, se existe c ∈ Z tal que b = ac.Entre outras propriedades, segue direto da definicao que

(i) Se a|b e b|c entao a|c(ii) Se a|b e a|c entao a|(am+ bn) para quaisquer m,n ∈ Z

(iii) Se a|b e b 6= 0 entao |a| ≤ |b|. Logo, quando a, b 6= 0, segue que a|b e b|a se e somente sea = ±b.

Quando a - b, ainda podemos fazer uma “aproximacao” de a por um multiplo de b usando adivisao com resto.

Teorema 1.1 (Algoritmo da Divisao). Dados a, b ∈ Z com b 6= 0, existem unicos q, r ∈ Z taisque a = bq + r e 0 ≤ r < |b|.

A ideia da demonstracao e considerar o conjunto {a − bx;x ∈ Z e a − bx ≥ 0}. Este e umconjunto nao-vazio de inteiros que e limitado inferiormente por 0, e por isso tem um mınimor = a− qb. Este mınimo e o resto da divisao, e o q correspondente e o quociente.

Este e um resultado simples mas central em teoria de numeros, e tem consequencias muitoimportantes para a estrutura de anel de Z.

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1.2. Z e um domınio de ideais principais. Um ideal em Z e um conjunto I tal que

(i) 0 ∈ I(ii) Se x, y ∈ I entao x+ y ∈ I

(iii) Se x ∈ I e m ∈ Z entao mx ∈ I.

Um exemplo e o conjunto de todos os multiplos de um numero m fixo:

I = {mx;x ∈ Z}.Chamamos este ideal de ideal principal gerado por m. Este conjunto e denotado por mZ. Emparticular, Z e um ideal (gerado por 1) e I = {0} e um ideal (gerado por 0).

Uma variacao disso aparece quando consideramos a equacao linear

ax+ by = c

em Z. Se essa equacao tem solucao (x, y) em Z, entao c esta no conjunto

I = {am+ bn;m,n ∈ Z}que tambem e um ideal de Z. Generalizando, podemos olhar a equacao

a1x1 + a2x2 + · · ·+ anxn = c

e nos perguntar novamente se tem solucao ou nao. Como no caso anterior, se houver solucao,o numero c esta no conjunto

J = {a1x1 + a2x2 + · · ·+ anxn;xj ∈ Z, j = 1, . . . , n}que e outro ideal de Z. Embora isso de a ideia de que podemos inventar muitos tipos de ideaisdiferentes, na verdade ha apenas um tipo de ideal em Z.

Teorema 1.2. Todo ideal I nao-nulo de Z e principal, e e gerado por seu menor elementopositivo.

Demonstracao. Seja I um ideal nao-nulo, isto e, I 6= {0}. Afirmamos que o conjunto I+ doselementos positivos de I nao e vazio. De fato, existe pelo menos um elemento a 6= 0 em I. Sea > 0, esta provado; se e negativo, entao −a = (−1)a pertence a I e e positivo.

Seja m o menor elemento de I. Pela definicao de ideal, o ideal mZ esta contido em I. Vamosmostrar agora a inclusao contraria. Se a ∈ I, dividindo a por m podemos escrever a = qm+ r,onde 0 ≤ r < m. Disso segue que r = a−qm e um elemento de I, pois e diferenca de elementosde I. Como 0 ≤ r < m e m e o menor elemento positivo de I, conclui-se que r = 0, e portantoa = qm ∈ mZ. �

Uma primeira aplicacao disso diz respeito ao mdc.

Definicao 1.1. Sejam a1, a2, . . . , an inteiros nao-nulos. O maximo divisor comum destesnumeros e o inteiro positivo d tal que

(1) d|aj para cada j(2) se c|aj para cada j entao c|d.

A primeira vista, esta definicao de mdc exige mais do que simplesmente tomar o maior divisorcomum dos numeros, mas esses conceitos sao equivalentes.

Teorema 1.3. Sejam a1, a2, . . . , an inteiros nao-nulos, e seja d um inteiro positivo. Sao equi-valentes:

(1) d = mdc(a1, a2, . . . , an);(2) d e o maior dos divisores comuns de a1, a2, . . . , an;(3) d e o gerador positivo do ideal

J = {a1x1 + a2x2 + · · ·+ anxn;xj ∈ Z, j = 1, . . . , n}

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Em particular, o mdc e uma combinacao inteira dos numeros a1, a2, . . . , an.

Demonstracao. (1) implica (2) segue do segundo item da definicao de mdc.(2) implica (3): o ideal J e principal, e portanto J = mZ, onde podemos tomar m como omenor elemento positivo de J . Escolhendo xi = 1 e xk = 0 para todo k 6= i na combinacaoa1x1 + a2x2 + · · · + anxn, vemos que cada ai pertence a J e que m divide cada ai, pois m e ogerador de J . Logo, m ≤ d. Por outro lado, como m ∈ J , existem x1, x2, . . . , xn inteiros taisque

m = a1x1 + a2x2 + · · ·+ anxn

e como d divide cada ai, temos que d divide m e portanto d ≤ m. Assim, conclui-se que d = m.(3) implica (1): como vimos, cada ai pertence a J . Como J = dZ, d divide cada ai. Alemdisso, como d pertence a J , existem x1, x2, . . . , xn inteiros tais que

d = a1x1 + a2x2 + · · ·+ anxn.

Se c e um divisor comum de a1, . . . , an entao d divide cada combinacao inteira destes numeros,e em particular divide d. Logo, d = mdc(a1, . . . , an). �

Um segundo resultado parecido diz respeito ao mmc. Primeiro, verifique que se I1, I2, . . . , Insao ideais, entao

I = I1 ∩ I2 ∩ . . . ∩ Intambem e um ideal.

Definicao 1.2. Sejam a1, a2, . . . , an inteiros nao-nulos. O mınimo multiplo comum destesnumeros e o inteiro positivo m tal que

(1) aj|m para cada j(2) se aj|c para cada j entao m|c.

Teorema 1.4. Sejam a1, a2, . . . , an inteiros nao-nulos, e seja d um inteiro positivo. Sao equi-valentes:

(1) m = mmc(a1, a2, . . . , an).(2) m e o menor dos multiplos comuns positivos de a1, a2, . . . , an.(3) m e o gerador positivo do ideal

J = a1Z ∩ a2Z ∩ · · · ∩ anZ

1.3. Fatoracao unica em Z: numeros primos e ideais. Seja n um inteiro diferente de0, 1 e −1. Diremos que n e primo se seus unicos divisores sao ±1 e ±n. Caso contrario, n ecomposto.

De modo equivalente, n e primo se n = ab implica em a = ±n ou b = ±n; n e composto se epossıvel encontrar a, b tais que n = ab e 1 < |a| < n, 1 < |b| < n.

Teorema 1.5 (Euclides). Sejam a, b, c inteiros nao-nulos. Se a|bc e mdc(a, b) = 1 entao a|c.

A prova disso segue do Teorema de Bezout: se mdc(a, b) = 1, entao existem r, s ∈ Z tais que1 = ar + bs. Multiplicando por c, obtemos

c = acr + bcs.

Como a|bc por hipotese e claramente a|acr, segue que a|c.

Corolario 1.1. Se p e um numero primo e p|bc entao p|b ou p|c. Generalizando, se p|a1a2 · · · anentao p divide pelo menos um dos aj.

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De fato, se p|b, terminou; se p - b, entao mdc(p, b) = 1 (pois p e primo) e segue que pdivide c. Para generalizar, faca por inducao em n, e note que pode-se escrever a1a2 · · · an =(a1a2 · · · an−1)an.

Esse ultimo resultado e essencial na prova da fatoracao unica em Z.

Teorema 1.6 (Teorema Fundamental da Aritmetica). Dado um numero inteiro a 6= 0,±1,existem primos positivos p1, p2, . . . , pm (nao necessariamente diferentes entre si) tais que

a = up1p2 · · · pmonde u = ±1, de acordo com o sinal de a. Esta expressao e unica a menos da ordem dosfatores.

Demonstracao. Para a existencia podemos usar a inducao forte, pois basta provar o resultadopara numeros positivos.

O resultado e obviamente verdadeiro para n = 2. Suponha que e verdadeiro para todonumero 2 ≤ k ≤ n. Se n+ 1 e primo, esta feito; se nao e, entao existem a, b tais que n+ 1 = abe 1 < a < n+1, 1 < b < n+1. Pela hipotese de inducao, existem primos positivos p1, p2, . . . , pme p′1, p

′2, . . . , p

′r tais que

a = p1p2 · · · pmb = p′1p

′2 · · · p′r

e segue quen+ 1 = (p1p2 · · · pm)(p′1p

′2 · · · p′r).

Para mostrar a unicidade e necessario usar o Teorema de Euclides. Se a tem duas fatoracoes,temos

a = p1p2 · · · pn = q1q2 · · · qsSuponha, sem perda de generalidade, que n ≤ s. Como p1 e primo e p1 divide p1p2 · · · pn, p1divide q1q2 · · · qs, e segue que p1 divide algum qj. Se necessario, mude a numeracao para que jseja 1. Como todos sao primos, os divisores positivos de q1 sao 1 e q1; como p1 e primo, p1 6= 1,e temos p1 = q1. Cancelando p1 de ambos os lados, obtemos

p2 · · · pn = q2 · · · qsProsseguindo com a mesma analise, podemos mostrar que cada pi corresponde a um qi′ epodemos cancelar um a um os fatores p1, . . . , pn. Se n = s entao terminou; se n < s entaotemos, a menos de reenumerar os ındices dos qj’s,

1 = qn+1 · · · qso que e um absurdo, pois disso segue que cada qj e igual a 1. Portanto, n = s e os fatores saoos mesmos a menos de permutacao. �

Os ideais gerados por numeros primos sao bastante especiais.

Definicao 1.3. Seja I um ideal proprio de Z (isto e, I 6= Z). Diremos que I e maximal se naoexiste outro ideal que contenha I propriamente: os unicos ideais que contem I sao o proprio Ie Z.

Lema 1.1. Sejam a, b inteiros nao-nulos. aZ ⊂ bZ se e somente se b|a.

De fato, se b|a entao a = bc; dado x ∈ aZ, temos que x = ay para algum y ∈ Z, ex = ay = b(cy). Portanto x ∈ bZ, e segue que aZ ⊂ bZ.

Reciprocamente, se aZ ⊂ bZ, entao todo elemento de aZ e multiplo de b; em particular,a = a · 1 ∈ aZ e multiplo de b.

Com isso temos uma caracterizacao de numeros primos em termos dos ideais correspondentes.

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Proposicao 1.1. Seja m ∈ Z, m 6= 0, 1,−1. Sao equivalentes:

(1) m e primo;(2) o ideal mZ e maximal.

Demonstracao. Suponha que m e primo, e suponha que o ideal J contem mZ. Como todo idealde Z e principal, existe n tal que J = nZ; de mZ ⊂ nZ conclui-se que n|m mas, como m eprimo, n = ±1 ou ±m. Se n = ±1, J = Z, e se n = ±m entao J = mZ. Segue que mZ emaximal.

Suponha que mZ e maximal. Se m nao e primo entao podemos escrever m = ab com1 < a < m e 1 < b < m. Pelo Lema 1.1, de a|m conclui-se que mZ ⊂ aZ. Agora, aZ 6= Z, poisse fosse igual terıamos que 1 ∈ aZ, ou seja, a|1, e daı a = ±1, contradicao. Do mesmo modo,aZ 6= mZ pois, caso contrario, terıamos que a ∈ mZ e portanto m|a. Como ja temos que a|m ea > 0, concluımos que a = m, contradicao. Assim, temos mZ $ aZ $ Z, contradizendo o fatode mZ ser maximal. Assim, m e primo se mZ e maximal. �

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2. Inteiros modulo m

Definicao 2.1. Seja R uma relacao no conjunto X. Diremos que R e uma relacao de equi-valencia se

(1) xRx, para todo x ∈ X (reflexividade)(2) Se xRy entao yRx (simetria)(3) Se xRy e yRz entao xRz (transitividade)

No que segue, escreveremos a relacao de equivalencia R como “≡”.A classe de equivalencia de x ∈ X e o subconjunto [x] de X definido por

[x] = {y ∈ X;x ≡ y}

Relacoes de equivalencia em X determinam particoes de X, e reciprocamente: cada particaode X determina uma relacao de equivalencia em X.

Definicao 2.2. Uma particao de X e um conjunto P de subconjuntos de X tal que

(1) Se A,B ∈ P , A 6= B, entao A ∩B = ∅(2) X =

⋃A∈P A.

Proposicao 2.1. Ha uma bijecao entre particoes de X e relacoes de equivalencia em X definidado seguinte modo: se ≡ e relacao de equivalencia em X, o conjunto P das classes de equivalenciade X segundo esta relacao, P = {x;x ∈ X}, e a particao de X associada a relacao ≡.

O fato de tomar classes de equivalencia tem o efeito de transformar a equivalencia entreelementos de X em uma igualdade entre elementos de outro conjunto. Mais precisamente,temos o seguinte:

Proposicao 2.2. Seja X um conjunto e seja ≡ uma relacao de equivalencia em X. Se x, y ∈ X,sao equivalentes:

(1) x ≡ y(2) [x] = [y](3) x ∈ [y]

Demonstracao. Mostraremos que (1) ⇒ (2), (2) ⇒ (3) e (3) ⇒ (1).(1) ⇒ (2): Para mostrar a igualdade dos conjuntos [x] e [y], basta mostrar que [x] ⊂ [y] e

[y] ⊂ [x]. Para mostrar que [x] ⊂ [y], seja z ∈ [x]. Por definicao, z ≡ x; como x ≡ y, pelatransitividade temos que z ≡ y, e pela definicao de classe de equivalencia, z ∈ [y]. Portanto,[x] ⊂ [y]. A prova de que [y] ⊂ [x] e analoga.

(2) ⇒ (3) e imediata, pois x ∈ [x] e [x] = [y].(3) ⇒ (1) segue da definicao de classe de equivalencia.

Definicao 2.3. Seja m um inteiro positivo. Diremos que dois inteiros a e b sao congruentesmodulo m se m|(a− b). Notacao:

a ≡ b( mod m)

Proposicao 2.3. A relacao de congruencia modulo m e uma relacao de equivalencia em Z.

Isso segue da definicao de congruencia e das propriedades de divisibilidade. Por exemplo,para a transitividade, suponha que a ≡ b( mod m) e que b ≡ c( mod m), ou seja, que m|(a− b)e m|(b− c). Entao m divide (a− b) + (b− c) = a− c, ou seja, a ≡ c( mod m).

A congruencia modulo m e algo mais forte do que uma simples relacao de equivalencia: elae compatıvel com as operacoes em Z.

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Proposicao 2.4. Sejam a, b, a′, b′ ∈ Z tais que a ≡ a′( mod m) e b ≡ b′( mod m). Entao

a+ b ≡ a′ + b′( mod m)ab ≡ a′b′( mod m)

A soma segue direto de propriedades de divisibilidade. Para o produto, veja que podemosreescrever as hipoteses como

a = a′ + q1mb = b′ + q2m

onde q1, q2 ∈ Z. Multiplicando as igualdades termo a termo, obtemos

ab = a′b′ +m(a′q2 + b′q1 + q1q2m)

o que mostra que ab ≡ a′b′( mod m).

A compatibilidade com soma e produto tem como resultado a manutencao da congruenciapor potencias e tambem por expressoes polinomiais.

Proposicao 2.5. Sejam a, b inteiros, m inteiro positivo, e suponha que a ≡ bmod m.

(1) an ≡ bn mod m para todo n ≥ 1.(2) c0+c1a+c2a

2+ . . .+cnan ≡ c0+c1b+c2b

2+ . . .+cnbn mod m para todos c0, c1, . . . , cn ∈ Z

e todo n ≥ 1.

Para o primeiro, pode-se provar por inducao em n, ou entao pela igualdade

(1) an − bn = (a− b)(an−1 + an−2b+ · · ·+ abn−2 + bn−1)

a ≡ bmod m se e somente se m divide a − b; como a − b divide an − bn, temos entao que mdivide an − bn para todo n ≥ 1, ou seja, an ≡ bn mod m para todo n ≥ 1.

Para o item (2) basta fazer por inducao em n. Para n = 0 e imediato. Se vale para n − 1,sejam c0, c1, . . . , cn−1, cn ∈ Z. Pela item (1) temos que an ≡ bn mod m; podemos multiplicarpor cn e obter

cnan ≡ cnb

n mod m

Por hipotese de inducao,

c0 + c1a+ c2a2 + . . .+ cn−1a

n−1 ≡ c0 + c1b+ c2b2 + . . .+ cn−1b

n−1 mod m

Somando estas duas congruencias termo a termo, obtemos

c0 + c1a+ c2a2 + . . .+ cna

n ≡ c0 + c1b+ c2b2 + . . .+ cnb

n mod m

Usando o algoritmo da divisao em Z, podemos listar as classes distintas modulo m. Estassao as classes dos restos da divisao por m,

[0], [1], . . . , [m− 1].

De fato, pelo algoritmo da divisao, todo inteiro se escreve (de modo unico) como a = mq+ r,com r ∈ {0, 1, . . . , (m − 1)}. Se a = mq + r entao a ≡ rmod m e, pela proposicao 2.2 segueque [a] = [r].

Mas nao terminou ainda; por que essas classes sao distintas? Bom, suponha que isso sejafalso para algum m: existem a, b distintos tais que 0 ≤ a < m, 0 ≤ b < m, e [a] = [b], quee o mesmo que a ≡ bmod m. Sem perda de generalidade, suponha que 0 ≤ a < b < m. Sea ≡ bmod m entao m|(b− a), e portanto m < (b− a) (pois b− a 6= 0 e e positivo). Por outrolado, de 0 ≤ a < b < m tiramos que 0 < (b − a) < b < m, contradicao. Portanto, as classes[0], [1], . . . , [m− 1] sao todas distintas.

No que segue, usaremos a notacao a ao inves de [a] para classes modulo m; quando fornecessario especificar o numero m, escreveremos [a]m para a classe de a modulo m.

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Zm denota o conjunto das classes de equivalencia modulo m:

Zm = {0, 1, . . . ,m− 1}(a notacao Z/mZ tambem e bastante usada).

Proposicao 2.6. O conjunto Zm e um anel com as operacoes

a+ b = a+ ba · b = ab

Demonstracao. A parte mais sutil e mostrar que as operacoes estao bem definidas, ou seja: sea = a′ e b = b′, vale que a+ b = a′ + b′ e a · b = a′ · b′? Poderia haver algum problema aquiporque a definicao de a+ b parece depender dos numeros a e b, e nao apenas de suas classes.

As operacoes estao bem definidas como consequencia natural da compatibilidade da con-gruencia com a soma e o produto. Se a = a′ e b = b′, entao a ≡ a′mod m e b ≡ b′mod m, etemos a+ b ≡ a′ + b′mod m, que equivale a a+ b = a′ + b′. O mesmo raciocınio mostra que oproduto de classes esta bem definido.

Daqui em diante ha bastante conta, mas tudo segue das propriedades dos inteiros e dadefinicao das operacoes. Por exemplo, a soma e comutativa pois

a+ b = a+ b (pela definicao de soma)

= b+ a (a+ b = b+ a em Z)

= b+ a (pela definicao de soma novamente)

O zero de Zm e 0, pois 0 + a = a em Z, e portanto a+ 0 = a+ 0 = a.O oposto de a e −a, pois a + −a = a− a = 0. Para escrever o oposto como a classe de

um numero nao-negativo, note que −a = 0 + (−a) = m + (−a) = m− a, e que m − a ≥ 0 se0 ≤ a < m. As outras propriedades seguem por contas analogas. �

Um anel comutativo e um corpo se todo elemento nao-nulo tem inverso para a multiplicacao.

Teorema 2.1. Seja m > 1 e seja Zm o anel das classes de congruencia modulo m.

(1) Se m e composto entao Zm tem divisores de unidade.(2) Se m = p, p um numero primo, entao Zp e um corpo.

Em particular, como corpos nao tem divisores de zero, Zm e corpo se e somente se m e primo.

Recordando o que vimos sobre ideais maximais em Z, isto diz que Zm e corpo se e somentese o ideal mZ e maximal. Veremos mais adiante o mesmo resultado em um contexto muitomais geral.

A funcao ϕ : Z → Zm que associa cada inteiro k a sua classe k ∈ Zm nao e uma funcaoqualquer: ela satisfaz

ϕ(a+ b) = ϕ(a) + ϕ(b)

ϕ(ab) = ϕ(a)ϕ(b)

ϕ(1) = 1

Pode-se mostrar entao que ϕ preserva expressoes polinomiais, no seguinte sentido:

ϕ(c0 + c1a+ . . .+ cnan) = ϕ(c0) + ϕ(c1)ϕ(a) + ϕ(c2)ϕ(a)2 + · · ·+ ϕ(cn)ϕ(a)n

Isso ja fornece uma aplicacao muito interessante para a resolucao de equacoes polinomiais emZ.

Proposicao 2.7. Seja p(x) = a0+a1x+ · · ·+anxn polinomio de coeficientes inteiros, p(x) 6= 0.

Dado m ∈ Z maior que 1, seja p(x) ∈ Zm[x] o polinomio

p(x) = a0 + a1x+ · · ·+ anxn

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cujos coeficientes sao as classes de congruencia modulo m dos coeficientes de p(x). Se existem tal que a equacao p(x) = 0 nao tem raızes em Zm, entao a equacao p(x) = 0 nao tem raızesinteiras.

De fato, basta ver que se α ∈ Z e raiz de p(x) = 0, entao p(α) = 0 em cada Zm; isto e, deuma raiz inteira de p(x) = 0 fabricamos uma raiz para p(x) = 0 em qualquer Zm.

Importante: note que se existe m tal que p(x) = 0 possui uma raiz em Zm, nada se podeafirmar a respeito da equacao p(x) = 0. De fato, de uma raiz inteira de p(x) = 0 fabricamosuma raiz para p(x) = 0 em Zm, mas de uma raiz de p(x) = 0 em Zm nao sabemos, a princıpio,como fabricar uma raiz inteira de p(x) = 0 (e pode nao haver nenhuma).

Um segundo resultado importante para congruencias e o Teorema Chines do Resto, quepossui uma versao algebrica muito surpreendente.

Proposicao 2.8. Sejam m1,m2, . . . ,mk inteiros positivos, e considere o produto cartesianoZm1 × · · · × Zmk

. Este conjunto e um anel com as operacoes

(a1, a2, . . . , ak) + (b1, b2, . . . , bk) = (a1 + b1, a2 + b2, . . . , ak + bk)

(a1, a2, . . . , ak) · (b1, b2, . . . , bk) = (a1 · b1, a2 · b2, . . . , ak · bk)

Demonstracao. A verificacao e simples, pois tudo e feito coordenada a coordenada. Por exem-plo, o produto e comutativo, pois o produto em cada Zmj

e comutativo, e portanto

(a1, a2, . . . , ak) · (b1, b2, . . . , bk) = (a1 · b1, a2 · b2, . . . , ak · bk)= (b1 · a1, b2 · a2, . . . , bk · ak)= (b1, b2, . . . , bk) · (a1, a2, . . . , ak).

A unidade e (1, 1, · · · , 1), pois

(1, 1, · · · , 1)(a1, a2, . . . , ak) = (1a1, 1a2, . . . , 1ak) = (a1, a2, . . . , ak)

e assim por diante.�

Com isso, a fatoracao de inteiro positivo m fornece uma “fatoracao” do anel Zm.

Teorema 2.2 (Teorema Chines dos Restos). Sejam m1,m2, . . . ,mk inteiros positivos dois adois coprimos, e seja M = m1m2 · · ·mk. A aplicacao

π : ZM → Zm1 × · · · × Zmk

[a]M 7→ ([a]m1 , . . . , [a]mk)

e uma bijecao, e satisfaz

(1) π([a]M + [b]M) = π([a]M) + π([b]M)(2) π([a]M · [b]M) = π([a]M) · π([b]M)(3) π([1]M) = ([1]m1 , . . . , [1]mk

)

Demonstracao. Primeiro, e preciso mostrar que esta bem definida. Isso nao oferece problemas,pois mi|M para todo i e, se [a]M = [b]M entao M |(a− b) e portanto mi|(a− b) para cada i, ouseja, [a]mi

= [b]mipara cada i, e ([a]m1 , . . . , [a]mk

) = ([b]m1 , . . . , [b]mk). Verificar as propriedades

(1),(2),(3) tambem nao oferece grandes problemas. A parte complicada e mostrar que e bijetora.Nos veremos que π tem uma inversa, e portanto e bijetora; mesmo assim, mostraremos antes

que e sobrejetora pois aqui aparece a formula para resolver um sistema de congruencias. Dado

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y = ([a1]m1 , . . . , [ak]mk), encontrar b ∈ ZM tal que π(b) = y e o mesmo que encontrar um

numero inteiro x tal que

x ≡ a1 mod m1

x ≡ a2 mod m2

...

x ≡ ak mod mk

Para isso, considere os numeros Mi = M/mi, i = 1, 2, . . . , k. Pode-se mostrar que Mi e mi

sao coprimos; pelo teorema de Bezout, para cada i = 1, 2, . . . , k, existem ri e si inteiros taisque

riMi + simi = 1

e disso segue que riMi ≡ 1 mod mi. Agora, dado y = ([a1]m1 , . . . , [ak]mk), considere o numero

b = a1r1M1 + a2r2M2 + · · ·+ akrkMk; afirmamos que este numero e uma solucao do sistema decongruencias correspondente. Olhando a primeira congruencia, por exemplo, temos que

b ≡ a1r1M1 mod m1

pois m1 divide Mj para j 6= 1, e assim todas as parcelas a2r2M2, . . . , akrkMk sao congruentesa zero modulo m1. E como r1M1 ≡ 1 mod m1, multiplicando esta ultima congruencia por a1temos

a1r1M1 ≡ a1 mod m1

e segue que

b ≡ a1 mod m1.

O mesmo vale para as outras congruencias.Como falamos, vamos mostrar agora que π tem uma inversa, o que implica em ser bi-

jetora. Pode-se mostrar que os numeros M1,M2, . . . ,Mk sao coprimos; mais precisamente,mdc(M1,M2, . . . ,Mk) = 1. Logo, existem inteiros s1, s2, . . . , sk tais que

(2) s1M1 + · · ·+ skMk = 1.

Definimos entao

ϕ : Zm1 × · · · × Zmk→ ZM

([a1]m1 , . . . , [ak]mk) 7→ [a1s1M1 + · · ·+ akskMk]M

Veja que

ϕ(π([a]M)) = ϕ([a]m1 , . . . , [a]mk) = [a(s1M1 + · · ·+ skMk)]M = [a]M

e

π(ϕ(([a1]m1 , . . . , [ak]mk)) = π([

k∑i=1

aisiMi]M) = ([k∑i=1

aisiMi]m1 , . . . , [k∑i=1

aisiMi]mk).

Como mj|Mi se i 6= j, da equacao (2) segue que sjMj ≡ 1 mod mj para cada j. Logo,

k∑i=1

aisiMi ≡ ajsjMj ≡ aj mod mj

pra cada j, e

π(ϕ(([a1]m1 , . . . , [ak]mk)) = ϕ(([a1]m1 , . . . , [ak]mk

).

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A construcao do anel de inteiros modulo m e o modelo para uma construcao geral em Teoriade Aneis chamada “anel quociente”. Entre outras aplicacoes, isto permite que mostremos quetodo polinomio coeficientes em um corpo K tem uma raiz em um corpo K ′ que contem K; ocorpo K ′ e construıdo como um anel quociente.

O Teorema Chines dos Restos vale em um contexto mais geral, e usaremos isso para estudaroperadores lineares atraves de aneis quocientes de aneis de polinomios.

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3. Aneis

Definicao 3.1. Seja A um conjunto (diferente do vazio) que possui uma operacao de soma euma operacao de produto, isto e, duas funcoes s : A×A→ A e m : A×A→ A denotadas pors(a, b) = a+ b e m(a, b) = ab. Diremos que A e um anel se a soma satisfaz

(i) a+ (b+ c) = (a+ b) + c, para todos a, b, c ∈ A (associatividade da soma)(ii) Existe 0 ∈ A tal que a+ 0 = 0 + a = a, para todo a ∈ A. (elemento neutro da soma)

(iii) Para cada a ∈ A existe um elemento b ∈ A tal que a+ b = b+ a = 0. (oposto para soma)(iv) a+ b = b+ a para todos a, b ∈ A. (comutatividade da soma)

e o produto satisfaz(v) a(bc) = (ab)c para todos a, b, c,∈ A (associatividade do produto)

(vi) a(b+ c) = ab+ ac e (a+ b)c = ac+ bc para todos a, b, c ∈ A (distributividade a esquerdae a direita)

(vii) Existe 1 ∈ A, 1 6= 0, tal que a ·1 = 1 ·a = a para todo a ∈ A (elemento neutro do produto)

Seja A um anel. Diremos que A e comutativo se satisfizer

(viii) ab = ba para todos a, b ∈ A.

Daqui em diante, salvo mencao em contrario, “anel” significa “anel comutativo com unidade”.Ao consultar outros materiais, leia com cuidado as definicoes utilizadas pois, ao contrario do queocorre com outras disciplinas, onde as principais definicoes sao as mesmas em qualquer livro,existem pequenas variacoes da definicao de anel e das definicoes de subanel e homomorfismoque veremos a seguir. Em alguns livros, por exemplo, A e um anel se satisfizer as propriedadesde (i) a (vi).

Quanto a notacao, o oposto de a ∈ A para a soma sera denotado por −a. Com isso, definimosa operacao em subtracao em A por a− b = a+(−b). Em geral, denotaremos o zero e a unidadepor 0 e 1, mas lembre-se que 0 e 1 sao apenas sımbolos; a natureza destes elementos dependedo anel em questao.

O produto pode ou nao ser “bem comportado”:

Definicao 3.2. Seja A um anel comutativo com unidade. Diremos que A e um domınio deintegridade se valer o cancelamento para o produto, isto e,

(ix) Se ab = ac e a 6= 0 entao b = c.

Se A e um domınio de integridade, diremos que A e um corpo se todo elemento nao-nulo teminverso para o produto:

(x) Se a 6= 0 entao existe b ∈ A tal que ab = 1.

Exemplo 3.1. Considere os conjuntos numericos N,Z,R,Q.

(1) R, Q, Z, C sao aneis comutativos; Q, Z, C sao corpos, e Z nao e. Ao longo do textomostraremos com detalhes que Q, R e C sao corpos. Como ponto de partida, aceitaremosque Z e um anel, mas pode-se tambem construir Z a partir de N, e provar que Z e umanel a partir das propriedades de soma e produto em N.

(2) N e um conjunto que tem soma e produto mas nao e um anel. (por que? Quais propri-edades valem, e quais nao sao satisfeitas?).

Exemplo 3.2. Seja I um intervalo aberto da reta real, e seja F(I,R) o conjunto de todas asfuncoes de I em R. Recorde que a soma e o produto de funcoes sao definidos por

(f + g)(x) = f(x) + g(x)(3)

(f · g)(x) = f(x) · g(x)(4)

F(I,R) e um anel com estas operacoes, isto e, valem as propriedades de (i) a (viii). Por exemplo,a funcao z constante igual a zero e o zero de F(I,R), e a funcao u constante igual a um e a

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unidade de F(I,R). Para mostrar a associatividade da soma, dadas as funcoes f, g, h ∈ F(I,R)e a ∈ I, temos:

(f + (g + h))(a) = f(a) + (g + h)(a) (definicao de soma de funcoes)

= f(a) + (g(a) + h(a)) (definicao de soma de funcoes)

= (f(a) + g(a)) + h(a) (associatividade da soma em R)

= (f + g)(a) + h(a)

= ((f + g) + h)(a).

Como isto vale para cada a ∈ I,

f + (g + h) = (f + g) + h

como funcoes. As outras propriedades seguem de modo analogo.

Este anel nao e um domınio. Suponha que I = (a, b) e seja x0 ∈ I. Defina f, g : I → R por:

f(x) =

{−x, se a < x < x0

0, se x0 ≥ x < b

g(x) =

{0, se a < x < x0x, se x0 ≥ x < b

Entao f e g nao sao identicamente nulas, mas f(x)g(x) = 0 para cada x ∈ I,e portanto f · g ea funcao identicamente nula (que e o zero do anel F(I,R)).

Exemplo 3.3. Existem conjuntos com operacoes de soma e produto que nao sao aneis. Javimos que o conjunto N dos naturais nao e um anel. Do mesmo modo, alem das operacoes desoma e produto de funcoes, o conjunto C(R) das funcoes contınuas de R em R tem a operacaode composicao de funcoes e, a princıpio, poderıamos ate pensar em C(R) como um anel (nao-comutativo) com respeito as operacoes de soma e de composicao. No entanto, este conjunto naoe um anel com respeito a estas operacoes. Verifique com calma: qual axioma nao e satisfeito?

Exemplo 3.4 (Operadores lineares). Seja V um espaco vetorial real. Um operador em V euma aplicacao linear T : V → V . Se T, S : V → V sao operadores, entao T + S e T ◦ Ssao tambem operadores. Isso mostra que temos soma e produto definidas no conjunto L(V )de todos os operadores em V . Um resultado importante de algebra linear e que L(V ) e umespaco vetorial; mais do que isso, e tambem um anel. Este anel so e comutativo quando V temdimensao 1.

Proposicao 3.1. Seja (A,+, ·) um anel, possivelmente nao-comutativo e sem unidade. Dadosa, b, c ∈ A, temos:

(i) Cancelamento para a soma:

se a+ b = a+ c entao b = c.

(ii) O elemento 0 e unico.(iii) Dado a ∈ A, seu oposto para a soma e unico.(iv) 0 · a = a · 0 = 0 para todo a ∈ A.(v) Se A tem unidade, ela e unica.

(vi) Regras de sinais:(vi.i) −(ab) = (−a)b = a(−b)(vi.ii) (−a)(−b) = ab

(vi.iii) −(−a) = a(vii) (a− b)c = ac− bc

(viii) a(b− c) = ab− ac

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Demonstracao. (i) Se a+ b = a+ c, entao:

(−a) + (a+ b) = (−a) + (a+ c)⇒ ((−a) + a) + b = ((−a) + a) + c (associatividade para a soma)⇒ 0 + b = 0 + c (oposto)⇒ b = c (elemento neutro da soma)

(ii) Suponha que 0 e 0′ sao elementos neutros de A. Entao:

0′ = 0′ + 0 (0 e elemento neutro)

= 0 (0’ e elemento neutro)

e portanto o neutro e unico.(iii) Sejam b, c opostos de a para a soma. Entao:

a+ b = 0 (b e o oposto de a)⇒ c+ (a+ b) = c+ 0⇒ (c+ a) + b = c (associativa, elemento neutro)⇒ 0 + b = c (c e oposto de a)⇒ b = c (elemento neutro)

portanto, o oposto e unico.(iv) Como 0 · a = (0 + 0) · a = 0 · a+ 0 · a, podemos escrever

0 · a+ 0 = 0 · a+ 0 · ae, pelo item (i), podemos cancelar 0 · a, obtendo

0 = 0 · a.O mesmo segue para a · 0 = 0.

Os itens (v) - (viii) ficam como exercıcio.�

Como consequencia das regras de sinais, temos o seguinte resultado:

Proposicao 3.2. Seja A um anel com unidade, mas nao necessariamente comutativo. Sea ∈ A, entao −a = (−1)a = a(−1).

Demonstracao. Note que essa afirmacao nao e obvia – a princıpio, o oposto de a e uma coisa,e (−1)a e outra coisa. Mas, pelo item (vi) da proposicao anterior,

−a = −(1a) = (−1)a e − a = −(a1) = a(−1).

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4. Construcoes com Aneis

Matrizes. Se A e um anel, o conjunto Mn(A) das matrizes n × n com entradas em A e umanel (que e nao-comutativo se n ≥ 2) com as mesmas definicoes de soma e produto de matrizesreais e complexas.

Vejamos, por exemplo, a associatividade do produto (que quase sempre e a propriedade queda mais trabalho). Se A = (ai,j), B = (bi,j) e C = (ci,j) sao tres matrizes n × n, sejamAB = (di,j) e BC = (ei,j). Pela definicao do produto de matrizes, a entrada (i, j) de (AB)C e

(5) ((AB)C)i,j = di,1c1,j + di,2c2,j + · · ·+ di,ncn,j.

Ainda pela definicao do produto de matrizes, cada di,l tambem e uma soma,

di,l = ai,1b1,l + ai,2b2,l + · · ·+ ai,nbn,l.

Substituindo em (5) e distribuindo o produto, obtemos a seguinte expressao para a entrada(i, j) de (AB)C:

ai,1b1,1c1,j + ai,2b2,1c1,j+ · · · +ai,nbn,1c1,j +

+ai,1b1,2c2,j + ai,2b2,2c2,j+ · · · +ai,nbn,2c2,j +

......

+ai,1b1,ncn,j + ai,2b2,ncn,j+ · · · +ai,nbn,ncn,j

Reagrupando o produto “pelas colunas”, isto e, colocando os termos ai,l em evidencia, obtemos

ai,1(n∑l=1

b1,lcl,j) + · · ·+ ai,n(n∑l=1

bn,lcl,j) =

= ai,1e1,j + · · ·+ ai,nen,j

que e a entrada (i, j) da matriz A(BC), e concluımos finalmente que a multiplicacao e associ-ativa.

Funcoes. Se A e um anel e X e um conjunto nao-vazio qualquer, entao o conjunto F(X,A)das funcoes de X em A e um anel com as seguintes operacoes: dadas f, g : X → A, as funcoesf + g e fg sao dadas por

(f + g)(x) = f(x) + g(x)

(f · g)(x) = f(x) · g(x)

As contas sao analogas as do exemplo 3.2.

Produto direto de aneis. Sejam A e B aneis e seja A × B = {(a, b); a ∈ A, b ∈ B}. Oconjunto A×B e um anel com as operacoes

(a, b) + (a′, b′) = (a+ a′, b+ b′)(a, b) · (a′, b′) = (aa′, bb′)

De fato, A× B tem (0, 0) como zero, (1, 1) como unidade, e o oposto de (a, b) e (−a,−b). Aspropriedades restantes seguem do fato que as operacoes sao feitas coordenada a coordenada.Verifiquemos, por exemplo, a propriedade distributiva:

(a, b)((c, d) + (e, f)) = (a, b)(c+ e, d+ f)

= (a(c+ e), b(d+ f))

= (ac+ ae, bd+ bf) (distributividade em A e em B)

= (ac, bd) + (ae, bf)

= (a, b)(c, d) + (a, b)(e, f)

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O conjunto A×B, com essas operacoes de soma e multiplicacao, e chamado de produto diretodos aneis A e B.

Este anel A× B esta “cheio” de divisores de zero: note que se a ∈ A e b ∈ B sao elementosnao-nulos, entao (a, 0)(0, b) = (a · 0, 0 · b) = (0, 0) e (a, 0) 6= (0, 0), (0, b) 6= (0, 0).

Do mesmo modo que fizemos com dois aneis, pode-se definir o produto direto de um numeroqualquer de aneis (inclusive um numero infinito!).

Proposicao 4.1. Se A1, . . . , An sao aneis, entao

A1 × · · · × An = {(a1, a2, · · · , an); ai ∈ Ai, i = 1, . . . , n}e um anel com as operacoes

(a1, . . . , an) + (b1, . . . , bn) = (a1 + b1, . . . , an + bn)

(a1, . . . , an) + (b1, . . . , bn) = (a1b1, . . . , anbn)

Para provar este resultado, faca por inducao em n ≥ 2. Note que as operacoes em A1×· · ·×Anpodem ser vistas como as operacoes no produto direto de A1 por A2 × · · · × An.

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5. Subaneis e Ideais

5.1. Subaneis. Em algebra, sempre e interessante considerar subestruturas de uma estruturadada: por exemplo, em algebra linear nos consideramos a nocao de subespaco vetorial, e muitosexemplos vem daı, pois todo subespaco e tambem um espaco vetorial. Em aneis, temos oconceito de subanel.

Definicao 5.1. Seja A um anel e seja B ⊂ A. Diremos que B e subanel de A se

(i) 1 ∈ B(ii) Se x, y ∈ B entao x+ y ∈ B

(iii) Se x ∈ B entao −x ∈ B(iv) Se x, y ∈ B entao xy ∈ B

Observe que o primeiro item diz que B tem uma unidade e que essa unidade e a mesmaunidade de A. Por exemplo, se A = R × R, entao o subconjunto B = {(a, 0); a ∈ R} satisfazos itens (ii),(iii) e (iv), e tem um elemento neutro para a multiplicacao, o elemento (1, 0). Noentanto, B nao e subanel de A porque a unidade de A e (1, 1), que nao esta em B.

Exemplo 5.1. Z[√m], m ∈ N que nao e quadrado perfeito.

Seja m ≥ 2 um numero natural que nao e o quadradro de outro natural, ou seja,√m 6∈ N.

Considere o conjunto

Z[√m] =

{a+ b ·

√m/a, b ∈ Z

}Entao Z[

√m] e um subanel de R.

De fato,

(i) 1 = 1 + 0 ·√m ∈ Z[

√m].

(ii) Sejam x = a+ b ·√m , y = c+ d ·

√m ∈ Z[

√m]. Entao:

x+ y = a+ b ·√m+ c+ d ·

√m

= (a+ c) + (b+ d) ·√m

e como a+ c, b+ d sao inteiros, x+ y ∈ Z[√m].

(iii) Se x = a+ b ·√m entao

−x = −(a+ b ·√m) = −a+ (−b) ·

√m

Pertence a Z[√m].

(iv) Sejam x, y ∈ Z[√m] como em (ii). Entao:

x.y = (a+ b ·√m)(c+ d ·

√m)

= ac+ ad ·√m+ bc ·

√m+ bdm

= (ac+ bdm) + (ad+ bc) ·√m

que pertence a Z[√m].

Exemplo 5.2. Seja α ∈ C raiz de um polinomio p(x) ∈ R[x] de grau 2. Por exemplo, paraα = 2 temos p(x) = x2 − 2, e para α = i podemos tomar p(x) = x2 + 1. Entao o conjunto

R[α] = {a+ bα; a, b ∈ R}

e um subanel de C. Para verificar isso, use raciocınio analogo ao que foi feito no caso de Z[√m].

O valor de se considerar subaneis vem do seguinte resultado:

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Proposicao 5.1. Se B e um subanel de A, entao B e um anel (com respeito as operacoes desoma e produto herdadas de A).

Demonstracao. Como B e um subanel de A, B e fechado para a soma e produto em A, isto e,

x, y ∈ B =⇒ x+ y ∈ B, xy ∈ B

Logo B tem operacoes de soma e produto. Como 1 ∈ B e −1 ∈ B,

1 + (−1) = 0 ∈ B

Logo B tem elemento neutro para a soma, pois se 0 e o neutro para a soma em A, continuasendo o neutro para a soma em B pois todo elemento de B e tambem um elemento de A.

Este ultimo argumento e o modelo de que acontece com todas as outras propriedades. Porexemplo, se a e b ∈ B, entao

a+ b = b+ a

porque a soma e comutativa para todos os elementos de A e, como B ⊂ A, a mesma coisa valepara todos os elementos de B.Do mesmo modo prova-se que valem (i), (iii), (v), (vi), (vii), (viii). �

Nao vale a recıproca: pode-se verificar que B = {(a, 0); a ∈ R} e um anel (com unidade),mas nao e subanel de A = R× R.

Com isso, podemos mostrar que varios conjuntos sao aneis com menos esforco. Por exemplo,

Exemplo 5.3. Seja I um intervalo aberto da reta e seja C(I) o conjunto das funcoes contınuasde I em R. Entao C(I) e um anel com as operacoes de soma e produto de funcoes.

Para mostrar isso, basta verificar que C(I) e um subanel do anel F(I, R) das funcoes de Iem R.

De fato, dado a ∈ I e f, g funcoes contınuas em I, temos

limx→a

(f + g)(x) = limx→a

f(x) + limx→a

g(x)

= f(a) + g(a)

= (f + g)(a)

mostrando que f + g e contınua no ponto a. Como isso vale para qualquer a em I, conclui-seque a soma de funcoes contınuas e contınua. Analogamente, produto de contınuas e contınua.

Como funcoes constantes sao contınuas, a funcao constante u(x) = 1 e contınua em I.Finalmente, se f e contınua entao −f e contınua pois e o produto de f pela funcao constantea(x) = −1. Deste modo, segue que C(I) e um subanel do anel das funcoes de I em R e,portanto, e um anel.

Do mesmo modo, as regras de derivacao mostram que o conjunto D das funcoes que temderivada em todos os pontos de I e um subanel de C(I), e portanto e um anel.

Veja que pode-se condensar um pouco mais a definicao de subanel:

Proposicao 5.2. B e subanel de A se e somente se

(i) 1 ∈ B;(ii) Se x, y ∈ B entao x− y ∈ B;

(iii) Se x, y ∈ B entao xy ∈ B.

Demonstracao. (⇒) imediato(⇐) Como 1 ∈ B, 0 = 1− 1 ∈ B (por(ii)).Tambem por (ii), se x ∈ B entao

−x = 0− x ∈ B

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Finalmente, se x, y ∈ B entao −y ∈ B e

x+ y = x− (−y) ∈ B.�

5.2. Ideais. Voltemos ao exemplo

I = {(a, 0); a ∈ R} ⊂ R× R.Como vimos, I deixa de cumprir apenas a ultima condicao de definicao de subanel. Por outrolado, I satisfaz uma condicao mais forte com relacao ao produto: dados (a, 0) ∈ I e (b, c) ∈R × R, temos que (a, 0)(b, c) = (ab, 0) ∈ I, isto e, os elementos de I “absorvem” elementos deR× R pela multiplicacao. I e o que se chama de ideal.

Definicao 5.2. Seja A um anel (comutativo com unidade). Um subconjunto I de A e um idealde A se

(i) 0 ∈ A(ii) Se x, y ∈ I entao x+ y ∈ I

(iii) Se α ∈ A e x ∈ I entao αx ∈ I

Exemplo 5.4. Se a ∈ A entao o ideal principal gerado por a, que e o conjunto

〈a〉 = {ax;x ∈ A}dos multiplos de a, e um ideal de A (verifique).

Como vimos, os ideais de Z sao da forma nZ = {an; a ∈ Z}, com n ≥ 0. Nao e verdade, emgeral, que todo ideal de um anel A e da forma 〈a〉.

Exemplo 5.5. Sejam a1, a2, . . . , an elementos de um anel A. O ideal gerado por estes elementose o conjunto

J = {a1x1 + · · ·+ anxn;xi ∈ A}Este e o menor ideal de A que contem os elementos a1, . . . , an, isto e, se I e um ideal que contemestes elementos entao I ⊇ J .

Exemplo 5.6.I = {3a+ b

√3; a, b ∈ Z} e um ideal de Z[

√3]. De fato,

(i) 0 = 3 · 0 + 0√

3 ∈ Z[√

3](ii) Se

x = 3a+ b√

3 e y = 3c+ d√

3 ∈ Z[√

3],

entao

x+ y = 3(a+ c) + (b+ d)√

3 ∈ Z[√

3]

(note que a+ c e b+ d sao inteiros).(iii) Sejam α = m+ n

√3 ∈ Z[

√3] e x = 3a+ b ·

√3 ∈ I. Entao

αx = (m+ n√

3)(3a+ b√

3)

= 3am+ 3bn+ 3an√

3 + bn√

3

= 3(am+ bn) + (3an+ bn)√

3

que esta em I.

Exemplo 5.7. Se I e ideal de A e J e ideal de B entao I ×J e ideal de A×B. Em particular,A× {0} e {0} ×B sao ideais de A×B.

De fato, suponha que I e J sao ideais de A e B respectivamente. Primeiro temos que0 = (0A, 0B) esta em I × J pois, como ambos sao ideais, 0A ∈ I e 0B ∈ J .

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Se (x, x′) e (y, y′) pertencem a I × J entao (x, x′) + (y, y′) = (x + y, x′ + y′) esta em I × J ,pois se x e x′ estao em I e I e ideal entao x + x′ esta em I; o mesmo argumento mostra quey + y′ esta em J .

Finalmente, se (a, b) ∈ A× B e (x, x′) ∈ I × J entao (a, b)(x, x′) = (ax, bx′) ∈ I × J , ja quea ∈ A, x ∈ I =⇒ ax ∈ I e b ∈ B, x′ ∈ J =⇒ bx′ ∈ J .

Exemplo 5.8. Seja x0 ∈ R e seja I o conjunto de todas as funcoes de R em R que se anulamem x0. Entao I e um ideal de F(I,R).

De fato, a funcao nula esta em I pois ela anula qualquer ponto. Se f e g estao em I entao

(f + g)(x0) = f(x0) + g(x0) = 0 + 0 = 0

e portanto I e fechado para a soma.Se f ∈ I e h ∈ F(I,R) entao

(fh)(x0) = f(x0)h(x0) = 0 · h(x0) = 0

e assim fg ∈ I. Portanto, I e um ideal de F(I,R).

Observe que se um ideal I contem a unidade, I = A (por que?). Assim, o unico subconjuntode A que e simultaneamente subanel e ideal e o proprio A. Note tambem que os unicos ideaisem um corpo K sao o ideal nulo {0} e o proprio K. Reciprocamente, se A e um anel cujosunicos ideais sao {0} e A entao A e um corpo.

Proposicao 5.3. Sejam I, J ideais de um anel A. Entao

(1) A soma dos ideais, dada por

I + J = {a+ b; a ∈ Ieb ∈ J}e um ideal de A.

(2) A intersecao dos ideais e um ideal.(3) O produto dos ideais, dado por

IJ = {n∑l=1

albl;n ∈ N, al ∈ I, bl ∈ J}

e um ideal de A, e IJ ⊂ I ∩ J .

A demonstracao fica como exercıcio.

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6. Polinomios

Nesta secao estudaremos com detalhes a construcao do anel de polinomios com coeficientesem um anel. Como motivacao para esta construcao, vejamos primeiro um raciocınio tıpico queaparece no calculo ao se trabalhar com funcoes polinomiais. Em problemas de integracao, umatecnica basica e a de fracoes parciais. Precisamos calcular, por exemplo, a integral∫ b

a

1

(x− 1)(x− 2)dx

e o modo de resolver isso e encontrar A e B reais tais que

(6)1

(x− 1)(x− 2)=

A

(x− 1)+

B

(x− 2)

pois assim teremos ∫ b

a

1

(x− 1)(x− 2)dx =

∫ b

a

A

(x− 1)dx+

∫ b

a

B

(x− 2)dx

e as duas integrais a direita correspondem a dois logaritmos.Bom, desenvolvendo o lado direito de (6) obtemos

A

(x− 1)+

B

(x− 2)=A(x− 2) +B(x− 1)

(x− 1)(x− 2)=

(A+B)x+ (−2A−B)

(x− 1)(x− 2).

e assim reescrevemos (6) como

(7)1

(x− 1)(x− 2)=

(A+B)x+ (−2A−B)

(x− 1)(x− 2)

Agora desprezamos o denominador e igualamos os numeradores; queremos

1 = (A+B)x+ (−2A−B).

Comparando os coeficientes, escrevemos{1 = −2A−B0 = A+B

pois 1 = 1 + 0 · x. Resolvendo o sistema,

B = −A⇒ 1 = −2A+ A = −A⇒ A = −1 e B = 1.

O passo principal desta conta e comparar coeficientes, e nesse passo nos vemos o polinomiof(x) = 1 como f(x) = 1 + 0 · x; se o polinomio ao lado direito tivesse um grau n ≥ 2, nosolharıamos f(x) como f(x) = 1 + 0 · x + · · · + 0 · xn para fazer a comparacao. Ou seja, umpolinomio e especificado por todos os seus coeficientes, nulos e nao-nulos; dar um polinomio eo mesmo que dar a sequencia de seus coeficientes, que parece terminar no coeficiente lıder mas,na verdade, inclui tambem os coeficientes nulos a partir deste (como vimos na conta acima). Alista inteira faz parte da especificacao do polinomio.

Outro ponto delicado e a identificacao de polinomio com funcao polinomial. Nos usamos issoimplicitamente nas contas, pois usamos o fato que duas funcoes polinomiais f(x) e g(x) saoiguais como funcoes, isto e, f(a) = g(a) para cada a ∈ R, se e somente se sao iguais comopolinomios, isto e, f(x) e g(x) tem os mesmos coeficientes.

A ideia de tentar construir polinomios sobre aneis arbitrarios considerando “polinomio” como“funcao polinomial” e natural, mas nao e a resposta mais indicada. Por exemplo, considere ocorpo Z2 e considere os polinomios f1(x) = x + 1, f2(x) = x2 + 1, . . . com coeficientes em Z2.Voce pode verificar, com pouco esforco, que todos estes polinomios sao iguais como funcoes :fn(0) = 1 e fn(1) = 0 para todo n ≥ 1. No entanto, e claro que gostarıamos que polinomios comcoeficientes diferentes fossem diferentes, mesmo que isso nao ocorra com as funcoes associadas

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(Alias, por que sabemos dois polinomios distintos com coeficientes reais dao funcoes distintasde R em R?)

Tendo isso em mente, e tendo em mente tambem que todas as contas com polinomios envol-vem apenas seus coeficientes, nos vamos definir polinomios com coeficientes em um anel A comosequencias de elementos de A que tem um numero finito de termos nao-nulos. Construiremosuma estrutura de anel no conjunto de todas as sequencias de elementos de A e obteremos o anelde polinomios como um subanel deste. Ao final, mostraremos como retornar aos polinomiosem sua forma usual.

Definicao 6.1. Uma sequencia s em um anel comutativo A e uma funcao

s : N→ A

Os valores s(0), s(1), s(2), . . . sao os termos da sequencia. Denotando o termo s(n) por sn,podemos denotar s por

s = (s0, s1, s2, . . .)

Tambem escrevemos s = (sn) para denotar a sequencia s.

E preciso que o leitor tenha em mente a ideia intuitiva que esta na base desta construcao.Dado um polinomio f(x) = a0 + a1x+ · · ·+ anx

n com coeficientes reais, podemos associar a elea sequencia s = (a0, a1, . . . , an, 0, 0, . . .). Reciprocamente, se s e uma sequencias de numerosreais em que todos os termos se anulam a partir de um certo ındice,

s = (s0, s1, . . . , sn, 0, 0, . . .),

podemos associar a s o polinomio a coeficientes reais

s0 + s1x+ · · ·+ snxn.

Tendo essas identificacoes como modelo vamos definir operacoes de soma e produto entresequencias. A soma sera a soma termo a termo, que coincide com a soma de sequenciasusual (que e, na verdade, a soma de funcoes). Para definir a multiplicacao precisamos de umaformula explıcita para o produto, e esta formula e motivada por uma formula para o produtode combinacoes de potencias (de um mesmo elemento) em um anel.

Proposicao 6.1. Seja A um anel, e sejam α, a0, a1, . . . , an, b0, b1, . . . , bm elementos de A. Entao

(n∑k=0

akαk)(

m∑j=0

bjαj) =

n+m∑i=0

ciαi

onde ci =∑

k+j=i akbj, com a convencao que ak = 0 se k > n e bj = 0 se j > m.

Demonstracao. De fato, aplicando a propriedade distributiva, temos

(n∑k=0

akαk)(

m∑j=0

bjαj) =

n∑k=0

m∑j=0

akbjαk+j

Ao reordernar a soma colocando as potencias de α em evidencia, quem sera o coeficiente deαi? Este coeficiente sera a soma de termos da forma arbs, e claramente o termo akbj contribuipara o coeficiente de αi se e somente se k + j = i. Assim, usando a convencao de que ak = 0se k > n e bj = 0 se j > m, o coeficiente de αi sera

a0bi + a1bi−1 + · · ·+ ai−1b1 + aib0

e podemos reescrever a soma a direita comon+m∑i=0

(∑k+j=i

akbj

)αi

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Aqui cabe uma pequena ressalva: pode ser que uma potencia αi possa ser escrita em termosde combinacoes lineares de potencias menores, e nao consideramos expansoes desse tipo noscalculos. Por exemplo, usando a formula temos que

(2 +√

2)(3− 5√

2) = 2 · 3 + (2 · (−5) + 1 · 3)√

2 + (2 · 0 + 1 · (−5) + 0 · 1)(√

2)2

que pode ser mais simplificada usando a equacao√

22

= 2.

Definicao 6.2. Dadas as sequencias (sn) e (tn) de elementos de A, definimos sua soma por

(sn) + (tn) = (sn + tn)

e seu produto por

(sn) · (tn) = (un)

onde

un = s0tn + s1tn−1 + · · ·+ snt0 =n∑i=0

sitn−i =∑i+j=n

sitj.

Seja A[[x]] o conjunto de todas as sequencias de elementos de A com estas operacoes de somae produto.

Teorema 6.1. A[[x]] e um anel (comutativo, com unidade ) com as operacoes de soma e produtodefinidas acima.

Demonstracao. O zero e a unidade sao 0 = (0, 0, . . .) e 1 = (1, 0, 0, . . .); o oposto de umasequencia e dado por −(an) = (−an). As propriedades relativas a soma sao de verificacaosimples. A associatividade do produto nao e tao imediata, e e baseada no seguinte:

Sejam r = (rn), s = (sn), t = (tn) ∈ A[[x]]. Considere a soma

un =∑

i+j+k=n

risjtk

onde i, j, k ≥ 0.Se i+ j + k = n, e i, j, k ≥ 0, temos que 0 ≤ i ≤ n, 0 ≤ j ≤ n, 0 ≤ k ≤ n. Podemos ordenar

a soma un fazendo i variar de 0 a n, para cada i, e tomar todos os j, k tais que j + k = n− i.Assim,

(8) un =n∑i=0

( ∑j+k=n−i

risjtk

)=

n∑0

ri

( ∑j+k=n−i

sjtk

)Mas tambem podemos fazer o mesmo comecando por j ou por k. Comecando por k, temos

(9) un =n∑k=0

( ∑i+j=n−k

risjtk

)=

n∑k=0

( ∑i+j=n−k

risj

)tk

Agora veja que (8) e a formula do n-esimo termo do produto (rn)((sn)(tn)), e (9) e a formulado n-esimo termo de ((rn)(sn))(tn). Segue que a multiplicacao e associativa.

Calculos mais simples mostram que o produto e comutativo e distributivo (mas nao deixe defaze-los). �

Definicao 6.3. O anel A[[x]] e o anel das series formais com coeficientes em A.

Veremos mais adiante qual a ligacao com series.Considere agora o subconjunto A[x] das sequencias finitas, isto e, sequencias que tem um

numero finito de termos nao-nulos.

Definicao 6.4. Se s ∈ A[x] e s 6= 0, o grau de s e o maior ındice n tal que sn 6= 0.Notacao: grau de s = ∂(s).

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Lema 6.1. Sejam r, s ∈ A[x].

(i) Se r + s 6= 0, entao ∂(r + s) ≤ max{∂(r), ∂(s)}.(ii) Se r · s 6= 0, entao ∂(r · s) ≤ ∂(r) + ∂(s).

Demonstracao. (i) Suponha que r + s 6= 0 e seja N = max{∂(r), ∂(s)}. Entao rn = 0 sen > N e sn = 0 se n > N . Logo, o grau de r+ s e no maximo N , pois para n > N temos

(r + s)n = rn + sn = 0.

(ii) Sejam m = ∂(r), n = ∂(s), e seja t = (tk) o produto de r e s. Logo,

tk =k∑i=0

risk−i,∀k ∈ N

Se k > m+ n entao k se escreve como k = m+ n+ α com α inteiro positivo. Assim,

tk =k∑i=0

risk−i =

(m+n)+α∑i=0

ris(m+n)+α−i,

ou seja,

tk = [r0sm+n+α + r1sm+n+α−1 + · · ·+ rmsn+α] + [rm+1sn+α−1 + · · ·+ rm+n+αs0].

Como ∂(s) = n e α > 0, temos

sm+n+α = sm+n+α−1 = · · · = sn+α = 0,

e como ∂(r) = m, temos

rm+1 = rm+2 = · · · = rm+n+α = 0.

Logo, tk = 0 se k > m+ n e segue que ∂(t) ≤ m+ n.�

Com a hipotese extra de que A seja domınio, o item (ii) fornece uma formula fundamentalno estudo dos polinomios, a do grau do produto de dois polinomios. Por sua importancia,colocamos este resultado em uma proposicao separada.

Proposicao 6.2 (grau do produto). Sejam r, s nao-nulos em A[x]. Se A e domınio, entaor · s 6= 0 e

∂(r · s) = ∂(r) + ∂(s)

Demonstracao. Sejam r, s, t como em (ii) do Lema anterior. Ja vimos que ∂(t) ≤ m+n; vamosanalisar agora o termo tm+n. Pela formula,

tm+n = (r0sm+n + r1sm+n−1 + · · ·+ rm−1sn+1) + rmsn + (rm+1sn−1 + · · ·+ rm+ns0).

Pelos mesmos argumentos de (ii), todos os termos acima se anulam, exceto possivelmentermsn. Se A e domınio e rm, sn sao diferentes de zero, entao rmsn 6= 0 e tm+n = rmsn 6= 0. Segueque ∂(rs) = m+ n. �

Corolario 6.1. Se A e domınio entao A[x] tambem e domınio.

De fato, o Lema 6.1 mostra que se r, s pertencem a A[x] entao r+ s e rs tambem pertencema A[x]. Obviamente, 1 ∈ A[x], e como −r = (−rn), −r ∈ A[x] se r ∈ A[x]. Assim, A[x] e umsubanel de A[[x]], e portanto e um anel. A proposicao 6.1 mostra que se r, s 6= 0 entao rs 6= 0.

Veremos agora como identificar A[x] com os polinomios em sua forma mais conhecida.Seja en a sequencia que tem n-esimo termo igual a 1 e todos os outros nulos. Afirmamos que

emen = em+n.De fato, escreva

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em = (ak), onde am = 1 e ak = 0 se m 6= k,en = (bj), com bn = 1 e bj = 0 se j 6= n.

Pela definicao do produto, emen = (cl), onde

cl =l∑

i=0

aibl−i.

Fazendo as contas,

cm+n = a0bm+n + · · ·+ am−1bn+1 + ambn + am+1bn−1 + · · ·+ am+nb0

= ambn = 1

Se α > 0, temos

cm+n+α = (a0bm+n+α + · · ·+ ambn+α) + (am+1bn+α−1 + · · ·+ am+n+αb0) = 0

De modo analogo, cl = 0 para 0 ≤ l < m+ n. Assim,

cl =

{1 se l = m+ n0 caso contrario

e concluımos que

emen = em+n(10)

Chamando e1 de x, temos:

Proposicao 6.3. Seja A um anel, e sejam e1, e2, . . . ∈ A[x] como acima.

(i) Dado a ∈ A, (a, 0, 0, · · · )(r0, r1, · · · ) = (ar0, ar1, · · · );(ii) en = xn;

(iii) Identificando a ∈ A com a sequencia (a, 0, 0, · · · ), temos

(r0, r1, · · · , rn, 0, 0, · · · ) = r0 + r1x+ r2x2 + · · ·+ rnx

n.

Demonstracao. (i) Segue da definicao de produto de sequencias;(ii) Segue por inducao em n da formula 10;(iii) (r0, r1, · · · , rn, 0, 0, · · · ) = (r0, 0, 0, · · · ) + (0, r1, 0, · · · ) + · · ·+ (0, · · · , 0, rn, 0, · · · )

= (r0, 0, · · · )e0 + (r1, 0, · · · )e1 + · · ·+ (rn, 0, · · · )en = r0 + r1e1 + · · ·+ rnen= r0 + r1x+ · · ·+ rnx

n.

Podemos assim denotar os elementos do anel A[x] por

a0 + a1x+ · · ·+ anxn,

ai ∈ A, n ∈ N.

Definicao 6.5. A[x] e o anel de polinomios na indeterminada x com coeficientes em A.

Veja que um dos nossos objetivos foi plenamente alcancado: definindo o anel de polinomiosdeste modo mais rigoroso, por sequencias, temos realmente que dois polinomios com coeficientesem A sao iguais se e somente se seus coeficiente sao os mesmos.

Como fazer com polinomios em duas ou mais variaveis? Bem, A[x] e um anel comutativo, epodemos considerar o anel de polinomios com coeficientes em A[x]. Este anel e denotado porA[x][y], e seus elementos sao da forma

a0(x) + a1(x)y + · · ·+ an(x)yn

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onde cada aj(x) ∈ A[x]. Usando a distributiva, ve-se que estes sao realmente os polinomios nasindeterminadas x e y e coeficientes em A. Por isso, denotamos A[x][y] por A[x, y].

O processo pode ser repetido para definir A[x1, . . . , xn] para qualquer numero de indetermi-nadas.

Voltando ao anel das sequencias A[[x]], podemos usar o item (ii) da ultima proposicao paraescrever uma sequencia (an) como uma serie

∑∞n=0 anx

n. Esta expressao nao tem nenhumsignificado de convergencia da serie; e apenas uma notacao conveniente do ponto de vistaalgebrico (daı o nome de “series formais”), pois pode-se verificar que a soma e produto deelementos de A[[x]] escritos como series formais coincidem com as operacoes de soma e produtode series de potencias vistas no calculo. Pode-se mostrar tambem que o anel A[[x]] e umdomınio. Segue disso, por exemplo, que o conjunto das series de potencias reais (ou complexas)que convergem em uma vizinhanca de 0 e um domınio, pois e um subanel de R[[x]] (ou C[[x]]).

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7. Homomorfismos

Homomorfismos. Nas primeiras secoes vimos que tanto a projecao canonica

ϕ : Z → Zma 7→ [a]m

quanto a aplicacao

π : Z(m1···mk) → Zm1 × Zmk

[a](m1···mk) 7→ ([a]m1 , . . . , [a]mk)

satisfazem tres propriedades muito interessantes do ponto de vista da algebra: preservam soma,produto, e levam unidade em unidade. Naturalmente, pode-se considerar essas propriedadesno contexto geral de aneis.

Definicao 7.1. Sejam A e B aneis. Uma funcao ϕ : A→ B e um homomorfismo se

(i) ϕ(a+ b) = ϕ(a) + ϕ(b), para todos a, b em A(ii) ϕ(ab) = ϕ(a)ϕ(b), para todos a, b em A

(iii) ϕ(1A) = 1B.

Note que o primeiro “1” em (iii) e a unidade de A e o segundo, a de B. Um homomorfismobijetor sera chamado de isomorfismo; um isomorfismo de A em A e chamado automorfismo deA. Outros nomes que ocorrem na literatura sao monomorfismo, para homomorfismo injetor,epimorfismo, para homomorfismo sobrejetor, e endomorfismo para um homomorfismo de A emA.

Exemplo 7.1. Sejam A,A1, . . . , An aneis.

(1) A aplicacao

ϕ : A → A[x]

a 7→ pa(x) = a

que leva um elemento a de A no polinomio constante pa(x) = a e um homomorfismo.(2) A aplicacao que leva a ∈ A na matriz diagonal

a 0 · · · 00 a · · · 0

. . . 00 0 · · · a

e um homomorfismo injetor de A em Mn(A).

(3) Seja X um conjunto nao-vazio. Dado a ∈ A, seja fa : X → A a funcao constante fa(x) =a,∀x ∈ X. Entao a aplicacao

ϕ : A → F(X,A)

a 7→ fa(x)

e um homomorfismo injetor.(4) As projecoes

pj : A1 × A2 × · · · × An → Aj

(a1, a2, · · · , an) 7→ aj

sao homomorfismos sobrejetores.

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(5) Seja m um inteiro positivo que nao e um quadrado, e seja Q(√m) = {a+ b

√m; a, b ∈ Q}.

A aplicacao

ϕ : Q → Q(√m)

a 7→ a

e um homomorfismo injetor.

Exemplo 7.2. A conjugacao complexa, dada por a+ bi = a − bi, e um automorfismo de C.De fato, aprende-se no colegio que

(i) z + w = z + w(ii) zw = z w(iii) z = z

para todos z e w em C. E facil verificar que estas propriedades sao validas: por exemplo, sez = a+ bi e w = c+ di entao

zw = (a+ bi)(c+ di) = (ac− bd) + (ad+ bc)i = (ac− bd) +−(ad+ bc)i

ezw = (a− bi)(c− di) = (ac− bd) +−(ad+ bc)i,

mostrando que zw = z w. Agora, (i) e (ii), mais o fato que 1 = 1, mostram que a conjugacaoe um homomorfismo. A terceira propriedade mostra que a inversa da conjugacao existe e e elamesma; portanto, a conjugacao e bijetora.

Algumas Propriedades dos Homomorfismos.

Proposicao 7.1. Seja ϕ : A→ B um homomorfismo. Entao

(i) ϕ(0) = 0.(ii) ϕ(−a) = −ϕ(a) para todo a ∈ A.

(iii) Se a ∈ A tem inverso em A, entao ϕ(a) tem inverso em B, dado por ϕ(a−1) = ϕ(a)−1.

Demonstracao. Para o primeiro, veja que ϕ(0) = ϕ(0 + 0) = ϕ(0) +ϕ(0). Cancelando ϕ(0) nosdois lados obtemos ϕ(0) = 0. Para o segundo, temos ϕ(a) + ϕ(−a) = ϕ(a − a) = ϕ(0) = 0.Como o oposto e unico, ϕ(−a) = −ϕ(a). O terceiro item e analogo e fica como exercıcio. �

O primeiro item sugere que talvez possamos deduzir tambem que ϕ(1) = 1 a partir do fatoque ϕ(ab) = ϕ(a)ϕ(b), mas isso e falso. De fato, o que consegue-se obter e

ϕ(1) = ϕ(1 · 1) = ϕ(1)ϕ(1) = ϕ(1)2

ou seja, ϕ(1) e solucao de x2 = x em B, ou ainda, de x(x − 1) = 0 em B. Caso B seja umdomınio, as unicas solucoes sao 0 e 1, ja que um dos dois fatores deve ser nulo.

Proposicao 7.2. Se uma aplicacao ϕ : A → B satisfaz as duas primeiras propriedades dadefinicao de homomorfismo e B e um domınio, entao ϕ(1) = 1 ou ϕ e nula.

Se B nao e domınio, podemos ter outras solucoes de x2 = 1 e outras possibilidades para ϕ(1).Por exemplo, considere a aplicacao

ϕ : A → A× Aa 7→ (a, 0)

Esta aplicacao satisfaz (i) e (ii) da definicao de homomorfismo, mas ϕ(1) = (1, 0). O queocorre aqui e ha mais solucoes para a equacao x2 = x alem de 0 = (0, 0) e 1 = (1, 1); emparticular, A× A nao e um domınio. Elementos que satisfazem a equacao x2 = x em um anelsao chamados de idempotentes. Estes elementos sempre aparecem naturalmente quando umanel e o produto de outros aneis. Eles sao a versao algebrica das projecoes da algebra linear, e

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veremos uma conexao mais forte entre estes conceitos mais adiante no contexto de diagonizacaode operadores.

Definicao 7.2. A imagem de ϕ e a imagem de ϕ como funcao, isto e,

Im(ϕ) = {ϕ(x);x ∈ A}O nucleo e o subconjunto de A que reune todos os elementos que sao anulados por ϕ:

N(ϕ) = {x ∈ A;ϕ(x) = 0}

Observe que N(ϕ) ⊂ A e Im(ϕ) ⊂ B.

Proposicao 7.3. Seja ϕ : A→ B um homomorfismo.

(1) A imagem de ϕ e um subanel de B.(2) O nucleo de ϕ e um ideal de A.(3) A aplicacao ϕ e injetora se e somente se ϕ(a) = 0 implica em a = 0. Em outras palavras,

ϕ e injetora se e somente se N(ϕ) = {0}.

Demonstracao. Vamos mostrar que o nucleo e um ideal de A. Primeiro, como ϕ e homo-morfismo, ϕ(0) = 0 e portanto 0 ∈ N(ϕ). Dados x, y ∈ N(ϕ), temos que ϕ(x + y) =ϕ(x) + ϕ(y) = 0 + 0 = 0; logo, x + y ∈ N(ϕ). Finalmente, se x ∈ N(ϕ) e a ∈ A entaoϕ(ax) = ϕ(a)ϕ(x) = ϕ(a) · 0 = 0, e ax ∈ N(ϕ).

Para o terceiro item, se ϕ e injetora e ϕ(a) = 0, como ϕ(0) = 0 segue que a = 0. Reciproca-mente, suponha que N(ϕ) = {0}. Se ϕ(x) = ϕ(y) entao

0 = ϕ(x)− ϕ(y) = ϕ(x) + (−ϕ(y)) = ϕ(x) + ϕ(−y) = ϕ(x− y)

e conclui-se que x− y = 0.O primeiro item fica como exercıcio. �

Proposicao 7.4. Sejam A,B aneis e ϕ : A→ B um homomorfismo.

(i) ϕ(an) = ϕ(a)n para cada n ≥ 1.(ii) Se γ : B → C e um homomorfismo, a composta γ ◦ ϕ : A→ C e um homomorfismo.

(iii) Se ϕ : A→ B e um isomorfismo, sua inversa ϕ−1 : B → A tambem e um homomorfismo.

Os itens (ii) segue essencialmente das definicoes, e o item (i) pode ser feito por inducao. Parao item (iii) basta usar sempre que todo elemento de B e imagem de um (unico) elemento de A.Para verificar que ϕ−1 preserva a soma, por exemplo, dados x, y ∈ B, sejam x′, y′ ∈ A tais queϕ(x′) = x e ϕ(y′) = y. Entao

ϕ−1(x+ y) = ϕ−1(ϕ(x′) + ϕ(y′)) = ϕ−1(ϕ(x′ + y′)) = x′ + y′ = ϕ−1(x) + ϕ−1(y).

O fato de que a inversa de um homomorfismo tambem e um homomorfismo tem consequenciasmuito importantes: se ϕ : A → B e um isomorfismo, podemos dizer que A e B sao indis-tinguıveis do ponto de vista algebrico, mesmo que sejam muito diferentes do ponto de vista deconjuntos. Deste modo, podemos descobrir coisas sobre um anel trabalhando em uma outra“versao” isomorfa do mesmo onde as contas sao mais simples.

Exemplo 7.3. Considere o anel Q(√

2) = {a+ b√

2; a, b ∈ Q} e B o anel das matrizes[a 2bb a

]com entradas a, b ∈ Q. Voce pode verificar que ambos sao aneis mostrando que sao subaneisde R e de M2(Q) respectivamente. A aplicacao

ϕ : Q(√

2) → B

a+ b√

2 7→[

a 2bb a

]

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e um isomorfismo de aneis. Ja e interessante conseguirmos um anel isomorfo a Q(√

2) queso tem numeros racionais. Agora, como Q(

√2) e um anel comutativo, concluımos que B

tambem e um anel comutativo (mesmo que o anel de matrizes nao seja). Alem disso, podemos

usar o que sabemos sobre matrizes para mostrar que Q(√

2) e um corpo. E imediato que

det[

a 2bb a

]= a2−2b2 e, como

√2 nao e racional, este determinante so e zero quando a = b = 0.

Logo, cada elemento nao-nulo de B e invertıvel. Calculando a inversa da matriz, obtemos[a 2bb a

]−1=

1

a2 + 2b2

[a −2b−b a

]=

[a

a2+2b2−2b

a2+2b2−b

a2+2b2a

a2+2b2

]que e um elemento de B. Portanto, este ultimo anel e um corpo, e o mesmo vale para Q(

√2),

pois ϕ−1 e homomorfismo e portanto preserva inversos. ϕ−1 ainda fornece explicitamente oinverso de a+ b

√2 quando este elemento e nao-nulo: aplicando ϕ−1 a inversa da matriz ϕ(a+

b√

2) e usando o fato que ϕ−1 preserva inversos, concluımos que o inverso de a+b√

2 e o numeroa

a2+2b2− b

a2+2b2

√2.

Exemplo 7.4. Quem sao os endomorfismos de Z, isto e, os homomorfismos de Z em si mesmo?Seja ϕ : Z → Z um homomorfismo. Da definicao segue que ϕ(1) = 1, e ja vimos tambem queϕ(0) = 0. Veja que entao ϕ(2) = ϕ(1) +ϕ(1) = 1 + 1 = 2. Claramente, o mesmo vai valer para3, 4, 5 . . . e podemos formalizar isso usando inducao.

Ja temos ϕ(1) = 1. Se ϕ(k) = k entao ϕ(k+ 1) = ϕ(k) +ϕ(1) = k+ 1. Logo, ϕ(n) = n paratodo n ≥ 0. Quanto aos negativos, como ϕ preserva o oposto, se m = −n, com n > 0, entaoϕ(m) = ϕ(−n) = −ϕ(n) = −n = m. Logo, o unico homomorfismo de Z em Z e a identidade.

Exemplo 7.5. O unico endomorfismo de Q tambem e a identidade. De fato, se ϕ : Q → Q eum homomorfismo, de ϕ(1) = 1 conclui-se como acima que ϕ(n) = n para qualquer n inteiro.Para mostrar que ϕ(m/n) = m/n para qualquer m/n ∈ Q use a igualdade m/n = m(1/n) epropriedades de homomorfismos.

Exemplo 7.6. Ao considerar endomorfismos de Q(√

2) temos finalmente alguma novidade.Seja ϕ : Q(

√2) → Q(

√2) um homomorfismo. Primeiro, pode-se mostrar que ϕ(a) = a para

todo a ∈ Q. Logo, ϕ(a+ b√

2) = ϕ(a) + ϕ(b)ϕ(√

2) = a+ bϕ(√

2).Que valor pode ter ϕ(

√2)? Vamos escrever temporariamente u =

√2 para deixar o raciocınio

mais claro. Bom, como u2 = 2, aplicando ϕ concluımos que ϕ(u)2 = ϕ(u2) = ϕ(2) = 2.Portanto, ϕ(u) e raiz da mesma equacao x2 − 2 = 0, e so pode ser

√2 ou −

√2. A primeira

opcao implica que ϕ e a identidade, e a segunda leva a funcao ϕ(a + b√

2) = a− b√

2. E facilverificar que essa funcao e um automorfismo de Q(

√2). Assim, existem dois endomorfismos de

Q(√

2), e ambos sao isomorfismos.

Exemplo 7.7. Um exemplo mais interessante e mais difıcil e o do corpo K = Q(√

2,√

3) = {a+b√

2+c√

3+d√

6; a, b, c, d ∈ Q}. Primeiro, nao e facil mostrar que este conjunto e um subcorpode R; mostre pelo menos que e um subanel de R. Analisando os possıveis homomorfismos de Kem K, voce tambem concluira que os racionais sao fixados ponto a ponto, como nos exemplosanteriores; alem disso, usando o argumento do ultimo exemplo, temos que as possıveis imagensde√

2 sao ±√

2 e as de√

3 sao ±√

3. As de√

6 ficam automaticamente determinadas: como√6 =√

2√

3, se ϕ : K→ K e um homomorfismo entao ϕ(√

6) = ϕ(√

2)ϕ(√

3). Isso da um totalde 4 possibilidades, todas bijetoras. Para garantir que as 3 possibilidades de automorfismosnao-triviais sao mesmo automorfismos sem fazer todas as contas e necessario utilizar resultadossobre extensoes de homomorfismos ou Teoria de Galois.

Exemplo 7.8. Finalmente, apesar da apresentacao parecida, Q(√

2) e Q(√

3) nao sao isomor-fos. Pior ainda, nao existe nenhum homomorfismo de um no outro. Para isso, leve em conta

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que se ϕ : Q(√

2) → Q(√

3) e um homomorfismo entao ϕ(√

2) tem que ser raiz de x2 − 2 = 0em Q(

√3).

No entanto, nao ha raiz desta equacao neste corpo (dito de outro modo, e impossıvel escrever√2 ou −

√2 na forma a+ b

√3). De fato, se (a+ b

√3)2 = (a2 + 3b2) + 2ab

√3 = 2 entao

2ab√

3 = 2− (a2 + 3b2).

Se ab 6= 0 concluımos que√

3 e racional, absurdo. Logo, ou a = 0 ou b = 0. Se b = 0 obtemosa igualdade 2 = a2, absurdo, pois a ∈ Q. Se a = 0 entao 2 = 3b2. Escrevendo b como umafracao reduzida b = p/q temos 2q2 = 3p2 com p e q inteiros coprimos. Como 2 e 3 sao coprimose 2 divide 3p2, segue que 2 e fator de p2, e portanto 2 e fator de p; podemos escrever p = 2r, etemos agora 2q2 = 3 · 4 · r2, o que fornece q2 = 3 · 2 · r2. Mas isso diz que 2 divide q, e portantomdc(p, q) ≥ 2, contradicao. Portanto, nao ha raiz de x2−2 = 0 em Q(

√3) e nao existe nenhum

homomorfismo de Q(√

2) para Q(√

3).

Como vimos nestes exemplos, homomorfismos traduzem as equacoes que um elemento asatisfaz num anel para equacoes que a imagem de a satisfaz no outro anel. Nos voltaremos adiscutir essa propriedade com mais detalhes algumas secoes adiante.

Operadores e Matrizes. Seja K um corpo, seja T : Kn → Kn um operador linear e sejaβ = {v1, . . . , vn} uma base de Kn. A matriz de T na base β e dada por [T ]β = (ai,j) ∈ Mn(K)onde

T (v1) = a1,1v1 + a2,1v2 + · · ·+ an,1vn

T (v2) = a1,2v1 + a2,2v2 + · · ·+ an,2vn...

T (vn) = a1,nv1 + a2,nv2 + · · ·+ an,nvn

Algumas propriedades conhecidas de algebra linear podem ser resumidas da seguinte forma:

Proposicao 7.5. A aplicacao ϕ : L(Kn) → Mn(K) que leva cada operador T em sua matriz[T ]β na base β e um isomorfismo de aneis.

Demonstracao. A verificacao mais difıcil e a do produto. Suponha que [T ]β = (ai,j) e que[S]β = (bi,j). Entao

(T ◦ S)(vj) = T (∑l

bl,jvl) =∑l

bl,jT (vl) =∑l

bl,j(∑i

ai,lvi) =∑i

(∑l

ai,lbl,j)vi

e, pela definicao de matriz de aplicacao linear, conclui-se que

[T ◦ S]β =

(∑l

ai,lbl,j

)i,j

= [T ]β[S]β.

A demonstracao de que ϕ e K-linear e mais simples, e segue disso que ϕ preserva somas.Fica claro tambem que o operador identidade e levado na matriz identidade.

Para mostrar que ϕ e bijetora, podemos usar o fato que as dimensoes de L(Kn) e Mn(K) saoambas iguais a n2. Usando o teorema do nucleo e imagem, basta verificar que ϕ e injetora. Erealmente, se ϕ(T ) = [T ]β e a matriz nula, entao T (vi) = 0 para cada vetor vi da base β. ComoT e linear, isso mostra que T = 0. Assim, ϕ e um isomorfismo de aneis. �

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8. Corpo de Fracoes de um Domınio de Integridade

Mostraremos agora que para cada domınio de integridade ha um corpo naturalmente asso-ciado, o corpo de fracoes do domınio. Em particular, mostraremos como se pode construir osracionais a partir dos inteiros.

A ideia para comecar a construcao e uma simples observacao: os numeros racionais podem serpensados como pares (a, b) de inteiros, com b 6= 0, mas pares distintos tem de ser consideradosequivalentes se dao a mesma fracao: por exemplo, todos os pares (n, 2n) com n 6= 0 devemser considerados equivalentes pois todos representam a fracao 1

2. Intuitivamente, cada fracao

corresponde a uma classe de equivalencia de elementos de Z × Z − {0}; mas qual e a relacaode equivalencia?

Veja que ab

= cd

em Q se e somente se ad = bc em Z. Isso sugere a relacao a ser usada naconstrucao do corpo de fracoes.

Teorema 8.1. Se D e um domınio de integridade, existem um corpo K(D) e um monomorfismoϕ : D → K(D) tais que

K(D) = {ϕ(a)ϕ(b)−1; a, b ∈ D, b 6= 0}K(D) e chamado de corpo de fracoes de D.

Demonstracao. Seja D um domınio, e considere o conjunto D× (D−{0}). Considere a relacao≡ em D × (D − {0}) dada por

(a, b) ≡ (c, d) se e somente se ad = bc.

Esta e uma relacao de equivalencia em D × (D − {0}). Seja K(D) o conjunto das classes deequivalencia segundo essa relacao, e considere em K(D) as operacoes

[(a, b)] + [(c, d)] = [(ad+ bc, bd)]

[(a, b)] · [(c, d)] = [(ac, bd)]

Veja primeiro que o fato de D ser um domınio e essencial nessa construcao, pois e isso quegarante que bd 6= 0 se b e d sao nao-nulos, e portanto os pares (ad + bc, bd) e (ac, bd) estaomesmo em D × (D − {0}).

Afirmamos que K(D) e um corpo com essas operacoes.Antes de mais nada, as operacoes estao bem definidas? Suponha que [(a, b)] = [(a′, b′)] e

[(c, d)] = [(c′, d′)]. Entao

[(ad+ bc, bd)] = [(a′d′ + b′c′, b′d′)]

pois ab′ = a′b e cd′ = c′d por hipotese, e daı

(ad+ bc)b′d′ = (ab′)(dd′) + (cd′)(bb′) = a′bdd′ + c′dbb′ = (a′d′ + b′c′)(bd),

mostrando que a soma nao depende dos representantes das classes. Contas analogas garantema boa definicao do produto.

Da definicao das operacoes segue que a unidade de K(D) e [(1, 1)] e que o zero e [(0, 1)]. Ooposto de um elemento [(a, b)] e [(−a, b)].

O elemento [(a, b)] e igual a zero se e somente se [(a, b)] = [(0, 1)], ou seja, se e somente sea = b · 0 = 0. Assim, se [(a, b)] e nao-nulo entao a 6= 0, e seu inverso e [(b, a)].

Quanto as outras propriedades, todas seguem do fato de D ser um domınio. Por exemplo,quanto a associatividade da soma,

([(a, b)] + [(c, d)]) + [(e, f)] = [(ad+ bc, bd)] + [(e, f)]

= [(adf + bcf) + bde, bdf)]

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e, por outro lado,

[(a, b)] + ([(c, d)] + [(e, f)]) = [(a, b)] + [(cf + ed, df)]

= [adf + (bcf + ebd), bdf)]

= [(adf + bcf) + bde, bdf)]

= ([(a, b)] + [(c, d)]) + [(e, f)].

E facil verificar que a aplicacao

ϕ : D → K(D)

a 7→ [(a, 1)]

e um homomorfismo; alem disso, e injetor, pois [(a, 1)] = [(b, 1)] se e somente se a = b em D.Sua imagem e o conjunto D′ = {[(a, 1)]; a ∈ D}, que e um subanel de K(D) pois e a imagemde um homomorfismo.

Note que [(a, b)] = [(a, 1)][(1, b)] = [(a, 1)][(b, 1)]−1 = ϕ(a)ϕ(b)−1, como querıamos. �

Sendo todo elemento de K(D) uma fracao ϕ(a)/ϕ(b) = ϕ(a)ϕ(b)−1, contas em K(D) estaosempre relacionadas com contas em D′ = ϕ(D) e vice-versa. O Lema de Gauss, por exemplo,relaciona a fatoracao de um polinomio f(x) ∈ D[x] em D[x] com sua fatoracao em K(D)[x](veremos isso no caso mais simples de Z e Q).

Como ϕ : D → K(D) e injetora e todo elemento de K(D) e uma fracao ϕ(a)/ϕ(b), nosexemplos concretos identifica-se cada a ∈ D com ϕ(a) ∈ K(D) e escreve-se K(D) = {a/b; a ∈D, b ∈ (D − {0})}. O corpo K(D) e, em certo sentido, o menor corpo que contem D, comoveremos a seguir.

Teorema 8.2. Seja K(D) um corpo de fracoes de D. Entao

(i) Se F e um corpo e θ : D → F e um monomorfismo, existe um unico monomorfismo

θ : K(D)→ F tal que θ(ϕ(a)) = θ(a) para cada a ∈ D.(ii) K(D) e unico a menos de isomorfismos.

Demonstracao. Para verificar o item (i), suponha que F e um corpo e θ : D → F e umhomomorfismo injetor. Se b ∈ D e diferente de zero, entao θ(b) 6= 0, e como F e corpo, existe

θ(b)−1. Se existe algum homomorfismo θ : K(D) → F tal que θ(ϕ(a)) = θ(a), entao ele temque satisfazer

θ(ϕ(a)ϕ(b)−1) = θ(ϕ(a))θ(ϕ(b)−1) = θ(ϕ(a))θ(ϕ(b))−1 = θ(a)θ(b)−1.

Sendo assim, defina θ : K(D) → F por θ(ϕ(a)ϕ(b)−1) = θ(a)θ(b)−1. Pode-se mostrar que θesta bem definida, que e um homomorfismo de corpos e, pelo que acabamos de ver, e unica.

Vamos mostrar agora que K(D) e unico a menos de isomorfismos. Suponha que K ′(D)e outro corpo de fracoes com um monomorfismo ψ : D → K ′(D) de modo que K ′(D) ={ψ(a)ψ(b)−1; a, b ∈ D, b 6= 0}. Como K(D) e um corpo de fracoes de D, existe um (unico)

homomorfismo ψ : K(D) → K ′(D) tal que ψ(ϕ(a)) = ψ(a); usando agora o fato que K ′(D)e um corpo de fracoes de D, existe tambem um homomorfismo ϕ : K ′(D) → K(D) tal queϕ(ψ(a)) = ϕ(a).

Tomando a composta ψ ◦ ϕ : K ′(D)→ K ′(D), temos que

ψ ◦ ϕ(ψ(a)) = ψ(ϕ(ψ(a))) = ψ(ϕ(a)) = ψ(a)

Mas a funcao identidade idK′(D) satisfaz a mesma condicao: idK′(D)(ψ(a)) = ψ(a) para todoa ∈ D. Olhando K ′(D) por um lado como um corpo de fracoes e, por outro lado, como ocorpo F no item (i) (e ψ : D → K ′(D) como a aplicacao θ : D → F do item (i) ), vemos

que esse homomorfismo e unico e temos que ψ ◦ ϕ = idK′(D). Do mesmo modo conclui-se

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que ϕ ◦ ψ = idK(D), o que mostra que ψ : K(D) → K ′(D) e um isomorfismo, com inversaϕ : K ′(D)→ K(D). �

Exemplo 8.1. O corpo de fracoes de Z e Q. Se D e um domınio, o corpo de fracoes de D[x]

e o corpo D(x) das funcoes racionais, D(x) =

{f(x)

g(x); f(x), g(x) ∈ D[x], g(x) 6= 0

}.

Exemplo 8.2. O corpo de fracoes de Z[i] = {m+ni;m,n ∈ Z} e o corpo Q(i) = {a+ bi; a, b ∈Q}. De fato, Q(i) e um corpo que contem Z[i], e portanto existe uma copia do corpo de fracoes

de Z[i] dentro de Q(i) (por que?). E facil ver que o unico subcorpo de Q(i) que contem Z[i] eo proprio Q[i], e portanto K(Z[i]) = Q(i).

Fazendo de outro jeito, e facil ver diretamente que K(Z[i]) = Q(i) pois

a

b+c

di =

ad

bd+bc

bdi =

ad+ bci

bdque e uma fracao com numerador e denominador em Z[i]. Assim, K(Z[i]) = Q(i), com funcaoϕ : Z[i]→ Q(i) dada pela inclusao.

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9. Numeros Complexos

9.1. Construcao dos numeros complexos. O corpo dos numeros complexos e o conjuntodos numeros da forma

a+ bi

com a, b reais, i satisfazendo i2 = −1, e com operacoes

(a+ bi) + (c+ di) = (a+ b) + (c+ d)i

(a+ bi)(c+ di) = (ac− bd) + (ad+ bc)i(11)

Verifique que se quisermos que i2 = −1 e que C seja pelo menos um anel, o produto tem queser dado por esta formula – nao ha outra escolha.

Pode-se construir C concretamente, a partir de R, usando sua representacao geometrica.Recorde que o numero complexo a + bi e representado no plano R2 pelo ponto (a, b). Issoestabelece uma bijecao entre C e R2.

Tendo isso em mente, vamos definir duas operacoes em R2 que vem das operacoes de somae produto em (11). Definimos

(a, b) + (c, d) = (a+ c, b+ d)

(a, b) · (c, d) = (ac− bd, ad+ bc)

e (re-)definimos C como o conjunto R2 com estas operacoes.

Teorema 9.1. C e um corpo com as operacoes de soma e produto definidas acima.

Demonstracao. As propriedades de anel comutativo de C seguem das propriedades dos reais.Por exemplo, para a associatividade do produto, temos

((a, b)(c, d))(e, f) = (ac− bd, ad+ bc)(e, f) =

= ((ac− bd)e− (ad+ bc)f, (ac− bd)f + (ad+ bc)e) (pela def. do produto)

= ((ac)e− (bd)e− (ad)f − (bc)f, (ac)f − (bd)f + (ad)e+ (bc)e) (distributividade em R)

= (a(ce)− b(de)− a(df)− b(cf), a(cf)− b(df) + a(de) + b(ce)) (assoc. do produto em R)

= (a(ce)− a(df)− b(de)− b(cf), a(cf) + a(de)− b(df) + b(ce)) (comut. da soma em R)

= (a(ce) + a(−df)− b(de)− b(cf), a(cf) + a(de) + b(−df) + b(ce)) (pois (−x)y = x(−y))

= (a(ce− df)− b(de+ cf), a(cf + de) + b(ce− df)) (associatividade)

= (a, b)((ce− df), (cf + de)) (def. do produto)

= (a, b)((c, d)(e, f)) (def. do produto)

Como a soma e a mesma soma usual de R2 como espaco vetorial, e imediato que o zero e ovetor (0, 0) e que o oposto de (a, b) e o vetor (−a,−b).

O produto e mais sutil: a unidade e (1, 0), e o inverso nao vem diretamente do inverso dascoordenadas. Para encontrar o inverso, suponha que (a, b) 6= (0, 0), e vamos procurar (x, y) ∈C tal que (a, b)(x, y) = (1, 0). Fazendo o produto e comparando coordenada a coordenada,chegamos ao sistema

ax− by = 1

bx+ ay = 0

O determinante do sistema e a2 + b2, que e nao-nulo (por que?). Logo, o sistema tem uma

solucao unica, que e (x, y) =

(a

a2 + b2,−b

a2 + b2

). �

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Agora veja que podemos identificar o eixo x, que e o conjunto R = R × {0}, com o corpodos reais por meio do monomorfismo ϕ : R→ C dado por a 7→ (a, 0). De fato, alem de termosuma bijecao entre R e R, temos que

ϕ(a) + ϕ(b) = (a, 0) + (b, 0) = (a+ b, 0) = ϕ(a+ b)

ϕ(a)ϕ(b) = (a, 0)(b, 0) = (ab, 0) = ϕ(ab)

Deste modo, identificaremos R com R atraves da identificacao do ponto a de R com o pontoϕ(a) = (a, 0) ∈ C.

Observe tambem que, se chamarmos (0, 1) de i, temos

i2 = (0, 1)(0, 1) = (−1, 0) = −1C

Usando isso, podemos escrever cada elemento de C como

(a, b) = (a, 0)(1, 0) + (b, 0)(0, 1) = a+ bi

com a, b reais, i2 = −1, e operacoes como em (11).

A parte real de um numero complexo z = a+bi e Re(z) = a, e a parte imaginaria e Im(z) = b.Um numero complexo e imaginario puro se Re(z) = 0 e Im(z) 6= 0, ou seja, z = bi com b 6= 0.

Como os reais, os numeros complexos tem um valor absoluto. Para isso, definimos o conju-gado z de z = a + bi como z = a − bi. A norma algebrica de z e N(z) = zz = a2 + b2, que e

um real nao-negativo, e o valor absoluto (ou modulo) de z e |z| =√N(z) =

√zz. Listamos na

proxima proposicao algumas das propriedades da conjugacao, da norma algebrica e do modulo.

Proposicao 9.1. Sejam z, w numeros complexos.

(i) z + w = z + w(ii) zw = zw

(iii) z = z se e somente se z e real (isto e, tem parte imaginaria nula).(iv) N(zw) = N(z)N(w)(v) N(z) ≥ 0, N(z) = 0 se e somente se z = 0.

(vi) |zw| = |z||w|(vii) |z| ≥ 0, |z| = 0 se e somente se z = 0.

(viii) |z + w| ≤ |z|+ |w| (desigualdade triangular)

(ix) Se z 6= 0 entao z−1 =z

zz

Todos os itens seguem diretamente das definicoes com excecao da desigualdade triangular.Para prova-la, como tanto |z + w| quanto |z| + |w| sao numeros nao-negativos, basta verificarque |z + w|2 ≤ (|z|+ |w|)2. Agora,

(|z|+ |w|)2 = zz + ww + 2|z||w|

e o outro lado e

|z+w|2 = (z+w)(z + w) = zz+ww+wz+ zw = zz+ww+ (wz+wz) = zz+ww+ 2 Re(wz)

Logo, basta mostrar que Re(wz) ≤ |z||w|. Escrevendo z = a + bi e w = c + di, temos que(wz) = (c + di)(a − bi) = (ac + bd) + (ad − bc)i. Portanto, Re(wz) = (ac + bd) e a inequacaoque queremos e

ac+ bd ≤ |z||w|

que segue da desigualdade de Cauchy-Schwarz aplicada aos vetores (a, b) e (c, d).

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9.2. Uma forma matricial para os complexos. Seja C o conjunto das matrizes reais 2× 2da forma [

a −bb a

]ou seja,

C = {(ai,j) ∈M2(R); a1,1 = a2,2 e a1,2 = −a2,1}C e um subanel de M2(R) (verifique) e, portanto, e um anel. Alem disso, C e um anelcomutativo.

Afirmamos que a aplicacao

ϕ : C → C

a+ bi 7→[a −bb a

]e um isomorfismo de aneis. De fato, para o produto temos

ϕ(a+ bi)ϕ(c+ di) =

[a −bb a

] [c −dd c

]=

[ac− bd −(ac+ bd)ac+ bd ac− bd

]= ϕ((ac− bd) + (ac+ bd)i)

= ϕ((a+ bi)(c+ di))

Do mesmo modo, para a soma temos

ϕ(a+ bi) + ϕ(c+ di) =

[a −bb a

]+

[c −dd c

]=

[a+ c −(b+ d)b+ d a+ c

]= ϕ((a+ c) + (b+ d)i)

= ϕ((a+ bi) + (c+ di))

e unidade vai em unidade, pois

ϕ(1) = ϕ(1 + 0i) =

[1 00 1

]A aplicacao ϕ e claramente sobrejetora pois, dada uma matriz M de C, M =

[a −bb a

]temos

que M = ϕ(a+ bi). E e injetora, pois ϕ(a+ bi) = 0 implica em[a −bb a

]=

[0 00 0

]e da igualdade de matrizes segue que a = b = 0. Portanto, se ϕ(z) = 0 entao z = 0, e ϕ einjetora.

9.3. Forma polar e raızes n-esimas de um numero complexo. Se z 6= 0, podemosescrever

(12) z = |z|(cos t+ i sen t)

onde t e o angulo orientado do eixo x ao vetor z. O angulo e determinado por z a menos demultiplos inteiros de 2π. A equacao (12) e a forma polar de z.

As formulas de somas de arcos tem uma aplicacao surpreendente para a forma polar. Dadot ∈ R, defina exp(it) por exp(it) = cos(t) + i sen(t). Para abreviar, escreveremos tambem eit

no lugar de exp(it).

Proposicao 9.2. Sejam t, s ∈ R.

(1) eiteis = ei(t+s)

(2) eit = e−it

(3) eis = eit se e somente se s = t+ 2kπ com k ∈ Z.

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Destas propriedades seguem as formulas de de Moivre

eint = (eit)n,

que sao mais conhecidas na forma

(cos(t) + i sen(t))n = cos(nt) + i sen(nt)

onde n ∈ N.Com esta definicao para eit segue a extensao da aplicacao exponencial para os complexos.

Para z = a + bi, defina ez = eaeib. Esta funcao so sera usada no caso em que z = it, masobservamos aqui que ela satisfaz propriedades algebricas analogas a da exponencial real.

Proposicao 9.3. Sejam z, w ∈ C. Entao

(1) e0 = 1(2) ez+w = ezew

(3) ez = ez

Outras propriedades fundamentais da exponencial real tambem sao preservadas. Existe umconceito natural de derivada de uma funcao f : C → C – basta imitar a definicao de derivadade uma funcao real – e pode-se mostrar que f(z) = ez satisfaz f ′(z) = f(z), e que f(z) tambempode ser escrita como serie de potencias (com os mesmos coeficientes da exponencial real).Alguma coisa se perde, no entanto: como exp(it + 2kπi) = exp(it), a exponencial complexa eperiodica de perıodo 2πi e nao e injetora como a exponencial real. Isso torna a definicao dologaritmo complexo bem mais sofisticada que a do logaritmo real, pois o logaritmo nao podeser definido como a inversa da exponencial.

Voltando a algebra, uma aplicacao da forma polar diz respeito as raızes da equacao zn = αquando α e um complexo nao-nulo.

Para isso, escreva α e z na forma polar: α = aeit, com a = |α| e t o angulo orientado do eixox ao vetor α; z = reis, onde r e s sao ainda indeterminados.

Se zn = α entao |z|n = |zn| = |α|, ou seja, rn = a. Dado o numero real positivo a, existe umunico numero real positivo b tal que bn = a; e este numero que chamamos de n

√a. Ve-se que se

zn = α entao r = n√a.

Escrevendo os termos da equacao zn = α na forma polar, temos rneins = aeit e, comorn = a 6= 0, podemos cancelar a e obter eins = eit. Multiplicando esta ultima igualdade pore−it obtemos a equacao

(13) ei(ns−t) = 1.

As solucoes da equacao eiθ = 1 sao da forma θ = 2kπ com θ ∈ Z. Deste modo, as solucoes daequacao (13) sao da forma (ns − t) = 2kπ, ou seja, s = t/n + 2kπ/n. Disso segue que ha nsolucoes distintas de zn = α:

n√a, n√a ei(t/n+2π/n), n

√a ei(t/n+4π/n), . . . , n

√a ei(t/n+2(n−1)π/n).

Note que qualquer solucao da forma n√aet/n+2kπ/n com k < 0 ou k ≥ n corresponde a uma das

solucoes listadas acima (basta dividir k por n e usar propriedades da exponencial).

Exemplo 9.1. Considere a equacao z3 = 1. Pela formula, as raızes sao 1, ω = exp(2πi/3) eω2 = exp(4πi/3). Usando a definicao da exponencial e propriedades do seno e cosseno obtemos

as expressoes ω = −1

2+ i

√3

2e ω = −1

2− i√

3

2.

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10. Polinomios, equacoes e extensoes de homomorfismos

No exemplo 7.8, quando estudamos homomorfismos de Q(√

2) em Q(√

3), vimos que tınhamoscomo enviar Q a Q(

√3) por um homomorfismo – e o unico modo era levar a ∈ Q em a mesmo

– mas e impossıvel estender isso a um homomorfismo de Q(√

2) em Q(√

3). Neste mesmoexemplo nos mostramos que a imagem de

√2 por um homomorfismo teria que satisfazer a

mesma equacao x2 − 2 = 0 que√

2 satisfaz. Nesta secao, vamos mostrar agora que isso e umfato absolutamente geral sobre homomorfismos.

Vamos comecar por um resultado importantıssimo sobre a preservacao de raızes por homo-morfismos.

Teorema 10.1. Sejam A,B aneis e ϕ : A → B um homomorfismo. Se a ∈ A e raiz de umpolinomio h(x) =

∑nk=0 akx

k ∈ A[x], entao ϕ(a) e raiz do polinomio∑n

k=0 ϕ(ak)xk ∈ B[x].

Demonstracao. Seja g(x) =∑n

k=0 ϕ(ak)xk ∈ B[x]. Usando as propriedades de homomorfismo,

de

a0 + a1α + · · · anαn = 0

segue que

0 = ϕ(0) = ϕ(a0 + a1α + · · · anαn)

= ϕ(a0) + ϕ(a1α) + · · ·ϕ(anαn)

= ϕ(a0) + ϕ(a1)ϕ(α) + · · ·ϕ(an)ϕ(αn)

= ϕ(a0) + ϕ(a1)ϕ(α) + · · ·ϕ(an)ϕ(α)n

= g(ϕ(α)).

Agora seria uma boa hora para o leitor verificar que o fato “mıstico” que raızes com parteimaginaria nao-nula de um polinomio h(x) ∈ R[x] aparecem em pares a + bi e a − bi e con-sequencia direta deste resultado (dica: a conjugacao complexa e um automorfismo de C, e seh(x) ∈ R[x] entao h(x) ∈ C[x]).

O mesmo raciocınio usado no teorema mostra que equacoes envolvendo varios elementos de Atambem sao preservadas por homomorfismos. Suponha, por exemplo, que a, b, c ∈ Q(

√2,√

3)e que

5a2b2 +√

3b2c2 =√

2

que podemos reescrever como

a2b2 +√

3b2c2 −√

2 = 0.

Se ϕ : A→ B e um homomorfismo, entao

0 = ϕ(0) = ϕ(a2b2 +√

3b2c2 −√

2)

= ϕ(a2b2) + ϕ(√

3b2c2)− ϕ(√

2)

= ϕ(a)2ϕ(b)2 + ϕ(√

3)ϕ(b)2ϕ(c)2 − ϕ(√

2)

e assim ϕ(a), ϕ(b), ϕ(c) satisfazem a “mesma” equacao em B, onde no lugar dos coeficientes daequacao original aparecem as imagens destes por ϕ.

Vamos estudar agora uma propriedade de extensao de homomorfismos que os aneis de po-linomios possuem e que caracterizam estes aneis dentre todos os outros (ver exercıcios). Estapropriedade esta diretamente relacionada com a propriedade de “preservacao de equacoes” queesbocamos.

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Teorema 10.2 (Propriedade Universal do Anel de Polinomios). Sejam A,B aneis, ϕ : A→ Bum homomorfismo e β ∈ B. Existe um unico homomorfismo ϕ : A[x] → B tal que ϕ coincidecom ϕ nos polinomios constantes e ϕ(x) = β.

Demonstracao. De fato, se existe tal homomorfismo entao as propriedades de homomorfismofornecem as igualdades

ϕ(n∑k=0

akxk) =

n∑k=0

ϕ(akxk) =

n∑k=0

ϕ(ak)ϕ(xk) =n∑k=0

ϕ(ak)ϕ(x)k

Pelas hipoteses,n∑k=0

ϕ(ak)ϕ(x)k =n∑k=0

ϕ(ak)βk

Logo, se existe, este homomorfismo tem que ser dado pela expressao

(14) ϕ(n∑k=0

akxk) =

n∑k=0

ϕ(ak)βk.

Vamos mostrar que a funcao ϕ definida pela equacao (14) e um homomorfismo. Faremos oproduto e deixaremos a soma e a unidade como exercıcio.

Dados f(x) =∑n

k=0 akxk e g(x) =

∑mk=0 bkx

k, temos que f(x)g(x) =∑m+n

k=0 ckxk, onde

ck =∑k

l=0 albk−l. Entao

ϕ(f(x)g(x)) =m+n∑k=0

ϕ(ck)βk

e

ϕ(f(x))ϕ(g(x)) = (n∑k=0

akβk)(

m∑t=0

btβt) =

m+n∑k=0

dkβk

onde

dk =k∑l=0

ϕ(al)ϕ(bk−l) =k∑l=0

ϕ(albk−l) = ϕ(k∑l=0

albk−l) = ϕ(ck).

portanto, ϕ(f(x)(g(x)) = ϕ(f(x))ϕ(g(x)). �

Este resultado diz que todo homomorfismo de A em B pode ser estendido para um homomor-fismo de A[x] em B, e que a escolha de uma imagem para x determina a extensao (compare como que ocorreu no exemplo 7.8, onde nao conseguimos estender o homomorfismo θ : Q→ Q(

√3),

dado por θ(a) = a, para um homomorfismo θ : Q(√

2)→ Q(√

3)).Do teorema acima segue imediatamente nosso primeiro resultado sobre preservacao de raızes.

Basta tomar β = ϕ(α) no teorema acima e usar o fato que ϕ(0) = 0.

Homomorfismos preservam nao apenas raızes, mas tambem relacoes algebricas entre ele-mentos. Vimos um exemplo disso acima com elementos a, b, c de Q(

√2,√

3). Para explicarmelhor essa afirmacao, veja primeiro que o teorema 10.2 tem uma extensao natural ao anelA[x1, x2, . . . , xn], bastando para isso fazer uma inducao em n e lembrar que A[x1, x2, . . . , xn] =A[x1, x2, . . . , xn−1][xn].

Teorema 10.3 (Propriedade Universal do Anel de Polinomios). Sejam A,B aneis, ϕ : A→ Bum homomorfismo e β1, β2, . . . , βn ∈ B. Entao existe um unico homomorfismo

ϕ : A[x1, x2, . . . , xn] → B

que leva cada xi em βi, e leva cada a ∈ A em ϕ(a).

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Agora podemos explicar mais claramente o que querıamos dizer com a preservacao de relacoesalgebricas por homomorfismos. Dados a1, a2, . . . , an ∈ A, o que entendemos por uma relacaoalgebrica, ou dependencia algebrica, entre os elementos a1, . . . , an e uma equacao

f(a1, . . . , an) = 0

em que f(x1, . . . , xn) ∈ A[x1, . . . , xn]. A dependencia algebrica e trivial se f e o polinomio nulo.Um exemplo simples de dependencia algebrica nao-trivial com elementos de R e

√22

+

(√1 +√

3

)2

+

(√1−√

3

)2

− 4 = 0.

Se a1 =√

2, a2 =√

1 +√

3, a3 =√

1−√

3 e f(x, y, z) = x2 + y2 + z2 − 4 entao a equacaoacima e simplesmente f(a1, a2, a3) = 0.

A notacao daqui em diante fica um pouco mais complicada por conta das varias indetermi-nadas. Nos iremos escrever elementos de A[x1, . . . , xn] na forma

f(x1, . . . , xn) =∑

(k1,k2,...,kn)

a(k1,k2,...,kn)xk11 x

k22 · · ·xknn

onde cada ındice (k1, k2, . . . , kn) e uma enupla de numeros naturais e a soma envolve apenasum numero finito dessas enuplas.

Dado f ∈ A[x1, . . . , xn] como acima, se ϕ : A → B e um homomorfismo entao fϕ denota opolinomio

fϕ(x1, . . . , xn) =∑

(k1,k2,...,kn)

ϕ(a(k1,k2,...,kn))xk11 x

k22 · · ·xknn

Teorema 10.4. Sejam A,B aneis e ϕ : A→ B um homomorfismo. Se a1, a2, . . . , an satisfazema dependencia algebrica f(a1, . . . , an) = 0, entao ϕ(a1), ϕ(a2), . . . , ϕ(an) ∈ B satisfazem adependencia algebrica fϕ(ϕ(a1), . . . , ϕ(an)) = 0 em B.

De fato, os ultimos resultados nos dizem que se ϕ : A→ B e um homomorfismo e

f(a1, . . . , an) = 0

entao, como ϕ(0) = 0 e

ϕ(f(a1, . . . , an)) = ϕ

∑(k1,k2,...,kn)

a(k1,k2,...,kn)ak11 a

k22 · · · aknn

=

∑(k1,k2,...,kn)

ϕ(a(k1,k2,...,kn))ϕ(a1)k1ϕ(a2)

k2 · · ·ϕ(an)kn

= fϕ(ϕ(a1), . . . , ϕ(an))

segue quefϕ(ϕ(a1), . . . , ϕ(an)) = 0.

Isso vale para toda dependencia algebrica entre os ai’s.

Varias das propriedades que vimos de homomorfismos podem ser vistas como consequenciasda preservacao de raızes e de dependencias algebricas. Por exemplo, o fato de que ϕ(a−1) =ϕ(a)−1 (quando existe inverso pra a) pode ser visto como uma consequencia da preservacao dea · a−1 = 1, pois x = a−1 e solucao da equacao ax = 1.

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Mas e preciso tomar cuidado com propriedades que se escrevem de modo mais elaborado. Apropriedade de ser um domınio de integridade, por exemplo, pode nao ser preservada. Recordeque essa propriedade diz que

para todos a, b ∈ A, se ab = 0 entao a = 0 ou b = 0.

E claro que se ab = 0 entao ϕ(a)ϕ(b) = 0, mas pode ser que ϕ(a)ϕ(b) = 0 sem que ab = 0 ecom ambos ϕ(a) ou ϕ(b) nao-nulos. Um exemplo simples disso e a aplicacao ϕ : Z → Z6 queleva a em a, que e um homomorfismo (sobrejetor, ainda por cima). Note que Z e domınio e Z6

nao e, pois temos 2 · 3 = 0.Outra coisa que pode ocorrer e que equacoes sem solucao em A possam ter solucoes em B.

Por exemplo, os unicos elementos de Z que tem inverso sao 1 e −1; ou seja, as unicas solucoesde xy = 1 em Z sao x = y = 1 e x = y = −1. Em qualquer Zp com p primo e maior do que 3ha mais solucoes da mesma equacao pois Zp e corpo (e novamente, a aplicacao a 7→ [a]p e umhomomorfismo sobrejetor).

A aplicacao de avaliacao e as funcoes polinomiais. Um caso especial do Teorema 10.2 ea aplicacao de avaliacao em um elemento. Ao inves de olharmos um polinomio como funcao eavaliarmos em elementos do anel, nos fixamos o elemento e variamos os polinomios.

Definicao 10.1. Seja A um anel que e subanel do anel B e seja β ∈ B. A aplicacao de avaliacaoem β e o homomorfismo

εβ : A[x] → Bn∑k=0

akxk 7→

n∑k=0

akβk

Veja que εβ e realmente um homomorfismo: basta tomar ϕ : A → B como a aplicacao deinclusao de A em B (ou seja, ϕ : a 7→ a) no teorema 10.2.

Como de praxe, se p(x) =∑n

k=0 akxk entao p(β) denotara o elemento εβ(p(x)) =

∑nk=0 akβ

k.Mostraremos agora a relacao entre o polinomio a a funcao polinomial associada. A notacao

ficara terrivelmente carregada nos proximos paragrafos, mas isso e necessario para deixar maisclaro o que esta envolvido quando passamos de polinomios para funcoes.

Considere agora a aplicacao ε : A[x]→ F(A,A) que leva um polinomio na funcao polinomialcorrespondente, isto e, dado a ∈ A, a funcao ε(p(x)) aplicada em a e apenas ε(p(x))(a) = p(a).Note que ainda podemos escrever ε(p(x))(a) = εa(p(x)); como εa e um homomorfismo paracada a ∈ A, chegamos no seguinte resultado:

Teorema 10.5. A aplicacao ε : A[x]→ F(A,A) e um homomorfismo de aneis.

Demonstracao. De fato, se f(x) ∈ A[x] e g(x) ∈ A[x], dado a ∈ A temos

ε(f(x) + g(x))(a) = εa(f(x) + g(x)) = εa(f(x)) + εa(g(x)) = f(a) + g(a) =

= ε(f(x))(a) + ε(g(x))(a) = (ε(f(x))(a) + ε(g(x)))(a)

pois εa e homomorfismo. Como isso vale para cada a ∈ A, as funcoes ε(f(x)) + ε(g(x)) eε(f(x) + g(x)) sao iguais. As contas para o produto sao analogas, e a unidade tambem epreservada. �

Este resultado explicita que a passagem de “polinomio” para “funcao polinomial” e umhomomorfismo. Por que essa diferenca nao fica clara no caso de polinomios reais, por exemplo?Porque neste caso pode-se mostrar que a aplicacao ε e um isomorfismo, e entao dois polinomiossao iguais (em termos dos seus coeficientes) se e somente se as funcoes polinomiais associadassao iguais (em termos de igualdade de funcoes, isto e, tem o mesmo valor em cada ponto deR). Voltaremos nesse ponto quando estudarmos relacoes entre raızes e divisibilidade.

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11. Algoritmo da Divisao em K[x]

11.1. Algoritmo da Divisao. Seja K um corpo. O leitor certamente sabe fazer a divisao comresto para polinomios com coeficientes reais; veremos agora que o mesmo metodo funciona parapolinomios com coeficientes em um corpo arbitrario.

O passo principal e o lema seguinte.

Lema 11.1. Sejam f(x), g(x) ∈ K[x] com g(x) 6= 0. Se ∂(f(x)) ≥ ∂(g(x)), existe q(x) tal queo polinomio f(x)− q(x)g(x) e nulo ou tem grau menor que o grau de f(x).

Demonstracao. Escreva f(x) = a0 + a1x + · · · + anxn e g(x) = b0 + b1x + · · · + bmx

m. Como

bm 6= 0 e K e um corpo, bm tem inverso. Tome q(x) =anbmxn−m. Entao q(x)g(x) = anx

n +h(x),

onde h(x) e igual a zero ou ∂(h(x)) < n, e segue que f(x)− q(x)g(x) e zero ou tem grau menordo que n. �

Teorema 11.1 (Algoritmo da Divisao para Polinomios). Seja K corpo e sejam f(x), g(x) ∈K[x] com g(x) 6= 0. Existem unicos q(x) e r(x) em K[x] tais que

f(x) = q(x)g(x) + r(x)

com r(x) = 0 ou ∂(r(x)) < ∂(g(x)).

Demonstracao. Considere o conjunto S de todos os polinomios da forma f(x)− q(x)g(x), comq(x) ∈ K[x]. Se 0 ∈ S, entao existe q(x) ∈ K[x] tal que f(x) = q(x)g(x), e tomamos r(x) = 0.Se 0 /∈ S, tome r(x) ∈ S com o menor grau possıvel em S. Pela definicao de S, existeq(x) ∈ K[x] tal que f(x) = q(x)g(x) + r(x). Afirmamos que ∂(r(x)) < ∂(g(x)). De fato,se ∂(r(x)) ≥ ∂(g(x)) entao o lema anterior garante que existem q(x) e r(x) ∈ K[x] tais quer(x) = q(x)g(x) + r(x) e r(x) = 0 ou ∂(r(x)) < ∂(r(x)). Substituindo esta expressao para r(x)na expressao de f(x), obtemos

f(x) = (q(x) + q(x))g(x) + r(x)

o que mostra que r(x) = f(x) − (q(x) + q(x))g(x) pertence a S. Mas tanto r(x) = 0 quanto∂(r(x)) < ∂(r(x)) levam a uma contradicao; portanto, ∂(r(x)) < ∂(g(x)).

Para a unicidade de q(x) e r(x), suponha que

f(x) = q1(x)g(x) + r1(x) = q2(x)g(x) + r2(x)

e que r1(x) e r2(x) sao como no enunciado do Teorema. Dessa equacao obtemos

(q1(x)− q2(x))g(x) = r2(x)− r1(x)

Se r1(x) 6= r2(x) entao tambem temos (q1(x)− q2(x)) 6= 0, e

∂(r2(x)−r1(x)) < ∂(g(x)) ≤ ∂(q1(x)−q2(x))+∂(g(x)) = ∂((q1(x)−q2(x))g(x)) = ∂(r2(x)−r1(x)),

absurdo. Logo, r1(x) = r2(x), o que implica em q1(x) = q2(x). �

Este algoritmo tem uma consequencia muito importante para uma relacao entre raızes edivisibilidade que o leitor tambem ja deve conhecer.

Teorema 11.2. Seja K um corpo, α ∈ K e f(x) ∈ K[x]. Entao α e raiz de f(x) se e somentese (x− α) divide f(x).

Demonstracao. De fato, dividindo f(x) por (x− α) (usando o Teorema anterior) obtemos

f(x) = (x− α)q(x) + r(x)

onde r(x) = 0 ou ∂(r(x)) < ∂(x − α) = 1. Logo, em qualquer caso, r(x) e um polinomioconstante, r(x) = c ∈ K e

f(x) = (x− α)q(x) + c.

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Substituindo α na equacao acima ficamos com

f(α) = (α− α)q(α) + c = c

e portanto

(15) f(x) = (x− α)q(x) + f(α).

Segue desta equacao que (x− α) divide f(x) se e somente se f(α) = 0. �

Veremos agora que a existencia da divisao com resto em qualquer anel K[x] tem consequenciasmuito importantes para a estrutura deste anel.

11.2. K[x] e um domınio de ideais principais.

Definicao 11.1. Um domınio D e um domınio de ideais principais (DIP) se todo ideal de De principal.

Vimos que isso e verdade para o anel dos inteiros. Veremos agora que, com um argumentopraticamente igual, que K[x] e um domınio de ideais principais.

Teorema 11.3. Todo ideal em K[x] e principal

Demonstracao. Seja I um ideal nao-nulo, e tome d(x) ∈ I de menor grau possıvel em I; ouseja, se f(x) ∈ I e f(x) 6= 0 entao ∂(d(x)) ≤ ∂(f(x)). Como I e um ideal, todo multiplo ded(x) esta em I e, portanto, 〈d(x)〉 ⊂ I. Vamos verificar agora que vale a outra inclusao, ouseja, vamos mostrar que todo elemento de I e multiplo de d(x).

Se f(x) ∈ I, dividindo f(x) por d(x) obtemos

f(x) = q(x)d(x) + r(x)

com r(x) = 0 ou ∂(r(x)) < ∂(d(x)). Se r(x) 6= 0, podemos escrever r(x) = f(x) − q(x)d(x);como q(x)d(x) e f(x) estao em I e a diferenca de dois elementos de um ideal tambem e elementodo ideal, temos que r(x) esta em I. Mas isso e uma contradicao, pois se r(x) 6= 0 entao∂(r(x)) < ∂(d(x)), e ∂(d(x)) e o menor valor que a funcao grau assume em I. Portanto,r(x) = 0, f(x) = q(x)d(x), e segue que 〈d(x)〉 ⊃ I. Da inclusao 〈d(x)〉 ⊂ I que ja tınhamossegue que 〈d(x)〉 = I. �

Exemplo 11.1. Agora podemos mostrar que a hipotese de que K seja corpo para mostrar queK[x] e domınio euclidiano nao pode ser enfraquecida para “domınio”, pois o anel Z[x] nao eum domınio euclidiano. Para isso, considere o ideal

I = 〈2, x〉 = {2f(x) + xg(x); f(x), g(x) ∈ Z[x]}.Se Z[x] e um domınio euclidiano entao este ideal e principal, com gerador d(x). Como d(x)divide 2, as possibilidades para d(x) sao ±1,±2. Um elemento generico de I e uma combinacao2f(x) + xg(x); assim, se seu coeficiente independente e nao-nulo, e multiplo de 2. Portanto,d(x) nao pode ser 1 ou −1 pois 1 /∈ I. A unica possibilidade agora e d(x) = ±2, mas x ∈ I e2 nao divide x em Z[x]. Portanto, nao existe tal d(x); I nao e um ideal principal, e Z[x] nao eum domınio euclidiano.

11.3. Maximo Divisor Comum em K[x]. Podemos estender, de modo natural, a definicaode mdc de numeros inteiros para polinomios de K[x].

Definicao 11.2. Sejam a1(x), a2(x), . . . , an(x) elementos nao-nulos de K[x]. O maximo divisorcomum destes polinomios e o polinomio monico d(x) tal que

(i) d(x) | aj(x) para cada j(ii) se c(x) | aj(x) para cada j entao c(x) | d(x).

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Observe que a unica mudanca que se nota e que trocamos “positivo” por monico. Esta ultimacondicao e necessaria para podermos ter certeza da unicidade do mdc. Isso segue do seguinteresultado:

Proposicao 11.1. Sejam a1(x), a2(x), . . . , an(x) elementos nao-nulos de K[x] e seja d(x) omdc destes polinomios. Entao um polinomio d′(x) satisfaz as condicoes (i) e (ii) da definicaode mdc se e somente se existe uma constante nao-nula α ∈ K tal que d′(x) = αd(x).

Se ambos sao mdc’s, basta observar que o item (ii) da definicao 11.2 implica em d(x) | d′(x)e d′(x) | d(x); escrevendo d′(x) = u(x)d(x) e d(x) = v(x)d′(x), temos d′(x) = u(x)d(x) =u(x)v(x)d′(x). Como d′(x) 6= 0, podemos cancelar d′(x) nesta ultima equacao e obter 1 =u(x)v(x), do que segue que u(x) e v(x) sao polinomios constantes e nao-nulos, u(x) = α ∈ K ev(x) = beta ∈ K, e que β = α−1. A recıproca fica como exercıcio.

Vamos ver agora que realmente existe o mdc.

Teorema 11.4 (Bezout). Sejam a1(x), a2(x), . . . , an(x) ∈ K[x] − {0} e seja d(x) ∈ K[x] umpolinomio nao-nulo. Sao equivalentes:

(1) d(x) e o mdc de a1(x), a2(x), . . . , an(x);(2) d(x) e o gerador monico do ideal

J = {a1(x)k1(x) + a2(x)k2(x) + · · ·+ an(x)kn(x); kj(x) ∈ K[x], j = 1, . . . , n}Em particular, d(x) e uma combinacao linear (com coeficientes em K[x]) dos elementosa1(x), a2(x), . . . , an(x).

Demonstracao. A demonstracao e essencialmente a mesma feita para o resultado analogo emZ.

Vamos supor primeiro que d(x) e monico e que J = 〈d(x)〉. Cada ai(x) pertence a J = 〈d(x)〉,e portanto d(x) divide cada ai(x). Agora, seja c(x) um divisor comum dos ai’s . Como d(x) ∈ J ,existem k1(x), k2(x), . . . , kn(x) ∈ K[x] tais que

d(x) = a1(x)k1(x) + a2(x)k2(x) + · · ·+ an(x)kn(x)

e como c(x) divide cada ai(x), temos que c(x) divide d(x), mostrando assim que se d(x) e ogerador monico de J entao d(x) e o mdc dos ai’s.

Reciprocamente, suponha que d(x) e o mdc dos ai’s, e seja g(x) um gerador de J . Como g(x)divide cada ai(x), g(x) tambem divide d(x). Mas como g(x) ∈ J , existem t1(x), t2(x), . . . , tn(x) ∈D tais que

g(x) = a1(x)t1(x) + a2(x)t2(x) + · · ·+ an(x)tn(x)

e como d(x) divide cada ai(x) segue que d(x) divide g(x). Assim, d(x) | g(x) e g(x) | d(x), econclui-se que d(x) tambem e gerador de J , e e monico por hipotese. �

Observacao 11.1. Se d(x) e o mdc de a1(x), . . . , an(x), entao ∂(d(x)) ≥ ∂(d′(x)) para todod′(x) que e divisor comum de a1(x), . . . , an(x). Isso segue direto da definicao de mdc: como d′(x)e divisor comum temos que d′(x) divide d(x), e de d(x) = q(x)d′(x) com d(x), q(x), d′(x) 6= 0segue que ∂(d(x)) = ∂(q(x)d′(x)) = ∂(d(x)) + ∂(d′(x)) ≥ ∂(d′(x)).

Finalmente, temos tambem um algoritmo de Euclides para calcular o mdc.

Lema 11.2. Sejam a(x), b(x) ∈ K[x] nao-nulos. Se a(x) = q(x)b(x)+r(x) entao mdc(a(x), b(x)) =mdc(b(x), r(x)).

Demonstracao. Sejam d(x) o mdc de a(x), b(x) e d′(x) o mdc de b(x) e r(x). Entao d(x) divideb(x) e tambem r(x), pois r(x) = a(x)− q(x)b(x). Pela definicao de mdc segue que d(x) | d′(x).Por argumento analogo, d′(x) | d(x), e portanto podemos escrever d′(x) = αd(x) para algumα 6= 0 em K. Mas como ambos sao monicos, temos que d′(x) = d(x). �

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Teorema 11.5 (Algoritmo de Euclides). Dados a(x) e b(x) nao-nulos em K[x], defina asequencia r−1(x), r0(x), r1(x), r2(x) . . . por aplicacoes sucessivas do algoritmo da divisao: r−1 =0, r0(x) = b(x), e r1(x), r2(x), . . . sao dados por

r−1(x) = q1(x)r0(x) + r1(x), com ∂(r1(x)) ≤ ∂(b(x))

r0(x) = q2(x)r1(x) + r2(x), com ∂(r2(x)) ≤ ∂(r1(x))

r1(x) = q3(x)r2(x) + r3(x), com ∂(r2(x)) ≤ ∂(r1(x))...

e a sequencia continua enquanto os restos sucessivos forem nao-nulos. Entao a sequencia dedivisoes termina em

rn(x) = qn+2(x)rn+1(x)

para algum n ≥ −1 e, a menos de multiplicacao por uma constante nao-nula, rn+1(x) e o mdcde a(x) e b(x).

Demonstracao. Pela definicao da sequencia, temos ∂(r1(x)) > ∂(r2(x)) > . . ., e uma sequenciadecrescente de naturais tem que ser finita. A sequencia de equacoes deve terminar entao em

...

rn−1(x) = qn+1(x)rn(x) + rn+1(x)

rn(x) = qn+2(x)rn+1(x)

pois se rn+2(x) 6= 0 poderıamos continuar o processo. Usando o lema anterior temos quemdc(rk(x), rk+1(x)) = mdc(rk+1(x), rk+2(x)) para cada k. Ao final, temos claramente qued(x) = mdc(rn(x), rn+1(x)) = (1/bm)rn+1(x) onde rn+1(x) = bmx

m + · · ·+ b1x+ b0. �

Como no caso de numeros inteiros, se d e o mdc de a e b pode-se usar este processo paraobter concretamente elementos r, s ∈ D tais que ar + bs = d.

11.4. Domınios de Fatoracao unica. Tendo os numeros inteiros como modelo, queremosescrever polinomios nao-nulos de K[x] como produtos cujos fatores, por sua vez, so podem serescritos como produtos de outros polinomios de modo trivial. Para isso, precisamos determi-nar o que deve entrar no lugar dos numeros primos e, para isso, precisamos entender o quecorresponde, para um polinomio f(x), aos divisores triviais ±1,±n de um inteiro n.

Veja que se f(x) ∈ K[x] e um polinomio nao-nulo e α ∈ K−{0} entao tanto a(x) = α quantog(x) = αf(x) dividem f(x). De fato, α divide f(x) pois f(x) = α((1/α)f(x)), e αf(x) dividef(x) pois f(x) = (αf(x))(1/α). Esses divisores com certeza devem ser considerados triviaispois, como no caso dos divisores ±1, ±n de n ∈ Z−{0}, nao precisamos saber nada sobre f(x)para chegar a esses divisores.

Vale a pena analisar este conceito de divisor trivial em um contexto mais geral. Considereum domınio de integridade D, e seja a ∈ D um elemento que e nao-nulo e nao-invertıvel. Se ue invertıvel em D entao u | a, pois a = u((1/u)a), e ua | a pois a = (1/u)(ua). Assim, qualquerelemento a de D tem pelo menos dois tipos de divisores: os invertıveis de D e os elementos deD que sao produtos de a por invertıveis. Esses divisores serao chamados de divisores triviaisde a.

Vale a pena dar um nome para os divisores de a do tipo ua com u invertıvel.

Definicao 11.3. Seja D um domınio. Diremos que a e b ∈ D sao associados se existir u ∈ Dinvertıvel tal que b = ua.

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Com essa definicao, os divisores triviais de um elemento nao-nulo a ∈ D sao os invertıveis deD e os associados de a em D.

E interessante observar (e facil de mostrar) que a relacao “e associado a” e uma relacaode equivalencia em D. Elementos associados costumam aparecer em situacoes onde espera-se, intuitivamente, que uma determinada condicao envolvendo o produto determine um unicoelemento: por exemplo, a condicao de ser gerador de um determinado ideal I. Ja no anel Zsabemos que todo ideal nao-nulo nao tem um, mas dois geradores, um gerador positivo d e seuoposto −d. Nao e a toa que esses elementos sao associados em Z:

Proposicao 11.2. Seja D um domınio, sejam a e b elementos nao-nulos de D.

(1) a e b sao associados se e somente se a | b e b | a.(2) a e b sao associados se e somente se 〈a〉 = 〈b〉.

Exemplo 11.2. Os elementos invertıveis em Z sao 1 e −1. Assim, os associados de n sao n e−n.

Exemplo 11.3. Tambem podemos dizer quem sao os invertıveis de Z[i]. Claramente 1,−1, i e−i sao invertıveis. Por outro lado, se z = a+bi ∈ Z[i] e invertıvel entao existe w = c+di ∈ Z[i]tal que 1 = zw e portanto

1 = zwzw = (zz)(ww) = (a2 + b2)(c2 + d2).

Como (a2 + b2) e (c2 +d2) sao inteiros positivos, temos (a2 + b2) = (c2 +d2) = 1 e, como a, b, c, dsao inteiros, as unicas possibilidades para o par (a, b) sao (a, b) = (±1, 0) ou (a, b) = (0,±1), oque fornece exatamente a+ bi = 1,−1, i ou −i.

Observe que em Z[i] nao e tao imediato ver se dois elementos sao associados. Por exemplo,multiplicando 1 + 2i pelos invertıveis obtemos os elementos associados

1 + 2i,−1− 2i,−2 + i,−2− i.

Exemplo 11.4. Seja K um corpo e K[x] o anel de polinomios com coeficientes em K. Entaof(x) ∈ K[x] − {0} tem inverso em K[x] se e somente se f(x) tem grau 0. De fato, todopolinomio constante nao-nulo e invertıvel (pois K e um corpo); reciprocamente, se f(x) teminverso g(x) entao 1 = f(x)g(x), do que segue 0 = ∂(1) = ∂(f(x)) + ∂(g(x)), e portanto0 = ∂(f(x)) = ∂(g(x)). Deste modo, os associados de f(x) sao todos os polinomios αf(x) comα ∈ K− {0}.

Exemplo 11.5. Se D um domınio que nao e corpo, as coisas sao mais complicadas em D[x]. Omesmo raciocınio com o grau do produto (do exemplo anterior) mostra que se f(x) e invertıvelentao f(x) e um polinomio constante; no entanto, nem todos os polinomios constantes nao-nulos sao invertıveis, pois nem todo elemento nao-nulo de D tem inverso. O que vale e que osinvertıveis de D[x] sao os invertıveis de D. Por exemplo, os invertıveis de Z[x] sao apenas ospolinomios constantes 1 e −1, e os associados de f(x) ∈ Z[x] sao f(x) e −f(x). Os invertıveis deZ[i][x] sao os polinomios constantes ±1,±i, e os associados de f(x) ∈ Z[i][x] sao os polinomiosf(x),−f(x), if(x) e −if(x).

Com base nas discussoes acima podemos agora dizer o que e o conceito correspondente a“inteiro primo” para domınios de integridade em geral.

Definicao 11.4. Seja D um domınio e seja a ∈ D nao-nulo e nao-invertıvel. Dizemos que ae irredutıvel em D se todos os seus divisores sao triviais. Caso contrario, isto e, se a tiver aomenos um divisor diferente dos triviais, diremos que a e redutıvel.

Exemplo 11.6. Como os elementos invertıveis em Z sao 1 e −1, dizer que p ∈ Z − {0} eirredutıvel e dizer que p 6= ±1 e que seus unicos divisores sao ±1 e ±p. Ou seja, os inteirosirredutıveis sao exatamente os inteiros primos (e os redutıveis sao os compostos).

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Exemplo 11.7. Seja K um corpo e K[x] o anel de polinomios com coeficientes em K. Comoos invertıveis sao os polinomios constantes nao-nulos, a definicao especıfica de “divisor trivial”em K[x] coincide com a definicao de divisor trivial em um domınio de integridade: os divisorestriviais de um polinomio f(x) de grau maior ou igual a 1 sao os polinomios constantes (oselementos invertiveis de K[x]) e os polinomios αf(x), com α ∈ K∗ (os elementos associados af(x) em K[x]). Assim, um polinomio e irredutıvel se tem grau maior ou igual a 1 e so tem essesdivisores.

Veja que se ∂(f(x)) = 1 entao f(x) e irredutıvel em K[x]. De fato, se g(x) divide f(x) entaopodemos escrever f(x) = g(x)h(x), e entao 1 = ∂(f(x)) = ∂(g(x)) + ∂(h(x)) o que implicaem um dos dois ser zero e outro ser igual a 1. Se ∂(g(x)) = 0 entao g(x) e invertıvel, e se∂(h(x)) = 1 entao h(x) = α ∈ K− {0} e portanto g(x) = α−1f(x), ou seja, g(x) e associado af(x). Portanto f(x) so possui divisores triviais.

O tipo de irredutıveis que pode aparecer em K[x] depende muito das propriedades de K.Existem irredutıveis de qualquer grau (nao-nulo) em Q[x] e, no outro extremo, p(x) e irredutıvelem C[x] se e somente se p(x) tem grau 1.

Exemplo 11.8. O polinomio f(x) = 2 e irredutıvel em Z[x], mesmo tendo grau zero.

Um criterio extremamente util para trabalhar com irredutıveis do ponto de vista teorico e aproposicao a seguir. A ideia intuitiva e que um elemento irredutıvel nao pode ser decompostoem produto de termos mais “simples”.

Proposicao 11.3. Seja D um domınio e a ∈ D um elemento nao-nulo e nao-invertıvel.

(1) a e redutıvel se existem b e c ∈ D, ambos nao invertıveis, tais que a = bc;(2) a e irredutıvel se toda vez que a = bc tem-se que b e invertıvel ou c e invertıvel.

Demonstracao. Provaremos apenas (2), pois (1) segue como consequencia.Suponha que a e irredutıvel e que a = bc. Entao b|a e portanto ou b e invertıvel ou e associado

a a. Se b e invertıvel, terminou; e se b = at com t invertıvel entao a = atc e, cancelando a,obtemos 1 = tc, o que implica em c ser invertıvel. Reciprocamente, suponha que toda vez quea = bc um dos dois fatores e invertıvel. Se d|a entao existe c ∈ D tal que a = cd; pela hipotese,ou c e invertıvel ou d e invertıvel. Suponha, sem perda de generalidade, que d e invertıvel.Entao de a = cd obtemos c = d−1a, que e um divisor trivial de a. Como os papeis de c e dpodem ser trocados, concluımos que todo divisor de a e um divisor trivial. �

O Teorema Fundamental da Aritmetica diz que todo inteiro a 6= 0, 1,−1 se escreve como umproduto

a = up1p2 . . . pn

onde cada pi e um primo positivo, u = ±1, e esta decomposicao e unica a menos de umapermutacao dos fatores. Este resultado motiva a definicao a seguir.

Definicao 11.5. Seja D um domınio. Diremos que D e um domınio de fatoracao unica (DFU)se

(1) para cada a ∈ D nao-nulo e nao-invertıvel existem elementos irredutıveis p1, p2, . . . , pntais que

a = p1p2 · · · pn(2) Se p1, p2, . . . , pn e q1, q2, . . . , qm sao irredutıveis, u e v sao invertıveis e

up1p2 · · · pn = vq1q2 · · · qmentao n = m e existe uma permutacao de fatores tal que pi e qσ(i) sao associados, paratodo i.

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O Teorema Fundamental da Aritmetica diz que Z e um domınio de fatoracao unica. Veremosagora que o mesmo ocorre para K[x], para todo corpo K. A prova e uma adaptacao da provado Teorema Fundamental da Aritmetica.

11.5. Fatoracao Unica em K[x]. Em K[x], o fato do grau do produto ser a soma dos grausfornece uma segunda caracterizacao para irredutibilidade.

Proposicao 11.4. Seja K um corpo.

(1) Se g(x)|f(x) e ∂(g(x)) = ∂(f(x)) entao g(x) e f(x) sao associados.(2) Seja f(x) ∈ K[x] polinomio com ∂(f(x)) ≥ 1. Dizer que f(x) e irredutıvel e equivalente

a dizer que se g(x)|f(x) entao ∂(g(x)) = ∂(f(x)) ou ∂(g(x)) = 0.

E preciso ter cuidado com o anel de coeficientes: se ele nao for um corpo, o resultado acimae falso. Por exemplo, pode-se provar que 2x2 + 2x + 2 e irredutıvel em Q[x], mas este mesmopolinomio e redutıvel em Z[x], pois:

2x2 + 2x+ 2 = 2(x2 + x+ 1)

e nem 2, nem (x2 + x+ 1) sao invertıveis em Z[x].

Agora vamos mostrar que K[x] e um domınio de fatoracao unica.

Proposicao 11.5. Se p(x) e irredutıvel e p(x) - g(x) entao mdc(p(x), g(x)) = 1.

Demonstracao. Seja d(x) = mdc(p(x), g(x)). Como d(x) divide p(x), que e irredutıvel, segueque ou d(x) = α ∈ K − {0} e invertıvel ou d(x) = αp(x) com α ∈ K − {0}. Se d(x) = αp(x)entao αp(x) | g(x) e segue que p(x) | g(x), contradicao. Logo, d(x) ∈ K−{0} e, como e monico,d(x) = 1. �

Teorema 11.6 (Euclides). Sejam f(x), g(x), h(x) ∈ K[x] nao-nulos. Se f(x) | g(x)h(x) emdc(f(x), g(x)) = 1 entao f(x) | h(x).

Demonstracao. A prova e igual a feita em Z. Como mdc(f(x), g(x)) = 1, existem r(x), s(x) ∈K[x] tais que 1 = f(x)r(x) + g(x)s(x). Multiplicando por h(x), obtemos

h(x) = f(x)h(x)r(x) + g(x)h(x)s(x).

Como f(x) | g(x)h(x) por hipotese e claramente f(x) | f(x)h(x)r(x), segue que f(x) | h(x). �

Corolario 11.1. Seja p(x) ∈ K[x] irredutıvel e sejam g(x), h(x) ∈ K[x] nao-nulos. Se p(x) |g(x)h(x) entao p(x) | g(x) ou p(x) | h(x). Generalizando, se p(x) | g1(x)g2(x) · · · gn(x) entaop(x) | gi(x) para algum i.

A prova segue como no caso de numeros inteiros. Se p(x) | g(x) entao esta feito. Se p(x) - g(x)entao mdc(p(x), g(x)) = 1 e, pelo Teorema de Euclides, concluımos que p(x) | h(x). Para ocaso geral basta fazer inducao em n.

Teorema 11.7. Se K e um corpo entao K[x] e um domınio de fatoracao unica.

Demonstracao. Primeiro precisamos mostrar que existe alguma fatoracao. Imitando o que sefaz em Z, faremos inducao forte no grau dos polinomios.

Se f(x) tem grau 1 entao e irredutıvel, e f(x) = f(x) e a fatoracao.Como hipotese de inducao, seja n ≥ 2 e suponha que todo polinomio g(x) ∈ K[x] com

1 ≤ ∂(g(x)) ≤ n se escreve como produto de irredutıveis, e seja f(x) de grau n + 1. Se f(x)e irredutıvel, esta feito. Se nao e, entao existe um divisor g(x) de f(x) com 1 ≤ ∂(g(x)) <∂(f(x)) = n + 1, ou seja, 1 ≤ ∂(g(x)) ≤ n. Logo, f(x) = g(x)h(x) e pela formula do grau

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do produto temos que 1 ≤ ∂(h(x)) ≤ n. Pela hipotese de inducao existem p1(x), . . . , pn(x) ep′1(x), . . . , p′m(x) irredutıveis em K[x] tais que

g(x) = p1(x)p2(x) · · · pr(x)

h(x) = p′1(x)p′2(x) · · · p′s(x)

e portanto, f(x) tem a fatoracao f(x) = p1(x)p2(x) · · · pr(x)p′1(x)p′2(x) · · · p′s(x).Para a segunda parte, suponha que

up1(x)p2(x) · · · pn(x) = vq1(x)q2(x) · · · qm(x)

com pi’s e qi’s irredutıveis em K[x] e u e v polinomios constantes nao-nulos. Suponha quen ≤ m. Podemos reescrever a equacao acima como

p1(x)p2(x) · · · pn(x) = u1q1(x)q2(x) · · · qm(x)

onde u1 = u−1v. Segue que p1(x) | u1q1(x)q2(x) · · · qm(x) e, como p1(x) e irredutıvel, p1(x) | u1ou p1(x) | qj(x) para algum j. Como p1(x) nao e invertıvel, p1(x) - u1 e portanto divide algumqj(x). Trocando os qi’s de ordem se necessario, podemos supor que p1(x) | q1(x). Como q1(x) eirredutıvel, seus unicos divisores sao polinomios constantes nao-nulos e polinomios associados aq1(x); como p1(x) nao tem inverso segue que p1(x) e q1(x) sao associados, isto e, q1(x) = v1p1(x)com v1 ∈ K−{0}. Cancelando o fator p1(x) (podemos faze-lo porque estamos em um domınio)obtemos

p2(x) · · · pn(x) = u2q2(x) · · · qm(x)

onde u2 = v1u−11 . Podemos repetir o argumento com cada pi e, a menos de uma possıvel

reordenacao dos qj’s, concluımos que pi e associado a qi para i = 1, 2, . . . , n. Agora, se n < m,ao cancelar sucessivamente os fatores pi nos chegamos a

1 = un+1qn+1(x) · · · qm(x)

o que e absurdo, pois essa equacao diz que cada qj com j > n e invertıvel (ou ainda: usando ograu do produto, concluımos que todos os qj’s com j > n tem grau zero). Logo, conclui-se quen = m e que cada pi e associado a um qj. �

Tambem podemos escolher os fatores irredutıveis de um polinomio de modo a deixar suafatoracao mais rıgida.

Teorema 11.8. Seja f(x) ∈ K[x] um polinomio de grau maior ou igual a 1. Existem polinomiosirredutıveis monicos p1(x), . . . , pk(x) (nao necessariamente distintos) e um elemento a ∈ K nao-nulo tais que

f(x) = ap1(x) · · · pk(x)

Esta fatoracao e unica a menos da ordem dos fatores pi(x).

Demonstracao. Sabemos que existem polinomios irredutıveis g1(x), g2(x), . . . , gk(x) tais quef(x) = g1(x) · · · gk(x). Se o coeficiente lıder de gi(x) e ani

, entao podemos escrever gi(x) =anipi(x) onde pi(x) = (1/ani

)gi(x) tambem e irredutıvel e e monico. Assim, se a = an1 · · · ank

entaof(x) = ap1(x) · · · pk(x).

Se f(x) = bh1(x)h2(x) · · ·hr(x) e outra fatoracao nas mesmas condicoes do enunciado, sabemosque cada fator k = r e que cada fator pi(x) e associado a um fator hσ(i)(x). Mas dois polinomiosmonicos que sao associados sao iguais, e portanto os fatores irredutıveis sao os mesmos, a menosda ordem. Finalmente, como isso implica em p1(x) · · · pk(x) = h1(x)h2(x) · · ·hk(x), da equacaoap1(x) · · · pk(x) = f(x) = bh1(x)h2(x) · · ·hk(x) concluımos tambem que a = b. �

Finalmente, podemos ainda agrupar os fatores irredutıveis monicos que sao iguais e obteruma terceira versao da fatoracao unica para polinomios.

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Corolario 11.2. Seja K um corpo e seja f(x) ∈ K[x] um polinomio de grau maior ou igual a1. Entao existem polinomios irredutıveis monicos p1(x), . . . , pn(x) ∈ K[x], nao-associados doisa dois, existem inteiros positivos k1, k2, . . . , kn e um elemento a ∈ K− {0} tais que

f(x) = apk11 (x)pk22 (x) · · · pknn (x)

e a decomposicao acima e unica a menos da ordem dos fatores.

Por exemplo, podemos considerar o polinomio f(x) = (2x+ 4)(3x2 + 3)(x+ 2) em Q[x], quepode ser reescrito como

f(x) = (2x+ 4)(3x3 + 3)(x+ 2) = (2 · 3)(x+ 2)(x3 + 1)(x+ 2) = 6(x+ 2)2(x3 + 1).

Obervamos que ainda e possıvel provar que se D e um domınio de fatoracao unica entao D[x]tambem e, mais geralmente, D[x1, x2, . . . , xn] e domınio de fatoracao unica. Os argumentos saodiferentes, pois nestes casos nao podemos nos apoiar no algoritmo da divisao.

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12. Algoritmo da Divisao e Domınios Euclidianos

Como vimos, a existencia da divisao com resto em qualquer anel K[x] tem consequenciasmuito importantes para a estrutura deste anel; entre outras coisas, valem o Teorema de Be-zout (o maximo divisor comum de dois polinomios e combinacao linear destes polinomios), aexistencia de um gerador para cada ideal, e a fatoracao unica.

Nesta secao queremos chamar a atencao, de maneira mais forte, para as semelhancas entreZ e K[x]. Por isso, vamos apresentar uma nocao geral de divisao com resto. Mas antes deapresenta-la vamos passar a um terceiro exemplo de domınio que tem uma divisao com resto,o anel dos inteiros gaussianos.

12.1. Algoritmo da Divisao para Inteiros Gaussianos. O anel dos inteiros gaussianos e odomınio Z[i] = {a+ bi; a, b ∈ Z}. Como nao existe uma ordem “razoavel” em Z[i] (compatıvelcom soma e produto), para fazer um algorimo de divisao com resto em Z[i] precisamos dealguma funcao que, como o grau dos polinomios, leve elementos de Z[i] em numeros naturais.Mas ja temos uma funcao deste tipo que possui propriedades muito boas: a norma algebricaN(a+ bi) = a2 + b2. Claramente, N(α) ∈ N se α ∈ Z[i].

Proposicao 12.1. Sejam α, β ∈ Z[i].

(1) N(αβ) = N(α)N(β)(2) Se β e diferente de zero, N(α) ≤ N(αβ).

Demonstracao. O primeiro item ja foi visto antes. Quanto a (2), veja que se β 6= 0 entaoN(β) ≥ 1, e portanto N(αβ) = N(α)N(β) ≥ N(α). �

Teorema 12.1. Sejam α, β ∈ Z[i] com β 6= 0. Existem q, r ∈ Z[i] tais que

(1) α = qβ + r;(2) N(r) < N(β).

Demonstracao. Vamos comecar dividindo α por β em C:

α

β=αβ

ββ=

αβ

N(β)

ou seja, se α = m+ ni e β = k + li, entao

α

β=mk + nl

(k2 + l2)+

(nk −ml)i(k2 + l2)

= x+ iy

com x, y ∈ Q, e portanto este e um elemento de Q(i). A ideia agora e tomar um elementoa + bi ∈ Z[i] que esteja proximo o suficiente de x + iy, de modo que a diferenca entre os doistenha uma norma muito pequena. Isso e facil de fazer coordenada a coordenada: dado qualquerracional x, existe um inteiro a tal que |a− x| ≤ 1

2, e podemos tomar a e b inteiros satisfazendo

|a− x| ≤ 12

e |b− y| ≤ 12. Assim, se u = a− x e v = b− y, podemos escrever

α

β= x+ iy = (a+ bi) + (u+ vi)

com |u| ≤ 12

e |v| ≤ 12. Veja tambem que β(u + iv) = α − β(a + bi) esta em Z[i], e podemos

entao escreverα = β(a+ bi) + β(u+ iv)

com β(a+ bi), β(u+ iv) ∈ Z[i]. Nosso candidato a resto e, naturalmente, o numero β(u+ iv).Calculando sua norma,

N(β(u+ iv)) ≤ N(β)N(u+ iv) = N(β)(u2 + v2) ≤ N(β)(14

+ 14) = 1

2N(β) < N(β)

como querıamos. �

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Note que aqui nao falamos em unicidade, e realmente, nao ha unicidade de quociente e resto.Quando tomamos “o” inteiro mais proximo de x existe uma situacao indefinida: se x = m+1/2,com m ∈ Z, entao tanto a = m quanto a = m + 1 satisfazem a condicao |x − a| ≤ 1/2. Porexemplo, aplicando o algoritmo aos numeros α = 3 + 7i e β = 2, devemos primeiro escrevero numero α/β que e igual a 3

2+ 7

2i. Os inteiros mais proximos de 3/2 sao 1 e 2, e os mais

proximos de 7/2 sao 3 e 4. Seguindo os passos acima para cada uma das quatro possibilidades,temos

3 + 7i = (1 + 3i)2 + (1 + i),

= (1 + 4i)2 + (1− i),= (2 + 3i)2 + (−1 + i),

= (2 + 4i)2 + (−1− i),onde N(±1 ± i) = 2 < 4 = N(2). Portanto, existem quatro pares de quociente e resto nadivisao de 3 + 5i por 2.

Compare com a situacao de K[x]: la, basta usar o grau para conseguir quociente e restounicos; aqui, nos nao temos uma escolha canonica para quociente e resto. Mas, mesmo semunicidade, ainda consegue-se usar este algoritmo de divisao para provar que Z[i] e um domıniode ideais principais e que tem fatoracao unica. Por isso, vale a pena considerar esta nocao maisgeral de divisao com resto, e e essa ideia que esta por tras da definicao de domınio euclidianoque veremos a seguir.

12.2. Domınios Euclidianos.

Definicao 12.1. Um domınio euclidiano e um domınio de integridade D com uma funcao∂ : D − {0} → N tal que

(i) ∂(a) ≤ ∂(ab), para todos a, b nao-nulos em D.(ii) dados a, b ∈ D com b 6= 0, existem q e r em D tais que

a = qb+ r

com r = 0 ou ∂(r) < ∂(b).

Exemplo 12.1. (1) Um exemplo nao muito interessante e que se K e um corpo entao Ke um domınio euclidiano com a funcao ∂ = 0. Basta ver que se b 6= 0 entao podemosescrever a = (ab−1)b para todo a ∈ K. E claro que a propriedade ∂(a) ≤ ∂(ab) tambeme satisfeita.

(2) Se K e um corpo entao K[x] e um domınio euclidiano com a funcao ∂ dada pelo grau dopolinomio. De fato, se f e g sao nao-nulos entao ∂(fg) = ∂(f) + ∂(g) ≥ ∂(f).

(3) Z[i] e um domınio euclidiano com a funcao ∂(α) = N(α). O item (ii) foi provado noteorema 12.1, e o item (i) foi provado durante a demonstracao deste teorema.

(4) Z e um domınio euclidiano com ∂(m) = |m|.

12.3. Todo domınio euclidiano e um domınio de ideais principais. Daqui em diante,“domınio euclidiano” significa domınio euclidiano que nao e corpo. Vamos excluir este casoporque todos os resultados principais abaixo valem trivialmente para corpos, e alguns nao saoverdadeiros para corpos porque nao fazem sentido para corpos (como uma proposicao sobreexistencia de irredutıveis).

Definicao 12.2. Um domınio D e um domınio de ideais principais (DIP) se todo ideal de De principal.

Vimos que isso e verdade para o anel dos inteiros. Veremos agora que, com um argumentopraticamente igual, todo domınio euclidiano (DE) e um domınio de ideais principais.

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Proposicao 12.2. Seja (D, ∂) um domınio euclidiano e sejam a e b elementos nao-nulos deD. Entao ∂(b) = ∂(ab) se e somente se a e invertıvel.

Demonstracao. Suponha que a tem inverso a−1. Pela definicao de DE,

∂(b) ≤ ∂(ab) ≤ ∂(a−1ab) ≤ ∂(b).

Suponha agora que ∂(ab) = ∂(a); como vamos encontrar o inverso de a? Ja que ab 6= 0,podemos dividir b por ab:

b = q(ab) + r,

onde r = 0 ou ∂(r) < ∂(ab) = ∂(b). Se r = 0 entao a−1 existe e e igual a q, pois temos b = qabe, como b 6= 0 e D e um domınio, concluımos que 1 = qa. Entao o problema estara resolvido semostrarmos que r = 0.

Suponha que r 6= 0; neste caso, sempre e uma boa ideia isolar o elemento que nos interessa.Temos que

r = b(1− qa)

e 1− qa 6= 0, pois senao terıamos r = 0, contradizendo nossa hipotese. Sendo assim, temos que∂(r) = ∂(b(1− aq)) ≥ ∂(b), absurdo, pois ∂(b) > ∂(r).

Segue entao que r = 0 e que a−1 = q. �

Corolario 12.1. Seja (D, ∂) um domınio euclidiano. Entao

(1) ∂(a) ≥ ∂(1) para todo a ∈ A− {0}.(2) a ∈ D e invertıvel se e somente se ∂(a) = ∂(1).

De fato, para o primeiro item, da definicao de DE temos

∂(a) = ∂(a · 1) ≥ ∂(1).

O segundo item e consequencia direta da proposicao 12.2.

Teorema 12.2. Se D e um domınio euclidiano entao todo ideal de D e principal.

Demonstracao. Seja I um ideal nao-nulo. Tome d ∈ I tal que ∂(d) ≤ ∂(a) para todo a ∈ I.Como I e um ideal, todo multiplo de d esta em I; portanto, 〈d〉 ⊂ I. Vamos verificar agoraque vale a outra inclusao.

Dado a ∈ I, existem q e r em D tais que a = qd + r, com r = 0 ou ∂(r) < ∂(d). Se r 6= 0,podemos escrever r = a − qd; como qd e a estao em I e a diferenca de dois elementos de umideal tambem e elemento do ideal, temos que r esta em I. Mas isso e uma contradicao, pois ser 6= 0 entao ∂(r) < ∂(d), mas ∂(d) e o menor valor que ∂ toma em I. Portanto, r = 0, a = qd,e segue que 〈d〉 ⊃ I. Da inclusao 〈d〉 ⊂ I que ja tınhamos segue que 〈d〉 = I. �

Exemplo 12.2. Agora podemos mostrar que a hipotese de que K seja corpo para mostrar queK[x] e domınio euclidiano nao pode ser enfraquecida para “domınio”, pois o anel Z[x] nao eum domınio euclidiano. Para isso, considere o ideal

I = 〈2, x〉 = {2f(x) + xg(x); f(x), g(x) ∈ Z[x]}.

Se Z[x] e um domınio euclidiano entao este ideal e principal, com gerador d(x). Como d(x)divide 2, as possibilidades para d(x) sao ±1,±2. Um elemento generico de I e uma combinacao2f(x) + xg(x); assim, se seu coeficiente independente e nao-nulo, e multiplo de 2. Portanto,d(x) nao pode ser 1 ou −1 pois 1 /∈ I. A unica possibilidade agora e d(x) = ±2, mas x ∈ I e2 nao divide x em Z[x]. Portanto, nao existe tal d(x); I nao e um ideal principal, e Z[x] nao eum domınio euclidiano.

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12.4. Maximo Divisor Comum em um Domınio Euclidiano. Tomando a generalizacaonatural da definicao de mdc dos numeros inteiros, chegamos a seguinte definicao de mdc emaneis:

Definicao 12.3. Seja D um domınio e sejam a1, a2, . . . , an elementos nao-nulos de A. Ummaximo divisor comum destes numeros e um elemento d ∈ A tal que

(i) d|aj para cada j(ii) se c|aj para cada j entao c|d.

Observe que nao falamos “o mdc” e sim “um mdc”. No caso de numeros inteiros, escolhemoso mdc positivo, e podemos mostrar que e unico; mas note que se d = mdc(a1, . . . , an) entao −dsatisfaz as mesmas condicoes (i) e (ii).

O mdc tambem existe para elementos de K[x] ( K um corpo), e a escolha natural e tomard(x) monico, isto e, com coeficiente lıder igual a 1. Novamente, observe que se d(x) e o mdcentao αd(x) satisfaz as condicoes (i) e (ii) da definicao de mdc.

No caso de um domınio D qualquer nao sabemos se existe mdc e, quando existe, pode naohaver uma maneira natural de escolher um mdc dentre os varios candidatos. Mas ha um padraona variacao entre os mdc’s:

Proposicao 12.3. Sejam D um domınio, a1, a2, . . . , an elementos nao-nulos de A, e seja d ummdc destes elementos. Entao d′ e outro mdc destes elementos se e somente se existe u ∈ Dinvertıvel tal que d′ = ud.

Se ambos sao mdc’s, basta observar que o item (ii) da definicao 12.3 implica em d|d′ e d′|d;escrevendo d′ = ud e d = vd′, temos d′ = ud = uvd′. Como d′ 6= 0 e D e domınio, 1 = uv esegue que v = u−1. A recıproca fica como exercıcio.

Teorema 12.3. Sejam D um domınio de ideais principais, sejam a1, a2, . . . , an ∈ D − {0} eseja d ∈ D − {0}. Sao equivalentes:

(1) d e um mdc de a1, a2, . . . , an;(2) d e um gerador do ideal

J = {a1x1 + a2x2 + · · ·+ anxn;xj ∈ Z, j = 1, . . . , n}Em particular, d e uma combinacao linear dos elementos a1, a2, . . . , an.

Demonstracao. A demonstracao e essencialmente a mesma feita para o resultado analogo em Z;na verdade, e mais simples, pois nao precisamos mostrar que o mdc e o maior divisor comum.

Vamos supor primeiro que J = 〈d〉. Cada ai pertence a J = 〈d〉, e portanto d divide cada ai.Agora, seja c um divisor comum dos ai’s . Como d ∈ J , existem x1, x2, . . . , xn ∈ D tais que

d = a1x1 + a2x2 + · · ·+ anxn

e como c divide cada ai, temos que c divide d, mostrando assim que se d e um gerador de Jentao d e um mdc dos ai’s.

Reciprocamente, suponha que d e um mdc dos ai’s, e seja g um gerador de J . Como g dividecada ai, g tambem divide d. Mas como g ∈ J , existem y1, y2, . . . , yn ∈ D tais que

g = a1y1 + a2y2 + · · ·+ anyn

e como d divide cada ai segue que d divide g. Assim, d|g e g|d, e conclui-se que d tambem egerador de J . �

Observacao 12.1. Se D e um domınio euclidiano e d e um mdc de a1, . . . , an ∈ D, entao∂(d) ≥ ∂(d′) para todo d′ que e divisor comum de a1, . . . , an. Isso segue direto da definicao demdc: como d′ e divisor comum temos que d′ divide d, e de d = qd′ com d, q, d′ 6= 0 segue que∂(d) = ∂(qd′) ≥ ∂(d′).

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Finalmente, temos tambem um algoritmo de Euclides para calcular mdc’s em domınios eu-clidianos. Primeiro temos o seguinte resultado:

Lema 12.1. Seja D um domınio euclidiano. Se a = qb + r entao os mdc’s de a, b sao iguaisaos mdc’s de b, r.

Demonstracao. Sejam d um mdc de a, b e d′ um mdc de b, r. Entao d divide b e r = a − qb e,pela definicao de mdc, d|d′. Por argumento analogo, d′|d, e portanto podemos escrever d′ = udpara algum u ∈ D invertıvel. Pela proposicao 12.3 d′ e mdc de a e b, e d e mdc de b e r. �

Teorema 12.4 (Algoritmo de Euclides). Dados a e b em um domınio euclidiano D, defina asequencia r−1, r0, r1, r2 . . . definida por aplicacoes sucessivas do algoritmo da divisao: r−1 = 0,r0 = b, e r1, r2, . . . sao dados por

r−1 = q1r0 + r1, com ∂(r1) ≤ ∂(b)

r0 = q2r1 + r2, com ∂(r2) ≤ ∂(r1)

r1 = q3r2 + r3, com ∂(r2) ≤ ∂(r1)...

e a sequencia continua enquanto os restos sucessivos forem nao-nulos. Entao a sequencia dedivisoes termina em

rn = qn+2rn+1

para algum n ≥ −1 e rn+1 e um mdc de a e b.

Demonstracao. Pela definicao da sequencia, temos ∂(r1) > ∂(r2) > . . ., e uma sequencia de-crescente de naturais tem que ser finita. A sequencia de equacoes deve terminar entao em

...

rn−1 = qn+1rn + rn+1

rn = qn+2rn+1

pois se rn+2 6= 0 poderıamos continuar o processo. rn+1 e um mdc pois os mdc’s de rk, rk+1 saoos mdc’s de rk+1, rk+2 para cada k, e rn+1 e um mdc de rn e rn+1. �

Como no caso de numeros inteiros, se d e um mdc de a e b pode-se usar este processo paraobter concretamente elementos x, y ∈ D tais que ax+ by = d.

12.5. Fatoracao unica em Domınios Euclidianos. Agora vamos mostrar que todo domınioeuclidiano tem fatoracao unica.

Primeiro, vejamos que ha uma propriedade basica dos primos que se mantem nesse contextomais geral.

Definicao 12.4. Seja D um domınio onde existe mdc de quaisquer dois elementos. Diremosque a e b sao coprimos se seus unicos divisores comuns sao os invertıveis de D. Neste caso,escreveremos mdc(a, b) = 1.

Proposicao 12.4. Seja D um domınio onde existe mdc de quaisquer dois elementos. Se p eirredutıvel e p - a entao mdc(a, p) = 1.

Demonstracao. Seja d um mdc de a e p. Como d divide p, que e irredutıvel, ou d e invertıvelou d = up com u invertıvel. Se d = up entao up|a e segue que p|a, contradicao. Logo, todomdc de a e p e invertıvel e segue que a e p sao coprimos. �

Definicao 12.5. Seja D um domınio. Diremos que D e um domınio de fatoracao unica (DFU)se

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(1) para cada a ∈ D nao-nulo e nao-invertıvel existem elementos irredutıveis p1, p2, . . . , pntais que

a = p1p2 · · · pn(2) Se p1, p2, . . . , pn e q1, q2, . . . , qm sao irredutıveis, u e v sao invertıveis e

up1p2 · · · pn = vq1q2 · · · qmentao n = m e existe uma permutacao de fatores tal que pi e qσ(i) sao associados, paratodo i.

Teorema 12.5 (Euclides). Seja D um domınio euclidiano e sejam a, b, c ∈ D com a, b nao-nulos. Se a|bc e mdc(a, b) = 1 entao a|c.

Demonstracao. A prova e igual a feita em Z. Como mdc(a, b) = 1, existem r, s ∈ D tais que1 = ar + bs. Multiplicando por c, obtemos

c = acr + bcs.

Como a|bc por hipotese e claramente a|acr, segue que a|c. �

Corolario 12.2. Seja D domınio euclidiano e sejam p ∈ D um elemento irredutıvel e a, b ∈ Dnao-nulos. Se p|ab entao p|a ou p|b. Generalizando, se p|a1a2 · · · an entao p|ai para algum i.

A prova e imediata, como no caso de numeros inteiros. Se p|a entao esta feito. Se p - a,vimos que mdc(a, p) = 1 e, pelo Teorema de Euclides, concluımos que p|b. Para o caso geralbasta fazer inducao em n.

Teorema 12.6. Todo domınio euclidiano e um domınio de fatoracao unica.

Demonstracao. Primeiro precisamos mostrar que existe alguma fatoracao. Imitando o que sefaz em Z, faremos inducao forte no “grau” ∂ dos elementos.

Seja δ o mınimo de ∂ quando restrito a elementos nao-invertıveis de D; vimos que todoelemento a com ∂(a) = δ e irredutıvel e, neste caso, a = a e uma fatoracao.

Como hipotese de inducao, suponha que todo elemento a ∈ D tal que δ ≤ ∂(a) < m temfatoracao. Se nao existe nenhum elemento a tal que ∂(a) = m, esta feito. Se ∂(a) = me a e irredutıvel entao a tem a fatoracao a = a. Se ∂(a) = m e a nao e irredutıvel entaopodemos escrever a = bc onde nem b nem c sao invertıveis. Logo, δ ≤ ∂(b) < ∂(bc) = m,δ ≤ ∂(c) < ∂(bc) = m e, por hipotese de inducao, existem p1, . . . , pn e p′1, . . . , p

′m irredutıveis

tais que

b = p1p2 · · · prc = p′1p

′2 · · · p′s

e portanto, a tem a fatoracao a = p1p2 · · · prp′1p′2 · · · p′s.Para a segunda parte, suponha que

up1p2 · · · pn = vq1q2 · · · qmcom pi’s e qi’s irredutıveis e u e v invertıveis. Suponha que n ≤ m. Podemos reescrever aequacao acima como

p1p2 · · · pn = u1q1q2 · · · qmonde u1 = u−1v. Segue que p1|u1q1q2 · · · qm e, como p1 e irredutıvel, p1|u1 ou p1|qj para algumj. Como p1 nao e invertıvel, p1 - u1, e portanto divide algum qj. Trocando os qi’s de ordem senecessario, vamos supor que p1|q1. Como q1 e irredutıvel, seus unicos divisores sao elementosinvertıveis e elementos associados a q1; como p1 nao tem inverso, p1 e q1 sao associados, q1 =v1p1. Cancelando o fator p1 (podemos faze-lo porque estamos em um domınio) obtemos

p2 · · · pn = u2q2 · · · qm

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onde u2 = v1u1. Podemos repetir o argumento com cada pi e, a menos de uma possıvelreordenacao dos qj’s, concluımos que pi e associado a qi para i = 1, 2, . . . , n. Agora, se n < m,ao cancelar sucessivamente os fatores pi nos chegamos a

1 = un+1qn+1 · · · qmo que e absurdo, pois essa equacao diz que cada qj com j > n e invertıvel. Logo, tambemconcluımos que n = m. �

Maximo Divisor Comum em um Domınio de Fatoracao Unica. Suponha que D e umDFU. Mesmo que D nao seja nem um DIP, ainda assim existe pelo menos um mdc de qualquerconjunto finito de elementos de D. Vamos mostrar como isso funciona para 2 elementos.

Sejam a e b elementos nao-nulos e nao-invertıveis de D. Sejam p1, p2, . . . , pn irredutıveis doisa dois nao-associados tais que um irredutıvel e fator de a ou b se e somente se e associado a umdos pj’s. Podemos escrever

a = u1pα11 p

α22 · · · pαn

n

b = u2pβ11 p

β22 · · · pβnn

onde cada αi e cada βj e um inteiro nao-negativo (pode ser zero), u1 e u2 sao invertıveis.Seja mi = min{αi, βi} para i = 1, 2, . . . , n. Afirmamos que c divide a e b se e somente se

c = wpγ11 pγ22 · · · pγnn com w invertıvel e γi ≤ mi para cada i.

Deixaremos como exercıcio provar que se c satisfaz estas condicoes entao c divide a e b, evamos provar a outra afirmacao.

Se c divide a podemos escrever a = cd para algum d em D. O produto das fatoracoes dec e de d da uma fatoracao de a; pela unicidade, cada fator irredutıvel que aparece em c estaassociado a um fator de a, e o mesmo vale para d. Assim, podemos escrever

c = w1pγ11 p

γ22 · · · pγnn

d = w2pδ11 p

δ22 · · · pδnn

Como a = cd, novamente pela unicidade da fatoracao segue que os expoentes de cada pi temque ser iguais, e portanto αi = γi + δi ≥ γi. Fazendo a mesma conta com b, obtemos βi ≥ γi.Portanto, γi ≤ mi para cada i. Deste modo fica claro que

pm11 pm2

2 · · · pmnn

e um mdc de a e b em D.

Sobre Domınios de Fatoracao Unica. Mostramos que todo domınio euclidiano tem fa-toracao unica. E possıvel provar tambem que

Teorema 12.7. Se D e um domınio de ideais principais, entao D e um domınio de fatoracaounica.

A demonstracao usa ideias novas, pois nao temos mais a funcao ∂ para imitar a inducao quee feita em Z. Vamos mostrar aqui a parte da existencia da fatoracao.

A ideia vem do seguinte: digamos que a fatoracao de um inteiro a em produto de primos ea = p1p2p3. Digamos que, comecando com a, conseguimos descobrir que p1 divide a. Entaotomamos b = a/p1 e procuramos um novo divisor primo de b; encontramos p2, e repetimos oprocesso com c = b/p2. Mas c = p3, que e primo, e entao encontramos uma fatoracao de a.

Em termos de ideais, essa sequencia de operacoes corresponde a sequencia de ideais 〈a〉 ⊂〈a/p1〉 ⊂ 〈a/(p1p2)〉. Como 〈x〉 ⊂ 〈y〉 equivale a y|x e p3 = a/(p1p2) e primo, o unico idealdiferente de 〈p3〉 que o contem e Z. E e isso que diz que a fatoracao terminou.

Adaptando estas ideias a domınios de ideais principais em geral, vamos considerar sequenciascrescentes de ideais. Pode-se verificar que dada uma sequencia de ideais I1 ⊂ I2 ⊂ I3 ⊂ . . ., o

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conjunto I = ∪j∈NIj tambem e um ideal. Observe que se D e um DIP entao para cada j existeum aj ∈ Ij tal que Ij = 〈aj〉, e que 〈ai〉 ⊂ 〈ai+1〉 para cada i ≥ 1 e o mesmo que ai+1|ai paracada i ≥ 1.

Diremos que uma sequencia de ideais (Ij)j∈N em um domınio D e crescente se Ij ⊆ Ij+1 paratodo j.

Lema 12.2. Seja D um domınio de ideais principais. Entao toda sequencia crescente de ideais(Ij)j∈N de D e estacionaria, isto e, existe um ındice n0 tal que In0 = In para todo n ≥ n0.

Demonstracao. Seja (Ij) uma sequencia crescente de ideais. Como I = ∪j∈NIj e um ideal deD, I e um ideal principal, e existe d ∈ I tal que I = 〈d〉. Pela definicao de uniao de conjuntos,existe algum ındice n0 tal que d ∈ In0 .

Se d ∈ In0 entao e claro que 〈d〉 ⊂ In0 ; por outro lado, In0 ⊂ I = 〈d〉, e segue que I = In0 .Para qualquer ındice n tal que n0 ≤ n temos

In0 ⊂ In ⊂ I = In0

e segue que In = In0 para todo n ≥ n0. �

Proposicao 12.5. Todo elemento nao-nulo e nao-invertıvel de um domınio de ideais principaistem uma fatoracao.

Demonstracao. Suponha que existe um elemento a ∈ D nao-nulo e nao-invertıvel que nao temfatoracao em irredutıveis. Vamos mostrar que a tem um divisor nao-trivial que tambem naotem fatoracao em irredutıveis.

Como a nao tem fatoracao, em particular, a nao pode ser irredutıvel, e portanto se escrevecomo a = bc onde b e c nao sao divisores triviais. Se ambos tem fatoracao em irredutıveis,entao a tambem tem; portanto, pelo menos um deles nao tem tal fatoracao.

Assim, podemos definir uma sequencia de elementos a1, a2, a3, . . . do seguinte modo: a1 = ae vamos supor que a2, . . . , an−1 foram escolhidos de modo que (i) aj+1 e um divisor nao-trivialde aj para j = 1, 2, 3, . . . , n − 2, e (ii) aj nao tem fatoracao em irredutıveis para todo j =1, 2, . . . , n − 1. Pelo que vimos acima, se an−1 nao tem fatoracao em irredutıveis, podemosencontrar um divisor nao-trivial an de an−1 que tambem nao tem fatoracao em irredutıveis.

A sequencia (aj) e infinita e de aj+1|aj tiramos que 〈aj〉 ⊂ 〈aj+1〉 para todo j. Esta sequencianao tem ideais repetidos pois 〈x〉 = 〈y〉 se e somente se x e y sao associados, e aj+1 e sempredivisor nao-trivial (e portanto nao-associado) de aj. Mas isso e um absurdo, pois toda cadeiade ideais em D e estacionaria. Portanto, todo elemento nao-nulo e nao-invertıvel de D temuma fatoracao em irredutıveis. �

Alguns domınios que nao sao DIP’s satisfazem a condicao de que toda cadeia crescente deideais e estacionaria, como o anel de polinomios K[x1, x2, . . . , xn] para n ≥ 2. Esta propriedadetem varias consequencias importantes em algebra comutativa e geometria algebrica. EmmyNoether foi a primeira a explorar sistematicamente esta propriedade, e os aneis que a satisfazemsao chamados de Noetherianos em sua homenagem.

Um resultado importante de Gauss fala sobre a “propagacao” da fatoracao unica para aneisde polinomios.

Teorema 12.8 (Gauss). Se D e um domınio de fatoracao unica, entao D[x] tambem e umdomınio de fatoracao unica.

Por isso, Z[x] e um domınio de fatoracao unica, mesmo nao sendo um domınio de ideaisprincipais. Por inducao, se D e domınio de fatoracao unica entao D[x1, . . . , xn] tambem temfatoracao unica.

E importante observar tambem o seguinte resultado:

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Teorema 12.9. Se D e um DFU entao quaisquer elementos nao-nulos a1, . . . , an de D temmdc.

A demonstracao pode ser feita usando a mesma tecnica para obter o mdc de dois numerosnaturais em termos de suas fatoracoes. Note, no entanto, que um mdc de a1, . . . , an nao precisaser combinacao linear dos ai’s, pois um DFU pode ter ideais que nao sao principais.

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13. Raızes

Nesta secao, K sempre denotara um corpo. Comecamos recordando um resultado que japrovamos (ver a prova no Teorema 11.2).

Teorema 13.1. Sejam α ∈ K e f(x) ∈ K[x]. Entao α e raiz de f(x) se e somente se (x− α)divide f(x).

Um resultado que todos conhecem e que um polinomio real ou complexo de grau n tem nomaximo n raızes. Se com n raızes queremos dizer n raızes distintas, isto segue do teoremaanterior.

Teorema 13.2. Se f(x) ∈ K[x] tem grau n entao f(x) tem no maximo n raızes distintas.

A ideia e fazer por inducao em n = ∂(f(x)). Para n = 1 e obvio. Se vale para n, seja f umpolinomio de grau n+ 1. Se f tem uma raiz α ∈ K entao f(x) = (x−α)q(x), onde ∂(q(x)) = npois

n+ 1 = ∂(f(x)) = ∂(q(x)) + ∂(x− α) = ∂(q(x)) + 1.

Agora toda raiz de f(x) distinta de α e raiz de q(x) (por que?), e segue por hipotese de inducaoque q(x) tem no maximo n raızes distintas e, portanto, que f(x) tem no maximo n + 1 raızesdistintas.

Este resultado ja explica porque podemos mesmo identificar polinomios reais e funcoes polino-miais reais. Ja vimos que a passagem de polinomio para funcao polinomial e um homomorfismo;neste caso, e um homomorfismo injetor, ou ainda, um isomorfismo sobre o subanel das funcoespolinomiais. Isso segue diretamente de um simples (e util) resultado:

Lema 13.1. Sejam f(x), g(x) ∈ K[x] polinomios nao-nulos e sejam a1, a2, . . . , am elementosdistintos de K. Se f(ai) = g(ai) para cada i = 1, 2, . . . ,m e m e maior do que os graus de f(x)e de g(x), entao f(x) = g(x).

Demonstracao. Dizer que f(ai) = g(ai) e o mesmo que dizer que ai e raiz do polinomio f − g.Se f − g 6= 0, entao ∂(f − g) ≤ max{∂(f), ∂(g)} < m e o numero de raızes distintas de f − g emaior do que seu grau, o que e um absurdo. Portanto, f = g. �

Corolario 13.1. Seja K um corpo infinito. A aplicacao ε : K[x] → F(K,K) que leva f(x) ∈K[x] na funcao polinomial associada e um homomorfismo injetor. Em particular, dois po-linomios sao iguais como funcoes se e somente se sao iguais (como polinomios).

Lembre de novo que ha varias hipoteses aqui. Se o corpo nao e infinito, isso e falso, comovimos no exemplo sobre funcoes polinomiais em Z2 (ver secao 6). E se voce estiver trabalhandocom um anel infinito, o Lema tambem pode ser falso como o exemplo do anel R × R mostra:neste anel a equacao x2 − x = 0 tem quatro solucoes.

Ate agora tratamos apenas do caso de raızes distintas; mas o que podemos falar, por exemplo,dos polinomios f(x) = x e g(x) = x2 com relacao a raızes? Eles tem as mesmas raızes mas asituacao e diferente, pois no segundo a raiz aparece “duas vezes”. Isso pode ser formalizado emtermos da multiplicidade da raiz.

Definicao 13.1. Seja f(x) ∈ K[x] e seja α ∈ K uma raiz de f(x). Diremos que α e raiz demultiplicidade m se (x− α)m|f(x) e (x− α)m+1 - f(x)

Proposicao 13.1. Seja f(x) ∈ K[x] um polinomio nao-nulo e seja α ∈ K. Sao equivalentes:

(1) α e raiz de multiplicidade m de f(x).(2) Existe g(x) ∈ K[x] tal que f(x) = g(x)(x− α)m e α nao e raiz de g(x).

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Demonstracao. Suponha que α e raiz de multiplicidade m de f(x). Pela definicao de multipli-cidade, existe g(x) ∈ K[x] tal que f(x) = (x − α)mg(x). Se g(α) = 0 entao podemos escreverg(x) = (x − α)h(x) (pelo Teorema 11.2) e portanto f(x) = (x − α)m+1h(x), contradizendo ofato da multiplicidade de α ser m.

Para a recıproca, suponha que f(x) = g(x)(x−α)m e g(α) 6= 0. Se (x−α)m+1|f(x), podemosescrever q(x)(x−α)m+1 = f(x) para algum q(x) ∈ K[x], e temos q(x)(x−α)m+1 = g(x)(x−α)m;cancelando (x−α)m, obtemos q(x)(x−α) = g(x), o que implica em g(α) = 0, contradicao. �

Agora podemos mostrar um resultado mais especıfico relacionando as raızes e o grau de umpolinomio.

Teorema 13.3. Seja f(x) ∈ K[x] um polinomio nao-nulo, e sejam α1, α2, . . . , αs as raızesdistintas de f(x), com multiplicidades m1,m2, . . . ,ms respectivamente. Entao existe g(x) ∈K[x] tal que

(16) f(x) = (x− α1)m1(x− α2)

m2 · · · (x− αs)msg(x)

e g(x) nao tem raızes em K. Em particular, a soma das multiplicidades das raızes e menor ouigual ao grau de f(x).

Demonstracao. Intuitivamente, a ideia e escrever

f(x) = (x− α1)m1h1(x),

usar o fato que α2 tem que ser raiz de h1(x) para escrever h1(x) = (x− α2)m2h2(x) e obter

f(x) = (x− α1)m1(x− α2)

m2h2(x),

e prosseguir assim ate esgotar as raızes. Podemos organizar este raciocınio fazendo a prova porinducao forte em n = ∂(f(x)).

Para n = 1 o resultado e imediato. Nossa hipotese de inducao vai ser a seguinte: se h(x) ∈K[x] e um polinomio com 1 ≤ ∂(h(x)) ≤ n cujas raızes distintas em K sao β1, β2, . . . , βs commultiplicidades m1,m2, . . . ,ms respectivamente, entao existe g(x) ∈ K[x] tal que

h(x) = (x− β1)m1(x− β2)m2 · · · (x− βs)msg(x)

e g(x) nao tem raızes em K.Seja f(x) um polinomio de grau n + 1 . Se f(x) nao tem raızes, entao esta feito. Caso

contrario, sejam α1, α2, . . . , αt as raızes de f(x) com multiplicidades m1,m2, . . . ,mt respectiva-mente. Podemos escrever f(x) = (x− α1)

m1h(x) para algum h(x) ∈ K[x] tal que h(α1) 6= 0.Se t = 1, terminou. Se t > 1 entao cada raiz αi com t ≥ i > 1 e raiz de h(x) (por que?);

alem disso, se t > 1 entao necessariamente m1 ≤ n e, como ∂(h(x)) = (n+ 1)−m1, temos que1 ≤ ∂(h(x)) ≤ n e podemos aplicar a hipotese de inducao ao polinomio h(x). Como suas raızessao α2, . . . , αs, segue da hipotese de inducao que

h(x) = (x− α2)m2(x− α3)

m3 · · · (x− αs)msg(x),

onde g(x) nao tem raızes em K. Substituindo esta expressao de h(x) na igualdade f(x) =(x− α1)

m1h(x) provamos que a propriedade vale para f(x).

Finalmente, sai de graca da equacao (16) que se f(x) tem grau n entao

n = ∂(f(x)) =s∑i=1

∂((x− αi)mi) + ∂(h(x)) ≥ (m1 + · · ·+ms).

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E possıvel provar este ultimo resultado para polinomios com coeficientes em um domınio deintegridade D. O corpo de fracoes K(D) e utilizado de forma essencial nesta passagem (ver

Arnaldo Garcia, Yves Lecquain, “Elementos de Algebra”.)

Existe um “atalho” para determinar a multiplicidade de uma raiz.

Definicao 13.2. Seja A um anel e seja f(x) =∑n

k=0 akxk ∈ A[x]. A derivada de f(x) e o

polinomio

(17) f ′(x) = a1 + 2a2x+ · · ·nanxn−1 =n∑k=1

kakxk−1.

E claro que essa definicao vem da derivada do calculo, e voce nao deve achar que o proximoresultado e muito surpreendente.

Proposicao 13.2. Seja A um anel, sejam f, g ∈ A[x]. Entao

(1) (f + g)′ = f ′ + g′.(2) (af)′ = af ′ se a ∈ A.(3) (fg)′ = f ′g + fg′.

Apesar de serem esperadas, estas propriedades tem que ser provadas, pois essas regras foramprovadas no calculo usando limites, e nossa definicao de derivada nao e feita com base emlimites; portanto, as igualdades acima devem ser provadas para polinomios diretamente usandoa expressao (17).

As derivadas de ordem superior sao definidas como no calculo: f (1) = f ′ e f (n+1) = (f (n))′.A partir destas obtemos um teste para a multiplicidade de uma raiz.

Proposicao 13.3. Seja K um corpo, f(x) ∈ K[x] polinomio nao-constante e seja α um ele-mento de K. Entao

(1) α e raiz de f(x) com multiplicidade 1 se e somente se f(α) = 0 e f ′(α) 6= 0.(2) Se α e raiz de f(x) com multiplicidade m ≥ 2 entao f(α) = f ′(α) = · · · = f (m−1)(α) = 0.(3) Suponha que K e um corpo onde n 6= 0 para todo n > 0. Entao α e raiz de f(x) com

multiplicidade m ≥ 2 se e somente se f(α) = f ′(α) = · · · = f (m−1)(α) = 0 e f (m)(α) 6= 0.

A hipotese extra no terceiro item e porque em corpos como Zp podem ocorrer mais anula-mentos na derivada do que se espera. Por exemplo, em Z3[x], a derivada de f(x) = x3+1 e zero!Deste modo, todas as derivadas f (n)(x) sao nulas e e impossıvel determinar a multiplicidade daraiz deste modo. (alias, voce pode verificar que neste caso f(x) = x3 + 1 = (x+ 1)3 = (x−2)3).

Uma variacao deste ultimo resultado diz respeito a fatoracao de um polinomio. Diremos queh(x) e fator repetido (ou multiplo) de f(x) se h(x)m|f(x) com m ≥ 2.

Proposicao 13.4. Seja f(x) ∈ K[x] polinomio de grau maior ou igual a 1, e suponha que n 6= 0em K para todo n > 0. Entao f(x) nao tem fator repetido se e somente se mdc(f(x), f ′(x)) = 1.

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14. Congruencias e Quocientes

Neste capıtulo voltamos a trabalhar com um anel A qualquer (A nao precisa nem ser domınio).

Imitando as congruencias modulo m em Z, uma congruencia em um anel A e uma relacaode equivalencia “ ≡′′ em A tal que, se a ≡ a′ e b ≡ b′, entao:

(i) a+ b ≡ a′ + b′

(ii) ab ≡ a′b′

Existe uma relacao direta entre os ideais de A e as congruencias em A.

Proposicao 14.1. Seja ≡ uma congruencia em A, e seja I a classe de equivalencia do zero,isto e,

I = {a ∈ A; a ≡ 0}Entao:

(1) I e um ideal de A.(2) a ≡ b ⇔ a− b ∈I.

Demonstracao. (1) Como a congruencia e reflexiva, 0 ≡ 0, e portanto 0 ∈ I.Se a e b ∈ I entao a ≡ 0 e b ≡ 0. Logo,

a+ b ≡ 0 + 0 ≡ 0,

e a + b ∈ I. Finalmente, se a ∈ I e α ∈ A, entao a ≡ 0 e portanto aα ≡ 0 · α ≡ 0, o queimplica em aα ∈ I. (Note que se a ≡ b entao ac ≡ bc, ∀c ∈ A, pois c ≡ c, e podemos usara propriedade (ii) de congruencias).

(2) Pela propriedade (i) de congruencias, se a ≡ b podemos somar −b dos dois lados e obtera− b ≡ b− b ≡ 0, concluindo que a− b ∈ I.

Reciprocamente, se a − b ∈ I entao a − b ≡ 0, e somando b obtemos nesta congruenciaobtemos a ≡ b.

Definicao 14.1. Seja A um anel e seja I um ideal I de A. A congruencia modulo I e definidapor

a ≡ b mod I se e somente se a− b ∈ I.Vimos que toda congruencia e deste tipo, mas vale a recıproca? Isto e, se I e um ideal, a

relacao de congruencia modulo I e mesmo uma congruencia?Isto e verdade para todo I, como veremos agora.

Proposicao 14.2. Sejam A um anel e I um ideal de A. A relacao de congruencia modulo I euma congruencia em A.

Demonstracao. A verificacao de que e relacao de equivalencia fica como exercıcio. Quanto aspropriedades (i) e (ii) de compatibilidade com a soma e produto, considere a, a′, b, b′ ∈ A taisque:

a ≡ a′ mod I

b ≡ b′ mod I.

Entao a+ b ≡ a′ + b′mod I, pois

a+ b− (a′ + b′) = (a− a′) + (b− b′),(a− a′) e (b− b′) estao em I, e I e fechado para a soma.Em relacao ao produto, das hipoteses tiramos que existem x, y ∈ I tais que:

a = a′ + x

b = b′ + y.

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Logo

ab = (a′ + x)(b′ + y)

= a′b′ + xb′ + ay + xy

Como I e ideal e x, y ∈ I, temos que xb′, ax e xy estao em I, e (xb′ + ay + xy) tambem eelemento de I. Logo

ab− a′b′ = xb′ + ay + xy ∈ Ie temos que ab ≡ a′b′mod I. �

Recorde que a classe de equivalencia de a ∈ A, com relacao a congruencia modulo I, e

[a] = {x ∈ A; a ≡ x mod I}Nossas contas permitem dizer quem sao os elementos desta classe.

Lema 14.1. Sejam A um anel, I ideal de A e a um elemento de A. A classe de a modulo I eo conjunto

a+ I = {a+ y; y ∈ I}

Demonstracao. a+ I ⊂ [a], porque se y ∈ I entao

a− (a+ y) = −y ∈ Ie portanto a ≡ (a+ y) mod I.Por outro lado, se x ∈ [a] entao a ≡ xmod I, e a− x ∈ I. Logo

x = a+ (−a+ x)

como −a+ x = −(a− x) ∈ I, conclui-se que x ∈ a+ I. �

Daqui em diante, usaremos as notacoes [a], a ou a + I para a classe de a modulo I, deacordo com o que for mais conveniente. O conjunto das classes de equivalencia modulo I seradenotado por A/I.

As propriedades da congruencia permitem estender aos aneis a construcao que se faz em Z,ao considerar o anel dos inteiros modulo m. Definimos soma e produto em A/I por:

(a+ I) + (b+ I) = (a+ b) + I

(a+ I)(b+ I) = ab+ I.

O problema e: isso faz sentido? Quer dizer, se tivermos (a+ I) = (a′+ I) com a 6= a′, podemosainda esperar que

(a+ b) + I = (a′ + b) + I?

Isto funciona por causa das propriedades de congruencia.Suponha que

a+ I = a′ + I, b+ I = b′ + I

Isto equivale aa ≡ a′ mod I, b ≡ b′ mod I.

(Verifique). Assim, dizer que,(a+ b) + I = (a′ + b′) + I

e o mesmo que dizer quea+ b ≡ a′ + b′ mod I,

que e valido pela definicao de congruencia. O mesmo vale para o produto, e temos 2 operacoesem A/I.

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Teorema 14.1. Se I e ideal proprio de A entao A/I e um anel.

Demonstracao. A parte mais difıcil ja foi feita, que e mostrar que as operacoes estao bemdefinidas. Todas as propriedades seguem das propriedades do anel de A.Por exemplo,

(a+ I) + ((b+ I) + (c+ I)) = (a+ I) + ((b+ c) + I) (def. da soma)

= (a+ (b+ c)) + I (def. da soma)

= ((a+ b) + c) + I (assoc. da soma em A)

= ((a+ b) + I) + (c+ I)

= ((a+ I) + (b+ I)) + (c+ I)

O leitor pode verificar que 0 + I e o zero de A/I, 1 + I e a unidade, e (−a) + I e o oposto dea+ I (isto e, −(a+ I) = −a+ I). �

Note que ha propriedades mais fortes que o anel pode ter e que um quociente seu pode naoter, e vice-versa. Isso depende do anel e do ideal escolhido. Por exemplo, Z e um domınio deintegridade (cujos unicos invertıveis sao 1 e −1); Z3 e um corpo, e Z4 tem divisores de zero.

OBS: Por que e necessario que I seja ideal proprio de A?

Estrutura dos ideais do quociente. Sejam A anel e I um ideal de A. Se J e um ideal deA que contem I,

J/I = {a+ I ∈ A/I; a ∈ J}Este conjunto e um ideal de A. De fato, 0A/I = I = 0 + I esta em J/I pois, como J e ideal,0 ∈ J . Se a + I e b + I estao em J/I entao a, b ∈ J e, como J e ideal, a + b ∈ J ; peladefinicao de J/I, temos que (a+ b) + I ∈ J/I. Finalmente, se α+ I ∈ A/I e a+ I ∈ J/I entao(α + I)(a+ I) = αa+ I ∈ J/I pelos mesmos argumentos.

Exemplo 14.1. (ideais de Z12). Seguindo a construcao acima, os ideais proprios de Z quecontem I = 12Z sao 2Z, 3Z, 4Z e 6Z. Assim, alem dos ideais triviais (0 e Z12), Z12 temtambem os ideais

2Z/12Z = {0, 2, 4, 6, 8, 10}3Z/12Z = {0, 3, 6, 9}4Z/12Z = {0, 4, 8}6Z/12Z = {0, 6}

Teorema 14.2. Sejam A anel e I um ideal de A. Entao todo ideal de A/I e da forma J/Ipara algum ideal de A que contem I. Alem disso, se J e J ′ sao ideais que contem I entaoJ/I = J ′/I se e somente se J = J ′.

Demonstracao. Seja L um ideal de A/I, e defina J ⊂ A por

J = {a ∈ A; a+ I ∈ L}Este conjunto J e um ideal de A. Por exemplo, se a e b estao em J entao a+ I, b+ I estao emL. Como L e ideal de A/I, (a+ b) + I pertence a L, e portanto a+ b pertence a J .

Por construcao, L = J/I. De fato, pela definicao de J e de J/I,

a+ I ∈ J/I ⇐⇒ a ∈ J ⇐⇒ a+ I ∈ L.

Suponha que J e J ′ sao ideais distintos de A, ambos contendo I, e seja a ∈ J tal que a /∈ J ′.Como I ⊂ J ∩ J ′ temos que a /∈ I e portanto a+ I 6= 0 em A/I. Se a+ I ∈ J ′/I, existe b ∈ J ′

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tal que a+ I = b+ I, o que implica em a− b ∈ I. Mas de a− b ∈ I ⊂ J ′ e b ∈ J ′ tiramos quea = (a− b) + b ∈ J ′, contradicao. Logo, a+ I ∈ J/I mas a+ I /∈ J ′/I, e J/I 6= J ′/I. �

Teorema dos Homomorfismos. Se ϕ : A → B e um homomorfismo que nao e sobrejetor,existe um substituto obvio que e: basta tomar ϕ′ : A → Im(ϕ) dada por ϕ′(a) = ϕ(a), ouseja, basta trocar o contradomınio pela imagem (que e um anel). Se ele nao for injetivo, oque podemos fazer? A construcao do anel quociente fornece um modo curioso de “corrigir”homomorfismos que nao sao injetivos.

Teorema 14.3. Sejam A,B aneis, ϕ : A → B um homomorfismo e I um ideal de A. SeN(ϕ) ⊃ I entao existe um unico homomorfismo ϕ : A/I → B tal que ϕ(a+ I) = ϕ(a).

Demonstracao. Vamos definir ϕ(a + I) = ϕ(a). O passo mais importante aqui e mostrar queisso faz sentido, porque as propriedades de homomorfismo seguem diretamente do fato que ϕ ehomomorfismo.

Suponha que a+I = a′+I. Entao a−a′ ∈ I ⊂ N(ϕ), e portanto 0 = ϕ(a−a′) = ϕ(a)−ϕ(a′),ou seja, ϕ(a) = ϕ(a′). Isso mostra que ϕ esta bem definida pois nao depende do representanteda classe de a+ I. Pode-se verificar agora que ϕ e um homomorfismo. �

Teorema 14.4 (teorema dos homomorfismos). Sejam A,B aneis e ϕ : A → B um homomor-fismo. Entao

ϕ : A/N(ϕ) → Im(ϕ)

a+ N(ϕ) 7→ ϕ(a)

e um isomorfismo de aneis.

Demonstracao. De fato, ja sabemos que ϕ : A/N(ϕ)→ B e um homomorfismo e, se restringir-mos o contradomınio a imagem de ϕ, e sobrejetor. Basta verificar agora se o nucleo e trivial.Se ϕ(a + N(ϕ)) = 0 e porque ϕ(a) = 0, mas entao a ∈ N(ϕ) e portanto a + N(ϕ) = 0. Assim,ϕ tambem e injetora, e e um isomorfismo. �

Este teorema e o melhor modo de encontrar um isomorfismo entre um anel quociente e umoutro anel conhecido.

Exemplo 14.2. (1) A aplicacao ϕ : K[x, y] → K[x] dada por f(x, y) 7→ f(x, 0) e umhomomorfismo sobrejetor, e seu nucleo e o ideal 〈y〉. Pelo Teorema dos homomorfismosK[x, y]/〈y〉 e isomorfo a K[x].

(2) A aplicacao ϕ : K[x, y]→ K dada por f(x, y) 7→ f(0, 0) e um homomorfismo sobrejetor,com nucleo igual a 〈x, y〉. Segue que K[x, y]/〈x, y〉 ' K.

(3) 6Z contem 12Z. Assim, o homomorfismo sobrejetor π : Z → Z6, que tem nucleo 6Z,induz um homomorfismo sobrejetor π : Z12 → Z6. Pode-se verificar que o nucleo de π eo ideal 2Z/Z12 e portanto Z12/(2Z/Z12) ' Z6.

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15. Ideais Primos, Ideais Maximais e Aneis Quocientes

Seja I um ideal, e suponha que A/I e um domınio. O que sabemos sobre I? Bom, A/I edomınio se

(18) (a+ I)(b+ I) = 0⇒ a+ I = 0 ou b+ I = 0.

Mas (a+ I)(b+ I) = ab+ I, e ab+ I = 0 ⇔ ab ∈ I. Traduzindo a condicao (18) nestes termos,temos que

(19) ab ∈ I ⇒ a ∈ I ou B ∈ I

Definicao 15.1. Um ideal proprio de A e primo se satisfaz (19).

Pelo que vimos, temos:

Proposicao 15.1. Seja I ideal do anel A. Entao I e um primo se e somente se A/I e domınio.

Por exemplo, I = mZ e um ideal primo se e somente se m e primo.Quanto ao quociente ser corpo, a resposta e mais complicada. No caso de numeros inteiros

sabemos que Zm e domınio se e somente se e corpo, mas isso nao vale no geral. Um exemplosimples e o quociente K[x, y]/〈y〉 que e isomorfo ao domınio K[x], que nao e um corpo.

Vimos tambem que K[x, y]/〈x, y〉 e isomorfo ao corpo K. Ja que todo corpo e tambemdomınio, tanto 〈y〉 quanto 〈x, y〉 sao ideais primos. Qual a condicao extra que 〈x, y〉 satisfaz?

Suponha que A/I e um corpo. Entao, se a+ I 6= 0, existe b+ I tal que

(a+ I)(b+ I) = ab+ I = 1 + I

Em termos de congruencias, se a 6∈ I, existe b tal que

ab ≡ 1 mod I

ou seja, ab− 1 ∈ I.Podemos pensar nisso de outra forma. Seja

M = {ax+ y|x ∈ A e y ∈ I}

entao M contem a, contem M e e um ideal de A (verifique).Se A/I e corpo e a 6∈ I, entao:

(i) M % I, pois a ∈ J − I.(ii) 1 ∈M , pois existe b tal que ab− 1 ∈ I, e portanto

1 = ab+ (ab− 1) ∈M.

Mas se M e um ideal e M contem a unidade, entao M = A. Isso da a motivacao para a proximadefinicao.

Definicao 15.2. Um ideal proprio I de A e maximal se nao existe outro ideal proprio de A,distinto de I, que contenha I. Em outras palavras, se J e um ideal de A e

I ⊂ J ⊂ A

entao J = I ou J = A.

Teorema 15.1. A/I e corpo se somente se I e ideal maximal.

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Demonstracao. Suponha que A/I e corpo, e seja J % I outro ideal. Se a ∈ J e a 6∈ I, entao

J ⊃M = {ax+ y/x ∈ A, y ∈ I} ⊃ I

Pelas contas anteriores temos que M = A, e portanto J = A.Reciprocamente, se I e ideal maximal e a+ I 6= 0 em A/I, considere novamente

M = {ax+ y /x ∈ A, y ∈ I}como a + I 6= 0 equivale a a /∈ I, entao M e um ideal de A que contem I propriamente. Masse I e maximal e M % I entao, pela definicao de ideal maximal, temos M = A. Por sua vez, seM = A entao 1 ∈M , ou seja, existem b ∈ A e y ∈ I tais que

1 = ab+ y.

Isto implica em ab ≡ 1 mod I e segue que (a+ I)(b+ I) = (1 + I) em A/I. �

Como “reconhecer” ideais maximais? Isso e simples no caso de Z e de K[x], com K corpo.

Teorema 15.2. (1) mZ e maximal em Z se e somente se m e primo.(2) 〈f(x)〉 e maximal em K[x], K corpo, se e somente se f(x) e irredutıvel sobre K.

Demonstracao. (1) Vimos que Z/mZ e corpo se e somente se m e primo. Mas Z/mZ e corpose e somente se o ideal mZ e maximal...(2) Vimos que 〈g(x)〉 ⊃ 〈f(x)〉 se e somente se g(x) | f(x).Agora, 〈f(x)〉 nao e maximal ⇔ existe um ideal 〈g(x)〉 tal que

K[x] ) 〈g(x)〉 ) 〈f(x)〉ou seja, ∃ g(x) ∈ K[x] tal que g(x)/f(x), ∂(g(x)) < ∂(f(x)) e ∂(g(x)) > 0. Portanto, 〈f(x)〉nao e maximal se e somente se f(x) tem um divisor nao-trivial.Assim, 〈f(x)〉 e maximal se e somente se f(x) e irredutıvel sobre K. �

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16. Quocientes de Aneis de Polinomios

Quando definimos os aneis Zm, conseguimos mostrar, sem muita dificuldade, que as classesdistintas modulo m correspondem as classes dos restos na divisao por m. Veremos agora que omesmo vale para o quociente de um anel de polinomios K[x] por um ideal 〈f(x)〉.

Em seguida, veremos como a fatoracao de f(x) fornece uma decomposicao de K[x]/〈f(x)〉como produto de aneis. Este resultado e a extensao do Teorema Chines dos Restos para aneisde polinomios. Finalmente, usaremos esta decomposicao para estudar formas canonicas dematrizes.

Nesta secao, como sempre, K denota um corpo. Dado m ≥ 0,

Km[x] = {g(x) ∈ K[x]; g(x) = 0 ou ∂(g(x)) ≤ m}.

Lema 16.1. Seja f(x) ∈ K[x] polinomio nao-constante de grau n ≥ 1.

(1) Todo elemento h(x) de K[x] e congruente modulo f(x) ao seu resto na divisao por f(x).(2) Se g(x) e h(x) ∈ K(n−1)[x] entao g(x) ≡ h(x) mod f(x) se e somente se g(x) = h(x).

Demonstracao. A prova segue do algoritmo da divisao e da definicao de congruencia. Peloalgoritmo da divisao aplicado a h(x) e f(x), existem unicos q(x) e r(x) em K[x] tais que

h(x) = q(x)f(x) + r(x)

com r(x) = 0 ou ∂(r(x)) < ∂(f(x)). Logo, h(x) − r(x) = q(x)f(x) e segue que h(x) ≡ r(x)mod f(x).

Se g(x) e h(x) ∈ K(n−1)[x] e g(x) ≡ h(x) mod f(x) entao existe um q(x) ∈ K[x] tal queg(x)− h(x) = q(x)f(x). Se g(x) 6= h(x) entao q(x) 6= 0, e

n− 1 ≥ ∂(g(x)− h(x)) = ∂(q(x)) + ∂(f(x)) ≥ ∂(f(x)) = n,

contradicao. Portanto g(x) = h(x). �

Teorema 16.1. Seja f(x) ∈ K[x] polinomio nao-constante de grau n ≥ 1, e seja A =K[x]/〈f(x)〉. Entao

(1) A = {[g(x)]; g(x) ∈ K(n−1)[x]}, e estas classes listadas sao todas distintas.(2) A tem uma estrutura natural de espaco vetorial sobre K dada por α[g(x)] = [αg(x)].(3) O conjunto β = {[1], [x], . . . , [xn−1]} e uma base de A como K-espaco vetorial.

Demonstracao. O primeiro item segue do lema, pois [g(x)] = [h(x)] se e somente se g(x) ≡ h(x)mod f(x).

O segundo item segue das propriedades de anel, das operacoes no anel quociente, e da equacao[αg(x)] = [α][g(x)]. Tomando agora um elemento [g(x)] = [

∑mi=0 akx

k] de A, m ≤ n−1, usandoa definicao das operacoes no quociente temos

[m∑i=0

akxk] =

m∑i=0

[akxk] =

m∑i=0

[ak][xk] =

m∑i=0

ak[xk]

portanto, β e um conjunto gerador. Por outro lado, dada uma dependencia linear

a0[1] + a1[x] + · · ·+ an−1[xn−1] = [0]

usando novamente as definicoes das operacoes no quociente, temos

[a0 + a1x+ · · ·+ an−1xn−1] = [0]

e, como tanto∑n−1

i=0 aixi e 0 estao em K(n−1)[x], temos que

∑n−1i=0 aix

i = 0 e portanto a0 = a1 =· · · = an−1. Portanto β e LI, e segue que β e uma base. �

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Daqui em diante faremos uma pequena simplificacao na notacao. Como K e corpo, a aplicacaoa ∈ K 7→ [a] ∈ A e injetora. Por isso, a classe de um polinomio constante c(x) = a sera escritaapenas como [c(x)] = a, e com isso um elemento generico do quociente se escreve como

[a0 + a1x+ · · ·+ amxm] = a0 + a1[x] + · · ·+ am[xm] = a0 + a1[x] + · · ·+ am[x]m.

O corpo dos complexos como um anel quociente. Considere a aplicacao de avaliacao

εi : R[x] → Cp(x) 7→ p(i)

Esse homomorfismo e obviamente sobrejetor, pois dado z = a+ bi ∈ C temos que z = p(i) parap(x) = a+ bx. Pelo teorema dos homomorfismos, temos um isomorfismo

R[x]/N(εi) → C[p(x)] 7→ p(i)

que mostra que a estrutura algebrica de C pode ser construıda como um anel quociente de R[x].Mesmo tendo o isomorfismo, e muito interessante ver como funciona o anel R[x]/N(εi).

Primeiro, afirmamos que o nucleo de εi e o ideal 〈x2 + 1〉. De fato, e claro que x2 + 1 esta nonucleo e, se h(x) ∈ R[x], podemos dividir h(x) por x2 +1 e obter h(x) = (x2 +1)q(x)+(a+ bx),onde a ou b (ou mesmo ambos) pode ser zero. Como h(i) = (i2 + 1)q(i) + (a + bi) = a + bi,concluımos que h(i) = 0 se e somente se a = b = 0, ou seja, se e somente se (x2 + 1) divideh(x). Segue que N(εi) = 〈x2 + 1〉.

Pelo que vimos antes,R[x]/〈x2 + 1〉 = {a+ b[x]; a, b ∈ R}.

Como ficam as operacoes neste anel? A soma e feita coordenada a coordenada, e para o produtotemos

(a+ b[x])(c+ d[x]) = ac+ (ad+ bc)[x] + bd[x]2.

Mas quem e [x]2? Basta dividir x2 por x2 + 1 e tomar o resto. Como x2 = (x2 + 1) − 1,concluımos que [x]2 = −1 . . . !! Assim,

(a+ b[x])(c+ d[x]) = (ac− bd) + (ad+ bc)[x]

e, escrevendo i no lugar de [x], obtemos a formula da multiplicacao de dois complexos (comodeveria ser).

Uma ideia surpreendente. Mostramos como obter um anel quociente que e isomorfo a C;mas veja que isso da um modo de construir C como um anel quociente, definindo C como oquociente R[x]/〈x2 + 1〉. Se fizermos assim, o fato que C e um anel vem de graca da construcaodo anel quociente. Surpreendentemente, o fato de que e corpo tambem sai de graca.

Vejamos primeiro dois resultados gerais.

Teorema 16.2. Seja K corpo, p(x) ∈ K[x] polinomio nao-constante. Sao equivalentes:

(1) K[x]/〈p(x)〉 e um corpo;(2) p(x) e irredutıvel sobre K.

Este resultado segue diretamente do que ja vimos, pois o anel quociente e corpo se e somentese o ideal 〈p(x)〉 e maximal (Teorema 15.1 ), e este ideal e maximal se e somente se p(x) eirredutıvel (ver Teorema 15.2).

Alem disso, temos um primeiro criterio de irredutibilidade para polinomios de grau baixo.

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Teorema 16.3. Seja f(x) ∈ K[x] um polinomio nao-constante.

(1) Se ∂(f(x)) = 1 entao f(x) e irredutıvel sobre K.(2) Se ∂(f(x)) = 2 ou 3 entao f(x) e irredutıvel sobre K se e somente se nao tem raızes em

K.

Demonstracao. O primeiro item ja foi feito no caso mais geral de domınios euclidianos, masnao custa refaze-lo aqui. Se f(x) tem grau 1 e f(x) = g(x)h(x) entao 1 = ∂(f(x)) = ∂(g(x)) +∂(h(x)). Logo, um dos dois tem grau zero, e e invertıvel. Portanto, f(x) e irredutıvel. (vejaque nao foi necessario escrever f(x) = ax+ b; as propriedades da funcao grau resolvem tudo).

Para o segundo caso vamos provar um enunciado equivalente: se ∂(f(x)) = 2 ou 3, entaof(x) e redutıvel sobre K se e somente se tem pelo menos uma raiz em K. Faremos apenas ocaso de grau 2, e o de grau 3 fica como exercıcio.

Suponha que f(x) tem grau 2 e e redutıvel ; entao existem g(x), h(x) ∈ K[x] nao-invertıveistais que f(x) = g(x)h(x). Como nenhum dos dois tem grau zero e o grau de f(x) e 2, segue que∂(g(x)) = ∂(h(x)) = 1. Como polinomios de grau 1 sempre tem exatamente uma raiz em K,f(x) tem duas raızes em K. Portanto, se f(x) nao tem raiz em K entao f(x) e irredutıvel sobreK. Reciprocamente, se f(x) tem uma raiz α ∈ K entao podemos escrever f(x) = (x− α)h(x)e (x − α) e um divisor nao-trivial de f(x) (pois ∂(f(x)) = 2 e ∂(x − α) = 1), mostrando quef(x) e redutıvel. �

Veja que esse criterio nao funciona para grau maior do que 3. Por exemplo, f(x) = x4+4x2+3e redutıvel sobre R[x], pois x4 + 4x2 + 3 = (x2 + 1)(x2 + 3), mas nao tem raiz em R.

Voltando ao nosso exemplo, o polinomio f(x) = x2 + 1 e irredutıvel sobre R pois tem grau2 e nao tem raiz real. Assim, concluımos que o anel R[x]/〈x2 + 1〉 e um corpo sem fazerpraticamente nada! Para ter uma formula para o inverso, no entanto, nao existe atalho; aconta tem que ser feita do modo que fizemos.

Um corpo de 4 elementos. Vamos terminar esta parte com outro exemplo surpreendente:um corpo com 4 elementos. E claro que este corpo nao e Z4, pois Z4 tem divisores de zero.

Considere o polinomio p(x) = x2 + x+ 1 ∈ Z2[x]. Este polinomio e irredutıvel pois tem grau2 e nao tem raızes em Z2:

a p(a)0 0 + 0 + 1 = 11 1 + 1 + 1 = 1

Logo, o anel quociente Z2[x]/〈p(x)〉 e um corpo. Ele tem quatro elementos, pois

Z2[x]/〈p(x) = {a+ b[x]; a, b ∈ Z2} = {0, 1, [x], 1 + [x]}

Chamemos este corpo de F4. Como sao as operacoes em F4? Daqui em diante, vamos escreversimplesmente 0 = 0 e 1 = 1. A soma e imediata, pois e feita “coordenada a coordenada”:

+ 0 1 [x] 1 + [x]0 0 1 [x] 1 + [x]1 1 0 1 + [x] [x]

[x] [x] 1 + [x] 0 11 + [x] 1 + [x] [x] 1 0

O produto e bem mais interessante. Note que [x]2 + [x] + 1 = [x2 + x + 1] = 0, e temos[x]2 = −[x]− 1 = [x] + 1 (lembre-se que os coeficientes vem de Z2). A tabela de multiplicacao

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fica assim:· 0 1 [x] 1 + [x]0 0 0 0 01 0 1 [x] 1 + [x]

[x] 0 [x] 1 + [x] 11 + [x] 0 1 + [x] 1 [x]

O processo usado acima pode ser repetido sempre que tivermos um polinomio irredutıvelsobre um corpo Zp (p primo). Pode-se mostrar que em Zp[x] existem polinomios irredutıveis dequalquer grau maior ou igual a 1. Usando isso com a descricao dos elementos de K[x]/〈f(x)〉,chega-se no seguinte resultado:

Teorema 16.4. Seja p um numero primo. Para cada inteiro n ≥ 1 existe um corpo de pn

elementos.

Se f(x) e g(x) sao ambos polinomios irredutıveis sobre Zp de grau n, os quocientes Zp[x]/〈f(x)〉e Zp[x]/〈f(x)〉 tem multiplicacoes diferentes, mas Galois mostrou que sao isomorfos como cor-pos: existe exatamente um corpo de pn elementos a menos de isomorfismos, e este corpo e ocorpo onde xp

n − x se decompoe como produto de fatores lineares distintos.Por que trabalhar apenas com potencias de primos? Porque pode-se mostrar que se K e

um corpo finito entao K e um espaco vetorial sobre um corpo Zp, e segue disso que se n e adimensao de K entao K tem pn elementos.

A construcao destes corpos finitos foi feita com interesses puramente teoricos, mas hoje efundamental na transmissao e armazenamento de dados. Tanto o CD quanto o DVD gravamseus dados como sequencias binarias, e essas sequencias sao organizadas como elementos docorpo finito F28 de 28 elementos. Essa estrutura algebrica e essencial para essa tecnologia, poiso metodo de codificacao usado para protecao desses dados e inteiramente baseado em espacosvetoriais sobre o corpo F28 .

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17. Teorema Chines dos Restos e Diagonalizacao de Operadores

Um problema fundamental em Algebra Linear e determinar uma base onde a matriz de umoperador seja a mais simples possıvel, em algum sentido. Com certeza, estamos no melhor dosmundos quando encontramos uma base onde a matriz do operador e diagonal, pois o nucleo e aimagem sao obvios, a acao do operador nos vetores e muito facil de descrever e, em problemasem que se necessita de potencias da matriz, o calculo de qualquer potencia e imediato.

Um resultado fundamental conecta a existencia de uma base que diagonalize o operadorcom a fatoracao de um polinomio associado ao operador; para chegar a esse resultado, vamoscomecar demonstrando o Teorema Chines dos Restos para polinomios. Veremos tambem quequando o operador e diagonalizavel, determinar uma base onde o mesmo diagonaliza equivalea encontrar uma solucao r1(x), . . . , rk(x) ∈ K[x] da equacao

r1(x)M1(x) + r2(x)M2(x) + · · ·+ rk(x)Mk(x) = 1

onde mdc(M1(x), . . . ,Mk(x)) = 1.

Teorema 17.1 (Teorema Chines dos Restos). Sejam K um corpo, p1(x), p2(x), . . . , pk(x) ∈ K[x]polinomios nao-nulos dois a dois coprimos, e seja M(x) = p1(x)p2(x) · · · pk(x). A aplicacao

ϕ : K[x]/〈M(x)〉 → K[x]〈p1(x)〉 × · · · ×K[x]〈pk(x)〉f(x) + 〈M(x)〉 7→ (f(x) + 〈p1(x)〉, . . . , f(x) + 〈pk(x)〉)

e um isomorfismo de aneis. Se Mi(x) = M(x)/pi(x), entao existem r1(x), . . . , rk(x) tais que

r1(x)M1(x) + · · ·+ rk(x)Mk(x) = 1

e a inversa de ϕ e a aplicacao

ψ : K[x]〈p1(x)〉 × · · · ×K[x]〈pk(x)〉 → K[x]/〈M(x)〉

(f1(x) + 〈p1(x)〉, . . . , fk(x) + 〈pk(x)〉) 7→k∑i=1

fi(x)ri(x)Mi(x) + 〈M(x)〉

Demonstracao. A demonstracao e essencialmente a mesma que foi feita para numeros inteiros.Daremos apenas o resumo dos passos principais, e deixaremos o detalhamento por conta doleitor.

Verifica-se que ϕ esta bem definida porque pi|M para cada i; verificar que ϕ e homomorfismoe imediato, e a bijecao segue do fato que ψ e a inversa. Isso segue do mesmo modo que nocaso de numeros inteiros: pode-se verificar que mdc(M1,M2, . . . ,Mk) = 1 e, como todo idealde K[x] e principal, existem polinomios r1, r2, . . . , rk tais que

(20) r1M1 + · · ·+ skMk = 1.

Com isso podemos efetivamente definir ψ como no enunciado, e contas analogas ao caso dosinteiros mostram que ψ e a inversa de ϕ. �

Considere agora um operador linear T : Kn → Kn. Sabemos que existe um polinomioassociado a T , o polinomio caracterıstico de T dado por cT (x) = det(A − xI), onde A ea matriz que representa T em uma base β de Kn. Mudando a base muda a matriz, masisso nao afeta o polinomio cT (x), pois se β′ e outra base de Kn e B e a matriz de T nestabase entao existe uma matriz P de mudanca de base tal que A = PBP−1. Disso segue queA− xI = PBP−1 − xI = P (B − xI)P−1 e

det(A− xI) = det(P (B − xI)P−1) = det(P ) det(B − xI) det(P−1) =

= det(P ) det(P−1) det(B − xI) = det(B − xI).

Portanto, cT (x) depende apenas de T .

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Ha um segundo polinomio associado a T que e mais difıcil de encontrar, mas que traz maisinformacoes sobre T . No que segue, T k denota o operador T ◦ T ◦ · · · ◦ T (k repeticoes de T )para cada k ≥ 1.

Proposicao 17.1. Seja T : Kn → Kn um operador linear. Dado f(x) =∑r

k=0 akxk, definimos

f(T ) : Kn → Kn por f(T ) = a0I + a1T + · · · + arTr (onde I e a identidade de Kn em Kn).

Entao

(1) O conjunto de todos os polinomios f(x) tais que f(T ) = 0 formam um ideal JT de K[x].(2) O conjunto K[T ] dos operadores f(T ) com f(x) ∈ K[x] e um subanel de L(Kn).(3) Seja m(x) o gerador monico de JT . Se f(T ) = 0 entao m(x)|f(x).(4) Seja β base de V e seja A = [T ]β. Para todo f(x) ∈ K[x], f(T ) = 0 se e somente se

f(A) = 0.

Demonstracao. Pode-se provar diretamente que IT e um ideal de K[x] e que K[T ] e um subanelde L(Kn), e recomendamos que voce faca isso. Um segundo modo de faze-lo e usar a propriedadede extensao de homomorfismos de K[x]. Claramente, a aplicacao θ : K → L(Kn) que levaα ∈ K no operador αI : Kn → Kn e um homomorfismo. Pela propriedade da extensaode homomorfismos, a aplicacao εT : K[x] → L(Kn) que leva f(x) =

∑rk=0 akx

k em f(T ) =a0I + a1T + · · · + arT

r e um homomorfismo de aneis. Como o conjunto JT e o nucleo de εT ,JT e um ideal de K[x]. Analogamente, K[T ] e a imagem de εT e portanto e um subanel docontradomınio desse homomorfismo.

Quanto ao terceiro item, seja m(x) o gerador monico de JT . Pela definicao de gerador,f(T ) = 0 implica em m(x)|f(x) pois se f(T ) = 0 entao f(x) ∈ JT .

Para o ultimo, basta lembrar que a aplicacao T 7→ [T ]β e um isomorfismo de aneis entreL(V ) e Mn(K). �

Ainda ficou um problema: no segundo item, admitimos implicitamente que existe pelo menosum polinomio nao-nulo que anula T , e isso precisa ser verificado. Isso e verdade, e segue de umbelo argumento envolvendo dependencia linear e dimensao.

Em algebra linear, mostra-se que se um espaco tem uma base com n elementos, entao todabase deste espaco tem n elementos. Esse resultado e usado para definir a dimensao do espacoV como o numero de elementos de uma base de V . Como consequencia direta, se v1, v2, . . . , vmsao vetores de V e m > n entao estes vetores sao LD pois, se fossem LI, poderıamos estende-loa uma base de V que teria mais que n elementos.

A dimensao de L(Kn) e n2. Assim, se T e um operador de Kn em Kn, o conjunto I, T, . . . , T n2

e LD pois tem n2 + 1 elementos. Entao existem a0, a1, . . . , an2 ∈ K nao todos nulos tais que

a0I + a1T + a2T2 + · · ·+ an2T n

2

= 0

ou seja, T e anulado pelo polinomio nao-nulo f(x) = a0 + a1x+ a2x2 + · · ·+ an2xn

2.

Tendo garantido que JT 6= 0, podemos prosseguir.

Definicao 17.1. Seja T : Kn → Kn. O polinomio mınimo de T e o gerador monico do idealJT = {f(x) ∈ K[x]; f(T ) = 0}. Denotaremos este polinomio por mT (x).

O polinomio caracterıstico tem uma formula, mas como encontrar o polinomio mınimo? Ummodo de faze-lo a partir do caracterıstico vem do seguinte resultado:

Teorema 17.2 (Cayley-Hamilton). Sejam T : Kn → Kn e pT (x) seu polinomio caracterıstico.Entao pT (T ) = 0.

Como consequencia, mT (x)|pT (x). Pode-se provar tambem que

Proposicao 17.2. Os polinomios caracterıstico e mınimo de um operador T tem os mesmosfatores irredutıveis em K[x] e, em particular, as mesmas raızes (se houver raiz).

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Assim, se cT (x) = (x−1)2(x−2)2, as opcoes para mT (x) sao (x−1)2(x−2)2, (x−1)2(x−2),(x− 1)(x− 2)2 e (x− 1)(x− 2). Para descobrir quem e o mınimo “basta” aplicar no operadorT , ver quem anula T e qual, dentre eles, e o polinomio de menor grau.

Definicao 17.2. Um operador T : Kn → Kn e diagonalizavel se existe alguma base β de Kn

tal que a matriz A = [T ]β seja uma matriz diagonal.

Veja que se T e diagonalizavel e β = {v1, . . . , vn} e uma base onde sua matriz e diagonal,temos que existe αj ∈ K tal que Tvj = αjvj para cada vj ∈ β. Ou seja, dizer que T ediagonalizavel e o mesmo que dizer que existe uma base de Kn formada por autovetores de T .

Um pequeno exemplo mostra uma consequencia importante de T ser diagonalizavel. SejaT : R3 → R3 um operador que, em uma base β de R3, tem a matriz

A =

1 0 00 1 00 0 2

O polinomio caracterıstico e pT (x) = (x−1)2(x−2), e portanto o mınimo e f1(x) = (x−1)2(x−2)ou f2(x) = (x− 1)2(x− 2). Mas ve-se imediatamente que o mınimo e o segundo, pois

f2(A) = (A− I)(A− 2I) =

0 0 00 0 00 0 1

−1 0 00 −1 00 0 0

=

0 0 00 0 00 0 0

Usando esta ideia, pode-se provar que se T : Kn → Kn e diagonalizavel entao mT (x) =∏k

i=1(x− αi) com α1, . . . , αk distintos. Vamos mostrar agora que vale a recıproca.

Lema 17.1. Seja V espaco vetorial sobre K e sejam W1, . . . ,Wk subespacos de V . EntaoV = W1 ⊕W2 ⊕ · · · ⊕Wk se e somente se existem operadores Ei : V → V , i = 1, . . . , k, taisque Wi = Ei(V ) e

(1)∑k

i=1Ei = Id;(2) EiEj = 0 se i 6= j;(3) E2

i = Ei.

Demonstracao. Suponha primeiro que temos os operadores Ei satisfazendo estas condicoes.Dado v ∈ V , podemos escrever

v = Iv = E1v + · · ·Ekve ja temos que V e a soma dos espacos Wi. Note tambem que se wi ∈ Ei(V ) entao wi = Eivipara algum vi ∈ Kn, mas Eiwi = E2

i vi = Eivi = wi. Logo, se wi ∈ Ei(V ) podemos escreverwi = Eiwi. Para ver que a soma dos Wi’s e direta, sejam w1, w2, . . . , wk em W1,W2, . . . ,Wk

respectivamente tais que0 = w1 + w2 + · · ·+ wk

que ainda podemos escrever como

0 = E1w1 + E2w2 + · · ·+ Ekwk.

Aplicando Ei nesta equacao,

0 = EiE1w1 + EiE2w2 + · · ·+ EiEiwi + · · ·+ EiEkwk

= E2i wi = Eiwi = wi

para cada i. Portanto, os vetores wi sao todos nulos, e a soma e direta.A recıproca e provada definindo o operador Ei : Kn → Kn do seguinte modo: como V =

W1 ⊕W2 ⊕ · · · ⊕Wk, cada v ∈ V se escreve de uma unica maneira como

v = w1 + w2 + · · ·+ wk

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com wi ∈ Wi para i = 1, 2, . . . , k. Definimos entao Ei(v) = wi. Pode-se mostrar que estasaplicacoes sao lineares e que satisfazem as condicoes (1), (2) e (3) do enunciado do lema. �

Teorema 17.3. Seja T : Kn → Kn operador linear, seja mT (x) seu polinomio mınimo sobreK, e suponha que mT (x) = p1(x)p2(x) · · · ps(x) onde pi(x) e pj(x) sao coprimos se i 6= j.Sejam Mi(x) = mT (x)/pi(x) e r1(x), . . . , rk(x) como no Teorema Chines dos Restos. TomeEi(x) = ri(x)Mi(x) para cada i = 1, . . . , s. Entao

(1)∑s

i=1Ei(T ) = Id.(2) Ei(T )Ej(T ) = 0 se i 6= j.(3) Ei(T )2 = Ei(T ).(4) Se Wi e a imagem de Ei(T ) entao V = W1 ⊕W2 ⊕ · · · ⊕Ws.(5) Wi e o nucleo de pi(T ).

Demonstracao. Os itens (1),(2) e (3) sao consequencias diretas do TCR. Seja ei(x) ∈ K[x]/〈m1(x)〉×· · · ×K[x]/〈m1(x)〉 o elemento que tem 1 na i-esima posicao e 0 em todas as outras. Como asoperacoes sao feitas coordenada a coordenada, e claro que

(1)∑s

i=1 ei(x) = 1,(2) ei(x)ej(x) = 0 se i 6= j,(3) ei(x)2 = ei(x).

Agora obtemos os itens (1),(2) e (3) do enunciado aplicando o homomorfismo εT ◦ϕ−1 em cadaequacao.

(4) Pelo lema anterior, segue dos primeiros tres itens.(5) Com certeza Wi ⊂ N(pi(T )), pois se v = Ei(T )(w) entao pi(T )(Ei(T )(w)) = (piEi)(T )(w)

e, por outro lado, pi(x)Ei(x) = ri(x)mT (x), e portanto (piEi)(T ) = ri(T )mT (T ) = 0. Seja agorav ∈ V tal que pi(T )(v) = 0. Como pi(x) divide cada Ej(x) para j 6= i, segue que Ej(T )v = 0para j 6= i e portanto

v = E1(T )v + · · ·+ Ei(T )v + · · ·+ Ek(T )v = Ei(T )v

como querıamos. �

Teorema 17.4. T : Kn → Kn e diagonalizavel se e somente se mT (x) =∏k

i=1(x − αi) comα1, . . . , αk distintos.

Demonstracao. Se T e diagonalizavel, existe uma base β de V na qual a matriz A = [T ]β de T

e diagonal. Sendo f(x) =∏k

i=1(x− αi), pode-se mostrar que f(A) = 0 e tambem que nenhumdivisor proprio de f(x) anula A. Portanto, f(x) = mT (x).

Suponha agora que mT (x) =∏k

i=1(x− αi) com α1, . . . , αk distintos. Seguindo a notacao doteorema anterior, pi(x) = (x− αi) e V = W1 ⊕ · · · ⊕Wk onde Wi = N(pi(T )). Logo, se v ∈ Wi

entao pi(T )(v) = 0, ou seja, Tv = αiv. Tomando uma base βi = {ui1, ui2, . . . , uini} para cada

Wi, temos que β = β1 ∪ . . . ∪ βk e uma base de V onde a matriz de T e diagonal. �

No caminho para mostrar este resultado nos obtemos um outro resultado que e interessanteem si mesmo. Recordando, se mT (x) = p1(x)p2(x) · · · pk(x) e os pj(x) sao dois a dois coprimos,entao os polinomios Mi(x) = mT (x)/pi(x) tem mdc igual a 1 e a equacao

r1(x)M1(x) + r2(x)M2(x) + · · ·+ rk(x)Mk(x) = 1

tem solucoes r1(x), r2(x), . . . , rk(x) em K[x]. Dada uma solucao, podemos tomar Ei(x) =ri(x)Mi(x) e obter uma decomposicao de V como soma direta das imagens Wi dos Ei(T ).Independente de T ser diagonalizavel ou nao, o leitor pode verificar que se β for construıdacomo uniao de bases dos subespacos Wi entao a matriz de T nesta base e diagonal por blocos,e isso ja e um avanco. O unico caso em que nao se obtem nada de novo e quando mT (x) eda forma p(x)m com p(x) irredutıvel sobre K; neste caso, e impossıvel escrever mT (x) comoproduto de polinomios coprimos entre si.

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18. Criterios de Irredutibilidade para polinomios

Uma questao central em qualquer area da Matematica e: dada uma classe de objetos de umcerto tipo, descrever, de algum modo razoavel, os objetos mais elementares desta classe a partirdos quais todos os outros podem ser “montados” por algum processo. Se olharmos um anelA especıfico e tomarmos os elementos nao-nulos de A como nossos objetos, um “processo demontagem” obvio e o produto de elementos, e os objetos mais elementares sao os invertıveise os irredutıveis. Em geral nao se conhece todos os irredutıveis de um anel; ha milenios queos numeros primos sao estudados, e ate hoje nao conhecemos sequer uma sequencia infinitaexplıcita de numeros primos.

Nesta secao nos veremos alguns criterios que permitem decidir (em alguns casos) se umpolinomio com coeficientes inteiros e ou nao irredutıvel. O resultado mais forte, o criterio deEisenstein, e fortemente apoiado nos numeros primos.

Criterio de Eisenstein. Comecamos pelo

Lema 18.1 (Lema de Gauss). Seja f(x) ∈ Z[x]. Se f(x) e irredutıvel em Z[x], entao f(x) eirredutıvel em Q[x].

Demonstracao. Faremos pela contrapositiva: mostraremos que se f e redutıvel sobre Q, entaotambem e redutıvel sobre Z.

Suponha que f(x) = g(x)h(x), com g(x), h(x) ∈ Q[x], ∂(g(x)) ≥ 1 e ∂(h(x)) ≥ 1. Agoraconsidere

g(x) =c0d0

+c1d1x+ · · ·+ cr

drxr

h(x) =u0v0

+u1v1x+ · · ·+ us

vsxs

onde os ci, di, ui, vi sao inteiros. Multiplicando a equacao f(x) = g(x)h(x) pelo inteirom = (d0d1 · · · dr)(v0v1 · · · vs) obtemos

mf = g1(x)h1(x)

com g1(x) = a0 + a1x+ · · ·+ arxr e h1(x) = b0 + b1x+ · · ·+ bsx

s, onde cada ai e bj e inteiro.Seja agora p um fator primo de m. Vamos mostrar que p divide todos os ai’s ou todos os

bj’s. Deste modo, poderemos cancelar p dos dois lados da equacao. Daı, se mp6= ±1, tomamos

outro fator primo e repetimos o processo. Com isso conseguiremos, passo a passo, cancelar mna equacao e obter uma decomposicao (nao trivial) de f(x) como produto de dois polinomiosde Z[x].

Suponha que existe i tal que p | a0, · · · , ai−1 e p - ai, (i pode ser 0 tambem), e sejamc0, c1, · · · , cr+s os coeficientes de g1(x)h1(x),

g1(x)h1(x) =r+s∑j=0

cjxj,

onde r + s = n = ∂(f(x)).Como p | m e mf(x) = g(x)h(x), p divide cada cj. Entao

p | ci = aib0 + ai−1b1 + · · ·+ a0bi

e

p | a0, a1, · · · , ai−1 ⇒ p | (ai−1b1 + · · ·+ a0bi)

⇒ p | aib0Como p - ai e p e primo, temos que p | b0.

Agora,

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p | ci+1 =

A︷ ︸︸ ︷ai+1b0 +aib1 +

B︷ ︸︸ ︷ai−1b2 + · · ·+ a0bi+1

como p | b0 e p | a0, a1, · · · , ai−1, p | A+ B. Logo, p | aib1. Novamente, como p - ai, temos quep | b1. Prosseguindo deste modo, concluımos que p | bj, para j = 0, · · · , s. Portanto

h2(x) = 1ph1(x) = b0

p+ b1

px+ · · ·+ bs

pxs

tem coeficientes inteiros, e podemos escreverm

pf(x) = g2(x)h2(x)(21)

com g2(x) = g1(x), h2(x) = 1ph1(x) ∈ Z[x].

Se mp6= ±1,podemos comecar tudo de novo com a equacao (21) e tomar outro fator primo

de mp

. Claramente, depois de um numero finito de passos, chegamos a

f(x) = g(x)h(x)

com g, h ∈ Z[x]. �

Muito cuidado: nao vale a recıproca. f(x) = 3x e irredutıvel em Q[x] mas e redutıvel emZ[x], pois tanto g(x) = 3 quanto h(x) = x sao divisores nao-triviais, ja que sao irredutıveis emZ[x].

Teorema 18.1 (Criterio de Eisenstein). Seja f(x) = a0 + a1x + · · · + anxn polinomio com

coeficientes inteiros. Se existir um primo p tal que:

(i) p - an(ii) p | a0, a1, · · · , an−1

(iii) p2 - a0entao f(x) sera irredutıvel sobre Q.

Demonstracao. Basta mostrar que nao existem g(x), h(x) ∈ Z[x] tais que

f(x) = g(x)h(x)

e 1 ≤ ∂(g(x)), ∂(h(x)) < n, pois vimos no Lema de Gauss que uma decomposicao de f(x) emQ[x] da origem a uma decomposicao de f(x) em Z[x], onde os fatores tem os mesmos grausque os fatores originais de Q[x].

Suponha, por contradicao, que

f(x) = g(x)h(x)

com 1 ≤ ∂(g(x)), ∂(h(x)) ≤ n− 1e g(x), h(x) ∈ Z[x],

g(x) = b0 + b1x+ · · ·+ brxr

h(x) = c0 + c1x+ · · ·+ csxs

Como a0 = b0c0 e p | a0, e p e primo, p | b0 ou p | c0. Suponha que p | b0 e p - c0.Por outro lado, temos r + s = n e p - an = brcs.Assim, p - br e p - cs.Portanto, ∃i talque

p | b0, b1, · · · , bi−1 e p - bicom i ≤ r < n.

Mas, se i < n entao

p | ai = bic0 +

A︷ ︸︸ ︷bi−1c1 + bi−2c2 + · · ·+ b0ci

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e como p | bj se 0 ≤ j ≤ i − 1, p | A, e portanto p | bic0. Como p e primo e p - c0, concluımosque p | bi. Contradicao!

Portanto nao existe tal decomposicao em Z[x], e f(x) e irredutıvel em Q[x]. �

Exemplo 18.1. Seja f(x) = x10 + 2x5− 4x3 + 6x+ 18 ∈ Z[x], e seja p = 2; vamos mostrar quef(x) satisfaz o criterio de Eisenstein.

• 22 - a0 = 18• 2 | 2,−4, 6, 18

que sao os coeficientes nao-nulos com ındice menor que 10, e

• 2 - a10 = 1

Pelo criterio de Eisenstein, f(x) e irredutıvel sobre Q.

Exemplo 18.2. Seja f(x) = xn − p, p um numero primo e n ≥ 1. Usando o criterio deEisenstein com o primo p temos que p|p = a0 e p divide qualquer coeficiente entre n − 1 e 1,pois sao todos nulos; p nao divide an = 1, e p2 nao divide a0 = p. Portanto f(x) e irredutıvelsobre Q, e mostramos facilmente que existem polinomios irredutıveis sobre Q de qualquer grau.

Criterios para graus 2 e 3. Recordamos aqui um resultado ja provado anteriormente.

Teorema 18.2. Seja f(x) ∈ K[x] um polinomio nao-constante.

(1) Se ∂(f(x)) = 1 entao f(x) e irredutıvel sobre K.(2) Se ∂(f(x)) = 2 ou 3 entao f(x) e irredutıvel sobre K se e somente se nao tem raızes em

K.

Este resultado e muito bom para grau 2 pois temos uma formula simples para as raızes, masnao e tao bom para grau 3 porque temos uma formula para as raızes que nao e tao simplesassim. No entanto, para polinomios com coeficientes inteiros ha outras possibilidades bastanteeficientes.

Raızes racionais de um polinomio com coeficientes inteiros. Este e um criterio que jadeve ser conhecido do leitor (que agora sabera porque funciona).

Teorema 18.3. Seja f(x) = a0 + a1x+ · · ·+ anxn ∈ Z[x]. Se α = p/q e uma fracao reduzida

e f(α) = 0 entao p|a0 e q|an.

Demonstracao. Faremos uma parte e deixaremos a outra por conta do leitor. Por hipotese,

a0 + a1p

q+ · · ·+ an

pn

qn= 0.

Multiplicando por qn obtemos a equacao

a0qn + a1pq

n−1 + a2p2qn−2 + · · ·+ anp

n = 0

que podemos reescrever de modo conveniente como

a0qn = p

(a1q

n−1 + a2pqn−2 + · · ·+ anp

n−1)que nos diz que p|a0q. Como p e q sao coprimos, o teorema de Euclides garante que p|a0. �

Exemplo 18.3. O polinomio f(x) = x3 + 3x2 + 6x + 2 nao pode ser analisado pelo criteriode Eisenstein. Como tem grau 3, sera irredutıvel se e somente se nao tem raiz racional. Peloultimo teorema as raızes possıveis sao ±1 e ±2. Basta verificar: f(−1) = −2, f(−2) = −6,f(1) = 12, f(2) = 34. Nao ha raiz racional e portanto f(x) e irredutıvel em Q[x].

Chamamos a atencao novamente para o grau do polinomio: se um polinomio f(x) comcoeficientes inteiros tem uma raiz racional α entao ele e redutıvel sobre Q, pois e multiplo de(x − α) em Q[x]. Se ele nao tem raiz racional, so podemos concluir que e irredutıvel sobre Qse tiver grau 2 ou 3.

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Reducao modulo p. Um outra arma vem dos homomorfismos.Seja p um numero primo positivo, e considere a aplicacao

ϕ : Z[x] → Zp[x]n∑i=0

aixi 7→

n∑i=0

aixi

onde ai e a classe de ai modulo p. Dado f(x) ∈ Z[x], denotaremos ϕ(f(x)) por f(x).

Teorema 18.4. (i) ϕ e um homomorfismo sobrejetor(ii) Se p - an e f(x) e irredutıvel sobre Zp, entao f(x) e irredutıvel sobre Q.

Demonstracao. (i) exercıcio.(ii) Vamos provar pela contrapositiva. Se f(x) e redutıvel sobre Q, o Lema de Gauss garante

que existem g(x) =r∑i=0

bixi e h(x) =

s∑j=0

cjxj em Z[x] tais que f(x) = g(x)h(x), com

r, s ≥ 1.Como ϕ e homomorfismo,

f(x) = ϕ(g(x)h(x)) = ϕ(g(x))ϕ(h(x)) = g(x)h(x).

Assim, como p - an = brcs, temos an 6= 0 e br, cs 6= 0 tambem. Portanto ∂(g(x)) = r > 1,∂(h(x)) = s > 1 e f(x) e redutıvel em Zp[x].

Exemplo 18.4. Considere o polinomio f(x) = x3 + 15x2 − 25Nao temos como aplicar Eisenstein, pois o unico candidato e p = 5 mas o termo independente

e justamente 52. No entanto, a reducao modulo 2 da:

f(x) = x3 + 15x2 − 25 = x3 + x2 + 1

Este polinomio nao tem raiz em Z2: f(0) = 1 e f(1) = 1. Como seu grau e 3, e irredutıvelsobre Z2. Como 2 - a3 = 1, f(x) e irredutıvel sobre Q.