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Do pictórico ao verbal: entre a ilusão e a reestruturação do real Marcela Ulhôa Borges MAGALHÃES 1 Resumo O presente artigo tem como objetivo refletir sobre o conceito de realidade, quando aplicado à esfera das artes, especificamente no que condiz à arte pictórica e à arte verbal, demonstrando como cada uma delas trabalha, por meio de procedimentos específicos, os efeitos de sentido que se aproximam ou se distanciam do “real”. Tanto na literatura quanto na pintura, o real nada mais é do que um efeito de sentido que, por meio de procedimentos miméticos, almeja provocar, no enunciatário, a ilusão de realidade, qual seja, a ilusão referencial. Ocorre, porém, que a ilusão referencial não é a única possível. Existem outras possibilidade de explorar as sutilezas da natureza imitativa, e as obras de arte modernas são um exemplo da possibilidade de reestruturação dos elementos do mundo natural sob perspectivas que buscam desautomatizar o olhar acostumado à tradição e romper com a visão monocular convencionada desde a Antiguidade Clássica. A fim de demonstrar o processo que vai da ilusão à reestruturação do real, este artigo apresenta como córpus a tela “Vênus de Urbino”, de Ticiano de estética realista e as obras “Mulher deitada e cachorro”, de Di Cavalcanti, e “Vênus”, de Drummond, ambas de estética modernista. Palavras-chave: Ilusão referencial. Pintura. Poesia. Abstract This article aims to reflect on the concept of reality, when applied to the sphere of the arts, specifically in what respects pictorial art and verbal art, demonstrating how each of them works, through specific procedures, the effects of meaning that approach or distance themselves from the "real." In both literature and painting, reality is nothing 1 Doutoranda na UNESP, Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, com período sanduíche cursado na Université Paris 8. Pesquisa financiada pela CAPES. Araraquara, 14801090, SP, [email protected].

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Do pictórico ao verbal: entre a ilusão e a reestruturação do real

Marcela Ulhôa Borges MAGALHÃES1

Resumo

O presente artigo tem como objetivo refletir sobre o conceito de realidade, quando

aplicado à esfera das artes, especificamente no que condiz à arte pictórica e à arte

verbal, demonstrando como cada uma delas trabalha, por meio de procedimentos

específicos, os efeitos de sentido que se aproximam ou se distanciam do “real”. Tanto

na literatura quanto na pintura, o real nada mais é do que um efeito de sentido que, por

meio de procedimentos miméticos, almeja provocar, no enunciatário, a ilusão de

realidade, qual seja, a ilusão referencial. Ocorre, porém, que a ilusão referencial não é a

única possível. Existem outras possibilidade de explorar as sutilezas da natureza

imitativa, e as obras de arte modernas são um exemplo da possibilidade de

reestruturação dos elementos do mundo natural sob perspectivas que buscam

desautomatizar o olhar acostumado à tradição e romper com a visão monocular

convencionada desde a Antiguidade Clássica. A fim de demonstrar o processo que vai

da ilusão à reestruturação do real, este artigo apresenta como córpus a tela “Vênus de

Urbino”, de Ticiano — de estética realista — e as obras “Mulher deitada e cachorro”, de

Di Cavalcanti, e “Vênus”, de Drummond, ambas de estética modernista.

Palavras-chave: Ilusão referencial. Pintura. Poesia.

Abstract

This article aims to reflect on the concept of reality, when applied to the sphere of the

arts, specifically in what respects pictorial art and verbal art, demonstrating how each

of them works, through specific procedures, the effects of meaning that approach or

distance themselves from the "real." In both literature and painting, reality is nothing

1 Doutoranda na UNESP, Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, com período sanduíche cursado

na Université Paris 8. Pesquisa financiada pela CAPES. Araraquara, 14801090, SP,

[email protected].

more than an effect of meaning which, through mimetic procedures, seeks to provoke

the illusion of reality or, in other words, the referential illusion. However the referential

illusion is not the only one possible. There are other possibilities of exploring the

subtleties of imitative nature, and modern works of art are an example of the possibility

of restructuring the elements of the natural world under perspectives that seek to

changes the tradition and break with the monocular vision agreed upon since Classical

Antiquity. In order to demonstrate the process that goes from the illusion to the

restructuring of the real, this article presents as a corpus the painting "Venus of

Urbino", by Titian — from the realism — and the works “Mulher deitada e cachorro”

by Di Cavalcanti, and "Venus" by Drummond, both from modernism.

Keywords: Illusion of reality. Painting. Poetry. Semiotics.

A discussão sobre o conceito de arte, seja ela pictórica, seja verbal, perpassa por

diversos momentos históricos desde a Antiguidade Clássica, bem como por variadas e

diferentes percepções teóricas, que procuram explicar e sistematizar, cada uma à sua

maneira, a natureza do fenômeno artístico. Destacam-se, nesse âmbito, as ideias de

Platão (2007) e Aristóteles (2008), que, ainda hoje, são tomadas como referência nos

estudos estéticos.

Platão (2007) concebia a arte como uma imitação imperfeita da realidade, uma

espécie de imitação em segundo grau, de modo que, na concepção do filósofo, os

poetas, assim como os demais artistas, deveriam ser expulsos da polis grega em

decorrência das ilusões distorcidas sobre os elementos do mundo natural que apareciam

nas obras de arte. É certo que, com os avanços teóricos no campo das Artes, as ideias de

Platão (2007) passaram a ser revistas e aprimoradas pelos estudiosos que lhe sucederam.

Entre seus sucessores, destaca-se, ainda na Antiguidade Clássica, Aristóteles (2008) e

sua teoria da arte como imitação, que, ainda hoje, se configura como a base de diversos

segmentos teóricos que visam a investigar os processos artísticos.

Em sua Poética (2008), Aristóteles afirma ser, a arte, imitação pela palavra.

Desse acerto, provém o tratado teórico que, até recentemente (mais especificamente até

o início dos movimentos de vanguarda instaurados no século XIX) influenciou de modo

soberano o desenvolvimento dos diversos movimentos artísticos e de seus

desdobramentos teóricos. Houve um avanço notável em relação às ideias platônicas,

afinal Aristóteles (2008) não concebe a arte como uma imitação imperfeita, porém ele

continua a crer que ela se define apenas por reproduzir os elementos da realidade, e,

quanto mais similares ao mundo natural forem os objetos artísticos, maior o valor a ser

atribuído à obra de arte em questão, motivo pelo qual a arte realista atinge primazia

quando concebida segundo os princípios da arte como imitação.

O episteme aristotélico da mimese regeu de forma contínua o modo de conceber

as artes desde a Antiguidade até o início do século XIX. A dificuldade no que concerne

à teoria em questão é que ela se atém, sobretudo, ao parecer. Seria possível, no entanto,

afirmar que, de fato, o artista retrata os elementos da realidade propriamente dita?

Acredita-se que não. O que é retratado, por exemplo, em uma tela realista, é apenas um

elemento convencionado como real pela sociedade. Não se trata do real em si:

De fato, a pintura realista se atém só ao parecer das coisas que ela

pinta. Pintando “o que todo o mundo vê”, o que o pintor fixa na tela

não é uma “coisa da realidade”, é uma convenção social – o

designatum pictórico de infinitas ocorrências de dado evento, dado

objeto, resultado de um sem-número de manipulações a que o grupo

submete todos e cada um de seus membros para neles interiorizar a

mesma visão de mundo, sua ideologia e seus esquemas de

entendimento, o repertório todo dos elementos cuja interiorização na

mente do leitor virá a compor sua particular competência para ver e

para entender o mundo e os textos produzidos por sua comunidade

(LOPES, 1997, p. 22).

O cânone realista, dessa maneira, quer-fazer seu enunciatário crer que o

elemento em tela seja real, porém, ele apenas parece real à percepção do sujeito. Não se

pode negar, entretanto, que o real é convencionado. Ainda segundo Edward Lopes:

[…]ver, de acordo com os cânones do realismo, implica a tautologia

ofuscante de ver o já-visto, de ver “o que todo mundo vê” – paranoia

do hábito, afirmada como bom senso pela ideologia burguesa montada

à base dos automatismos impostos por uma visão autoritária do real,

que força a exibição da aparência que nos faz ver o que já vimos […].

(LOPES, 1997, p. 22).

A partir do século XIX, contudo, essa abordagem teórica que concebe a arte

como imitação passou a perder sua força de convencimento, pois surgiram outras

formas de expressão em todos os campos artísticos (movimentos estéticos de

vanguarda) que exigiam uma perspectiva teórica aquém daquela que estava tão bem

assentada na História da Arte. Houve então uma descontinuidade epistemológica na

forma de pensar as artes e, nesse contexto, surge a teoria semiótica francesa, que se

ocupa de estudar as mais diversas manifestações discursivas, dentre elas, a linguagem

visual e a linguagem verbal:

On pense pouvoir en restreindre l’objet d’investigation en définissent

la sémiotique visuelle par son support planaire, en chargent ainsi la

surface de parler de l’espace tri-dimensionnel : les manifestation

picturale, graphique, photographique que se trouvent alors réunies au

nom d’un mode de « présence au monde » commun. Mais une telle

sémiotique planaire comprend, de plus, les différents types

d’écritures, les langages de représentation graphiques etc., laissant

s’évanouir, à peine entrevue la spécifié du visuel planaire

(GREIMAS, 1984, p. 5-6).

A semiótica reclassificou o conceito de imitação da realidade, pois ela

compreende esse mecanismo como o de elaboração de um efeito de sentido de realidade

por meio da instauração de homologias entre o mundo natural e o texto pictórico (ou de

outra espécie):

Estruturada num momento histórico que permite reconhecer com mais

clareza o relativismo cultural que, em grande parte, direciona a

formação de “visões de mundo”, a Semiótica procura acercar-se da

questão com mais cautela. Assim, não fala em imitação da realidade,

mas em construção de um efeito de sentido de “realidade”, a partir de

uma relação intertextual estabelecida entre o mundo natural e o

discurso literário, lembrando que essa relação se firma em bases

positivas previamente aceitas pelo produtor e pelo receptor desse

discurso. (THAMOS, 1998, p. 52).

A arte, embora apresente grande vocação à realidade, pelo fato de ter como base

o referente, não é uma mera imitação do real, já que, a partir de diversos mecanismos —

diferentes no texto verbal e visual, como será especificado adiante — ela busca criar a

ilusão de realidade (ou ilusão referencial) no enunciatário, levando-o a crer, por

exemplo, que aquilo que está pintado na tela é uma reprodução de determinado

elemento da realidade:

O princípio essencial da pintura, como já disse, é constituído pela

subjetividade interna e vivente, como os seus sentimentos,

representações e ações, tendo por objetivos tudo o que existe e desde

do céu e da terra, com a multiplicidade suas situações e das suas

manifestações exteriores e corporais […]. (HEGEL, 2010, p. 197).

Além do efeito de sentido de realidade, uma obra pode apresentar muitos outros

efeitos, como por exemplo: irrealidade, surrealidade, abstração, dentre muitos outros. É

fundamental, contudo, observar que não é possível dizer que uma obra de arte clássica

realista seja mais “real” do que uma obra surrealista, cubista, impressionista ou

expressionista, por exemplo. Essa será a questão motriz que orientará os

desdobramentos do presente artigo.

O conceito de figuratividade desenvolvido pela teoria semiótica pode auxiliar a

compreender esse fenômeno tanto nas artes pictóricas como nas artes verbais. A

figurativização é o procedimento que reveste plasticamente o discurso a fim de que ele

se aproxime o máximo possível do referente (mundo natural). Supõe-se o seguinte

programa narrativo: um sujeito disjunto de um objeto investido de um valor como, por

exemplo, o poder (GREIMAS; COURTÉS, 2008, p. 211). Até então, há uma estrutura

absolutamente genérica, que poderá ser figurativizada de diversas maneiras e

manifestada por meio de diversos textos, como o literário, o pictórico, o

cinematográfico etc. Há também muitas maneiras de contar a mesma história. O objeto-

valor pode ser um automóvel, uma mulher, um cargo na empresa etc. Conforme a

coerência interna do texto, as escolhas do sujeito da enunciação revestirão as estruturas

narrativas com figuras do mundo natural, instalando isotopias no discurso. O processo

de figurativização contempla, porém, dois níveis diversos: a figuração, momento em

que os temas são convertidos em figuras, e, quando logra chegar a tanto, também o da

iconização, que toma as figuras já constituídas e as dota de um revestimento

particularizante, de modo a produzir uma ilusão referencial (GREIMAS; COURTÉS,

2008, p. 251).

Quando se trata do texto verbal, uma das maneiras possíveis de alcançar esse

último nível do discurso figurativo é homologar o plano de expressão ao plano de

conteúdo do texto de modo a provocar coincidências que conduzam à ilusão de

realidade: “essa iconicidade, portanto, nada mais é do que uma forma dentre outras

possíveis de explorar componentes figurativos da expressão linguística” (BERTRAND,

2003, p. 208). O que particulariza o texto poético, diferenciando-o de outros tantos

discursos que tratam de temas semelhantes, é o trabalho sobre a expressão. O conteúdo

de um poema poderia ser manifestado por meio da linguagem predominantemente

referencial, e, sem dúvida, seria muito mais facilmente compreendido, muito embora a

função poética, provavelmente, não fosse mais dominante. O poeta, no entanto, não

pretende transmitir informações, mas provocar um efeito estético a ser apreendido pelo

leitor. Nesse contexto, a figuratividade assume papel fundamental, uma vez que nos

coloca em contato com as superfícies do discurso, produzindo e restituindo

parcialmente significações análogas às de nossas experiências perceptivas mais

concretas (BERTRAND, 2003, p. 154).

Ceci n’est pas une pipe: o processo de fabricação da realidade

(...) faire vrai consiste... à donner l’illusion complète du vrai.

(Maupassant, ¨Préface¨ de Pierre et Jean).

O pintor surrealista belga René Magritte buscou questionar em muitas de suas

obras a assertiva de que os elementos presentes na obra de arte correspondem

diretamente aos elementos da realidade. Em sua famosa tela “Ceci n’est pas une pipe”,

datada de 1928-19292, Magritte questiona de forma cabal essas questões (que no início

do século XX apresentavam maior credibilidade ainda do que hoje) e reforça o princípio

da representatividade, conceito fundamental também dentro dos estudos semióticos.

A tela do pintor belga utiliza-se da linguagem não-verbal (pintura de um

cachimbo) e linguagem verbal (a afirmação “ceci n’est pas une pipe”). De modo geral, a

primeira impressão provocada no enunciatário é a de que há uma contradição explícita

entre o signo não-verbal e o signo verbal: a imagem do cachimbo e os dizeres “isso não

é um cachimbo”. Apenas quando a reflexão sobre a tela de Magritte é iluminada pela

teoria da representatividade, passa a ser possível verificar que não se trata de estabelecer

uma contraposição, mas sim de desautomatizar, diante dos olhos do enunciatário, as

ideias que giram em torno de arte e realidade.

O pintor belga coloca diante do enunciatário a afirmação de que aquele

cachimbo pintado na tela não é, na verdade, o mesmo cachimbo presente na realidade.

2 Parte do acervo de Los Angeles County Museum of Art.

O cachimbo do quadro seria o correspondente do que a semiótica francesa denomina

designatum, ou seja, uma representação do cachimbo existente na realidade. Magritte

desmistifica, então, o senso comum que concebe os elementos presentes na arte como

correspondentes diretos dos elementos do mundo natural.

Os questionamentos e hipóteses que René Magritte explora em suas obras vai ao

encontro dos preceitos das teorias da figuratividade e da veridicção, desenvolvidos pela

semiótica francesa. Ambos concebem que a arte, em suas mais diversas acepções,

fabrica outra realidade, paralela àquela do mundo natural, que pode ser mais semelhante

a ele, tal qual ocorre na pintura renascentista, por exemplo, ou se afastar deveras do

mundo extra-texto, como se pode observar nas próprias telas de Magritte, que

subvertem a realidade, remodelando os elementos do mundo natural em uma ordem

completamente diferente da que o olhar acostumado e automatizado experimenta.

A construção do efeito de sentido de realidade

A fim de demonstrar alguns dos procedimentos mobilizados para a construção

do efeito de sentido de realidade, optou-se por tecer alguns comentários a respeito da

tela “Vênus de Urbino”3, datada de 1538, da autoria de Ticiano. Trata-se de é um óleo

sobre tela que exibe no centro da pintura – como já indica o próprio título da obra – a

figura mítica de Vênus4. Trata-se de uma obra inquestionavelmente realista, que quer

parecer real ao enunciatário, e, para tanto, mobiliza uma série procedimentos que

buscam atingir o efeito de sentido de real ou, em outras palavras, a ilusão referencial.

O enunciatário sempre é invocado pelo enunciador no processo de significação.

Como já afirmava Jakobson, ao tratar dos problemas da estrutura verbal, não há ato de

linguagem sem a presença do destinatário (1973, p. 123). Há um contrato estabelecido

entre enunciador e enunciatário, no qual o enunciador espalha pelo discurso marcas que

devem ser encontradas e interpretadas pelo enunciatário, que o fará de acordo com seus

conhecimentos e suas convicções, afinal, como pontua Fiorin (2008, p. 154), “[…] é

preciso considerar que o enunciatário não é um ser passivo, que apenas recebe as

3 Que se encontra em exibição na renomada Galleria degli Uffizi, localizada na cidade de Florença, na

Itália. / Observar anexo A. 4 Deusa do amor, correspondente à Afrodite grega.

informações produzidas pelo enunciador, mas é um produtor do discurso, que constrói,

interpreta, avalia, compartilha ou rejeita significações”.

O primeiro elemento que se destaca na tela é a figura de Vênus, que, disposta

horizontalmente, ocupa todo o primeiro plano da pintura. Como é habitual, a julgar

pelas demais representações da deusa do amor nas artes plásticas, ela se encontra

completamente nua. Os padrões de beleza reproduzidos são aqueles tão exaltados

durante o período renascentista: pele alva, formas arredondas, traços faciais finos e

delicados, ou seja, trata-se da reprodução do modelo europeu, convencionado social e

culturalmente como o ideal de beleza.

Em busca de criar uma ilusão referencial no enunciatário, a deusa da beleza e do

amor não poderia ser pintada de outra forma que não aquela que corresponde à tradição

clássica. Há um reconhecimento imediato por parte do enunciatário que visualiza pela

primeira vez a Vênus de Ticiano. O efeito de sentido não seria o mesmo se o enunciador

tivesse optado por uma figura feminina que fugisse dos padrões estéticos da época,

difundidos pela tradição. A noção de proporcionalidade do corpo feminino também

obedece às formas da mulher presente no mundo natural, o que contribui de forma

efetiva para o reconhecimento do “já visto” e a consequente aceitação por parte do

enunciatário da ilusão referencial causada na pintura de Vênus.

Ainda sobre a figura feminina em relevo, é possível notar que ela se encontra

numa posição tal como se estivesse posando para alguém. O próprio olhar da Vênus está

direcionado para um sujeito que se encontra fora da tela. Não se tem acesso, porém, a

essa segunda figura, que fica apenas sugerida. É possível pensar em uma relação

metalinguística, na qual Vênus estava a observar aquele que a pintava, ou mesmo na

possibilidade de que esse alguém desconhecido para quem ela olha fixamente seja o

enunciatário do quadro.

A noção de perspectiva também em muito contribui para provocar a ilusão

referencial. O quadro é dividido em dois planos, o primeiro, em que se encontra Vênus

nua, e o segundo, localizado na metade superior à direita, em que se encontram duas

mulheres mexendo em um baú e, muito provavelmente, segurando as roupas de Vênus.

Há entre os dois planos uma grande noção de profundidade, que provoca, no

enunciatário, juntamente aos demais elementos do quadro, a impressão de realidade.

A seleção das cores no quadro também procura imitar da forma mais similar

possível as cores dos elementos do mundo natural. O céu é azul, a árvore verde, a pele

bege etc. Em um quadro modernista — como o de Di Cavalcanti, a ser comentado

posteriormente — que pretende romper com imitação fiel do real, o céu pode ser verde,

a árvore azul e a pele amarela, por exemplo.

A partir dessa análise dos elementos do conteúdo e da expressão da tela, é

possível constatar que a “Vênus de Urbino”, de Ticiano, foi construída para fabricar a

realidade aos olhos de seus espectadores, e ela o faz com muita competência, por meio

dos recursos explicitados acima.

A reestruturação da realidade

“Mulher deitada e cachorro” 5 , tela datada de 1954, é um dos importantes

quadros do pintor brasileiro Di Cavalcanti, grande expoente da pintura brasileira do

século XX. Seu estilo é marcado pela influência dos movimentos de vanguarda como o

Expressionismo e o cubismo, sendo que, na tela em apreço, as referências a esse último

movimento são muito evidentes. Os temas abordados em suas pinturas costumavam ser

tipicamente brasileiros, como a exaltação da sensualidade feminina e mesmo de

questões sociais, embora as referências clássicas continuassem a predominar em sua

obra, como bem demonstra a tela em apreço, que dialoga de forma bastante evidente

com a “Vênus de Urbino”, de Ticiano, tanto em relação aos temas quanto em relação às

construções figurativas. A tela clássica, porém, explora os revestimentos figurativos a

tal ponto que alcança o grau de figuratividade icônico e provoca uma ilusão referencial,

ao passo que a obra de Di Cavalcanti reveste os temas por figuras, sem particularizá-los

como em Ticiano e sem buscar o efeito final de realidade. A própria inspiração cubista

contribui para que a obra de Di Cavalcanti apresente um tratamento estético e figurativo

particular, já que pintura cubista abandona a perspectiva clássica – o que não significa

abandonar um referente, o que seria impossível em uma tela que não fosse

5 Que se encontra se encontra em exibição no Acervo Banco Itaú S.A. - São Paulo, SP. / Observar anexo

B.

completamente abstrata – e busca novas formas de expressão, sob diferentes

perspectivas:

(...) por corresponder à visão privilegiada desde um ponto de vista

único – ocupado pelo pintor –, não escolhido pelo leitor do quadro, a

perspectiva clássica, que foi também a realista, tinha se transformado

no meio hábil com que contava a ideologia conservadora para impor a

todos os leitores, indistintamente, uma mesma visão do mundo,

arbitrariamente selecionado pelo poder para funcionar como “o único

saber” convalidável pela comunidade. Reagindo contra isso, a

composição cubista conterá muitas e contrárias perspectivas,

derivadas de outros tantos pontos de vista, colocados tanto para

relativizar o conhecimento da cena quanto para incluir na obra o

caráter interpelativo e contraditório de uma mesma realidade, que,

sujeita, como tudo o mais, ao tempo, com a mudança dele muda sem

cessar. (LOPES, 1997, p. 24).

O princípio básico do cubismo é o de reestruturar os simulacros do mundo

natural sob a forma de figuras geométricas. Para o pintor francês também cubista Paul

Cézanne, todos os elementos da natureza poderiam ser reduzidos a três formas

geométricas básicas: as esferas, os cones e os cilindros. A escola cubista, dessa forma,

trabalhava com o princípio básico de remodelar, na tela, a realidade sob a perspectiva

dessas três configurações geométricas.

O efeito de sentido buscado pelos cubistas não será mais o referencial, de

similaridade extrema com o mundo natural. O cubismo, inicialmente, provocou grande

estranhamento justamente por afastar-se do modelo clássico de pintura, que reproduzia

as formas extra-textuais da maneira mais semelhante possível às que se apresentavam

no mundo natural. O cubismo mostrava outra perspectiva de enxergar a realidade. O

olhar viciado para o “já visto” foi substituído por uma perspectiva anti-realista de

enxergar os elementos tradicionalmente representados pela prática realista, que se fazia

por meio de uma desestruturação da forma realista, seguida por uma reestruturação em

termos cubistas.

Primeiramente, era instaurado o processo de desestruturação da forma velha: era

selecionada uma figura-tipo realista (uma arvora, uma mulher, uma criança, um vaso

etc.) e, a seguir, essa figura era analisada em suas unidades mínimas:

a) A figura-tipo era escolhida a partir de um código mimético, dentro

do qual, por convenção, ela funcionaria como o esquema copiativo do

objeto a pintar: uma moça nua, digamos.

b) Essa figura-tipo era submetida à análise – etimologicamente ao

recorte, que a segmentava em suas “partes constituintes” a partir do

código analógico (para a “mulher nua”, por exemplo, recortada em

cabeça, tronco, membros, nariz, braços, mãos, seios etc.); no caso,

como se tratava, até aqui, de um código realista, mimético e

analógico, os recortes seguiam as linhas de força da figura-tipo

anatômica. (LOPES, 1997, p. 23).

Após essa etapa de desestruturação das formas tradicionais, segue-se o processo

de reestruturação da figura-realista em figura-cubista, por meio da reinterpretação das

unidades mínimas analógicas em unidades mínimas cubistas e de sua reorganização

pelo princípio da harmonia entre os contrários de um mesmo eixo:

c) O momento em que cada unidade constituinte mínima do código

realista assim recortada era, a seguir, reescrita sob a forma

esquemática de um sólido ou de uma figura geométrica elementar. Na

consonância do que apregoava Cézanne, para quem “tudo, na

natureza, se modela segundo a esfera, o cone e o cilindro”, um nariz

se reescrevia como um triângulo (visto de frente), um seio se reduzia à

figura-tipo geométrica de um cone ou uma esfera, um pescoço se

condensava no esquema figurativo de um cilindro, e

d) O movimento da reconfiguração, quando as formas-tipo

geométricas eram remontadas por meio do procedimento da

composição sintética, cujo princípio coerentizador era dado pela

harmonia proporcionada pelo jogo travado entre propriedades

contrárias: uma composição era ordenada, agora, pela articulação

complementar, em diferentes planos, de gramas cromáticas contrárias,

ou de tonalidades opostas (tonalidade clara / tonalidade escura), ou da

sobreposição de perspectiva e contra-perrspectiva (focalização

ascendente / focalização descendente) etc. O resultado é que as

composições cubistas, mormente as de Picasso, ainda quando pareçam

estar desagregando-se por efeito de uma violenta implosão,

mostrando-se sempre admiravelmente equilibradas, dotadas de ritmo e

harmonia. (LOPES, 1997, p. 23-24).

A partir do conhecimento da concepção do modelo cubista, torna-se muito mais

palpável a análise da obra “Mulher deitada e cachorro”, de Di Cavalcanti. O tema que se

sobressalta na tela é bastante clássico: a nudez e a beleza feminina, que foi explorada

por diversas escolas de pintura desde a Antiguidade Clássica (a exemplo da própria

Vênus de Ticiano). Em sua obra, porém, Di Cavalcanti subverte a beleza feminina

clássica de modo a mostrá-la em outros ângulos, diferentes dos já explorados. Faz-se

necessário, a fim de compreender os efeitos de sentido provocados por “Mulher deitada

e cachorro”, verificar detalhadamente as técnicas mobilizadas pelo enunciador.

As figuras-tipo principais presentes no mundo natural selecionadas pelo

enunciador da obra foram: 1) a mulher que se encontra deitada numa espécie de divã e

aparece no plano principal da tela, 2) o cachorro que se encontra ao seu lado, 3) duas

mulheres localizadas no plano inferior da tela. É interessante observar que se trata das

mesmas figuras dispostas na “Vênus de Urbino de Ticiano”, no entanto, o tratamento

dado a essas figuras é menos particularizante, embora, como em qualquer obra

figurativa, apresenta o elemento da mimese, e é essa a figura que será mimetizada em

tela. O processo mimético, porém, não obedece ao modelo clássico tradicional. O

modelo de mulher retratado está longe de ser o europeu. O corpo curvilíneo e bem

delineado da mulher que se encontra no plano principal obedece ao estereótipo da

mulher brasileira, tão exaltada na obra de Di Cavalcanti, e, na figura da mulher em

segundo plano, do lado direito da tela, é possível verificar nítidos traços de origem

africana. Há também ausência de proporcionalidade no desenho dos corpos nus, bem

como uma variação de cores que jamais corresponderia à “realidade”.

O processo mimético, dessa forma, muito escapa ao modelo clássico.

Primeiramente as figuras-tipo foram desestruturadas a partir da segmentação de suas

partes constituintes: cabeça, tronco, membros, nariz, boca, braços, seios etc.

Posteriormente à etapa da desestruturação, segue a da reestruturação das figuras-tipo

(mulher e cachorro) nos moldes cubistas. As unidades constituintes da figura feminina

foram reelaboradas segundo uma unidade geométrica elementar: ombros, nariz e órgão

sexual foram reescritos em triângulos, braços, pernas e tronco em losango e assim por

diante. Em seguida, houve uma reorganização dessas formas-tipo, configuradas em

figuras geométricas, de acordo com a harmonia proporcionada pelos contrários, o que,

inicialmente, pode causar grande estranhamento, porém, quando observada

cuidadosamente, a tela mostra-se perfeitamente equilibrada, pois ela obedece a uma

estrutura interna, a que se mostra coerente.

O propósito do pintor, ao desautomatizar a representação clássica e tradicional,

principalmente da figura feminina — especialmente uma que dialoga com a vênus de

Ticiano — é certamente o de provocar estranhamento no enunciatário e fazê-lo exercitar

outras formas de olhar o mundo. O processo de desestruturação e reestruturação

processado na montagem da tela em questão cria o efeito de sentido de multiplicidade:

as três mulheres podem ser observadas de diversos ângulos, como se elas estivessem a

desfilar diante do enunciatário que as aprecia.

Essa simultaneidade de ângulos pode ser constatada com clareza quando

observamos a figura feminina em segundo plano à esquerda: ela pode ser vista de perfil

e de frente concomitantemente. Essa construção provoca o efeito de sentido de

pluralidade, que se destaca em toda a tela e estende-se à escola cubista de maneira geral,

que, por excelência, interrompe a visão fixa e monocular presente nas pinturas

renascentistas. Di Cavalcanti apropriou-se com bastante autenticidade da influência

cubista, mesclando-a com elementos da cultura brasileira, como a própria escolha de

cores, que prioriza o azul e o amarelo, chamando atenção para as cores da bandeira

brasileira.

O cubismo, como se pôde observar por meio da breve análise da tela de Picasso,

busca romper com a visão monocular convencionada desde a Antiguidade Clássica,

porém, sua arte não deixa de ser por excelência mimética e, portanto, figurativa, já que

não há um abandono do referente. A diferença entre a obra renascentista e cubista

encontra-se justamente nas sutilezas da natureza imitativa do objeto, sendo a primeira

icônica e a segunda figural.

A literatura brasileira moderna, como muito bem explicitou a Semana de 1922,

expoente do movimento modernista no Brasil, nasceu fortemente vinculada às artes

visuais, de modo que as características de vanguarda possíveis de se observar nas artes

plásticas transmutaram-se também para a poesia e para a prosa do século XX, como é

possível observar no poema “Vênus” (2008), de Carlos Drummond de Andrade:

Vênus

Vênus de calça comprida é

Vênus calcianadiomênica

Vênus calcispúmica

Vênus calcitrite

Vênus de calça comprida

é Vênus calcirizica

Vênus calcigênitrix

Vênus calcimílica

De calça comprida Vênus é Vênus

calcicranachiana

calciarlesiana

calcicapitulina

Calcibelvedérica

é Vênus de calça comprida

calcielusiana

calcitriptolêmica

Vênus calcipersefônica

Vênus calciproserpínica

de calça comprida

Vênus calcicarôntica

Calcifarnésica Vênus

Vênus calcilaomedôntica

Vênus calcionfálica

Vênus é de calça comprida

Calcimegárica

Vênus calciedípica

Vênus calciateneica

— de calça comprida — calcidedálica

Vênus calcimeleágrica

Vênus calciargonáutica

Vênus calcibelerofôntica

de calça comprida Vênus

Vênus calcidanáidica

Vênus calchemofroidítica

Vênus calciocomprida

e sempre, nua, Vênus.

(DRUMMOND, 2008, p. 200)

O sintagma “Vênus de calça comprida”, que aparece já no primeiro verso do

poema, é desdobrado e ressignificado no decorrer de todo o texto, em que se pode

verificar a formação de diversos neologismos a partir da união de novos vocábulos à

expressão “calça comprida”, provocando um deslizar dos significantes que,

consequente, traz novos significados ao poema de Drummond.

Embora Drummond não seja considerado um poeta concretista e sua obra tenha

se desenhado muito antes do concretismo surgir como movimento literário no Brasil, o

poema “Vênus”, especificamente, possui em sua essência muitos dos princípios básicos

da poesia concreta, e chama atenção, dentro da própria coerência da obra

drummondiana, por seus aspectos singulares, que antecederam aquilo que, mais tarde,

viria a se estabelecer com a poesia concreta de Haroldo e Augusto de Campos e Décio

Pignatari, seguidos por tantos outros. Ainda que “Vênus” (2008) não apresente sua

organização pautada em critérios gráficos, o poema é orientado pelos valores fônicos

das palavras, de modo que os laços da sintaxe lógico-discursiva do texto acabam

rarefeitos em prol de uma conexão direta entre a matéria sonora dos vocábulos,

orientada principalmente pela associação paronomástica.

O fio condutor da análise do poema “Vênus” (2008) é a correlação com a pintura

e com o movimento cubista, de modo que, estender a análise para além dessa proposta,

extrapolaria os propósitos do presente artigo. As reflexões, portanto, encontram-se

pautadas sobre as relações entre os procedimentos verbais e pictóricos, sempre tendo

como pressuposto que “a comparação e a elaboração de analogias não envolvem um

esforço em fazer uma arte legislar por outra ou obscurecer suas diferenças ou destruir

sua autonomia” (RICHARDS, 1971, p. 124), ao contrário, procuram buscar a identidade

a partir da diferença.

O poema provoca no leitor um estranhamento inicial, causado pela imagem nada

óbvia da figura mitológica de Vênus “de calça comprida”, tão incomum quanto a

estátua Vênus de Salvador Dali, releitura da Vênus de Milo, que, em lugar do abdome

delineado e das formas femininas, apresentava gavetas de armário. Em seguida, esse

estranhamento não diminui, pois, a partir, primeiramente, de uma organização sonora, o

sintagma “calça comprida” é fundido a outras expressões raras, em geral, de tradição

greco-romana, como nomes de personagens literários e mitológicos e regiões

longínquas, a exemplo de6: Triptólemo, Anadiomeno, Perséfone, Proserpina, Caronte,

Laumedonte, Édipo, Dédalo, Meleagro, Argonauta, Belerofonte, Mégara, Danardes,

Hermafrodita, Onfalo, Captulina, Lusiana, Arles, Belvedere, etc. Todos esses nomes,

concatenados por meio da relação sonora que se estabelece entre eles, mesclam-se às

expressão “de calça comprida”, compondo uma imagem de Vênus, que agrega uma

multiplicidade de referências clássicas, porém, vestidas sob uma roupagem moderna —

de calça comprida? — que desautomatiza completamente o olhar do leitor acostumado,

6 Em virtude do espaço delimitado e dos objetivos deste artigo, optou-se por não trazer, uma a uma, as

definições de cada referências, mas em abordar o sentido geral que elas, juntas, trazem ao poema, já que o

objetivo é, justamente, verificar de que modo o processo de organização do texto verbal e do texto

pictórico se aproximam.

desconstruindo a imagem de Vênus consolidada pela tradição clássica. As referências

clássicas que aparecem no texto estão ali para retomar a tradição, porém, a imagem da

calça comprida subverte aquilo que é clássico, apresentando-o, literalmente, sob uma

nova roupagem.

O processo composicional adotado por Drummond, ainda que com as

especificações próprias do texto verbal, mobiliza uma organização muito semelhante

àquela utilizada por Di Cavalcanti em sua releitura da Vênus de Urbino, ou seja, o

poema em apreço faz com a linguagem verbal um movimento semelhante àquele que

pode ser visto em telas cubistas, apropriando-se do processo de montagem que vai da

desestruturação (seleção da figura-tipo realista; análise por segmentação das unidades

mínimas analógicas) à reestruturação (redução ou reinterpretação das unidades mínimas

realistas em unidades mínimas cubistas; reconfiguração da figura pelo princípio da

harmonia entre os contrários de um mesmo eixo). No caso, a figura-tipo selecionada é a

Vênus mitológica. A isotopia que define tal imagem é criada a partir dos diversos

vocábulos citados acima, utilizados para caracterizar essa Vênus contemporânea. Tais

expressões, no entanto, encontram-se segmentadas: O neologismo “calcicaptulinica”,

por exemplo, segmenta as unidades dos vocábulos calça e Capitulina. Esses vocábulos

são, no entanto, reestruturados sob uma nova forma e, juntos, desautomatizam a

percepção do leitor, configurando a imagem poética de uma “Vênus de calças”,

moderna, mas que dialoga com toda a tradição clássica e a ressignifica., vestindo-a de

uma nova roupagem, que, no poema, é configurado pela imagem da calça jeans. Essa

ruptura com a tradição e, consequentemente, com a “realidade-padrão” é realizada com

base nos mesmos termos que se pode também verificar na tela de Di Cavalcanti, de

modo que é interessante observar como os procedimentos de ruptura com a tradição se

constroem de forma coerente, pensando nos fenômenos artísticos brasileiros do século

XX.

Considerações finais

As reflexões que recaíram sobre as telas “Vênus de Urbino”, de Ticiano, e

“Mulher deitada e cachorro” (1954), de Di Cavalcanti, e sobre o poema Vênus”, de

Drummond, procurou explicitar os diferentes procedimentos mobilizados, tanto pelo

texto verbal, quanto pelo texto pictórico, para fabricar efeitos de sentido diferentes,

sejam eles de realidade ou não.

Ticiano, tal qual os demais pintores e poetas clássicos, configurou em sua tela o

efeito de sentido de realidade e verdade a partir de um trabalho mimetizante que

buscava a reprodução mais próxima possível do mundo natural. Di Cavalcanti e

Drummond, por sua vez, não abandonaram a realidade como referente, porém, o

trabalho de imitação não mais consistia em reproduzir a realidade e a tradição, mas em

recriá-las sob outros ângulos e perspectivas, produzindo um efeito de sentido de

multiplicidade.

É, no entanto, uma reflexão ingênua afirmar que a “Vênus de Urbino” de

Ticiano é mais real do que a “Mulher deitada e cachorro” , de Di Cavalcanti, e a

“Vênus”, de Drummond. Ocorre que as obras clássicas não são mais ou menos reais do

que as modernas, elas apenas apresentam um efeito de sentido de real, uma ilusão

referencial não almejada pelos modernistas.

Ticiano manipulou seus enunciatários da mesma forma que os Di Cavalcanti e

Drummond. Ele se vale de uma série de estratégias (na pintura: angulação, perspectiva,

jogo de cores etc. Na poesia: figuratividade, recursos sonoros, seleção vocabular etc.)

para provocar no enunciatário a ilusão de estar diante dos próprios elementos da

realidade, contudo, trata-se apenas de uma ilusão de realidade. Os modernistas, por sua

vez, também exercem a manipulação sobre o enunciatário, mas com o intuito de fazê-lo

perceber outras formas de conceber a realidade além daquela “já vista” e “confirmada”

pela tradição.

Seria uma inverdade, portanto, afirmar que uma obra é mais real que a outra, já

que ambas apoiam-se de igual maneira no discurso do mundo natural, reproduzindo-o

na arte, contudo, de formas diferentes. Ticiano buscou criar o efeito de realidade por

meio da ilusão referencial, enquanto Di Cavalcanti e Drummond pretendiam

desautomatizar o campo de visão do enunciatário por meio do estranhamento,

provocando um efeito de sentido de multiplicidade.

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Pereira. 10 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007.

THAMOS, Márcio. Poesia e imitação: a busca da expressão concreta. Dissertação

(Mestrado em Letras). Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista,

Araraquara, 1998.

ANEXO A:

ANEXO B