do cativeiro para a liberdade: mobilidades de alforriados ... · explicação histórica, ou seja,...

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO CENTRO DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIAS EXATAS E NATURAIS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA CURSO DE HISTÓRIA WALLAS MEIRELES GOUVEIA DO CATIVEIRO PARA A LIBERDADE: mobilidades de alforriados em São Luís do Maranhão (1830-1845) SÃO LUÍS 2014

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Page 1: DO CATIVEIRO PARA A LIBERDADE: mobilidades de alforriados ... · explicação histórica, ou seja, que propunha a história como ciência social.5 ... 5 CASTRO, Hebe, O surgimento

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO

CENTRO DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIAS EXATAS E NATURAIS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA

CURSO DE HISTÓRIA

WALLAS MEIRELES GOUVEIA

DO CATIVEIRO PARA A LIBERDADE:

mobilidades de alforriados em São Luís do Maranhão

(1830-1845)

SÃO LUÍS

2014

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WALLAS MEIRELES GOUVEIA

DO CATIVEIRO PARA A LIBERDADE:

mobilidades de alforriados em São Luís do Maranhão (1830-1845)

Monografia apresentada ao curso

de História da Universidade

Estadual do Maranhão para

obtenção do grau de licenciado em

História.

Orientador: Prof. Dr. José

Henrique de Paula Borralho.

SÃO LUÍS

2014

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Gouveia, Wallas Meireles.

Do cativeiro para a liberdade: mobilidades de alforriados em São Luís do

Maranhão (1830-1845) / Wallas Meireles Gouveia.– São Luís, 2014.

64 f.

Monografia (Graduação) – Curso de História, Universidade Estadual do

Maranhão, 2014.

Orientador: Prof. José Henrique de Paula Borralho

1.Alforria. 2.Liberdade. 3.Escravidão. I.Título

CDU: 84(812.1).056

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WALLAS MEIRELES GOUVEIA

DO CATIVEIRO PARA A LIBERDADE:

mobilidades de alforriados em São Luís do Maranhão (1830-1845)

Monografia apresentada ao curso

de História da Universidade

Estadual do Maranhão para

obtenção do grau de licenciado em

História.

Orientador: Prof. Dr. José

Henrique de Paula Borralho

Aprovada em ___/ ___/ ______

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________________

Prof. Dr. José Henrique de Paula Borralho (Orientador)

Universidade Estadual do Maranhão

________________________________________________________

1º Examinador(a)

________________________________________________________

2º Examinador(a)

SÃO LUIS

2014

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Às três mulheres da minha vida:

Ester, Jô e Luana.

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AGRADECIMENTOS

Aos Deuses pela proteção.

À minha avó Ester (In Memoriam), meu alicerce.

À minha mãe Jô, presente em todos os momentos da minha vida, exemplo

de mãe que sempre acreditou e apostou em mim.

Ao meu irmão Josimar, com quem sempre pude contar.

Ao meu padrasto Ismar, que sempre me ajudou à sua maneira.

À minha namorada Luana, pelo amor, carinho e apoio em todas as horas,

sem os quais eu não seria nada.

Ao professor Henrique Boralho pela orientação e apoio desde a iniciação

científica até a monografia.

Aos amigos que fiz nos mais de quatro anos de graduação.

Aos amigos de cursinho, rua e a tantos outros.

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As correntes da escravidão só prendem as

mãos. É a mente que faz livre o escravo.

Franz Grillparzer

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RESUMO

Os estudos sobre mobilidade de escravos têm avançado nas últimas décadas, porém os

estudos sobre o cativeiro ainda continuam mais expressivos numericamente. Este

trabalho investiga o processo de transição para a liberdade de alguns sujeitos

escravizados em São Luís do Maranhão no período de 1830 a 1845. Partimos do

pressuposto de que a liberdade para um cativo poderia ter diversos significados, cada

sujeito almejava um tipo de liberdade, não havendo uma liberdade padrão ou absoluta.

A partir dos testamentos e inventários de alforriados traçamos um pouco de suas

trajetórias, desde o processo de superação do cativeiro até mobilidade ou inércia social.

Estes processos de transição e as relações sociais criadas por eles nos dão base para

pontuar acerca de suas mobilidades.

Palavras-chave: Liberdade. Alforria. Mobilidade. Transição.

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ABSTRACT

Studies on mobility of slaves have advanced in recent decades, but studies on captive

are still more significant numerically. This work investigates the process of transition to

free some enslaved subjects in Sao Luis in the period 1830-1845. We assumed that

freedom for a captive could have several meanings, each subject craved a kind of

freedom, not there is a pattern or absolute freedom. From the wills and inventories a

little freed traced their trajectories, since the process of overcoming the bondage to

mobility or social inertia. These processes of transition and social relationships created

by them give us a basis for scoring on their mobilities.

Keywords: Freedom. Enfranchisement. Mobility. Transition.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO……………………………………………………………………….11

1. TRÁFICO E ESCRAVIDÃO: a criação da dependência. ....................................15

1.1 AS RELAÇÕES CRIADAS POR ESCRAVIZADOS: verticais e horizontais........21

1.2 ESCRAVO NÃO, ESCRAVIZADO! FORMAS DE NÃO ACEITAÇÃO DO

CATIVEIRO. ............................................................................................................25

2. UMA SOCIEDADE MARCADA PELA PRESENÇA AFRICANA: a ilha de

São Luís no oitocentos (1830 – 1845). .........................................................................31

2.1 PÓS-CATIVEIRO: continuidades e descontinuidades. ...........................................37

3. EXCEÇÕES: a mobilidade socioeconômica de alforriados em terras

ludovicenses no início dos oitocentos. .........................................................................45

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................58

5. REFERENCIAS.........................................................................................................60

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho é fruto de algumas indagações surgidas no início da

graduação. Desde o início do curso sempre possuí interesse pelo tema da escravidão, o

processo de coisificação e escravização dos africanos em terras americanas eram temas

que me interessavam. Durante a maior parte do curso tive contato com algumas obras

voltadas para a temática. Na metade do curso, em uma conversa com o professor Dr.

Josenildo Pereira1, o mesmo me indicou alguns livros que analisavam a escravidão por

vários ângulos. A partir da gradual leitura dessas obras, fui descobrindo o que realmente

iria pesquisar. Debruçado sobre livros e textos acerca do Brasil escravista, interessei-me

pela perspectiva da liberdade, retomada da liberdade, considerando-se que os africanos

aqui desembarcados nasceram livres e cá foram escravizados. A temática da liberdade

de escravos2 é deveras ampla, o presente trabalho objetiva pensar a vida - em liberdade -

de alguns libertos, analisando-se desde a forma pela qual essa liberdade foi obtida até a

mobilidade, ou não, destes nas esferas econômica e social.

O inicio efetivo desta pesquisa se deu no segundo semestre do ano de 2013,

quando junto ao Professor Dr. José Henrique de Paula Borralho3 tive a oportunidade de

ingressar no mundo da iniciação científica, obtendo uma bolsa BIC/UEMA. A pesquisa

tem ocorrido em paralelo com a escrita deste trabalho de conclusão de curso. Em junho

de 2013, iniciei, no Arquivo do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, uma busca

por documentação referente a escravos alforriados. A princípio, objetivava encontrar

cartas de alforria, sem sucesso passei a pesquisar testamentos e inventários pertencentes

a libertos. Esta documentação foi o ponto de partida definitivo que norteou e limitou

minha pesquisa, a partir da sua leitura e transcrição, percebi a riqueza documental que

tinha em mãos.

Nestes testamentos e inventários da primeira metade do século XIX, pude

perceber as relações verticais e horizontais desenvolvidas por libertos e libertas, dando

1 Docente da Universidade Federal do Maranhão.

2 Aplicando-se o termo aos africanos aqui escravizados e/ou seus descendentes

3 Professor Doutor do departamento de história e geografia da UEMA, do Programa de Pós-Graduação –

História, Ensino, Narrativas.

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base para análises da mobilidade social e econômica e auxiliando na reconstrução das

expectativas da vida livre destes sujeitos que a pouco haviam “superado” o cativeiro.

A obtenção de uma carta de alforria dependia de inúmeras variáveis, as

quais serão consideradas no decorrer deste trabalho. Havia vários padrões de

manumissão e a relação vertical senhor-escravo era fator determinante na facilidade ou

dificuldade do processo,

Em relação especificamente à alforria, o numero de trabalhos hoje

existentes ainda é relativamente pequeno, mas aponta na mesma

direção daqueles que se dedicam especificamente à escravidão,

buscando demonstrar a manumissão como resultado de um longo

processo de negociação entre o senhor e seu escravo. Processo esse

que nem sempre era finalizado com a própria concessão da liberdade,

não só por que muitas alforrias eram condicionais, mas também por

que o liberto era obrigado a demonstrar respeito e gratidão pelo seu

antigo senhor, sob ameaça de ser reescravizado4.

Espacialmente a pesquisa situa-se na capital da província do Maranhão entre

os anos de 1830 a 1845. O trabalho se insere em um período no qual o tráfico

transatlântico ainda era a principal forma de renovação dos plantéis de escravos. Alguns

anos depois essa prática perderá espaço para o tráfico interprovincial, vide pressões

inglesas para o fim do tráfico, que começam com a “proibição” da importação de

escravos em 7 de novembro de 1831. Essas leis só tiveram maior vigor no inicio da

segunda metade do século, quando se intensificaram as pressões inglesas.

Pode-se enquadrar este estudo histórico como de caráter social, pautado no

estudo prioritário de experiências coletivas de determinados grupos socioeconômicos:

Sob o signo mais forte dos Annales, desenvolvia-se, desde a década de

1930, uma “historia econômica e social”. Apesar da maior ênfase na

historia econômica, nos primeiros anos da revista, a “psicologia

coletiva” e as hierarquias e diferenciações sociais também

encontravam-se presentes. A oposição a historiografia rankiana e a

definição do social se construía, assim, a partir de uma pratica

historiográfica que afirmava a prioridade dos fenômenos coletivos

sobre os indivíduos e das tendências a longo prazo sobre os eventos na

4 LARA, Sílvia H. Campos da violência. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1986, págs. 248 – 268 e BELLINI,

Lígia. “Por amor e por interesse: a relação senhor-escravo em cartas de alforria”. In: REIS, João

José (org.). Escravidão e invenção da liberdade: estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo:

Brasiliense, 1988, pág. 73 – 86.

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explicação histórica, ou seja, que propunha a história como ciência

social.5

A documentação que aqui será utilizada não se restringe somente aos

testamentos e inventários, utilizarei também alguns jornais encontrados no acervo

digital da Biblioteca Nacional. Este segundo aporte documental contribui diretamente

no nossa trabalho de reconstrução da vivência de libertos durante o período escravista

ludovicense abordado no presente trabalho. O documento é resultado de uma montagem

consciente, ou inconsciente, da sociedade que o produziu e também das épocas

sucessivas durante as quais continuou a viver esquecido ou manipulado, como disse

Maria Helena Capelato em seu Imprensa e História do Brasil (1988), por isso a

utilização da referida documentação ocorrerá de modo cauteloso, considerar-se-á as

restrições documentais e, principalmente, não se tomará o documento como um

fragmento de verdade, mas como algo dotado de interesses de classe bem delimitados

ou diluídos em suas linhas.

O acesso a novas fontes documentais possibilitou novas abordagens aos

velhos temas. Na atual situação historiográfica, quase tudo pode ser utilizado como

fonte, desde que se tome os cuidados já advertidos anteriormente. Além dos testamentos

e inventários pertencentes aos libertos, resolvi - quase de “última hora” - utilizar

também testamentos de pessoas livres, membros da elite local ludovicense. Com essa

documentação, é possível analisar como os senhores, no leito de morte, procediam em

alforriar ou não seus escravos. Pretendo perceber quais padrões esses senhores seguiam

(alforrias incondicionais, alforrias condicionais, alforrias pagas, gratuitas e etc.), a partir

daí poderei pensar quais variáveis inferiam no ato de concessão das cartas de alforria.

Portanto, de modo geral, o trabalho busca pensar a alforria sob duas

principais perspectivas. Primeiro a perspectiva da mobilidade social e/ou econômica, na

qual alforriados que conseguiram legar seus bens e mesmo possuir escravos são o foco.

E por último, a perspectiva das variáveis que interferiam no ato de alforriar, essa parte

diz respeito à capacidade do escravo em acumular pecúlio e também às suas relações

com seus senhores, pessoas livres e com a comunidade escrava. Enfim, os processos de

5 CASTRO, Hebe, O surgimento da história social, pág. 79, IN CARDOSO, Ciro Flamarion,

VAINFAS, Ronaldo (Orgs.). Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia, Rio de Janeiro:

Campus, 1997.

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obtenção e consumação ou não da liberdade por escravos são os objetivos deste

trabalho. Buscarei demonstrar e existência ou não de um abismo entre cativeiro e

liberdade. Adianto que a maioria dos casos aqui abordados são exceções, sujeitos que

conseguiram transpor as barreiras do cativeiro de maneira mais incisiva, e

desenvolveram um modo de vida distante da realidade anterior de cativeiro,

Infelizmente a grande maioria dos escravos não conseguiu tal feito.

Havia finalmente o incentivo supremo da liberdade por meio da

alforria. Como veremos, isso não era exatamente uma “miragem”,

pois as manumissões no Brasil eram comuns e podiam der obtidas não

só com bom comportamento, mas também por compra; a alforria

estava pois relacionada à capacidade do escravo de acumular capital.

Um cativo mulato ou crioulo com ocupação especializada ou

experiência em supervisão no engenho não só podia ter esperanças de

finalmente um dia tornar-se livre, mas também podia ter relativa

certeza de conseguir emprego após liberto. [...] Os senhores de

engenho descobriram que a melhor maneira de obter a desejada

quantidade e qualidade do trabalho era com um misto de punições e

recompensas: os escravos perceberam que em tal sistema havia

oportunidades para melhorarem sua vida. 6

Estruturalmente o trabalho encontra-se dividido em três capítulos. No

primeiro, analiso a primeira metade do século XIX, a dependência da sociedade

brasileira em relação à mão-de-obra escrava, as pressões inglesas para o fim do tráfico e

a manutenção deste.

No segundo, adentrarei a realidade ludovicense, buscando perceber como a

sociedade livre se relacionava com a escravidão. Iniciarei a análise sobre a vida dos

libertos e suas perspectivas de futuro, assim como as possibilidades de obtenção da

liberdade.

Por fim, me voltarei para a parte que julgo mais intrigante. Neste último

capítulo, utilizarei os testamentos e inventários pertencentes aos libertos para analisar

suas relações de mobilidade social e/ou econômica, essas relações nos darão base para

pensar como estes sujeitos se relacionavam com o mundo livre e com o mundo escravo.

Estas exceções sociais poderão nos mostrar que a marginalização social não

impossibilitava a mobilidade de libertos. Em alguns casos, estes conseguiam uma

6 SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: Engenhos e Escravos na Sociedade Colonial, São Paulo, Companhia

das Letras, 1995, p. 141 – 142.

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equiparação com o status senhorial, possuindo e negociando escravos, rompendo com o

antigo paradigma do cativeiro.

1. TRÁFICO E ESCRAVIDÃO: a criação da dependência.

A colonização portuguesa na América, em seu princípio, foi decepcionante

para os ditos colonizadores. As riquezas inimagináveis descritas pelos viajantes se

traduziram em uma situação que só traria lucratividade a médio ou longo prazo. A

frustração trouxe consigo o ímpeto de buscar novas formas de extrair lucros da jovem

colônia lusitana. Mesmo diante dessa situação, Portugal buscou aplicar à sua colônia um

modelo de colonização no qual a produção fosse articulada com as necessidades

metropolitanas. Dessa forma, buscava-se fortalecer a metrópole a partir da acumulação

de capital através da produção no interior da colônia. Diferente de outras nações

europeias Portugal desde o início buscou extrair o máximo possível de suas colônias,

durante o período colonial a grande prioridade era suprir as necessidades portuguesas,

buscou-se com sistemas como as Capitanias Hereditárias e os Governos Gerais

incentivar a colonização e consequentemente a maior acumulação de bens para a

metrópole.

E aqui tocamos no ponto nevrálgico; a colonização, segundo a análise

que estamos tentando, organizava-se no sentido de promover a

primitiva acumulação capitalista nos quadros da economia europeia ou

noutros termos, estimular o progresso burguês nos quadros da

sociedade ocidental. É esse sentido profundo que articula todas as

peças do sistema: assim, em primeiro lugar o regime do comércio se

desenvolve nos quadros do exclusivismo metropolitano; daí, a

produção colonial orienta-se para aqueles produtos indispensáveis ou

complementares às economias centrais; enfim, a produção se organiza

de molde a permitir o funcionamento global do sistema. Em outras

palavras: não bastava produzir os produtos com procura crescente nos

mercados europeus, era indispensável produzi-los de modo que a sua

comercialização promovesse estímulos à originária acumulação

burguesa nas economias europeias. 7

A atividade colonial iniciada em meados do século XVI, mesmo contando

com vultuosos investimentos de particulares, foi gerenciada pela monarquia portuguesa.

Portugal influenciou na formação de uma classe dominante diretamente vinculada à si,

os senhores de engenho foram quase que exclusivamente os donos do poder durante

7 NOVAIS, Fernando A. Estrutura e Dinâmica do Antigo Sistema Colonial, 5ª edição, Editora

Brasiliense, 1990, p. 77).

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grande parte do período colonial. Essa classe em formação possuía a necessidade de

alguns produtos: o primeiro deles era a terra, produto este concedido em larga escala

pela metrópole, outro produto era o capital para tocar a nova empreitada, este capital

quase sempre era próprio do colono, a última necessidade era a mão-de-obra, essa num

primeiro momento foi obtida através da exploração dos nativos, posteriormente inseriu-

se a obtenção de mão-de-obra numa lógica extremamente lucrativa, o tráfico de

africanos escravizados para as Américas. Pode-se dizer que a utilização do braço

indígena nas lavouras de cana caracterizou-se como uma fase intermediária, a

lucratividade do tráfico transatlântico é o argumento mais plausível para a substituição

de índios por africanos enquanto braços de trabalho.

Stuart Schwartz (1995), em sua obra Segredos Internos, caracteriza o início

da economia açucareira brasileira como um período tragicamente marcado pelo contato

entre portugueses e indígenas, os últimos enquanto mão-de-obra com custo quase nulo

foram utilizados na capitalização da atividade açucareira. Dessa forma, o lucro obtido a

partir da produção com braço indígena deu base para a fase posterior em que se

começou a inserir africanos traficados via atlântico como nova fonte produtiva.

A escravidão na colônia enquanto fruto do modelo colonial implantado por

Portugal tornou-se algo indispensável para a manutenção do ciclo produtivo assentado

no antigo modelo colonial. A atividade produtiva nos engenhos era dependente direta da

escravidão. Nos séculos finais do período colonial e durante o império toda a sociedade

formada a partir da colonização portuguesa estará vinculada direta ou indiretamente à

escravidão. No final do século XVI e início do XVII, era impensável desassociar

produção de mão de obra africana, tal dualidade manteve-se até a abolição da

escravidão. Mesmo com o aumento da população livre, a escravidão mantinha-se

enquanto instituição fortemente enraizada na sociedade brasileira. A ausência de

iniciativas de fomento à formação da mão-de-obra livre, como a inserção de colonos

europeus em massa, só contribuíram para o fortalecimento da atividade escravista, pois

os portugueses se inseriram num novo mercado, um mercado que trazia africanos para

América a fim de escraviza-los.

Ora, a produção colonial era, basicamente como já vimos, produção

para o mercado metropolitano, isto é, produção mercantil. Na

economia de mercado, contudo, é salariato o regime mais rentável; as

formas de trabalho compulsório, por seu lado, vincularam-se

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(escravismo antigo e, sobretudo, a servidão feudal) às economias pré-

mercantis (economia dominial fechada da Idade Média): exatamente, a

emergência da economia mercantil (o desenvolvimento do comércio)

tende a promover o desatamento dos laços servis, criando lentamente

condições para a expansão do trabalho “livre” – era o processo em

curso na Europa da Época Moderna. Neste sentido , o regime de

trabalho prevalecente no mundo ultramarino do antigo regime se

apresente como um contra-senso. 8

A escravidão não foi uma invenção da colonização, porém a atividade

colonizadora exercida por nações europeias deu novo sentido a outras formas de

escravidão preexistentes. Para Kátia Mattoso (2001), a escravidão já existia em algumas

sociedades africanas, em especial as muito hierarquizadas, porém somente era numerosa

no Benin e nas regiões sudado-saelinas, nesses casos específicos o cativo integrava-se

na família e não poderia ser vendido. É uma escravidão quase patriarcal, diferente da

lógica de tráfico transatlântico. O tráfico introduziu a atividade escravista em sociedades

que nunca haviam convivido com tal realidade.

Até a década de 1850, milhões de africanos foram desembarcados nos

portos ao longo da costa brasileira. Esses sujeitos eram trazidos em navios chamados

“tumbeiros”. Nessas embarcações vinham amontoados, muitas vezes acorrentados, sob

o julgo da fome, da sede e de doenças que podiam ser facilmente transmitidas devido às

condições desumanas. A morte era uma realidade presente e até calculada pelos

traficantes. As perdas de africanos durante a travessia do Atlântico mesmo atingindo

números que às vezes superavam os 50% continuavam deixando o negócio lucrativo.

Nos portos brasileiros eram vendidos a preços altíssimos fazendo do tráfico um negócio

autossustentado e certo de lucratividade.

Mesmo hoje, com o avanço das pesquisas em diversas áreas, ainda se

difunde uma visão do continente africano como um continuum homogêneo, como se no

continente houvesse uma única cultura e um único povo. Desde os primórdios de sua

existência o continente sempre foi marcado pela diversidades – geográficas, climáticas,

culturais, sociais, econômicas, etc. No contexto do tráfico transatlântico não foram

todas as civilizações africanas que se envolveram com a prática do tráfico. Parte da

8 Idem. pág. 80.

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historiografia contribuiu para a formação de uma visão que vitimiza os africanos

durante o tráfico de forma integral, é inegável o fato de as maiores e únicas vitimas do

tráfico terem sido os africanos, porém isso não anula o fato de parte dos africanos terem

se envolvido na lógica do tráfico. John Thornton (2004)9 toca neste ponto em que parte

dos africanos foram sujeitos atuantes no tráfico ao se associarem com os europeus, a fim

de escravizar africanos oriundos de nações vizinhas, muitas vezes inimigos.

O tráfico na África já ocorria antes da chegada dos europeus, as

transformações desencadeadas pelo contato com estes modificaram o tráfico africano de

forma trágica, até antes do contato não havia uma concepção mercadológica do escravo,

os europeus através de trocas comerciais com lideranças de algumas nações africanas

fizeram muitas dessas nações abandonarem suas tradicionais práticas produtivas para se

inserirem na lógica do tráfico. Muitas nações africanas essencialmente agrícolas ou

pastoris mobilizaram-se em prol de aprisionar outros africanos para comercializá-los

com os negociantes europeus.

Na América e em outras partes do mundo, os africanos já escravizados

produziam os bens que novamente seriam utilizados nas trocas na África para adquirir

novos africanos que novamente seriam escravizados. Dessa forma cruel os próprios

africanos produziam a riqueza que seria utilizada pela compra de seus “irmãos”, essa

face cruel do tráfico permanece no Brasil até a década de 1850, quando as pressões

inglesas depois de um longo período tiveram efeito real,

Nunca a participação africana nesse tráfico foi geral. Certos povos do

interior o ignoravam. Sociedades costeiras destruíam os navios e

saqueavam os equipamentos dos navios negreiros. Para outras, o

tráfico agitava as estruturas socioeconômicas e políticas. Outras ainda

se fortaleciam com uma gestão autoritária e exclusiva do sistema.

Então, os interesses negros e brancos coincidiam num tráfico

florescente. Produtores e distribuidores africanos de mão de obra

exportável prosperavam graças a este ramo da economia e ao

comércio exterior da costa. Durante o século XVIII, foram

comercializados cerca de 7 milhões de indivíduos contra

aproximadamente 300 milhões de piastras (libras) em mercadorias

específicas no “comércio da Guiné”, das quais talvez 80 milhões em

armas de fogo. No mesmo período, o tráfico transaariano deportava

mais de 700.000 pessoas, e o comércio pelo Oceano Índico ao redor

de 200.000. Na outra extremidade da travessia atlântica, os

negociantes negreiros trocavam os 6 milhões de africanos

9 THORNTON, John K, A África e os africanos na formação do mundo atlântico (1400-1800).

Tradução Marisa Rocha Morta; Coordenação editorial Mary dei Priore; Revisão técnica, Márcio

Scalercio. Rio de Janeiro, Editora Campus / Elsivier, 2004.

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sobreviventes – 40% de mulheres e crianças – pelo produto do

trabalho dos escravos, que era vendido cada vez melhor do lado

europeu do oceano. Lá, entretanto, alguns intelectuais cujas

sensibilidade e moral se chocavam com tais práticas condenavam o

consumo de um açúcar tingido pelo sangue dos “esquecidos de todo o

universo”. Eles clamavam pela abolição do tráfico. 10

A campanha inglesa contra o tráfico de africanos foi um processo gradual e

que muitas vezes só foi possível graças ao seu enorme potencial econômico-industrial.

Desde fins do século XVIII o abolicionismo tendencioso inglês já dava as caras no

cenário mundial. As Guerras Napoleônicas fizeram as pressões inglesas contra o tráfico

diminuírem e mesmo cessarem. A Paz de 1815 trouxe novamente o tráfico negreiro à

vida, até então as rotas marítimo-comerciais encontravam-se fechadas ou dificultadas

pela expansão napoleônica. As pressões inglesas foram retomadas, porém as nações

mais dependentes do tráfico demonstraram resistência (Portugal/Brasil, Estados Unidos,

Espanha e França). A Inglaterra propôs um sistema de investigação mútua onde cada

nação possuía o direito de investigar e ser investigada, dessa forma navios podiam ser

parados em alto mar para revistas, naqueles em que fosse detectado qualquer

envolvimento com o tráfico de africanos, caberia a apreensão. Muitas nações com medo

de possíveis boicotes ingleses fracamente se sensibilizaram, o tráfico de africanos foi

gradualmente sendo abolido.

Portugal burlou as pressões inglesas o máximo possível, porém somente em

1850 o medo de sanções inglesas levou a abolição do tráfico no Brasil. A abolição da

escravidão viria algumas décadas depois, também sob o julgo das pressões inglesas.

Após várias discussões, em 23 de novembro de 1826, foi assinado

entre o Brasil e a Inglaterra, um tratado antitráfico que estabelecia a

abolição desse comércio em três anos (...). A assinatura do tratado

seguiu-se de um aumento imediato nas importações de escravos no

Brasil com o objetivo de garantir o suprimento de mão de obra (...).

Várias foram as estratégias para burlar a vigilância da Inglaterra, que

naquele momento já assinara uma série de tratados com vários países,

permitindo a vistoria e apreensão de navios negreiros (...). A falta de

acordo entre os governos brasileiro e inglês levou a uma medida

unilateral deste ultimo, que em 1845, promulgou uma lei conhecida

como Bill Aberdeen, permitindo que as autoridades desse país

apreendessem qualquer embarcação envolvida com esse comércio de

10

DAGET, Sarget, A abolição do tráfico de escravos. In: História geral da África, VI: África do século

XIX à década de 1880 / editado por J. F. Ade Ajayi. – Brasília: UNESCO, 2010, págs. 77- 78.

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20

negros, além de estabelecer que os infratores fossem julgados pela

prática de pirataria. 11

No século XIX a escravidão no Brasil já era uma instituição madura. O

tráfico de africanos, que foi iniciado séculos antes, se encontrava em fase de apogeu. A

grande colônia portuguesa, que em 1822 torna-se “independente”, era totalmente

dependente da escravização dos africanos e do tráfico transatlântico, tanto que nas

primeiras décadas do oitocentos a intensificação da pressão inglesa fez Portugal utilizar

inúmeras estratégias para burlar o sistema inglês. Estes sujeitos – os africanos - e seus

descendentes estavam ligados às mais diversas atividades produtivas – lavouras,

engenhos, trabalhos domésticos, artesanato, transportes, construção e etc. A escravidão

difundiu-se de modo que a todos atingia, a posse de escravos não era privilégio dos

setores mais abastados. A historiografia nos prova cada vez mais esta afirmação, mesmo

famílias com poucas posses possuíam um ou dois escravos, e muitas vezes esses

escravos sustentavam diretamente essas famílias.

O reverendo Robert Walsh, que esteve no Rio em 1828-29, disse algo

muito similar para o rio, ao se reportar a uma forra, cujo o único bem

era uma escrava. A proprietária a alugava “a quem que que fosse e

para qualquer fim, o que lhe dava um bom meio de vida. Muitas

pessoas na redondezas do Rio, tanto brancas quanto negras, [viviam]

dessa maneira”. Possuíam um único escravo que, pela manhã saía “em

busca de trabalho e à noite” retornava. Para Thomas Ewbank, presente

na cidade entre 1845 – 1846, “centenas e centenas de famílias

[tinham] um ou dois escravos, cujos ganhos [constituíam] sua única

fonte de sustento. 12

Nessa realidade de relativa facilidade de posse de escravaria, escravos que

conseguiam obter sua liberdade das mais variadas formas conseguiram possuir escravos

e muitas vezes viver da exploração destes. A ideia de um ex-escravo proporcionar o

mesmo sofrimento por ele vivenciado a um “semelhante” nos parece incompreensível e

pode nos levar a interpretar isso como o antigo “olho por olho, dente por dente”. Porém,

na realidade do Brasil escravista do século XIX, a posse de escravos era uma forma de

poder econômico e simbólico, ser senhor de si e ser senhor de outros era uma

11

JACINTO, Cristiane Pinheiro Santos, Fazendeiros, Negociantes e Escravos: dinâmica e

funcionamento do tráfico interprovincial de escravos no Maranhão (1846 – 1885). In: O Maranhão

Oitocentista, GALVES, Marcelo Cheche e COSTA, Yuri (ORG). São Luís, MA: Editora UEMA 2009,

pág. 72 – 74. 12

FLORENTINO, Manolo, Tráfico, Cativeiro e Liberdade: Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX. Rio de

Janeiro, Civilização Brasileira, 2005, pág. 234.

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demonstração de ser dominante. Os ex-escravos que haviam vivenciado o status quo de

dominados agora buscavam dominar para demonstrar socialmente que haviam superado

o status de dominados. O psiquiatra martinicano Frantz Fanon analisa em uma de suas

obras13

algumas formas de dominação as quais os negros se submetiam para ser

socialmente aceitos no mundo branco-dominante, uma dessas formas de dominação

propostas pelo autor era a submissão linguística, na qual os negros buscavam a

aproximação com o idioma dominante (na obra em questão o francês), essa busca visava

uma maior aproximação com a classe dominante e é vista pelo autor como uma forma

de ajuste à cultura dominante. Na realidade brasileira muitos africanos escravizados

praticaram consciente ou inconscientemente um tipo de estratégia parecida na qual

adotavam práticas similares as de seus senhores (língua, religião, posse de escravos

quando libertos, etc.), estes ajustes à cultura dominante em muitos casos foram

determinantes na obtenção de benefícios para os africanos e/ou seus descendentes.

1.1 AS RELAÇÕES CRIADAS POR ESCRAVIZADOS: verticais e horizontais

Desembarcados nos portos brasileiros, milhões de africanos tiveram seus

destinos modificados das formas mais variadas e inimagináveis. O Brasil dos fins da

colônia e início do Império possuía uma estrutura produtiva pautada principalmente no

primeiro setor (agricultura e pecuária), a produção para exportação no mercado europeu

ainda era o grande ponto de acumulação de capital brasileiro. As elites locais vinculadas

a essa lógica enriqueceram a partir da produção executada quase que totalmente por

braços escravos. Aqui já foi dito que os escravos no Brasil desempenhavam as mais

variadas tarefas, haviam escravos do eito, escravos mestres de açúcar, pedreiros,

barbeiros, marinheiros, cozinheiros, tropeiros, escravos sem ofício, enfim a mão de obra

escrava enraizou-se na estrutura produtiva.

A aquisição de escravos era um negócio que proporcionava quase total

certeza de lucro, os senhores buscavam sempre extrair o máximo de lucratividade de

seus escravos-mercadoria, para isso utilizavam os mais variados métodos que podiam

ser positivos ou negativos para os escravos. Esses métodos variavam de senhor para

13

FANON, Frantz, Pele negra, máscaras brancas. EDUFBA, 2008.

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senhor e dependiam de diversos fatores, dos quais a relação do cativo com o senhor era

ponto chave.

Muitos senhores empregavam rotinas compulsivas de trabalho a seus

escravos, outros ditavam maior flexibilidade nessa rotina, proporcionando ao cativo

certa liberdade, esse último caso era mais comum nas realidades urbanas onde escravos

de ganho, ou aluguel, eram mais numerosos. No âmbito rural, nos grandes engenhos a

rotina de trabalho geralmente era massiva, quase ininterrupta. Stuart Schwartz, em

estudo sobre a escravidão nos engenhos baianos, pontua que o trabalho em um engenho

brasileiro era ininterrupto, sendo as atividades pertinentes aos canaviais realizadas

durante o dia e as atividades da moenda durante a noite. Desse modo percebe-se que o

rigor de trabalho era massivo, essa é sem dúvida uma das grandes razões da baixa

expectativa de vida e fecundidade dos africanos aqui escravizados e seus descendentes.

As péssimas condições de vida de muitos escravos faziam com que estes buscassem

evitar a reprodução, pois não pretendiam legar a seus descendentes o fardo do cativeiro.

A realidade escravista brasileira, diferente de outras realidades, mostrava-se

muito mais dependente do tráfico transatlântico. A renovação dos plantéis quase não

contava com a reprodução natural da escravaria, não haviam grandes incentivos por

parte dos senhores para a formação da família escrava. As escravas eram preteridas pois

“eram menos produtivas que os homens”, dessa forma os plantéis brasileiros eram

renovados via tráfico negreiro, a lógica produtiva brasileira por esse e outros motivos

era bastante sensível às variações internacionais. Fora isso havia uma questão

econômica básica, para um senhor de escravos era muito oneroso criar um escravo

desde o nascimento até a entrada deste na vida produtiva, que mesmo começando muito

cedo tornava a criação de um escravo custosa. A desproporção entre escravos e escravas

dificultava a formação da família escrava, em todos os momentos da história da

escravidão brasileira o numero de escravas sempre foi inferior ao numero de escravos, a

mortalidade infantil sempre fora elevada e a expectativa de vida dos cativos era

sensivelmente baixa, por motivos óbvios.

Diante de tantas dificuldades vivenciadas pelos africanos trazidos para o

Brasil e seus descendentes, esses sujeitos buscavam maneiras de amenizar o sofrimento

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do cativeiro que lhes foi imposto: uns buscaram formas pacificas, outros não fugiram à

luta contra seus algozes. A escravidão era dotada de um jogo de simbolismos onde a

autoridade senhorial não poderia ser questionada. Desse modo, muitos escravos

buscavam manter boas relações com seus senhores pretendendo, assim, obter algum

“lucro”.

Esse tipo de relação vertical poderia ser muito produtiva para ambos. Os

escravos que possuíam um bom relacionamento com seus senhores muitas vezes

recebiam tratamento diferenciado, e em alguns casos eram alforriados via testamento.

Além disso, um bom relacionamento com os senhores e com outras pessoas livres

facilitava o processo de transição para a vida livre, seja para o próprio cativo, seja para

seus filhos. Por outro lado, uma maior proximidade com os senhores poderia se tornar

um empecilho para os escravos, a maior proximidade como a tida pelos escravos

domésticos poderia proporcionar um maior nível de fiscalização o que diminuiria

drasticamente os espaços de liberdade dos cativos.

A realidade escravista brasileira possuía várias micro realidades, haviam

situações que proporcionavam aos escravos maiores chances de espaços de liberdade, e

outras que as anulavam. Nesse jogo, os escravos buscavam inúmeras formas de ampliar

ou consolidar seus espaços de liberdade. Quase sempre os escravos urbanos

vivenciavam maior autonomia nesses espaços. A lógica rural era mais exigente, as

jornadas eram quase ininterruptas para os escravos do eito, já nas cidades havia muitos

escravos de ganho que gozavam de grande autonomia,

Por toda parte em todos os ofícios encontrava-se o escravo: pedreiros,

carpinteiros, sapateiros, funileiros, a trabalhar por conta do senhor, a

quem entregava o que ganhavam. Havia no Rio de Janeiro senhores

que mantinham no “ganho” até trezentos negros. O senhor taxava por

dia ou por semana. (...) Nas cidades, as ocasiões de sobrevivência dos

ritos africanos eram maiores do que nas zonas rurais, dada a

concentração de escravos da mesma nação e a relativa liberdade com

que se deslocavam de um lado para outro.” 14

Para a lógica escravista brasileira pouco se pode dizer de forma

generalizante, devido às diferenças regionais e contextuais, muito deve ser relativizado,

14

DA COSTA, Emília Viotti. Da senzala à colônia. Unesp, 2012, págs. 280-282).

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porém grande parte da historiografia concorda com o fato de os escravos urbanos

gozarem de maior autonomia quando comparados com os do eito.

Além das relações que existiam entre senhores e escravos, havia relações

mais sólidas, muitas vezes criadas ainda no interior dos navios negreiros. As relações

entre escravos eram tão fortes e produtivas quanto as verticalizadas. A inserção ante à

coletividade, para o escravo, era uma forma de compartilhar com seus iguais o

sofrimento cotidiano, além de uma maneira de melhor jogar o jogo da transição para a

liberdade. Os escravos brasileiros quase sempre buscaram formar alianças dentro das

senzalas, essas relações de apadrinhamento, compadrio, casamentos solidificavam esses

sujeitos enquanto classe.

Para Edward P. Thompson15

, a classe ocorre quando alguns homens, como

resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a

identidade de seus interesses entre si, contra outros homens cujos interesses diferem (e

geralmente se opõem) dos seus. Dessa forma havia um processo de quase atração-

repulsão entre senhores e escravos. Nesse jogo cada classe buscava obter maior

vantagem da outra, os senhores visavam sempre extrair mais trabalho/capital de seus

escravos, enquanto estes buscavam aproximação com os senhores visando suplantar o

cativeiro. Os senhores levavam vantagem, pois estavam acima hierarquicamente dos

escravos, o que não anula o fato de muitos escravos terem conseguido extrair vantagem

das suas relações com senhores e outros escravos. Na realidade, para um escravizado

quanto mais articulado ele fosse no mundo livre e no cativo, melhores eram suas

chances de transpor o cativeiro. Geralmente os projetos de obtenção de liberdade não

eram individuais, muitas famílias escravas trabalhavam para adquirir uma a uma as

cartas de alforria de seus membros A liberdade não suplantava os laços criados durante

o cativeiro, muitas vezes haviam poucas diferenças reais entre ex-escravos e escravos.

Nos limites do que os autos puderam reconstruir nos pequenos

fragmentos da vida desses africanos, revela-se a importância dos laços

próximos ao parentesco, por eles desenvolvidos ao longo de sua

escravização, e que acrescidos do solidificados por casamentos e

compromissos de compadrio, tratariam de manter após a liberdade ou

15 THOMPSON, Edward P. Formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987,

vol.1: A árvore da liberdade.

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a emancipação. Traçam na experiência concreta desses grupos, a

permanência de linhas continuas entre as vivências pregressas e a da

liberdade, configurando nessa continuidade os suportes de

aprendizado social e a textura de seus vínculos de solidariedade e

ajuda mútua, vincados também por tensões.16

Em linhas gerais, a família escrava era uma boa estratégia. Dependendo da

relação dos escravos com seus senhores a prole poderia nascer com a liberdade

garantida. Longe de ignorantes, os senhores de escravos perceberam que a liberdade era

o incentivo perfeito para extrair o máximo de lucratividade de seus escravos, mais que

uma ilusão a liberdade era uma realidade que os senhores souberam utilizar muito bem a

seu favor. O ato de “concessão” da liberdade, mesmo que essa fosse comprada pelo

escravo, era feito de modo que parecesse um presente senhorial, desse modo, a

autoridade senhorial não seria questionada. Esse fator simbólico era uma das bases do

sistema escravista brasileiro.

Além da busca por relações verticais e horizontais, muitos escravos

encontravam meios mais rápidos e radicais para transpor o cativeiro: fugas, assassinatos

de senhores e feitores, formação de quilombos, suicídios, boicotes, etc. Neste tópico que

seguirá abordarei esta perspectiva de transposição para a liberdade por meio da

resistência escrava, afinal, nem todos os escravos buscaram manter boas relações com

seus senhores. Muitos africanos não se adaptaram ao cativeiro e buscaram as mais

variadas formas de escapar da escravidão que lhes era imposta enquanto nova realidade

de vida.

1.2 ESCRAVO NÃO, ESCRAVIZADO! FORMAS DE NÃO ACEITAÇÃO DO

CATIVEIRO.

O processo exclusão e marginalização de certos grupos em determinada

sociedade não pode ser analisado como um fenômeno contemporâneo. Desde a

antiguidade classes “dominaram” outras classes, pelos mais distintos interesses,

variando na forma e na finalidade, o que não implica afirmar que o grupo “dominado”

estaria fadado a tal condição até o fim de sua existência.

16

WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros em

São Paulo, 1850-1880. Vol. 4. Editora Hucitec, 1998, pág.138.

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26

Inúmeras foram e são as formas encontradas pelos “dominados” para romper

com tal status quo: fugas, rebeliões, sabotagens, assassinatos e mesmo suicídios, foram

comuns quando um grupo subjugou outro. Esse “conflito” constante entre dominados e

dominadores – escravos e senhores – mesmo sendo uma luta desigual para os primeiros,

havia momentos em que os dominados rompiam com o julgo de seus dominadores

direta ou indiretamente. Esses momentos quase sempre partiam de iniciativas coletivas,

o fortalecimento da comunidade escrava, a formação da família e outros fatores

contribuíam para facilitar o distanciamento da dominação senhorial.

A grande colônia portuguesa que no século XIX torna-se Império recebeu

desde o início do período colonial um contingente considerável de africanos, oriundos

de inúmeras regiões daquele continente. Estes sujeitos eram excluídos e explorados de

todas as formas possíveis. O homem preto, mercadoria, objeto do tráfico, passa de mão

em mão; comprado, vendido e revendido, percorre circuitos balizados por todo um

conjunto de relações, costumes, praxes, regulamentos, armadilhas, que é preciso

delimitar (MATTOSO: 2003, pág. 23). Essa exploração constante não os tornava mais

submissos, pelo contrário, os horrores do cativeiro lançavam os escravos na busca pela

liberdade, havia os que acumulavam pecúlio a fim de comprar suas manumissões, e

havia os que fugiam paras as matas e quilombos, além dos que cometiam suicídio e

outras formas e escapismo à árdua realidade escravista brasileira.

Muitos escravos fugiam para outros municípios, e na nova realidade se

passavam por libertos. Nesse processo, em muitos casos contavam com o auxílio de

pessoas livres brancas ou alforriados. Em praticamente todos os processos da vida do

escravo, ser bem articulado era um divisor de águas, possuir amigos livres era fator

determinante no caminho para a liberdade, tanto pela via da alforria quanto pela via das

fugas. Muitos alforriados auxiliavam escravos em fuga, lhes concedendo abrigo,

dinheiro e moradia.

Os escravos fugidos contavam, além dos abrigos naturais, já com a

presença de contingentes de homens negros livres aí estabelecidos,

muitos deles recém-saídos da escravidão e que, de uma maneira ou

de outra, se mostravam dispostos a assisti-los. As alianças que os

libertos estabeleciam com tais escravos poderiam concretizar-se de

várias formas: acolhendo a quilombolas em suas moradias ou

oferecendo-lhes comida ou trabalho para se “vestirem e firmarem”,

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27

ou ainda, simplesmente facilitando seus disfarces de homens livres,

na fluidez de tipos físicos e sócias existentes em suas

aglomerações.17

Além das fugas, muitos escravos praticavam furtos, ou sabotagens de

grande e pequeno porte. Essas práticas podem ser analisadas como formas de

descontentamento com a condição escrava. Os furtos poderiam servir para o aumento do

pecúlio que seria utilizado na compra da alforria do próprio escravo ou de um ente seu,

no caso de escravos com família a transição para a liberdade era um processo pensado

coletivamente, os membros acumulavam e compravam a liberdade membro por

membro.

Muitas escravas buscavam relacionamentos com homens livres, às vezes

com seus próprios senhores, no anseio destes concederem-lhes a carta de alforria.

Algumas escravas foram bem sucedidas nesse processo, outras contaram com os

esforços de seus cônjuges ainda cativos ou de si próprias. O menor custo das escravas, a

facilidade de criar relacionamentos, o maior envolvimento em atividades comerciais são

motivos que podem justificar a superioridade feminina no que diz respeito ao número de

escravos livres. Mesmo que numericamente inferiores em termos absolutos, as escravas

eram maioria quando o assunto era concessão de liberdade.

Talvez o último recurso de ruptura com a escravidão adotado por muitos

escravos era o suicídio. O ato de tirar a própria vida mostra que alguns escravos

mantiveram-se tão inadaptados ao cativeiro que chegaram a optar pelo suicídio para dar

um fim ao sofrimento por eles vivenciado. Para os senhores o suicídio era uma perda

direta de capital investido, na realidade todas as manifestações por parte dos escravos

eram prejudiciais ao senhor, daí a forte repressão e vigilância com os escravos,

principalmente na lógica rural.

Para diminuir o ímpeto das fugas, rebeliões e todo tipo de manifestações dos

escravos, muitos senhores utilizavam-se do recurso de incentivar seus cativos a serem

leais através de promessas de alforria. Outros modos de contenção da rebeldia escrava

eram a família e a religião. Geralmente os escravos com família optavam pelo caminho

da aquisição da liberdade e não da fuga, pois uma fuga coletiva mostrava-se mais difícil.

17

Idem.

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28

A imposição do catolicismo era uma forma de desafricanizar o escravizado

tornando-o mais suscetível à aceitação do que lhe era imposto. Em última análise, o

catolicismo para o escravo era uma forma de aproximação com o modelo senhorial

dominante. Mesmo sendo uma realidade, a imposição do catolicismo aos escravos

nunca conseguiu ser hegemônica, na prática muitos escravos ditos católicos

manifestavam simultaneamente seus cultos de origem africana. O escravo que batucava,

incomodava e amedrontava as elites era muitas vezes o escravo batizado na fé católica e

que tentava seguir os preceitos da religião ocidental.

Por outro lado, a própria estrutura escravista bloquearia a

possibilidade de inversões tecnológicas; o escravo, por isso mesmo

que escravo, há que manter-se em níveis culturais infra-humanos, para

que não se desperte a sua condição humana, isto é, parte indispensável

da dominação escravista. Logo, não é apto a assimilar processos

tecnológicos mais adiantados. Em certas situações os colonos-

senhores chegaram à maravilha de opor-se à catequese dos negro (que

enfim era o argumento com o qual se justificava a sua vinda da

África) pois já isto era perigoso: aprendia uma língua comum, podiam

comunicar-se os vários grupos africanos. Lembre-se de passagem que

é uma ilusão supor-se como às vezes se faz, estável a sociedade

escravista: muito ao contrário foram frequentes as fugas e rebeliões,

os troncos não eram de longe objetos decorativos.18

É inegável afirmar que as grandes aglomerações de escravos despertavam o

pavor em muitos senhores, os mais “inteligentes” segundo a historiografia, mesclavam

incentivos e castigos a fim de extrair o máximo de rendimento de seus cativos sem que

isso gerasse a ira da classe escrava. As elites brasileiras temiam revoltas em massa, por

isso, muitos senhores eram cautelosos em não agrupar muitos africanos de mesma etnia

em seus plantéis, fato que na realidade muito pouco adiantava, os laços criados entre

muitos escravos se iniciava num momento em que estes começavam a se ver como uma

classe, independentemente de suas diferenças étnicas autóctones ao continente africano.

A vida de um escravo brasileiro era cercada de dualismos e contradições, a

nova e a antiga realidade se contrastavam, era praticamente impossível para os africanos

abandonar integralmente seu modo de vida em detrimento da nova lógica que lhes era

imposta, esses sujeitos mesclaram elementos oriundos dos dois lados do atlântico,

contribuindo ativamente no seu processo de constituição enquanto classe e no processo

18

NOVAIS, Fernando A. Estrutura e Dinâmica do Antigo Sistema Colonial, 5ª edição, Editora

Brasiliense, 1990, pág. 94-95.

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de formação social, econômico e cultural do povo brasileiro. A historiografia quase

sempre delegou aos africanos apenas sua contribuição na formação cultural brasileira,

porém devemos partir da premissa da contribuição desses sujeitos agentes enquanto

formadores nas dinâmicas social e econômica, assim como na cultural. Não esqueçamos

que a economia e a sociedade brasileira durante cerca de 300 anos foram sustentadas

pelo trabalho africano.

A escravização de africanos na América Portuguesa era justificada por

velhos argumentos europeus. O arcaico discurso de levar o progresso e a civilização,

incluso no pacote o catolicismo ocidental, foram as prerrogativas europeias que

tentaram justificar o escravismo, sabe-se, porém, que a lucratividade do tráfico era o

grande motor do processo que durou cerca de trezentos anos. As elites brasileiras se

associaram ao uso de mão de obra africana e toda a sociedade tornou-se dependente da

escravidão, a existência desta era um grande empecilho para o desenvolvimento interno,

o trabalho livre era minoritário, em algumas regiões, quase inexistente, e a

industrialização era uma miragem muito distante. A escravidão em última análise e a

associação das elites a ela propiciaram o desenvolvimento de uma sociedade atrasada,

aos moldes da Europa feudal, os europeus viram na América uma forma de recriar um

passado arcaico e lucrativo, dessa forma a exploração colonial no Brasil sempre buscou

suprir as necessidades das nações europeias.

Ao se tornar “independente”, a ex-colônia portuguesa sob o julgo de

pressões inglesas buscou uma maior aproximação com outras nações em especial com a

Inglaterra, esta desde fins do século XVIII iniciou um voraz processo que visava o fim

do tráfico de africanos, não por defesa dos interesses africanos ou por benevolência,

mas por interesses diretos de mercado. A Inglaterra industrializada buscava a todo custo

expandir seus mercados consumidores, para isso a escravidão nas colônias deveria ser

combatida a todo custo. A ruptura com a escravidão no Império brasileiro sobreviveu

quase mais um século após o início das pressões inglesas, porém já durante o contexto

do começo do século XIX inicia-se no Brasil um discurso que aponta a escravidão como

um passado de atraso, mesmo sendo uma velha instituição arcaica. Superar a escravidão

numa sociedade tão dependente foi um processo complexo e marcado por várias fases

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distintas, pouco a pouco parte da elite brasileira foi se aproximando dos ideais

abolicionistas, uma outra parcela manteve-se “fiel” à escravidão até o fim.

O processo de ruptura com o modelo escravista mostrou-se cheio de

contradições, o discurso abolicionista brasileiro muitas vezes mostrou-se apenas como

discurso, abolida a escravidão o movimento abolicionista sentiu-se no dever cumprido e

houve um processo de esquecimento da causa.

A escravidão vai aceleradamente perdendo sua base moral, não

somente na opinião comum, mas até em círculos conservadores. Logo

depois da Independência já a vemos alvo da crítica geral. Aceita-se e

se justifica, mas como uma "necessidade", um mal momentaneamente

inevitável. Ninguém ousa defendê-la abertamente; e seu

desaparecimento num futuro mais ou menos próximo é reconhecido

fatal. A discussão se trava apenas em torno da oportunidade. Tal

posição dúbia explica, aliás a atitude incoerente e contraditória das

opiniões da época: enquanto se critica a escravidão, sustenta-se

energicamente sua manutenção; reconhecem-se seus males, mas raros

ousam ainda combatê-la francamente e propor medidas efetivas e

concretas para sua extinção. É que realmente a escravidão constituía

ainda a mola mestra da vida do país. Nela repousam todas as suas

atividades econômicas; e não havia aparentemente substituto possível.

Efetivamente, é preciso reconhecer que as condições da época ainda

não estavam maduras para a abolição imediata do trabalho servil. A

posição escravista reforçar-se-á aliás depois da Independência, com a

ascensão ao poder e à direção política do novo Estado, da classe mais

diretamente interessada na conservação do regime: os proprietários

rurais que se tornam sob o Império a força política e socialmente

dominadora. 19

A escravidão é tema diretamente vinculado ao objetivo central deste

trabalho, porém não será o fato tratado mais minunciosamente, a superação da

escravidão e a vida em liberdade de ex-escravos serão nossos problemas aqui

abordados. Nesta primeira parte pensamos a escravidão enquanto fenômeno que se

tornou endêmico na sociedade brasileira. A escravidão será vista de forma secundária,

será discutida a prerrogativa da vida pós-cativeiro, o processo de superação da

escravidão, as estratégias, os padrões e por fim a mobilidade ou não destes sujeitos na

sociedade brasileira, para tal utilizaremos alguns documentos de nosso recorte (1830 a

1845) como jornais, inventários, testamentos, etc.

19

PRADO JÚNIOR, Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, vol. 25, 2006, pág.

104.

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2. UMA SOCIEDADE MARCADA PELA PRESENÇA AFRICANA: a ilha de São

Luís no oitocentos (1830 – 1845).

Segundo o historiador Mário Meireles, desde meados do século XVII, em

terras maranhenses já eram desembarcados africanos escravizados. Regularmente o

tráfico de africanos se intensifica um século depois com a Companhia Geral do Grão-

Pará e Maranhão. Na fase inicial da chegada dos africanos, eram utilizados

paralelamente como mão de obra, os nativos. Gradualmente os nativos foram sendo

substituídos pelos africanos, esse foi um processo que ocorreu em boa parte das regiões

escravistas brasileiras, como pontua Stuart Schwartz referindo-se à zona açucareira

brasileira na Bahia,

Os primórdios da economia açucareira no Brasil foram tragicamente

marcados pela história do contato dos portugueses e indígenas ao

longo da costa. A escravização de índios e o uso de sua mão-de-obra

no plantio e beneficiamento da cana revelaram-se etapa transitória no

desenvolvimento da economia açucareira, durante a qual se empregou

uma forma de trabalho relativamente barata e prontamente acessível

até que a atividade se encontrasse totalmente capitalizada. Outros

trabalhadores viriam substituí-los nas lides do engenho em fins do

século XVI e princípios do XVII – os escravos africanos, mercadorias

de um rentável ramo do comércio atlântico. Esse foi, porém um

processo gradual e de forma alguma inevitável. 20

A transição da mão de obra indígena para a africana dentre tantos motivos

contou com o apoio dos jesuítas, estes se apresentavam como um entrave aos colonos

que buscavam escravizar os nativos. Os africanos sem a mesma “sorte” dos índios

foram lançados às mais diversas formas de exploração, a sociedade maranhense em

especial a da capital associou-se à escravização de africanos a ponto destes estarem

presentes em quase todo tipo de situação vinculada a trabalho. Os africanos foram aqui

escravizados e transformados em mercadorias com preço e prazo de validade presentes

em todos os cantos e atividades, atingindo todas as camadas sociais.

O século XIX, em especial a sua primeira metade, caracteriza o apogeu da

atividade escravista em São Luís. Neste período a capital já havia recebido milhares de

africanos, e a sociedade já se encontrava dependente do braço escravo até mesmo para a

20

SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: Engenhos e Escravos na Sociedade Colonial, São Paulo,

Companhia das Letras, 1995, pág. 40.

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execução de tarefas simples – como a locomoção em vias públicas feita por escravos

que carregavam senhores e senhoras em liteiras. Nessa época, os plantéis contavam com

africanos recém-desembarcados, africanos que já estavam há mais tempo na capital e

seus descendentes pretos ou mestiços. Na cidade, estes sujeitos possuíam maiores

espaços de sociabilidade com outros escravos e com o mundo livre. Esse fator era

determinante numa relativa menor dificuldade da vida escrava e nas chances de

transição para a vida em liberdade.

Na historiografia brasileira, é ponto comum o fato de existirem maiores

espaços de sociabilidade para escravos na lógica urbana. No caso rural a maior

necessidade do braço escravo e a sua vinculação direta com a produção o tornava mais

preso ao eito e mais suscetível a fiscalização. Nas cidades havia mais meios de

fiscalização, porém o volume gigantesco de escravos, utilizados nas mais diversas

tarefas, inviabilizava qualquer tentativa de fiscalização mais efetiva. Desse modo, os

documentos têm nos mostrado inúmeros casos de escravos urbanos burlando a

fiscalização senhorial, essas pequenas ações podem e devem ser vistas como forma de

resistência escrava. Em muitos casos, cativos se passavam por forros e tinham sucesso

na empreitada.

A sociedade maranhense oitocentista, assim como a sociedade brasileira

desse período, encontrava-se num estado em que a escravidão se enraizara em todos os

tipos de relações. O último século da escravidão no Brasil possuiu várias facetas as

quais impossibilitam qualquer análise do período como um continuum. O presente

trabalho baseia-se num período em que o tráfico transatlântico ainda era a principal

forma de renovação dos plantéis de escravos. Alguns anos depois essa prática perderá

espaço para o tráfico interprovincial, vide as pressões inglesas para o fim do tráfico, que

começam desde a proibição da importação de escravos pela lei de 7 de novembro de

1831. Essas leis só terão mais vigor no início da segunda metade do século, quando se

intensificarão as pressões inglesas.

A província do Maranhão recebeu um grande volume de africanos, quase

sempre estando entre as quatro primeiras províncias em número de africanos

desembarcados. Esses africanos vinham na maioria dos casos da Costa da Mina, de

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Angola e de Moçambique, geralmente estes sujeitos aqui chegavam muito jovens,

alguns ainda eram crianças, muitos destes declaravam não ter conhecido seus familiares

naturais na África, como nos mostra um trecho do testamento de uma alforriada:

“Declaro que sou natural da Costa da Africa de Nação Cacheo, e que vim para esta

terra da idade de seis annos e por isso não conheci Pai, nem May” 21

.

Esses sujeitos que em terras maranhenses chegavam, em especial no porto

da capital da província, estavam lançados à própria sorte, suas vidas a partir do

momento de desembarque tinham infinitas possibilidades de fim, a maioria desses fins

foram trágicos, porém alguns poucos sujeitos conseguiram ter um final relativamente

feliz. Depois de desembarcados, esses sujeitos seriam comercializados como qualquer

mercadoria comum, seus destinos estavam nas mãos de seus possuidores.

No mundo escravista, cativeiro e liberdade nem sempre eram situações

antagônicas, havia situações intermediárias entre os dois mundos. O deslocamento

poderia ocorrer nos dois sentidos: um escravo poderia se libertar (por compra ou por

ganho) ou um ex-escravo poderia ser reescravizado (já que as cartas de alforria eram

revogáveis). Havia um emaranhado de relações entre senhores e escravos, os dois lados

utilizavam as armas que possuíam para tirar proveito da outra parte, os senhores

exploravam ao máximo a capacidade de gerar capital dos escravos, e muitos destes

buscavam boas relações com seus senhores e com a sociedade ao seu redor, além de

acumular o máximo de capital para uma futura compra de alforria, seja do próprio

escravo, seja de algum familiar deste.

Havia finalmente o incentivo supremo da liberdade por meio da

alforria. Como veremos, isso não era exatamente uma “miragem”,

pois as manumissões no Brasil eram comuns e podiam der obtidas não

só com bom comportamento, mas também por compra; a alforria

estava pois relacionada à capacidade do escravo de acumular capital.

Um cativo mulato ou crioulo com ocupação especializada ou

experiência em supervisão no engenho não só podia ter esperanças de

finalmente um dia tornar-se livre, mas também podia ter relativa

certeza de conseguir emprego após liberto. [...] Os senhores de

engenho descobriram que a melhor maneira de obter a desejada

quantidade e qualidade do trabalho era com um misto de punições e

21

MARANHÃO, 1831, Testamento da preta forra Clara Joaquina, Arquivo Histórico do Tribunal de

Justiça do Maranhão, 12 de outubro de 1831, pág. 136.

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recompensas: os escravos perceberam que em tal sistema havia

oportunidades para melhorarem sua vida.22

Longe de algo inatingível, as alforrias eram uma realidade presente em todo

o período escravista brasileiro. Na São Luís oitocentista, através de testamentos e

inventários de ex-escravos, fica clara a relativa alcançabilidade da alforria

principalmente quando consideramos os escravos urbanos. Na capital onde

desempenhavam as mais diversas tarefas, muitos cativos conseguiam acumular seus

pecúlios e variando no tempo alguns conseguiam adquirir suas cartas de alforria.

Por mais que pareça fácil o processo de acúmulo de pecúlio e aquisição de

alforria a obtenção desta não dependia somente disso. A escravidão à brasileira era

dotada de simbolismos, os senhores jamais permitiam que os escravos adquirissem sua

liberdade somente pagando o seu “valor de mercado”, a aquisição de uma carta de

alforria mesmo sendo paga integralmente pelo escravo deveria ser demonstrada como

uma dádiva concedida pelo senhor, caso contrário a base moral da escravidão estaria

quebrada, pois qualquer escravo que conseguisse acumular seu “preço” poderia se

libertar. Tal ideia não era interessante para os senhores, desse modo, muitos

dificultavam o processo de compra de alforria para escravos que conseguiam acumular

seu valor de mercado. Geralmente a alforria de um escravo ocorria quando o senhor já

estava negociando a aquisição de outro, fora isso havia outros padrões de alforriamento.

Nos testamentos que transcrevi, quase 20% dos senhores de escravos

ludovicenses deixavam um ou mais de seus escravos livres, esta era uma forma comum

de alforriamento, classifico-a como alforria de leito de morte, pois diante de uma

situação de grave enfermidade e no ímpeto de uma salvação espiritual muitos senhores

libertavam um ou mais escravos de confiança. Esse tipo de prática era fruto do modelo

elitista brasileiro de forte influência católica. O discurso de fazer o bem, para muitos

senhores só ocorria em seus últimos momentos de vida quando este alforriava alguns de

seus cativos, talvez por medo de uma condenação numa possível vida após a morte. Isso

nos mostra que a elite tinha total consciência do quão maléfica era a escravidão e que

suas bases no âmbito do discurso eram falsas. Os fragmentos a seguir nos mostram

casos comuns em que senhores alforriavam escravos em seus testamentos de última

22

SCHWARTZ, Stuart, Op. cit. págs. 141- 142.

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vontade, um deles inclusive deixa dinheiro para que os escravos pudessem comprar

roupas pretas para o luto,

Deixo forros a minha mulata Joanna e Joaquim Carapina de

Nação Mandinga que meu Testamenteiro lhe dará suas cartas de

liberdade dentro de oito dias sem que para isso seja preciso

procedimento Judicial, assim como lhes dará a cada um a

quantia de dez mil reis e igual quantia de dez mil reis a cada um

dos meus escravos para fazerem as suas rôpas pretas de luto.23

.

Deixo libertos, e isentos de todo captiveiro as minhas duas

mulatinhas Luiza e Theodora, filhas da minha escrava Maria

Joana, já falecida, pelo muito amor que lhes tenho; mas obrigo-

as a viverem em companhia de minhas Irmans athe serem

maiores.24

.

Havia muitos casos em que os senhores libertavam filhos de seus escravos

mais próximos na cerimônia de batizado da criança, era uma espécie de alforria por

apadrinhamento. Fora estes dois casos podemos considerar ainda o alforriamento de

escravos idosos, alforriamento de escravas com quem os senhores mantinham relações e

seus filhos “bastardos” e por fim a auto aquisição, que dependia de vários fatores, sendo

o principal a relação do senhor com o escravo aspirante à liberdade.

Nos dois exemplos citados acima podemos perceber mais duas variações no

padrão de alforriamento. O primeiro caso é o de uma alforria incondicional onde o

senhor deixa livre dois de seus escravos, tal fato deve ter ocorrido pela confiança

conquistada ao longo da convivência do senhor com estes escravos, a boa relação entre

as partes deve ter sido o fator determinante, ou mesmo o pagamento de parte do valor ao

testamenteiro, mas esta hipótese é menos provável. No segundo caso vemos um

exemplo também muito comum na realidade da São Luís oitocentista, o alforriamento

condicional. Em alguns dos testamentos que transcrevi, assim como no acima citado,

alguns senhores libertavam um ou mais escravos desde que estes permanecessem

trabalhando para algum parente ou pessoa indicada pelo senhor-testador, geralmente o

23

MARANHÃO, 1833, Testamento de Antonio Pinto Machado Lobo, natural de Porto, Arquivo

Histórico do Tribunal de Justiça do Maranhão, 1833. 24

MARANHÃO, 1833 Testamento de Angelica Rosa de Jesus, Arquivo Histórico do Tribunal de

Justiça do Maranhão, 1833.

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senhor prefixava um tempo que depois de superado obrigava os responsáveis a conceder

a alforria ao escravo.

Estes eram os padrões mais comuns utilizados pelos senhores para alforriar

seus escravos através de testamentos. Fora deste contexto de leito de morte, as alforrias

eram concedidas em maior número a mulheres e crianças, isto pelo seu menor valor

comercial e pelo fato de os homens quase sempre estarem diretamente ligados a

atividades produtivas mais indispensáveis ao senhor. Tal fato também é consenso na

historiografia, mulheres e crianças eram preferidas quando se ia alforriar. Além dessas,

escravos nascidos no Brasil – crioulos – também eram preferidos, por vários fatores que

serão vistos mais detalhadamente ainda neste trabalho,

Enquanto os mancípios eram majoritariamente do sexo masculino,

haviam nascido na África e encontravam-se em idade produtiva, entre

os alforriados predominavam, segundo esses mesmos estudos, as

mulheres e os crioulos, além de haver um percentual

proporcionalmente elevado de crianças. 25

Na historiografia, é quase consenso o fato das mulheres serem preferidas na

concessão de cartas de liberdade, pelos fatores acima citados, além do fato de muitas

mulheres africanas aqui escravizadas trazerem uma bagagem cultural das lides

comerciais predominantemente executadas por elas no continente africano, o que

facilitava o acúmulo de pecúlio e também garantia uma relativa fonte de renda quando a

alforria já fosse uma realidade.

Escravos com ofícios geralmente tinham grande vantagem em acumular

pecúlio, o que poderia se refletir numa maior facilidade na obtenção da carta de alforria.

Poderia, pois se o senhor fosse muito dependente do capital obtido por este escravo

dificilmente o venderia. Tal prerrogativa nos leva a outro fato, o grau de dependência de

um senhor em relação a um escravo era primordial na sua maior facilidade ou

dificuldade em se desfazer dele. Quanto mais dependente fosse o senhor em relação ao

escravo, menores seriam as chances do senhor o alforriar, o que quer dizer que os

senhores com poucos escravos e que dependiam do trabalho destes diretamente para

25

FLORENTINO, Manolo, Tráfico, Cativeiro e Liberdade: Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX. Rio de

Janeiro, Civilização Brasileira, 2005, pág. 300.

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sobreviver nunca ou quase nunca alforriavam, levando-nos a afirmar que a alforria era

uma realidade mais comum nos plantéis maiores, pois a dependência do senhor em

relação a um ou alguns poucos escravos não era tão primordial.

2.1 PÓS-CATIVEIRO: continuidades e descontinuidades

A tênue linha entre cativeiro e liberdade não possuía espaços bem

delimitados. O gozo pleno da liberdade por um ex-escravo nem sempre era uma

realidade, assim como um escravo não necessariamente vivenciaria somente momentos

de cativeiro. Ser alforriado não necessariamente seria um sinônimo de gozo da vida

livre, tudo dependia de inúmeros fatores. A transição de um escravo para a vida livre

podia ser rápida ou gradual dependendo de suas capacidades individuais e de suas

relações no mundo livre e cativo.

Um escravo bem articulado no mundo livre tinha boas chances de

conseguir emprego em liberdade, quase em geral essa transição tinha uma origem

coletiva onde famílias acumulavam pecúlio em conjunto e adquiriam suas cartas de

liberdade uma a uma, muitas vezes outros libertos ou organizações de caráter religioso

como as irmandades também poderiam auxiliar no processo. Logo, podemos afirmar

que as virtudes individuais e as relações coletivas de um escravo eram fatores

determinantes na execução de sua transição para o mundo livre, muitos libertos eram

marginalizados vivenciando as velhas barreiras já conhecidas desde os tempos de

escravidão.

Para muitos forros, o sonho da liberdade quando obtido tornava-se

frustrante, pois a esperança de mudanças reais se traduzia em permanências constantes,

a inferiorização social os acompanharia até os últimos dias. Um preto forro geralmente

levava essa designação até o momento de sua morte, a grande prova de tal argumento

são os testamentos e inventários que em sua descrição trazem exatamente as

designações “preto forro”, “preta forra”, “preto liberto”, “preta liberta”, “mulato(a)

liberto(a)”, enfim. A designação era classificatória e ao mesmo tempo inferiorizante,

significava que mesmo sendo livres e, extraordinariamente, mesmo tendo muitas posses

estes sujeitos haviam vivenciado a escravidão, e se a liberdade fosse algo que pudesse

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ser quantificado para a sociedade da época estes sujeitos estariam em grande

desvantagem. Creio que para as elites, minar essas possibilidades de mobilidade era fato

vital, pois as inviabilizara qualquer concorrência em certos espaços, para a elite local

delimitar os espaços sociais restringindo-os de ex-escravos era a forma de se manter

hegemônica nestes espaços, porém:

A liberdade é um processo de conquistas, que podem ou não ser

alcançadas durante o correr de uma vida. É o desdobramento de um

conjunto de direitos que podem ser adquiridos, ou perdidos, um a um

com o tempo. É, portanto, um caminho a ser percorrido, e não uma

situação estática e definitiva. Não existe, portanto, liberdade absoluta.

E, mesmo no caso de sua mais radical ausência, resta sempre uma

escolha final entre a vida e a morte. 26

A liberdade consiste num processo. Para um africano nascido livre e

escravizado numa nação distante, totalmente alheia à sua realidade anterior, a liberdade

era um bem a ser reconquistado a todo custo. A necessidade de romper com o status quo

de escravo impulsionou estes sujeitos à busca pela liberdade, uns a buscaram através do

trabalho, outros através de fugas, quilombos, assassinatos – de senhores e feitores – e

outros através de uma pseudo-docilidade. Engana-se quem analisa os africanos

escravizados apenas como sujeitos passivos ao processo de escravidão, todas estas

manifestações citadas acima nos mostram que estes sujeitos tinham percepção de que a

liberdade podia e deveria ser reconquistada, para isso foram utilizados infinitos meios.

Na realidade escravista ludovicense oitocentista e na brasileira de modo

geral havia dois conceitos principais de liberdade que acabaram se mesclando, o

conceito burguês ocidental de liberdade vinculado a propriedade individual e o conceito

de muitas sociedades africanas e mesmo indígenas onde liberdade era sinônimo de

pertencimento social, ser livre era pertencer a um grupo tendo poder de ação compatível

com o dos demais. Estes dois conceitos incidiram nos anseios de muitos escravos. No

Maranhão oitocentista, ser livre era sinônimo de não ser propriedade, mas também era

sinônimo de pertencer à sociedade dominante. Por isso para o gozo da liberdade um

indivíduo deveria preencher estes dois requisitos: não ser escravo e pertencer à

sociedade. Muitos escravos conseguiram deixar de ser escravos através de cartas de

26

CARVALHO, Marcus J. M. de. Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo. Recife, 1822-1850,

Recife, Editora Universitária da UFPE, 1998, pág. 214.

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alforria, porém sua mobilidade no interior da sociedade livre era um processo muito

mais complexo. Para pertencer à sociedade dominante o alforriado deveria estar

articulado com pessoas já pertencentes ao mundo livre, as relações criadas por um

liberto eram fundamentais para o seu processo transitório rumo ao status de liberdade.

Essas observações, em grande parte, em grande parte servem para a

noção de liberdade no Brasil oitocentista. Aqui o cativo não era um

cidadão, pois o direito o reconhecia como pessoa apenas quando o

tornava imputável criminalmente. Para os demais atos jurídicos, era

uma coisas, ou quando muito, um menor, como nos casos em que era

chamado a depor na justiça, não servindo de prova o seu testemunho,

mas apenas para informar o processo. Quanto a denunciar o senhor

nem pensar. O escravo era portanto um estranho à sociedade dos

homens livres. Mesmo quando havia nascido no país, não tinha

nenhum dos direitos inerentes à noção de cidadania. A rigor ele não

“pertencia” à nação brasileira.27

No período de 1830 a 1845 no Maranhão, quando a escravidão africana

estava “a todo vapor”, muitas barreiras impostas pela sociedade ludovicense branco-

dominante eram a base de sustentação do sistema escravista. Barrar a mobilidade

socioeconômica de ex-escravos era uma maneira de não aguçar seu ímpeto de

pertencimento ao mundo livre. A ideia de possibilidade de ruptura imediata com o

status de escravo quebraria a base de dominação social branco-dominante, pois qualquer

escravo que se tornasse judicialmente livre poderia se equiparar ao status dominante,

essa equiparação era evitada a todo custo pela classe senhorial, que inferiorizava, ao

máximo, escravos e alforriados, muitas vezes tratando-os ou reportando-os como classe

similar, freando todas as possibilidades de pertencimento ao “mundo livre”.

Os estereótipos criados pela sociedade dominante visavam equiparar

alforriados a escravos e davam sustentáculo às inferiorizações impostas aos africanos e

seus descendentes. Na realidade histórica do Maranhão oitocentista, a liberdade de um

escravo não rompia com seus antigos laços (família, amigos e compadrio) criados ainda

no cativeiro. Estes laços eram mantidos durante a vida em liberdade do alforriado,

muitos destes auxiliavam aqueles que ainda não haviam se libertado, com dinheiro,

roupas alimento, ou mesmo dando abrigo numa possível fuga. Os mesmos laços que

27

CARVALHO, Marcus, Op. Cit. págs. 218-219.

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poderiam facilitar o acesso à vida em liberdade poderiam também se tornar verdadeiras

prisões para um escravo em transição.28

Muitos senhores incentivavam a família escrava

com o objetivo de frear quaisquer tentativas de fugas ou rebeliões, este tipo de incentivo

em parte dava certo, já que fugas coletivas eram muito mais difíceis de serem

executadas.

A família escrava poderia e foi uma estratégia utilizada em favor de

senhores como foi exemplificado acima, mas também dos próprios escravos.

Geralmente uma família de escravos em sua segunda ou terceira geração pertencente ao

mesmo senhor gozaria de muitos privilégios se comparada a um escravo recente e sem

família. Novamente entra em questão a perspectiva de pertencimento utilizada por

Marcus Carvalho (1998), um escravo que pertencia ao grupo mais antigo dos escravos

de uma senzala possuía maior confiança de seu senhor o que poderia resultar em uma

maior facilidade em obter uma carta de alforria, pelo fato do senhor confiar nesse

escravo a ponto de criar um vínculo que o levasse a alforriá-lo. O mesmo fator poderia

ser desfavorável ao escravo, pois a maior proximidade e confiança poderiam tornar o

escravo ou grupo insubstituíveis a ponto de minar as chances de libertação do escravo

ou grupo.

Assim posso afirmar que na lógica escravista da cidade de São Luís no

século XIX e mesmo em grande parte do Brasil o mesmo fator poderia ser positivo ou

negativo para um escravo quando este estava em busca de uma transição ou

retransição29

para a liberdade. Neste caso todo e qualquer resultado dependia de uma

gigantesca infinidade de variáveis, o mesmo fato poderia ser interpretado de inúmeras

formas variando de senhor para senhor e de suas relações com o mundo livre e com a

classe escrava. A proximidade escravo-senhor em um caso poderia levar o escravo à

liberdade e em outro ao cativeiro eterno.

Mesmo diante de tantas variáveis, muitos senhores de escravos ludovicenses

tinham o hábito de “conceder” cartas de alforria a seus escravos. A alforria sempre foi

uma realidade do Brasil escravista, não sendo diferente no caso aqui analisado, os

28

Refiro-me à transição para a vida livre. 29

Utilizo o termo transição referindo-me àqueles que nasceram no cativeiro e retransição para os

africanos nascidos livres e escravizados em terras brasileiras

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relatos de libertações estão em várias documentações inclusive nos testamentos

(documentação que trabalho) de muitos senhores maranhenses do século XIX, os

principais padrões pelos quais os senhores alforriavam escravos foram exemplificados

nesta parte do trabalho.

Os escravos urbanos da Capital da Província do Maranhão vivenciavam

contatos constantes com o mundo livre, com certeza podemos afirmar que o maior

contato com pessoas livres não só poderia facilitar a transição para a liberdade como

também norteava os anseios de futuro dos escravos. A busca pela vida livre era uma

realidade constante para os africanos aqui escravizados, porém suas perspectivas de vida

livre ocidentalizaram-se no Maranhão escravista da primeira metade do século XIX ser

livre englobava vários fatores.

Os africanos chegando num mundo distinto do seu, um mundo em que a

posse de escravos se traduzia num status de liberdade senhorial, buscaram muitas vezes

superar o status de cativo e se aproximar ao status senhorial. Isto pode explicar o fato

talvez paradoxal de ex-escravos possuírem algumas vezes escravos, estes possuidores

em última análise estavam buscando uma aproximação com a cultura branco-

dominante, algo parecido com a análise do psiquiatra Frantz Fanon (2008) já explicitada

anteriormente. Para quem vivenciou a escravidão o ponto alto da mobilidade talvez

fosse se tornar senhor, em alguns casos podemos analisar a escravização por parte de

africanos com africanos não como um ato insano de crueldade, mas como uma busca

pela aproximação com a cultura senhorial, espelho para muitos escravos brasileiros de

todos os períodos dos mais de trezentos anos de escravização de africanos no Brasil.

Mesmo o anseio senhorial sendo um estigma muito marcante nas mentalidades

escravas, muitos escravos compreendiam e buscavam pequenas liberdades, liberdades

voltadas para o cotidiano, longe de uma busca pela talvez utópica liberdade absoluta,

A noção de liberdade manejada pelos escravos confundia-se com a

possibilidade de, em graus diversos, dispor de si. Sem nenhuma

garantia de êxito, a grande maioria buscava dispor de si no dia-a-dia,

na lida impetuosa ou malemolente, associando a “liberdade” a

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pequenas conquistas tendentes a alargar sua autonomia na

escravidão.30

É complexo determinar quais eram os principais anseios de escravos no que

diz respeito à busca pela liberdade. Na realidade, a concepção de liberdade de um

escravo é um enorme paradigma, podemos delimitar que os horizontes de liberdade dos

escravos maranhenses estavam entre a busca por pequenas melhorias (mais comum) e a

busca pela mobilidade socioeconômica (exceções que serão apresentadas no próximo

capitulo). A diferença no tipo de liberdade que o escravo possuía, na maioria dos casos,

estava fortemente vinculada à forma pela qual este chegou à liberdade ou às

experiências vivenciadas por este, alguns podiam incorporar o modelo social outros

poderiam criar repulsa ao mesmo, a ponto de buscar sempre fugir ou burlar o sistema

escravista.

Em contato com testamentos e inventários de senhores e alforriados

ludovicenses (entre 1830-1845), percebi que os escravos que conseguiram adquirir sua

carta de alforria comprando a mesma, geralmente gozavam de maior autonomia quando

livres, sendo maioria absoluta entre as exceções de mobilidade. Aqueles escravos que

receberam suas cartas de alforria sem pagar valor algum, estando “livres” somente pela

“gratidão” de seus senhores tinham menos chances de autonomia, muitas vezes havendo

uma manutenção da tutela senhorial mesmo não sendo mais escravos teoricamente. A

revogabilidade das cartas de alforria foi uma carta na manga dos senhores para manter

seus ex-escravos tutelados, mesmo livres os alforriados deveriam manter a gratidão a

seus antigos senhores, mesmo em casos em que o escravo pagou seu “valor integral”.

Além de mulheres e crianças serem preferidas nas concessões de alforrias,

como já foi explicitado anteriormente, os escravos crioulos (nascidos no Brasil) também

eram preferidos nas concessões, os motivos são variados, mas quase sempre estão

ligados ao maior vínculo criado entre senhores e crioulos, sendo estes muitas vezes

nascidos na senzala e estando em contato com os senhores desde crianças. Fora isso, é

possível destacar casos de crioulos apadrinhados por senhores ou outras pessoas livres,

ou casos de crioulos filhos “bastardos” entre senhores e escravas, mesmo não sendo

30

FLORENTINO, Manolo, Tráfico, Cativeiro e Liberdade: Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX. Rio de

Janeiro, Civilização Brasileira, 2005, pág. 338.

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registrados oficialmente muitos senhores alforriavam seus filhos-escravos em seus

testamentos post-mortem. Colocando em ordem decrescente de nível de preferência nas

alforrias estavam mulheres, crianças, crioulos, idosos e por fim africanos. Esta ordem é

longe de ser absoluta e variou contextualmente.

As alforrias quantitativamente estavam fortemente vinculadas ao contexto

externo. No recorte temporal deste trabalho (1830-1845), quando as pressões inglesas

estavam ocorrendo sem muita efetividade e o tráfico de africanos supria relativamente

as necessidades dos senhores de escravos, a concessão de cartas de alforria manteve-se

dentro da normalidade, cerca de 1 a cada 100 escravos conseguia se libertar. Na segunda

metade do século XIX, quando o tráfico de africanos é proibido e a renovação dos

plantéis estava impossibilitada, o número de alforrias diminui significativamente, fato

vinculado à diminuição da oferta de africanos e ao seu consequente aumento de preços.

É neste contexto que se inicia um massivo deslocamento de africanos do nordeste para

as regiões cafeeiras (sul e sudeste) numa espécie de tráfico interprovincial.

Por mais que muitos escravos buscassem a vida em liberdade, a sociedade

dominante sempre os viu num grau inferior a ponto de para estes um alforriado jamais

possuir a possibilidade de equiparar-se a um senhor. A elite utilizou-se de todas as

armas que possuía para manter seu status e também para evitar ascensões de quem havia

estado na base da pirâmide social. Em alguns jornais da primeira metade do século XIX,

encontrei fragmentos de discursos de membros da elite acerca de uma possível equidade

entre a velha elite e aqueles que estavam em fase de mobilidade,

Ora, Sr. L... não lhe parece uma asneira quererem, que o Cidadão seja

igual perante a Ley? Então n‟esse caso um meu escravo, é igual a

mim, logo que for forro!! Forte desaforo! Olhe Sr. L... aqui queria eu

pilhar esses modernos dos infernos, que queria ver suas rasões ao

meus argumentos.31

O sucinto fragmento de jornal é bem objetivo em seu propósito, um

“cidadão brasileiro” oitocentista jamais poderia estar equiparado a alguém que

vivenciou o cativeiro. Mesmo já estando em liberdade um alforriado carregava consigo

a cor e o estigma do cativeiro até seus últimos dias.

31 JORNAL FAROL MARANHENSE, edição 00002, pasta (1827-1831) Acervo Digital da Biblioteca

nacional, pág. 235.

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Os jornais eram um canal da elite muito bem utilizado para manutenção de

seu status dominante. A elite que naquela época era composta por comerciantes,

fazendeiros e alguns outros cargos os quais não possuíam interesses numa sociedade

com mobilidade socioeconômica. Para estes o quão difícil fosse a transição para o status

dominante, melhor. O topo da pirâmide social era muito bem delimitado, porém a base e

as classes intermediárias muitas vezes se confundiam. Em inúmeros jornais, relatos de

parte do dia, documentos da Secretária de Polícia do Largo do Carmo e em outros

documentos, encontrei trechos que narraram casos de escravos que se passavam por

livres. Essa era uma prática comum em todo o Brasil escravista, o difícil controle da

sociedade livre facilitava a execução deste tipo de manobra, em alguns casos estes

“pseudo-libertos” contavam com auxílio de pessoas livres, alforriados ou cativos.

A José dos Santos Villaça morador nesta cidade, lhe fugio hum preto

de nome Julião, Nação Caboverde, de idade 22 annos, altura mediana,

reforçado, muito solfista, com huma pega na perna, metade da orelha

esquerda de menos, com signaes pelo corpo de castigo anda em título

de forro, e calçado: quem o pegar e entregar a seu Sr. receberá

generosa recompença.32

Por maior que fosse a vigilância exercida por senhores, feitores e polícia,

era impossível se ter um controle absoluto acerca de quem era liberto e quem era

escravo. O volume de sujeitos nas duas condições e a proximidade entre as duas classes

(motivada por laços já descritos neste trabalho) levavam a parcela dominante a tratar as

classes muitas vezes como uma só, o aparato de segurança pública agia

semelhantemente, muitos alforriados foram presos por motivos “banais” se pensarmos

que estes já se encontravam em liberdade.

O Jornal “O Publicador Maranhense” de 29 de maio de 1843 relata que: “os

soldados Manoel Francisco da Paixão e Gabriel Antônio de Juzus, prenderam as 8 horas

da noite no beco de S. Antonio, o preto forro Evangelista, por trazer uma navalha”.

Percebamos que o simples fato de um ex-escravo estar portando uma navalha foi motivo

para este ser preso, este tipo de prisão era comum com escravos. Se pensarmos o liberto

como um sujeito livre, ser punido por este “crime” é um fato inimaginável, porém aos

32

Jornal A Revista, Acervo Digital da Biblioteca Nacional, edição 00438, 4/4, 1843, pág. 1.

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olhos da sociedade dominante da São Luís oitocentista quase sempre escravos e libertos

eram categorias similares, assim sendo, deveriam ser punidos e tratados de igual forma.

Esta forma de tratamento a libertos foi a regra da capital maranhense no

início do século XIX, porém existiram exceções. No capítulo que se seguirá analisarei

alguns casos de alforriados que conseguiram vivenciar um processo de mobilidade

dentro da fechada sociedade oitocentista aqui utilizada. Casos raros de sujeitos que

vivenciaram os dois lados situacionais, alguns que foram escravos e posteriormente

viraram senhores de escravos. Todos os casos que serão analisados a seguir foram

encontrados em testamentos e inventários dos próprios alforriados, localizados no

Arquivo Histórico do TJ-MA.

3. EXCEÇÕES: a mobilidade socioeconômica de alforriados em terras

ludovicenses no início dos oitocentos.

A sociedade da capital da província do Maranhão na primeira metade do

século XIX mostrava-se bastante fechada à mobilidade de ex-escravos. Creio que quase

todas as sociedades do Brasil Império compartilhavam este fechamento à mobilidade. O

modelo de sociedade oitocentista de forte herança colonial pautado em “formas de

trabalho compulsório”, como afirmou Fernando Novais (1990), por si só dificultava a

mobilidade no sentido ascendente. Para um sujeito que outrora fora escravizado, ser

alforriado não trazia automaticamente o gozo de ser um cidadão livre, haviam marcas

do cativeiro que jamais seriam esquecidas pela sociedade branco-dominante, para um

ex-escravo em transição o sucesso econômico era o primeiro passo para uma melhor

aceitação no mundo livre.

O sucesso financeiro e aproximação com o modelo dominante eram

obrigações implícitas para uma maior aceitação no mundo livre. O catolicismo era uma

instituição dominada pelos setores superiores, a aproximação com a fé cristã, mesmo

coexistindo com outros cultos de matriz africana era uma porta de entrada, uma forma

de melhorar a imagem social de um alforriado bem sucedido. Muitos alforriados

enfatizavam a vivência da fé cristã, esta aproximação poderia ser proposital ou

inconsciente. Nos testamentos33

que transcrevi (um total de 27 entre 1809 e 1869, dos

33

Toda essa documentação encontra-se no Arquivo do TJ-MA.

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quais utilizo parte neste trabalho) todos fazem alusão à vivência da fé cristã, chegando a

ser quase padrão a afirmação:

“Estando inferma, porem em meu perfeito Juizo, e entendimento que

Deos me deu faço este meu testamento da forma seguinte =

Primeiramente encomendo minha alma a Deos, ea sua May Maria

Santissima, que a criarão, e declaro que sou Catholica Romana, e

nesta fé pertendo morrer e salvar-me, pelos infinitos merecimentos de

meu Senhor Jezus Christo”34

A identidade destes sujeitos estava em constante processo de construção. A

contragosto estavam vinculados ao mundo cativo, porém ansiavam ascender ao mundo

dominante sem que, para a obtenção deste status, houvesse uma quebra no vínculo com

o mundo cativo. Dessa forma havia um “mix” de rupturas e continuísmos. Esse estágio

intermediário ocupado por libertos não era uniforme. Nos testamentos percebi que havia

casos de libertos sem muitas posses e mais próximos ao mundo cativo, muitas vezes

compartilhando vínculos familiares com escravos e até competindo com estes por

espaços no mundo do trabalho. E havia casos de libertos mais afastados do passado

cativo, estes encontravam-se social e principalmente economicamente mais próximos ao

mundo senhorial, neste pequeno grupo enquadram-se os libertos possuidores de

escravos, geralmente estes senhores libertos ou libertos senhores eram minoria,

aproximadamente 11% do total de alforriados aqui analisados.

Percebe-se que entre os libertos não havia uma uniformidade, isso por que a

alforria ocorria de formas muito variadas, muitas vezes a forma como a liberdade foi

obtida definia parâmetros da vida em liberdade. Os escravos que compravam sua

liberdade através do pecúlio geralmente possuíam mobilidade mais acentuada quando

comparados àqueles que “ganharam” suas cartas de liberdade como manifestação da

pseudo ou real benevolência de senhores de escravos, isso porquê o acumulo de pecúlio

estava ligado a trabalho, um escravo com ofício ao alforriar-se tinha enormes chances

de obter trabalho e consequentemente se auto sustentar.

Os sujeitos aqui analisados foram sujeitos em estado de exceção, sujeitos

que tiveram condições econômicas de ir a um cartório e encomendar a produção de um

testamento/inventário. Tal fato aparentemente simples já nos é um indicio de

mobilidade, haja vista que um inventário pressupõe bens, e um testamento bens e

herdeiros. Nos casos analisados encontrei ex-escravos que possuíam casas, ouro,

escravos, móveis e outros bens, os quais eram passados geralmente pra afilhados ou

34

MARANHÃO, 1834, Testamento da preta forra Maria dos Santos das Neves, Arquivo Histórico do

Tribunal de Justiça do Maranhão, 1834.

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parentes. Essa característica de apadrinhar talvez tenha sido fruto do convívio com a

cultura branco-dominante, acostumada com o apadrinhamento, e também às baixas

taxas de fertilidade das ex-escravas, o que inviabilizava a transmissão da herança aos

filhos do testador(a). Tal fato atingia tanto escravos quanto libertos. O que muito já foi

dito e se pode reproduzir é que os plantéis de escravos não se renovavam nas senzalas

(via reprodução natural), mas sim nos navios negreiros, ou seja, o tráfico era a principal

via de renovação dos plantéis de escravos e consequentemente de futuros

libertos/alforriados.

Se considerarmos todo o processo para reconquista da vida em liberdade,

vivenciado pelos africanos que vieram para ser escravizados no Brasil, a obtenção da

alforria por si só já consiste num processo de ascensão social, mesmo quando as

mudanças na prática eram muito pequenas e as barreiras a serem transpostas muito

grandes.

Na capital da província do Maranhão, desde o século XVII, já havia a

presença de escravos africanos, porém a atividade escravista intensifica-se nos dois

séculos seguintes. No período oitocentista ludovicense35

a escravidão já era uma

instituição que a todos atingia, a posse de escravos era algo relativamente comum, não

era tão difícil o fato de ex-escravos possuírem escravos. Na trajetória desses sujeitos me

interessou não somente os ex-escravos que possuíam escravos, mas aqueles que

conseguiram mudar seu padrão de vida.

Esses ex-escravos ou “pretos forros(as)”, como consta em seus testamentos,

só pelo fato de conseguirem legar seus bens a seus herdeiros por meio de um

Testamento e, além disso, descrever todos os seus bens num Inventário, já demonstram

que sua ascensão social e econômica foi mais acentuada. Esses testamentos e

inventários eram feitos em cartórios, e geralmente pelo fato de não saberem ler e

escrever, os forros ou forras ditavam ao escrivão, que transcrevia suas falas. Nos

testamentos e inventários que transcrevi, é nítido que esses sujeitos não estavam

integralmente marginalizados, pelo contrário, fica claro que estes sujeitos desenvolviam

inúmeras relações sociais e econômicas no mundo livre e no mundo cativo, muitas

vezes agindo como intermediadores.

35

Oriundo ou natural de São Luís do Maranhão.

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Declaro que Francisco Cardozo de Miranda, e João Cardozo de

Miranda, vindos da ilha de Cabo verde, e que forão escravos do finado

José Luiz dos Santos, me são devedores athe hoje da quantia de

sessenta mil reis, digo de sessenta mil trezentos reis valor da quantia

que eu lhe emprestei para as suas alforrias36

.

O fragmento citado acima consta no testamento da preta forra Maria dos

Santos das Neves, também natural da ilha de Cabo Verde No trecho fica claro que a

forra auxiliou dois escravos, possivelmente irmãos, emprestando uma alta quantia para

que estes pudessem comprar sua liberdade. Esse tipo de relação era muito comum, esse

sentimento de ajuda mútua talvez seja ainda mais intenso nos casos em que quem ajuda

e quem recebe o auxilio são oriundos da mesma localidade do continente africano, como

no caso acima. Essa mesma preta forra tinha como seu testamenteiro um Primeiro

Tenente da Armada Nacional, de nome Joaquim Eugenio Avelino, e a mesma também

se envolvia em negociações com pessoas forras e livres das classes intermediárias,

Declaro mais que a preta fôrra Camilla escrava que foi do Amorim,

me he devedora de seis pessas em renda de prata = Declaro que o

Official de Justiça Antonio Madeira de Matos me he devedor de vinte

oito mil reis procedidos de huma escrava que lhe vendi = Declaro que

o alfferes de pedestre Edmundo de Leal que eh Declarante de Rozario

me he devedor de desesseis mil reis, resto de maior quantia de huma

obrigação minha que elle tem em seu poder = Declaro que o preto

fôrro Francisco de Barros me he devedor de dez mil reis = Declaro

que emprestei a Cafuza Maria Raimunda, escrava que foi de Dona

Joana, huma volta de contas grossas com quatro duzias, tendo cada

conta meia oitava, e todas de Ouro37

.

Neste outro trecho do mesmo testamento, demonstra-se as relações

econômicas da preta forra, que deveria ser comerciante, emprestava e vendia para

forros, funcionários públicos, um Oficial de Justiça etc. Nessa negociação, fica claro

que Maria dos Santos das Neves possuía escravos e inclusive vendeu uma para o Oficial

de Justiça. De todos os testamentos que transcrevi, este é o melhor exemplo de ascensão

social e econômica. Fica claro que Neves estava articulada socialmente e que soube tirar

proveito disso para melhorar sua vida.

Outro testamento, de um preto forro que possuía menos posses que a forra

citada anteriormente, nos mostra o exemplo de um ex-escravo casado e que possuía uma

escrava,

36

MARANHÃO, 1834, Testamento da preta forra Maria dos Santos das Neves, Arquivo Histórico do

Tribunal de Justiça do Maranhão, 1834. 37

Idem.

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49

Declaro que sou Cazado com a preta forra Anna Thereza, e deste

matrimonio não tenho filhos = Declaro que não tenho herdeiro alguns

forrados e por isso posso adispor dos meus bens da maneira

seguinte=Declaro que possuo uma área de cazas na rua de Santa Rita

desta cidade, huma Negrinha de nome Maria de Nação Cassanga, cuja

comprei ao Senhor Felippe Diaz Borges, para cuja compra vendi de

minha mulher o ouro que ella tinha38

.

Tal fato nos mostra que esses sujeitos não estavam totalmente

marginalizados ou distantes das instituições religiosas, em todos os testamentos que

fotografei, há sempre menção ao nome de Deus e da fé Católica. Essa era uma forma de

se aproximar ao modelo “dominante”. Os libertos, e mesmo os escravos, buscavam

sempre uma aproximação com o modo de vida dos seus ex-senhores e senhores,

respectivamente. Por isso, mesmo sendo escravizados num passado próximo, muitos

libertos possuíram escravos. A posse de escravos era uma atividade altamente rentável,

além de se traduzir em status. Para os libertos as duas coisas eram importantes, talvez

mais importante que o próprio fato de proporcionar o cativeiro a seus “semelhantes”. O

psiquiatra e escritor Frantz Fanon39

pontua voltando-se para outro contexto que, os

“dominados” tendem a se aproximar do modo de vida (ou da cultura) de seus

dominadores, algo parecido acontecia no nosso contexto, havia uma tendência dos ex-

escravos buscarem o ideal senhorial, mas sem se desvincular totalmente de seus antigos

laços criados no cativeiro. Enfim, o mundo dos libertos pairava entre as relações com o

mundo novo de ascendência senhorial e com o velho mundo de que estes haviam a

pouco se libertado.

É muito complexo medir o nível de mobilidade social e econômica de

indivíduos em qualquer tempo histórico, no caso aqui analisado lidamos com um grupo

de sujeitos teoricamente no mesmo status (o de liberto/alforriado), porém não há

uniformidade quanto às trajetórias destes, por isso é praticamente impossível proferir

alguma afirmação geral, analiso as trajetórias destes ex-escravos quase de forma

individual, vez por outra analisando coletivamente alguns elementos mais homogêneos.

A maior parte desses escravos, que produziram testamentos e inventários, deveria

possuir algum ofício ou lidar com comércio, geralmente estas atividades já eram de

conhecimento destes sujeitos desde os tempos em que viviam no continente africano.

Muitos africanos, principalmente do sexo feminino, tinham conhecimento de práticas

38

MARANHÃO, 1834, Testamento do preto forro Luiz Antônio, Arquivo Histórico do Tribunal de

Justiça do Maranhão, primeiro de agosto de 1834, livro 25, p.201. 39

Ver FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. EDUFBA, 2008.

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comerciais e aqui conseguiram tirar bom proveito disso, conseguindo a emancipação e o

sucesso econômico quando em liberdade.

Os casos de libertos que em seus testamentos/inventários relataram um

número maior de posses tanto materiais (casas, objetos, joias, dinheiro) quanto humanas

(escravos) são casos menos frequentes. Geralmente, os escravos que conseguiam se

alforriar obtinham algumas pequenas liberdades, o que já pode ser considerado um tipo

de mobilidade. Na realidade, qualquer passo para além da inércia social do cativeiro, a

meu ver, consiste num tipo de mobilidade. Essas pequenas liberdades poderiam ser o

recebimento de alguma remuneração pelos trabalhos executados, terras para cultivo,

parte na produção em terras senhoriais, etc.

É bem verdade que, neste jogo de relações, os senhores sabiam muito bem

intercalar benefícios e exigências, assim como os escravos ou libertos tutelados

conseguiam tirar algum proveito. As relações de poder ali estabelecidas nunca foram

unilaterais, escravos e libertos também foram sujeitos ativos no processo de busca por

melhorias e emancipações.

Apesar das especificidades de cada processo de emancipação, as

pesquisas têm convergido ao perceberem o fim da escravidão como

um momento de profunda mudança dos referenciais culturais, que até

então norteavam as relações econômicas, a convivência social e as

relações de poder nas áreas escravistas das Américas. Neste contexto,

libertos, ex-senhores, os demais homens e mulheres livres e o próprio

Estado viram-se forçados a rever atitudes e estratégias, frente a um

processo social que, mesmo estruturalmente condicionado e apesar

das diferenças de recursos econômicos, políticos ou culturais, nenhum

de seus atores lograva efetivamente controlar.40

Esse processo de mudança nos referenciais culturais vivenciados por muitos

ex-escravos visou quase sempre a aproximação com o modelo branco-dominante.

Superado o cativeiro, o ideal cultural a ser alcançado quase sempre era o modelo

senhorial, alguns raros sujeitos lograram êxito em tal percurso e conseguiram vivenciar

a experiência de ser “senhor”. Esta pequena parcela da classe senhorial, mesmo gozando

de um status diferenciado, vivenciava empecilhos jamais vivenciados pela parcela

branca da elite, esses tipos de empecilhos podem ser percebidos, por exemplo, nos

matrimônios. Nos testamentos de libertos da capital da província do Maranhão no

recorte estudado dos libertos que possuíam cônjuges nenhum destes cônjuges era

40

DE CASTRO, Hebe Maria Mattos. Das cores do silêncio. Significados da liberdade no sudeste

escravista. Brasil século XIX, Rio, 1995, pág. 16.

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branco, praticamente 100% dos casos consistia em relacionamentos entre dois ex-

escravos ou entre um(a) ex-escravo(a) e um(a) escrava(o).

Esse dado nos mostra que as opções matrimoniais nas elites ainda

privilegiavam brancos. Mesmo em casos em que o liberto possuía mais bens materiais

que o branco, a preferência permaneceu sendo o branco. Em algumas regiões do Brasil

escravista essa preferência por brancos ocasionou um processo de ascensão social e

econômica de muitos indivíduos brancos sem muitas posses. As elites delimitaram

muito bem até que ponto a mobilidade de um sujeito que vivenciou o cativeiro outrora

poderia ir, mesmo bem sucedido um liberto jamais se equiparia a um branco aos olhos

da sociedade da época.

O recurso à mobilidade espacial era comum a „ricos‟ e „pobres‟,

mesmo considerando-se as expressivas diferenças que a posse de

alguns escravos ou outros bens móveis podia representar nas

oportunidades abertas de reinserção social. Era um recurso da

liberdade, primeira e fundamental marca de seu exercício. Não só

processos de empobrecimento, porém, produziam o homem móvel. A

obtenção de alforrias também gerava continuamente novos livres, à

procura de laços. A inserção social destes homens na sociedade

colonial se fez, entretanto, profundamente marcada por uma

hierarquização racial, que separava, até mesmo na prática religiosa,

pretos, brancos e pardos.41

Por mais que a sociedade ludovicense não fosse integralmente fechada

juridicamente à inserção de libertos no mundo branco-dominante, na prática havia

espaços muito bem delimitados, no mundo religioso, na administração pública e em

alguns outros setores que não possuíam e até hoje não possuem a presença de negros.

Em última análise, a sociedade ludovicense escravista na primeira metade do século

XIX era aberta à mobilidade de ex-escravos até certo ponto. A cor da pele ainda

consistia num empecilho direto à mobilidade, os termos “preto” e “escravo” ainda eram

sinônimos; a associação direta entre cor da pele e cativeiro vetava muitas possibilidades

de vivência da experiência da liberdade. Mesmo livres, os forros continuavam pretos, e

vários setores da sociedade continuariam a notá-los como escravos, talvez a cor da pele

dentro da sociedade escravista fosse o maior obstáculo para qualquer um que ansiava a

ascensão. Daí surge a justificativa para a constante busca pelo branqueamento alguns

anos mais tarde, ser branco era quase sinônimo de ser livre, assim como ser preto

equiparava-se a ser cativo.

41

DE CASTRO, Hebe Maria Mattos, Op.Cit. pág. 29.

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52

É complexo afirmar até que ponto os escravos e libertos tinham consciência

das barreiras que a sociedade os impunha. Percebi que estes sujeitos que vivenciaram a

experiência do cativeiro na capital da província do Maranhão tinham noção do

tratamento diferenciado que teriam ao se tornarem “livres”. Não se pode negar que um

escravo ou liberto sabia que o mundo das elites era encabeçado por brancos, mesmo

nesta situação, muitos libertos conseguiram uma aproximação com o modo de vida

branco-dominante. Talvez sem se preocupar com o fato de como seriam vistos

socialmente, percebo que muitos libertos buscavam o sucesso econômico sem cogitar

um distanciamento de seus antigos laços dos tempos de cativeiro, por mais sucesso

econômico que o liberto tivesse e considerando os casos que analisei, todos sem

exceções mantinham algum tipo de relação com o mundo escravo, é bem verdade que a

escravidão em São Luís atingia a todos independentemente da posição socioeconômica

ocupada.

Na verdade, o escravo que cultivava o favor do senhor não podia

dispensar a “amizade” de seus parceiros. Se assim fizesse, poderia

alvo do revanchismo deles. [...] O mundo do cativeiro permanecia um

mundo imprevisível, por mais que os escravos se empenhassem em

reduzir o perigo em suas vidas. Mesmo os que tinham chances de ficar

com o prêmio gordo, a alforria, sabiam que as possibilidade de deixar

para trás uma vida de insegurança e privações como libertos eram

poucas.42

A vida de um liberto era cercada de dicotomias. Um sujeito liberto, fosse ele

africano ou brasileiro,43

sempre estava dividido entre o mundo cativo e o mundo branco-

dominante. O anseio por liberdades é fato comum a qualquer ser que vivencia a

experiência do cativeiro. Liberdade não era e não é um conceito fechado, na realidade

cada liberto possuía seus próprios anseios de vida em liberdade, anseios que variavam

desde pequenas liberdades até a busca por uma vida senhorial. Como já foi dito, liberto

na capital maranhense oitocentista nunca foi sinônimo de ser livre, o grau de mobilidade

social e econômica de um ex-escravo pode ser medido a partir do distanciamento com a

antiga realidade, quanto mais próximo à realidade de cativeiro um liberto estava, menor

era seu grau de mobilidade.

42

SLENES, Robert W. Senhores e subalternos no Oeste paulista. IN: ALENCASTRO, Luiz Felipe de

(org). Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, pág. 280.

(“História da Vida privada no Brasil”, volume 2). 43

Refiro-me aos escravos já nascidos no Brasil.

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Vale ainda ressaltar, que mesmo para os homens a alforria não era

necessariamente sinônimo de liberdade. Ela era um passo a mais, se

bem que, regra geral, pudesse ser o mais importante naquela direção.

Juridicamente, a alforria transformava uma “coisa” num “homem”,

concedendo o direito de formar uma família e adquirir uma

propriedade. Mas era só o direito que era cedido e não a realidade de

um grupo para se “pertencer” – uma conquista que dependia do

próprio liberto. Também não ficava garantida a aquisição de riqueza

suficiente para a manutenção da autonomia individual, principalmente

à noite. Até 1871 a alforria poderia ser revogada devido a um simples

ato de desrespeito ao antigo senhor mesmo 16 depois de lavrada a

carta.44

A mobilidade de alguns libertos com que trabalho é extraordinária. Estes

viviam num contexto em que as cartas de alforria eram revogáveis e a sociedade branco-

dominante os lançava para a dependência, e ainda assim conseguiram alçar o sucesso

econômico e social, como a Preta forra Maria dos Santos das Neves que produziu seu

testamento em 1834. Segundo a documentação, a alforriada relata possuir inúmeras

peças de ouro, casas, escravos, além de se mostrar perfeitamente articulada com a

sociedade dominante, negociando com estes e tendo alguns destes como seus

testamenteiros. Casos como este nos levam a pensar que mesmo diante de tantas

adversidades uma escrava poderia alcançar um status parecido com o senhorial. A

disparidade entre a posição jurídica de um liberto e sua realidade, juntamente com o

modelo de sociedade senhorial aqui desenvolvidos, tornavam as perspectivas de futuro

de qualquer liberto muito incertas, mesmo tendo pago por suas cartas de alforria a

gratidão eterna aos antigos senhores deveria se manter.

Para vencer num mundo tão adverso a melhor arma utilizada pelos libertos

foi a união, seja com outros libertos, seja com brancos livres, seja com outros escravos.

Unidos, os libertos conseguiam mutuamente se beneficiar. A historiografia já nos

mostrou casos de libertos que auxiliavam escravos em fuga, senhores que alforriavam

escravos gratuitamente, senhores que concediam terra, trabalho e outros benefícios a

libertos. Em 1845, a preta forra Constancia Maria da Conceição, estando no leito de

morte, deixou todos os seus bens ao preto forro Fernando José Domingues, ambos de

nação mina, e solicitou que caso este fosse vender os bens herdados o mesmo deveria

dar parte do valor a outro forro. Neste caso percebe-se primeiramente a concepção de

auxílio a sujeitos oriundos da mesma localidade em África (a região da Costa da Mina

44

CARVALHO, Marcus J. M. de. Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo. Recife, 1822-1850,

Recife, Editora Universitária da UFPE, 1998, pág. 226.

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neste caso) e o sentimento de coletividade entre alforriados. Esse tipo de relação era

muito comum, a preta forra Maria dos Santos das Neves, já várias vezes citada neste

trabalho, emprestou dinheiro para dois escravos oriundos da sua mesma nação de

origem para que estes comprassem suas alforrias, este fenômeno não foi isolado pelo

contrário era amplamente comum.

Declaro que instituo como unico e universal herdeiro de todos os

meus bens a Fernando José Domingues, preto forro e Nação mina por

amor e esmola que lhe tenho e pelo bem que me tem tratado em

minhas moléstias com a condição de deixar morar nas cazas enquanto

vivo for o preto forro Francisco da Cunha emquanto este for vivo pelo

amor e esmola que lhe faço; e caso o meu herdeiro acima declarado

quiser vender as ditas cazas, do producto dellas dará a quantia de cem

mil reis ao preto forro Francisco da Cunha.45

A ajuda mútua entre sujeitos que compartilhavam laços e as mesmas

complexidades de uma sociedade pautada no elitismo branco foi o sucesso de muitos

libertos. Em muitos jornais, já citados neste trabalho, fica claro que a sociedade

dominante não se preocupava muito em diferenciar hierarquicamente libertos e

escravos. Muitos libertos foram reprimidos como se fossem escravos, os jornais

diariamente descreviam casos de libertos sendo presos por embriaguez ou por falar

palavras “injuriosas” direcionadas a seus antigos senhores ou a outras pessoas livres. A

sociedade dominante se articulou e restringiu fortemente as chances de mobilidade de

escravos e libertos, alguns sujeitos extraordinários conseguiram transpor o bloqueio das

elites e vivenciaram experiências distantes da vivencia do cativeiro.

No dia-a-dia, os escravos e libertos tiveram de se defrontar com os

encargos do sobreviver, com as exigências impostas pelo viver

citadino e improvisar respostas compatíveis à resistência contra a

escravidão. Transformaram as vicissitudes da discriminação, da

escassez de recurso e da ausência de instituições que lhes assistissem,

num duro aprendizado de experiência da liberdade. 46

Na constante luta de classes, a classe “dominante” tinha consciência da

força da classe “dominada”. Para que não houvesse embates constantes, muitos

senhores concediam alguns benefícios a seus cativos, a fim de evitar maiores prejuízos.

Esse jogo foi muito bem jogado pelos dois lados, cada um sabia o que e como poderia

extrair o melhor da outra parte. Essas concessões por parte dos senhores são analisadas

45

MARANHÃO 1845, Testamento da preta forra Constancia Maria da Conceição, Arquivo Histórico

do Tribunal de Justiça do Maranhão. 46

WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros em

São Paulo, 1850-1880. Vol. 4. Editora Hucitec, 1998, pág. 15.

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por Josenildo Pereira (2006) como readaptações dos proprietários diante das fugas e

ouras manifestações de seus escravos. Algumas cartas de alforria também podem ser

enquadradas nesse conjunto de concessões, levando em consideração que nem todos os

cativos possuíam condições de acumular pecúlio para adquirir suas cartas de liberdade.

Como já foi dito, a acumulação por parte de cativos dependia de uma série de fatores

como possuir oficio, ter espaços de sociabilidade, ter contato com pessoas livres, ter

boas relações com seus senhores, etc.

As classes dominantes possuíam os recursos econômicos necessários à

produção de artigos primários para exportação: algodão, arroz e

açúcar, isto é, a terra, as ferramentas, os equipamentos e a força de

trabalho escrava. Na luta pela concentração da propriedade da terra e

do controle dos meios de produção, os proprietários rurais faziam-se

como classes procurando garantir os seus interesses em detrimento

dos interesses de trabalhadores escravos e livres pobres submetidos à

sua exploração econômica, dominação social e política de forma direta

ou por intermédio de seus interlocutores, investidos de poder

institucional, na condição de autoridades públicas como vereadores,

deputados, juízes e delegados de polícia, entre outras funções.

Contudo, convém esclarecer que se utiliza o conceito de classe

dominante numa acepção limitada, segundo a qual essa categoria não

significa uma classe social toda poderosa, ou que possa realizar os

próprios interesses sem encontrar resistências e sofrer ocasionais

derrotas mais ou menos severas. Pois, de acordo com Marx, “para se

poder oprimir uma classe, têm de lhe ser assegurada as condições em

que possa pelo menos ir arrastando a sua existência servil”.47

A elite ludovicenses ocupava os mais altos cargos, possuía os maiores e

melhores recursos, porém sabia que era impossível subjugar as duas principais classes

“inferiores” (escravos e libertos). Nesse xadrez, os senhores de escravos, longe de

ignorantes, sabiam muito bem o que estava em jogo, por isso alimentavam o sonho da

liberdade de seus cativos, que quando alcançado os senhores buscavam mantê-los

tutelados, além de frear suas possibilidades de mobilidade. Os escravos e libertos não se

mantiveram passivos a tal situação, talvez a mobilidade socioeconômica de libertos

fosse vista com maus olhos pelos antigos senhores. Mesmo com tantos obstáculos,

inúmeros sujeitos conseguiram melhorar suas condições de vida. Os sujeitos com os

quais tenho trabalhado foram um pouco mais além, pois conseguiram possuir bens e

legá-los a seus entes próximos. Os testamentos por mim analisados são prova crucial da

47

MARX, K. & ENGELS, Manifesto do partido Comunista. p. 93. In: CARONE, Edgar. A trajetória

dopartido Comunista no Brasil. São Paulo: Novos Rumos, 1986. IN: PEREIRA, Josenildo de Jesus. As

representações da escravatura na imprensa jornalística do Maranhão na década de 1880. (Tese de

doutorado) Programa de Pós-Graduação em História Social USP, São Paulo 2006. pág. 30.

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mobilidade de ex-escravos em São Luís-MA, pois legitimam o argumento da posse de

bens por ex-escravos, além de demonstrar como estavam suas relações sociais verticais

e horizontais.

Diante do numero de africanos que o tráfico transatlântico trouxe para

o Brasil (cerca de três milhões e seiscentos mil – soma escandalosa, se

comparada aos aproximados quatrocentos mil africanos embarcados

para os EUA), a obtenção de uma carta de alforria devia parecer como

ser contemplado com a sorte grande. Mas o importante é que eram

recorrentes o suficiente para influir decisivamente nos costumes da

época, em todos os quadrantes da vida social, na economia, na

política, na cultura. Tratava-se, em ultima instância, até mesmo pelo

predomínio das alforrias incondicionais, de um constante alargamento

de áreas de aderência ao sistema escravista por parte de ex-escravos

(particularmente de ex-cativas) 48

.

O ato de alforriar era costumeiro como pontuou Manolo Florentino (2005).

A sociedade branco-dominante, como já foi dito, utilizava as alforrias e outras

concessões como forma de amenizar as tensões com o mundo cativo-liberto. Os

próprios escravos quando libertos praticavam o mesmo ato. Alguns libertos que tiveram

melhores condições socioeconômicas alforriaram seus cativos como um espelho de seus

senhores, alguns sujeitos desde os tempos de cativeiro ansiavam à vida senhorial, a

posse de escravos por libertos demonstra a concretização do espelhamento com o

modelo social, tal fato estava longe de ser uma regra, muitos escravos buscaram a

liberdade apenas para “dispor de si”, os casos mais comuns são os casos de libertos sem

muitas posses como o caso do preto forro José Dias que produziu seu testamento em

1845:

Declaro que fui escravo do dito Ayres Carneiro Homem de Santo

Maior, e por fallecimento deste fui abandado em quinhão do herdeiro

Antonio Carneiro Homem de Santo Maior a quem dei a quantia de

cento e oitenta mil reis por minha alforria, e declaro outro sem sou

filho natural de uma escrava d‟aquelle Ayres Carneiro de nome

Regenia, a qual depois de forra faleceo e não conheci Pay = Declaro

que sou senhor e proprietário de uma morada de Cazas cobertas de

pindova e taipa de varas, da qual morada de Cazas não tenho titulo

algum por ser terreno perdido, a qual ordeno, que assim que meo filho

chegar de Pernambuco , o dito Felippe, será vendida para reunir sua

liberdade.49

48

FLORENTINO, Manolo, Tráfico, Cativeiro e Liberdade: Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX. Rio de

Janeiro, Civilização Brasileira, 2005, pág. 373. 49

MARANHÃO, 1845 Testamento do preto forro Manoel Pereira d’Araujo, Arquivo Histórico do

Tribunal de Justiça do Maranhão, 1845.

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O Caso do preto forro Manoel Pereira é interessante pela riqueza de detalhes

descritos, sua liberdade foi adquirida mediante o pagamento de uma quantia, cento e

oitenta mil reis, um valor bem alto o que nos leva a concluir que Manoel possuía um

ofício que lhe proporcionava acumular pecúlio, pois a quantia é relativamente alta e

provavelmente deve ter sido resultado de um longo período de acúmulo. Fica claro que

depois de alforriado o preto forro conseguiu manter sua fonte de renda, pois ao afirmar

que possuía uma “morada de cazas”, pressupõe-se que o mesmo teve renda para

construir e manter a propriedade, mesmo sem ter título algum da propriedade. Tal fato

nos dá legitimidade para concordar com a historiografia no que diz respeito a maior

facilidade dos cativos que possuíam ofício na aquisição (via compra) das cartas de

alforria. Possuir oficio geralmente era característica de escravos de ganho que gozavam

de maior autonomia, estes sujeitos, na maioria urbanos, eram acostumados com o viver

em liberdade, para estes a alforria era a legitimação de sua liberdade de dispor de si.

O usufruto da liberdade fora relativo. Havia cativos de ganho, em São Luís,

que gozavam de muitíssima liberdade, muitos escravos com oficio se alugavam para

vários tipos de trabalhos e pagavam, diária, semanal ou mensalmente parte de seus

ganhos a seus senhores. Essa autonomia em dispor de si foi determinante no acúmulo de

pecúlio para compra de alforria. Do mesmo modo, havia libertos que viviam tutelados

aos seus “antigos” senhores, principalmente pelo fato destes serem maioria naqueles que

recebiam a alforria sem pagar valor algum, o nível de dependência estava bastante

ligado à forma como a alforria foi obtida, nos casos em que analisei, os escravos que

compraram sua liberdade tiveram melhor mobilidade quando comparados àqueles que

receberam a alforria “gratuitamente”.

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os estudos sobre alforrias, mobilidade de libertos e transição para a

liberdade ainda são relativamente pouco expressivos quando comparados aos estudos

que analisam diretamente a temática da escravidão. O cativeiro no Brasil escravista tem

muito mais estudos que a liberdade, porém a historiografia vem evoluindo gradualmente

no que se refere aos estudos sobre a liberdade escrava. Neste trabalho tentou-se

apresentar uma perspectiva ainda pouco analisada: a mobilidade social e econômica de

cativos a partir de seus testamentos e inventários. Utilizei o período de 1830 a 1845 em

São Luís, capital da Província do Maranhão, por ser um período em que a escravidão no

nordeste vivia seu apogeu. Na segunda metade do século XIX, com a proibição do

tráfico transatlântico o nordeste torna-se um polo exportador de cativos para outras

regiões do Brasil, situação que dificultou o processo de obtenção de alforrias e

consequentemente diminuiu as chances de mobilidade socioeconômica.

Apenas cerca de 1% dos africanos escravizados conseguiam se libertar. Esse

processo possuía várias formas de ocorrer, ao longo do trabalho foram explicitadas as

principais formas e estratégias de escravos e senhores nos processos de obtenção e

concessão de cartas de alforrias. Essa minoria esmagadora que conseguia se libertar

quase sempre continuava a vivenciar situações parecidas com o cativeiro. Muitas vezes

havia processos de competição entre cativos e alforriados, porém tal fato não foi uma

regra geral, houve uma minoria dentro da minoria dos 1% que conseguiu se libertar e

também conseguiu vivenciar uma realidade bem diferente do cativeiro. Esta minoria de

alforriados que conseguiram se libertar e tiveram uma mobilidade mais acentuada foi

analisada de forma particular, alguns cativos conseguiram se libertar do status quo do

cativeiro e tornaram se senhores, este processo ficou claro em seus testamentos e

inventários.

Diferentemente da ideia que eu possuía antes do contato com a

documentação e do estudo mais detalhado, nem todos os libertos tiveram uma vida sem

muitas mudanças, houve casos extraordinários (exceções, claro) de cativos inseridos no

mundo dominante. Mesmo com tantas barreiras e com uma sociedade fechada à

ascensão de ex-cativos, alguns raros sujeitos como a preta forra Maria dos Santos das

Neves conseguiram se relacionar com a sociedade senhorial através de vínculos de

afetividade e também de relações econômicas. Socialmente a vida dos libertos era uma

vida de continuidades e rupturas, estes dois processos são fundamentais para o bom

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entendimento do modo de vida dos libertos na capital São Luís e em qualquer outra

parte do Brasil. Ser livre para um escravo poderia ser várias coisas, haja vista que

liberdade não é e jamais será um conceito absoluto, os sujeitos que conseguiram se

libertar do mundo de cativeiro foram vencedores independentemente dos meios

utilizados para tal, numa realidade de exploração do homem pelo homem, toda vitória

dos explorados foi válida e gloriosa.

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DOCUMENTOS

JORNAIS:

A REVISTA, Acervo Digital da Biblioteca Nacional, edição 00438, 4/4, 1843, pág. 1,

disponível em: http://bndigital.bn.br/acervo-digital, acesso em 27/01/2014.

FAROL MARANHENSE, edição 00002, pasta (1827-1831) Acervo Digital da

Biblioteca nacional, pág. 235, disponível em: http://bndigital.bn.br/acervo-digital,

acesso em 27/01/2014.

TESTAMENTOS E INVENTÁRIOS:

MARANHÃO, 1809, Testamento da preta forra Barbara Correa, Arquivo Histórico

do Tribunal de Justiça do Maranhão, 1809.

MARANHÃO, 1809, Testamento da preta forra Maria Francisca, Arquivo Histórico

do Tribunal de Justiça do Maranhão, 1809.

MARANHÃO, 1813, Testamento da preta forra Joaquina Roza, Arquivo Histórico

do Tribunal de Justiça do Maranhão, 1813.

MARANHÃO, 1816, Testamento do preto forro Bernardo de Assumpção, Arquivo

Histórico do Tribunal de Justiça do Maranhão, 1816.

MARANHÃO, 1816, Testamento do preto forro Ventura José dos Santos, Arquivo

Histórico do Tribunal de Justiça do Maranhão, 1816.

MARANHÃO, 1821, Testamento da preta forra Joaquina Maria dos Santos,

Arquivo Histórico do Tribunal de Justiça do Maranhão, 1821.

MARANHÃO, 1821, Testamento da preta forra Maria Francisca da Silva, Arquivo

Histórico do Tribunal de Justiça do Maranhão, 1821.

MARANHÃO, 1822, Testamento da preta forra Joana Luiza Correa, Arquivo

Histórico do Tribunal de Justiça do Maranhão, 1822.

MARANHÃO, 1822, Testamento da preta forra Maria Joaquinna, Arquivo

Histórico do Tribunal de Justiça do Maranhão, 1822.

MARANHÃO, 1823, Testamento do preto forro Manoel Domingues, Arquivo

Histórico do Tribunal de Justiça do Maranhão, 1823.

MARANHÃO, 1823, Testamento do preto forro Manoel Cidade Leite, Arquivo

Histórico do Tribunal de Justiça do Maranhão, 1823.

MARANHÃO, 1828, Testamento da preta forra Maria da Conceição, Arquivo

Histórico do Tribunal de Justiça do Maranhão, 1828.

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MARANHÃO, 1831, Testamento da preta forra Clara Joaquina, Arquivo Histórico

do Tribunal de Justiça do Maranhão, 12 de outubro de 1831.

MARANHÃO, 1833 Testamento de Angelica Rosa de Jesus, Arquivo Histórico do

Tribunal de Justiça do Maranhão, 1833.

MARANHÃO, 1833, Testamento de Antonio Pinto Machado Lobo, natural de

Porto, Arquivo Histórico do Tribunal de Justiça do Maranhão, 1833.

MARANHÃO, 1834, Testamento da preta forra Maria dos Santos das Neves,

Arquivo Histórico do Tribunal de Justiça do Maranhão, 1834.

MARANHÃO, 1834, Testamento do preto forro Luiz Antônio, Arquivo Histórico do

Tribunal de Justiça do Maranhão, primeiro de agosto de 1834.

MARANHÃO 1845, Testamento da preta forra Constancia Maria da Conceição,

Arquivo Histórico do Tribunal de Justiça do Maranhão.

MARANHÃO, 1845 Testamento do preto forro Manoel Pereira d’Araujo, Arquivo

Histórico do Tribunal de Justiça do Maranhão, 1845.