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Do Neoliberalismo ao...Angelo Segrillo *

SANTOS, Theotônio dos . Do Terror à Esperança: auge e declínio do neolibera-lismo, Aparecida, SP, Idéias & Letras, 2004, 568 pp.

Se tivesse que recomendar a meusalunos de história três livros sobre globa-lização e neoliberalismo que eles deves-sem levar para uma ilha deserta, facil-mente poderia incluir este último livro deTheotônio dos Santos, juntamente comGlobalização em Questão, de Paul Hirst eGrahame Thompson (Ed. Vozes, 1998)e Globalization and its Descontents, deJoseph Stiglitz (W.W. Norton & Company,2002). Hirst & Thompson desmistificammuitas das crenças infundadas sobre aglobalização, provando que não é um fe-nômeno tão novo assim (os movimentoslíquidos de capital em relação ao tamanhodas economias eram maiores nas décadasdo padrão-ouro, anteriores à PrimeiraGuerra Mundial, do que nas últimas dé-cadas do século XX), nem tão “global”assim (a maioria das companhias ditas

“transnacionais” tem claro centro deci-sório nacional; a maior parte de sua pro-dução é realizada e vendida no país-ma-triz, o mercado de mão-de-obra absolu-tamente não é global, etc.). Já aimperdível obra de Stiglitz me faz lem-brar aqueles livros de ex-agentes da CIAque desnudam a Agência por dentro.Stiglitz, prêmio Nobel de economia em2001, ex-Economista-Chefe do BancoMundial, critica, com o conhecimentoembasado de um insider, o funcionamen-to de organismos como o FMI, que, emseu afã “globalizante” de disseminardoutrinas de cunho neoliberal nos anos1990, acabavam por condenar países emdesenvolvimento a políticas recessivas.Quanto a este último livro, fica apenas olamento de que, como as memórias deex-agentes da CIA, as críticas geralmen-

* Professor do Departamento de História da UFF. E-mail: [email protected]

Tempo, Rio de Janeiro, nº 18, pp. 203-207

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te vêm post factum, ou seja, após os atual-mente criticados golpes de estado, pro-movidos pela CIA no Terceiro Mundo,ou políticas econômicas equivocadas paraos países devedores terem sido imple-mentadas...

O livro de Theotônio dos Santos ana-lisa diferentes aspectos da globalização(tanto negativos quanto positivos) e,principalmente, traça um profundo diag-nóstico das origens e do desenvolvimen-to do neoliberalismo no mundo. A van-tagem, para o leitor brasileiro, é que háuma parte do livro dedicada exclusiva-mente à análise do que foi o Plano Reale um balanço do marcante governo FHC.

A obra será certamente polêmica. Oautor não esconde que toma partido eeste é “um livro de combate”. Entretan-to, o caráter de “libelo” é fundamenta-do numa análise econômica, solidamen-te embasada, do fenômeno do neolibe-ralismo na economia. De certa maneira,é irônico ver como os dois maiores nomesda Teoria da Dependência, nos anos1960, no Brasil (Fernando HenriqueCardoso e Theotônio dos Santos), seencontram atualmente em lados opostosda trincheira, com o último desenvolven-do um ataque teórico às práticas econô-micas do primeiro.

Este livro de Theotônio se inserenuma primeira leva de análises no iníciodeste novo século, que já pode contarcom um certo hindsight e distanciamentocrítico em relação ao que aconteceu nosanos 1990. Com o desmoronamento docampo do socialismo real no Leste euro-peu no início da década, foram decreta-dos, na mídia e na academia ocidental,não apenas o triunfo final do capitalismosobre o socialismo, mas também o libe-

ralismo como a única alternativa viávelpara a eficiência econômica e a democra-cia política no mundo de hoje, como so-letrou com todas as letras FrancisFukuyama, em seu ensaio sobre O Fimda História. Governo após governo seentregava ao receituário ou ao discursoneoliberal. Sua hegemonia realmenteparecia absoluta.

Entretanto, no início deste novo sé-culo, esta euforia neoliberal ocidentalestá recebendo choques. O terror de umaala do fundamentalismo islâmico atingiu,de maneira e direção inesperadas, o cernedo capitalismo mundial. Além disto, ospífios resultados econômicos do neolibe-ralismo nos anos 1990 (em termos de pro-blemas básicos do capitalismo, comoemprego, nível salarial, etc.) começam aaglutinar os descontentes da globalização(Fórum Social Mundial, movimentosantiglobalistas, sindicatos, teóricos não-liberais), na busca de alternativas práti-cas e teóricas ao discurso dominante. Énesta direção que se insere o livro emresenha.

Do Terror à Esperança traça um histó-rico de como o neoliberalismo chegou aoseu ápice na década de 1990. O singularé que Theotônio dos Santos acopla estaanálise a uma outra vertente da econo-mia: a teoria das ondas longas, de Kondra-tiev. Este economista russo postulou, nosanos 1920, que, além dos ciclos econômi-cos (de cerca de 10 anos) já estudados porMarx, há também ciclos maiores, de cer-ca de 50 anos, cuja primeira metade (fase“A”) teria tendência basicamente deprosperidade e a segunda metade (fase“B”) constituiria uma fase de estagnação.Esta é uma teoria bastante controversaentre os economistas. Entretanto, fica

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difícil creditar a uma mera coincidênciaa seqüência de estagnação nas décadasentreguerras, seguida de prosperidade nopós-guerra e de estagnação dos anos 1970e 1980 (seqüência esta prevista de modotemporalmente exato a partir da teoria deKondratiev). Uma coisa talvez um pou-co mais difícil de provar é o novo perío-do de ascenso, que deveria vir a partir dosprimeiros anos da década de 1990. Theo-tônio há anos sustenta que este é o caso.A admirável performance da locomotiva daeconomia mundial, os EUA, nos anosClinton, parecia comprovar as previsõesde Kondratiev aí também. Entretanto, anível mundial, o quadro não é tão nítidoassim. Se pegarmos o indicador econômi-co mais sumário (o Produto Interno Bru-to), veremos que o PIB mundial, emmédias anuais, cresceu 3,4% no período1992-2001 contra 3,3% em 1982-91, ouseja, houve uma melhora, mas não tãoimpressionante assim. Entretanto, deve-se levar em conta que fatores políticosimpediram um maior escoamento daprosperidade americana para outros paí-ses, em especial o fato de que o desmon-te do sistema do socialismo real levou aque o PIB de vários daqueles países ca-ísse, em poucos anos, mais do que o dosEUA durante a Grande Depressão pós-1929. Além disto, os ataques terroristasde 11 de setembro de 2001 levaram asbolsas de valores do mundo inteiro àqueda e à instabilidade. Sem estes fato-res extra-econômicos talvez a recupera-ção pós-1994 estivesse bem mais visível.Uma maneira de conjugar todos estesvetores poderia ser adotando a versão deErnest Mandel para a teoria das ondaslongas. O economista belga dizia que afase “B” (de tendência de estagnação)

estava inscrita dentro da própria lógica docapitalismo (através da famosa tendênciada queda da taxa de lucro de Marx), en-quanto a fase “A”, de prosperidade, nãoestava tão claramente inscrita dentro dalógica interna do sistema capitalista, de-pendendo de uma série de fatoresexógenos (e, por isto, mais sensível aperturbações políticas como as descritasacima).

O autor da presente resenha sentiu“na pele” quão difícil é, por vezes, sus-tentar discussões econômicas com basena polêmica teoria de Kondratiev, poisanalisou em sua obra, O Declínio da URSS:um estudo das causas (Ed. Record, 2000),a questão do declínio econômico daUnião Soviética à luz dos movimentos depassagem da economia mundial do for-dismo para o pós-fordismo dentro do es-quema das ondas longas de Kondratiev.Surpreendentemente, o fogo mais cerra-do que sua tese recebeu não foi tantopelo fato de ter analisado o sistema so-viético como tendo uma ótica “fordista”de produção e sim por utilizar o quadroteórico kondratieviano para tentar situara passagem do fordismo ao pós-fordismono contexto mundial.

Theotônio traça, então, um amploquadro, desde as raízes teóricas do neoli-beralismo, com Mises e Hayek, ainda nosanos 1940. Entretanto, a conjuntura favo-rável do pós-guerra, com o longo períodode prosperidade kondratieviana nas dé-cadas de 1950 e 1960, fez de Hayek eMilton Friedman uma espécie de “pre-gadores no deserto”. Mas, com a vinda doperíodo de estagnação kondratieviana,nos anos 1970 e 1980, e a aparente inca-pacidade do regime de acumulação for-dista e do modo de regulação keynesiano

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de resolver os novos problemas dastagflação e de manutenção do welfare stateem condições de crise, as doutrinas neo-liberais começam a tomar impulso. Coma ascensão da dupla Reagan-Thatcher aopoder, o neoliberalismo conquista o cernedo capitalismo mundial nos anos 1980. Apartir da desintegração da URSS, comple-ta sua marcha triunfal pelo mundo todo,no decênio 1990.

Entretanto, Theotônio aponta queesta euforia neoliberal mundial escondiagrandes contradições e um largo pé debarro. Afinal, como explicar que governosque pregam a desregulamentação econô-mica e o conservadorismo fiscal deixemseus países com maiores déficits orça-mentários do que quando entraram?Reagan e FHC são exemplos paradigmá-ticos neste aspecto. Segundo as palavrasdo autor, as políticas neoliberais não se-guem os próprios preceitos teóricos emque se baseiam e não visam realmentemanter o caminho do mercado desregu-lado e da livre concorrência. Na verdade,são políticas que tendem a servir a gru-pos econômicos expressos dentro do ca-pitalismo, especialmente o setor financei-ro. Vejamos, por exemplo, as chamadaspolíticas de desregulamentação (como asque Reagan realizou com as companhiasaéreas nos EUA, ou FHC fez na telefo-nia brasileira). Num primeiro momento,podem até aumentar a concorrência nosetor, mas depois, com a competição le-vando à falência das pequenas compa-nhias ou à sua aquisição pelas grandes (oua mergers), acaba-se formando um novonúcleo oligopólico, que passa a dominaro setor, ou seja, substitui-se um monopó-lio por outro, sempre no sentido de dimi-nuir a participação/regulação estatal eaumentar a influência do setor privado.

De especial interesse é o exame queTheotônio dos Santos faz do Plano Realem seu aniversário de 10 anos. Ele utili-za este plano como um estudo de caso desua tese de que as políticas neoliberaisnão são coerentes com sua própria teoria.O (neo)liberalismo prega a austeridadefiscal e o mercado concorrencial como oalocador ótimo de recursos (quanto me-nos for perturbado pelo Estado ou pormonopólios, melhor). Entretanto, Theo-tônio chama a atenção para que, ao pri-meiro sinal de dificuldades, os políticosdesta corrente econômica apelam exata-mente para pressionar (“distorcer”) omercado em direções muito específicas(geralmente favoráveis ao setor financei-ro, mesmo quando isto se dá em detri-mento da área produtiva), além de aban-donar descaradamente a austeridade fis-cal. O caso Reagan, na década de 1980,foi paradigmático: ao sair do cargo de pre-sidente, ao invés de austeridade fiscal(inclusive por ter cortado gastos sociaisdo governo), deixou os EUA com o maiordéficit de sua história (em grande partedevido a despesas militares). No casobrasileiro, o Plano Real era baseado emtrês “âncoras”: a cambial (real estávelfrente ao dólar), a monetária (contençãoda emissão e do crédito) e a fiscal (equi-líbrio orçamentário). Entretanto, ao en-frentar dificuldades provindas das crisesdo México, do sudeste asiático, etc., ogoverno FHC passa a se escorar princi-palmente na âncora cambial e mantém oreal sobrevalorizado. Para isto, precisaaumentar a entrada de dólares no país.Com este intuito, eleva a taxa de jurospara que os capitais estrangeiros, atraídospelos altos juros dos títulos do governobrasileiro, migrem para o Brasil. Mas esta

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alta taxa de juros é ruim para o setor pro-dutivo nacional, o que cria um círculovicioso: produzindo “menos”, obtêm-se“menos” dólares através de exportações,o que nos torna cada vez mais dependen-tes de elevar ainda mais a taxa de jurosinterna para atrair o capital estrangeiro.O pior é que grande parte destes dólaresestrangeiros são capitais especulativos decurto prazo, que não cumprem papel con-sistentemente produtivo, reforçando ocírculo vicioso. Com produção estagna-da (e, conseqüentemente, menos impos-tos coletados), o governo FHC partiupara outras “torneirinhas” fáceis de di-nheiro: elevou a carga fiscal na relaçãoimpostos/PIB e passou a se financiar atra-vés das privatizações de empresas esta-tais (mesmo as que davam lucro, como aVale do Rio Doce!); ou seja, o governosimplesmente agiu como aquela pessoaendividada que, ao invés de tentar refor-çar suas atividades produtivas e rendosas,simplesmente sobrevive tomando novosempréstimos (a juros cada vez mais altos)e vendendo suas posses para se manter.Não é preciso muito raciocínio para verque este é um caminho autodestrutivo.O livro destrincha as sutilezas técnicas doPlano Real para demonstrar suas incon-sistências e faz uma advertência ao gover-no Lula: mesmo que gradualmente, épreciso romper com a lógica anterior einstaurar um pensamento político-estra-tégico a longo prazo para o Brasil.

Para analisar todo o longo períodoneoliberal das últimas décadas, a obratambém excursiona pelo campo das re-lações internacionais. Algumas de suasteses certamente provocarão polêmica.Por exemplo, Theotônio não considera-va a configuração mundial pós-1945bipolar e sim unipolar, pois a superiori-dade dos EUA sobre a URSS sempre foigrande e nítida. Chama a atual hegemo-nia norte-americana de “hegemoniacompartilhada” e prevê o dólar perden-do seu poder hegemônico na economiamundial em um prazo médio de 15 ou 20anos. Contra os teóricos mais entusiasma-dos da globalização, prevê que o Estadonacional continuará a ter um papel pre-ponderante por um bom tempo ainda(como, aliás, nunca deixou de ter, segun-do ele). Entretanto, prega uma integra-ção mais justa entre os diversos estadosnacionais dentro da visão de uma civili-zação planetária plural, multicultural emultifacetada. Como conciliar as propo-sições destas duas últimas frases é umadas tarefas mais árduas dos políticosatuais. O livro faz um diagnóstico dosproblemas das últimas décadas e prescre-ve alguns possíveis caminhos alternati-vos. Tanto quem concorda como quemnão concorda com suas teses encontrarãona obra grandes subsídios para um enten-dimento mais aprofundado do fenôme-no do neoliberalismo e de suas conse-qüências econômicas e políticas.