divisÃo sexual do trabalho, empreendedorismo e … · aquele/a disponível ... para pensar a...

12
1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO, EMPREENDEDORISMO E TRABALHO AUTÔNOMO Raquel Oliveira Lindôso 1 Resumo: Este artigo busca discutir as recentes mudanças no mundo do trabalho decorrentes do processo de flexibilização, articulados com a divisão sexual do trabalho. O ponto central do presente trabalho consiste em compreender de que maneira a retórica do empreendedorismo ou empreendedor/a de si (self empreendedor) apresenta-se como uma nova cultura do trabalho, no contexto de desenvolvimento do capitalismo sob o regime da “acumulação flexível”. De modo que, a narrativa do empreendedorismo representa, a nosso ver, uma matriz ideológica que possibilita o fortalecimento e aprofundamento dos valores baseados no mérito e no ganho individual, deslocados dos questionamentos acerca das desigualdades (conflitos) e hierarquias (poder). Nesse processo, as mulheres são impactadas de maneira desigual considerando sua inserção em atividades na modalidade de trabalhadora autônoma, caracterizadas como sendo mais inseguras e desprotegidas, e da precariedade das mulheres no mundo do trabalho (jornada, adoecimento laboral, rendimentos). Palavras-chave: Flexibilização. Divisão Sexual do Trabalho. Empreendedorismo. Cultura do Trabalho. Trabalho Autônomo. Introdução Neste artigo proponho discutir uma tendência do mercado de trabalho brasileiro. O ponto central do presente trabalho consiste em refletir acerca das formas contemporâneas de auto-assalariamento ou assalariamento disfarçado. E é nesse contexto que localizo o debate em torno da retórica do empreendedorismo ou empreendedor/a de si (self empreendedor). Busca-se pensar de que maneira o empreendedorismo, sob o regime da “acumulação flexível” 2 , representa uma matriz ideológica que favorece o fortalecimento e aprofundamento dos valores baseados no mérito e no ganho individual, deslocados dos questionamentos acerca das desigualdades (conflito) e hierarquias (poder). Outro aspecto importante trata do ethos do trabalho associado a um tipo ideal de trabalhador/a, qual seja aquele/a disponível para as demandas do empregador/a. 1 Raquel Oliveira Lindôso, Mestra em Serviço Social (UFPE) e Doutoranda em Ciências Sociais pela (Unicamp). E- mail: [email protected] 2 Aqui faço uso do conceito de acumulação flexível desenvolvido por HARVEY (1993), que caracteriza esse momento do capital mundial pelo “surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional. A acumulação flexível envolve rápidas mudanças dos padrões do desenvolvimento desigual, tanto entre setores como entre regiões geográficas” (HARVEY, 1993, p. 140)

Upload: hathu

Post on 19-Nov-2018

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

1

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO, EMPREENDEDORISMO E TRABALHO

AUTÔNOMO

Raquel Oliveira Lindôso1

Resumo: Este artigo busca discutir as recentes mudanças no mundo do trabalho decorrentes do

processo de flexibilização, articulados com a divisão sexual do trabalho. O ponto central do

presente trabalho consiste em compreender de que maneira a retórica do empreendedorismo ou

empreendedor/a de si (self empreendedor) apresenta-se como uma nova cultura do trabalho, no

contexto de desenvolvimento do capitalismo sob o regime da “acumulação flexível”. De modo que,

a narrativa do empreendedorismo representa, a nosso ver, uma matriz ideológica que possibilita o

fortalecimento e aprofundamento dos valores baseados no mérito e no ganho individual, deslocados

dos questionamentos acerca das desigualdades (conflitos) e hierarquias (poder). Nesse processo, as

mulheres são impactadas de maneira desigual considerando sua inserção em atividades na

modalidade de trabalhadora autônoma, caracterizadas como sendo mais inseguras e desprotegidas, e

da precariedade das mulheres no mundo do trabalho (jornada, adoecimento laboral, rendimentos).

Palavras-chave: Flexibilização. Divisão Sexual do Trabalho. Empreendedorismo. Cultura do

Trabalho. Trabalho Autônomo.

Introdução

Neste artigo proponho discutir uma tendência do mercado de trabalho brasileiro. O ponto central do

presente trabalho consiste em refletir acerca das formas contemporâneas de auto-assalariamento ou

assalariamento disfarçado. E é nesse contexto que localizo o debate em torno da retórica do

empreendedorismo ou empreendedor/a de si (self empreendedor). Busca-se pensar de que maneira o

empreendedorismo, sob o regime da “acumulação flexível”2, representa uma matriz ideológica que

favorece o fortalecimento e aprofundamento dos valores baseados no mérito e no ganho individual,

deslocados dos questionamentos acerca das desigualdades (conflito) e hierarquias (poder). Outro

aspecto importante trata do ethos do trabalho associado a um tipo ideal de trabalhador/a, qual seja

aquele/a disponível para as demandas do empregador/a.

1 Raquel Oliveira Lindôso, Mestra em Serviço Social (UFPE) e Doutoranda em Ciências Sociais pela (Unicamp). E-

mail: [email protected] 2 Aqui faço uso do conceito de acumulação flexível desenvolvido por HARVEY (1993), que caracteriza esse momento

do capital mundial pelo “surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de

serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e

organizacional. A acumulação flexível envolve rápidas mudanças dos padrões do desenvolvimento desigual, tanto entre

setores como entre regiões geográficas” (HARVEY, 1993, p. 140)

2

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

Destaco que pensar o Empreendedorismo – lido como estratégia contemporânea de

mistificação das relações de trabalho – articulado a Divisão Sexual do Trabalho é um caminho de

pesquisa relevante quando se busca olhar o fenômeno de externalização e terceirização como parte

do processo de centralização de capital, via descentralização da produção. Nesse sentido, a retórica

do empreendedorismo insere-se no âmbito da reorganização das relações de poder no mundo do

trabalho contemporâneo, que articulado a divisão sexual do trabalho, impacta de maneira desigual a

vida das mulheres.

Este trabalho está organizado em quatro seções. A primeira consiste nesta introdução, seguida

da apresentação do debate contemporâneo acerca do empreendedorismo e, na sequência, trata-se da

participação das mulheres no mundo do trabalho na modalidade de trabalhadora autônoma. Por fim,

breves considerações.

Expresso aqui minha intenção de que esta primeira aproximação com a temática do

empreendedorismo, no âmbito da Sociologia do Trabalho na perspectiva crítica, possa ser refletida

coletivamente, de modo que o diálogo contribua na elaboração de novas reflexões mais

substanciada e aprofundada.

“Donas de Si e Proletárias de Si”: Empreendedorismo, Mulheres e Trabalho Autônomo.

Os/as estudiosos/as das transformações contemporâneas do mundo do trabalho brasileiro

(ALVES (2011); CASTRO (2016) DRUCK (2011); HIRATA (2015)) têm dedicado grande atenção

às estratégias de ampliação de extração de mais trabalho (intensificação da flexibilização,

externalização da produção e terceirização, sobretudo) e as implicações disto nas condições de

trabalho e vida da classe-que- vive-do-trabalho (ANTUNES, 1999).

O debate atual, na perspectiva crítica, acerca das metamorfoses do mundo do trabalho apóia-

se, de certa maneira, na ideia consensual de que há em curso um processo histórico de

complexificação das formas de valorização do capital. Nesse sentido, torna-se fundamentalmente

relevante pensar os aspectos da fragmentação, ampliação e heterogeneidade da classe trabalhadora.

Com esse propósito, a complexificação das formas de valorização do capital é discutida no contexto

da ampliação da relação capital-trabalho. Busca-se, assim, enfrentar as teses equivocadas que

questionam a validade da relação capital-trabalho na contemporaneidade.

Em diálogo com a ideia acima descrita, busca-se problematizar o tema do

Empreendedorismo a partir da análise que envolve os elementos referentes à (1) jornada de trabalho

3

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

intermitente e (2) a gestão do contrato de trabalho. De modo que, o falseamento do assalariamento

funciona como mecanismo de adequação ao padrão flexível de acumulação.

Sabe-se que a precariedade das condições de vida e trabalho da classe trabalhadora é condição

intrínseca do modo de existência do capitalismo. A novidade consiste, portanto, de entender como

o capitalismo vem utilizando-se de transformações tecnológicas e organizacionais na busca pela

apropriação de espaços antes considerados improváveis. Bem como da reedição de formas antigas

de trabalho (aqui localizo o trabalho domiciliar e o salário por peça).

No “O Capital” pode-se encontrar pistas preciosas para entender tanto a dialética do trabalho

– lançando luz para a interpretação da dimensão contraditória da categoria autonomia – quanto da

problematização do salário por peça, ponto chave para pensar a modalidade de pequeno/a

proprietário/a (empreendedor/a de si).

Para pensar a categoria de exploração olhando a modalidade de salário por peça, Marx afirma

que a "exploração dos trabalhadores pelo capital se realiza aqui mediada pela exploração do

trabalhador pelo trabalhador" (MARX, 1984, p.136). A atualidade das elaborações de Marx ilumina

à problemática do auto-emprego e auto-assalariamento. Desse modo, a tendência de generalização

do auto-emprego precário e desprotegido deve ser compreendida a partir da reflexão da categoria

autonomia, uma vez que o pequeno empresário é, ao mesmo tempo, “dono de si e proletário de si”

(MARX, 1984).

O Empreendedorismo é um tema freqüentemente estudado pelas áreas da Ciência Econômica

e Administração de Empresas, uma vez que a temática pretende lidar com os assuntos que

envolvem as estratégias empresarias frente à competição por novos mercados, através de formas

inovadoras de gestão e gerenciamento de carreiras, qualificação profissional, planejamento

operacional (objetivos, visão e plano de metas) e gestão de riscos e incertezas, bem como acesso ao

crédito. Outro aspecto do Empreendedorismo diz respeito ao desenvolvimento de competências e

habilidades, que falam acerca do comportamento humano do/da empresariado/a (empreendedor/a

ou self empreendedor/a), tais como liderança, autonomia, criatividade, motivação, autoconfiança,

persuasão e resiliência3.

3 Esta síntese tem como fonte empírica o conteúdo apresentado em palestras e apresentações orais, ministrada por

técnicos e consultores do SEBRAE, voltadas para os cursos de graduação em Administração de Empresas e Ciências

Contábeis, entre os anos de 2014-2015-2016, e presenciadas por esta pesquisadora na condição de professora. Vale

destacar, como elemento de reflexão, que a temática do empreendedorismo, na maneira como é abordada pelos

consultores, tem grande adesão dos/das alunos/as – especialmente entre os mais jovens e beneficiários de programas de

crédito educacional – que concebem o empreendedorismo como uma oportunidade de ter um pequeno negócio e/ou

oferta de serviços de consultoria. Dito de outra maneira: o empreendedorismo aparece como outra interpretação para a

problemática da informalidade. Explico que, para os/as jovens alunos/as seus anseios profissionais não estão

4

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

Merece destaque a relevância das instituições que compõem o sistema S, mais

especificamente o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), o Serviço Nacional de

Aprendizagem Comercial (SENAC) e, sobretudo, o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e

Pequenas Empresas (SEBRAE) na difusão do empreendedorismo enquanto estratégia empresarial

voltada para a criação, gestão e inserção de micro e pequenas empresas na economia de mercado, e,

também, como uma reunião de princípios e valores que orientam a prática profissional dos/as

sujeitos/as.

A partir dos anos 1990 o mercado de trabalho brasileiro passa por transformações decorrentes

dos ajustes neoliberais, que se manifestam por meio da desregulamentação das relações de trabalho,

flexibilização, ampliação da informalidade e terceirização. É nesse contexto de institucionalização

da incerteza – que ganharão força de lei com a aprovação das “reformas” da Previdência e do

Trabalho – que a temática do Empreendedorismo chama atenção de pesquisadores e pesquisadoras

nas áreas da Sociologia e Antropologia, uma vez que este vem se apresentado como um caro

elemento para a compreensão das manifestações contemporâneas marcadas por estratégias que

privilegiam e enfatizam o mérito e o crescimento individual, descoladas das abordagens que

questionam as relações de desigualdades (conflito).

Compartilho dessa perspectiva mais analítica no tocante ao Empreendedorismo, entendendo-o

enquanto uma nova cultura do trabalho (ethos), historicamente determinada a partir de 1990 e

aprofundada nos anos 2000, e que se configura como um conjunto de normas e valores que

modificam a interpretação e percepção dos/as sujeitos/as sociais acerca dos conceitos da autonomia,

autocontrole, autogestão e informalidade.

Nesse sentido, as elaborações da pesquisadora COLBARI (2007; 2015) e do pesquisador

LIMA (2010) nos fornecem elementos relevantes para entender o lugar que a retórica do

Empreendedorismo assume na dinâmica atual. Ambos olham com desconfiança para a noção de

empreendedorismo traduzido apenas como uma alternativa de inserção no mundo do trabalho via

criação de micro e pequenas empresas. Desse modo, a dinâmica contemporânea nos desafia a

pensar a retórica do Empreendedorismo como uma matriz ideológica integrada à nova fase do

capitalismo mundial, na qual a figura do trabalhador/a formal (o dito “carteira assinada”) vai

cedendo lugar para o empreendedor/a (self empreendedor).

O argumento da pesquisadora COLBARI (2007; 2015), de maneira geral, está fundamentado

necessariamente associados ao ingresso no mundo do trabalho via atividades protegidas e com regulação pública, mas, sim, em atividades reconhecidas como pessoa jurídica (JP). A permanência no âmbito da informalidade, no imaginário

da classe trabalhadora jovem, é dada sob a condição de empreendedor/a de si.

5

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

em dois pilares: 1) O Empreendedorismo como estratégia de socialização dos/as sujeitos/as sociais

(o que antes estava restrito aos muros empresariais, transborda e espalham-se no tecido social mais

amplo) e; 2) Em decorrência disto, o empreendedorismo pode ser compreendido como um conjunto

de ideias, valores, normas e significados que envolve tanto a gestão de um pequeno negócio

(dimensão objetiva) quanto a concepção da vida social (dimensão subjetiva).

Assim, o Empreendedorismo visto com um conjunto de valores que, ao atravessar a esfera do

trabalho e da empresa, moldam a ação dos/das sujeitos/as social para além da dimensão econômica.

Desse modo, é importante questionar, considerando a experiência brasileira, na qual o mercado de

trabalho é fundamentalmente heterogêneo e desigual, o que a defesa do empreendedorismo nos

revela enquanto novidade?4

O atual desenvolvimento do capitalismo coloca questões que nos ajudam a pensar a forma

como vem se dando as transformações no cenário das relações socais de produção. Permite-nos

compreender os movimentos realizados pela globalização a partir da reestruturação produtiva como

um novo momento do desenvolvimento capitalista. A reestruturação produtiva inaugurou uma série

de transformações responsáveis por mudanças profundas na forma de organização da sociedade, em

outras palavras, que afetaram a maneira como as pessoas pensam, sentem e agem. Sob o regime da

acumulação flexível, os processos de trabalho, os mercados de produtos e os padrões de consumo

vêm reestruturando-se para atender à nova demanda do capital mundial. Nesse sentido, a autora

destaca que:

A descentralização e desverticalização produziram efeitos negativos no mercado de

trabalho, trazendo implicações nos suportes públicos e normativos. (...) O

autodesenvolvimento, empregabilidade e empreendedorismo aparecem como faces da

construção social do modelo profissional em voga. Têm como suporte o indivíduo e o credo

liberal que exalta a vontade como propulsora do êxito pessoal, da vitalidade e do

dinamismo dos mercados e da sociedade como um todo” (COLBARI, p. 90, 2007).

Esse novo momento do desenvolvimento do capitalismo, onde situo a retórica do

Empreendedorismo, é marcado pela criação de novas e sofisticadas maneiras de mistificação da

relação capital-trabalho, articulada a divisão sexual do trabalho, que atuam na descaracterização das

4 Para uma análise mais substanciada sobre o empreendedorismo no Brasil, farei uso das informações fornecidas pelos

relatórios anuais da ONG americana – Global Entrepreneurship Monitor (GEM). As informações contidas nos

referidos relatórios indicam que o Brasil ocupa 10º lugar do ranking mundial no tocante ao registro de

empreendedores/as (GEM, 2013). Outro aspecto expressivo, tratado pelo relatório supracitado, refere-se a existência de

semelhanças entre os países com alta taxa de empreendedorismo. São mais pobres e com índices econômicos mais

instáveis e vulneráveis. “Nesse contexto, é comum a motivação para empreender não estar associada a uma vocação

para o mundo dos negócios que facilite a percepção tanto de promissoras oportunidades de geração e aumento de renda

quanto de perspectivas de autonomia e liberdade no trabalho” (COLBARI, 172-173, 2015).

6

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

relações de trabalho e emprego, individualização do trabalho, fragmentação e enfraquecimento de

ações coletivas (LIMA (2010); CASTRO E KREIN (2015); COLBARI (2007; 2015).

Nesse processo de reafirmação da insegurança e incertezas, o imaginário de inserção no

mundo do trabalho, via ocupações protegidas e reguladas, vai dando espaço para o projeto de

sociedade moldada pela cultura da informalidade. Nesse processo de reorganização das relações de

poder no mundo do trabalho, as mulheres são impactadas de maneira diferenciada e desigual, uma

vez que a maioria delas ocupa os piores lugares no mercado de trabalho, especialmente na

modalidade de trabalho autônomo. Sendo este o ponto central de discussão apresentado no item a

seguir.

Mulheres no Mundo do Trabalho: apontamentos sobre a modalidade de ocupação

trabalhadora autônoma5.

O trabalho, para as mulheres, assume duplo significado. Por um lado, resultada da luta

histórica pelo ingresso no mundo do trabalho e, sobretudo, pela conquista da autonomia financeira.

Por outro lado, a inserção delas é dada, prioritariamente, por meio de ocupação precárias,

caracterizadas pela instabilidade, baixos salários, negação de direitos e violações (assédio moral e

sexual, inclusive).

As transformações no mundo do trabalho (flexibilização, privatização, externalização e

terceirização), articuladas a divisão sexual do trabalho, constitui uma das principais características

do processo de precariedade do trabalho e das condições de vida das mulheres. Nesse sentido, a

problemática da participação das mulheres no mundo do trabalho, insere-se no cenário de aparente

maior autonomia, responsáveis por um número elevado de crescimento de pequenas e

microempresas e da inserção na modalidade de trabalho autônomo. Entretanto, a autonomia,

dialeticamente, vem acompanhada da descaracterização das relações de trabalho, consequentes de

práticas de enxugamento das empresas que buscam maior flexibilidade, seja na produção, seja nas

5 A tendência do auto-emprego precário articulado à divisão sexual do trabalho, pode ser verificada nos resultados da

pesquisa intitulada “O Trabalho Autônomo e a Política de Inclusão Previdenciária dos Microempreendedores

Individuais – MEI” (2015), publicada pelo SOS CORPO: Instituto Feminista para a Democracia. A pesquisa supracitada

integra a elaboração de três estudos sobre a políticas públicas de qualificação profissional, de creches e de promoção de

formalização e proteção social, e também uma pesquisa qualitativa com mulheres inseridas em trabalho precário nos

pólos de desenvolvimento da região metropolitana de São Paulo (no seguimento da construção civil), Barcarena - Pará

(beneficiamento e exportação de caulim, alumina e alumínio) e Toritama-PE (seguimento de confecções e vestuário).

Disponível em http://soscorpo.org/areas-de-trabalho/pesquisa/autonomiamulheres/Desenvolvimento-Trabalho-e-

Autonomia%20Economica.pdf

7

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

relações de trabalho.

Na compreensão das dinâmicas resultantes da radicalização da agenda neoliberal, em nível

global, “o gênero é um organizador-chave” (HIRATA, 2015) desse processo. Assim, na análise dos

impactos desiguais na vida das mulheres, considero fundamentalmente relevante problematizar de

que maneira a divisão sexual do trabalho vem sendo operacionalizada.

Na perspectiva do feminismo crítico francês6, mais especificamente as reflexões de KERGOAT

(2009), a divisão sexual do trabalho assume dois princípios: (1) separação (a própria distinção entre

trabalhos femininos e masculinos); (2) hierarquização (a valorização do trabalho). Assim, o

conceito analítico da divisão sexual do trabalho busca explicar as desigualdades vivenciadas pelas

mulheres nos espaços públicos e privados e que se estende para todas as dimensões da vida social.

Os indicadores do mercado de trabalho brasileiro apontam para a persistência de distorções

presentes na participação de homens e mulheres no mundo do trabalho, especialmente entre os anos

de 2001-2009, período de maiores investimentos na política de geração de emprego formal e

valorização do salário mínimo.

A movimentação do mundo do trabalho informa também que o movimento de crescimento

das atividades formais não surtiu o mesmo efeito para homens e mulheres, uma vez que mesmo

havendo um aumento da criação de postos de trabalho formais, as mulheres, mais do que os

homens, ingressam em ocupações mais desprotegidas e vulneráveis, especialmente na modalidade

de trabalhadora por conta própria e/ou autônoma (ARAÚJO E LOMBARDI (2013); CASTRO E

KREIN (2015)).

A movimentação desigual da absorção da força trabalho feminina parece ser revelador da

dinâmica contemporânea do mundo do trabalho, na qual a participação das mulheres nas

modalidades de trabalhadoras sem carteira assinada, conta própria e do aumento da participação das

mulheres no trabalho autônomo ampliam-se rapidamente.

A reflexão acerca da expansão das modalidades de trabalhadoras sem carteira assinada e

trabalho autônomo, em minha análise, dialoga com as discussões em torno das estratégias de

descaracterização das relações de trabalho, através do auto-assalariamento ou assalariamento

disfarçado tão fortemente presentes na retórica do empreendedorismo ou empreendedor de si (self

empreendedor/a).

6 O Dicionário Crítico do Feminismo (2009) oferece uma síntese dos grandes temas do feminismo na perspectiva

francesa.

8

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

Entende-se, assim, que a crescente inserção das mulheres em atividades vulneráveis e

inseguras, são expressões da complexificação da relação capital-trabalho, na qual verifica-se a

permanência da vulnerabilidade e insegurança, das jornadas de trabalho intermitentes, dos baixos

rendimentos, da desproteção social e a acentuação da responsabilidade delas com a reprodução da

força de trabalho.

Buscando mais concretude para minha análise, focarei na modalidade de inserção trabalho

autônomo e/ou conta própria, articulado a divisão sexual do trabalho, uma vez que compreendo que

esse enfoque possibilita entender de que maneira a retórica do empreendedorismo se materializa na

dinâmica do mundo do trabalho. Para tal, nos itens a seguir, tendo como base os dados estatísticos

da pesquisa intitulada “O Trabalho Autônomo e a Política de Inclusão Previdenciária dos

Microempreendedores Individuais – MEI” (2015), publicada pelo SOS CORPO, Instituto Feminista

para a Democracia7.

Rendimentos e Escolaridade:

O panorama do perfil populacional, segundo dados do censo nacional (IBGE, 2010), revela que

51,03% da população brasileira é feminina e que elas apresentam maiores níveis de instrução formal.

Um pouco mais de 12% da população feminina possui o ensino superior completo enquanto os

homens experimentam taxas inferiores a 10%. Entretanto, os níveis de maior escolarização,

comparado aos dos homens, não é traduzido em maiores níveis de remuneração. Ainda segundo

indicadores do censo (IBGE, 2010), as mulheres recebem o equivalente a 67,6% dos rendimentos

masculinos e o hiato salarial entre homens e mulheres é ainda maior do caso do Nordeste, com taxa

de 63,3% (IBGE, 2010).

Essa tendência pode ser verificada nos resultados da pesquisa realizada e publicada pelo SOS

Corpo (2015), onde é possível notar que há distorção entre os homens e as mulheres, inseridos/as na

modalidade de trabalhadores autônomos, no tocante a escolaridade formal. Nas regiões

metropolitanas estudadas, de acordo com a pesquisa referenciada, a maioria das mulheres

7 Disponível em http: //soscorpo.org/wp-content/uploads/O-Trabalho-Aut%C3%B4nomo-e-a-Pol%C3%ADtica-de-

Inclus%C3%A3o-Previdenci%C3%A1ria-dos-Microempreendedores-Individuais-%E2%80%93-MEI.pdf . Esta

pesquisa integra a elaboração de três estudos sobre as políticas públicas de qualificação profissional, de creches e de

promoção de formalização e proteção social, e também uma pesquisa qualitativa com mulheres inseridas em trabalho

precário nos pólos de desenvolvimento da região metropolitana de São Paulo (no seguimento da construção civil),

Barcarena - Pará (beneficiamento e exportação de caulim, alumina e alumínio), Toritama-PE (seguimento de

confecções e vestuário). Disponível em http://soscorpo.org/areas-de-

trabalho/pesquisa/autonomiamulheres/Desenvolvimento-Trabalho-e-Autonomia%20Economica.pdf

9

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

trabalhadoras autônomas (41,3%) tem ensino médio completo ou superior, enquanto que a maior

parte dos homens (39%) possuem o ensino fundamental incompleto.

Olhando as diferenciações de rendimento, ainda considerando os dados da pesquisa

supracitada, o rendimento médio das mulheres, para o ano de 2013, correspondia a (R$ 844).

Enquanto o rendimento dos homens ficou no patamar de (R$1.550). A variação de percentual de

rendimento, comparando homens e mulheres, aponta que para elas houve o aumento real equivalente

a 16, 3%, já para os homens o aumento foi de 20%.

Assim, é possível constatar que a discriminação por gênero no mundo do trabalho revela a

persistência das relações desiguais de poder, uma vez que a expansão do ingresso das mulheres no

mundo do trabalho, especialmente na última década, foi dado com a reprodução de hierarquias

salariais.

Novas configurações familiares:

As novas configurações familiares representam uma das mudanças mais expressivas da

sociedade contemporânea. Para BRUSCHINI (2007) a queda da taxa de fecundidade e a redução no

tamanho das famílias são transformações demográficas, culturais e sociais que repercutem

diretamente no trabalho das mulheres. A pesquisadora chama atenção para mudanças no perfil das

trabalhadoras, uma vez que, diferentemente das décadas de 1970 e 1980, onde havia maior

participação das mulheres jovens, solteiras e sem filhos, as mulheres hoje são mais velhas, casadas e

mães.

No entanto, a sobrecarga de trabalho não foi alterada, pois as mulheres permanecem

responsáveis pelas atividades domésticas e de cuidados com os/as filhos/as. Na verdade, os dados

censitários (IBGE, 2010) falam da intensificação da responsabilização das mulheres com o trabalho

doméstico, considerando que a proporção de famílias chefiadas pelas mulheres vem crescendo

rapidamente nos últimos anos. O percentual de famílias chefiadas por mulheres é de 37,3% (IBGE,

2010).

As tendências aqui discutidas nos convidam para pensar a respeito das conexões possíveis

entre a articulação do trabalho produtivo e trabalho reprodutivo (trabalho autônomo e

responsabilização com o sustento familiar) com a retórica empreendedora (nova cultura do

trabalho/cultura da informalidade), na medida em que o trabalho autônomo representa uma

importante forma de inserção ocupacional no mundo do trabalho.

10

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

O local de trabalho é um aspecto revelador da divisão sexual do trabalho, na medida em

que repõe a dicotomia público-privado, destinando o espaço privado para as mulheres, ao mesmo

tempo em que confunde redes de relações profissionais e familiares.

Grande parte das mulheres ocupadas na modalidade de trabalhadoras autônomas

desenvolve suas atividades nos domicílios (38,3%). Sendo a revitalização do trabalho domiciliar

uma tendência mundial, que ao entrelaçar-se com a divisão sexual do trabalho, representa, para as

mulheres, uma possibilidade de execução tanto do trabalho produtivo quanto do trabalho

doméstico, ambos desenvolvidos no espaço domiciliar.

Previdência Social:

Estabelecer relação entre a modalidade de trabalhadora autônoma e a previdência social é

uma estratégia relevante na busca pelo enquadramento do impacto da precariedade social na vida

das mulheres. As trabalhadoras autônomas, majoritariamente, não contribuem para a previdência

social, seja pela impossibilidade de destinar parte dos rendimentos para este fim dado os baixos

níveis salariais, seja pelo acesso a informações e procedimentos para a efetivação da contribuição

(educação previdenciária).

Dados da pesquisa que nos referenciamos (SOS CORPO, 2015) constatou que 76,7% das

trabalhadoras autônomas não possuem qualquer tipo de contribuição previdenciária. E a região

Nordeste apresenta os maiores percentuais de desproteção social, representas por Fortaleza (89,4%)

e Recife (84,1%).

Trata-se de um quantitativo enorme de trabalhadores e trabalhadoras (2,4 milhões de pessoas,

segundo dados do SOS Corpo (2015)) que estão localizados fora do status de assegurados/as. Dito

de outra maneira: são homens e mulheres sem qualquer tipo de proteção previdenciária, tendo como

desdobramento nocivo o aprofundamento da vulnerabilidade.

Breves Considerações:

As reflexões apresentadas neste artigo não pretenderam ser conclusivas. Consiste em uma

primeira aproximação que deverá ser substanciada a partir novas problematizações. A proposta buscou

pensar de que maneira as transformações do mundo do trabalho, articulada a divisão sexual do trabalho,

relaciona-se com a retórica do empreendedorismo no âmbito das estratégias de falseamento do

assalariamento. Como conclusão inicial nota-se que o que está em disputa inclui tanto a dimensão

econômica (as condições materiais de vida) quanto a reprodução da vida cotidiana (incluindo os

11

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

elementos da interpretação e percepção dos/as sujeitos/as sociais). O desafio posto consiste em construir

análises e caminhos metodológicos que dêem conta da articulação entre essas demissões buscando

compreender os seus desdobramentos e manifestações.

Referências

ALVES, Giovanni. Trabalho e Subjetividade. O espírito do toyotismo na era do capitalismo

manipulatório. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011.

ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho. São Paulo: Boitempo, 1999.

ARAÚJO, Ângela Maria Carneiro; LOMBARDI, Maria Rosa. Trabalho informal: gênero e raça

no Brasil do início do século XXI. Cadernos de Pesquisa. 2013, vol.43, n.149, pp. 452-477.

Disponível em: < http://educa.fcc.org.br/pdf/cp/v43n149/v43n149a05.pdf>.

BRUSCHINI, M. C. Trabalho e gênero no Brasil nos últimos dez anos. Cad. Pesqui. São Paulo,

v. 37, n. 132, 2007 .

CASTRO. B. As armadilhas da flexibilidade: trabalho e gênero no setor de tecnologia da

informação. São Paulo: Annablume, 2016.

COLBARI, Antônia de Lourdes. A retórica do empreendedorismo e a formação para o trabalho

na sociedade brasileira. In: Sinais – Revista Eletrônica – Ciências Sociais, Vitória, v. 1, n. 01, p.

75-111, abril 2007.

______________. Do Autoemprego ao Microempreendedorismo Individual: Desafios

Conceituais e Empíricos. In: Revista Interdisciplinar de Gestão Social (RIGS), v.4 n.1 jan. / mar.

2015

DRUCK, Graça. Precarização e informalidade: algumas especificidades do caso brasileiro. In:

OLIVEIRA, Roberto Véras de; GOMES, Darcilene; TARGINO, Ivan. (Org). Marchas e

contramarchas da informalidade do trabalho: das origens às novas abordagens. João Pessoa: Editora

Universitária da UFPB, p. 65 -102, 2011.

GEM (Global Entrepreneurship Monitor). Empreendedorismo no Brasil: 2013. Relatório

Executivo. Curitiba: IBQP, 2013.

HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. 2ª edição. São Paulo: Edições Loyola, 1993.

HIRATA, H.; KERGOAT, D, LABORIE, Françoise, LE DOARÉ, Hélène, SENOTIER, Danièle

(org.). Dicionário Crítico do Feminismo. São Paulo: Editora UNESP, 2009.

HIRATA, Helena. Mudanças e permanências nas desigualdades de gênero: divisão sexual do

trabalho numa perspectiva comparativa. Fundação Friedrich-Esbert-Stiftung (FES), São Paulo,

Número 7, Outubro 2015.

12

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

IBGE, 2010. Disponível em:< http://www.ibge.gov.br/apps/snig/v1/?loc=0&cat=&tema=NaN>

Acesso em 07-07-2017.

KERGOAT, Danièle. Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo In: HIRATA, Helena,

LABORIE, Françoise, LE DOARÉ, Hélène, SENOTIER, Danièle (org.). Dicionário Crítico do

Feminismo. São Paulo: Editora UNESP, 2009, p. 67-75.

KREIN, J.D; CASTRO, BÁRBARA. As formas flexíveis de contratação e a divisão sexual do

trabalho. Fundação Friedrich-Esbert-Stiftung (FES), São Paulo, Número 6, Outubro, 2015.

LIMA, Jacob C. Participação, empreendedorismo e autogestão: uma nova cultura do trabalho?

Sociologias 12 (25): p.158-198, 2010.

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro Primeiro: o processo de produção do

capital. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984.

SOS CORPO. Desenvolvimento, trabalho e autonomia econômica na perspectiva das mulheres

brasileiras. Recife: SOS Corpo, 2015.

Sexual Division of Labor, Entrepreneurship and Autonomous Work

Abstract: This article seeks to debate the recent change in labor due to the flexibility process

articulated alongside the sexual division of labor. The text core consists of understanding in which

way the entrepreneurship rhetoric (the self-made) presents itself as a new work culture in the

capitalist developmental context under the “flexible accumulation” regime. In such way, the

entrepreneurship narrative represents an ideological matrix that enables the strengthening and

deepening of values based on merit and individual gain, distant from questionings about inequality

(conflicts) and hierarchy (power). Throughout the process, women are impacted in an unequal way,

considering their insertion in autonomous activities, characterized as more unreliable and unprotect,

and their situation precariousness in the labor world (work journey, unhealthy work environment,

work intensity).

Keywords: Flexibility, Sexual division of labor, entrepreneurship, work culture, autonomous work.