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Jussara Rodrigues Fernandino

MSICA E CENA:UMA PROPOSTA DE DELINEAMENTO DA MUSICALIDADE NO TEATRO

Dissertao apresentada ao Programa de PsGraduao em Artes da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, como exigncia parcial para obteno do ttulo de Mestre em Artes rea de concentrao: Arte e Tecnologia da Imagem Orientador: Prof. Dr. Ernani de Castro Maletta Universidade Federal de Minas Gerais

Belo Horizonte Escola de Belas Artes da UFMG 2008

AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Ernani Maletta, Tive o grande privilgio de ter, como orientador, o prprio autor da tese que norteou meu projeto de ingresso no Mestrado. Isso proporcionou a esta dissertao o alicerce e o direcionamento em suas questes fundamentais. Descobri que meu privilgio era ainda maior, quando percebi que a preciso e a expresso, aspectos que marcam a relao entre a Msica e o Teatro, tambm so caractersticas do meu orientador: o Ernani e o Professor Doutor, o artista e o matemtico, o-homem-do-cronograma e o-entusiasmo-em-pessoa, aquele que no perde uma vrgula e aquele que ouve ecos na escrita. Agradeo, ento, por esses dois anos de frtil convivncia, pelo zelo de sua orientao sempre presente, e por sua generosidade em ser, tambm, um grande incentivador. Muito obrigada.

Ao Programa de Ps-Graduao da Escola de Belas Artes, coordenado pela Profa. Dra. Maria do Carmo de Freitas Veneroso;

Zina Pawlowski de Souza, por toda sua ateno e gentileza;

Aos docentes do Curso de Mestrado em Artes, pelas disciplinas e discusses que tanto alimentaram o pensamento e abriram horizontes: Prof. Ernani Maletta, Prof. Fernando Mencarelli, Prof. Jalver Bethnico, Prof. Luiz Otvio Carvalho, Profa. Mabe Bethnico, Profa. Mariana Muniz, Prof. Maurlio Rocha;

Ceclia Frana, pela orientao ao projeto inicial e pela indicao da metodologia Anlise de Contedo;

s queridas sobrinhas, Carmen Fernandino Berg, pela traduo do resumo, e Mnica Fernandino, pela programao visual da grade de anlise;

Ao ator Luis Louis, pelas informaes sobre Decroux;

Aos colegas e amigos que participaram desta dissertao por meio do incentivo, das informaes, das sugestes ou pelo emprstimo de seus livros preciosos: Ceclia Nazar, Eduardo Campolina, Eugnio Tadeu, Fernando Linares, Fernando Mencarelli, Helena Mauro, Oilian Lanna, Rosngela de Tugny, Virgnia Bernardes, Walnia Silva;

Aos professores que participaram da banca de qualificao, cujo retorno dado ao trabalho foi de essencial valia: Profa. Ana Cludia de Assis, Prof. Ernani Maletta, Prof. Maurlio Rocha;

Aos colegas e amigos que responderam a questo O que a musicalidade do ator?, atividade proposta pelo Prof. Ernani Maletta no incio dos trabalhos: Amaury Viheira, Davi Dolpi, Dudude Herrmann, Luciano Oliveira, Marine Bueno, Pollyana Santos;

Ao Departamento de Teoria Geral da Msica, pelo apoio s disciplinas optativas por mim oferecidas, nas quais pude experimentar propostas voltadas para a Msica e a cena, bem como aos alunos da Escola de Msica da UFMG, que no s freqentaram, mas realmente acolheram essas propostas;

Aos grupos por meio dos quais tenho vivenciado a relao Msica-Teatro, em atuaes e trilhas sonoras: Cia. Burlantins, Cia. do Lugar, Cia. Pierrot Lunar, Grupo pera Vitrine e ZAP 18. E tambm aos projetos nos quais esta relao se deu no campo pedaggico: Centro de Musicalizao Infantil da UFMG e Projeto Carinas;

Aos compositores que me apresentaram a Msica-cnica: Eduardo lvares e Tim Rescala;

Aos encenadores, esses admirveis que construram o Teatro no sculo XX, minha mais profunda reverncia;

Luz Divina, pela presena e sustentao.

minha querida menina,

que, aproveitando que Clara, resolveu Ser-de-luz.

RESUMO

O presente trabalho tem como foco a musicalidade no contexto teatral e prope um delineamento de seus fundamentos. Parte do pressuposto que a linguagem musical adquire uma natureza prpria ao inserir-se no Teatro, o que se d em funo das necessidades requeridas pela cena, demandando o desenvolvimento de prticas especficas, bem como uma formao musical adequada para o ator. Evidencia-se, contudo, uma desconexo entre essa formao e as necessidades expressivas da linguagem teatral, originada, primeiramente, pelo pouco esclarecimento existente quanto relao entre a Msica e o Teatro. Nesse sentido, salienta-se a necessidade de construo de meios para melhor conhecer a identidade dessa relao sua realidade e suas possibilidades. Para tal fim, a pesquisa apia-se, como fonte de investigao, no estudo das estticas teatrais referenciais do sculo XX, buscando seus recursos e estratgias de atuao. A partir das informaes encontradas, desenvolve o delineamento proposto, por meio do seguinte percurso metodolgico: identificao dos elementos de musicalidade presentes nas estticas teatrais selecionadas pela pesquisa; anlise dos dados levantados; e estruturao dos dados em categorias e subcategorias de significao. Como resultado desse percurso, a dissertao apresenta o mapeamento das caractersticas principais, ou fundamentos, da interao Msica-Teatro.

Palavra-chave: interao Msica-Teatro

ABSTRACT

This work focuses on the musicality in a theatrical context and suggests a delineation of its fundaments. It considers that the musical language achieves its own nature by entering the Theater, as a consequence of the scene requests, demanding the development of specific procedures, as so as the adequate musical education of the actor. This work also points out a disparity between the education of the actor and the expressive requirements of the theatrical language, which comes as a result of the lack of knowledge about the relation between Music and Theater. Because of that, this work brings out the necessity of constructing means to know thoroughly the identity of this relation its reality and its possibilities. With this purpose, the research carries out a study of the main theatrical aesthetics of the 20th century, aiming its resources and acting strategies. From the obtained information, the previously suggested delineation is developed through the following methodological course: identification of the elements of musicality in the theatrical aesthetics selected by the research; analysis of the obtained data; and the organization of the data according to categories and subcategories of signification. As a result of this methodological course, the dissertation presents an overview of the main features or fundaments of the interaction MusicTheater.

Keyword: Music-Theater interaction.

SUMRIO

INTRODUO

11

CAP. 1: A Musicalidade nas Estticas Teatrais do Sculo XX 1.1. A Relao Msica-Teatro no incio do sculo XX 1.2. mile Jacques-Dalcroze 1.3. Constantin Stanislavski 1.4. Vsevolod Meyerhold 1.5. Antonin Artaud 1.6. Bertold Brecht 1.7. Etienne Decroux 1.8. Jerzy Grotowski 1.9. Peter Brook 1.10. Eugenio Barba 1.11. Robert Wilson 1.12. Sntese dos elementos de musicalidade das estticas teatrais do sculo XX

20 20 24 30 38 46 52 58 64 70 78 84 89

CAP. 2: Proposta de Delineamento da Musicalidade no Teatro 2.1. Plano Sonoro 2.1.1. Plano Sonoro/Ator 2.2.2. Plano Sonoro/Espetculo 2.2. Plano Rtmico 2.2.1. Plano Rtmico/Ator 2.2.2. Plano Rtmico/Espetculo 2.3. Escuta e Interao Cnica 2.4. Elementos de musicalidade no Teatro 2.4.1. Mapeamento da musicalidade no Teatro

96 98 99 102 107 110 113 120 129 134

CONSIDERAES FINAIS REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS GLOSSRIO

135 140 148

Tudo aquilo que no se v na msica, ns o visualizamos como se fosse matria, um organismo em movimento. Entramos no seu espao, a sacudimos, a atiramos, lutamos contra ela. Incorporamo-la para reconhec-la [...] Que o ator levante um brao e o pblico receba ento um ritmo, um som, uma luz, uma cor (Jacques Lecoq).

INTRODUO

A arte do ator no ocidente, segundo BURNIER (2001), composta de procedimentos provenientes de demais fontes (dana, mmica, lutas marciais, tcnicas circenses, canto) sem, no entanto, possuir tcnica prpria. Especificamente em nosso pas, Burnier ressalta a falta de tcnicas objetivas, estruturadas e codificadas, havendo a necessidade de delinear caminhos operativos visando a uma edificao tcnica para o ator (p. 13). Essas proposies encontram apoio em BARBA e SAVARESE (1995), como na seguinte afirmao:

Os atores ocidentais contemporneos no possuem um repertrio orgnico de conselhos para proporcionar apoio e orientao. Tm como ponto de partida geralmente um texto ou as indicaes de um diretor de teatro. Faltam-lhes regras de ao que, embora no limitando sua liberdade artstica, os auxiliem em suas diferentes tarefas (p. 8).

Na interao Msica-Teatro, tema do presente trabalho, a constatao acima bastante pertinente. Em minha experincia como musicista, atriz e docente da Escola de Msica da UFMG, tenho vivenciado a complementaridade existente entre essas reas sem, no entanto, ter presenciado um trabalho sistematizado nesse sentido. Mesmo em gneros onde a integrao dessas duas manifestaes artsticas possui maior evidncia, como no caso dos Musicais e da Msica cnica1, a atuao de msicos e atores sempre direcionada de maneira desconexa: preparao musical e preparao cnica. Na realidade, considerando o contexto brasileiro, a fragmentao da experincia ocorre desde a formao bsica, tanto do msico como do ator, pois, mesmo quando h um trabalho ou disciplinas especficas para tal fim, estas ficam distanciadas da prtica e das especificidades do campo artstico em questo. Como exemplo, podemos citar a disciplina Percepo Musical, ou outra similar, presente em alguns cursos de teatro. Em geral, o programa da disciplina cumprido apenas dentro das premissas da alfabetizao musical, como princpios de teoria, solfejo ou leitura rtmica, e contextualizado no idioma tonal2. Em outros casos, h iniciao instrumental ou tcnica vocal, no raro aplicada apenas para a voz cantada. Ou seja, os atores, em sua maioria, so formadosDe acordo com Larrondo, a Msica-cnica um gnero musical que se desenvolveu a partir da segunda metade do sculo XX com compositores como Karl Stockhausen, Mauricio Kagel, George Aperghis, Vinko Globokar e John Cage. Caracteriza-se pela integrao do msico e seu instrumento na cena, atravs de uma mescla entre msica, teatro, dana e efeitos visuais. Difere-se da pera, onde a encenao focada na figura do cantor e os instrumentistas permanecem fora do campo cnico (LARRONDO, 2006, p. s. n). 2 Sistema musical baseado na tonalidade; consiste em um princpio de estruturao musical que relaciona os signos musicais com um centro de convergncia denominado centro tonal ou tnica (KOELLREUTTER, 1990, p. 130). Outras informaes sobre este conceito sero tratadas no segundo captulo desta dissertao.1

com prticas destinadas, a princpio, aos msicos; prticas essas que no estabelecem conexes com as necessidades expressivas da manifestao teatral.

A fragmentao da experincia cnico-musical abordada por MALETTA (2005) quando pontua sobre o problema da formao incompleta do ator:

A grande maioria dos atores que se inscrevem e que passaram por algum curso de formao artstica, seja de nvel mdio ou superior, ainda apresentam inmeras dificuldades quanto ao desempenho das habilidades artsticas fundamentais, principalmente quando convidados a realizar vrias aes simultneas. Mesmo no caso da Msica ou das Artes Corporais, por mais que os currculos dos cursos de formao incluam disciplinas direcionadas a cada uma dessas habilidades como comprovam as grades curriculares, programas e ementas das disciplinas , h que se observar, tendo em vista as dificuldades que a maioria dos atores apresenta, que o aprendizado de tais disciplinas no tem sido suficiente para a real incorporao de seus fundamentos, muito menos para exercitar o dilogo entre elas. Ou seja, no estaria sendo realmente efetivada uma prtica inter/transdisciplinar que, ao que tudo indica, seria imprescindvel formao polifnica do ator (p.54).3

O autor, colocando o Teatro como a arte que engloba conceitos fundamentais das diversas linguagens artsticas em inter-relao, define a polifonia cnica como a simultaneidade de mltiplos discursos e pontos de vista que, muitas vezes, s se expressam implicitamente; sendo que, a corporeidade, a musicalidade e a plasticidade, por exemplo, podem estar invisveis, mas plenamente presentes na constituio do discurso do ator em cena (Ibidem, p.50).

A partir da conceituao acima, a pesquisa elegeu como objeto de estudo um dos discursos dentre os vrios que compem o fazer teatral: a musicalidade priorizando-se a relao dialgica entre a Msica e o Teatro e no o estudo das funes musicais de maneira isolada. O termo dialgico empregado na pesquisa conforme a concepo de Mikhail Bakhtin (18951975), terico da literatura, na qual o dialogismo princpio constitutivo da linguagem. Para Bakhtin, de acordo com BARROS (1999), as vrias vozes (enunciados) coexistentes em um discurso podem produzir efeitos de polifonia, quando essas vozes ou algumas delas deixamse escutar, ou de monofonia, quando o dilogo mascarado e uma voz, apenas, faz-se ouvir (p. 6). No tecido formado pelos vrios discursos cada voz traz em si a perspectiva de outra voz (p. 3), o que estabelece o conceito de espao de interao ou dialogismo interacional.

Maletta, em sua tese de doutorado (2005), investigou cursos de graduao em Artes Cnicas de dez Universidades Brasileiras.

3

Nesse sentido, TRAGTENBERG (1999) prope a necessidade de a linguagem musical encontrar meios adequados para sua real interao com o Teatro e encontra no conceito de incompletude, de Peter Brook, um meio passvel de promover essa ao interacional:

O encenador Peter Brook destaca a idia de incompletude como fator importante na constituio do elemento presente no jogo cnico. Ou seja, os elementos componentes da cena texto, cenografia, figurino, sons, gestos e imagens se completam em interaes momentneas e transitrias. Para a msica de cena a idia de incompletude tambm essencial [...]. Pois quando a motivao e o sentido de existncia da msica so as suas prprias relaes internas, ela isola o material sonoro em seu prprio universo, encerrando-o em sua lgica interna (p. 52).

A presena da Msica no contexto teatral expressa-se de duas maneiras. Uma mais evidente, em termos de material musical, como a sonoplastia e as eventuais manifestaes musicais do ator, como tocar, cantar e danar. E outra, implcita nos processos de atuao e encenao dinmica de cenas, construo de personagens, movimentao e deslocamento no espao, possibilidades gestuais, plsticas e sonoras (corporais, vocais, dos objetos, do ambiente) , processos esses que constantemente utilizam elementos musicais em sua constituio, como variaes rtmicas, andamentos, pausas, alturas, timbres, dentre outros. Nesse segundo tipo de manifestao, a Msica rompe sua lgica interna, reconfigurando seus materiais em funo das interaes com os demais discursos presentes no mbito cnico.

Como j mencionado anteriormente, a formao musical de um ator, de maneira geral, se aproxima ou contm parte do repertrio tradicional de escolas de msica, sendo a musicalidade do ator prevista de maneira semelhante de um instrumentista. importante ressaltar que, sem dvida, aprender um instrumento ou qualquer outra atividade de natureza meldica ou rtmica alimenta a musicalidade do ator. A questo verificar se essa formao capacita o ator a estabelecer conexes dialgicas entre os conceitos ou habilidades musicais adquiridos e a realidade do fazer teatral. O desenvolvimento dessa capacidade leva ao que MALETTA (2005) denomina atuao polifnica, na qual o ator,tendo incorporado os conceitos fundamentais das diversas linguagens artsticas (literatura, msica, artes corporais, artes plsticas, alm das teorias e gramticas da atuao), capaz de, conscientemente, se apropriar deles, construindo um discurso polifnico atravs do contraponto entre os mltiplos discursos provenientes dessas linguagens; ou seja, pode atuar polifonicamente apropriando-se das vrias vozes autoras desses discursos: os outros atores, o autor, os diversos diretores (cnico, musical, vocal, corporal), o cengrafo, o figurinista, o iluminador e os demais criadores do espetculo (p. 53).

Barba indica que a desconexo caracterstica do ator ocidental tem causas histricas e, nesse sentido, aponta algumas questes, dentre as quais se destacam as de cunho musical:

Por que ao contrrio do que sucede em outros lugares, nosso ator-cantante se especializou, separando-se do ator-bailarino, e por sua vez este ltimo do ator [...] Como cham-lo? Aquele que fala? Ator de prosa? Intrprete de textos? [...] Por que em outros pases quase todas as formas de teatro clssico aceitam aquilo que entre ns s admissvel na pera: a musicalizao das palavras cujo significado a maioria dos espectadores no pode decifrar? (BARBA apud BURNIER, 2001, p. 22)4.

interessante notar que, paradoxalmente, o Teatro apresenta, em sua trajetria histrica, vrias concepes em que a Msica ou determinados elementos musicais so fatores significativos. Cada uma dessas poticas teatrais requer o desenvolvimento de aspectos diferenciados de musicalidade e apesar desse termo constar vez por outra na literatura teatral ou na prtica e discurso dos artistas, no foi encontrada no mbito da pesquisa uma explicitao efetiva desse conceito.

Nessa conduo de pensamento, o presente trabalho levanta a hiptese de que a musicalidade no Teatro possui sua prpria especificidade e, para atender a seus propsitos, insuficiente a prtica de atividades musicais isoladas. Sendo assim, a pesquisa detecta a necessidade de responder seguinte questo, que se tornou central para seu desenvolvimento: em que consiste, afinal, a musicalidade no contexto teatral? Esta questo pode ser desdobrada, ainda, nos seguintes apontamentos:

-

Quais so os percursos, caractersticas e demandas da musicalidade no Teatro? Como as propostas estticas teatrais apresentam a inter-relao com a msica? Quais conceitos bsicos da Msica so fundamentais para uma atuao que integra os diversos discursos presentes na linguagem teatral?

-

De que maneira esses conceitos musicais dialogam com a linguagem mltipla do Teatro?

-

Qual a amplitude de atuao da Msica no fazer teatral? Como deveria ser a formao musical de um ator, apto a lidar com as possibilidades da msica e sua integrao com os demais discursos artsticos presentes na linguagem teatral?

4

BARBA, Eugenio. La canoa di carta: tratado de antropologia teatral. Bologna: Il Mulino, 1993. p. 70.

Visando responder a essas questes, no intuito de investigar a natureza dessa musicalidade e em busca de caminhos operativos que contribuam para a formao musical do ator, bem como para sua prtica, a presente dissertao prope o delineamento da musicalidade no contexto teatral. Cabe ressaltar que, por delineamento, considera-se o processo de rastreamento, identificao e mapeamento dos elementos de musicalidade e no o estabelecimento cabal desse conceito5. Para tal objetivo, adotou-se um percurso metodolgico constitudo dos seguintes instrumentos: pesquisa bibliogrfica, estudo da literatura teatral, anlise e estruturao de dados pela tcnica denominada Anlise de Contedo.

Pesquisa bibliogrfica

A primeira fonte de pesquisa bibliogrfica deu-se por meio de consultas nas produes acadmicas da rea de Artes Cnicas, por intermdio dos Anais dos Congressos e Reunies Cientficas promovidos pela ABRACE Associao Brasileira de Pesquisa e Ps-Graduao em Artes Cnicas. Objetivou-se, nessa consulta, a busca por pesquisadores e trabalhos com temas afins a essa pesquisa, ou seja, em torno da presena da Msica no Teatro ou da musicalizao do ator. Especificamente em relao a esses temas, foi encontrado apenas um trabalho, centrado no estudo do ritmo em uma esttica teatral do sculo XX6.

Com vistas a ampliar o espectro de busca, tambm foi realizado o acesso, via Internet, ao acervo de Teses e Dissertaes das bibliotecas das universidades brasileiras que oferecem curso de Artes Cnicas, alm dos demais sites de busca. Para tal, foram utilizadas as palavraschave msica, musicalidade, musicalizao, formao, preparao, treinamento, teatro, ator, cena e seus adjetivos derivados cnica/cnico, em diversas possibilidades de cruzamento. Com temas prximos ao da presente pesquisa foram encontrados treze trabalhos acadmicos, sendo duas teses de doutorado, dez dissertaes de mestrado e um trabalho de iniciao

DELINEAR: 1. Fazer os traos gerais de; traar, esboar. 2.Traar as linhas gerais, projetar 3. Descrever de modo sucinto; expor em linhas gerais 4. Demarcar, delimitar. In: FERREIRA, Aurlio B.H. Novo Dicionrio da Lngua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 1986. 1838 p. 6 Trata-se da seguinte dissertao: DIAS, Ana C. M. A musicalidade do ator em ao: a experincia do temporitmo. 2000. Dissertao de Mestrado. Universidade do Rio de Janeiro.

5

cientfica7. Os trabalhos encontrados apresentam aspectos musicais, relacionados ao Teatro, a saber: - Sete trabalhos voltados para a voz do ator, com relao a aspectos fonoaudiolgicos ou expresso vocal8; - Quatro trabalhos relacionados questo rtmica: um deles dedicado ao Tempo-ritmo, de Stanislavski (o mesmo encontrado nos Anais da ABRACE), outro que estuda o ritmo na ao do ator, a partir da obra de Jacques-Dalcroze e outros dois, propondo a utilizao dos ritmos da capoeira como treinamento corporal9; - Um trabalho voltado para a educao musical do ator, tendo como referncia a montagem da pea Macbeth, de Shakespeare10; - Um trabalho que estuda a aplicao de exerccios de musicalizao ao trabalho do ator11.

Verificou-se, em primeiro lugar, que a produo acadmica relativa s contribuies musicais no Teatro ainda incipiente. Observou-se, ainda, que a maioria dos trabalhos encontrados se detm em um tema de carter musical especfico e, confirmando uma constatao anterior, concentram-se em questes rtmicas e vocais. Apesar da inegvel contribuio desses trabalhos para o meio teatral e da afinidade com o campo de investigao da presente pesquisa, corroborou-se a necessidade de um estudo da musicalidade no Teatro de carter panormico, que no se detenha em um foco determinado, mas que possibilite uma viso geral da realidade e das possibilidades dessa relao.

Dados referentes ao perodo da consulta, realizada no ms de setembro de 2006. CAMPBELL, P. A Voz Integrada: Uma anlise das proposies de Grotowski, Barba e Staniewski para o treinamento vocal e sua aplicao na preparao do ator. 2005. Mestrado. UFBA; GUBERFAIN, J. C. A expresso vocal na paixo da dor em Media de Eurpedes. 2003. Mestrado. UNI-RIO; MARTINS, J. T. A Ressonncia Vocal: Jogos Vocais de Preparao e Criao do Ator. (Em andamento). Doutorado. UFBA; MARTINS, J. T. A integrao corpo-voz na arte do ator - a funo da voz na cena, a preparao vocal orgnica, o ato criativo vocal. 2004. Mestrado. UDESC; MASOERO; P. C. Voz Ativa. 2005. Mestrado. ECAUSP; OLIVEIRA, D. F. A exploso da voz no teatro contemporneo: uma anlise espectrogrfica computadorizada da voz de grande intensidade no espao cnico. 1997. Mestrado. UNI-RIO; RIBEIRO, A. C. Modelagem e tessitura da voz para o ator: memria da experincia de a voz em off e sua aplicao na interpretao de texto. 2006. Mestrado. UFBA. 9 ANDRADE, M. L. O ritmo na ao do ator: um fenmemo no espao. 2005. Mestrado ECA-USP; BREDA, M.A.D. Elementos de capoeira na preparao do ator. 1999. Mestrado. UNI-RIO; DIAS, A. C. M. A musicalidade do ator em ao: a experincia do tempo-ritmo. 2000. Mestrado. UNI-RIO; LIMA, E. T. Capoeira angola como treinamento do ator. 2002. Mestrado. UFBA. 10 CINTRA, Fbio C. M. A musicalidade como arcabouo da cena: caminhos para uma educao musical no teatro. 2006. Tese de Doutorado. ECA-USP. 11 FERREIRA, Ivini Vaneska R. Ferraz. Musicalizao de atores. (Em andamento). Graduao: Iniciao Cientfica. ECA-USP.8

7

Estudo da literatura teatral

Como uma segunda fonte de pesquisa bibliogrfica, foi realizado um estudo da literatura teatral referente ao tema do trabalho, com nfase nos encenadores do sculo XX. O objetivo do estudo foi detectar recursos e estratgias consolidadas historicamente, passveis de oferecer indicaes quanto relao dialgica Msica-Teatro. Esse estudo consistiu na principal fonte de informaes para a investigao desenvolvida, cujo levantamento dos dados resultou no primeiro captulo da presente dissertao. A pesquisa tambm contemplou a literatura referente s questes da estruturao da linguagem musical, tendo em vista, alm da fundamentao terica, o cruzamento de informaes, voltado interpretao dos dados coletados.

Anlise de Contedo

A Anlise de Contedo constituiu o instrumento metodolgico empregado no levantamento, organizao e estruturao dos dados coletados nesta pesquisa. Essa metodologia, utilizada no campo das Cincias Humanas, consiste em uma tcnica empregada em fenmenos de natureza varivel. Segundo LAVILLE e DIONNE (1999),

a anlise de contedo pode se aplicar a uma grande diversidade de materiais, como permite abordar uma grande diversidade de objetos de investigao: atitudes, valores, representaes, mentalidades, ideologias, etc. Pode-se assim us-la no estudo de embates polticos, de estratgias ou, ainda, para esclarecer fenmenos sociais particulares (p. 214).

A tcnica permite uma abordagem sistemtica sobre materiais refratrios a instrumentos de quantificao. Segundo os autores, visa proporcionar meios para uma organizao sistemtica dos dados, evitando tolher a interpretao, sem que se perca, todavia, o controle sobre a objetividade. Seu princpio consiste em decompor a estrutura ou o contedo investigado, esclarecer as caractersticas de seus elementos e extrair sua significao. A tcnica desenvolve-se por meio das seguintes etapas:

1. Primeira organizao do material, orientada pela hiptese do projeto;

2. Percepo do fenmeno investigado, pelo levantamento de suas caractersticas e especificidades;

3. Decomposio desse material, por meio de recortes dos contedos que definem as categorias analticas: agrupamentos, categorias, subcategorias e unidades de anlise ou unidades de registro;

4. Composio da grade de anlise a partir do material alcanado.

Sendo assim, esta dissertao est organizada, alm da presente Introduo, em dois captulos, apresentados da seguinte forma:

No captulo 1, sero apresentadas as estticas teatrais elencadas pela pesquisa, ressaltando sua relao com a Msica. Os critrios de seleo utilizados na escolha das estticas passaram pelas seguintes questes: o grau de referncia para o pensamento artstico atual, a representatividade facultada por suas diferentes contribuies ao Teatro e a sua localizao cronolgica no decorrer do sculo XX, proporcionado uma viso desse decurso. Sendo assim, sero apresentadas propostas que representam o pensamento esttico-teatral por todo o sculo XX, a saber: a pedagogia de mile Jacques-Dalcroze e as estticas teatrais dos encenadores Constantin Stanislavski, Vsevolod Meyerhold, Antonin Artaud, Etienne Decroux, Bertold Brecht, Jerzy Grotowski, Peter Brook, Eugenio Barba e Robert Wilson. Durante o desenvolvimento do captulo, sero apresentadas as caractersticas das propostas dos encenadores citados, em seus aspectos histricos e estticos, e ao final da explanao, ser apresentada uma sntese dos aspectos de musicalidade identificados, bem como sua funo nas estticas teatrais s quais pertencem.

No Captulo 2, ser descrito o processo de delineamento da musicalidade no Teatro, realizado por meio da tcnica de Anlise de Contedo, e que consistiu nos seguintes procedimentos: partindo-se de uma viso geral das estticas teatrais (primeiro item da metodologia)12, foram levantadas, primeiramente, as caractersticas da musicalidade em cada uma delas (segundo item da metodologia). Em seguida, foi realizado um processo de filtragem dos contedos e sua sistematizao por recortes de categorias, subcategorias e unidades de anlise (terceiro

12

Conforme descrio da Anlise de Contedo na pgina anterior desta dissertao.

item da metodologia). Finalmente, foi elaborado e apresentado o mapeamento dos dados identificados e analisados (quarto item da metodologia).

Consta, ainda, desta dissertao, a exposio das consideraes finais relativas pesquisa que incluem a reflexo sobre a possibilidade de futuros desdobramentos , e um glossrio com a definio de termos da linguagem musical. Esses termos apresentam-se destacados em negrito no texto do trabalho. Uma vez apresentados esses aspectos introdutrios, ser realizada, a seguir, a explanao do primeiro captulo desta dissertao.

CAP. 1: A MUSICALIDADE NAS ESTTICAS TEATRAIS DO SCULO XX

Os princpios do universo musical sempre estiveram presentes no Teatro desde os primrdios rituais da Pr-Histria, passando pelo coro grego, os atores-msicos da Idade Mdia e demais manifestaes sculos afora. Dada a impossibilidade de abranger o Teatro em toda a sua extenso histrica, tendo em vista os limites deste trabalho, foi dado um enfoque nas estticas do sculo XX que caracterizaram momentos-chave da histria do Teatro ocidental e que ainda constituem referncias para a atualidade. Tambm foram includas na pesquisa algumas propostas que se encontram, hoje, em plena atuao.

O presente estudo teve como objetivo identificar os elementos de musicalidade presentes em cada concepo teatral e a sua funo nesse contexto, por meio do levantamento das estratgias e recursos musicais utilizados pelos seus respectivos encenadores. Sendo assim, neste captulo sero apresentados esses aspectos, ressaltando-se que a explanao no pretende esgotar o assunto, abordando as poticas teatrais em seu pensamento essencial.

1.1 A relao Msica-Teatro no incio do Sculo XX

O sculo XX traz uma srie de transformaes no mundo ocidental, mudanas essas que, no dizer de TEIXEIRA (2007), repercutiram em todos os mbitos da sociedade, modificando o ser humano e suas relaes com o mundo (p. 66). Caracterizando uma fase de transio, as duas primeiras dcadas do sculo apresentam uma grande efervescncia, em funo do convvio e embate de foras tecnolgicas, ideolgicas e econmicas13. Valores romnticos, remanescentes do sculo XIX, superpem-se ao culto velocidade e mquina, pregados pelo Futurismo, e demais apelos da chegada do novo sculo. Em contrapartida, o Expressionismo, em torno do indivduo macerado pelo mundo moderno, e o Surrealismo, voltam-se para os mistrios do mundo interior (CARLSON, 1997, p. 336). Inclui-se, nesse13

De acordo com Hauser, o sculo XX, propriamente dito, tem seu incio aps a Primeira Guerra Mundial, sendo que, as orientaes artsticas do novo sculo, ainda com vnculos no sculo XIX, encontram seu desenvolvimento a partir de certa estabilidade na histria social e econmica (HAUSER, 1972, p. 1115).

quadro, o desenvolvimento da Psicologia e da Psicanlise, que vieram a constituir mais uma contribuio nas mudanas de concepo e de viso do mundo.

Para TEIXEIRA (2007), em meio a esse ambiente, as artes lanaram mo de novas possibilidades tcnicas e expressivas e, em busca de redefinio e renovao, influenciaramse mutuamente, interpenetraram-se, ao mesmo tempo em que afirmavam sua autonomia (p. 66). Assim ocorre com a Msica e o Teatro, que encontram, nesse perodo, princpios orientadores dos fundamentos de uma relao que ir percorrer todo o sculo XX. Como representantes desses princpios, destaca-se o Sistme, de Franois Delsarte, em relao ao Teatro, e a pera wagneriana, em relao Msica, cujos elementos alimentam a transitoriedade entre os sculos XIX e XX.

Franois Delsarte (1811-1871), pesquisador e professor de Esttica Aplicada, a partir de seu trabalho Cincia da Expresso Humana, elaborou um sistema terico-prtico no qual relacionou diversas possibilidades expressivas do ser humano e codificou inmeras variaes de movimento, gestos e voz. Seu trabalho, como pontua ASLAN (2003), valoriza os processos expressivos interiores e os relaciona com a expresso das dimenses fsicas:

Para Delsarte, o gesto representa mais que a palavra. Exprime mais, e vem do corao. Est ligado respirao, desenvolve-se graas aos msculos, mas s pode existir sustentado por um sentimento ou uma idia. Os gestos so emanados de nove regies diferentes, divididas em trs focos (abdominal, epigstrico e torcico). Todas as suas observaes levam ao nmero trs ou a mltiplos de trs, de onde deduz a Lei da Trindade (p. 38)14.

BONFITTO (2002, p. XVIII) afirma que a contribuio de Delsarte para o Teatro do sculo XX consiste na substituio conceitual do plo da representao para o plo da expresso, construindo a conexo interno-externo, numa poca em que o Teatro caracterizava-se pela cristalizao de gestos e poses. Conforme ASLAN (2003), uma das causas dessa cristalizao foi o crescente interesse pelo virtuosismo, fato este percebido tambm na Dana e na Msica, representada por seu gnero que faz uso da cena: a pera. Ainda segunda a autora, a relao entre a expresso interna e externa, proposta por Delsarte, constituiu ponto de partida para a investigao nessas reas, a saber:

14

No princpio filosfico da Lei da Trindade, a Trplice Natureza Divina apresenta Trs Componentes Constitutivos: Vida (Estado Sensvel-sensaes), Alma (Estado Moral- sentimentos) e Esprito (Estado Intelectual- pensamento). Sensaes, Sentimentos e Pensamento constituem os Estados Interiores que em sua Modalidade Expressiva Exterior correspondem Voz, Gesto e Palavra (BONFITTO, 2003, p. 3).

O cantor e o bailarino se depararam com problemas anlogos aos do ator. Aps a codificao estabelecida por Noverre, no sculo XVIII, o bailarino acabou conquistando extremo virtuosismo, de que abusou. Havia perdido o elo necessrio entre a motivao interior e a linguagem do corpo. O cantor cultivava a voz e considerava o corpo apenas como uma caixa de ressonncia. Gluck, que colaborava com Noverre, condenava a falta de emoo interior dos cantores15. Por fim veio Delsarte e, depois dele, Jacques-Dalcroze. Foi interessando-se pelas experimentaes de ambos que Copeau e Dullin, em sua poca, e Grotowski, em nossos dias16, puderam imprimir progresso tcnica corporal do ator (ASLAN, 2003, p. 37).

Quanto Msica, nesse perodo, dentre os fundamentos que constituem sua relao com o Teatro, ressalta-se a pera wagneriana. Com seu conceito de Gesamtkunswerk17, traz para o teatro o pensamento de construo da encenao e a presena do rgisseur, que vislumbra o fortalecimento do papel do encenador18. PICON-VALLIN (2006) comenta a importncia do momento em questo para a consolidao da inter-relao Msica-Teatro no decorrer do sculo XX:

As interaes da linguagem dramtica com a linguagem musical no sculo XX merecem ser consideradas mais detidamente. As revolues cnicas do incio do sculo no esto ligadas somente s revolues cenogrficas, elas esto em relao direta com uma reflexo sobre a msica no teatro. As propostas de Gesamtkunswerk (obra de arte comum, geralmente traduzida como obra de arte total) realizadas por Richard Wagner tiveram uma influncia essencial nos destinos do teatro europeu [...] A reflexo sobre a pera e a reforma de sua encenao alimenta paralelamente o pensamento sobre a utilizao e o lugar da msica no teatro (PICON-VALLIN, 2006, p. 7-8).

Vrios nomes como Adolphe Appia, Gordon Craig, Constantin Stanislavski e Vsevolod Meyerhold trabalharam na montagem de peras, trazendo princpios desse gnero musical15

Jean-Georges Noverre (1727-1810): bailarino, coregrafo e terico da Dana. Cabe notar que o excessivo virtuosismo tcnico da dana clssica no se deve especificamente codificao de Noverre. AZEVEDO (2002, p. 51-57), afirma que o coregrafo j questionava o bal de sua poca, propondo a incluso de idias dramticas e expressivas na coreografia. A autora aponta o trabalho de Noverre como anlogo aos de Delsarte e Dalcroze, pedagogo suo cuja proposta trouxe renovao pedaggica para a Msica. (O trabalho de Dalcroze ser explanado no prximo item deste captulo). De acordo com MAGNANI (1996), Christoph Willibald Gluck (1714-1787), msico e compositor alemo, props uma reforma da pera que consistia nos seguintes pontos: retorno unidade poesia-msica-gesto de Monteverdi (1567-1643); valorizao dos recitativos, nos quais condensava o sentimento dramtico; eliminao da exibio virtuosstica das rias; exigncia de atores com verdade dramtica e seriedade musical (p. 180). A reforma de Gluck no prosperou, devido aos partidrios da pera vigente, entretanto, foi referncia para a posterior reforma wagneriana. 16 A primeira edio do livro de Odette Aslan, O Ator no Sculo XX, data de 1974, portanto, anterior morte de Grotowski. 17 Richard Wagner (1813-1883), compositor alemo, considerado um dos expoentes do Romantismo na Msica, escreveu um tratado sobre o teatro musical intitulado Wort, Ton und Drama (palavra, msica e ao), onde propunha a integrao, baseada na Grcia antiga, de poesia, msica e teatro. O termo Gesamtkunswerk, atribudo a Wagner e consiste na conjugao operstica de msica, teatro, canto, dana e artes plsticas. 18 Rgisseur: regente ou diretor de cena de uma pera. In: DOURADO, Henrique A. Dicionrio de Termos e Expresses da Msica. 1. ed. So Paulo: Editora 34, 2000. 384 p.

para o mbito do teatro. Conforme CARLSON (1997), a proposta wagneriana prope uma nova abordagem cnica diferente tanto da pera convencional, quanto do teatro falado. Apesar de Gesamtkunswerk propor a integrao das artes, h uma inequvoca supremacia da Msica, que se torna, dessa forma, a referncia principal para a estruturao do espetculo. Stanislavski, por exemplo, ao apresentar suas propostas sobre o Tempo-ritmo19, manifesta-se quanto falta de um mecanismo de regulao rtmica para os atores, afirmando:Felizes os msicos, os cantores e bailarinos! Contam com metrnomos20, diretores, chefes de coro, regentes! Tm resolvida a questo do tempo-ritmo e tm conscincia de sua excepcional importncia para o trabalho criativo (STANISLAVSKI, 1997, p. 158. Traduo minha).

Adolphe Appia (1862-1928), arquiteto e encenador suo, ressalta a Msica como uma arte de preciso e o texto musical como o nico disponvel na organizao do tempo cnico. Segundo CARLSON (1997, p. 286), Appia trouxe inovaes para a arte teatral ao propor o espao cnico neutro requerido pelos movimentos da msica. Cada espetculo deveria ter seu prprio espao, inspirado em sua obra de origem e no pr-determinado segundo as convenes da poca21. Para tal, eliminou a pintura dos cenrios, substituindo-a pela iluminao, e introduziu a flexibilidade de pisos, teto e paredes atrs do proscnio. Em sua proposta, a iluminao tem uma funo mediadora entre ator vivo e cenrio inanimado e o movimento, cuja essncia o ritmo, atua como mediador entre o texto e o ator (Idem). Sendo assim, ritmo e iluminao so mecanismos de interao e de controle ao mesmo tempo, uma vez que garantem o condicionamento do espetculo Msica, como explicita CARLSON (1997), a seguir:

Ator e cenrio no devem acrescentar informao, mas simplesmente expressar a vida que j existe na obra. O ator, aliviado da tarefa de completar o papel com sua prpria experincia, torna-se outro intermedirio (embora o mais importante) para a expresso do dramaturgo. Evidentemente, o ator como artista original

19 20

Este conceito ser abordado adiante, na explanao sobre o encenador Constantin Stanislavski. O metrnomo, aparelho que determina o andamento musical, surgiu no incio do sculo XIX visando proporcionar medidas precisas na indicao das diversas velocidades empregadas na Msica. (SADIE, 1994). Antes de sua existncia, o controle do tempo relacionava-se a padres fisiolgicos, da termos como andamento e pulsao. Conforme MAGNANI (1996), compositores como Bach (1685-1750) indicavam o andamento por meio das expresses mais rpido ou menos rpido que o corao (p. 98).

Jacques Copeau (1879-1949) tambm manifestou a necessidade do palco nu, uma vez que o Teatro da poca apresentava-se poludo de sensacionalismo e exibicionismo barato, por cenrios extravagantes, objetos cnicos requintados e parafernlias de todos os tipos. (LOUIS, L. O Corpo Pensante na Mmica e no Teatro Fsico. http://cialuislouis.com.br. Acesso em: 28/10/07).

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rebaixado nesse sistema, ficando subordinado ao conjunto expresso na partitura (a partitur) e controlado pela msica (p. 287) 22.

Ainda segundo esse autor, Appia relaciona elementos de pura expresso a elementos de significao racional. Ou seja, a luz e a msica (elementos expressivos) correspondem, respectivamente, apresentao e partitur (elementos racionais) (Ibidem, p. 286).

Sendo assim, sem a inteno de reduzir os fenmenos, mas procurando at-los aos limites desta pesquisa, possvel constatar que a expressividade e a preciso so demandas do Teatro no incio do sculo XX. A integrao desses princpios encontrada nas propostas de Jacques-Dalcroze, pedagogo suo que aliou prticas corporais ao ensino da Msica. Apesar de ser um representante da rea musical, Jacques-Dalcroze um nome significativo para o Teatro, uma vez que sua tcnica envolve as duas matrizes acima citadas: advm do Sistema de Delsarte e foi utilizada por vrios encenadores (Appia, Copeau, Dullin, Craig, Stanislavski, Meyerhold, Grotowski), em peras e em peas teatrais, como princpio de organizao cnica ou na preparao do ator, sendo, portanto, uma referncia importante para o estudo da relao entre o Teatro e a Msica. Em funo disso, Dalcroze abre, a seguir, a principal discusso deste captulo, por meio da qual sero levantados os aspectos de musicalidade presentes na concepo esttica de alguns encenadores do sculo XX.

1.2.mile Jacques-Dalcroze (1865-1950)

mile Jacques-Dalcroze foi compositor, regente, ator e cantor. Porm, como pedagogo que seu nome se destacou no campo da Msica e, posteriormente, no Teatro e na Dana. Exercendo a atividade de professor de Harmonia e Solfejo no Conservatrio de Genebra, percebeu uma srie de dificuldades enfrentadas pelos alunos, as quais relacionou a um ensinoCARLSON (1997) aponta para o conceito de ator ideal, de cunho simbolista, defendido por Appia: o corpo humano vivo se desfaz do acidente da personalidade e torna-se puramente um instrumento para a expresso (p.287). Esse princpio tambm compartilhado por Maurice Maeterlinck (1862-1949) e Gordon Craig (18721931) na idia de Supermarionete (ber-marionette): a marionete, ao inverso do ator que interfere na cena com seu capricho pessoal, retrata um pensamento mais emocional e potico, portanto, universal. interessante notar a proximidade desses princpios com o bermensch ou homos superior de Friedrich Nietzsche (18441900): o super-homem nietzschiano no um ser cuja vontade deseje dominar. Sua vontade de potncia significa a fora criadora de novos valores criar, dar, avaliar (Disponvel em: http//: www.mundodosfilsofos.com.br. Acesso em: 23/04/08). MAGNANI (1996, p. 373) afirma que alguns poetas simbolistas receberam influncias do pensamento de Nietzsche.22

musical equivocado. Identificou que a distoro do processo ensino-aprendizagem encontrava-se na imposio de procedimentos de leitura e de escrita, por meio de raciocnios inteis, numa fase do desenvolvimento humano em que corpos e crebros desenvolvem-se paralelamente, comunicando incessantemente impresses e sensaes (JACQUESDALCROZE, 1980, p. vii). A partir de ento, empreendeu uma pesquisa que, em busca de melhorias para a percepo auditiva musical, chegou ao conceito de audio interior, que se efetiva por meio de dois princpios fundamentais: a conscincia do som e a conscincia do ritmo corporal.

Dalcroze observou que os alunos utilizavam batimentos ou movimentos com as mos, como apoio para a execuo dos exerccios tericos. Em funo disso, sups, num primeiro momento, que a conexo que buscava fosse apenas de natureza ttil. Posteriormente, verificou que demais partes do corpo tambm so acionadas. Cita, como exemplo, o professor de piano que, para sanar o problema de ritmo de um aluno, bate o compasso para demonstrar o devido lugar dos acentos. Juntamente com o gesto de marcar o compasso todo o seu corpo reage, em sinergia ao movimento executado. Para Dalcroze, os gestos do professor e a energia de seus movimentos criam, para o aluno, uma imagem musical que este deveria sentir e executar. A partir de ento, afirma:

Passei a considerar a musicalidade unicamente auditiva como uma musicalidade incompleta e passei a procurar as relaes entre a mobilidade e as alturas auditivas, entre a harmonia dos sons e a durao dos mesmos, entre o tempo e a energia, entre a msica e o temperamento, entre a arte musical e a arte da dana (DALCROZE, 1980, p. viii)23.

Ao substituir um aprendizado mecnico e terico pela experimentao sensorial dos fenmenos sonoros, a proposta de Dalcroze representou uma transformao no pensamento do ensino musical, que pode ser sintetizada pela seguinte afirmao: o eu sinto substitui o eu sei (DALCROZE apud COMPAGNON e THOMET, 1966). Seus trabalhos culminaram no que hoje denominada a Pedagogia Dalcroze 24 25.

23 24

Altura e Durao: ver glossrio. Seu trabalho tambm citado como Mtodo Dalcroze, Rtmica ou Euritmia. 25 Jacques-Dalcroze recebeu orientao de douard Claparde (1873-1940), mdico e psiclogo suo considerado um dos expoentes europeus da psicologia funcionalista. Claparde constituiu as bases de um pensamento sobre a educao, que se assenta na aplicao prtica de uma antropologia biologista: o humano uma realidade que funciona, uma realidade viva. Esse pensamento exerceu influncia no desenvolvimento da pedagogia, uma vez que incentiva a atitude participante do educando (disponvel em: http://www.centrorefeducacional.com.br. Acesso em: 06/06/08).

Segundo BONFITTO (2002, p.11), a proposta de Dalcroze parte da descoberta do corpo como instrumento de conexo entre o som e a mente e instaura, mais tarde, o ritmo como eixo de sua metodologia. A relao entre ritmo e a vitalidade fsica assim descrita por LLONGUERAS (1942), educador e estudioso do trabalho de Dalcroze:

O ritmo um princpio vital e movimento. Est presente nos fenmenos naturais e no ser humano, em seus batimentos cardacos, inspirao e respirao, estados de calma e agitao, trabalho e repouso. Tambm na msica um elemento fisiolgico e fundamental (LLONGUERAS, 1942, p.13).

De acordo com esse autor, o trabalho de Dalcroze, ao proporcionar o estudo em conjunto dos ritmos naturais do corpo e dos ritmos artsticos da msica, procura desenvolver a espontaneidade dos movimentos por meio da supresso das resistncias de ordem intelectual ou fsica, otimizando os meios da realizao expressiva26. Nesse sentido, fundamental, no trabalho de Dalcroze, que se estabelea uma fluncia entre mente, sentimento e corpo, como aponta GURIOS (1958)27:

Todas as graduaes de tempo (allegro, andante, accelerando, ritenuto), todas as graduaes da energia (forte, piano, crescendo, diminuendo), podem ser realizadas com o nosso corpo, e a sensibilidade de nosso sentimento musical depende da sensibilidade de nossas sensaes corporais. E, para se executar um ritmo com preciso corporal, no suficiente ter compreendido intelectualmente este ritmo e de possuir um aparelho muscular capaz de assegurar a boa interpretao. preciso ainda estabelecer as comunicaes rpidas entre o crebro que percebe e analisa e o corpo que executa (p. 4).

ASLAN (2003), aponta que os exerccios dalcrozianos despertam o sentido muscular, rtmico e auditivo, ao mesmo tempo em que proporcionam o senso de ordem e de equilbrio (p. 41). A consolidao da conscincia rtmica, para Dalcroze, efetiva-se por meio do seguinte processo: o sentido rtmico deve ser adquirido, primeiramente, via sentido muscular, que desenvolvido por meio da execuo de dinmicas de movimento, realizadas no tempo e no espao, a partir de estmulos sonoros especficos. Com a prtica constante dos exerccios, o corpo desenvolve uma memria muscular, da mesma forma que o ouvido desenvolve uma memria do som, sendo criada, mentalmente, uma imagem e conseqentemente, uma

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A espontaneidade, nesse caso, est relacionada quebra de resistncias mentais e fsicas e conseqente fluncia de reaes e proposies fsico-musicais. Portanto, vincula-se mais a uma disponibilidade e vitalidade corporal, que a uma liberdade criativa propriamente dita, uma vez que os exerccios so codificados e previamente direcionados. 27 Apesar de representarem uma referncia bibliogrfica de meados do sculo XX, tanto Llongueras quanto Gurios trazem informaes mais prximas poca em que vigorou a metodologia Dalcroze, ainda sem adaptaes para a atualidade.

representao rtmica. Uma vez desenvolvidos o sentido rtmico e a sua representao fsica e mental, instaura-se, finalmente, a conscincia rtmica, que permite ao ouvido perceber o ritmo sem o socorro dos olhos, e uma vez estabelecida esta audio interior alcana-se ouvir o som sem o recurso do ouvido (JACQUES-DALCROZE, op.cit., p. 44). Dalcroze ressalta que, em todo o processo, intelecto e sentidos devem estar presentes, envolvendo impulsos da emoo e do pensamento (BONFITTO, 2002, p.12-13).

Visando o alcance de seus objetivos, Dalcroze, ao longo de suas pesquisas, estruturou sua pedagogia, dividindo-a nas seguintes modalidades:

- Rtmica: desenvolvimento do sentido mtrico e rtmico; - Solfejo: desenvolvimento das faculdades auditivas e do senso tonal; - Improvisao ao piano: combinao das noes adquiridas na Rtmica e no Solfejo e sua exteriorizao musical por meio do sentido ttil-motor; - Plstica Animada: estudo detalhado dos matizes do movimento corporal em relao aos movimentos sonoros.

A Rtmica tem como exerccio bsico a marcha, por meio da qual so trabalhadas as leis fundamentais do ritmo musical, a coordenao motora e o equilbrio corporal. Alm das marchas, outros exerccios so propostos visando os seguintes aspectos: contrao e descontrao muscular; respirao; diviso e memorizao mtrica; concepo rtmica pelos sentidos da viso, audio e sentido muscular; exerccios de concentrao; exerccios relacionados volio espontnea, automatismos e inibio; contraponto de movimentos; improvisao; dentre outros. Na Plstica Animada ocorre a representao corporal dos fenmenos sonoros. O corpo constitui o intrprete imediato e completo da msica, ao estabelecer relaes entre os elementos musicais (dinmica, aggica, matizes de fora e velocidade) e a dinmica corporal (GURIOS, 1958, p. 10).

O desenvolvimento rtmico realizado nos processos de coordenao, preciso e flexibilidade do gesto. O encadeamento dos gestos ou a passagem de uma atitude a outra constri a frase corporal ou plstica, elaborando-se sua correspondncia com a frase musical (Ibidem, p. 26). As frases plsticas so separadas umas das outras por paradas ou intervalos de durao entre os movimentos a ritmar ou a medir (JACQUES-DALCROZE, 1980, p.44). Esses intervalos, no entanto, no significam a finalizao definitiva da frase, uma vez que o corpo permanece

em estado de ateno ativa, visando o discernimento das faculdades de representao que sero acionadas pelo executante no retorno ao movimento. Nesse sentido, os movimentos so elaborados em uma seqncia especfica onde necessrio preparar, atacar, prolongar e retornar preparao do movimento. A transferncia de peso que ocorre, por exemplo, entre a movimentao dos ps no caminhar, deve ser utilizada conscientemente como preparao, ataque e prolongamento de um passo a outro. Todo o trabalho integrado respirao e peas musicais executadas ao piano acompanham as atividades, de acordo com o objetivo didtico a ser trabalhado.

Os exerccios compem sries organizadas por dificuldades gradativas, que partem da simples reao corporal a um estmulo sonoro e culminam em uma tcnica complexa e altamente codificada. So trabalhados matizes de durao e de energia em todas as dimenses do espao (polimobilidade), chegando ao alcance da polidinmica (execuo simultnea de movimentos com diferentes gradaes de tenso) e da polirritmia (execuo simultnea de diferentes ritmos em diferentes partes do corpo). Para a execuo dessa gama de movimentos e todas as suas variantes, o corpo parte de uma posio de repouso (em p), considerada o eixo de uma esfera imaginria. Essa esfera possui trs pontos de partida para os movimentos, sendo que cada um deles se divide em nove graus de orientao no espao: um grau inicial, trs graus intermedirios, um grau horizontal, trs graus intermedirios e um grau vertical28. Essa preciso avaliada por Dalcroze da seguinte maneira:

Ns exigimos de nossos alunos a virtuosidade corporal. E esta consistir na especializao dos meios fsicos que ir ao encontro de nossas idias. Ns pedimos aos alunos que se conheam e nosso Mtodo os ajudar a se descobrirem (JACQUES-DALCROZE, 1916, p. 5).

O pedagogo ainda afirma: precisamente o conhecimento aprofundado de nossas sinergias e antagonismos corporais que nos daro a frmula da arte futura (JACQUES-DALCROZE, 1980, p. xi). Tambm AZEVEDO (2002), descrevendo os procedimentos da pedagogia dalcroziana, comenta sobre a relao entre as habilidades corporais e o auto conhecimento:

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Verifica-se, por meio dessa diviso corporal, uma semelhana com a Lei da Trindade, de Delsarte. Cada um desses itens comporta, ainda, variaes de movimento em cada membro do corpo e em diferentes posies. AZEVEDO (2002, p. 57) afirma que Dalcroze conhecia o sistema de Delsarte e aplicou-o na criao de sua tcnica. ASLAN (2003), cita um possvel contato de Dalcroze com um discpulo de Delsarte, o que poderia ter influenciado a criao da rtmica dalcroziana mais tarde. Segundo a autora, ligados ou no na origem, o sistema de Delsarte e a rtmica de Dalcroze pesaram muito na esttica contempornea (p. 40).

O aluno prepara-se para esses exerccios por meio de outros que envolvem a conscientizao da postura e da prpria energia e mostram, sobretudo, aquelas resistncias que devem ser superadas para que o ritmo possa fluir por todo o organismo. O movimento apenas quando livre de tenses, pode servir aos pensamentos e imagens. A flexibilidade (muscular e articulatria) assegura rapidez e segurana nos reflexos, movimentos realizam-se articulados conscientemente inspirao e expirao, aprende-se a conter e a igualmente liberar impulsos [...] O acento personalizado (ou seja, a interpretao pessoal da seqncia) pode ser colocado depois que toda a srie dominada: os ltimos exerccios propostos so interpretativos (p. 58).

Por suas inovaes pedaggicas, o Mtodo Dalcroze, como tambm ficaram conhecidas suas prticas, influenciou, alm dos pedagogos musicais que se seguiram, alguns representantes do Teatro e da Dana29. A partir da Alemanha, onde Dalcroze foi levado pela danarina Mary Wigman (1886-1973), sua proposta obteve grande propagao na Europa e mais tarde na Amrica do Norte. No Teatro, o mtodo foi introduzido por intermdio de Adolphe Appia e Jacques Copeau. De acordo com ASLAN (2003), Appia e Dalcroze partilharam uma pesquisa em comum, entre 1906 e 1926, a qual visou estabelecer uma relao entre a conscincia corporal do ator e o espao, os volumes e a luz. Jacques Copeau, em sua escola Vieux Colombier, em busca da renovao da arte do ator, experimenta afastar os alunos do texto teatral, proporcionando-lhes um trabalho baseado nos princpios da Commedia dellArte e nas investigaes de Dalcroze30. Paul Claudel (1868-1955), poeta e dramaturgo francs, defensor da aplicao da rtmica dalcroziana no Teatro e na formao do ator, assim se manifestou: Nenhum passo, nenhum gesto do ator, deve ser realizado sem a ajuda de um ouvido interior prestado a msico (CLAUDEL apud ASLAN, 2003, p. 44)31.

Apesar da grande propagao que sua pedagogia alcanou ao longo dos anos, vigorando at os dias de hoje, Dalcroze inicialmente encontrou grandes dificuldades de aceitao de suas propostas, por parte da sociedade e dos educadores musicais, principalmente em funo do

Alm dos encenadores teatrais citados no item anterior, adotaram os princpios dalcrozianos, na rea de dana, os Bals Russos de Serge Diaghilev (1892-1929), por meio de seus coregrafos Massine, Nijinsky e Balanchine. A coreografia de Nijinsky para A Sagrao da Primavera foi elaborada a partir do mtodo dalcroziano, na qual um assistente do prprio Dalcroze analisou os ritmos da composio de Igor Stravinsky. Tambm h referncias a Dalcroze nos trabalhos de Rudolf Laban, e nos bals expressionistas de Kurt Jooss (AZEVEDO, 2002, p. 5859). 30 interessante notar a utilizao do Mtodo Dalcroze associada Commedia dellArte como treinamento do ator. Conforme ASLAN (2003), Charles Dullin, depois de ter atuado com Copeau, tambm funda sua prpria escola, Atelier, em 1921. Alm de aplicar a rtmica dalcroziana, Dullin tambm reportou Commedia dellArte alegando a contribuio desta para a plstica do movimento e para o ritmo do espetculo (p. 49). Verifica-se que as atribuies da Commedia dellArte ressaltadas por Dullin so semelhantes s desenvolvidas pela tcnica de Dalcroze: ritmicidade e plasticidade do movimento. 31 CLAUDEL, Paul. LOeil coute. In BERCHTOLD, A. et alli. Emile Jacques-Dalcroze, lhomme, le compositeur, le crateur de la Rythimique. Neuchtel: Baconnire; 1965, p.101.

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preconceito da poca quanto utilizao do corpo. A respeito disso, o pedagogo pronunciouse, em 1905:

Os homens se recusam a toda idia nova desde que as idias anteriores lhe dem alguma satisfao. Todo ato liberador e toda verdade de amanh lhes aparece hoje como uma falsidade. E, entretanto, o pensamento humano se desenvolve pouco a pouco, a despeito das resistncias, as idias se abrem, as vontades se afirmam, os atos se multiplicam [...] Sonho com uma educao musical na qual o corpo desempenhar o papel de intermedirio entre os sons e o nosso pensamento [...] traduzindo enfim o que lhes ditam as emoes musicais [...] Ai de mim, h tantos homens que no sonham e se contentam em dormir! (JACQUES-DALCROZE, 1980, p. 46).

1.3 Constantin Stanislavski (1863-1938)

Ator e diretor russo que, juntamente com Niemirvitch-Dntchenko, fundou o Teatro de Arte de Moscou. Desenvolveu tcnicas de interpretao e de criao do ator, com o objetivo de renovar prticas tradicionais de encenao, cujas bases concentravam na reproduo de modelos, isto , na repetio de procedimentos e cdigos que caracterizavam as personagens e as situaes (BONFITTO, 2002, p. 22). Segundo GUINSBURG (2001, p. 4), a proposta de Stanislavski caracteriza-se pela busca da expressividade por meio de uma edificao calculada da encenao. Seu trabalho dividido em duas fases ou perodos, que so retratados pela seguinte terminologia: Linha das Foras Motivas e Mtodo das Aes Fsicas.

A Linha das Foras Motivas constitui a fase em que predomina a construo psicolgica da personagem processo esse denominado por Stanislavski como estado interior da criao , por meio de elementos estimuladores das emoes32. Cada um desses elementos constitui tcnicas e procedimentos prprios. So eles: o Se, as Circunstncias Dadas, a Imaginao, a Concentrao da Ateno, a Memria Emotiva, os Objetivos e Unidades, a Adaptao, a Comunho, a F Cnica/Sentimento da Verdade33.

32

De acordo com BONFITTO (2002) o desenvolvimento das Foras Motivas recebeu a influncia da Psicologia, especialmente das teorias do psiclogo S. L. Rubinstein. 33 A descrio detalhada de cada um desses elementos e suas funes especficas so encontradas nas seguintes obras de Stanislavski : A Preparao do Ator; A Construo da Personagem e A Criao do Papel. H uma descrio sucinta de cada um deles em BONFITTO, op.cit. , p.27-30.

No Mtodo das Aes Fsicas (segunda fase), o processo de criao, anteriormente focado no plano interno (memria, emoo, imagem), que gera a execuo da ao, adota tambm a possibilidade inversa; ou seja, a repetio das aes adquirem a funo de resgate das circunstncias ficcionais e de seu sentido (BONFITTO, op. cit., p.32). Sendo assim, os procedimentos da primeira fase, que so baseados em processos unicamente mentais, ganham implicaes de ordem fsica: a Imaginao acrescida de exerccios prticos com os Objetos Imaginrios e a Memria Emotiva ampliada para a memria fsica ou dos sentidos, como indica Stanislavski em seu Plano de Direo de Otelo, no qual o diretor ressalta,

a distino entre a memria das sensaes [...] ligada aos nossos cinco sentidos e a memria das emoes. O sentido da viso a mais receptiva das impresses. A audio tambm extremamente sensvel (STANISLAVSKI apud BONFITTO, 2002, p.32)34.

A Msica um fator de importncia na construo do pensamento de Stanislavski. Como ator e diretor, participou de companhias de vaudeville e operetas, sendo que essas ltimas contriburam para sua percepo quanto importncia do ritmo para a construo das aes. Anos mais tarde, numa colaborao entre o Teatro Bolshoi e o Teatro de Arte de Moscou, fundado o Estdio de pera, no qual Stanislavski aprofunda as questes vivenciadas anteriormente com as operetas, desenvolvendo um trabalho de ao rtmica com os cantoresatores. De acordo com BONFITTO (2002), essa experincia foi fundamental para a passagem do modelo da Linha das Foras Motivas para o Mtodo das Aes Fsicas, uma vez que o ritmo colocado como elemento unificador entre msica, canto, palavra e ao (p. 22-24).

No trabalho de Stanislavski, o conceito-chave em termos de musicalidade o Tempo-ritmo, que constitui um vetor da construo cnica, onde se integram ao e linguagem. Em sua obra intitulada A Construo da Personagem35, Stanislavski discorre sobre os princpios que compem o Tempo-ritmo, considerando que esse conceito manifesta-se externamente por meio das aes fsicas e internamente pelas vivncias interiores. Cabe notar que no processo de construo desse conceito, descrito no livro acima citado, Stanislavski utiliza diversos elementos musicais, tanto nas explicaes dadas aos atores quanto na aplicao de exerccios,34 35

STANISLAVSKI, C. Manual do Ator. SP: Martins Fontes; 1989, p. 104. STANISLAVSKI, C. A Construo da Personagem. 16.ed. RJ: Civilizao Brasileira; 2006. Segundo Elizabeth Reynolds Hapgood, tradutora da verso norte-americana da obra de Stanislavski, A Construo da Personagem constitui uma continuao do livro A Preparao do Ator, publicado nos Estados Unidos, em 1936 antes mesmo de chegar Rssia. Os livros foram traduzidos a partir de manuscritos do prprio autor. Entretanto, a morte de Stanislavski, em 1938, e o desvio do material em funo da Segunda Guerra Mundial fizeram com que A Construo da Personagem fosse publicada treze anos aps o primeiro livro, em 1949.

nos quais foram vivenciados aspectos como pulso, acentuao e compasso, passando por sonorizaes, at a construo de cenas utilizando diversos padres rtmicos. A seguir sero listados alguns elementos musicais identificados, juntamente com palavras utilizadas por Stanislavski nas explanaes sobre o Tempo-ritmo:

- Durao, andamento e aggica: O tempo rapidez ou lentido. O tempo encurta ou prolonga a ao, acelera ou retarda a linguagem (STANISLAVSKI, 1997, p. 138-139. Traduo minha); - Compasso: o compasso uma medida de tempo. Um conceito convencional, relativo. No como o metro com o qual se mede um comprimento. O metro sempre o mesmo. No possvel mud-lo. Mas o compasso, que mede o tempo, absolutamente diferente. Compasso constitui-se de tempo. Tempo se mede com tempo (Ibidem, p.139)36; - Pausas: no processo de atuao devemos preencher o tempo com os mais diversos movimentos, alternados com pausas. Na linguagem, o tempo presente se preenche com a pronncia de sons com as mais diversas duraes, e com pausas entre elas (Ibidem, p. 165);

A palavra metro, em msica, possui um sentido de mensurao, e est relacionado mtrica musical. Entretanto, Stanislavski refere-se ao metro, nesse caso, como objeto de medida de comprimento (basto ou fita mtrica, por exemplo), ou seja, algo inadequado para medir o tempo, cuja natureza relativa e varivel. Na interpretao da presente pesquisa, ocorre um equvoco na traduo para o portugus, que emprega a palavra metro em seu sentido musical, traduzindo-o por compasso, o que gerou uma leitura confusa das definies apresentadas nesse trecho. Comparando a verso argentina (STANISLAVSKI, 1997) e a brasileira (STANISLAVSKI, 2006), verificou-se que as palavras compasso e metro, na traduo em espanhol, apresentam-se, respectivamente, como batida e compasso, na verso em portugus. Isto pode ser visualizado no seguinte trecho: El comps es um concepto convencional, relativo. No es como el metro com el que se mide uma longitud. El metro es siempre el mismo Na verso brasileira o mesmo trecho apresenta-se da seguinte maneira: A batida um conceito convencional, relativo. No o mesmo que o compasso que determina o tamanho de uma superfcie material. Esse compasso ou trecho sempre o mesmo. Verifica-se, assim, que foram atribudos sentidos antagnicos palavra compasso. A opo deste trabalho pela verso argentina se deve ao fato desta apresentar maior clareza e coerncia, o que reforado pela continuao do texto, na qual Stanislavski coloca o metro como objeto de medio, como a seguir (ser colocada a frase em espanhol seguida da mesma frase na verso em portugus, de 2006, entre parntesis): El metro es siempre el mismo (Esse compasso ou trecho sempre o mesmo). No se lo puede cambiar (No podemos alter-lo). Per el comps, que mide el tiempo, es algo absolutamente distinto (Mas a batida, como medida de tempo, muda constantemente). El comps no es un objeto, como el metro (Frase cortada). El comps es lo mismo que el tiempo (Frase cortada). El tiempo se mide con el tiempo. (Frase cortada). Qu significa entonces los dems metrnomos...? (O que representa todos os outros metrnomos...?). Na verso em portugus trs frases foram cortadas do texto. Presume-se que as dificuldades da traduo tenha provocado a insustentabilidade da fluncia do texto. fato conhecido o problema da traduo da obra de Stanislavski. provvel, tambm, que o engano tenha sido reforado pelo significado dessas palavras em ingls: compasso (measure, beat) e metro (meter, meter stick, measure of a verse), uma vez que a verso em portugus provm da traduo norte-americana. A verso argentina foi traduzida diretamente do idioma russo por Salomn Merecer.

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- Intensidade, densidade e timbre (sobre exerccios rtmicos com palmas): fomos variando infinitamente as formas, fora e caractersticas das acentuaes: ora resultavam substanciosas, densas, ora secas e cortantes, fceis, pesadas, com muita sonoridade, suaves. (Ibidem, 142); - Sonorizao: no possvel enumerar tudo o que estivemos percutindo. Ali havia tormentas no mar, nas montanhas, ventos, granizo, troves e relmpagos. Havia tambm tanger de sinos ao entardecer, alarmes, incndios nas aldeias, grasnidos de patos, pias que gotejam... (Ibidem, 144);

Em seus experimentos, Stanislavski demonstrou que uma mesma situao, realizada em andamentos diferentes ou a partir de combinaes rtmicas diferenciadas, gera novos estmulos e imagens mentais, produzindo, conseqentemente, diferentes respostas cnicas. Entretanto, o Tempo-ritmo, para o diretor russo, ultrapassa a mera aplicao de recursos rtmicos cena, havendo uma estimulao recproca entre esse conceito musical e os demais componentes de sua proposta. A respeito disso Stanislavski pronuncia:

No se pode recordar ou sentir o tempo-ritmo sem haver criado as imagens correspondentes, sem representar mentalmente as circunstncias dadas e sem ter a sensao dos objetivos e aes. Encontram-se to relacionados entre si, que um origina o outro, ou seja, que as circunstncias dadas evocam o tempo-ritmo, e este faz pensar nas circunstncias correspondentes [...] O tempo-ritmo estimula no somente a memria emotiva como tambm ajuda a reviver nossas recordaes visuais e suas imagens. Por isso incorreto conceber o tempo-ritmo s no sentido da velocidade e da medida (STANISLAVSKI, 1997, p. 146. Traduo minha).

Para o encenador russo, o Tempo-ritmo, por sua capacidade de estimular cada uma das foras motrizes de nossa vida psquica, constituiu uma aquisio de suma importncia para o desenvolvimento do que ele denominava psicotcnica, tendo sido aplicado em aspectos fundamentais da sua concepo teatral (STANISLAVSKI, 1997, p. 177).

O trabalho realizado com a linguagem falada, por exemplo, volta-se para a excelncia da expresso e da comunicao a arte de falar em cena. Stanislavski compara a falta de domnio das leis da linguagem a um instrumento musical de m qualidade, nas mos de um excelente msico: De que serviriam os delicados matizes das emoes, se deficiente a linguagem que os expressa em cena? (Ibidem, p.81). Sendo assim, visando o apuramento da linguagem cnica, o encenador desenvolve uma minuciosa tcnica de estudo do texto que se apia no potencial musical das palavras, sobre o qual manifesta-se:

A ndole de certas letras, slabas e palavras requer uma pronncia recortada, semelhana das colcheias e semicolcheias em msica; outros sons devem transmitir-se com maior durao e peso, como as mnimas e semibreves37. Igualmente, certas letras e slabas recebem uma acentuao rtmica mais forte ou mais fraca; outras podem no ter acento algum. [...] s vezes, esses sons se mesclam com pausas e contenes respiratrias das mais diversas duraes. Tudo isto constitui o material e as possibilidades da linguagem, com os quais se forma o tempo-ritmo fontico. [...] Uma forma de falar moderada, sonora e fluida tem muitas qualidades e elementos afins com o canto e a msica (STANISLAVSKI, 1997, p.165. Traduo minha).

Nesse sentido, so trabalhados os seguintes componentes da relao entre sonoridade e interpretao:

- Dico/Pronncia: conscincia e correo dos defeitos da fala e valorizao da lngua literria russa, pela eliminao de dialetos (normalizao da lngua) e supresso da declamao artificial (realismo da dramaturgia russa e particularidades estilsticas dos literatos); - Entonao: construo de esquemas fonticos pelo estudo das inflexes e das sonoridades caractersticas dos sinais de pontuao (ponto, vrgula, exclamao, interrogao); - Acentuao: estudo da intensidade das palavras e das frases. Construo de planos e qualidades de acentos, em perspectiva entre os de maior ou menor importncia, visando alcanar as diversas nuances de expressividade e destacar a essncia do subtexto.

De acordo com KNBEL (2000), a entonao para Stanislavski nasce do conhecimento das leis do idioma e do desejo de transmitir de maneira exata o contedo da obra (p.149). A anlise da obra realizada por meio dos compassos de linguagem ou compassos do discurso, isto , a diviso do texto e a ordenao das palavras em grupos, idias, frases e suas interrelaes (STANISLAVSKI, 1997, p. 95). O objetivo desse trabalho evitar a recitao mecnica, no somente pela destreza vocal, mas pelo entendimento e pela ressonncia com a proposta dramatrgica. Sobre tal fato, Stanislavski comenta:

As letras, slabas e palavras so as notas musicais da linguagem, com as quais se formam os compassos, rias e sinfonias completas. No em vo que se diz que uma bela forma de falar musical [...] Transmitam corretamente a durao das letras, slabas e palavras, a preciso do ritmo. Ao combinarem as partculas sonoras, formem os compassos com as frases, regulem as correlaes rtmicas destas entre si, amem as acentuaes corretas e ntidas, que so tpicas do sentimento ou paixo que vive na personagem criada (STANISLAVSKI, 1997, p. 167. Traduo minha).

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Stanislavski se refere a figuras musicais: colcheias e semicolcheias, que geralmente constituem clulas mais rpidas ou ligeiras, e mnimas e semibreves, que representam sonoridades mais longas e lentas.

A diviso dos grupos, no texto, dada pela pausa, que, nesse processo, possui trs funes distintas, a saber:

- luftpausa ou pausa de respirao: breve interrupo para tomar ar ou reteno do ritmo do canto ou fala sem interromper o fluxo da frase; - pausa lgica: tem a funo de dividir o discurso e tambm realar alguma idia especfica; - pausa psicolgica: instrumento de comunicao sutil que transmite o que inacessvel palavra; tem o objetivo transmitir o subtexto (STANISLAVSKI, 1997, p. 105)38 . Alm do trabalho voltado especificamente para a interpretao e a cena, elementos musicais tambm so encontrados nas questes relativas ao treinamento do ator. A preparao vocal composta por aulas de canto lrico, que proporcionam o conhecimento do aparelho vocal e da colocao correta da voz, e pelo trabalho de dico, proveniente das pesquisas de Stanislavski direcionadas para a adaptao dos recursos da voz cantada para a voz falada. Stanislavski, que estudou canto lrico na juventude, tinha conhecimento dos diversos timbres vocais relativos colocao da voz (na cabea, na laringe, no peito, no occipcio, etc), mas ressalta, como ponto de importncia para suas investigaes, a vantagem das vozes colocadas na mscara, onde esto situados o cu da boca, as fossas nasais, os seios nasais e outras cmaras de ressonncia (STANISLAVSKI, 2006, p 143-144). Stanislavski aponta, ainda, para o fato de que a transposio das tcnicas de canto para a fala funcionava at certa medida. Sua determinao e esprito investigativo o levaram ao estudo da funo da boca, dos lbios e da lngua na articulao da palavra, a partir da observao dos movimentos utilizados na fala de um de seus discpulos, que, segundo o encenador, se disps a ser pacientemente examinado por horas a fio (Ibidem, p 151).

No que tange preparao corporal dos atores, Stanislavski cita a ginstica para o desenvolvimento do porte e correo postural , a acrobacia visando a agilidade e a capacidade de deciso e a dana para a definio e acabamento dos movimentos. Entretanto, a expressividade corporal deve estar em funo do papel e no do gesto em si. Nesse sentido, outro aspecto importante o desenvolvimento da plasticidade dos movimentos, cujos exerccios descritos apontam para a presena do pensamento de Jacques-Dalcroze,

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STANISLAVSKI (1997) cita as palavras de um orador, Mitronolit Filaret, que dizia: que teu discurso seja discreto e teu silncio eloqente, em seguida, afirma que a pausa psicolgica tem justamente essa propriedade: a eloqencia do silncio (p. 104).

apesar do nome do pedagogo no ser citado diretamente nas obras de Stanislavski39. Algumas atividades, com denominaes e procedimentos semelhantes aos da Pedagogia Dalcroze, so citadas como, por exemplo, a ginstica rtmica trabalhada paralelamente s aulas de movimento plstico (STANISLAVSKI, 2006, p. 85). Nessas atividades, na constituio da linha de movimento, que para Stanislavski era a base da plasticidade, so desenvolvidos conceitos dalcrozianos como fluncia e energia. Tambm nesse ponto o Tempo-ritmo atua, coordenando a linha de movimento exterior (movimentos dos braos, pernas, corpo) e interior (senso interior do movimento e da energia). Nos exerccios relacionados ao Tempo-ritmo, alm do metrnomo, que enfatiza pulso e andamento, alguns exerccios tambm so realizados com acompanhamento musical de um piano, maneira de Dalcroze, cujo estmulo sonoro, meldico-harmnico, cria uma disposio interior [e] influi sobre o sentimento (STANISLAVSKI, 1997, p. 150-151). A proximidade entre o Tempo-ritmo e aspectos das propostas dalcrozianas pode ser detectada no seguinte trecho:

A energia, aquecida pela emoo, carregada de vontade, dirigida pelo intelecto [] manifesta-se na ao consciente, cheia de sentimento, contedo e propsito, que no pode ser executada de modo desleixado e mecnico, mas deve ser preenchida de acordo com os seus impulsos espirituais. Fluindo pela rede do nosso sistema muscular, despertando nossos centros motores interiores ela nos incita atividade interior (STANISLAVSKI, 2006, p. 87).

BONFITTO (2002), comenta que os impulsos, indicados na citao acima, so, ao mesmo tempo, um recurso gerador e resultante das aes. Segundo esse autor, Stanislavski no chegou a esclarecer com preciso esse conceito, mas, ao que tudo indica sua funo impedir a cristalizao e a mecanizao das aes no suficientemente elaboradas (p. 34). Uma de suas falas a respeito disso encontra-se a seguir:Provavelmente agora, atravs das vossas prprias sensaes, vocs conheceram a relao existente entre as vossas aes fsicas e a causa interior dos impulsos [...] Este o caminho que vai do exterior para o interior. Confirmada esta relao, repitam muitas vezes a linha da vida fsica do corpo humano. No somente fixareis com ela as suas aes fsicas, como tambm os seus impulsos interiores; alguns deles com o tempo, tornar-se-o conscientes [...] Porm, muitos dos impulsos interiores, e provavelmente os mais importantes, no se tornaro conscientes at o

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De acordo com THOMAS (2005), houve um contato entre Stanislavski e Dalcroze, quando o pedagogo suio e seus alunos fizeram uma turn de demonstrao da Euritmia na Rssia, em 1912, a convite de Sergei Wolkonsky, Superintendente do Teatro Imperial da Rssia. A partir desse ano, a tcnica dalcroziana tornou-se parte do treinamento dos atores do Teatro de Arte de Moscou (1. Estdio), sob a assistncia da professora de dana Nina Alexandrovna. (THOMAS, Natham. Dalcroze Eurhythmics and Theatre, 2005). In: Scene 4 Internacional Magazine of Performing Arts and Media. Disponvel em: www.scene4.com/archivesqv6/may2005/html/thomasmay05.html. Acesso em: 03/04/08.

fim. No lamenteis tal fato: muitas vezes a conscincia elimina o impulso interior nascido do subconsciente (STANISLAVSKI apud BONFITTO, 2002, p. 36).40

Em torno do trabalho do ator, alm de todos os elementos musicais acima referidos, Stanislavski utilizou, ainda, inovaes sonoras na composio dos espetculos. Ao fundar o Teatro de Moscou, criando novas prticas de encenao, prope que a msica seja composta especificamente para o espetculo (BONFITTO, 2002), numa poca em que a msica de cena, de maneira geral, consistia em nmeros musicais de abertura ou mudanas de cenrio, com pouca relao com a dramaturgia. Tambm lanou mo da sonoplastia, qual denominava paisagem auditiva, principalmente sobre os textos de Tchekhov, povoados de sonoridades e silncios. De acordo com Roubine, Stanislavski elaborava verdadeiras partituras sonoras, cheias de mincias e preciso41. Porm, no se tratava apenas de ilustrar um ambiente, mas sobretudo de revelar a relao, o acordo ou a discordncia, que liga o personagem ao que est em torno dele (ROUBINE, 1998, p.155). A riqueza dos recursos sonoros no visava proporcionar efeito somente sobre os espectadores, mas como outro meio de estmulo para os atores, calculados para criar uma iluso de vida real e da intensidade de seus estados de esprito (STANISLAVSKI, 2006, p.83).

Conforme KUSNET (1985), tanto as sonoridades (relgio, barulho do mar, trovoadas, etc), quanto a msica que acompanha a cena, so organizadas pela direo do espetculo para fixar os tempo-ritmos da pea e que estas devem ser utilizadas pelos atores como apoio ou para materializar o tempo-ritmo interior (p. 95) 42. A ao coletiva sobre a cena, feita pelo Tempo-ritmo da linguagem, pelo Tempo-ritmo dos movimentos, pelo Tempo-ritmo individual e coletivo, compe uma espcie de trama de ritmos, a qual Stanislavski denomina caos organizado e no qual o ator deve orientar-se (STANISLAVSKI, 1997, p. 140). De acordo com KNBEL (2000), a necessidade de se ajustar o Tempo-ritmo entre o ator e a cena leva Stanislavski a pronunciar-se sobre grandes atores russos, que considerava portadores de um domnio preciso sobre o Tempo-ritmo. Revela que esses atores trabalhavam sua percepo40 41

STANISLAVSKI, C. El Trabajo del actor sobre su papel. Buenos Aires: Ed. Quetzal; 1977. Roubine chama ateno para o fato de que aplicada s peas de Shakespeare, cuja essncia da dramaturgia no realista, a teoria da paisagem auditiva no funcionou de maneira to eficiente. TRAGTENBERG (1999, p. 135), sugere que estas intervenes sonoras so uma influncia do cinema. O autor afirma que o detalhismo de Stanislavski chegou a tal ponto que o prprio Tchekhov o teria interpelado: Escuta ! Escreverei uma pea nova que comear deste modo: Que maravilha! Que silncio! No se ouvem pssaros, nem ces, nem cucos, nenhuma coruja, nenhum rouxinol, nenhum relgio, nem grilos, um grilo sequer!. Tragtenberg indica, como fonte deste trecho, o autor RIPELLINO, ngelo M. O Truque e a Alma. So Paulo: Perspectiva, 1996. 42 Eugnio Kusnet (1898-1975): ator de formao stanislavskiana que migrou para o Brasil em 1926. Integrou o TBC (Teatro Brasileiro de Comdia), o Teatro de Arena e o Teatro Oficina. Atuou tambm como professor nas dcadas de 60 e 70.

antes de entrar em atuao, escutando mentalmente todos os eventos da cena. Stanislavski julgava que estes atores conservavam mentalmente a sensao dos ritmos e a medida de ao de cada cena e da obra em sua totalidade (p. 185, 186).

Constata-se, portanto, a importncia do Tempo-ritmo nas propostas de Stanislavski, pela presena desse conceito em aspectos preponderantes de sua esttica, atuando tanto nas estratgias de preparao e criao do ator, como na estruturao do espetculo.

1.4. Vsevolod Meyerhold (1894-1940)

Ator e diretor russo, Meyerhold conviveu com Stanislavski como integrante do Teatro de Arte de Moscou. Posteriormente, criou sua prpria concepo teatral buscando no que denominou Teatro da Conveno, em oposio cena ilusionista, o que considerava a identidade esttica do Teatro: a teatralidade (BONFITTO, 2002, p. 40; PICON-VALLIN, 2006, p. 12). Buscou na Msica, na Pintura e na Escultura estruturas para a construo de novos cdigos de sentido, sendo a Msica, em particular, considerada um dos principais elementos de organizao e estruturao cnica em sua proposta43. Para PICON-VALLIN (2006, p. 8), a relao entre a Msica e a encenao meyerholdiana se desenvolve pela necessidade de organizao do tempo, sendo a gesto do ritmo um fator que atua na preciso da encenao e na qualidade da percepo que se deve despertar no espectador. Nesse sentido, a Msica , para Meyerhold,

no um fundo, mas a grade de interpretao de uma dramaturgia, um ponto de apoio para a composio cnica, um meio de triunfar sobre o naturalismo, uma vez que ela coloca em cena um ritmo que rompe com o mundo cotidiano (PICONVALLIN, 1989, p. 2).

Os estudos que alimentaram a esttica de Meyerhold so as obras de Wagner, Craig e Appia sobre a encenao de peras e princpios do teatro oriental, principalmente o Kabuki japons e a pera de Pequim. Visando afastar uma concepo teatral de cunho introspectivo ou estritamente psicolgico, Meyerhold desenvolveu uma tcnica que denominou43

Bonfitto (2002) associa o processo de construo teatral de Meyerhold s formulaes tericas dos formalistas russos, as quais, deixando de lado as implicaes semnticas da linguagem [...] extraam dela determinados cdigos, a partir de suas propriedades lgico-sintticas e rtmicas. Da a importncia do termo estrutura, central tambm nas reflexes e prticas de Meyerhold (BONFITTO, 2002, p. 40-41).

Biomecnica, na qual, segundo PAVIS (1999), o ator aborda seu papel a partir do exterior, antes de apreend-lo intuitivamente. Na Biomecnica, os gestos so fixados e os meios expressivos seguem o princpio de economia, visando garantir a preciso dos movimentos. Alm da sistematizao da Biomecnica, Meyerhold desenvolve os princpios do Grotesco, cuja tcnica, segundo BONFITTO (2002, p. 41), baseia-se na exagerao e transformao intencional de dados, visando agir na percepo do espectador e revelar estruturas profundas da realidade. A respeito disso pontua CAVALIERE (1996):

Meyerhold v nos princpios do teatro de feira, nas suas marionetes e no poder mgico de suas mscaras, a revitalizao do teatro contemporneo [...] Mas se o grotesco nasce da face cmica das farsas populares representadas nas feiras pelos atores ambulantes de todos os tempos, ele corresponde tambm outra face do riso, o silncio que oculta a tragdia eterna da humanidade e que esconde seu sofrimento atrs das gargalhadas para, talvez, contrabalanar de forma audaciosa a decadncia trgica dos tempos (p. 89)44.

Bonfitto considera ainda, como um dos recursos do Grotesco, o mecanismo denominado composio paradoxal, que consiste na utilizao de contrastes por exemplo, a utilizao simultnea do cmico e do trgico ou a substituio de informaes por outras inesperadas. Nesse mbito, a msica ganha outra dimenso no trabalho de Meyerhold agindo na composio da cena e no trabalho do ator. PICON-VALLIN (1989, p. 3) pontua como teoria do contraponto uma espcie de rede rtmica estabelecida entre a msica e os movimentos dos atores, cada qual em seus respectivos planos. A autora afirma que uma das melhores aplicaes dessa estratgia ocorreu na encenao de A Dama de Espadas, de PuchkinTchaikovski, e cita uma das crticas teatrais da poca que comenta sobre o ator meyerholdiano:

Ator autenticamente musical, conservando exteriormente a liberdade de seu comportamento teatral, mas de fato ligado msica durante todo o tempo em um complexo contraponto rtmico. Seus movimentos podem ser invertidos em relao ao metro da msica, acelerados ou ralentados; entretanto, mesmo sua pausa esttica sobre o fundo de um movimento rpido da orquestra e, digamos, um gestual rpido sobre o fundo de uma pausa geral na msica devem estar estritamente apoiados sobre a partitura da encenao, concebida como o contraponto cnico da partitura do compositor (SOLLERTINSKI apud PICON-VALLIN, 1989, p.3). 4544

Cavaliere cita como exemplo o jogo irnico da cena final de O Inspetor Geral, na qual manequins foram dispostos na cena minutos antes ocupada por atores, que congelaram posturas e expresses de horror e espanto diante da notcia da chegada do verdadeiro inspetor. A autora cita, ainda, alguns escritos em que Meyerhold comenta as crticas sua tcnica: Dizem que Meyerhold cometeu um sacrilgio porque eliminou aquele riso do qual, de repente, todos tm saudade, e que com este riso ter-se-ia suprimido o prprio Ggol! Mas de que riso se trata? Se for o riso vazio do vaudeville, da farsa, este riso Ggol jamais o desejou (Meyerhold apud CAVALIERE, 1996, P. 130). 45 SOLLERTINSKI, I. Meyerhold e o teatro musical. Leningrado, 1935. Reunio de artigos.

A autora exemplifica, com um trecho da obra, a cena em que uma das personagens, Hermano, sobe as escadas juntamente com a entrada dos violinos. Seus passos acompanham a msica que nesse momento soa em colcheias. Porm, quando a msica tem seu andamento acelerado, pelo emprego de semicolcheias, a personagem interrompe seu movimento. Em nota anexa ao exemplo, a autora comenta que no sistema de Dalcroze, o movimento tambm seria acelerado nas semicolcheias46. Esse exemplo ilustra um dos recursos da composio paradoxal, que, neste caso, utilizou informaes diferenciadas ou imprevistas entre movimento e msica, porm, em funo de um significado expressivo comum. Provavelmente, o propsito desse trecho da encenao tenha sido a criao de tenso, gerada pela acelerao do ritmo musical em simultaneidade com a interrupo inesperada do movimento. Ainda de acordo com PICON-VALLIN (1989, p. 3), Meyerhold, a partir de um determinado perodo, passa a recusar as teorias de Dalcroze quanto simetria entre movimento e msica. Na realidade o encenador amplia as possibilidades expressivas dessa relao, ao adotar princpios do Kabuki e da pera de Pequim, onde os atores dialogam com a msica criando, tambm, tenses e contrastes (BONFITTO, 2002, 116) 47.

A influncia oriental, na esttica de Meyerhold, manifesta-se tambm, segundo SANTOS (2002), no princpio de economia, aplicada na Biomecnica e no que Meyerhold denominou ciclo de ao ou ciclo de realizao. Cada ciclo composto de trs etapas precisas comeo, desenvolvimento e fim aplicadas nas macro e micro-estruturas da encenao, isto , em cada gesto, na composio dos movimentos e na organizao e estrutura rtmica como um todo. So ainda apontados por Picon-Vallin outros princpios orientais presentes na esttica meyerholdiana, como a presena da Msica no palco, executada por um pianista ou umaNa teoria musical, colcheias e semicolcheias so figuras rtmicas que indicam valores de durao. Uma colcheia dura o dobro do tempo de uma semicolcheia, ou seja, as semicolcheias so mais curtas em termos de durao do som, portanto soam mais rpidas. Na prtica dalcroziana, que tambm era adotada por Meyerhold, a movimentao seguiria estritamente o que prope cada grupo de figuras musicais. Se o ator estivesse andando nas colcheias, ele correria nas semicolcheias, por exemplo. 47 possvel considerar, contudo, que Meyerhold afasta-se de Dalcroze quanto simetria na relao msica-movimento mantendo, porm, o princpio fundamental do pedagogo suo: a fluncia entre corpo-mente-afeto. BONFITTO (2002, p. 44) pontua que o objetivo do princpio biomecnico era proporcionar ao ator o domnio da prpria expressividade levando-o compreenso de sua atividade psicofsica durante seu processo criativo. O alcance desse domnio seria o desenvolvimento de um estado de prontido e a capacidade de reao a fim de diminuir ao mximo o tempo de passagem entre pensamento-movimento, pensamento-palavra e movimento-emoo-palavra: princpios dalcrozianos. Em outro exemplo Meyerhold comenta a atuao de uma atriz que recorre aos gestos para melhor expressar a exaltao da cena. Ainda necessitando de maior carga expressiva a atriz integra sua atuao msica: Conquistou o pblico. No com as falas, nem com a mmica, mas somente quando fundiu a sua interpretao com a orquestra (Meyerhold apud BONFITTO, 2002, p.116).46

orquestra, e a importncia da pausa no jogo do ator em cena. Segundo a autora, Meyerhold orientava os atores a escutar o silncio, a compreender a significao da pausa e a viv-la na ao cnica. Nesse sentido, a pausa utilizada no como ausncia de movimento, mas como um elemento ativo, que guarda em si mesma um elemento de movimento e de culminao da ao (PICON-VALLIN, 1989, p. 9). Alm da pausa, o acmulo e desencadeamento da ao tambm so dados pelo uso das relaes harmnicas e pelo emprego do rallentando, mecanismos utilizados como geradores de tenso, tanto no conjunto da encenao, quanto no mbito da cena. A utilizao das tenses harmnicas pode ser identificada no seguinte exemplo dado por Meyerhold a seus alunos:

Em msica h uma acumulao de acordes de stima que o compositor intr