do seguro facultativo e do “preÇo de mercado” · indenização de r$ 20.000,00, é danificado...

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DO SEGURO FACULTATIVO E DO “PREÇO DE MERCADO” Athos Gusmão Carneiro 1. A Portaria n° 03, de 19.03.1999, da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça, fez recrudescer acirrada controvérsia: no contrato de seguro facultativo de automóveis, em caso de perda total, ao segurado assiste direito a receber da seguradora o valor integral do “preço segurado”, ou apenas o chamado “valor de mercado”, ou seja, o valor pelo qual o veículo poderia ser vendido ao tempo do sinistro? I - DA DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL 2. A jurisprudência encontra-se, a esse respeito, profundamente dividida, inclusive no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, nosso órgão maior de interpretação do direito em nível infraconstitucional. Assim, a eg. 4.ª Turma do STJ tem se inclinado no sentido de que, em ocorrendo a perda total do veículo, a indenização deverá corresponder ao limite máximo do valor segurado. Assim consta, v.g., da ementa no Recurso Especial n° 176.890, Rel. o em. Ministro Cesar Rocha, verbis: “CIVIL - SEGURO FACULTATIVO DE AUTOMÓVEL - PERDA TOTAL DO BEM - INDENIZAÇÃO - VALOR DA APÓLICE. Quando ao objeto do contrato de seguro voluntário se der valor determinado e o seguro se fizer por esse valor, e vindo o bem segurado a sofrer perda total, a indenização deve corresponder ao valor da apólice, salvo se a seguradora, antes do evento danoso, tiver postulado a redução de que trata o art. 1.438 do Código Civil, ou se ela comprovar que o bem segurado, por qualquer razão, já não tinha mais aquele valor que fora estipulado, ou que houve má-fé, o que não se deu na espécie. É que, em linha de princípio, o automóvel voluntariamente segurado que sofrer perda total haverá de ser indenizado pelo valor da apólice, pois sendo a perda total o dano máximo que pode sofrer o bem segurado, a indenização deve ser pelo seu limite máximo, que é o valor da apólice. Precedente: 66.543 - MG, RTJ 105/320. Recurso conhecido pelo dissídio, mas improvido.” 3. Diversa é a posição da eg. 3.ª Turma da mesma Corte. Nos Recursos Especiais n°s 63.678 e 105.566, sendo Relatores, respectivamente, os em. Ministros Costa Leite e Waldemar Zveiter, inclinaram-se os julgadores no sentido da licitude da cláusula contratual

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Page 1: DO SEGURO FACULTATIVO E DO “PREÇO DE MERCADO” · indenização de R$ 20.000,00, é danificado em um primeiro acidente, do qual resulte a indenização de R$ 3.000,00, o veículo

DO SEGURO FACULTATIVO E DO “PREÇO DE MERCADO”

Athos Gusmão Carneiro

1. A Portaria n° 03, de 19.03.1999, da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça, fez recrudescer acirrada controvérsia: no contrato de seguro facultativo de automóveis, em caso de perda total, ao segurado assiste direito a receber da seguradora o valor integral do “preço segurado”, ou apenas o chamado “valor de mercado”, ou seja, o valor pelo qual o veículo poderia ser vendido ao tempo do sinistro?

I - DA DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL

2. A jurisprudência encontra-se, a esse respeito, profundamente dividida, inclusive no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, nosso órgão maior de interpretação do direito em nível infraconstitucional.

Assim, a eg. 4.ª Turma do STJ tem se inclinado no sentido de que, em ocorrendo a perda total do veículo, a indenização deverá corresponder ao limite máximo do valor segurado. Assim consta, v.g., da ementa no Recurso Especial n° 176.890, Rel. o em. Ministro Cesar Rocha, verbis:

“CIVIL - SEGURO FACULTATIVO DE AUTOMÓVEL - PERDA TOTAL DO BEM - INDENIZAÇÃO - VALOR DA APÓLICE.

Quando ao objeto do contrato de seguro voluntário se der valor determinado e o seguro se fizer por esse valor, e vindo o bem segurado a sofrer perda total, a indenização deve corresponder ao valor da apólice, salvo se a seguradora, antes do evento danoso, tiver postulado a redução de que trata o art. 1.438 do Código Civil, ou se ela comprovar que o bem segurado, por qualquer razão, já não tinha mais aquele valor que fora estipulado, ou que houve má-fé, o que não se deu na espécie.

É que, em linha de princípio, o automóvel voluntariamente segurado que sofrer perda total haverá de ser indenizado pelo valor da apólice, pois sendo a perda total o dano máximo que pode sofrer o bem segurado, a indenização deve ser pelo seu limite máximo, que é o valor da apólice.

Precedente: 66.543 - MG, RTJ 105/320. Recurso conhecido pelo dissídio, mas improvido.”

3. Diversa é a posição da eg. 3.ª Turma da mesma Corte. Nos Recursos Especiais n°s 63.678 e 105.566, sendo Relatores, respectivamente, os em. Ministros Costa Leite e Waldemar Zveiter, inclinaram-se os julgadores no sentido da licitude da cláusula contratual

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que consagra o princípio indenitério no seguro facultativo de veículos, como consta das ementas a seguir transcritas: (Revista Jurídica. RJ 261 JUL/1999 – DOUTRINA p.5)

“SEGURO - FURTO DE VEÍCULOS - VALOR DA INDENIZAÇÃO.

O valor por que foi segurado o bem constitui apenas o limite máximo indenizável, não se divisando, assim, ilicitude na cláusula que estipula a indenização pelo valor médio do mercado.

Recurso conhecido e provido.”

“CIVIL - AÇÃO DE COBRANÇA - CONTRATO DE SEGURO - FURTO DE VEÍCULO - VALOR DA INDENIZAÇÃO.

I - Precedentes da 2ª Segunda Seção pacificaram entendimento no sentido de que o valor por que segurado o bem constitui apenas o limite máximo indenizável, não se divisando, assim, ilicitude na cláusula que estipula indenização pelo valor médio de mercado.

II - Recurso não conhecido” (DJU de 01.09.97).

A nosso sentir, quer sob considerações estritamente jurídicas, como do ponto de vista econômico e atuarial, a orientação prestigiada na eg. 3ª Turma é, data venia, a acertada.

Assim opinamos pelos motivos que passaremos a expor.

II - DO CÁLCULO DO PRÊMIO NO CONTRATO DE SEGURO FACULTATIVO DE AUTOMÓVEIS

CLÁUSULAS CONTRATUAIS:

“6.2.1 - A Seguradora poderá optar entre indenizar o segurado em espécie ou entregar-lhe outro veículo equivalente, no prazo máximo de 30 dias da apresentação dos documentos acima.

6.2.2 - Caso a Seguradora venha a optar pelo pagamento em espécie, a indenização ficará limitada ao valor médio de mercado do veículo segurado, que em hipótese alguma poderá ser superior à importância segurada na data da referida liquidação.

6.2.3 - O valor médio de mercado de que trata o parágrafo anterior será apurado de publicações especializadas e revendas idôneas para veículos de idênticas características, considerando-se, ainda, seu tipo e ano do modelo.

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6.2.4 - Não obstante o disposto anteriormente, para os veículos novos (zero km), ocorrendo a perda total, não será considerada a eventual depreciação do veículo, devendo a indenização corresponder ao máximo a importância segurada, desde que satisfeitos todas as seguintes condições:

(...)

c) a perda total tenha ocorrido dentro do prazo de 30 dias contados da data de aquisição do veículo em concessionário autorizado pelo fabricante;

(...)”

4. A tese de que a indenização pela perda total do veículo automotor deve corresponder à “importância segurada”, ou seja, ao “valor máximo da indenização”, tem por base um linear raciocínio, a uma primeira vista persuasivo: sendo a perda total o maior prejuízo que o segurado pode sofrer, e tendo ele pago um prêmio correspondente ao valor máximo segurado, qualquer indenização a menor importaria lucro indevido, em locupletamento da instituição seguradora. (Revista Jurídica. RJ 261 JUL/1999 – DOUTRINA p.6)

Em linhas gerais, foi sob este fundamento que se pronunciou a egrégia 4ª Turma do STJ no REsp n° 176.890, conforme a respectiva ementa, já transcri ta.

Do voto então proferido pelo eminente Relator Ministro Cesar Rocha, consta o seguinte excerto:

“No caso, nada disso ocorreu, e o contrato de seguro firmado pelas partes deu ao bem perdido um valor determinado. Presume-se que esse valor foi aceito pela seguradora, tanto porque foi sobre esse valor que ela recebeu o prêmio, quanto também porque teve a seu dispor a oportunidade para reduzi -lo, e não o fez.”

Sublinhemos: “... foi sobre esse valor que ela recebeu o prêmio. “

5 Esta argumentação, como vemos, parte da equivocada premissa de que o prêmio é fixado tendo por base de cálculo o valor máximo constante da apólice.

Mas não é assim. O valor do prêmio não é calculado tendo em consideração um contrato de seguro, mas sim tendo em vista as leis dos grandes números.

Cumpre partamos do pressuposto incontroverso, inerente à própria estrutura do contrato de seguro, de que a Seguradora deve constituir um fundo, suprido pelos prêmios a serem pagos pelos segurados, fundo este suficiente para cobrir os sinistros que, tendo em vista cálculos objetivos de probabilidades, devam ocorrer no grupo segurado.

Consoante ARNOLDO WALD, “o seguro generalizado importa diluir sobre um grande número de pessoas os encargos decorrentes de uma infelicidade individual, socializando assim a responsabilidade, como salientou RENÉ SAVATIER nas suas

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Métamorphoses économiques et sociales du droit civil d'aujourd'hui (Paris, Dalloz, 1952, 1ª série, 2ª ed., pp. 247 e segs.)” (Obrigações e Contratos, Ed. RT, 9ª ed., 1990, n° 208.1).

O Professor ERNESTO TZIRULNIK, diretor da Seção Brasileira da Association Internationale de Droit des Assurances, em douto parecer, refere que

“a operação de seguro implica a organização de uma mutualidade, ou o agrupamento de um número mínimo de pessoas, submetidas a os mesmo riscos, cuja ocorrência e intensidade são suscetíveis de tratamento atuarial, ou previsão estatística segundo a lei dos grandes números, o que permite a repartição proporcional das perdas globais, resultantes dos sinistros, entre os seus componentes. A atividade do segurador consiste justamente na organização dessa mutualidade, segundo a exigência técnica de compensação do conjunto de sinistros previsíveis pela soma total das contribuições pagas pelos segurados.

Por aí se vê que o prêmio de seguro não representa, de modo algum, para o segurador, a contrapartida do risco assumido em determinado contrato, mas sim a cota-parte cabível ao segurado na repartição do montante global dos riscos que pesam sobre a mutualidade” (Revista dos Tribunais, 759/89) (grifamos). (Revista Jurídica. RJ 261 JUL/1999 – DOUTRINA p.7)

E PEDRO ALVIM: “Os riscos são aí considerados não isoladamente, mas no seu conjunto, isto é, não se leva em conta a situação de cada segurado, mas a massa de segurados que irá contribuir para a formação do fundo comum” (p. 295).

6. Vamos supor, pois, um grupo de cem riscos, de cem contratos de seguro facultativo de automóveis, com valor segurado (= valor máximo de indenização) de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) cada um, visando a cobrir por um ano eventuais prejuízos decorrentes de danos e de perda total do veículo.

Como será calculado o prêmio a ser pago pelos segurados?

Consoante os níveis médios de probabilidades (variáveis inclusive conforme o local - v.g., atualmente no Rio de Janeiro o risco é muito maior), digamos que no prazo ânuo irão acontecer:

a) três casos de danos parciais, importando indenização de R$ 1.000,00 a cada segurado;

b) dois casos de danos mais graves, com indenização de R$ 7.500,00 a cada segurado;

c) dois casos de furto, com perda total, indenizados pelo “valor de mercado” de R$ 15.000,00 a cada segurado.

7. Assim, apenas para indenizar os danos parciais mais leves, que somaram R$ 3.000,00, cada um dos cem segurados teria, em rateio, de arcar com um prêmio de R$ 30,00; apenas para ressarcir os danos mais graves, que somaram R$ 15.000,00, cada segurado

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teria de arcar com um prêmio de R$ 150,00; apenas para cobrir os dois casos de perda total, que somaram R$ 30.000,00, cada segurado teria de desembolsar um prêmio no valor de R$ 300,00. Teremos, pois, de início, a necessidade de cada segurado, no rateio, arcar com um prêmio de R$ 480,00.

Cumpre supor, no entanto, que a seguradora consiga receber “salvados” (partes ou peças recuperadas) num valor de R$ 10.000,00. Este valor irá a crédito do conjunto de segurados, importando, para cada um deles, uma diminuição em R$ 100,00 do valor do prêmio, assim reduzido a R$ 380,00.

De outra parte, existem várias despesas a cargo da seguradora. Assim a comissão do corretor de seguros (de participação legalmente obrigatória), que importa 20% sobre o valor “final” do prêmio; as despesas operacionais da própria seguradora, que importam 15% sobre o valor “final” dos prêmios; e, finalmente, o lucro da seguradora, no percentual de 5% sobre o valor “final” dos prêmios.

Em suma e ao final, o contrato deverá estabelecer o pagamento do prêmio de R$ 633,33, para o valor máximo de indenização de R$ 20.000,00 .

8. Como vimos, o montante do prêmio será calculado com vista a uma série de fatores, dos quais o “valor máximo segurado” é apenas um deles.

Por que, então, a menção ao “valor segurado” (rectius, ao “valor máximo” da indenização) no corpo da apólice?

Ocorre o seguinte: o valor segurado é válido relativamente a cada um dos possíveis acidentes ou perdas que o veículo venha a sofrer, durante o tempo de vigência do contrato. A cobertura da apólice é compreensiva, cobrindo também as perdas parciais, mesmo se sucessivas. (Revista Jurídica. RJ 261 JUL/1999 – DOUTRINA p.8)

Assim, se o veículo, estando previsto na apólice um valor máximo de indenização de R$ 20.000,00, é danificado em um primeiro acidente, do qual resulte a indenização de R$ 3.000,00, o veículo continuará segurado por R$ 20.000,00, e não pelo “saldo” de R$ 17.000,00, como alguns supõem...

Ocorre um segundo acidente, mais grave, cuja indenização importe R$ 10.000,00; mas o veículo prossegue segurado pelos R$ 20.000,00, e não por apenas R$ 7.000,00.

Mais tarde, digamos que o veículo venha a ser furtado. Seu “valor de mercado”, de R$ 15.000,00, será integralmente pago ao segurado, embora o total das indenizações já tenha passado a somar R$ 28.000,00!

Note-se, ainda, que para a manutenção do valor máximo, embora os sucessivos sinistros, as seguradoras não cobram prêmio adicional. E somente quando o último sinistro implicar indenização que, somada às anteriores, resulte em ultrapassagem do valor máximo, é que a apólice será cancelada.

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9. O incremento e a universalizarão do seguro de automóveis conduz a manifesta vantagem em favor dos pretendentes ao seguro, pois permite a cobrança de menores prêmios, ante a redução dos custos administrativos e a maior previsibilidade estatística dos riscos assumidos.

Também nesse sentido a imperiosa necessidade de que sejam respeitadas vigorosamente as cláusulas relativas à abrangência do seguro, as quais não se revestem do caráter de abusividade, sendo muito, ao contrário, ínsitas a essa modalidade contratual. As cláusulas e condições, assim estabelecidas, podem restringir e delimitar os riscos a serem assumidos; e uma clara delimitação é da essência do contrato, operando em prol da estabilidade financeira que interessa sobremodo a uma mutualidade viável, sob permanente garantia de solvabilidade.

Nesta limitação dos riscos inclui-se a cláusula referente ao “valor de mercado”, pela qual o segurador, como gestor do mutualismo, inclusive previne eventuais desvios de comportamento dos segurados, a fim de que estes perseverem temendo a superveniência dos riscos e comportando-se com cuidado, como se não houvessem contratado o seguro.

Veja-se, ainda, que o seguro de automóveis no Brasil assume posição de vanguarda, ao tomar como parâmetro para indenização ao segurado o do “valor do mercado”, que equivale ao preço de compra de outro veículo equivalente em marca, tempo de uso, etc., ao passo que em vários países adota-se como critério o preço de venda, ou seja, o preço que o segurado poderia obter se, em não ocorrendo o sinistro, houvesse ele alienado o automóvel. Nestes termos, se o segurado houvesse vendido o veículo teria obtido geralmente preço inferior ao que irá receber da seguradora em caso de perda total .

10. Não será demasia reiterar que se a indenização for paga pelo equivalente ao “valor segurado”, com desprezo ao “valor de mercado”, teremos fortíssimo indutor à fraude.

Haverá um evidente estimulo, máxime nestes tempos de crise, a que segurados menos honestos simplesmente “abandonem” seus automóveis, a fim de que sejam furtados; ou, com maior margem de lucro, os vendam às oficinas de “desmanche” (só em São Paulo existem, segundo se informa, mais de 1.100 oficinas autorizadas ao desmancho de veículos, e infinitas clandestinas); dias após, as sedizentes “vítimas” comunicam à polícia o desaparecimento do veículo e passam a exigir, da seguradora, um ressarcimento igual ao valor de aquisição. (Revista Jurídica. RJ 261 JUL/1999 – DOUTRINA p.9)

Com os elevados preços das peças no mercado de reposição, os “desmanches” têm sido os grandes beneficiados pelas ofertas dos fraudadores das seguradoras. Imaginemos alguém que adquiriu um auto novo, financiado por 36 meses no leasing, tendo feito o seguro pelo mesmo prazo e pagando o respectivo prêmio juntamente com as prestações do financiamento. Caso venha a sofrer perda total do veículo, mesmo no final das prestações, receberia quantia igual ao preço de um veículo novo. Essa orientação é indutora à fraude e ofensiva à própria natureza do contrato de seguro, que não objetiva o lucro, mas a reposição do patrimônio ao statu quo ante.

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A indenização pelo “valor de mercado”, apurado com a objetividade referida nos contratos de seguro, não só realiza o “princípio indenitário", como fará com que a fraude seja menos rentável e, pois, menos estimulada. Segundo a mídia (v.g., Jornal do Trânsito, São Paulo, ed. n° 97, de abril do corrente ano), “30% dos roubos de veículos pagos pelas seguradoras são indevidos”, afirmando-se que 12 mil a 14 mil veículos são furtados todos os meses em São Paulo. Na Grande São Paulo, em 1998, foram subtraídos, segundo dados da SSP/SP, 130.166 veículos, sendo 91.049 na Capital. Na cidade do Rio de Janeiro, em março deste ano, foram registradas 4.300 ocorrências entre furtos e roubos de veículos, tendo levantamento da Delegacia especializada concluído que 30% destes sinistros seriam, em verdade, fraudes contra as seguradoras, com a conivência das chamadas empresas “recuperadoras de veículos” (Jornal O Globo, ed. de 16.05.1999, p. 28).

As perdas parciais, como notório, resultam proporcionalmente mais onerosas às seguradoras que as perdas totais, pois sua reparação é feita por peças novas originais. Sabemos, também, que a reposição das peças, uma a uma, implica custo maior do que a reposição de um carro total. A conferência dos preços das peças demonstra tal disparate, até porque os incentivos fiscais de que gozam os veículos não são extensivos às suas peças de reposição. Assim, a reposição parcial de peças totaliza o correspondente a quase 5 vezes o valor do veículo zero quilômetro! Este fato faz com que a “indústria dos desmanches” resulte em altos lucros, e sejam pagos altos preços pelos veículos furtados ou vendidos fraudulentamente.

O aumento dos índices de “sinistralidade” (com escusas pelo neologismo) obrigará ao aumento do valor dos prêmios e, destarte, os segurados honestos e adimplentes, que são a imensa maioria, irão ter o custo de suas apólices majorado em função da conduta dolosa de uma minoria desonesta.

11. Impende tecermos breves comentários com respeito à Portaria n° 03, de 19.03.99, da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça, que em “aditamento ao elenco do art. 51 da Lei n° 8.078/90” (sic), resolveu divulgar “as seguintes cláusulas que, dentre outras, são nulas de pleno direito” (sic), incluindo as que “subtraiam ao consumidor, nos contratos de seguro, o recebimento de valor inferior ao contratado na apólice” (sic).

Parece-nos que a aludida Portaria magis dixit quam voluit, mesmo porque o art. 51 do CDC é suscetível de ser “aditado” apenas por outra lei e, ainda, porque a nulidade pleno iure de uma cláusula contratual somente poderá ser declarada por lei ou, em casos concretos, por decisão judicial de mérito. Cuida, isto sim, a Portaria de mero regramento interno, destinado a orientar as repartições subordinadas ao aludido Ministério e a dar publicidade quanto à orientação abonada pelos seus órgão superiores. Só isso. (Revista Jurídica. RJ 261 JUL/1999 – DOUTRINA p.10)

Duas observações: a) a expressão “subtraiam ao consumidor” deve ler-se “imponham ao consumidor”; b) em segundo lugar, o “preço de mercado” traduz exatamente o valor “contratado na apólice”, já que a apó1ice é o instrumento do contrato de seguro do qual consta a cláusula de pagamento pelo “valor de mercado”.

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12. Diga-se que, consultada a SUSEP, o respectivo Procurador-Geral, Dr. André Leal Faoro, emitiu parecer, datado de 5 de abril do ano corrente, afirmando continuar em plena vigência a Circular SUSEP n° 18, de 20 de abril de 1983, que aprovou a cláusula contratual no sentido de que, nos casos de perda total do veículo usado, “a indenização limitar-se-á ao valor médio de mercado na data da liquidação, considerando-se tipo, ano de fabricação e estado de conservação do veiculo...”. Alude, outrossim, a que, no caso específico do contrato de seguro de automóveis, “a importância segurada não é prefixada e sim estimada no momento da contratação, sendo, por esta razão, o limite máximo da indenização ".

Disse, mais, que tal posicionamento encontra base na melhor doutrina e em diversos arestos do Superior Tribunal de Justiça, cuja orientação “ao contrário do que foi afirmado no despacho do Sr. Secretário de Direito Econômico, está longe de estar pacificada”, pois aquela alta Corte encontra -se dividida: uma das Turmas da Seção de Direito Privado adota o “preço de mercado”, e a outra proferiu decisões pelo “valor segurado”. E concluiu o parecerista que:

“O princípio consagrado pela Circular n° 18/83, pela doutrina e jurisprudência citadas, encontra eco no art. 1.438 do Código Civil Brasileiro, que proíbe a contratação de seguro em valor superior ao valor do bem, impedindo assim a obtenção de lucro na hipótese de perda total.”

A indenização ao segurado, calculada com base no efetivo prejuízo pelo mesmo sofrido, é conseqüência de princípio basilar do direito securitário, o princípio indenitário, a cujo respeito impende discorrer, sempre de forma sinóptica.

III - O SEGURO DE COISAS TEM NATUREZA ESSENCIALMENTE “INDENIZATÓRIA”, NÃO AUTORIZANDO A CAPTAÇÃO DE LUCROS

Código Civil:

“Art. 1.432. Considera-se contrato de seguro aquele pelo qual uma das partes se obriga para com a outra, mediante a paga de um prêmio, a indenizá-la do prejuízo resultante dos riscos futuros, previstos no contrato.”

13. Em notável artigo de doutrina, RICARDO BECHARA SANTOS (Revista do IRB, abril/junho 1996) salienta que o seguro de coisas não pode ter caráter especulativo: “O seguro é de damnunt vitando, e não de lucro capiendo, respeitadas, evidentemente, as cláusulas e condições contratuais” (sic). Se assim não fora, e se o segurador devesse sempre ressarcir pelo valor máximo indicado pelo segurado, então, face à desvalorização do bem objeto do seguro, pelo tempo ou pelo uso, “decerto que iria ele sempre torcer para que o sinistro acontecesse”. (Revista Jurídica. RJ 261 JUL/1999 – DOUTRINA p.11)

Diferente ocorre, por certo, no seguro de vida, no qual o valor segurado é prefixado, não implica indenização, e portanto será sempre pago integralmente ao beneficiário.

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Vale observar que é o segurado, ou o seu corretor (cuja é legalmente obrigatória), que quando da pactuação do contrato de seguro de coisa atribuem valor ao bem, in casu ao veículo automotor; a vistoria efetuada por preposto da empresa destina-se a averiguar a respeito da existência do bem e suas características, sem que se discuta, via de regra, sobre o montante máximo segurado (em geral correspondente à quantia pela qual foi o bem adquirido).

14. O automóvel, como notório, pelo simples fato de sua utilização e da passagem do tempo sofre paulatina desvalorização, com a queda de sua cotação média, de seu preço no mercado especializado (assim não ocorre apenas quando aquela marca de veículo, com aquelas características, fica em falta no mercado, podendo então o veículo usado ter até um “ágio” em relação aos preços de tabela) .

O automóvel hoje adquirido por R$ 20.000,00 e com seguro contratado até a mesma quantia, daqui a seis meses, ou a dez meses, normalmente valerá bem menos do que isso. Caso o segurado venha a sofrer sua perda total (por furto, por acidente), qual o exato prejuízo por ele sofrido?

Se o veículo já agora vale apenas R$ 15.000,00, se não será alienado no mercado por quantia superior, torna-se claro, ostenta-se evidente que a diminuição no patrimônio da vítima do sinistro foi de apenas R$ 15.000,00, não de quantia superior!

É necessário, parece-nos imperioso resgatar o princípio nuclear do contrato de seguros de danos, o chamado princípio indenizatório ou indenitário.

A atividade do segurador, como bem expõe FÁBIO K. COMPARATO (Comentário, in RDM, n° 7, ano XI, Ed. RT, Nova Série, 1972, pp. 108-110), consiste exatamente em organizar uma mutualidade (agrupamento de pessoas sujeitas ao mesmo risco), segundo as exigências atuariais de compensação do conjunto de sinistros previsíveis pela soma total das contribuições a serem pagas pelos segurados. Consoante o magistério de FERRI, “a relação entre prestação e contraprestação não se coloca com referência a um seguro isolado, mas em relação à massa dos seguros daquele tipo realizados pela empresa” (Manuale de Diritto Commerciale, 2ª ed., p. 720).

15. PEDRO ALVIM, conceituadíssimo estudioso da matéria, assim se manifestou:

“Quando a importância segurada, em vez de ser prefixada, é apenas estimada pelo segurado, o que ocorre em vários ramos, como, por exemplo, automóvel, incêndio e responsabilidade civil, constitui o limite máximo de responsabilidade do segurador, desde que não supere o valor do bem. Não fica ele obrigado ao pagamento daquela quantia, mas até aquela quantia, dependendo de prova dos prejuízos efetivos. É que não houve uma avaliação a priori, mas somente uma estimativa unilateral do segurado” (Contrato de Seguro, Forense, ed. 1999, n° 246, p. 307) (grifamos).

Na mesma obra (pp. 303 e 304), o renomado jurista refere-se ainda ao magistério de PICARD ET BESSON:

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“Dans les assurances de dommages, la prestation de ltassureur a pour mesure nécessaire le domma~e efféctivement cubi Ar l'agcilré. (Revista Jurídica. RJ 261 JUL/1999 – DOUTRINA p.12)

‘La limite essentielle de ltobligation de ltassureur est le dommage réellement subi par l'assuré: elle découle directement du principe en vertu duquel l'assurance de dommages est un contrai d'indemnité. Ce príncipe, consacré expressément par ltarticle 28 de la loi de 1930, repose sur des motins d'ordre public'. Si la loi ne limitait pas au dommage réel ltindemnité, I'assurance deviendrait dangereuse au point de vu social, cá, d'opération de sec urité , el le se trans formerai t en opérati on de spécul ali on , et sortout e l l e inciterait les intéressés à provoquer volontairement le sinistro, pour réaliser un bénéfice (Traité Général des Assurances Terrestres, Paris, 1938).

Sustenta PEDRO ALVIM, para mostrar a obviedade do princípio indenitário, que de acordo com as condições normais do seguro de dano, o segurado não poderá receber mais do que perdeu. A indenização não ultrapassa o valor dos prejuízos aparados. O segurado não pode, sob o pretexto de ter pago o prêmio, receber o valor integral da apólice, pretensão que se manifesta, geralmente, quando os prejuízos são totais.

Realmente, se o sinistro resultar em lucro para o segurado, a própria instituição do seguro estará comprometida, pois o risco deixará de ser uma eventualidade temida para tornar-se um estímulo ao enriquecimento do segurado.

16. MIGUEL MARIA DE SERPA LOPES, após ampla perquirição doutrinária e com remissão a M. I. CARVALHO DE MENDONÇA, afirmou “a natureza ressarcitória do contrato de seguro de coisas”, ao contrário do que sucede no contrato de seguro de vida, onde tal natureza com freqüência não está presente. Em suma, no seguro de bens, a idéia de indenização é absoluta (Curso de Direito Civil, Ed. Freitas Bastos, vol. IV, 1959, n° 658, p. 360).

Tal princípio é, a seguir, melhor explicitado:

“Em se tratando de seguros pessoais, não há que indagar a proporção do prejuízo sofrido. A indenização é devida de acordo com o valor fixado na apólice. Diferente é o que sucede no seguro de prejuízos ou no de coisas, pois, nesse caso, a soma indicada na apólice serve apenas para fixar o limite máximo de responsabilidade do segurador” (grifamos).

No azo, o autor refere-se ao art. 1.462 do Código Civil e à remissão, no mesmo contida, ao art. 1.438 do mesmo Código. E chega à conclusão de que:

“Conseqüentemente, a estimativa constante da apólice não tem um valor absoluto, senão relativo. Fica subordinado ao valor real do objeto segurado, além do cálculo proporcional do prejuízo sofrido. Assim sendo, o segurador pode trazer a prova de que o valor do seguro excede ao da coisa, sendo certo que, se além dessa prova, aduzir mais a de ter o segurado obrado de má-fé...” (idem, n° 687, pp. 389-390).

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17. E o eminentíssimo CLÓVIS BEVILAQUA, ao comentar o art. 1.458 do Código Civil, reforça o caráter indenizatório inerente ao seguro de coisa, verbis:

“2. A obrigação do segurador é pagar o prejuízo sofrido pelo segurado. Nos seguros pessoais, esse prejuízo se considera igual à soma fixada na apólice, porque a vida e as qualidades humanas são inapreciáveis. Mas, nos seguros de bens materiais, a indenização nem sempre corresponde, exatamente, à soma declarada no contrato, porque, não sendo o seguro um contrato lucrativo e, sim, de indenização, cumpre determina r qual o prejuízo que, realmente, sofreu o segurado. A soma declarada na apólice indica o máximo até o qual responde o segurador. É essa a operação que se denomina liquidação do prejuízo” (Código Civil dos Estados Unidos do Brasil, Ed. Francisco Alves, vol. V, 5ª ed., 1943, com atualização da ortografia, pp. 216-217) (grifamos). (Revista Jurídica. RJ 261 JUL/1999 – DOUTRINA p.13)

IV - AINDA O PRINCÍPIO INDENITÁRIO

O contrato de seguro é bilateral, oneroso, aleatório. É bilateral porquanto as partes, ao celebrarem o contrato, ajustam direitos e obrigações recíprocos; é oneroso, porque as partes, ao firmarem o contrato, decerto que não o fizeram com o intuito de estabelecer liberalidades uma com a outra; é aleatório, justamente porque, no momento da realização do contrato, as partes não têm certeza alguma sobre quem, ao final, terá vantagem ou prejuízo.

18. O caráter intrinsecamente ressarcitório do seguro de coisas resulta igualmente do magistério de PONTES DE MIRANDA:

No seguro de coisas, o que se leva em consideração é o valor do bem, é a diminuição ou perda desse valor, a integridade do patrimônio. Daí a necessidade de se determinar, precisamente, o valor segurável, para que se diga qual o valor segurado, a fim de que, no momento do evento danoso, se indenize, dentro do valor segurado, o que sofreu de dano o bem, ou, noutros termos, o que concretamente perdeu o patrimônio” (Tratado de Direito Privado, t. XLV, Ed. Borsoi, 1964, § 4.918, n.º 1, p. 309) (grifamos).

Dever maior do segurador é o de indenizar “em adimplemento do contrato, porque contraprestou a segurança”. Todavia, “o que o segurado presta não pode exceder o dano sofrido pelo beneficiário, seja o contraente, seja outrem” (idem, § 4.925, n° 1) (grifamos).

Também nesse sentido o ensinamento de SÉRGIO CAVALIERI FILHO:

“Há um princípio que domina todos os seguros de dano, qualquer que seja sua modalidade de cobertura: o segurado não pode lucrar com o evento danoso, não pode tirar proveito de um sinistro. A indenização deve ser necessária apenas para repor o dano sofrido, restabelecer a situação anterior à ocorrência do sinistro.

Qualquer pagamento a mais, além de caracterizar enriquecimento sem causa, atuaria como estímulo à fraude ou especulação, razão pela qual a legislação de todos os países fulmina de nulidade o seguro de valor superior ao bem.

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(Omissis)

Essa é uma questão de difícil compreensão para o público em geral, e que enseja constantes demandas. O segurado insiste em receber o valor estabelecido na apólice; mesmo que o valor de mercado do bem segurado seja inferior, como presentemente tem ocorrido com os veículos usados, que estão em baixa. Mas, pelo fato de ter pago um determinado prêmio, não quer dizer que o segurado necessariamente receberá uma exata contraprestação. O contrato de seguro é aleatório, de sorte que o segurado, não obstante o pagamento do prêmio, pode até nada receber se não ocorrer o sinistro, ou, ocorrendo o sinistro com perda parcial, receber menos do que a indenização prevista; somente no caso de perda total receberá o ‘valor de mercado’ do bem, ou o valor da apólice, se menor. Se o valor de mercado adotado pelo segurador não corresponder à realidade, o segurado pode demonstrar isso através de todos os meios de prova admitidos em juízo” (Programa de Responsabilidade Civil, Malheiros Ed., 1996, pp. 316-317) (grifamos). (Revista Jurídica. RJ 261 JUL/1999 – DOUTRINA p.14)

E nisso não diverge a doutrina estrangeira:

“La suma asegurada tiene por objeto ficar la responsabilidad máximum del asegurador y no crea la presunción de que los bienes asegurados tienen el valor que indica la suma asegurada. La funciên es estimativa, la de determinar exclusivamente un limite máximo hasta el cual responde el asegurador, pero no de que los bienes asegurados tienen el valor coincidente com la suma asegurada” (Prof. Dr. AMADEU SOLER ALEU, El Nuevo Contrato de Seguro, Ed. Astrea, B. Aires, 1969).

A regra, portanto, somente não se aplicará, como alude o autor mencionado, nas hipóteses de vigência de cláusula de “valor tasado”.

19. Ora, nos casos de seguro facultativo de veículos automotores, o contrato-tipo afasta expressamente a possibilidade de estarmos diante de uma “apólice de seguro estimada” (a apólice de “valor tasado” do direito argentino), modalidade contratual esta na qual é proibida ao segurador qualquer ulterior discussão sobre o valor segurado ou do bem, pois nesses casos “pré-elimina-se qualquer avaliação posterior, qualquer verificação ‘a posteriori’, porque se fixou, em acordo, o valor do objeto de arte, ou de coleção, ou de pré-história, ou de história, ou o valor estimativo” (PONTES, ibidem, § 4.930, n° 5, in fine).

A ressalva supra, todavia, a toda evidência, não se aplica aos casos em que incide a cláusula, absolutamente Incita, que estipula que a indenização relativa à perda total do bem tenha por base o seu valor de mercado, ou seja, o seu valor real.

As cláusulas contratuais que prevêem a indenização pelo “valor de mercado” partem do princípio basilar, que inspira todo o sistema: o seguro garante uma indenização, tutela a reposição do patrimônio do segurado ao statu quo ante, mas não outorga ao segurado nenhuma possibilidade de lucrar com o sinistro.

20. A empresa seguradora, perante o conjunto de seus segurados e a fim de preservar sua solvabilidade, assume a responsabilidade e o dever de zelar pela preservação da

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estabilidade do fundo comum; assim, de uma parte adotará providências a fim de permitir ao segurado, vítima de um sinistro, a imediata reconstituição do status quo ante e, de outra parte, procurará não desfalcar o fundo administrado nem lhe impor gravame maior do que o exatamente devido.

Cumpre portanto distinguir, nos seguros de coisas, os limites da garantia da medida da indenização:

1) os limites da garantia constam da apólice sob o título de “importância garantida” ou “importância segurada”; servem como um dos fatores para o cálculo do prêmio, resultante de completa verificação atuarial dos riscos assumidos; (Revista Jurídica. RJ 261 JUL/1999 – DOUTRINA p.15)

2) a medida da indenização, logicamente limitada pela “medida da garantia”, obtém-se com maior facilidade e é, nos seguros de danos, o próprio valor do prejuízo sofrido pelo segurado.

21. Garantir ao segurado uma indenização não inferior ao dano efetivo materializa o que se denomina princípio indenizatório, fundamental aos seguros de danos.

A respeito, vale reiterar o escólio de PEDRO ALVIM de que o segurado não pode receber mais do que aquilo que perdeu. A ninguém é lícito lucrar com o sinistro! O pagamento de qualquer quantia superior, “mesmo que houvesse sido pago o prêmio, constante da prestação do segurador, desfiguraria o contrato de seguro. Seria uma especulação própria do contrato de jogo ou aposta” (ob. cit., n° 91, p. 115).

Se o segurado puder tirar proveito do sinistro, recebendo quantia superior à dos prejuízos que realmente sofreu, “a instituição do seguro estará, então, comprometida, pois o risco deixará de ser uma eventualidade temida para tornar-se um estímulo ao enriquecimento do segurado” (p. 303) (grifamos) .

O princípio fundamental do direito securitário, em matéria de seguros de danos, é portanto a função indenizatória, como dispõe o artigo 1.432 do Código Civil.

22. Exatamente por este motivo a indenização pode fazer-se quer em dinheiro, quer pela alternativa de reposição da coisa (no caso, o veículo sinistrado) à situação anterior (quando de danos não-totais), ou pela entrega ao segurado de outro veículo equivalente àquele que sofreu perda total.

Na lição de DIDIER LLULLES, com base no direito da Província de Quebec:

“En principe, le paiement se fait en argent, généralement au moyen d'un chèque. Le paiement peut se faire en nature (cf. C.c.Q., art. 1. 553) et consister en la reparatión, la reconstructión ou le remplacement de la chose, avec droit pour l'assureur de disposer du bien ou de la partie du bien sinistré - le 'sauvetage' (C.c.Q., art. 2.494)” (Précis de Assurances Terrestres, Montreal, Ed. Thémis, 1994, p. 288) (grifamos).

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Também assim ALFREDO MANES:

“Las indemnizaciones en especie se dan dentro del seguro de bienes, y pueden consistir en la reparación de un objeto deteriorado, por ejemplo, de un automóvil después de un choque, ou en su reposición, como cuando se trata, v.gr., de una bicicleta robada o de un cristal roto...” (Teoria General del Seguro, Madrid, Ed. Logos, 1930, p. 296) (grifamos).

E no Brasil, dentre outros, o venerando magistério de CLÓVIS:

“Embora, porém, a regra seja o pagamento em dinheiro, a apólice poderá estipular que, no caso de sobrevir o dano ou a perda total, o ressarcimento se opere pela reparação ou reconstrução da coisa segura” (ob. cit., Ed. Rio, ed. histórica, vol. 11, p. 586) (grifamos) ..

23. Decorre daí, portanto, como refere ERNESTO TZIRULNIK em abalizado parecer,

“...a previsão de pagamento de indenização em dinheiro, diante do caráter liberatório da moeda, que propicia a reposição do bem perdido por outro de iguais conformações, reparando-se a perda, e tornando indene o segurado. (Revista Jurídica. RJ 261 JUL/1999 – DOUTRINA p.16)

Portanto, é a reposição que se tem em mira, e não o ato da entrega de papel-moeda em si mesmo, razão pela qual no mundo inteiro é admitida e praticada, ao longo dos séculos, a denominada ‘cláusula de reposição’.”

É neste sentido, aliás, o texto do art. 1.458 do Código Civil, que confere à indenização natureza nitidamente reparatória, caráter este que, data vênia, veio a ser contrariado pelo v. aresto da eg. 4ª Turma, ora embargado. Note-se a advertência de THEOTONIO NEGRÃO: “O prejuízo, não a importância pela qual a coisa foi segurada” (glosa n° 1 ao art. 1.458).

E o Prof. GIORGIO PIETRO VIANELLO, em monografia dedicada ao estudo do controle público sobre os seguros privados, ao tratar dos requisitos e medidas da condenação, mencionou que

“L'indennizzo non deve costituire occasioni di lucro per l'assicurato (cosiddetto 'principio indenoitario')” (Assicurazione Privata e Controllo Pubblico - profili istituzionali di diritto dell’impresa e del contratto di assicurazione, Milano, Giuffrè, 1989, p. 133).

V- DO PAGAMENTO DA INDENIZAÇÃO COM BASE NO “VALOR MÉDIO DE MERCADO”

24. Como já vimos, a relação securitária regula-se pelo “princípio indenitário”, pelo qual os contratos de seguros não se destinam a propiciar vantagens

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patrimoniais ao segurado, mas sim, e exclusivamente, a garantir ao segurado o ressarcimento das perdas que efetivamente haja sofrido.

A eventual “lucratividade”, decorrente do recebimento de “indenização” em valor superior ao do prejuízo, seria inclusive, como já foi dito, um forte estimulo para a fraude ou a displicência, na medida em que se mostraria economicamente mais interessante para o segurado “facilitar” o sinistro (v.g., deixando o automóvel em local onde seja mais suscetível de furto) do que zelar pelo bem, mantendo as normais condições de segurança.

Em última análise, se um bem - um veículo, digamos - está segurado pela quantia “x” (porque valia “x” ao tempo em que foi adquirido e foi segurado), mas, posteriormente, pelo uso e pela passagem do tempo, passou a valer (e o valor de um bem é dado por seu “preço de mercado”) apenas “x - y”, não será contratualmente cabível ao segurado exigir aquele plus, exigir vantagem decorrente do infortúnio. Se permitida tal conduta, estariam rompidos os pressupostos atuariais básicos ao contrato securitário, imputando-se ao “fundo comum”, gerido pela Seguradora, um gravame inaceitável, ante a inevitável e sempre crescente sucessão de casos e de fraudes.

25. Por isso, diga-se, o art. 1.462 do Código Civil contém a expressa ressalva: “...sem perder por isso o direito que lhe asseguram os arts. 1.438 e 1.439”. E exatamente esta ressalva do art. 1.438 está contida na previsão contratual da indenização pelo valor médio do mercado, ressalva que foi feita valer nela ora embargante por ocasião da liquidação do sinistro.

Na doutrina italiana, o Prof. AURELIO DONATO CANDIAN sublinhou a absoluta necessidade de preservar, em seu rigor, o princípio indenizatório:

“Il principio indennitario, quindi, previene la degenerazione della funzione del contratto, ipotizzabile nel caso in cui esso, invece di essere strumento di reparazione della lesione di interessi patrimoniali, provochi l'eliminazione delltinteresse delltassicurato a che la lesione no si verifichi a addirittura il sorgere di un suo interesse al verificarsi della lesione stessa” (Responsabilità civile e assicurazione, Milano, EGEA, 1993, p. 113). (Revista Jurídica. RJ 261 JUL/1999 – DOUTRINA p.17)

Na doutrina espanhola, citemos o Prof. LUIS BENITEZ DE LUGO REYMUNDO:

“El seguro no puede ser nunca una ocasión de beneficio para el asegurado, sino una indemnización de las pérdidas materiales y reales que haja experimentado; por consiguiente, las sumas aseguradas, las primas pagadas y las designaciones y evaluaciones consignadas en la póliza no pueden ser aducidas por el asegurado como prueba o reconocimiento de la existencia del valor de los objetos a segurados, sea en acto del seguro o en el momento del incendio” (Tratado de Seguros, Madrid, Ed. Reus, 1955, vol. II, p. 7) (grifamos).

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26. A questão da correspondência entre o valor da indenização e o valor dos prêmios encontra-se também estudada, com percuciência, em parecer do Prof. ERNESTO TZIRULNIK, ao qual aqui, e em outros pontos, rogamos vênia para nos reportarmos.

Cumpre, no entanto, novamente ressaltar que a fixação de um valor “absolutamente determinado”, a ser sempre e necessariamente pago no caso de perda total do bem segurado, é excepcional; limita-se, geralmente, àqueles casos de bens que não desvalorizam, v.g. quando é objeto do seguro um bem de valor histórico, uma obra de arte, etc; então, sim, incidirá a rigor o disposto no art. 1.462 do Código Civil, parte inicial.

27. Mas esse não é o caso concreto, inclusive considerando as “condições gerais” previstas nos contratos de seguro facultativo de veículo.

Como bem advertiu o clássico CARVALHO SANTOS, aliás escrevendo ao tempo em que o uso do automóvel limitava-se a pequeníssima parcela da população:

“Com relação à avaliação contida na apólice, convém, desde logo, esclarecer que não tem ela influência decisiva, principalmente quando se trata de coisas suscetíveis de sofrerem modificações, alterações em seu valor, mesmo porque ressalvado fica à Companhia o direito de, em qualquer hipótese, impugnar essa avaliação, por não traduzir a verdade na ocasião da verificação do sinistro. Por exemplo, se o seguro tem por objeto bens móveis, que geralmente se depreciam com o uso, claro que a Companhia poderá impugnar a avaliação constante da apólice. demonstrando que, por ocasião do sinistro, estavam estes desvalorizados” (Código Civil Brasileiro Interpretado, Freitas Bastos, 1981, vol. XIX, pp. 357-358).

Cuidando-se de “valor estimado”, tal como ocorre no presente contrato, vale a lição de GIANGUIDO SACALFI:

“La cosa deve essere valutata com riferimento al momento in cui si verifica il sinistro. Anche esta regola é espresione del principio indennitario. Verificato il sinistro, I'assicuratore per determinare l'indennità deve atenerse ad essa. Questo significa che la dichiarazione del valore compiuta dall'assicurato nella fase della stipulazione non puó essere da lui invocata per stabilire l'ammontare della indennità (art. 1.908, 3ª comma.c.c)...” (I Contratti di Assicurazione -L'Assicurazione Danni, Torino, Ed. UTET, 1991, p. 203) (grifamos). (Revista Jurídica. RJ 261 JUL/1999 – DOUTRINA p.18)

VI - ORIENTAÇÃO DOS PRETÓRIOS

28. Nossas Cortes têm decidido, na mor parte dos casos, em consonância com os princípios aqui expostos. Apenas alguns, dentre muitíssimos exemplos:

Superior Tribunal de Justiça

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Além dos dois arestos já mencionados como divergentes, a eg. 3a Turma do STJ manteve essa orientação no REsp 155.595 - SC, Rel. o eminente Ministro Eduardo Ribeiro, em que foi recorrente a ora Suplicante e recorrido Roberto Benecke, sob a seguinte ementa:

“SEGURO DE VEÍCULO - VALOR DA INDENIZAÇÃO.

O valor pelo qual o bem foi segurado é apenas o limite máximo a ser pago, podendo o contrato estipular o dever de indenizar pelo preço de mercado do bem à época do furto ou da perda total. “

Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro

1. “SEGURO DE AUTOMÓVEL - VEÍCULO ROUBADO - O valor da indenização nesses casos, em razão do contrato, é a média do mercado na data do seu pagamento. A importância da apólice sobre a qual é calculado o prêmio representa o maior valor a que pode chegar a indenização e estabelece, portanto, o limite da responsabilidade da seguradora. Os contratos de seguro são supervisionados pelo Poder Público e, se livremente assinados, obrigam os contratantes” (AC n° 2.276/88, 8ª Câmara Cível do TJRJ, v.u., Rel. Des. Carpena Amorin, in DORJ de 27.10.88, p. 15).

“SEGURO VOLUNTÁRIO DE COISA - FURTO/ROUBO DE AUTOMÓVEL- VALOR DA INDENIZAÇÃO - No caso de furto ou roubo de automóvel, sinistro perfeitamente previsto na apólice, o valor da indenização não é o nesta previsto, mas o preço médio de mercado do veículo na data do evento, criteriosamente apurado, ex vi da natureza ressarcitória do seguro e do critério do art. 1.458 do Código Civil” (EIAC n° 902/97, 5° Grupo de Câmaras Cíveis, p.m.v., Rel. Desig. Des. Laerson Mauro, J. 10.02.98).

Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina

“ACIDENTE DE TRÂNSITO - DESTRUIÇÃO TOTAL DO VEÍCULO - INDENIZAÇÃO - Em face da destruição total do veículo em acidente de trânsito, a reparação dos danos não pode ser acima do valor de venda do mesmo”(AC 22802, 1ª Câm. Cív. do TJSC, unânime, Rel. Des. João Martins, in BJA n° 34, de 10.12.85, verbete n° 105190, p. 356).

Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

“Com o furto do veículo segurado, a Seguradora quitou o valor médio do veículo. Quer o apelante haver a diferença entre esse valor e aquele consignado na apólice. Sem razão, entretanto. A cláusula 8.3.2 das considerações gerais da apólice de seguro estabelece que, na hipótese de perda total do veículo, a indenização limitar-se-á ao valor médio do mercado na data da liquidação do sinistro. (...) Pagando o valor médio de mercado do veículo, não se pode dizer que houve diminuição patrimonial, eis que o prejuízo econômico decorrente do risco assumido foi compensado, impedindo ademais o indevido enriquecimento do segurado.

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Desta forma, o valor quitado emana do pactuado. Limitando a apó1ice os riscos, não responderá por outros o segurador (art. 1.460 do CC), respondendo este somente pelo valor nela indicado.

Assim, estabelecida na apólice a forma de liquidação do seguro, outro não poderá ser o valor exigível da seguradora, prevalecendo assim a vontade dos contratantes” (AC n° 255.526.1/0, TJSP, 6ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Testa Marchi, 16.05.96). (Revista Jurídica. RJ 261 JUL/1999 – DOUTRINA p.19)

1° Tribunal de Alçada Civil de São Paulo

“Seguro - Responsabilidade civil - Acidente de trânsito - Perda total no veículo - Limitação ao valor médio na data da liquidação do sinistro - Recurso desprovido” (Apelação n° 477.639-8, TACivSP, 8ª Câmara, Rel. Juiz Toledo Silva, 19.02.92).

Tribunal de Alçada de Minas Gerais

“INDENIZACÃO - SEGURO - VEÍCULO COM PERDA TOTAL - RESSARCIMENTO POR VALOR DIVERSO DA APÓLICE - VALIDADE RECONHECIDA - RECURSO NÃO-PROVIDO - A importância segurada, determinada na apólice, corresponde ao valor máximo a ser pago pelo bem. Havendo destruição total do veículo em caso de acidente de trânsito, a reparação dos danos não pode ser acima do valor de venda do mesmo, daí não poder o segurado, sob o pretexto de ter pago o prêmio, receber o valor integral da apó1ice” (AC n° 253.726, 7ª Câmara Cível, Rel. Juiz Lauro Bracarense, j. 21.05.98). (Revista Jurídica. RJ 261 JUL/1999 – DOUTRINA p.20)

ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE COISA IMÓVEL

Ernane Fidélis dos Santos

Juiz do Tribunal de Alçada do Estado de Minas Gerais

SUMÁRIO: 1 - Transferência de bem imóvel em forma de alienação fiduciária; 2 - Contrato, forma e transcrição; 3 - Resolução da propriedade; retorno ao patrimônio do devedor fiduciante. Quitação e sua negativa, ação do devedor; 4 - Inadimplência do devedor. Consolidação da propriedade no credor fiduciário. Previsão de exclusivo procedimento administrativo e sua inconstitucionalidade. Procedimento jurisdicional imprescindível; 5 - Venda do bem. Registro e leilão público, obrigatoriedade. Perdas e danos e multa pelo atraso; 6 - Leilão público: forma, realização e requisitos. Primeiro e segundo leilões. Frustração da venda, consolidação da propriedade e quitação da dívida; 7 - Acertamento final; procedimentos. 8 - Reintegração de posse do bem ao credor fiduciário, sucessores e adquirente; leilões extrajudicial e judicial, prazo de desocupação; 9 - Pagamento pelo fiador e terceiro interessado, sub-rogação; 10 - Falência ou insolvência do devedor fiduciante; 11 - Possibilidade de arbitragem. 12 - Cessão do crédito pelo credor fiduciário e de direitos pelo devedor fiduciante.

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1. Foi introduzida pela Lei 9.514, de 20.11.97 (arts. 22/33), a alienação fiduciária de coisa im6vel para garantia de crédito.

As características básicas do instituto são as mesmas referentes às coisas móveis.

O contrato é livre para quaisquer pessoas, naturais ou jurídicas, e consiste na transferência, em garantia, pelo devedor ao credor, da propriedade resolúvel do bem, tornando-se o primeiro (fiduciante) possuidor direto, e o segundo (fiduciário), possuidor indireto (arts. 22 e 23).

2. Para a perfeição da transferência e, em conseqüência, da garantia, o contrato, de acordo com o valor do bem, quando superior ao previsto no art. 134, II, do CC, deverá, em princípio, ser lavrado por escritura pública, atendendo aos requisitos do art. 24 da L. 9.514, com a devida transcrição no Registro de Imóveis (art. 23 da L. 9.514 c.c os arts. 167, I, e 35 da L. 6.015/73 - LRP -, com o acréscimo do art. 40 da mesma L. 9.514), podendo, no entanto, ser por instrumento particular, quando o beneficiário final da operação, isto é, o devedor fiduciante, não for pessoa jurídica (art. 34).

3. A propriedade retorna ao devedor quando a dívida e os respectivos encargos forem integralmente pagos, comprovado tal pagamento pela quitação que o credor fiduciário deverá fornecer no prazo de 30 dias, sob pena de multa de 0,5% ou fração mensal sobre o valor do contrato, cancelando-se a transferência no Registro de Imóveis (art. 25 e §§ 1° e 2°). (Revista Jurídica. RJ 261 JUL/1999 – DOUTRINA p.21)

A negativa de quitação permite ao devedor o ingresso em juízo para que, provado o pagamento, o credor seja compelido à prática do ato em prazo determinado, sob pena de a sentença adquirir valor de declaração de vontade (art. 642 do CPC), sem prejuízo da multa respectiva e perdas e danos.

4. A conseqüência específica da inadimplência do devedor fiduciante é a consolidação da propriedade no credor fiduciário (art. 26, caput).

Foi previsto, para efeito da referida consolidação, procedimento exclusivamente administrativo. A requerimento do credor fiduciário, o oficial do Registro de Imóveis deve proceder à notificação do devedor fiduciante, depois do prazo de carência para a intimação, conforme previsto no contrato (art. 26, § 3°), para, no prazo de 15 dias, fazer o devido pagamento de prestações vencidas e as que vencerem, com todos os encargos, inclusive condominiais, tributos e despesas da cobrança (art. 26, § 1°).

Permite-se ao oficial do Registro encarregar o oficial do Cartório de Títulos e Documentos de fazê-lo, ou, então, ele próprio o fará, pelo correio, com aviso de recebimento.

Não sendo encontrado o devedor, a intimação poderá ser feita por edital, com publicação por 03 dias, na forma do art. 26, § 4°.

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Atendendo à notificação, o devedor poderá efetuar o pagamento do que lhe está sendo cobrado, convalescendo o contrato de alienação fiduciária, inclusive com sua extinção e resolução da transferência, quando for o caso (art. 26, § 5°), cumprindo ao oficial, no prazo de 03 dias, fazer o pagamento ao credor (art. 26, § 6°).

Nos termos do § 7° do mesmo art. 26, tra nscorrido o prazo, sem a purgação da mora, o oficial competente do Registro de Imóveis certificaria o fato, e, recolhido pelo credor fiduciante o imposto de transmissão, se já não se pagou, faria o devido registro na matrícula respectiva, declarando consolidada a propriedade no credor fiduciário. É evidente que tal preceito está eivado de inconstitucionalidade, já que atribui à autoridade administrativa função eminentemente jurisdicional. As conseqüências contratuais e a consolidação da propriedade em desacordo, ainda que eventuais, configuram autêntico litígio, cuja solução, se não houver a autocomposição, é da competência exclusiva do Poder Judiciário (art. 5°, XXXV, da CF), feridos ainda os princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa (incs. LIV e LV).

Não sendo lícito, pois, a decisão exclusiva do oficial do Registro de Imóveis, cumpridos os tramites da constituição em mora, que, evidentemente, poderão ser substituídos pelos da notificação comum, outro caminho não resta ao credor senão a propositura de ação de conhecimento, sem procedimento especial previsto e com a sentença final, sujeita à apelação, com recebimento em ambos os efeitos, para a declaração respectiva. Judicialmente, porém, não será excessivo o entendimento de se permitir, no prazo de defesa, a purgação da mora, se o devedor já tiver pago 40% da divida, por interpretação extensiva do art. 3°, § 1°, do DL 911/69.

5. Transitada em julgado a sentença que declarar consolidada a propriedade, far-se-á o registro respectivo, após o que, no prazo de 03 dias, o credor fiduciário providenciará o leilão público para a alienação do imóvel (art. 27, caput), não sendo válida qualquer cláusula que estabeleça a dispensa da promoção da venda. (Revista Jurídica. RJ 261 JUL/1999 – DOUTRINA p.22)

Não havendo sanção específica para a desobediência ao prazo previsto para a promoção da venda, a infração pode dar origem à cobrança de perdas e danos pelo devedor, e, no caso de permanecer inerte o credor, pode o primeiro ingressar com pedido com cominação diária de multa, para que este último o faça.

6. O leilão público, em princípio, é extrajudicial, mas, à falta de qualquer vedação, as partes poderão estabelecer no contrato o procedimento judicial de jurisdição voluntária (arts. 1.113 e seguintes do CPC) ou, então. o seguido na execução, com as conseqüências possíveis, inclusive remição e o respectivo acertamento final.

No contrato deverá haver previsão do preço do imóvel para arrematação, com possibilidade de forma de revisão, inclusive avaliação (art. 24, VI), critério, evidentemente, aceito, se se optar pelo leilão judicial.

O primeiro leilão será sempre pelo valor previsto do imóvel, só se concluindo, se igual ou superior o lanço (art. 27, § 1°). Na hipótese contrária, far-se-á segundo

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leilão, com lanço nunca inferior ao valor da divida, incluindo-se despesas, prêmios de seguro, tributos e contribuições condominiais (art. 27, §§ 2° e 3°).

O credor fiduciário, em tal hipótese, não está impedido de também lançar.

Com a realização do leilão, nos 05 dias seguintes, o credor devolve o sobejo ao devedor, abatendo o valor da dívida do total da arrematação, inclusive benfeitorias, não se indenizando nem as necessárias nem as úteis, com exclusão do art. 516 do CC, considerando-se tudo devidamente quitado entre os contratantes (art. 27, § 4°).

Frustrado o segundo leilão, o procedimento se encerra, tornando-se incondicionada a consolidação da propriedade no credor fiduciário, considerando-se extinta a dívida, com exoneração do credor de devolução de sobejo (art. 27, § 5°), caso em que, nos 05 dias seguintes, o mesmo dará a quitação do devedor, em termos próprios (art. 27, § 6°), o que se dispensará, se devidamente documentado o fato.

7. Se a alienação do bem, conforme preferência das partes, for judicial, o acertamento, em caso de discordância, será feito jurisdicionalmente, em prosseguimento, nos próprios autos, mas, se extrajudicial, qualquer litígio a respeito não se subtrai do pronunciamento do Poder Judiciário, podendo as partes ingressar em juízo, com procedimento próprio, no maior número de vezes prestação de contas, para a solução da controvérsia.

Possível será a cláusula em que o credor garanta ao devedor preço mínimo ao imóvel, hipótese que poderá provocar a incidência da devolução de sobejo, nos termos do art. 27, § 4°, mas é de se ter como imposição de ordem pública a determinação do § 5° do mesmo artigo, que considera extinta a dívida se o imóvel não for arrematado, já que, em hipótese contrária, frustrada ficaria a própria finalidade da garantia. Em conseqüência, inválida será qualquer disposição em sentido diverso, seja com previsão de não-extinção da dívida, seja com a de possibilidade de saldo remanescente.

8. Consolidada a propriedade no credor fiduciário, por ele, sucessores ou cessionários, poderá ser requerida a reintegração de posse do imóvel, que deverá ser atendida liminarmente, com prazo mínimo de 60 dias para desocupação, instruído o pedido com a simples prova da consolidação da propriedade, seguindo, no entanto, normalmente o processo, com possibilidade de defesa por outras causas, até sentença final (art. 30). (Revista Jurídica. RJ 261 JUL/1999 – DOUTRINA p.23)

O adquirente em leilão extrajudicial terá o mesmo direito de reintegração contra o fiduciante, desde que provada a aquisição pelo registro, obedecido ao mesmo prazo de 60 dias para a desocupação.

A mesma reintegração poderá ser pedida contra o credor, cessionários ou sucessores, se já estiverem na posse direta do imóvel, mas o prazo de desocupação de 60 dias é benefício apenas para o fiduciário.

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Na hipótese de terem as partes optado por leilão judicial, o prazo ao fiduciante é de ser mantido, mas a aquisição da posse pelo fiduciário ou adquirente far-se-á por simples mandado de imissão, independentemente de ação possessória.

9. O fiador que pagar a dívida se sub-roga nos direitos do fiduciante (art. 31), devendo fazer-se a devida anotação no Registro de Imóveis. Também o terceiro interessado, isto é, aquele que tem interesse jurídico na extinção da dívida, como é o caso do emitente ou avalista de nota promissória em garantia, ou do devedor solidário que não seja beneficiário da dívida, possíveis também na operação, pagando, sub-roga-se plenamente nos direitos do fiduciário.

10. Declarada a falência ou insolvência do fiduciante, o imóvel será restituído ao fiduciário que, no entanto, para o devido recebimento de seu crédito, deverá atender às mesmas disposições dos arts. 26 e 27, além das próprias disposições da legislação pertinente (art. 32).

11. Poderá haver previsão para que os litígios referentes aos contratos de alienação fiduciária de imóvel sejam solucionados por arbitragem (art. 34), além de que poderão as partes fazer acordo para se dispensar a fase declaratória da propriedade, autorizando, desde logo, os leilões públicos extrajudicial ou judicial.

12. É possível a cessão do crédito pelo credor, atendendo aos mesmos requisitos formais do contrato e respectivas conseqüências (art. 28), mas o fiduciante somente poderá ceder seus direitos sobre o imóvel, com plena sub-rogação do cessionário, se o credor fiduciário consentir (art. 29). (Revista Jurídica. RJ 261 JUL/1999 – DOUTRINA p.24)