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RODRIGO VOLPONI O lugar e a importância do ensaio no jornalismo contemporâneo Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós- Graduação Strictu Sensu, área de concentração “Comunicação na Contemporaneidade” e Linha de Pesquisa “Produtos Midiáticos: Jornalismo e Entretenimento”, como requisito à obtenção do título de Mestre em Comunicação sob orientação do Prof. Dr. Dimas A. Künsch. SÃO PAULO 2015

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RODRIGO VOLPONI

O lugar e a importância do ensaio no jornalismo contemporâneo

 

 

 

 

         

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-

Graduação Strictu Sensu, área de concentração “Comunicação na

Contemporaneidade” e Linha de Pesquisa “Produtos Midiáticos:

Jornalismo e Entretenimento”, como requisito à obtenção do

título de Mestre em Comunicação sob orientação do Prof. Dr.

Dimas A. Künsch.

SÃO PAULO

2015

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Volponi, Rodrigo O lugar e a importância do ensaio no jornalismo / Rodrigo Volponi. – São Paulo, 2015. 109 f. 1v. : il. ; 30 cm. Orientador: Prof. Dr. Dimas Antônio Künsch Dissertação (mestrado) – Faculdade Cásper Líbero, Programa de Pós-Graduação Strictu Sensu, área de concentração “Comunicação na Contemporaneidade” e “Linha de Pesquisa “Produtos Midiáticos: Jornalismo e Entretenimento”. l. Ensaio. ll. Ensaio Reportagem. Ill. Ensaio Jornalístico Künsch, Dimas Antônio. Faculdade Cásper Líbero Programa de Pós-Graduação Strictu Sensu, área de concentração “Comunicação Contemporaneidade”. III. O lugar e a importância do ensaio no jornalismo contemporâneo.

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À beira de um precipício só há uma maneira de andar para frente: é dar um passo atrás.

(Michel de Montaigne)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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AGRADECIMENTOS

Ao amigo e orientador Prof. Dr. Dimas Künsch, que me mostrou os caminhos do ato de

compreender por meio de suas conversas inspiradoras, sua generosidade e incentivo, sempre

presentes em nossos encontros.

A profesora Dulcília Buitoni por compartilhar seu olhar estético e poético sobre o jornalismo.

Ao Grupo de pesquisa “Comunicação, Jornalismo e Compreensão”, pelos encontros

gastrosóficos e pelas ideias, sempre instigantes, que surgiam deles.

Aos amigos Edvaldo Pereira Lima e Raúl Osorio Vargas, por compartilharem seus ricos

conhecimentos nas entrevistas realizadas.

Aos meu país, por acreditarem em meu potencial e torcerem por mim.

A minha sócia e irmã, por ter sido tão compreensiva nessa jornada.

Ao meu irmão, pelas palavras de incentivo.

Ao meu filho, por entender a minha ausência, em alguns momentos, devido aos estudos.

Ao meu cachorro Güido, por estar sempre ao meu lado nas madrugadas sem fim.

Ao meu mentor espiritual por me guiar para essa missão.

Aos meus guias e protetores espirituais que me deram forças para continuar.

Aos Orixás que me permitiram trilhar esse caminho.

A minha mulher Érica, pelo apoio incondicional, sem ela, não sei se teria conseguido.

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Para meu filho Gabriel,

meu principal motivo de querer

compreender melhor o mundo.

 

 

 

 

 

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 10

CAPÍTULO 1 - De Michel de Montainge a Adorno e ao dias atuais:

uma história de amor e de ódio ao ensaio 14

1.1 Visões sobre o ensaio 19

1.2 Do ensaio pessoal para o ensaio jornalístico 26

CAPÍTULO 2 - Notas sobre o ensaio 28

2.1 Uma forma de exposição do pensamento 31

2.2 O pensamento complexo e o simplista 34

2.3 Aprender a compreender 37

2.4 Adorno versus Descartes – o protesto contra as regras do Discurso do Método 39

CAPÍTULO 3 - O lugar do ensaio no campo jornalístico hoje 42

3.1 Trabalho com textos 51

CAPÍTULO 4 – Método de construção de um ensaio jornalístico: uma tentativa 59

COMPREENSÕES INICIAIS 64

REFERÊNCIAS 68

ANEXOS 72

Anexo 1 – Capas dos portais online 73

Anexo 2 – Textos 83

Anexo 3 – Entrevistas 98

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RESUMO

O propósito desta dissertação é estudar o formato, a abrangência e a importância atual do ensaio como narrativa jornalística. De maneira geral, o ensaio se propõe a tecer sentidos nos mais diversos campos do saber, em função do seu espírito de liberdade, formato e método de produção e de expressão do conhecimento. Ele busca produzir significados e articular alguma ordem possível no caos dos sentidos do mundo, por meio do conhecimento adquirido com a experiência, a observação, a reflexão e o entendimento da polifonia e da polissemia dos temas que nos cercam. Para essa jornada, como pano de fundo teórico, foram abraçadas ideias e visões de autores que apresentam os principais aspectos do ensaio, como a narrativa na contemporaneidade, de Cremilda Medina, o conceito de pensamento compreensivo, de Dimas Künsch, e o modelo de jornalismo literário avançado proposto por Edvaldo Pereira Lima. Integradas a estas ideias, estão também as expressões do pensamento complexo de Edgar Morin e o estudo sobre a estética do ensaio de Josep Catalá, somados às contribuições advindas dos caminhos trilhados pelo colombiano Raúl Vargas em sua tese de doutorado sobre a reportagensaio. Este trabalho contempla, também, uma visitação à obra do precursor do ensaio moderno, Michel Eyquem de Montaigne, e uma releitura da análise de Theodor Adorno em seu texto “O ensaio como forma”. Um grande caldeirão de ideias e interações de continentes, épocas e autores que praticaram em suas construções cognitivas um ato generoso, o ato de compreender. Pretende-se com este estudo apresentar o ensaio no campo jornalístico como um gênero e método privilegiado de construção textual ou imagética de conhecimento contemporâneo. Uma das formas mais capacitadas a conversar com a crise dos modelos tradicionais de pensamento que estamos atravessando, levando em consideração toda a incerteza e a complexidade que cercam essa crise, este trabalho se deixa conduzir por uma perspectiva dialógica e compreensiva, na esteira dos estudos do grupo de pesquisa “Comunicação, Jornalismo e Compreensão”, do Mestrado em Comunicação da Faculdade Cásper Líbero.

Palavras-chave: Ensaio; ensaio reportagem, reportagensaio, pensamento compreensivo,

ensaio jornalístico. .

 

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ABSTRACT

The purpose of this thesis is to study the format, the coverage and the actual importance of the essay as a journalistic narrative. In general, the essay proposes to weave sense in the most diverse fields of knowledge, due to its spirit of freedom, format and method of production and of knowledge expression. It seeks to produce meanings and to articulate a possible order in the chaos of world senses, through acquired knowledge from experience, the observation, the thinking and understanding of the polyphony and polysemy of the themes that surround us. For this journey, were embraced, as a theoretical background, ideas and views of authors who present the main aspects of the essay: the narrative in the contemporary, from Cremilda Medina, the concept of comprehensive thought, from Dimas Künsch, and the advanced model of literary journalism proposed by Edvaldo Pereira Lima. Integrated to these ideas, there are also expressions of the complex thought from Edgar Morin and the study about the aesthetics of the essay by Josep Catalá, added to the contributions which came from the paths trodden by the Colombian Raúl Vargas in his doctorate thesis about “reportagensaio” (report essay). This work includes also a visit to the work of the forerunner of the modern essay, Michael Eyquem de Montaigne, and the rereading of the analysis of Theodor Adorno in his text “The essay as a form”. A big cauldron of ideas and interactions of continents, epochs and authors who practiced a generous act in their cognitive constructions: the act of comprehension. The intention, with this study, is to present the essay in the journalistic field as a genre or preferred method of textual construction or imagery of contemporary knowledge. One of the most skilled ways to speak to the crisis of the traditional models of thought that we are going through, considering all the uncertainty and complexity surrounding this crisis, this work is led by a dialogic and comprehensive perspective, in the wake of the studies of the research group "Communication, Journalism and Understanding", of the Master in Communication of Cásper Libero College.

Keywords: Essay; report essay, reportagensaio, comprehensive thought, journalistic essay.

 

 

 

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INTRODUÇÃO

Esta dissertação tem como um de seus objetivos um resgate. Um resgate de um

gênero que surgiu no século XVI e que, até hoje, continua sendo praticado

por pessoas que procuram evitar dogmas e que já não aceitam mais a ideia de verdades

absolutas, por simplesmente compreender que estas não existem. Pessoas que possuem

a consciência de que nenhum texto ou imagem é suficiente para suprir a diversidade de visões

e entendimentos possíveis sobre o mundo. Pessoas que apreciam o raciocínio científico, mas

que não abrem mão da cultura humana, do conhecimento tácito e do generoso ato de

compreender, a partir da visão de outros, mesmo que diferentes.

Essa história se inicia com um francês que, em certo momento de sua vida, isola-se em

um castelo na busca pela compreensão de sua existência – e depois, também, a dos outros –

por meio de suas anotações e reflexões sobre a vida, de acordo com as suas experiências

pessoais e também do conhecimento adquirido por meio de estudos da visão de outras pessoas

sobre a condição humana.

Não é, de forma alguma, um texto que se propõe a explicar o que é certo ou errado, ou

o que funciona e o que não. Mas uma pesquisa que trata da importância do gênero e do

método ensaio. Que busca compreender, à luz da racionalidade possível, sem renunciar nunca

ao diálogo, todo o poder que a subjetividade exerce sobre o homem, mesmo que este, em

muitos momentos, não a reconheça.

Esta pesquisa trata de forma um tanto cética a imparcialidade praticada no campo

jornalístico. Investiga em seu caminho a construção do real. Identifica a influência das

estruturas invisíveis da sociedade. Questiona a relação de news e views no espaço dos grandes

veículos de comunicação. Tem em conta o poder simbólico e dos agentes sociais na grande

mídia. E discute a legitimidade das formas de construção e expressão do conhecimento,

apontando desta forma um caminho que enaltece a compreensão, um caminho nada novo,

porém, mais atual e mais necessário do que nunca.

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Mostra como o ensaio se propõe a tecer sentidos e gerar conhecimento nos mais

diversos campos do saber. Um formato que busca produzir significados e articular

alguma ordem possível no caos da vida e do mundo, por meio das narrativas de vida, sempre

essenciais ao homem.

Um gênero e ao mesmo tempo um método que se utiliza do conhecimento adquirido

por meio da experiência, da observação e do entendimento das diversas visões de mundo que

nos cercam. Um formato que busca o equilíbrio entre razão e emoção.

A proposta não é enfrentar os cientistas e tampouco os filósofos, mas validar a crença

de que todos, incluindo artistas e todos os sábios, podem andar juntos, de mãos dadas,

dialogando com suas visões. Juntos eles são mais potentes.

Pretende-se mostrar e identificar as características que diferenciam o ensaio de outros

gêneros de produção de informação de atualidade e de construção do conhecimento. Uma

alternativa ao excesso de aspas dos textos, à ditadura das fontes, ao recorte frio e superficial

dos fatos, às entrevistas feitas por telefone, à agenda das redações. Uma rota de fuga desse

mundo frio e gélido da notícia superficial ou irrelevante que atrofia o nosso cérebro.

Alguns perguntarão onde está a novidade, ou aonde se quer chegar. Para estes, a

resposta pode ser baseada no conceito da incerteza de Edgar Morin, trabalhado em sua obra

Os sete saberes essenciais à edução do futuro. É deixado nas mãos dela tudo aquilo sobre o

que nunca se teve controle, tudo aquilo que não se mede, tudo aquilo que não se define. Para

o autor deste texto, o exercício feito é baseado na coragem de perguntar, de insinuar e pela

ousadia de tentar compreender.

Não é preciso, pois, chegar a lugar nenhum definido. A estrada percorrida pela busca

da compreensão, dialogando com aqueles que reconhecem a sua importância, já é suficiente.

Para você que lê, é pedido que enxergue muito mais os sujeitos do que o objeto deste estudo.

É nas ideias desses homens e mulheres que se encontra tudo aquilo que não pode ser

reduzido, controlado ou definido, mas que pode nos facilitar em nossa jornada de

compreensão, sobretudo, da nossa condição atual.

O estudo sobre o formato, a abrangência e a importância atual do ensaio como

narrativa jornalística constitui o eixo deste texto, que navega de forma quântica e não linear

pelas ideias daqueles que compartilham esse tipo de visão.

Para essa jornada, como pano de fundo teórico, foram abraçadas ideias e visões de

autores que falam sobre os principais aspectos do ensaio, como a narrativa na

contemporaneidade, de Cremilda Medina, o conceito de pensamento compreensivo, de Dimas

Künsch, e o modelo de jornalismo literário avançado proposto por Edvaldo Pereira Lima.

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Integradas a estas ideias estão também as expressões do pensamento complexo de Edgar

Morin e o estudo sobre a estética do ensaio de Josep Catalá, somados às contribuições

advindas dos caminhos trilhados pelo colombiano Raúl Vargas em sua tese de doutorado

sobre a reportagensaio.

Este trabalho contempla, também, uma visitação à obra do precursor do ensaio

moderno, Michel Eyquem de Montaigne, e uma releitura da análise de Theodor Adorno em

“O ensaio como forma”, um levante a favor da dignidade do ensaio produzido em uma época

onde o gênero (já) era marginalizado pela academia.

Um grande caldeirão de ideias, portanto, advindo de interações entre continentes,

épocas e autores que praticaram em suas construções um ato generoso, o ato de compreender.

Pretende-se com este estudo apresentar o ensaio no campo jornalístico como um gênero e

método de construção textual ou imagética de conhecimento contemporâneo. Uma das formas

mais capacitadas a conversar com a crise dos modelos tradicionais de pensamento que

estamos atravessando, levando em consideração toda a incerteza e a complexidade que

cercam essa crise, o ensaio se deixa observar e investigar neste trabalho sob uma perspectiva

dialógica e compreensiva, que constitui, enfim, a perspectiva mais adequada ou aderente à

natureza do próprio ensaio.

No plano metodológico, procede-se, em primeiro lugar, a um estudo aprofundado dos

autores e teorias que servem como base para uma compreensão teórica apropriada do ensaio.

A visita aos ensaios do próprio pai do ensaio moderno, Montaigne, e o estudo aprofundado de

alguns desses ensaios serve como base empírica de sustentação de toda a teoria antes

mencionada. Em outro momento deste trabalho são destacadas as características que

diferenciam o ensaio de outros métodos e gêneros de construção de conhecimento no campo

do jornalismo. Em seguida identificamos o papel e o lugar do ensaio na atualidade,

trabalhando com textos de autores contemporâneos para demonstrar na prática as marcas do

ensaio. Por fim é apresentada uma tentativa de fluxograma de construção de um ensaio

jornalístico.

Esta dissertação de Mestrado, apresentada à linha “Produtos midiáticos: jornalismo e

entretenimento” do Mestrado em Comunicação da Faculdade Cásper Líbero, está estruturada

da seguinte maneira: No capítulo 1, a ideia foi apresentar o pai do ensaio moderno,

Montaigne. Trataremos de alguns textos dele e falaremos sobre sua forma e método de escrita.

Também nesse capítulo serão apresentadas algumas visões do que vem a ser o ensaio do

ponto de vista de pesquisadores, jornalistas e escritores como Adorno, Català, Künsch, Lima e

Vargas.

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No capítulo 2, serão abordadas as características que são identificadas no ensaio. Na

sequência, apresentaremos o conceito de pensamento compreensivo de Dimas Künsch e as

ideias de pensamento complexo de Edgar Morin dialogando com a estética do ensaio na visão

de Josep Català. Apresentaremos também um pouco da pesquisa de Raúl Osorio e sua tese de

doutorado focada no tema reportagensaio.

No último capítulo, serão mostradas as influências externas que afetam o campo

jornalístico e a importância de se trabalhar com o ensaio para combatê-las. Mostraremos

também como ele se encaixa na era da tecnologia e a aderência que o gênero vem

conquistando em diversos espaços. Na sequência, apresentaremos um método de construção

de um ensaio jornalístico, uma tentativa de identificar as características e o processo para

compor este tipo de texto, tendo como objetivo contribuir para que os próximos a navegarem

por essas águas tenham um norte sobre esse tipo de construção.

Convém repetir, por fim, a hipótese geral que guia o autor em suas buscas: a de que o

ensaio (temos o olhar voltado fundamentalmente para o jornalismo), operando no espaço

gerado pela crítica ao positivismo e às ideias de certeza e verdade, e exercitando-se numa

epistemologia de tipo compreensivo, pode representar um modelo privilegiado, na

contemporaneidade, tanto de produção de conhecimento quanto, igualmente, de expressão

livre, aberta, dialógica, compreensiva, desse mesmo conhecimento. A ideia geradora dessa

busca não é a de rejeição a outros modelos, gêneros ou métodos, e, sim, a de resgate do lugar

e da dignidade do ensaio no concerto amplo das experiências humanas de compreensão da

realidade, do conhecimento, da cultura, da vida.

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CAPÍTULO 1

De Michel de Montaigne a Adorno e aos dias atuais:

uma história de amor e de ódio ao ensaio

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Século XVI, Michel Eyquem de Montaigne, escritor e ensaísta, nasce em 1533 na

França, em Saint Michel de Montaigne. Sua família, de origem rica e muito estimada, tinha

em sua linhagem o avô Eyquem, um grande comerciante de peixes, e seu pai, um defensor do

ideal humanista, prefeito de Bordeaux.

De acordo com Auerbach, na introdução de Os ensaios: uma seleção, na infância, por

influência de seu pai, Montaigne “aprendeu o latim antes do francês; era culto, possuía a

técnica da leitura e lia com critério e sensibilidade” (2010, p.17). Estudou Direito e

posterioriormente tornou-se conselheiro do Parlamento de Bordeaux, onde, anos depois,

seguindo os passos de seu pai, foi por duas vezes eleito prefeito, em 1581 e 1583.

Mudou-se com 38 anos para suas terras em Montaigne, onde começou a se dedicar à

leitura e à reflexão, iniciando o que viria a ser o seu principal trabalho intelectual, a obra

Essays. A coletânea, composta por três volumes, tornou-se pública primeriamente em 1580,

contendo apenas os livros I e II. Somente em 1588, em sua quinta edição, aparece o volume

III. De acordo com Rosa D’aguiar (2010, p.31), em 1595, é publicada uma versão póstuma da

obra contendo as últimas intervenções de Montaigne, organizada por Marie de Gournay,

jovem literata e admiradora do autor.

Ainda segundo Auerbach, o início da produção de sua principal obra partiu da ideia de

“...anotar suas próprias experiências relativas ao que andava lendo, compará-las com o que

havia lido, resgatar outras passagens de leituras precedentes” (2010, p.17).

Em seu processso de construção da obra, buscava compreender o comportamento das

pessoas por meio de suas experiências pessoais e de sua bagagem intelectual adquirida

durante sua vida. Falou de assuntos tão diferentes que iam da “embriaguez” à “inconstância

de nossas ações”. Seus textos apresentavam reflexões de instituições, costumes e dogmas de

sua época, utilizando-se de autores clássicos da Antiguidade, entre eles os gregos, para, por

meio de seus pensamentos, atingir o entendimento de fenômenos cotidianos que despertavam

sua curiosidade. “Desse modo surgiu uma espécie de raciocínio multifacetado sobre o objeto,

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que não teria ido além disso, não fosse o impulso de seu entusiasmo”, conclui Auerbach

(2010, p.17).

Pela auto-reflexão, procurou compreender seus medos e desejos e, consequentemente,

o de seus semelhantes. Mais do que dar respostas, os seus textos elegiam perguntas sobre o

comportamento e a complexidade do homem em sua essência.

Diferente dos “grandes espíritos do século XVI – os promotores do Renascimento, do

Humanismo, da Reforma e da ciência que criaram a Europa moderna” (2010, p.12),

Montaigne não era especialista em nenhuma área. Sua vida profissional não tinha nenhuma

relação com seu trabalho intelectual. Talvez, em função disso, seus textos abrangessem

diversas disciplinas, por não estarem atrelados a nenhuma delas e permitindo-se desta forma a

liberdade de navegar por todas elas. Auerbach, quando levanta a questão “Quais são os traços

característicos do escritor, encarnados pela primeria vez por Montaigne?”, acaba por trazer

como resposta duas características, consideradas por ele como algumas de suas marcas

principais:

(...) falta de especialização e de método científico. Ambas são percebidas apenas pelo fato de que as obras do escritor tratam de objetos do conhecimento que antes costumavam ser analisados de forma metódica exclusivamente por especialista. A quebra da especialização nos principais campos do saber fora preparada pela Reforma; nesses aspectos, as obras reformistas na França, em especial a versão francesa da Instituion de la religion chrétienne, são precursoras de Montaige. Os reformadores dirigiam-se aos leigos, pois viam-se obrigados a tanto – os leigos esperavam um esclarecimento que lhes fosse compreensível (2010, p.17).

Montaigne foi o primeiro a escrever sobre temas importantes de forma considerada

leiga, na época, pelos acadêmicos, e a alcançar prestígio, muito embora, na verdade, sua

pretensão não tenha sido de escrever para um público dirigido: ele escrevia “para si mesmo”.

E talvez pela cumplicidade com o humano que perpassava seus textos, outras pessoas

reconheciam neles a marca pessoal e o esforço na busca por uma compreensão, mais

importante do que o fato de ele não ser um especialista em determinado assunto.

Apesar de escrever apenas para si mesmo, com o propósito de se conhecer melhor,

seus textos possuíam uma narrativa que representava sua forma de viver, incorporando até

mesmo uma discussão sobre como seria sua própria morte, um tema este recorrente em sua

obra.

Montaigne não tinha um público definido de leitores. Sua escrita não era nem

direcionada à corte e nem às pessoas comuns ou ao mundo dos ilustrados. Segundo,

Auerbach, Montaigne “escrevia para homens vivos em geral que, como leigos, possuíam uma

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certa cultura e queriam compreender sua própria existência, isto é, para o grupo que mais

tarde veio a se chamar de público culto” (2010, p.13). Em um capítulo de sua obra, cujo título

é “Sobre a experiência” (2010, p. 508-583), Montaigne critica a falta de autoria na produção

intelectual de sua época e questiona a finalidade dos estudos:

Há mais trabalho em interpretar as interpretações do que em interpretar as coisas: e mais livros sobre os livros do que sobre outro assunto: não fazemos mais que glosar uns aos outros. Tudo fervilha de comentários, mas de autores há grande escassez. O principal e mais famoso saber de nossos séculos não é saber compreender os sábios? Não é essa a finalidade comum e última de todos os estudos? (MONTAIGNE, 2010, p. 515).

O ensaísta francês também refletia sobre seus estudos e sobre os textos que escreveu,

destacando a liberdade que o formato ensaio permite. Em sua construção, ele tratava de

questões que viveu e experimentou, e esse tema acabava por se tornar inesgotável, por acabar

se revirando sobre si mesmo. Ele era a ideia, a perspectiva, a voz, o pensamento e a reflexão

em busca da compreensão.

Como quem se defende, ao falar sobre a liberdade de seus textos e sobre a infinidade

de assuntos que podem existir dentro da cabeça de um único homem, ele argumenta que o seu

processo de criação e estilo de texto se faz possível por ele escrever sobre suas próprias

experiências e reflexões: “ ...não sei se aceitarão minha desculpa de que devo ter nisso mais

liberdade que os outros porque, justamente, escrevo sobre mim, e sobre meus escritos e sobre

minhas outras ações, já que meu tema se revira sobre si mesmo” (MONTAIGNE, 2010, p.

516).

Um dos ensaios mais conhecido e comentado de Montaigne é, por obra do destino,

sobre os índios do Brasil, tratados na época por outros escritores como os selvagens e

bárbaros do Novo Mundo. O texto, de tão marcante, futuramente iria inspirar personalidades

como Shakespare e Rousseau. Com o título “Sobre os canibais”, o pai do ensaio moderno

produz um relato, em forma de reflexão, considerado ao mesmo tempo provocador e

paradoxal, enfatizando as características antropofágicas e poligâmicas do seu “sujeito” de

estudo.

É possível perceber, nas entrelinhas, uma fascinação pela coragem e virtude dos

guerreiros das tribos brasileiras, uma reflexão sobre a cultura e a crença de um povo que só

conseguiu ser percebida por alguém que se propôs a compreender ao invés de tentar explicar e

definir, constituindo essa uma das principais marcas do ensaio. Para produzir esse material,

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Montaigne pesquisou, além de diversos relatos sobre a conquista do então chamado Novo

Mundo, visões sobre pessoas próximas que fizeram parte dessa aventura.

De acordo com Rosa Freire D’aguiar, que foi quem traduziu e produziu as notas da

edição brasileira do livro Montaigne: os ensaios, um dos relatos que poderia ter maior

influência na visão do ensaísta francês foi o do escritor “Girolamo Benzoi, Historia del

mondo nuovo (Veneza, 1565), na tradução francesa de 1579, obra que enfatizava o terrível

tratamento dado aos nativos pelos conquistadores”.

Montaigne inicia seu ensaio mostrando a sua visão contrária aos que chamavam na

época os indíos brasileiros de bárbaros e selvagens. Como características de seu processo de

construção de texto, ele enfatiza a importância de ter uma visão crítica sobre os assuntos, não

se deixando influenciar pelas vozes da maioria. Em suas palavras, “devemos evitar nos ater às

opiniões correntes e como devemos julgá-las pela razão, não pela voz do povo”

(MONTAIGNE, 2010, p.141).

Em seu relato é percebido também uma crítica às colonizações feitas pelos povos do

Primeiro Mundo, sobre a ganância e a necessidade de conquistas do homem: “Receio que

tenhamos os olhos maiores que a barriga, e mais curiosidade que capacidade. Tudo

abraçamos, mas só vento agarramos” (MONTAIGNE, 2010, p.141).

Montaigne apresenta como uma das suas principais fontes para a construção de seu

texto sobre os canibais um homem próximo a ele que viveu por mais de uma década no

Brasil. Segundo o ensaísta, sua confiança no relato dessa pessoa próxima se dava pelo fato de

ele o ter apresentado a outros marinheiros que o acompanharam na mesma viagem, mas,

principalmente, por ser um homem muito simples. Sua simplicidade, segundo Montaigne, era

sua prinicipal credencial para seu testemunho, pois este não teria nenhum ganho em mascarar

ou aumentar a verdade, diferente do que ele achava das pessoas mais cultas, as quais, para

fazer com que a história lhes fosse favorável, acabavam por aumentar ou estender a mesma,

resultando em inverdades:

Esse homem que eu tinha era homem simples e rústico, o que é condição própria a tornar verdadeiro o testemunho, pois as pessoas finas observam com bem mais curiosidade, e mais coisas, mas glosam-nas, e para fazerem valer sua interpretação e convencer não conseguem deixar de alterar um pouco a história: nunca nos relatam as coisas puras; curvam-nas e mascaram-nas para adequá-las aos próprios pontos de vista... (MONTAIGNE, 2010, p. 144).

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O ensaísta francês defendia que era melhor que todos compartilhassem um pouco de

sua experiência sobre tudo o que se conhece e se domina, de forma pessoal e verdadeira, para

que dessa maneira as diversas visões do todo pudessem ser compartilhadas e integradas ao

conhecimento geral. Porém, em seus escritos, alertava sobre o inconveniente de as pessoas

tentarem entender o universo olhando apenas a partir de seus domínios:

Eu gostaria que cada um escrevesse o que sabe e o tanto que sabe, não só sobre isso mas sobre todos os outros assuntos. Pois um homem pode ter certo conhecimento especial ou experiência da natureza de um rio, ou de uma fonte, e só saber do resto o que cada um sabe. Todavia, para discorrer sobre seu pequeno domínio tentará escrever toda a física. Desse vício surgem vários e grandes inconvenientes (MONTAIGNE, 2010, p.145).

Visões, perspectivas e entendimento, conceitos esses que podem ser observados na

citação que vem na sequência, na qual nosso ensaísta mostra um pouco sobre o método e a

atitute epistemológica adotada em seus textos. Ao colocar seu ponto de vista sobre os índios,

mostrando que no caso os verdadeiros bárbaros eram os europeus, Montaigne demostra que a

perspectiva dos outros, usando como ponto de partida apenas aquilo que é de seus restritos

conhecimentos, pode muitas vezes cegar e limitar as pessoas sobre um entendimento maior e

mais amplo das coisas. O que ele propõe em seus textos é um ato ao mesmo tempo generoso e

necessário para qualquer ensaísta, percebido claramente como uma de suas principais marcas

em seu trabalho, o ato de compreender: “Ora, para voltar a meu assunto, e pelo que dele me

contaram, acho que não há nada de bárbaro e de selvagem nessa nação, a não ser que cada um

chama de barbárie o que não é seu costume” (MONTAIGNE, 2010, p.145).

1.1 Visões sobre o ensaio

Todos nós em algum momento ou parte de nossas vidas procuramos por definições, e,

infelizmente ou não, dependendo do grau de evolução de cada um, elas acabam por nos

limitar, engessar e, por que não dizer, cegar. Para evitar esse erro logo no início, prefiro neste

texto, trabalhar com a palavra visões – muito mais compreensiva que conceitos ou definições

– para enxergarmos as perspectivas de diversos autores sobre um mesmo tema. A pesquisa

sobre o gênero e método do ensaio revelou algumas dessas visões, que dialogam de perto com

a perspectiva defendida nesta dissertação sobre o que vem a ser o ensaio.

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No dicionário Michaelis, por exemplo, “ensaio” tem o sentido de uma prova, uma

experiência, uma análise. Uma tentativa de discurso sobre algo. Apresentação de um

determinado assunto seja ele filosófico, científico, histórico ou de teoria literária,

caracterizado pela síntese e pelo tratamento crítico. Já a palavra essay deriva do infinitivo

francês essayer, que quer dizer tentativa. Em inglês essay significa, primeiramente, uma

experimentação, um sentido alternativo.

Já no capítulo “O ensaio como forma” (2003), Adorno identifica algumas

características do ensaio, utilizando como exemplo o trabalho do pai do ensaio moderno, em

suas palavras: “O grande Sieur de Montaigne talvez tenha sentido algo semelhante quando

deu a seus escritos o admiravelmente belo e adequado título de Essais” e continua:

Pois a modéstia simples dessa palavra é uma altiva cortesia. O ensaísta abandona suas próprias e orgulhosas esperanças, que tantas vezes o fizeram crer estar próximas de algo definitivo: afinal, ele nada tem a oferecer além de explicações de poemas dos outros ou, na melhor das hipóteses, de suas próprias ideias (ADORNO, 2003, p. 25).

Adorno acrescenta ainda que o ensaio “não segue as regras do jogo da ciência e das

teorias organizadas, segundo as quais, diz a formulação de Spinoza, a ordem das coisas seria o

mesmo que a ordem das ideias” (2003, p.25). A partir disso é possível observar que o ensaio

procura evitar, em seu processo de construção, um formato fechado e conclusivo de

pensamento. “Ele se revolta, sobretudo, contra a doutrina, arraigada desde Platão, segundo a

qual o mutável e o efêmero não seriam dignos da filosofia” (ADORNO, 2003, p. 25). A vida é

inconstante e para muitos, muito breve: como não fisolofar sobre algo inerente à nossa

espécie? Tudo o que construímos, pensamos e interpretamos está sempre se transformando. Ir

contra isso é ir contra a nossa natureza.

É importante contextualizar que, durante a concepção desse trabalho de Adorno, ele e

Walter Benjamin, na época, eram muito próximos, e que, um pouco antes da produção de “O

ensaio como forma”, Benjamin, segundo o professor Raúl Vargas, em conversa1 coletada

durante a Banca de Exame de Qualificação deste trabalho, “recebeu muitas críticas na

academia quando apresentou, em sua tese, a forma de pesquisar em ‘constelações’. Benjamin

descobre naquele momento um método similar ao que descobre na literatura o Julio Cortázar,

autor de O jogo da amarelinha, de 1963, que é que a vida está feita de pedaços”. Ou seja, a

vida se faz no miúdo, no pequeno, no que passa, e isso deve ser objeto de atenção. É um lugar 1 Gravado com a autorização do professor Raúl Osorio Vargas no dia 15 de nov. de 2014 durante a Banca de Exame de Qualificação deste mestrando.

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privilegiado de conhecimento. No jornalismo, por exemplo, esse tecido da vida cotidiana é o

que há de melhor na constituição das boas reportagens. A experiência cotidiana, as pequenas

coisas do dia a dia constituem a matéria-prima essencial do ensaio. Benjamin estava, naquele

momento, descobrindo uma nova forma de pesquisar, que ia na contramão da ciência

tradicional, provocando desta maneira os intelectuais da época. Esse contexto leva a crer que

Notas Literárias I seria um levante de Adorno contra a corporação acadêmica e seu modelo

de ciência, que, segundo ele,

...só tolera como filosofia o que serve a este com a dignidade do universal, do permanente, e hoje em dia, se possível, com a dignidade do originário; só se preocupa com alguma obra particular do espíriro na medida em que esta possa ser utilizada para exemplificar categorias universais, ou pelo menos tornar o particular transparente em relação a elas (ADORNO, 2003 p.16).

No período em que foi escrito o texto, na década de 1950, o ensaio era visto com maus

olhos na Alemanha, e, de forma bem intensa, Adorno refletiu em sua obra por que os

intelectuais acadêmicos da época tinham essa percepção. Uma das observações, feitas por ele,

era que quem buscava interpretar conceitos era estigmatizado como alguém que tinha em seu

propósito apenas desorientar a inteligência, além de ser definido como um devaneio a sua

busca por entendimento. Na ausência de explicações e definições, a presença constante de

questionamentos sobre temas já “definidos” causavam um mal-estar entre os acadêmicos.

Segundo Adorno:

Na Alemanha, o ensaio provoca resistência porque evoca aquela liberdade de espírito que, após o fracasso de um iluminismo cada vez mais morno desde a era leibniziana, até hoje não conseguiu se desenvolver adequadamente, nem mesmo sob as condições de uma liberdade formal, estando sempre disposta a proclamar como sua verdadeira demanda a subordinaçãoo a uma instância qualquer (ADORNO, 2003 p.16).

Para Adorno, uma das coisas que mais incomodavam a corrente contra o ensaio era o

fato de que, “em vez da alcançar algo cientificamente ou criar artisticamente alguma coisa,

seus esforços ainda espelham a disponibilidade de quem, como uma criança, não tem

vergonha de se entusiasmar com o que os outros já fizeram”.

Seu texto mostrava que o ensaio, por não precisar partir de nada, poderia falar sobre

aquilo que desejasse, partindo de qualquer lugar. Se, em essência, o espírito é livre, por que

encarcerá-lo nas grades do pensamento tradicional?

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Seus conceitos não são construídos a partir de um princípio primeiro, nem convergem para um fim último. Suas interpretaçoes não são filologicamente rígidas e ponderadas, são por princípio superinterpretações, segundo o veredicto já automatizado daquele intelecto vigilante que se põe a serviço da estupidez como cão de guarda contra o espírito (ADORNO, 2003 p.17).

Adorno defende que o ensaio permite criar novas maneiras de interpretar e de

construir conhecimento, constituindo, assim, uma alternativa vigorosa ao tradicional discurso

científico, o qual nem sempre vê com bons olhos tudo aquilo que não é estável, explicativo ou

conclusivo. A vida, assim como aquilo que chamamos de verdade, não pode ser determinada

apenas pelo método científico. Sendo a vida mutável e incerta, talvez uma forma digna de

compreendê-la seja mesmo aceitar que ela está em constante movimento e em permanente

transformação. O ensaio não trabalha com a ideia de completude, perfeição, certeza. Ele faz

do movente o objeto principal de suas preocupações, no ritmo da própria vida. Ele não quer

dizer uma última palavra sobre nada, porque nem última palavra existe para ser dita:

No ensaio como forma, o que se anuncia de modo inconsciente e distante da teoria é a necessidade de anular, mesmo no procedimento concreto do espírito, as pretensões de completude e de continuidade, já teoricamente superadas. Ao se rebelar esteticamente contra o método mesquinho, cuja única preocupação é não deixar escapar nada, o ensaio obedece a um motivo da crítica epistemológica. A concepcão romântica do fragmento como uma composição não consumada, mas sim levada através da auto-reflexão até o infinito, defende esse motivo anti-idealista no próprio seio do idealismo. O ensaio também não deve, em seu modo de exposição, agir como se tivesse deduzido o objeto, não deixando nada para ser dito (ADORNO, 2003, p. 34).

Josep Català, professor e pesquisador espanhol, publicou recentemente o livro Estética

del Ensayo (2014), no qual faz uma reflexão sobre o ensaio, em especial o filme-ensaio,

destacando o seu formato e seu papel na sociedade contemporânea e deixando claro o motivo

que o fez se aprofundar em sua pesquisa nesse campo:

Mi voluntad al escribir este libro ha sido reflexionar sobre el nuevo imaginario que el ensayo fílmico pone de manifiesto y cuya dramaturgia se apoya en una necesaria alianza entre formas lingüísticas y formas visuales. Creo que no es muy aventurado afirmar que es a través de esta crucial hibridación como se están formando las futuras mentalidades (2014, p. 23).

Català destaca a importância do ensaio na atualidade, ressaltando a combinação de

autobiografia, autorreflexão e estilo sedutor e sua aliança entre arte e ciência. Segundo ele o

ensaio se apresenta hoje como “el modo más adecuado para recuperar para la imaginación

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compleja una exuberancia ornamental ahora plenamente creativa” (2014, p. 11). Em seu

livro, Català apresenta uma visão de ensaio com a qual ele também compartilha. Essa visão

foi encontrada por ele no prólogo do livro The Best American Essays (2007), onde são

enfatizadas as características do vigor, da sedução e da reflexão. Característcas que acabam

por diferenciar esse gênero e método de outros:

Una de las definiciones más precisas del ensayo literario se puede encontrar, sorprendentemente, en el prólogo de una antología de ensayos norteamericanos. Según su autor, los ensayos son “autobiográficos, autorreflexivos, estilísticamente seductores, intricadamente elaborados y promovidos más por presiones literarias internas que por situaciones externas” (CATALÀ, 2014 p. 11).

Dimas Künsch e Renata Carraro, no XXXIV Congresso da Intercom (Recife,

setembro de 2001) apresentaram o artigo “A comunicação sob o signo da compreensão: o

protesto do ensaio contra a chatice e a arrogância do discurso científico dominante”, um texto

que, como deixam claro os próprios autores desde a introdução, se erige sob a moldura teórica

do que eles chamam de Signo da Compreensão. Nesse artigo, que foi publicado depois na

revista Líbero (2012, p.1), o ensaio é apresentado como um gênero textual que pode constituir

uma alternativa ao excesso de rigor dos textos científicos, considerados, em geral, por

estudantes da academia como tristes, desencantados e, por que não dizer, chatos. Há

dificuldade na interpretação das ideias, que em sua maioria vêm acompanhadas de certezas e

definições, muitas vezes incompatíveis com o objeto ou sujeito de estudo, sem falar na

perceptível ausência de vigor, ausência de espírito, ou alma, nas teses, artigos e dissertações,

inclusive no campo da comunicação. Uma comunicação que, paradoxalmente, não comunica:

O presente texto ocupa-se criticamente com o modo dominante de produção dos discursos científicos. Esses discursos podem não ser tristes, monótonos ou de difícil compreensão. A ausência de vigor não se preenche com o simples recurso às ideias de verdade, certeza e rigor. O ensaio assume um distanciamento crítico frente ao modelo duro, universalista e abstrato de expressão do conhecimento científico. Rejeita a falsa oposição entre erudição e clareza de pensamento. E assume o próprio ensaio como gênero textual que deriva sua força de uma atitude cognitiva alimentada pelo signo da compreensão (CARRARO e KÜNSCH, 2012 p.1).

Os autores, na esteira do pensamento de Adorno, destacam também que o ensaio

possui características marcantes, como o dinamismo, a sutileza e a liberdade, com parentesco

com a retórica – características essas que são essenciais a derrubada das bandeiras do rigor, da

verdade e da certeza, hasteadas, sempre com muito orgulho, pelos seguidores do discurso

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puramente científico, os quais marginalizam o conhecimento tácito, o ato da compreensão,

recusando-se a admitir que o mundo é incerto, efêmero e mutável.

Linda bandeira! Quem ousaria questionar seu estatuto epistemológico? O rigor nesse modelo de ciência, assume uma curiosa semelhança com certas receitas caseiras excelentes contra todas as doenças possíveis e imagináveis, algo assim como uma espada da justiça a ser brandida contra qualquer espécie de inimigo. Inclusive os inimigos que a fantasia humana molda à imagem e semelhança da necessidade de acobertar os limites a que estamos sujeitos (CARRARO e KÜNSCH, 2012 p.34).

Na visão do escritor, educador e jornalista Edvaldo Pereira Lima, o ensaio constitui

um gênero do Jornalismo Literário, em função de todas as características que ele possui, como

a imersão, a marca pessoal do autor e a busca da compreensão por meio de uma visão mais

complexa sobre os temas. Em entrevista2 a este autor, quando questionado se o ensaio

constituía um gênero ou um método, Lima responde:

Eu considero um gênero, eu considero o perfil um gênero, eu considero o jornalismo literário de viagem um gênero, o texto de memórias quando trabalhado em formato de Jornalismo Literário um gênero, eu não chamo de subgênero não. Eu chamo de gênero, pois eles têm especificidades muito claras, mas mantém uma matriz de conexão com o básico do Jornalismo Literário. O básico do Jornalismo Literário é a busca da compreensão complexa, mesmo intuitivamente, mesmo os autores mais antigos que não tiveram estudos acadêmicos nesse campo, mas intuitivamente, eles estavam em busca de uma leitura complexa do real. Eles partiram para a narrativa do real, muito abertos a tentar compreender a interação entre diversos fatores, diversas correntes de força que moldam o acontecimento, e eles, pela genialidade de alguns deles, se abriram para captar esse entendimento através do racional e também através de outros canais de percepção, através da emoção, da intuição. Então, para mim, uma coisa essencial que está na matriz do Jornalismo Literário é a busca da compreensão do mundo sob uma ótica complexa, seja de uma maneira meio intuitiva, meio empírica, ou de uma maneira mais estruturada nessa nova geração de pensadores, pesquisadores e praticantes... Então, essa complexidade está em todo o Jornalismo Literário. A questão da imersão é essencial para todos os gêneros, a questão da humanização, de colocar a narrativa filtrada pela figura humana é essencial. No caso do Ensaio Pessoal, o autor está em busca de uma autocompreensão diante de um fenômeno que lhe aconteceu na vida, então isso vai exigir que uma marca do ensaio pessoal seja o protagonismo. Então, é uma narrativa de Jornalismo Literário com as características essenciais, porém com uma dose essencial de protagonismo.

Em seu livro Páginas Ampliadas (2009), Lima divide o ensaio em dois tipos: o formal

e o informal. No primeiro, segundo ele, está centrada a razão, tratada de forma impessoal com

2 O texto completo da entrevista encontra-se no Anexo 3 .

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a finalidade de achar um entendimento, usando o raciocínio de forma metódica e objetiva,

abordando os assuntos didaticamente. Já no segundo, existe mais espaço para a subjetividade,

que pode ser tratada de forma mais ampla, sem um método específico. Ambos têm, no

entanto, o mesmo objetivo: a busca pela compreensão.

O ensaio pessoal exige, portanto, muita coragem do autor. Disposição para despir-se por inteiro para o leitor. A humanização que se destaca nesse caso é a do próprio escritor, sua vulnerabilidade diante de acontecimentos sumamente tocantes. Revela-se frágil ou tomando consciência de seus limites, diante dos paradoxos da vida. Ele é o protagonista da sua própria história, mas não a conta, apenas. Filosofa. Mas faz isso de um patamar de necessidade orgânica profunda. O movimento para expor seu mundo interior procede das entranhas. A cura vem pela exposição (LIMA, 2006, p. 432).

Um exemplo de ensaio como forma de cura pode ser observado no livro O Ano do

Pensamento Mágico. A autora, Joan Didion, expõe a dor da perda de seu marido e a relaciona

com pesquisas e artigos sobre o assunto, navegando pelo subjetivo e objetivo sobre a dor da

morte de um ente querido. Apresenta, de forma rica, suas sensações e sua dor pessoal por

meio de descrições detalhadas de sua própria experiência mescladas a opiniões de

especialistas da área da medicina e da psiquiatria. Na obra, Didion procura, por meio da

narrativa, a compreensão do fato, uma forma de cura, uma forma de alívio possível para o

momento difícil que atravessava:

A dor causada por esta perda é diferente. O sofrimento não pode ser medido em instâncias. Ele vem em ondas, como num acesso, um ataque, em súbitas apreensões que enfraquecem os joelhos, cegam os olhos e transforma o cotidiano da vida da gente. Quase todos os que já vivenciaram uma perda deste tipo mencionam este fenômeno de “ondas”. Eric Lindermann, chefe do setor de psiquiatria do Massachusetts General Hospital na década de 1940 entrevistou muitos parentes de pessoas que morreram no incêndio de Coconut Grove, em 1942, e conseguiu definir muito especificamente o fenômeno num célebre estudo de 1944: “Sensações de tristeza somatizada que ocorrem em ondas, com duração de vinte minutos a uma hora a cada vez, sensação de aperto na garganta, de falta de ar por causa da respiração curta, necessidade de suspirar e uma sensação de vazio no abdome, falta de energia muscular e uma intensa tristeza subjetiva descrita como tensão ou sofrimento mental”. Aperto na garganta. Falta de ar, necessidade de suspirar (DIDION, 2006, p. 30).

Català, em seu mais recente estudo, a obra já citada (2014), trata o ensaio como um

modo de exposição do pensamento, também explorando o tipo de divisão citado por Lima,

que o separa em formal e o informal, ressaltando suas principais características:

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Lopate, manteniéndose en el ámbito literario, propone seguir con una tradicional división entre ensayo formal y ensayo informal. El ensayo formal, como indica el autor, no puede distinguirse prácticamente de aquella expresión teórica en prosa para la que el efecto literario mantiene una posición secundaria con respecto a la seriedad del propósito principal. No habría, pues, mucha diferencia entre un ensayo formal y un tratado...Por el contrario, el ensayo informal es mucho más interesante y la definición que recoge Lopate del mismo amplía considerablemente la que estábamos manejando. Según él, el ensayo informal se caracteriza por “los elementos personales (autorrevelación, gustos y experiencias individuales, forma confidencial), el humor, el estilo brillante, una estructura indefinida, una temática nueva poco convencional, la forma original, la ausencia de rigideces o afectaciones, el tratamiento incompleto o tentativo de un tema (CATALÀ, 2014, p. 15).

Raúl Vargas, doutor, professor e pesquisador colombiano, em trabalho sobre a Revista

Reportagensaio apresentado durante o XXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da

Comunicação (Rio de Janeiro, setembro de 2005), descreve o processo de criação e produção

do ato de narrar histórias no formato ensaio:

O ensaio é a forma de nosso tempo e a janela que nos deixa ver a luz. Através dele podemos conferir a claridade e a escuridão. Luz que ilumina o espírito. Pólos opostos, múltiplas significações que nos levam pelo caminho da contradição razão- sentimento, inteligência-sentidos, para depois nos colocar na complexa e mágica realidade cuja história não é para ser acreditada, mas para ser compreendida. O ensaio denuncia o poder e as injustiças e traz à tona a memória do imaginário e do imaginado (VARGAS 2005 p.7).

Quando questionado se o ensaio seria um gênero ou um método, Vargas, em entrevista

realizada pelo autor desta dissertação, afirmou que o ensaio além de um gênero é ao mesmo

tempo um método “porque é um caminho para a construção de conhecimentos nas ciências

humanas e sociais”3

1.2 Do ensaio pessoal para o ensaio jornalístico

A passagem do ensaio pessoal para o jornalístico se dá no momento em que o ensaio

passa a incorporar aqueles elementos que são historicamente componentes da natureza do

jornalismo, como, por exemplo, a atualidade. O fato é que o tempo do jornalismo é sempre o

tempo presente.

3 O texto completo da entrevista encontra-se no Anexo 3.

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Outra característica que diferencia o ensaio pessoal do jornalístico é a mediação feita

das múltiplas perspectivas, de acordo com a pauta escolhida, incorporadas durante a

construção do texto, sejam elas vozes de especialistas, histórias de vidas, testemunhos,

documentos, entre outros, levantadas durante uma apuração polifônica, sem deixar de lado a

percepção e a experiência pessoal do autor sobre o assunto.

Na elaboração de um ensaio jornalístico é, também, de imensa importância que o

jornalista não se desvie de seu propósito inicial, que é a objetividade – no sentido de

referência ou adequação aos fatos. Limitar-se apenas ao universo da observação e reflexão,

sem se amparar com rigor nos métodos de captação investigativa, pode implicar na falta de

racionalidade e em um texto fechado e sem diálogos, características estas que não

contemplam a essência de seu propósito inicial.

Künsch, no livro Comunicação: saber, arte ou ciência (2008), do qual foi um dos

organizadores, no trecho que discute o tema da linguagem e da compreensão, destaca a

importância da responsabilidade e do rigor também no campo do signo da compreensão,

chamando a atenção para os perigos que a ausência irresponsável da razão pode trazer para a

humanidade:

[...] a atitude intelectual e humanamente compreensiva, no caso específico do conhecimento científico, não exime os sujeitos da responsabilidade de cuidar bem, e com rigor, de quanto tem a ver com os modos de investigação de seus objetos, as metodologias e as teorias que sobre eles se debruçam, nos múltiplos campos e disciplinas. Ao propor a procura incessante da primazia da comunicação sobre a incomunicação no universo dos saberes, o Signo da Compreensão tem consciência de que não pode ser julgada fértil uma razão fechada ao diálogo intelectual e intersubjetivo. Do mesmo modo como o abandono da razão e o puro desleixo frente ao apelo à objetividade, com a consequente entrega de si mesmo aos impulsos incontroláveis da parte não racional do ser humano, tendem a arrastar esse mesmo ser humano para o planeta conhecido da irracionalidade, da violência e da morte (KÜNSCH, 2008, p. 191).

Com o auxílio de todas essas visões, podemos concluir provisoriamente, de forma

complexa, que o ensaio é ao mesmo tempo uma forma ou gênero de escritura e expressão do

pensamento, um método de construção de conhecimento, um gênero textual do jornalismo

literário e um modo de exposição das camadas da realidade, ela mesma complexa. Como

podemos ver, o ensaio é tudo, menos simplista.

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CAPÍTULO 2

Notas sobre o ensaio

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Há diversos tipos de ensaio, como: o ensaio pessoal, o ensaio literário, o filme ensaio e

o ensaio fotográfico, entre outros. Cada um deles, em seu respectivo hábitat, se assim pode ser

chamado, tem em sua estética e poética características singulares e próprias de seu universo.

Mas todos têm, em sua essência, um processo de construção de narrativa que nasce da

reflexão e da articulação entre as ideias pelas quais o autor navega durante sua concepção.

Nesse processo, o ensaísta faz com que os diversos tipos de saberes ao seu redor

dialoguem. Ele parte do ponto de vista da complexidade, “em uma busca de conhecimento

que sabe tecer e entretecer sentidos” que dialoga com diferentes metodologias e perspectivas

teóricas, o qual “traz para a rede de conversação também os mitos, as religiões, as artes, as

filosofias, os saberes comuns... e as sabedorias” (KÜNSCH, 2010, p. 17).

As mais diferentes vozes, têm, nesse formato, espaço para serem ouvidas.

Complexidade e polifonia. Temas que fazem parte do pensamento de tipo compreensivo, o

qual tem como missão reunir, abraçar e integrar.

O pensamento compreensivo entende ser possível ir além, no movimento da roda empurrada pelas mãos de quantos, por caminhos às vezes muito diversos, se põem à procura do que julgam poder interessar à vida e ao futuro da comunidade humana. O conhecimento humano resulta, pois, nesse sentido, de um empenho comunicativo-compreensivo. Mais: a pluralogia acrescenta, soma. O desprezo, a arrogância, o preconceito, o etnocentrismo, o reducionismo e outros vícios, não. Mutilam. Empobrecem a compreensão do mundo. (KÜNSCH, 2008, p. 183).

Podemos destacar dois tipos mais significativos de compreensão: a compreensão

intelectual e a compreensão humana. Nas palavras de Künsch, “o primeiro é de tipo

intelectual, cognitivo, objetivo, enquanto o segundo vê a compreensão em sua relação com a

intersubjetividade e os vínculos humanos” (2008, p. 188).

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Ambos os sentidos são essenciais para o ensaio. É desse equilíbrio entre conhecimento

e sabedoria, objetivo e subjetivo, que se constituem as partes mais importantes da receita, se é

que esta existe, de construção do conhecimento por meio de um formato ensaístico:

(...) um e outro sentido de compreensão é melhor que sejam buscados em suas mútuas interconexões, na linha de quanto se veio afirmando a respeito nos parágrafos anteriores. Não por último, como assinalado, há o desafio antigo da “ciência com consciência” (Rabelais), da articulação entre conhecimento e sabedoria (KÜNSCH, 2008, p. 188).

Català, em seu artigo “Notas sobre el método” (2011), fala sobre o resultado da

combinação entre conhecimento e saber, os quais podemos relacionar diretamente com os

tipos de compreensão já mencionados, a compreensão intelectual e a compreensão humana,

respectivamente. O resultado da combinação de ambas é o que ele chama de realidade, em

suas palavras: “La ciencia produce conocimiento, la interpretación produce saber. La realidad,

cualquier realidad, desde la física a la social o la estética, está compuesta por una

combinación de conocimiento y saber” (CATALÀ, 2011, p. 10).

Com esse equilíbrio espera-se o enriquecimento do diálogo entre diversos tipos de

saberes, entendimentos e interpretações de mundo, um diálogo que procura abraçar e não

excluir ou condenar, “a competência do especialista nem o espaço da disciplina, mas os

integra numa arena mais ampla de conversação” (KÜNSCH 2008, p. 188).

Na estrutura metodológica e no gênero textual do ensaio, observa-se uma forma de

busca pela compreensão dos significados que aquilo que se escreve tem para quem o faz, que

pode ser diferente para todos os outros que têm acesso a essa produção. Cada qual, com sua

própria experiência, faz sua leitura particular, e cada leitura permite uma nova forma de

compreensão, tornando-se amplos e, por que não dizer, infinitos os pensamentos sobre as

questões que nos cercam.

O ensaio exige, ainda mais que o procedimento definidor, a interação recíproca de seus conceitos no processo da experiência intelectual. Nessa experiência, os conceitos não formam um continuum de operações, o pensamento não avança em um sentido único; em vez disso, os vários momentos se entrelaçam como num tapete. Da densidade dessa tessitura depende a fecundidade dos pensamentos. O pensador, na verdade, nem sequer pensa, mas sim faz de si mesmo o palco da experiência intelectual, sem desemaranhá-la. (ADORNO, 2003, p. 30).

Um exercício feito para esta dissertação foi reler os principais ensaios de Montaigne.

A cada nova leitura, seu trabalho se transformou em novas visões sobre temas já conhecidos.

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A releitura ampliou o campo de percepção devido às novas experiências adquiridas tanto no

campo acadêmico quanto no pessoal. Dessa forma, outros significados emergiram.

Esta forma de se expressar tem o poder iluminador das várias vozes, da combinatória e constelação de sentidos e sentimentos. A escritura da reportagensaio é feita de sinais inumeráveis: flagrantes, participação na vida do próximo, movimentação da lembrança de um passado que continua e se suspende na instância privilegiada de nossa relação com o mundo (VARGAS, 2005, p. 7).

Por não se tratar de um texto fechado e de viés apenas explicativo, seu formato

permitiu ao autor desta dissertação dialogar com um pensador do século XVI sobre temas

ainda muito atuais, fazendo agora com que este reflita sobre outros pontos de vista, levando

em consideração as estruturas, os objetos significativos às interpretações do autor e seu modo

de exposição dialógico e polifônico. Talvez essas características são as que mais seduzem e

surpreendem no gênero ensaio. Talvez, como descreveu Català em “Notas sobre el método”

(2011), devido a essas particularidades, o ensaio seja atualmente o formato de exposição mais

adequado à fenomenologia complexa contemporânea, como estamos apresentando nesta

dissertação.

En líneas generales, podemos afirmar que la forma ensayo, de una larga tradición que se remonta a Montaigne, adquiere ahora una especial relevancia al mostrarse como el modo de exposición más adecuado a la fenomenología compleja contemporánea. Su ductilidad, su capacidad por establecer relaciones entre elementos diversos, su apertura al imaginario, su intensidad expresiva, etc., todo ello hace del modo ensayo una forma discursiva equivalente a la propia textura de la realidad que se quiere estudiar (CATALÀ, 2011, p. 11).

2.1 Uma forma de exposição do pensamento

Català, em seu artigo, reflete sobre os tipos de dispositivos epistemológicos e sobre as

novas alternativas ao pensamento mecanicista e reducionista. Leva em consideração os

fenômenos complexos existentes hoje, na era da globalidade e sugere uma mudança na forma

de pensar: uma verdadeira reforma do pensamento, como propõe Edgar Morin (2005) sobre a

teoria ou a ciência da origem, a natureza e os limites do conhecimento. Català acredita que

aqueles que negam a possibilidade da verdade absoluta deveriam ser os mais capacitados para

mediar a discussão sobre o real. Uma epistemologia mais interessada na sutileza do que na

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certeza, em que a estética do modo de exposição dessa teoria do conhecimento se mostra

muito próxima ao nosso objeto de estudo, o ensaio.

No artigo, “Modelo Mental e metodologia de análise de imagem na grafitecidade”,

apresentado no 8º Interprogramas de Mestrado, da Faculdade Cásper Líbero, de 2012, o

professor, pesquisador e mestre em Comunicação pela mesma instituição, José Geraldo de

Oliveira, faz uma análise sobre o modelo mental de Català, destacando as possibilidades da

proposta de transdisciplinaridade para a construção de conhecimento no modo compreensivo:

O que parece de grande importância nessa proposta é o processo em si, o caminho que se percorre, as articulações que faz e o processo na geração do conhecimento, pois a transdisciplinaridade propõe criar “pontes de conhecimentos”, ou seja, aproveitar o que cada disciplina oferece para estudar determinado assunto, somando a outros, para criar novas perspectivas rumo ao conhecimento. (OLIVEIRA, 2012, p. 4).

Em seu trabalho, Català (2014) esboça, como hipótese, um modelo mental de

complexidade, o qual em sua estrutura contém: 1) Constelações: conjunto de elementos que

compõem parte de uma arquitetura comum, tendo como exemplo os conceitos e ideais

visualizados; 2) Redes: uma constelação que estabelece vínculos para a navegação; 3)

Circulações: trânsitos que se estabelecem pelas redes. Estéticos, psicológicos, econômicos,

sociais ou culturais; 4) Transformações: mutações que acontecem por meio das circulações,

redes e até mesmo constelações; 5) Camadas: camada de significados e síntese; 6)

Transposições: variações e trocas dentro de um esquema descontínuo, mas harmonioso.

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Figura 1 – Modelo mental de Català (2011).

Oliveira, em sua interpretação do modelo de Català, destaca a presença de métodos

para a construção de uma investigação, seja no campo da racionalidade, seja no campo da

subjetividade. Deixando aparente a necessidade da presença de outras formas de construção,

diversas possibilidades e, por que não dizer, novos caminhos:

Toda investigação parte, consciente ou inconscientemente, de um modelo mental que organiza e propõe as suas prioridades e se constrói segundo características de um modelo mental determinado. Portanto, para cada modelo é preciso uma metodologia ou “uma série” de metodologias em que o objeto e os métodos convirjam rumo a um novo campo (OLIVEIRA, 2012, p. 3).

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Em consequência dessas estruturas, são estabelecidos o que Català chama de Objetos

Significativos ou objetos de estudo das estruturas dos fenômenos anteriores. Fazem parte

desses objetos: 1) Símbolos: culturais e ativos representados por pessoas, filmes ou

personagens; 2) Sintomas: indicação perceptível de um fenômeno de amplo alcance, o qual

gera tendências políticas e culturais; e 3) Imagens dialéticas: que se contrapõem e dialogam

no desenvolvimento de um pensamento.

Uma vez delimitados esses objetos, inicia-se a interpretação, começando, da

perspectiva do autor, a investigação propriamente dita. Mostra-se não só possível, como

necessário, encontrar diversas maneiras para desenvolver o ato de compreender, utilizando-se

de métodos da psicanálise ou psicanalíticos, desconstrutivos e/ou hermenêuticos.

Por fim, escolhe-se um modo de exposição que abrace todas as articulações feitas de

forma transdisciplinar em busca da construção de conhecimento. Para essa missão, Català

sugere um em especial:

Por fin, será necesario determinar el modo de exposición de todo el proceso, que en realidad tendrá qué ver con la manera en que hayamos desarrollado el proceso mismo. Es decir, puede que la investigación se desarrolle a través de una forma de escritura (por ejemplo, el ensayo), pero ésta, para ser efectiva, deberá moverse por entre la geografía conceptual que hemos propuesto o la que la sustituya (CATALÀ, 2011, p. 4).

2.2 O pensamento complexo e o simplista

Vivemos em uma época na qual as pessoas se amparam muito mais na percepção

econômica para resolver os problemas pessoais e do mundo do que em qualquer outro tipo de

percepção. Grande parte de nós tem dificuldade ou simplesmente não quer assimilar que os

problemas enfrentados atualmente são de ordem universal. Isso ocorre em todos os campos e

o da nossa pauta, o jornalístico, não foge à regra. É preciso audiência, de outra forma

viveríamos apenas de poesia, isso é claro. Mas será que nosso pensamento deve se lastrear

apenas em dados, números e índices? E as pessoas? Como quantificar sentimentos,

sensações? Como eleger qual forma de construção ou expressão do conhecimento é válida?

Tudo que foge ao cálculo é eliminado nesse tipo de pensamento estritamente

científico, fazendo com que tenhamos sempre uma ideia simplista e reducionista do mundo.

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Tendemos a homogeneizar tudo, um tipo de Mcdonaldização da sociedade. Isso pode ser mais

bem identificado se observarmos o processo de seleção, apuração e divulgação das notícias.

Na maioria das vezes, o que aparece é um jornalismo focado exclusivamente na audiência.

Para alcançá-la, opta-se por matérias banais ou de pouca relevância, com uma dose maior ou

menor de espetacularização. O que se busca é atingir o maior número de pessoas. Ou de

cliques. O resultado costuma aparecer em forma de notícias tão similares e abordagens tão

reducionistas que podemos facilmente prever, por meio da leitura de um único portal, o que

será replicado pelos demais. Se não fosse pela estética de apresentação – diagramação,

tipologia e fotos –, facilmente poderíamos brincar de jogo dos sete erros na comparação entre

um veículo e outro, tamanha a similaridade.

Todo tipo de informação, de algum modo, é sempre útil para alguém. A questão,

porém, é: será que o jornalismo é apenas isso ou é também isso? O peso dado a cada uma

dessas posições é adequado ou desproporcional?

É possível constatar facilmente, numa rápida leitura das primeiras páginas dos portais

on-line de grande acesso, o desiquilíbrio da quantidade de news em relação ao de views. A

seleção dos temas e das perspectivas de abordagem é condicionada ao maior número de

aprovações possível por parte dos leitores ou da audiência. Ao invés de textos que buscam

ampliar, contextualizar, compreender e fornecer elementos para uma justa interpretação dos

fatos, o que se vê é um esforço enorme de redução, simplificação do relato sobre o que

acontece.

Os veículos de comunicação de grande circulação cultivam essa atitude por estarem

plenamente convencidos da absoluta preguiça do leitor. Eles acreditam piamente que aqueles

que os leem, ouvem ou seguem não se aprofundarão na notícia. Não questionarão as fontes. E,

sobretudo, não se revoltarão contra essa falta de comprometimento com os sentidos sociais de

toda informação, uma premissa básica para um jornalismo sério e de qualidade. Um

jornalismo democrático.

Pautas, edição, títulos etc., a maioria cai sob o molde da homogeneidade, do

reducionismo e do sensacionalismo. Nesse tipo dominante de jornalismo, não há espaço para

o diálogo entre vários pontos de vistas, entre as diversas perspectivas possíveis, os distintos

lados de uma questão. Vemos os “especialistas de sempre” apresentando as mesmas visões de

sempre, em sua maioria ajustadas à linha editorial dos veículos e aos modos como estes

pensam o jornalismo e a vida social.

Esse tipo de postura faz com que o pensamento se adeque e se restrinja à forma, nos

fazendo esquecer que a forma é, em essência, originária do pensamento. Sempre que

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simplificamos algo estamos violentando o pensamento. A simplificação nada mais é do que a

barbárie do todo.

Precisamos adotar uma prática de construção de ideias sem formas predefinidas ou

impostas para conhecermos melhor o mundo que habitamos. As ideias são instrumentos

conceituais para a construção do conhecimento, mas, ao invés de sermos esmagados por

ideias preexistentes, precisamos abrir um diálogo com estas. Uma união da cultura científica

com uma cultura humanística.

Assim, fazemos uma conexão direta com o conceito de pensamento complexo de

Edgar Morin. Procuramos comparar as diferenças existentes e destacar a importância de

compreender sua visão de mundo. Todas as características desse pensamento podem ou

deveriam ser encontradas nos ensaios jornalísticos que buscam orbitar no Signo da

Compreensão.

PENSAMENTO SIMPLISTA

Segmentado; Tentativa de apropriação da verdade; Parte de uma ideia preconcebida; Tenta controlar a informação; Busca pela completude: exatas, simétricas e conclusivas; Pensamento mutilador e gerador de ações mutilantes.

PENSAMENTO COMPLEXO

Complexo, profundo e interligado; Aproximação da realidade humana; Busca pela clareza, aberto ao novo; Articulação entre os diversos campos de pesquisa e disciplinas; Busca novas possibilidades, permite abertura e aceita a assimetria; Pensamento agregador e gerador de ações de integração.

Quadro 1 - Comparativo entre pensamento simplista e o complexo

Baseado em reflexões sobre várias áreas do conhecimento, o pensamento complexo

mostra que o fazer científico modificou-se e continua sendo modificado num processo

dialógico transdisciplinar. Por que tanta separação? Nascemos em sociedade, vivemos em

sociedade. Talvez uma abordagem mais inclusiva e ao mesmo tempo plural, possa ser ao

mesmo tempo útil, interessante e promissora, principalmente em um mundo acostumado, há

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gerações, a apenas dividir, separar e desunir. “É preciso substituir um pensamento que isola e

separa por um pensamento que distingue e une” (MORIN, 2005, p. 85).

2.3 Aprender a compreender

Na obra Sete saberes necessários para a educação do futuro (2005), um dos saberes

para o qual Edgar Morin nos chama a atenção, pois está relacionado diretamente com o objeto

de estudo desta dissertação, é o ato de compreender, uma atitude característica do método e

do gênero ensaístico. Morin nos mostra que a compreensão não pode ser quantificada e menos

ainda explicada. A compreensão necessita de simpatia, generosidade, sinceridade e de um

esforço pela identificação. Uma forma de apreender em conjunto, de abraçar ideias de outros,

mesmo que por um breve momento. É preciso nos esforçarmos para entender o outro, por

mais difícil que isso possa ser. Entender, e não simplesmente concordar. Mas, para isso, é

necessária uma reforma da mentalidade, é preciso disposição.

Já o professor Luís Mauro Sá Martino, no livro Comunicação, Diálogo e

Compreensão, quando interpreta a compreensão como método, coloca que esse tipo de

compreensão está ligada a uma postura de abertura. Em sua palavras, olhar a compreensão

como método, “não implica apenas uma questão epistemológica, mas, como lembra

Heidegger (2009, p. 148), também um ‘meta-odos’, uma trilha, o ‘caminho para a

alteridade’”. Martino continua: ‘O envolver-se’, diz o filósofo alemão, ‘é um caminho

inteiramente diferente, um método muito diferente do método científico, se soubermos usar a

palavra ‘método’ em seu sentido original, o ‘caminho para’” (MARTINO, 2015 p. 18-19).

Uma outra tentativa, para um melhor entendimento sobre o aprender a compreender, é

começando por separar o tema em dois: a compreensão intelectual e a compreensão humana.

Na primeira é possível encontrar características como a objetividade e a explicação. Uma

definição de objeto a ser conhecido, necessário para uma compreensão intelectual

mensurável, formatada e padronizada. Já a compreensão humana comporta um conhecimento

sujeito a sujeito. Sujeito e objeto. Só isso já nos diz bastante sobre cada uma delas.

A compreensão humana busca e aceita ideias e formas de expressão e reflexão que vão

além da explicação simplista. Naquela, inclui-se um processo de empatia, de identificação e

de projeção. Relação. Eu no lugar do outro. Eu no universo do outro. Eu e o outro. Eu e Tu.

Não Eu e Isso. Abertura, simpatia, generosidade e compreensão. Sempre compreensão.

Características do ensaio que procura manter sempre uma relação dialógica na busca pelo

entendimento e pela construção de conhecimento. Newton Zuben, na introdução do livro Eu e

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Tu de Martin Buber, fala sobre a importância dessa atitude como reflexão sobre a existência

humana.

EU e TU representa, sem dúvida, o estágio mais completo e maduro da filosofia do diálogo de Martin Buber. Ele a considerava como sua obra mais importante: obra na qual apresentou, de modo mais completo e profundo, sua grande contribuição à filosofia. EU e TU não é simplesmente uma descrição fenomenológica das atitudes do homem no mundo ou simplesmente uma fenomenologia da palavra, mas é também e sobretudo um ontologia da relação (BUBER, 2008, p. 12).

Mas, afinal, o que é compreender? Compreender é diferente de explicar. A explicação

fecha, a compreensão abre. A compreensão é ilimitada, a explicação é reducionista. A

compreensão elege considerações iniciais, a explicação, finais. Mas como podemos colocar

um ponto-final sobre um determinado assunto? Como as áreas do conhecimento, ou nossa

espécie, sobreviveriam sem vírgulas, reticências e pontos de interrogação...?

A explicação adota geralmente uma visão unilateral, verticalizada, de cima para baixo, reducionista. Mostra o mundo sob uma ótica única, ou de pouca abertura. Já a compreensão busca exibir o mundo sob perspectivas diversificadas. Mais do que isso, ilumina as conexões entre conteúdos aparentemente desconectados. Interliga dados, mostra sentidos, perspectivas. Faz, nos bons casos de jornalismo literário, com que o leitor perceba o que tem a ver, com sua própria vida, tudo aquilo que está lendo. Idealmente, o jornalista literário não julga ou opina panfletariamente sobre um assunto. Busca evitar preconceitos, assim como leituras rígidas da realidade. Tenta ultrapassar os estereótipos, levantando a compreensão de uma situação por inteiro, iluminando-a sob diferentes óticas (LIMA, 2009, p. 366).

Um tanto arrogante eleger verdades absolutas, sendo que estas sempre são partes de

algo que nunca pode ser entendido completamente. Aliás, nunca e sempre são palavras que

limitam. E nosso propósito é justamente o contrário. Como expõem Künsch, “o Signo da

Compreensão, compreensivamente não condena nem renuncia a toda explicação. Inclusive

porque sem explicações não se vive.” Mas ele nos mostra que este signo rejeita “…a vã ideia

de que tudo se explica, de que os sentidos se fecham, de que o mundo é, de que a vida é” (

KÜNSCH, 2010, p. 20).

Mas o que torna o ensaio tão sedutor? Seria a marca pessoal do autor no texto? A

abertura ao diálogo? A liberdade de questionamento que o formato permite? A aceitação de

que tudo é transitório? Mesmo sozinhos estamos sempre dialogando com nossos

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pensamentos. A vida não é um monólogo, ou pelo menos não deveria ser. Talvez, dialogar

com as vozes que nos cercam e aceitando que tudo é transitório sejam os primeiros passos

para enfrentarmos o objetivismo sem perdermo-nos na subjetividade individualizada. Saciar

nossa vontade por respostas definitivas, bebendo na fonte das incertezas da vida. São as

incertezas que nos movem. Como, então, fechar um argumento sobre qualquer coisa? A

aceitação dessa realidade pode representar um bom começo para se parar de colocar pontos-

finais em tudo.

¿Cómo vencer los temores del objetivismo ante esta amenaza, sin convertir la realidade en un desierto? La respuesta puede encontrarse quizá en la utilización de la forma ensayo como mediador entre una voluntad de saber ciega y la pulsión subjetiva que ressurge una y otra vez de las ceniza como el ave fénix. Pero no es una relación fácil cuando se plantea en el panoram de la compleja sociedade contemporánea. (CATALÀ, 2014, p. 23).

2.4 Adorno versus Descartes – o protesto contra as regras do Discurso do Método

O ensaio, segundo Adorno, poderia ser interpretado também como um protesto contra

as regras de Descartes em Discurso do método. Adorno em Notas de literatura I apresenta o

contraponto e, por que não dizer, em alguns momentos o contrassenso entre o discurso e a

prática nessa forma de construção. Descartes, em seu discurso, formula quatro preceitos que

guiam seu método:

O primeiro era de nunca aceitar coisa alguma como verdadeira sem que a conhecesse evidentemente como tal; ou seja, evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e não incluir em meus juízos nada além daquilo que se apresenta tão clara e distintamente a meu espírito, que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida. Dividir cada uma das dificuldades que examinasse em tantas parcelas quantas fosse possível e necessário para melhor resolvê-las. O terceiro, conduzir por ordem meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais compostos; e supondo certa ordem mesmo entre aqueles que não se precedem naturalmente uns aos outros. E o último, fazer em tudo enumerações tão completas, e revisões tão gerais, que eu tivesse certeza de nada omitir. (DESCARTES, 1996, p. 23).

Adorno, em seu pensamento, analisa, em particular, três das quatro regras citadas. A

segunda, que fala sobre a divisão do objeto em tantas parcelas quanto possíveis e necessárias

fosse para melhor resolver sua dificuldade, Adorno observa que “os artefatos, que constituem

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o objeto do ensaio, resistem à análise de elementos e somente podem ser construídos a partir

de sua ideia específica…” (2003, p. 31) usando como exemplo de que forma Kant tratou de

modo análogo as obras de arte e os organismos, diferenciando-os sem impedir que os detalhes

se tornassem conhecidos. Pois, segundo ele, “os momentos não devem ser desenvolvidos

puramente a partir do todo, nem o todo a partir dos momentos” (DESCARTES, 1996, p. 23).

Sobre a terceira regra, que sugere “conduzir por ordem meus pensamentos, começando

pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir, pouco a pouco, como por

degraus, até o conhecimento dos mais compostos” (DESCARTES, 1996, p.23), Adorno

lembra que “a ingenuidade do estudante que não se contenta senão com o difícil e o

formidável é mais sábia do que o pedantismo maduro” (2003, p. 32), pois justamente o

desafio é o que atrai as mentes, em especial as dos mais jovens. O ensaio que, na maioria das

vezes parte do mais complexo, coloca aquele que o constrói em constante desafio por permitir

que ele navegue por mares ainda não conhecidos. A aventura em decifrar aquilo que não nos é

familiar é justamente o elixir na busca pela compreensão.

A quarta regra do Discurso do Método que propõe “fazer em toda parte enumerações

tão completas e revisões tão gerais, que eu tivesse certeza de nada omitir” (DESCARTES,

1996, p. 23), Adorno afirma, como contraponto a isso, o fato de que uma das principais

características do ensaio é justamente a de ele ser antagônico ao conceito de completude e

definição que esta regra sugere; nas palavras do autor:

No ensaio como forma o que se anuncia de modo inconsciente e distante da teoria é a necessidade de anular, mesmo no procedimento concreto do espírito, as pretensões de completude e de continuidade, já teoricamente superadas. Ao se rebelar esteticamente contra o método mesquinho, cuja única preocupação é não deixar escapar nada, o ensaio obedece a um motivo da crítica epistemológica. (ADORNO, 2003, p. 34).

Essa comparação entre a visão de Descartes e de Adorno não tem o intuito de

enfrentar nenhuma obra, muito ao contrário; seria pedante reforçar a importância deste tratado

para todos os campos, mas serve muito bem para acentuar as características e os métodos de

construção do conhecimento. Apenas como uma forma de mostrar seu ato de reflexão e busca

pela compreensão, destacamos um trecho, logo nas primeiras páginas de seu livro, em que

Descartes apresenta de forma generosa e, por que não dizer, também ensaística, sua intenção

na concepção do tratado de maneira franca e humilde.

Assim, meu propósito não é ensinar aqui o método que cada um deva seguir para bem conduzir sua razão, mas somente mostrar de que modo procurei

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conduzir a minha. Aqueles que se metem a dar preceitos devem achar-se mais hábeis do que aqueles a quem os dão; e, se falham na menor coisa, são por isso censuráveis. Mas, propondo este escrito apenas como uma fábula, na qual, dentre alguns exemplos que podem ser imitados, talvez também se encontrem vários outros que se terá razão em não seguir, espero que ele seja útil a alguns sem ser nocivo a ninguém, e que todos apreciem minha franqueza. (DESCARTES, 1996, p. 7).

Vigor, sedução, dinamismo, compreensão, aproximação, simpatia, disposição,

polifonia, interpretação, transdisciplinaridade, integração, incerteza, complexidade. Essas são

palavras que despertam, que fazem com que enxerguemos de outra forma, palavras que nos

provocam e nos tiram do modo automático de ler o mundo em que vivemos. Palavras que

caracterizam um gênero, um método, uma forma de compreender a vida. Características

essenciais ao ensaio.

O ensaio exige, ainda mais que o procedimento definidor, a interação recíproca de seus conceitos no processo da experiência intelectual. Nessa experiência, os conceitos não formam um continuum de operações, o pensamento não avança em um sentido único; em vez disso, os vários momentos se entrelaçam com num tapete. Da densidade dessa tessitura depende a fecundidade dos pensamentos. O pensador, na verdade, nem sequer pensa, mas sim faz de si mesmo o palco da experiência intelectual, sem desemaranhá-la. Embora o pensamento tradicional também se alimente dos impulsos dessa experiência como modelo, ele acaba eliminando, em virtude de sua forma, a memória desse processo. O ensaio, contudo, elege essa experiência como modelo, sem, entretanto, como forma refletida, simplesmente imitá-la; ele a submete à mediação através de sua própria organização conceitual; o ensaio procede, por assim dizer, metodicamente sem método. (ADORNO, 2003, p. 30).

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CAPÍTULO 3

O lugar do ensaio no campo jornalístico hoje

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Há espaço para o ensaio no jornalismo hoje? A redação dos jornais está preparada para

trabalhar com essa metodologia? Os leitores apreciam esse tipo de gênero? Na prática, como

se constrói esse tipo de texto? Essas são algumas perguntas que norteiam este capítulo. Para

respondê-las, além de entrevistas com pesquisadores desse campo, como Edvaldo Pereira

Lima e Raúl Vargas, selecionamos alguns textos trabalhados com as características que

compõem esse gênero textual, os quais serão apresentados nos parágrafos a seguir.

Mais do que buscar respostas positivas, aqui a proposta é descobrir qual o lugar do

ensaio hoje e entender de que forma este é construído. Mas, antes disso, entender como está

estruturado o campo, no caso o jornalístico, é de suma importância para aqueles que querem

de alguma forma propor algum tipo de transformação. Entendemos que só podemos propor

algo novo, se compreendermos em que estágio está o jornalismo hoje e quais motivos o

levaram a chegar a esse estágio.

Partindo dessas questões, analisamos o jornalismo praticado nos maiores e mais atuais

portais on-line nacionais. Foram capturadas, para essa pesquisa exploratória, as primeiras

páginas das seguintes revistas, jornais e portais: UOL, Terra, G1, Folha de S. Paulo, O Estado

de S. Paulo, Carta Capital e Mídia Ninja. Entendemos que o que se coloca na primeira

página, ou em destaque em uma publicação de viés informativo, é o que se tem de mais

importante e atual para abordar naquele momento, de acordo com a visão dos editores desses

veículos.

O dia escolhido foi o mais próximo da data de entrega desta dissertação, dia 15 de

fevereiro de 2014, pois a ideia foi trabalharmos o contexto da forma mais atualizada possível.

O tema, que acreditamos ser o mais importante para a sociedade neste momento, é a crise

hídrica no estado de São Paulo, onde, de acordo com o pronunciamento de Paulo Massato,

diretor da Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo), além de já

estarmos passando por uma falta de água em diversos municípios e bairros, há grande chance

de passarmos pelo maior racionamento já visto no estado, um dos mais importantes

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economicamente no Brasil, podendo ficar até cinco dias sem água, em um rodízio proposto

como solução emergencial para o baixo volume dos reservatórios que nos abastecem.

Até hoje não temos nenhuma solução que evite esse drástico racionamento nos

próximos meses, caso o nível pluviométrico não aumente consideravelmente. Trata-se de um

assunto que impacta diretamente todos os moradores do estado, sejam eles crianças, adultos

ou idosos, homens e mulheres de todas as classes sociais. O cenário é realmente drástico, mas,

como será mostrado no Anexo 1, apenas dois, dos nove portais on-line acessados publicaram

alguma matéria sobre esse assunto (Figuras 10 e 11).

É claro que se deve levar em consideração o fato de estarmos analisando o tema da

falta de água durante o período da festa mais popular do Brasil, o Carnaval. Mas uma

pergunta que emerge é: independentemente da folia e da alegria, por que esse tema aparece de

forma tão tímida e em tão poucos veículos frente a uma catástrofe anunciada? Não se busca

aqui nenhuma teoria da conspiração, mas, sim, um entendimento de como são selecionadas as

pautas que influenciam diretamente o método de produção e a construção do gênero textual

das matérias.

O que podemos interpretar em uma primeira leitura é que, em sua maioria, portais de

informação valem-se de antigos esquemas de jornais sensacionalistas, colocando, em primeiro

plano, notícias banais, sem necessidade de conhecimento prévio para seu entendimento,

notícias que não causam nenhum impacto político, pelo contrário: a intenção oculta ou, no

caso, não percebida pelo grande público é justamente despolitizar.

Nota-se, nos veículos de grande circulação, uma busca incessante por pautas que tenham um alcance cada vez maior, transformando desta forma o campo jornalístico em uma indústria de notícias homogêneas que evitam excluir ou dividir opiniões, tratando de assuntos cada vez mais soft que não levantam problemas ou levam a reflexões mais profundas, “constrói-se o objeto de acordo com a categoria de percepção do consumidor”. (BOURDIEU, 1997, p. 63).

Esse é apenas um exemplo para destacar que, cada vez mais, observamos em

evidência a prática de um jornalismo que promove mais notícias e variedades do que um

jornalismo que sugere a reflexão por meio de pontos de vista e interpretações sobre os temas

que nos cercam; a maioria dos veículos se mostra mais propensa a um jornalismo que explica

e entretém, e cada vez menos a um jornalismo que procura interpretar e gerar reflexões para

se compreender as questões essenciais ao homem.

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Quanto mais soft e homogeneizada a informação, maior a chance de que mais pessoas

sejam impactadas por esta, fazendo com que a audiência acabe por influenciar diretamente a

pauta da maior parte dos noticiários atuais. Trata-se de um ajuste às estruturas mentais do

grande público para mantê-las intactas, inertes, alienadas. “Quanto mais um jornal estende sua

difusão, mais caminha para assuntos-ônibus que não levantam problemas” (BORDIEU, 1997,

p. 63), ou seja, quanto maior a audiência menor a chance de o veículo praticar um jornalismo

que busca interpretar e compreender. Selecionam-se as matérias com maior aderência dos

leitores e não necessariamente as mais importantes.

Trata-se de um reflexo das diversas interferências que o campo jornalístico sofre

diariamente, direta ou indiretamente, durante o processo de construção da notícia, que vai da

escolha da pauta à edição e à aprovação final da matéria. Podemos destacar algumas

interferências, como: a escolha das fontes (procuram-se sempre pares que dividam o mesmo

pensamento), a busca por amplitude de alcance de leitores (o texto é construído nos principais

veículos para ser lido de forma universal e não regional), a expectativa de audiência (se não

tiver elevada tiragem, os salários não são pagos), resposta à demanda da sociedade (os

torcedores querem saber o resultado do jogo do Corinthians ou a nota de sua escola de samba

do coração), posicionamento do veículo (linha editorial alinhada com interesses políticos e

comerciais), manutenção da posição do jornalista (cuidado sobre o que se fala, de quem se

fala e quando se fala), entre outras regras.

Mediante isso uma das perguntas que surge é: como manter um texto genuíno,

pertinente, compreensivo e interpretativo se sua construção é conduzida por esse tipo de

modelo dominante? A construção de sentidos e significados torna-se difícil quando se elabora

um texto nessas condições.

Apesar da nítida necessidade de autonomia para a elaboração de um texto democrático

a serviço da sociedade, o campo jornalístico mostra-se um dos campos de produção cultural

mais influenciado por essas forças externas que o engessam cada vez mais, forçando seus

agentes a adotarem uma prática de jornalismo que funciona em modelo automático de geração

de notícia, sem tempo para reflexões, ou imersão nos temas com grande relevância para os

leitores.

Um gênero de narrativa possível, que vai contra essa via de criação de textos

superficiais, seria o ensaio jornalístico, cujas características contemplam tanto a objetividade

do fato quanto a subjetividade do autor, dando margem à compreensão e não apenas à

explicação, tratando sempre de temas atuais com profundidade, diálogo entre as vozes e

disposição para compreender o outro, característica essencial ao jornalismo contemporâneo.

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Patrícia Sales Patrício, doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de

São Paulo (USP), apresentou em sua tese de doutorado, intitulada “Na Ilha do Boi de Pano –

Uma Reportagensaio para Além da Objetividade Jornalística”, uma nova proposição batizada

de transubjetividade, definida como uma forma integrada entre o objeto de estudo, sua

reflexão, normas do jornalismo e o diálogo do eu com o outro.

A objetividade, noção surgida do eu subjetivo, jamais poderá ser alcançada em sua plenitude. Porém, se cada um se fechar em sua própria subjetividade, não existe comunicação. Portanto, a saída possível é exercitar a articulação entre objetividade, subjetividade, normatividade e intersubjetividade. Isso não significa, simplesmente, reproduzir declarações, mas fazer com que dialoguem entre si, abrir os poros para o não dito, produzindo significados ricos, que ajudem na compreensão/apreensão da realidade (PATRÍCIO, 2002, p. 105).

Segundo Patrício, o jornalista deve procurar equilibrar a parte objetiva que contempla

os dados, as fontes e as pesquisas (referência documental), com a parte subjetiva, a qual expõe

seu poder de síntese, reflexão, experiência de vida e análise crítica, no intuito de captar o real

do tema para enriquecê-lo criativamente, abrindo, assim, possibilidades de interpretações e de

interações nos diálogos entre fontes e leitor (polifonia), mas sem deixar de lado as regras

normativas da profissão, como cuidado e zelo, para que nenhum dos aspectos citados se

sobrevalorize.

Esse caminho desafia os formatos adotados em diversos meios de comunicação,

principalmente no campo jornalístico, cujo impulso inicial é ter somente uma linguagem, um

objetivo e um propósito imediatista, em razão de sua busca incessante por audiência.

Esses impulsos são insuficientes para se construir um ensaio jornalístico, é preciso

reflexão, integração e compreensão para se desenvolver um texto que seja vigoroso, único,

verossímil e pessoal ao mesmo tempo. É preciso combater o que podemos chamar de

analfabetismo emocional, tão presente nas redações de portais, revistas e jornais, para

podermos sair da prática de jornalismo amparada apenas pelo signo da explicação e

evoluirmos para uma prática que bebe nas fontes do signo da compreensão.

Künsch, no livro Maus Pensamentos, nos mostra o Signo da Compreensão, no campo

jornalístico, como “certas atitudes e procedimentos que aproximam a pessoa do repórter e o

resultado de seu trabalho de mediação a uma visão mais complexa e plural do mundo,

humana, dialogante, aberta, sem deixar de ser racionalmente sustentável” (KÜNSCH, 2000, p.

20). Uma atitude que evita respostas definitivas ou fechamentos, mas que busca abrir novos

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caminhos e abraçar, por meio do diálogo transdisciplinar, outras formas de entendimento do

mundo.

A prática de narrar histórias, no gênero ensaio jornalístico, está muito mais associada a

uma forma de organizar e simbolizar reflexões sobre o entendimento do mundo, para neste

sobreviver, do que ao simples talento individual de cada autor.

[...] a arte de narrar acrescentou sentidos mais sutis à arte de tecer o presente. Uma definição simples é aquela que entende a narrativa como uma das respostas humanas diante do caos. Dotado da capacidade de produzir sentidos, ao narrar o mundo, a inteligência humana organiza o caos em um cosmos (CREMILDA, 2003, p. 80).

Esse gênero não está isento também das influências externas, porém a método como é

constituído o raciocínio criativo faz com que o autor reflita sobre o que escreve e procure

compreender, por meio de um diálogo mais amplo, sobre o tema de maneira mais profunda e

pessoal, impactando o público final de uma forma que gere empatia e também reflexão, e não

apenas uma explicação ou definição fechada sobre os assuntos que o cercam. Com isso

espera-se que outras vozes ecoem um pensamento de tipo mais compreensivo e desencadeiem

uma demanda nos veículos por narrativas mais próximas de seu entendimento.

Sobre o espaço que há hoje no mercado para o ensaio, Edvaldo Pereira Lima, em

entrevista4 a nós concedida, acredita que este se encontra atualmente no mesmo processo em

que o jornalismo literário estava há algumas décadas, mas que seu formato, em breve,

possibilitará criar novos espaços nos veículos de grande circulação devido à aproximação que

o ensaio consegue junto ao leitor.

...o ensaio pessoal, do ponto de vista do conhecimento do mercado e da sociedade acadêmica brasileira, ele está no estágio que estava o jornalismo literário nos anos 90 no século passado. Ou seja, se sabe muito pouco, se ouve falar, mas é muito pouco. Então na medida em que o conhecimento do ensaio pessoal é baixo, então isso não favorece que na mídia haja uma receptividade amiga e aberta ao ensaio pessoal, mas acredito que é um fenômeno cultural na medida em que o profissional conseguir produzir, produzir com qualidade até os veículos perceberem que tem resultado, e normalmente tem, tem por quê? Porque o ensaio pessoal, ele vai ao encontro de uma necessidade do leitor, que é se identificar com a história humana. Então, na medida em que o autor do ensaio pessoal sabe fazer bem, ele se expõe realmente como ser humano. Para o leitor, isso possibilita a criação dessa identificação e dessa projeção; é aí por esse lado que o leitor vai gostar (LIMA, 2014).

4 A entrevista completa encontra-se no Anexo 3.

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Lima acredita que o ensaio, assim como o jornalismo literário, suprem uma

necessidade social que a população possui, mas, que talvez, ainda não tenha percebido, que é

a de estabelecer relações com histórias reais.

No meu entendimento, o ensaio pessoal em particular e o jornalismo literário como um todo, eles correspondem a uma necessidade social que a população tem e não sabe que tem, e essa necessidade é a necessidade de travar contato com histórias reais bem contadas, não contadas de maneira esquemática, fria, estruturada de uma forma linear, as pessoas querem encontrar em textos da vida real, a narrativa que tem o mesmo padrão daquilo que é milenar e com o qual elas estão acostumadas, que é a velha profissão de contar histórias, então isso é um aspecto que me faz pensar, por exemplo, num possível fator que ajuda a explicar o sucesso dos documentários no Brasil. (LIMA, 2014)

Raúl Osorio Vargas, durante entrevista5 para esta dissertação, quando questionado se o

gênero e método ensaio teriam espaço no jornalismo contemporênao, nos responde que esse

tipo narrativa, por ter em sua estrutura algumas características como: a abertura para a

integração de outras disciplinas e, também, para novos formatos de disseminação, está mais

do que apto a conversar com um mundo que está em constante transformação. Essas novas

formas de narrar o mundo, também chamadas de narrativas transmídias, contribuem para uma

melhor interpretação das pautas por parte dos leitores. Recursos como vídeos, imagens, sons e

infográficos, por exemplo, ajudam a orientar as pessoas que estão buscando um melhor

entendimento do mundo que habitam.

Essas novas tecnologias e mundo líquido e fluído da narrativa e a proposta da narrativa transmídia é uma narrativa completamente ensaística, ou seja ela permite, dá possibilidades que o ensaio seja mais aberto, criativo, aprofundado, com muito mais análises que é a proposta do jornalismo literário de transformação de Edvaldo Pereira Lima. As histórias de vida, da grande reportagem, da reportagem de profundidade, a reportagem com imagens, com sons, etc. Ou seja isso é atualíssimo. (VARGAS, 2014)

Nunca antes os indivíduos tiveram tantas ferramentas à disposição para serem agentes

de seus próprios pontos de vista e criação de novas estruturas sociais, vide o número crescente

de usuários de blogues, thumblers, contas de twitters e outras ferramentas tecnológicas que

permitiram com que vozes e pensamentos, antes isolados por questões geográficas ou

econômicas, se tornassem acessíveis em um modelo de produção cultural massificada.

Essa nova estrutura, que há em novos campos derivados do jornalístico, contempla

também novos tipos de lutas territoriais por espaços e audiências, as quais podem ser 5 A entrevista completa encontra-se no Anexo 3.

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observadas mais recentemente nas redes sociais: os números de seguidores de um

determinado perfil posicionam um grupo de pessoas que tem um interesse em comum. Vemos

hoje diversas tribos distintas que questionam as fontes, antes inquestionáveis, de informação

advindas dos setores políticos, econômicos e corporativos. Trata-se de uma forma de

resistência, de não submissão aos donos do mundo, aos detentores do quarto poder. Trata-se

de uma resposta direta às grandes corporações que outrora dominavam os meios de

comunicação existentes. A grande diferença agora é que existem novos meios indepentendes

e ferramentas para se relacionar, compreender e reportar, antes inacessíveis a maior parte da

população.

Mas vale lembrar, também, que essas novas tecnologias e corporações, que dão uma

nova visão de campo, ao mesmo tempo em que o ampliam, procuram de uma forma

mecanicista controlar aquilo a que o usuário tem acesso. Um exemplo disso são os sites de

buscas, como o Google, ou de vídeo, como o YouTube. Para cada usuário em busca por

determinada palavra ou expressão são apresentados resultados de acordo com seu padrão de

comportamento on-line; uma forma de rastrear o que o usuário já viu e, mediante isso,

oferecer-lhe apenas assuntos relevantes às suas últimas leituras e acessos em determinados

sites, além de anúncios publicitários de acordo com cada perfil.

Por mais que se amplie a visão e a troca de conhecimento na estrutura virtual, uma

grade invisível das pesquisas prévias de cada usuário forma uma teia ao seu próprio redor

sobre assuntos que se assimilam a seu pensamento e padrão de comportamento. O paradoxo

que observamos aqui é que a ferramenta que facilita o trabalho do indivíduo na busca por

novas formas de conhecimento acaba por influenciá-lo mediante os resultados apresentados

por serem similares àqueles a que ele teve acesso anteriormente.

Cada vez mais estamos dispostos a reconhecer que o tipicamente humano, o genuinamente formativo, não é a operação fria da inteligência binária, pois as máquinas sabem dizer melhor que dois mais dois são quatro. O que nos caracteriza e diferencia da inteligência artificial é a capacidade de nos emocionarmos, de reconstruir o mundo e o conhecimento a partir dos laços afetivos que perturbam (RESTREPO apud MEDINA, 2003, p. 60).

Durante o processo de construção do conhecimento, pessoas são influenciadas por um

sistema de estruturas invisíveis, estruturas que as acompanham desde sua formação moral –

em seu lar, atribuída a valores herdados por seus ancestrais – chegando até a suas vidas

acadêmica e profissional, resultado da atuação de seus mestres e superiores.

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No campo jornalístico, essas influências, quando não percebidas, acabam por formatar

profissionais que entendem como verdade absoluta as normas e as regras preestabelecidas do

setor, os quais continuam a aplicá-las nas redações dos jornais por meio de narrativas

superficiais, frágeis e sem espírito humano, que procuram definir as questões atuais, ao invés

de ajudar o indivíduo a interpretá-las. O problema específico com este campo é que seu

impacto na sociedade é muito mais abrangente do que qualquer outro. Os jornalistas, por meio

de seus veículos e de sua notoriedade, têm maior alcance e podem induzir mais pessoas a um

pensamento cada vez mais condicionado e homogêneo. Cria-se dessa forma um ciclo

retroalimentado, o qual mantém o controle e o domínio de classes, por meio de discursos já

legitimados.

Instigar desde cedo os futuros profissionais a praticarem um pensamento crítico e

reflexivo sobre esses moldes – que constituem as estruturas da sociedade – talvez possa

garantir, ou pelo menos despertar, no futuro, uma vontade de construir novos modelos

favoráveis ao enriquecimento e à disseminação do conhecimento. O caminho de produção

desse tipo de jornalismo começa pelo repórter que procura, antes de tudo, compreender o

humano, sem reduzi-lo, abrindo assim espaço para novas interpretações e vozes. E, a cada vez

que essas vozes ecoam, outros irão se dispor a ouvir e a conhecer mais sobre essa forma,

sobre esse método e em pouco tempo estarão mais acostumados a este gênero. Trata-se de

uma prática que pode ser libertadora, principalmente para aqueles que não se contentam mais

com o princípio da objetividade, e que buscam outra filosofia de comunicação.

(...) os pesquisadores da objetividade preferem se ater às regras do exercício “racional”, em vez de mergulhar nos diversos processos da vida dos seres humanos, deixando de falar da oratura. O verbo humano é esmagado pelo peso do princípio da objetividade. Entanto, nos caminhos da reportagensaio com toda inteligência, com toda vontade, com todos os sentidos, o pesquisador-observador participante se une ao outro para conhecer em profundidade. Eis uma filosofia da comunicação e uma epistemologia da reportagensaio. Esquecer isto é caminhar por uma comunicação que se conforma, sem nenhuma dinâmica, com as formas convencionais que se aplicam para satisfazer as exigências da mídia. A elaboração dessas visões discursivas acaba por encobrir, “fazer cobertura”, as realidades vitais. (VARGAS, 2005 p. 8).

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3.1 Trabalho com textos

Mas, na prática, como isso funciona hoje? Quais autores, atualmente, estão praticando

esse tipo de discurso que “pode encher-se de ternura, sendo possível acariciar com a palavra,

sem que a solidez do argumento sofra prejuízo por se fazer acompanhar pela vitalidade

emotiva” (RESTREPO, 2001 p. 17)? Quais os temas e, principalmente as perspectivas que

estão sendo abordadas em função desse tipo de entendimento? Veremos, a seguir, alguns

textos que têm em sua estrutura as características estudadas nas páginas anteriores.

Eliane Brum

No ensaio de Eliane Brum, O vírus letal da xenofobia, publicado no site do El País em

outubro de 2014, a autora escreve sobre o primeiro teste no Brasil para o vírus ebola. Em sua

narrativa, escrita na primeira pessoa, uma das marcas do ensaio, Brum destaca o

comportamento xenofóbico adotado pelas autoridades brasileiras e a repercussão nas mídias

sociais contra o africano da Guiné suspeito de estar infectado com o vírus.

A autora levanta a cortina de hipocrisia do incidente e nos faz perceber os atos de

racismo e de xenofobia praticados ainda hoje, doenças que consomem parte da população

brasileira. Eliane dialoga com Alber Camus, quando mostra que …“uma epidemia revela toda

a doença de uma sociedade”, revelando dessa forma uma verdade triste de enxergar. Em sua

interpretação, ela coloca que “O racismo no Brasil não é passado, mas vida cotidiana

conjugada no presente. A peste não está fora, mas dentro de nós” (BRUM, 2014).

A autora destaca o aspecto desumano dessa história, mostrando que o suspeito em

questão não foi tratado como uma pessoa, “mas como o rato que traz a peste para essa Oran

chamada Brasil” (BRUM, 2014). Em seu ensaio, ela faz uma reflexão sobre o caminho que

esse homem percorreu para conseguir cruzar as fronteiras de nosso país e os sentimentos que

devem tê-lo acompanhado nesse trajeto, uma forma de humanizá-lo para que, de alguma

maneira, o leitor conseguisse, mesmo que por um momento, se colocar no lugar dele,

praticando, dessa forma, o ato de compreender e gerando, assim, reflexão e empatia sobre o

personagem de sua história.

Não sei se há desamparo maior do que alcançar a fronteira de um país distante, nessa solidão abissal. E pedir refúgio, essa palavra-conceito tão nobre, ao mesmo tempo tão delicada. E então se sentir mal, e cada um há de saber como a fragilidade da carne nos escava. Corrói mesmo aqueles que têm o melhor plano de saúde num país desigual. Ele, desabitado da língua, era desterrado também do corpo. Para alcançar o que viveu o homem desconhecido, porque o que se revelou dele não é ele, mas nós, é preciso vê-lo como um homem, não como um rato que carrega um vírus. Para alcançá-

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lo é preciso vestir o homem. Mas só um humano pode vestir um humano (BRUM, 2014).

Para amparar o seu ponto de vista, diante do descaso das autoridades e do

comportamento do brasileiro em uma suposta situação de risco, Brum dialoga com outras

vozes, como a da Deisy Ventura, professora de Direito Internacional da Universidade de São

Paulo, pesquisadora das relações entre direito e saúde sobre os impactos que uma epidemia

tem nas pessoas:

“Descrever uma epidemia é uma forma magistral de revelar as diversas formas de totalitarismo que maculam uma sociedade. Neste quesito, os brasileiros não economizaram. A divulgação, por meios de comunicação que atingem dezenas de milhões de pessoas, da foto de um homem negro, vindo da África, como suspeito de ebola, foi a apoteose do fantasma do estrangeiro como portador da doença”, afirmou a esta coluna Deisy Ventura, professora de direito internacional da Universidade de São Paulo” (BRUM, 2014).

No encerramento do seu ensaio, Brum deixa clara sua interpretação sobre o tratamento

dado ao estrangeiro em nossas terras; sugere, inclusive, reparação, que peçamos desculpas.

Em sua visão, isso seria uma oportunidade para sermos melhores. Ela sugere que comecemos

a refletir para reconhecer nosso lado irracional, a única forma de nos tornarmos mais

humanos.

Para o homem que alcançou o Brasil em busca de refúgio e teve sua dignidade violada na exposição de seu nome, rosto e documentos, ainda existe a espera de um segundo teste para o vírus do ebola. Não importa se der negativo ou positivo, devemos desculpas. Devemos reparação, ainda que saibamos que a reparação total é uma impossibilidade, e que essa marca pública já o assinala. Não é uma oportunidade para ele, é para nós. É preciso reconhecer o rato que respira em nós para termos alguma chance de nos tornarmos mais parecidos com um humano (BRUM, 2014).

Leonardo Sakamoto

No texto “A homofobia de Levy Fidelix doeu tanto quanto o silêncio dos candidatos”

o jornalista Leonardo Sakamoto, destaca um dos momentos mais assombrosos da campanha

presidencial de 2014. Em um debate ao vivo, organizado pela TV Record no dia 29 de

setembro do mesmo ano, o candidato Levy Fidelix pronunciou o discurso mais homofóbico já

feito por um candidato à presidência do Brasil ao vivo em rede nacional. Sakamoto em seu

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blog, antes de desenvolver seus argumentos, mostra claramente o tom homofóbico do

discurso:

Questionado por Luciana Genro sobre direitos homoafetivos, ele soltou um rosário de impropérios que fariam corar até os mais fundamentalistas dos parlamentares religiosos. Começou afirmando que “dois iguais não fazem filho”, que “aparelho excretor não reproduz” e ainda teve tempo para comparar homossexuais a quem pratica o crime de pedofilia. Ao final, conclamou: “Vamos ter coragem! Nós somos maioria! Vamos enfrentar essa minoria. Vamos enfrentá-los” (SAKAMOTO, 2014).

Em seguida, Sakamoto apresenta o que ele chama de considerações sobre o caso para

nortear o leitor sobre o peso e o perigo do discurso feito pelo candidato e como isso poderia

influenciar de forma negativa uma nação democrática. Na primeira consideração ele destaca

que o discurso, além de incitar à violência, é criminoso.

Levy Fidelix era visto por parte da população como um personagem caricato e por parte dos jornalistas como um aproveitador à frente de uma legenda de aluguel. Após esse discurso incitador de violência contra homossexuais, poderia muito bem entrar na categoria de criminoso (SAKAMOTO, 2014).

Na sequência, ele aponta que esse pronunciamento, além de difundir a violência,

promove o ódio entre as pessoas e que esse tipo de “opinião” não é uma simples forma de

expressão, mas um discurso que, além de segregar a população, acaba por revelar o

pensamento de diversas pessoas que, ao invés de se sentirem incomodadas com isso, acharam

até graça no discurso.

Por meio da articulação de depoimentos coletados nas redes sociais após o discurso,

Sakamoto, de forma vigorosa, aponta em seu ensaio sua visão sobre o incidente, buscando

trazer clareza para os leitores sobre o tema, enfatizando a obscenidade e o perigo deste

discurso, para desta forma orientar seus leitores sobre a visão distorcida que parte da

população teve após o acontecimento:

Nas redes sociais, parte dos leitores apoiaram Levy Fidelix “por ele ter a coragem de dizer o que pensa”. Isso não é coragem, é idiotice. Se ele pensa aquele pacote de sandices, que guarde para si e não propague isso em uma rede nacional de TV, concessão pública, sendo visto por milhões de pessoas, difundindo e promovendo o ódio contra pessoas.

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Discordo de quem afirma que é melhor que isso seja dito abertamente para mostrar o que ocorre no subterrâneo da sociedade. Porque isso não está no subterrâneo. Esse esgoto corre a céu aberto, dia a pós dia, dito e repetido exaustivamente, justificando atos de violência. Acham que os indignados com a ceninha feita por Levy no debate são a maioria da população? Sabem de nada, inocentes! A maioria achou graça no que ele falou ou mesmo concordou com ele. Revelar o quê, portanto? O espelho no qual a maioria já se vê diariamente? (SAKAMOTO, 2014)

Por último, o autor questiona a ausência de repúdio pelos outros candidatos que, ao

invés de se colocarem contra esse tipo de atitude, estavam preocupados em não perder votos

das pessoas que poderiam concordar com esse pensamento homofóbico. Diversos trechos do

texto deixam clara a indignação do jornalista, enfatizando desta forma, o seu posicionamento.

Fosse uma eleição decente, com candidatos que realmente estão preocupados com a dignidade das pessoas, todos e todas iriam repudiar veementemente a fala homofóbica de Levy ao final do debate. Mas é cada um por si em um grande “vamos usar nosso tempo precioso para tentar angariar alguns votos na fala final”. Ou, pior: “melhor não falar nada para não perder os votos dos malucos que concordam com o que ele disse”. (SAKAMOTO, 2014)

Jamil Chade

Jamil Chade, jornalista do portal Mídia Ninja, em fevereiro de 2015, escreveu uma

matéria tendo como pano de fundo o Carnaval do Rio de Janeiro, mas, ao invés de destacar as

mulatas, os “globais” ou o nudismo, pautas recorrentes para a época, Chade preferiu abordar

uam pauta nada usual para os padrões de cobertura do tema em questão. Seu ensaio procurou

desmascarar a negociação feita para a compra do tema de uma escola de samba, o enredo da

escola Beija-Flor deste ano, feita pelo ditador da Guiné Equatorial Teodoro Obiang. Segundo

o jornalista, Obiang pagou cerca de 3 milhões de euros para a Beija-Flor fazer um desfile em

homenagem a seu país.

O detalhe é que no país em questão mais de dois terços da população vivem em média

com apenas US$ 1 por dia e o ditador é investigado por crimes de enriquecimento ilícito e por

desviar dinheiro da corrupção para outros países; somente nos Estados Unidos, Obiang foi

obrigado a pagar US$ 30 milhões pelo crime de desvio. Chade abre seu texto de forma

vigorosa, expondo os bastidores da “festa do povo brasileiro” onde criminosos, por meio de

suas riquezas adquiridas de formas ílicitas, comandam uma das maiores festas do mundo.

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Neste carnaval, um criminoso internacional estará na Sapucaí. Não se trata de um traficante de drogas, de um bicheiro, de ex-diretor da Petrobras e nem de um comerciante de armas. O homem mais perigoso deste desfile em 2015 estará na ala VIP do Sambódromo, tratado como um rei. Afinal, foi ele quem alugou uma das escolas de samba mais tradicionais do Brasil, comprou o samba-enredo e vestiu o grupo para servir de plataforma para apresentar ao mundo as belezas de seu país (CHADE, 2015).

Chade contextualiza o leitor sobre a prática de compras de sambas-enredo que já

acontece há algum tempo, mas destaca, em sua reflexão, a gravidade no caso específico e

lembra, por meio de outras vozes, como a de Miguel de Unamuno, que é preciso ter cuidado

com as ditaduras que “também fazem elas canções”. Dessa forma, o jornalista traz

informações, de forma clara e elaborada em seu texto, em busca de uma interpretação mais

crítica sobre o assunto por parte dos leitores.

É verdade. A compra de um samba-enredo não é exclusividade da Guiné. Em 2003, Hugo Chavez bancou a escola campeã do Carnaval do Rio, com uma homenagem à América Latina. Neste ano, os suíços também pagaram milhões para “inspirar” o samba da Unidos da Tijuca, a atual campeã. Na letra, paga também com a ajuda de bancos, nenhuma menção a contas secretas da Petrobras na Suíça e do fato de seu sistema financeiro ser o verdadeiro Lava-Jato do mundo.

Mas nada se compara ao serviço que a Beija-Flor prestará a um governo que reprime a voz de qualquer dissidente. Neste fim de semana, o bumbo da escola vai ajudar a silenciar qualquer grito desesperado de ajuda que possa vir da Guine (CHADE, 2015).

O jornalista, com pitadas de ironia, satiriza a letra do samba-enredo e o

desconhecimento dos integrantes da escola de samba e seus fãs, sobre a situação do país em

questão. Apresenta, por meio de um texto ácido e vigoroso, dados sobre a realidade de um

povo que sofre com desvios das verbas públicas e com o descaso das autoridades.

Mas talvez os foliões queiram saber quem é exatamente a pessoa que está financiando aquela fantasia que, com um sorriso no rosto, o carioca vai desfilar com orgulho. O samba-enredo que fala das belezas naturais do país e das qualidades de um povo que faço questão de apresentar aqui, sem serpentina.

Obiang chegou ao poder em 1979, em um sangrento golpe de estado em que tirou da presidência seu próprio tio. Hoje, ele é o presidente africano com mais anos no poder, superando até mesmo Robert Mugabe do Zimbábue e sem previsão de deixar o cargo.

Pena que os autores do enredo não tiveram acesso aos dados sociais da Guiné que o Banco Mundial apresenta sempre que vai tratar da ex-colônia

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espanhola. Com apenas 720 mil pessoas, o minúsculo país enriqueceu graças ao descobrimento de petróleo.

O problema é que esse dinheiro jamais chegou à população. Mais de dois terços dos cidadãos vivem com uma renda de menos de US$ 1,00 por dia. Quase 90% das pessoas não têm acesso à Internet e a expectativa de vida é de apenas 53 anos, o equivalente ao que existia na Europa há quase 200 anos. (CHADE, 2015)

Em seu ensaio, Chade utiliza a declaração da vice-procuradora dos Estados Unidos

para autenticar os dados apresentados, uma forma de buscar clareza e uma visão mais ampla

sobre o assunto por meio de outras vozes, articulando desta maneira múltiplas perspectivas

sobre o tema: “‘Houve um incansável roubo e extorsão’, indicou Leslie Caldwell, vice-

procuradora dos EUA. ‘Sem nenhuma vergonha, a família roubou seu país para financiar um

estilo de vida de luxo’”(CHADE, 2015).

No fechamento de seu texto, o jornalista sugere, como uma forma de luta contra esse

tipo de abuso de poder, um tipo de protesto. É certo que isso seria muito difícil de acontecer,

mas apenas pelo fato de ele conseguir criar essa imagem na cabeça de seu leitor, Chade

consegue fazer com que seu leitor sinta, pelo menos por um instante, a força e a mensagem

que esse cena passaria ao mundo.

Um significativo protesto seria o silêncio da bateria ao passar diante do ditador na avenida, num silêncio ensurdecedor. A escola certamente perderia o Carnaval 2015. Mas seria reverenciada pelo mundo e, acima de tudo, pela oprimida população da Guiné que finalmente veria a máscara de seu ditador cair, e antes da quarta-feira de cinzas (CHADE, 2015).

Claudia Regina

No portal Papo de Homem, na seção “Ensaios”, Claudia Regina publicouem maio de

2013, o texto Como se sente uma mulher. Trata-se de um ensaio sobre os sentimentos diários

de uma mulher em um país patriarcal e machista. Regina mostra em sua narrativa os abusos

sofridos na pele. Escreve em primeira pessoa e usa suas lembranças, desde os treze anos

repleta de situações constrangedoras, mostrando as dificuldades de ter nascido mulher no

Brasil.

Aconteceu quando eu tinha treze anos. Praticava um esporte quase todos os dias. Saía do centro de treinamento e andava cerca de duas quadras para o ponto de ônibus, às seis da tarde. Andava pela calçada quase vazia ao lado de uma grande rodovia. Dessas caminhadas, me recordo dos primeiros

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momentos memoráveis desta violência urbana. Carros que passavam mais devagar do meu lado e, lá de dentro, eu só ouvia uma voz masculina: “gostosa!”. Homens sozinhos que cruzavam a calçada, olhavam para trás e suspiravam: “que delícia.” Eu tinha treze anos. Usava calça comprida, tênis e camiseta (REGINA, 2013).

Mesmo sendo claramente a vítima na situação que relata, a escritora procura se colocar

no lugar do sexo oposto para dialogar com esse pensamento machista implantado na cabeça

dos homens e também das mulheres desde crianças. Sobre essa perspectiva, Regina diz: “Sei

que para homens é difícil entender como isso pode ser violência. Nós mesmas, mulheres, nos

acostumamos e deixamos pra lá. Nós nos acostumamos para conseguir viver o dia a dia.” A

jornalista também relembra uma situação que ela presenciou que a ajudou a compreender

como que esse tipo de pensamento se propaga, inclusive, entre as mulheres.

Esses dias, estava sentada na praia vendo o mar, e dele saiu uma moça. Passou por um rapaz que disse algo. Ela só saiu de perto e veio na minha direção. Dei boa-noite, ela falou que a água estava uma delícia, e conversamos um pouco. Perguntei se o cara havia lhe falado alguma besteira. Ela disse, “falou, mas a gente tá tão acostumada, né?, começa a ignorar automaticamente” (REGINA, 2013).

A autora também convida o leitor a fazer um esforço para se colocar no lugar do sexo

feminino apenas por um instante, em um outro tipo de realidade, a realidade que diversas

mulheres vivem diariamente. Desta forma, além de fazer com que a sua visão seja

compreendida, esse tipo de atitude, acaba por incentivar o leitor a assumir o seu papel como

agente social de uma mudança de pensamento, com o intituito de criar ações de integração

entre as pessoas, para que essas se reconheçam e busquem uma compreensão mútua.

O privilégio é invisível. Para o homem, só é possível ver o privilégio se houver empatia. Tente imaginar um mundo onde, por cinco mil anos, todos os homens foram subjugados, violentados, assassinados, podados, controlados. Tente imaginar um mundo onde, por cinco mil anos, só mulheres foram cientistas, físicas, chefes de polícia, matemáticas, astronautas, médicas, advogadas, atrizes, generais (REGINA, 2013).

Para letigimar sua visão sobre a posição da mulher no mundo desde a Antiguidade,

Regina traz para sua narrativa as palavras da escritora Virgínia Woolf, e, por meio desse

diálogo, acaba por nos mostrar a complexidade das coisas quando nos dispomos a praticar

uma visão mais ampla sobre esse tipos de assunto.

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No seu texto “Um teto todo seu”, Virgínia Woolf descreve por que seria impossível para uma hipotética irmã de Shakespeare escrever de forma genial como ele. Woolf diz: “quando lemos sobre uma bruxa sendo queimada, uma mulher possuída por demônios, uma mulher sábia vendendo ervas… acho que estamos olhando para uma escritora perdida, uma poeta anulada.”

Desde o início do patriarcado, há cinco mil anos, as mulheres não tiveram liberdade suficiente para serem cientistas ou artistas. Woolf explica: “liberdade intelectual depende de coisas materiais. … E mulheres foram sempre pobres, não por duzentos anos, somente, mas desde o início dos tempos” (REGINA, 2015).

No encerramento de seu ensaio, Regina deixa claro que seu relato é apenas um resumo

dos tipos de violência que ela e diversas mulheres sofrem diariamente, violências não apenas

no aspecto físico, mas também, no tamanho desproporcional das oportunidades que existem

para os gêneros desde os tempos remotos.

Isso é um resumo muito pequeno do que eu sofro ou corro o risco de sofrer todo dia. Eu, mulher branca, hétero, classe média. A negra sofre mais que eu. A pobre sofre mais que eu. A oriental sofre mais que eu. Mas todas nós sofremos do mesmo mal: nenhum país do mundo trata suas mulheres tão bem quanto seus homens. Nenhum. Nem a Suécia, nem a Holanda, nem a Islândia! Em todo o mundo “civilizado” sofremos violência, temos menos acesso à educação, ao trabalho ou à política.

Em todo o mundo, somos ainda as irmãs de Shakespeare. E você, leitor homem? Quando é abordado de forma hostil por um estranho na rua, pensa “por favor, não leve meu celular” ou “por favor, não me estupre”? (REGINA, 2015).

Uma das coisas mais interessantes nesse texto é que, apesar do portal ser direcionado

ao público masculino, o seu ensaio foi um dos mais acessados no ano em que foi publicado.

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CAPÍTULO 4

Método de construção de um ensaio jornalístico: uma tentativa

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Estimulado pelo modelo de Català, e nos amparando nas incertezas de que fala Edgar

Morin (2005), na sequência apresentaremos uma tentativa de formulação de método para a

construção de um ensaio jornalístico. Nesse método, iremos descrever as três parte principais

que compõem o processo de construção desse tipo de ensaio. Uma tentativa de estruturação

de um modelo de exposição.

A proposta desse método consiste em acreditar que o ponto de partida para um

ensaio jornalístico acontece a partir de um dos três tópicos que se relacionam dentro da esfera

do Ato de Compreender (pautas, múltiplas perspectivas e experiência pessoal). Depois desses

três se combinarem, independentemente de sua ordem, passamos então para o Ato de

Interpretar. Por fim, chegamos ao Ato final, o de Reportar. A seguir, apresentaremos um

mapa e detalharemos cada um dos passos desse método:

PAUTAS

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Figura 2 – Proposta de método para a criação de um ensaio jornalístico

1 - O Ato de Compreender

Mais do que querer explicar, é preciso buscar o entendimento, mesmo que não se

concorde com os pontos de vista observados por meio da autorreflexão. É necessário esforço

para se colocar no lugar do outro, para procurar um entendimento de sua visão sobre

determinado tema. Para Künsch, “compreender, de comprehendere, evoca originalmente a

ideia de abranger, abraçar junto” (2005, p. 46). Para compreender, é preciso generosidade,

boa vontade e disposição. Vargas também nos mostra que o ato de compreender vem antes do

ato de interpretar. Em suas palavras:

Para interpretar, primeiro temos que compreender e, para isso, precisamos mergulhar no Ser Humano. O reportar encerra em si uma paixão: o desafio de conhecer, descobrir e relatar, não só com o cérebro, mas também com o coração, todos os sentidos, e nos múltiplos tempos e espaços. Eis outra forma de reviver o acontecido e de fazer história (VARGAS, 2012, p. 28).

No processo de construção de um ensaio jornalístico, torna-se vital, para o ensaísta,

navegar, de forma aberta, por três principais tópicos: pautas, perspectivas e experência

pessoal. Neste primeiro momento, não existe uma ordem específica para trabalhar cada um

desses tópicos, mas é de extrema importância que todos eles dialoguem. Segue uma

apresentação do que se refere cada um deles:

Pautas - Os ensaios jornalísticos apenas se tornam viscerais se as pautas escolhidas

tiverem relação íntima com o autor e sejam atuais. É preciso ter algum tipo de sentimento em

relação a elas para que, nas entrelinhas da produção desse tipo de texto, seja notado o vigor

das palavras como marcas do autor. De outra forma, características como sedução estilística,

dinamismo e aproximação do entendimento humano não terão a mesma presença de espírito

no momento da produção do texto propriamente dito. A escolha de pautas que fogem das

agendas tradicionais das redações é uma prática que deve ocorrer quando se busca algo que

surpreenda e capte a atenção do leitor.

Múltiplas Perspectivas - É preciso conhecer o yin e o yang do que se escreve, ou

seja, o que há de positivo, o que há de negativo e, também, o que é neutro. Afinal, será que

devem existir o certo e o errado no campo investigativo? Ou será que há visões de mundo, e a

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verdade pode ser apenas um ponto de vista? As camadas de realidade são tão complexas que a

própria física quântica entra nessa seara para discutir qual a realidade de cada um; dessa

perspectiva é impossível afirmar que exista alguma verdade absoluta. Por isso, quanto mais

vozes dialogarem, maior a chance de vermos um quadro mais amplo e, assim, entender sua

importância. A máxima “contra fatos não há argumentos” pode ser facilmente questionada

pela simples ideia de que argumentos bem elaborados podem apontar fatos ainda não

descobertos ou pouco percebidos. Saber colocar as perspectivas e os fatos frente a frente,

coordenando essa mesa de debate no campo das ideias, é o azeite na engrenagem de um bom

ensaio, principalmente no campo jornalístico, que se propõe a investigar e a autenticar as

informações disponíveis, sejam elas estatísticas, vozes de especialistas, dados, testemunhos,

histórias de vida, documentos entre outros.

Experiência pessoal - Viver o que se escreve, presenciar, aproximar-se, ver, ouvir,

sentir. Como descrever, por exemplo, uma Jerusalém morando no Brasil? Por filmes, vídeos e

fotos? De forma superficial e apenas estética até é possível conseguir, mas a probabilidade de

se falar com propriedade e de forma intimista deste lugar é muito maior para quem já esteve

lá, para quem pisou naquele chão considerado sagrado e disputado pelas três grandes religiões

monoteístas. Só entende os conflitos, as belezas e as histórias quem andou entre mesquitas,

igrejas e sinagogas em uma mesma região. Só entende a dor quem conversou com árabes,

católicos e judeus e ouviu suas “verdades” atuais; atuais, pois essas também mudam.

Como compreender algo que não se viveu? Como reportar algo que não se sentiu?

Aqui cabe muito bem o posfácio do livro de Eliane Brum, A vida que ninguém vê, em que a

autora escreve sobre a importância de viver a história, de ir ao encontro da vida. E, em suas

palavras: “Se o telefone e a internet são invenções geniais, não há tecnologia capaz de tornar

obsoleto o encontro entre um repórter e seu personagem” (BRUM, 2006, p. 190). E, ainda

nessa seara da vivência e da experiência pessoal do repórter e seu principal instrumento de

trabalho, ela diz: “Esse olhar que olha para ver, que se recusa a ser enganado pela banalidade

e que desconfia do óbvio é o primeiro instrumento de trabalho do repórter” (BRUM, 2006, p.

190).

2 - O Ato de Interpretar

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Nessa ação, busca-se estabelecer, simultânea ou consecutivamente, a comunicação

verbal entre os fatos, as perspectivas e a experiência pessoal do ensaísta com a pauta em

questão. Trata-se do processo e do resultado de tudo aquilo que foi levantado durante o

trabalho de entendimento do objeto ou sujeito de estudo. Nesse ato é que consiste a

descoberta dos sentidos e significados daquilo que se escreve.

No ensaio jornalístico, as coisas não são explicadas ou definidas, mas, sim,

interpretadas. Se o assunto foi abordado compreensivamente e houve uma reflexão por parte

de quem o leu, seu propósito foi alcançado. Nesse ato, o jornalista não abre mão do papel de

mediação, oferecendo, desta forma, condições para o leitor interpretar as informações

passadas, recuperando assim a função primordial de orientação.

3 - O Ato de Reportar

É essencial para o jornalista não se desviar de seus propósitos iniciais, que são a

objetividade do tema e o equilíbrio entre os pontos de vista levantados durante uma apuração

polifônica, cumprindo sempre com o compromisso inegociável com a atualidade. Limitar-se

apenas ao universo da observação e da reflexão, sem se amparar com rigor nos métodos de

captação investigativa, pode implicar na falta de racionalidade e em um texto fechado, sem

diálogos, que não contempla a essência de seu propósito inicial.

Tendo em mente a importância da parte documental e investigativa, a preocupação

seguinte é a de se fazer compreender. O jornalista, pelo seu estilo de escrita, deve envolver o

leitor e aproximá-lo do tema. Esse ato contempla a clareza, o vigor das palavras, atitudes

apreciadas por leitores ávidos por notícias que o aproximem de um entendimento do mundo.

Espera-se, em um ensaio de tipo jornalístico, que a voz autoral se faça presente; essa voz

aponta os caminhos descobertos e levanta questões para que o leitor faça a sua interpretação

sobre o assunto em pauta. Não é de forma alguma um texto que se propõe a um fechamento

sobre qualquer que seja o tema. O que se propõe aqui é justamente o contrário: é a abertura

para novos estudos, novas reflexões, novas pesquisas.

No princípio, foi o verbo Reportare [do latim], que significa transmitir, descobrir, anunciar, trazer novas. Re [do latim] antepõe-se a verbos e designa movimento para trás, aí está o passado. Portar é carregar consigo. Aqui temos o presente caminhando para o futuro. Repor é recolocar, reconstituir. Assim, reportar é revolver sobre si... O reportar encerra em si uma paixão: o desafio de conhecer, descobrir e relatar, não só com o cérebro,

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também com o coração, todos os sentidos, e nos múltiplos tempos e espaços. Eis outra forma de reviver o acontecido (VARGAS, 1998, p. 18).

COMPREENSÕES INICIAIS

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Um incômodo. A forma, em geral, como se trata o campo jornalístico contemporâneo

me incomoda. Sinto falta de perceber nexos no emaranhado de notícias. Quanto mais

conexões, menos nexos. Menos produção social, orgânica e dinâmica de sentidos. É tudo

muito fragmentado.

Foi essa pedra no sapato que me fez pesquisar, buscar e – por que não dizer? –

resgatar, pelo menos para mim, um método e um gênero textual, mais atual do que nunca pela

forma como pensa e pratica a produção e a expressão do conhecimento. Uma alternativa,

talvez. Ou, até, uma rota de fuga do jornalismo raso, impessoal e homogêneo praticado nas

redações dos maiores veículos.

Esses veículos, tanto faz se portais, jornais ou canais de TV, passam hoje pelo que

chamo de “Mcdonaldização” do jornalismo, somado a um analfabetismo emocional. Isso

pode ser mais bem identificado, se observarmos o processo de seleção, apuração e divulgação

das notícias. Na maioria das vezes, o que aparece é um jornalismo focado, exclusivamente, na

audiência. Para alcançá-la, opta-se por matérias banais ou de pouca relevância, com uma dose

maior ou menor de espetacularização. O que se busca é atingir o maior número de pessoas.

Ou de cliques.

Todo tipo de informação, de algum modo, é sempre útil para alguém. A questão,

porém, é a seguinte: será que o jornalismo é apenas isso ou é também isso? O peso dado a

cada uma dessas posições é adequado ou desproporcional?

Pautas, edição, títulos etc., a maioria cai sob o molde da homogeneidade, do

reducionismo e do sensacionalismo. Nesse tipo dominante de jornalismo, não há espaço para

o diálogo entre diversos pontos de vistas, entre as diversas perspectivas possíveis, os vários

lados de uma questão. Vemos os “especialistas” de sempre apresentando as mesmas visões de

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sempre, em sua maioria ajustadas à linha editorial dos veículos e aos modos como esses

veículos pensam o jornalismo e a vida social.

As vozes das pessoas que vivem na pele as consequências dos acontecimentos

raramente são ouvidas, quando não são excluídas totalmente. Ou aparecem apenas como

caricatura do cidadão comum, sendo exploradas muito mais as suas fragilidades intelectuais

do que evidenciada a sua experiência pessoal. As pessoas supostamente gabaritadas pelo seu

know-how, formação acadêmica ou profissional, ou, simplesmente, pelo poder, essas recebem

um espaço digno ou de prestígio nos meios de comunicação. São os olimpianos de sempre.

O conhecimento de tipo comum, nascido da experiência de vida e da cultura popular,

quase sempre é deixado de lado e marginalizado, até mesmo por aqueles que supostamente

estariam em condições de perceber sua vital importância para a sociedade. No fundo, a gente

sabe que todo esse processo e método de construção da notícia nada mais é do que uma forma

de manter o status quo, em obediência cega às estruturas invisíveis de poder que moldam

profissionais e proprietários da área jornalística.

Os textos são produzidos dessa forma para que o maior número de pessoas consiga

consumi-los – e não necessariamente para que essas mesmas pessoas possam interpretá-los e

se situarem frente ao que está acontecendo. É justamente o contrário, o que vemos é um

jornalismo em grande medida de caráter explicativo. E esse tipo de jornalismo atrofia nossos

cérebros. A explicação assume o lugar da reportagem. E isso incomoda.

Esse incômodo me levou a uma busca. Uma busca por alternativas. Alternativas de

ver, compreender e interpretar o mundo. A ideia geradora dessa busca não é a de rejeição a

outros modelos, gêneros ou métodos, e, sim, a de resgate do lugar e da dignidade do ensaio no

concerto amplo das experiências humanas de compreensão da realidade, do conhecimento, da

cultura, da vida. O ensaio, operando no espaço gerado pela crítica ao positivismo e às ideias

de certeza e verdade, e exercitando-se numa epistemologia de tipo compreensivo, pode

representar um modelo privilegiado, na contemporaneidade, tanto de produção de

conhecimento quanto, igualmente, de expressão livre, aberta, dialógica, compreensiva, desse

mesmo conhecimento.

Num mundo de incertezas, marcado por avanços tecnológicos, encontramo-nos diante

de uma legítima crise de velhos paradigmas diante da qual o ensaio ressurge, com toda a sua

importância, buscando seu espaço no jornalismo, para proporcionar mais liberdade e

integração entre campos, disciplinas e redes.

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A proposta desta dissertação é a de ressaltar o lugar e a importância do ensaio

jornalístico neste momento de crise em que o jornalismo se encontra. Momento de busca de

novas perspectivas. De olhar para trás e para a frente. Um momento necessário.

Neste trabalho, deixo pontos de interrogação e espaços para os colegas contribuírem

com seus pensamentos, suas críticas e suas visões de mundo. Assim como o ensaio, essa

dissertação não acredita em fechamentos, definições ou reduções. Tenho consciência de que

minha tentativa nem de longe cobre todos os aspectos que envolvem esse tema, mas acredito

que posso, com a minha pequena contribuição, ajudar a disseminar o poder que envolve esse

tipo de pensamento. Um pensamento de tipo compreensivo. Um pensamento ensaístico.

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REFERÊNCIAS

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______. “O lugar da oratura na revista reportagensaio: um flagrante de folkcomunicação”. In: Líbero, São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 21-32, jun. de 2012. VOLPONI, Rodrigo. O ensaio-reportagem como gênero do jornalismo literário: a importância da compreensão do fato por meio do ensaio-reportagem. Monografia (Conclusão de Curso), Habilitação em Jornalismo, Curso de Comunicação Social, Faculdades Integradas Rio Branco, São Paulo, 2010. ______. Garotos de 30 anos. Produto. Monografia (Conclusão de Curso), Habilitação em Jornalismo, Curso de Comunicação Social, Faculdades Integradas Rio Branco, São Paulo, 2010.

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ANEXOS

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ANEXO 1

Capas dos portais online

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Figura 3 - Capa da versão online da Revista Semanal Época.

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Figura 4 - Capa do portal IG.

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Figura 5 - Capa do portal Terra.

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Figura 6 - Capa do portal Uol.

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Figura 7 - Capa da versão online do Jornal O Estado de São Paulo.

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Figura 8 - Capa da versão online do Jornal Folha de São Paulo.

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Figura 9 - Capa da portal Mídia Ninja.

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Figura 10 - Capa da versão online da revista Carta Capital.

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Figura 11 - Capa da versão online da revista Veja.

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ANEXO 2

Textos

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ANEXO 2A

Veículo: EL PAÍS

Autora: ELIANE BRUM

Data: 13/10/2014

Título: O vírus letal da xenofobia. O primeiro teste no Brasil deu negativo para o ebola, mas

positivo para o racismo

Uma epidemia, como Albert Camus sabia tão bem, revela toda a doença de uma sociedade. A

doença que esteve sempre lá, respirando nas sombras (ou nem tão nas sombras assim),

manifesta sua face horrenda. Foi assim no Brasil na semana passada. Era uma suspeita de

ebola, fato suficiente, pela letalidade do vírus, para exigir o máximo de seriedade das

autoridades de saúde, como aconteceu. Descobrimos, porém, a deformação causada por um

vírus que nos consome há muito mais tempo, o da xenofobia. E, como o outro, o

“estrangeiro”, a “ameaça”, era africano da Guiné, exacerbada por uma herança escravocrata

jamais superada. O racismo no Brasil não é passado, mas vida cotidiana conjugada no

presente. A peste não está fora, mas dentro de nós.

Foi ela, a peste dentro de nós, que levou à violação dos direitos mais básicos do homem sobre

o qual pesava uma suspeita de ebola. Contrariando a lei e a ética, seu nome foi exposto. Seu

rosto foi exposto. O documento em que pedia refúgio foi exposto. Ele não foi tratado como

um homem, mas como o rato que traz a peste para essa Oran chamada Brasil. Deste crime,

parte da imprensa, se tiver vergonha, se envergonhará.

Ainda existe a espera de um segundo teste para o vírus do ebola. Não importa se der negativo

ou positivo, devemos desculpas.

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Não sei se há desamparo maior do que alcançar a fronteira de um país distante, nessa solidão

abissal. E pedir refúgio, essa palavra-conceito tão nobre, ao mesmo tempo tão delicada. E

então se sentir mal, e cada um há de saber como a fragilidade da carne nos escava. Corrói

mesmo aqueles que têm o melhor plano de saúde num país desigual. Ele, desabitado da

língua, era desterrado também do corpo. Para alcançar o que viveu o homem desconhecido,

porque o que se revelou dele não é ele, mas nós, é preciso vê-lo como um homem, não como

um rato que carrega um vírus. Para alcançá-lo é preciso vestir o homem. Mas só um humano

pode vestir um humano.

E logo ouviu-se o clamor. Não é hora de fechar as fronteiras?, cobrou-se das autoridades. Que

os ratos fiquem do lado de fora, onde sempre estiveram. Que os ratos apodreçam e morram.

Para os ratos não há solidariedade nem compaixão. Parece que nada se aprendeu com a Aids,

com aquele momento de vergonha eterna em que os gays foram escolhidos como culpados, o

preconceito mascarado como necessária medida sanitária.

E quem são os ratos, segundo parte dos brasileiros? Há sempre muitos, demais, nas redes

sociais, dispostos a despejar suas vísceras em praça pública. No Facebook, desde que a

suspeita foi divulgada, comprovou-se que uma das palavras mais associadas ao ebola era

“preto”. “Ebola é coisa de preto”, desmascarou-se um no Twitter. “Alguém me diz por que

esses pretos da África têm que vir para o Brasil com essa desgraça de bactéria (sic) de ebola”,

vomitou outro. “Graças ao ebola, agora eu taco fogo em qualquer preto que passa aqui na

frente”, defecou um terceiro. Acreditam falar, nem percebem que guincham.

“Descrever uma epidemia é uma forma magistral de revelar as diversas formas de

totalitarismo que maculam uma sociedade. Neste quesito, os brasileiros não economizaram. A

divulgação, por meios de comunicação que atingem dezenas de milhões de pessoas, da foto de

um homem negro, vindo da África, como suspeito de ebola, foi a apoteose do fantasma do

estrangeiro como portador da doença”, afirmou a esta coluna Deisy Ventura, professora de

direito internacional da Universidade de São Paulo, pesquisadora das relações entre direito e

saúde, autora do livro Direito e Saúde Global – O caso da pandemia de gripe A (H1N1).

“Veja que este fantasma é mobilizado em relação aos pobres, sobretudo negros, nunca em

relação aos estrangeiros ricos e brancos. O escravagismo, terrível doença da sociedade

brasileira, associa-se ao desejo conjuntural de dizer: este governo não deveria ter deixado

essas pessoas entrarem. É uma espécie de lamento: tanto se esforçaram as elites para

branquear este país, e agora querem preteá-lo?”

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A África desponta, de novo e sempre, como o grande outro. Todo um continente povoado por

nuances e diversidades reduzido à homogeneidade da ignorância – a um fora. Como disse um

imigrante de Burkina Faso à repórter Fabiana Cambricoli, do jornal O Estado de S. Paulo:

“Os brasileiros não sabem que Burkina Faso é longe dos países que têm ebola. Acham que é

tudo a mesma coisa porque somos negros”. Ele e dezenas de imigrantes de diversos países da

África estão sendo hostilizados e expulsos de lugares públicos na cidade de Cascavel, no

Paraná, onde o primeiro caso suspeito foi identificado. Tornaram-se “os caras com ebola”,

apontados na rua “como os negros que trouxeram o vírus para o Brasil”.

O ebola não parece ser um problema quando está na África, contido entre fronteiras. Lá é

destino. O ebola só é problema, como escreveu o pesquisador francês Bruno Canard, porque o

vírus saiu do lugar em que o Ocidente gostaria que ele ficasse. “A militarização da resposta ao

ebola, que com a anuência do Conselho de Segurança das Nações Unidas, em setembro

último, passou da Organização Mundial da Saúde a uma Missão da ONU, revela que a grande

preocupação da comunidade internacional não é a erradicação da doença, mas a sua contenção

geográfica”, reforça Deisy Ventura.

O homem a quem se acusou de trazer a doença para o Brasil, para o lugar onde o vírus não

pode estar, sempre foi um sem nome, um ninguém, um não ser. Só é nomeado, ganha rosto,

para mais uma vez ser violado. Para que continue a não ser enxergado, porque nele só se vê a

ameaça, que é mais uma forma de não reconhecê-lo como humano. Ele, o rato.

A história do liberiano que morreu de ebola nos Estados Unidos expõe o labirinto. Ele tinha

18 anos quando a guerra civil começou a matança que só terminaria em 250 mil cadáveres.

No campo de refugiados na Costa de Marfim conheceu uma mulher e teve com ela um filho.

Ela conseguiu migrar para os Estados Unidos com a criança de três anos, ele seguiu para um

campo de refugiados em Gana. Só em 2013 conseguiu voltar ao seu país devastado. Em

setembro, finalmente, obteve o visto para entrar nos Estados Unidos, para casar com a mãe de

seu filho e ver o menino, agora quase um adulto, se formar no ensino médio. Antes de partir,

um gesto de solidariedade: ajudou a levar uma vizinha com ebola para o hospital. Sem saber,

carregou com ele o vírus da doença para além das fronteiras. O labirinto era sem saída, o

futuro só existia como passado, e ele morreu nos Estados Unidos. O filho do qual ficou

exilado por 16 anos não pôde se despedir do pai. O legado da saudade do pai era a marca de

um flagelo deixado no filho pelo olhar do Ocidente. Para os mesmos de sempre, o exílio

ultrapassa a vida.

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Para o homem que alcançou o Brasil em busca de refúgio e teve sua dignidade violada na

exposição de seu nome, rosto e documentos, ainda existe a espera de um segundo teste para o

vírus do ebola. Não importa se der negativo ou positivo, devemos desculpas. Devemos

reparação, ainda que saibamos que a reparação total é uma impossibilidade, e que essa marca

pública já o assinala. Não é uma oportunidade para ele, é para nós.

É preciso reconhecer o rato que respira em nós para termos alguma chance de nos tornarmos

mais parecidos com um humano.

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ANEXO 2B

Veículo: Blog do Sakamoto

Autor: Leonardo Sakamoto

Data: 29/09/2014

Título: A homofobia de Levy Fidelix doeu tanto quanto o silêncio dos candidatos

Um dos pontos mais baixos da campanha presidencial foi protagonizado por Levy Fidelix

(PRTB), na madrugada desta segunda (29), durante o debate dos presidenciáveis organizado

pela TV Record.

Questionado por Luciana Genro sobre direitos homoafetivos, ele soltou um rosário de

impropérios que fariam corar até os mais fundamentalistas dos parlamentares religiosos.

Começou afirmando que “dois iguais não fazem filho'', que “aparelho excretor não reproduz''

e ainda teve tempo para comparar homossexuais a quem pratica o crime de pedofilia. Ao

final, conclamou: “Vamos ter coragem! Nós somos maioria! Vamos enfrentar essa minoria.

Vamos enfrentá-los''.

Algumas considerações:

1) Levy Fidelix era visto por parte da população como um personagem caricato e por parte

dos jornalistas como um aproveitador à frente de uma legenda de aluguel. Após esse discurso

incitador de violência contra homossexuais, poderia muito bem entrar na categoria de

criminoso.

2) Nas redes sociais, parte dos leitores apoiaram Levy Fidelix “por ele ter a coragem de dizer

o que pensa''. Isso não é coragem, é idiotice. Se ele pensa aquele pacote de sandices, que

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guarde para si e não propague isso em uma rede nacional de TV, concessão pública, sendo

visto por milhões de pessoas, difundindo e promovendo o ódio contra pessoas.

3) Discordo de quem afirma que é melhor que isso seja dito abertamente para mostrar o que

ocorre no subterrâneo da sociedade. Porque isso não está no subterrâneo. Esse esgoto corre a

céu aberto, dia a pós dia, dito e repetido exaustivamente, justificando atos de violência.

Acham que os indignados com a ceninha feita por Levy no debate são a maioria da

população? Sabem de nada, inocentes! A maioria achou graça no que ele falou ou mesmo

concordou com ele. Revelar o quê, portanto? O espelho no qual a maioria já se vê

diariamente?

4) Fosse uma eleição decente, com candidatos que realmente estão preocupados com a

dignidade das pessoas, todos e todas iriam repudiar veementemente a fala homofóbica de

Levy ao final do debate. Mas é cada um por si em um grande “vamos usar nosso tempo

precioso para tentar angariar alguns votos na fala final''. Ou, pior: “melhor não falar nada para

não perder os votos dos malucos que concordam com o que ele disse''.

Pessoas como Levy Fidelix deveriam também ser responsabilizadas por conta de atos

bárbaros de homofobia que pipocam aqui e ali – de ataques com lâmpadas fluorescentes na

Avenida Paulista a espancamentos no interior do Nordeste. Pessoas como ele dizem que não

incitam a violência. Não é a mão delas que segura a faca ou o revólver, mas é a sobreposicão

de seus discursos ao longo do tempo que distorce o mundo e torna o ato de esfaquear, atirar e

atacar banais. Ou, melhor dizendo, “necessários'', quase um pedido do céu. São pessoas como

ele que alimentam lentamente a intolerância, que depois será consumida pelos malucos que

fazem o serviço sujo. Nessas horas, a gente percebe a falta que faz uma lei contra a

homofobia.

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ANEXO 2C

Veículo: Mídia Ninja

Autora: Jamil Chade

Data: 14/02/2015

Título: Fantasias roubadas: um ditador na passarela

Neste carnaval, um criminoso internacional estará na Sapucaí. Não se trata de um traficante

de drogas, de um bicheiro, de ex-diretor da Petrobras e nem de um comerciante de armas. O

homem mais perigoso deste desfile em 2015 estará na ala VIP do Sambódromo, tratado como

um rei. Afinal, foi ele quem alugou uma das escolas de samba mais tradicionais do Brasil,

comprou o samba-enredo e vestiu o grupo para servir de plataforma para apresentar ao mundo

as belezas de seu país.

Teodoro Obiang, ditador da Guiné Equatorial, pagou 3 milhões de euros para a Beija Flor

esquecer qualquer moral, ética e decência e transformar seu desfile em uma homenagem a um

país que é o símbolo da destruição de uma sociedade por seus líderes.

Na verdade, não foi Obiang quem pagou pela fantasia. O dinheiro veio de seus miseráveis

cidadãos, que jamais foram questionados se estavam de acordo com a iniciativa. Na verdade,

há anos que ninguém os consulta para absolutamente nada.

Fantasiado de estadista, Obiang estará com sua delegação oficial de ministros, laranjas e

opressores na avenida. Ele já havia sediado a Copa da África e vem fazendo esforços

internacionais para mostrar ao mundo a "real imagem" de seu país. O Carnaval, portanto, faz

parte dessa estratégia.

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É verdade. A compra de um samba-enredo não é exclusividade da Guiné. Em 2003, Hugo

Chavez bancou a escola campeã do Carnaval do Rio, com uma homenagem à América Latina.

Neste ano, os suíços também pagaram milhões para "inspirar" o samba da Unidos da Tijuca, a

atual campeã. Na letra, paga também com a ajuda de bancos, nenhuma menção a contas

secretas da Petrobras na Suíça e do fato de seu sistema financeiro ser o verdadeiro Lava-Jato

do mundo.

Mas nada se compara ao serviço que a Beija Flor prestará a um governo que reprime a voz de

qualquer dissidente. Neste fim de semana, o bumbo da escola vai ajudar a silenciar qualquer

grito desesperado de ajuda que possa vir da Guine. Unamuno já dizia: "cuidado, as ditaduras

também fazem belas canções".

Lado B - Mas talvez os foliões queiram saber quem é exatamente a pessoa que está

financiando aquela fantasia que, com um sorriso no rosto, o carioca vai desfilar com orgulho.

O samba-enredo que fala das belezas naturais do país e das qualidades de um povo que faço

questão de apresentar aqui, sem serpentina.

Obiang chegou ao poder em 1979, em um sangrento golpe de estado em que tirou da

presidência seu próprio tio. Hoje, ele é o presidente africano com mais anos no poder,

superando até mesmo Robert Mugabe do Zimbábue e sem previsão de deixar o cargo.

Pena que os autores do enredo não tiveram acesso aos dados sociais da Guine que o Banco

Mundial apresenta sempre que vai tratar da ex-colônia espanhola. Com apenas 720 mil

pessoas, o minúsculo país enriqueceu graças ao descobrimento de petróleo.

Na verdade, o país não enriqueceu. Quem enriqueceu foi a família Obiang e seus amigos.

Levando em consideração a divisão da riqueza do país de forma igualitária a todos, a Guine

teria um PIB per capta médio de US$ 22 mil, superando o Brasil

O problema é que esse dinheiro jamais chegou à população. Mais de dois terços dos cidadãos

vivem com uma renda de menos de US$ 1,00 por dia. Quase 90% das pessoas não tem acesso

à Internet e a expectativa de vida é de apenas 53 anos, o equivalente ao que existia na Europa

há quase 200 anos.

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O governo destina 0,6% de seu PIB para a educação e 20% das crianças estão em um estado

de desnutrição profundo.

Confisco - Enquanto sua população é abandonada, Obiang e sua família vivem em um luxo

que surpreende até mesmo as autoridades dos EUA e Europa. No ano passado, seu filho

Teodoro Nguema Obiang Mangue viveu um constrangimento internacional depois que seu

edifício de cinco andares na sofisticada Avenue Foch, em Paris, foi confiscado pela Justiça

francesa e avaliado em US$ 180 milhões. O prédio com 101 quartos, teatro, cinema e banho

turco tinha sido comprado pelo filho do ditador e, em 2011, vendido ao estado da Guiné-

Equatorial.

Nos banheiros, televisões foram instaladas e talheres de ouro faziam parte dos utensílios da

casa. Uma coleção de arte ainda foi encontrada, com obras de Degas e de Rodin, e uma

decoração avaliada em US$ 50 milhões.

Na garagem, o Fisco apreendeu onze carros de luxo - Bugatti Veyrons, Maybach, Aston

Martin, Ferrari, Rolls-Royce e a Maserati MC12 - e uma adega de vinhos avaliada em 2

milhões de euros.

A suspeita era de que a compra de prioridades havia se transformado em uma forma de os

Obiang lavar dinheiro.

Nos EUA, as autoridades também fecharam o cerco contra a família e, no ano passado, o filho

do ditador foi obrigado a pagar uma multa de US$ 30 milhões por desviar o dinheiro da

corrupção para o pais. Os Obiang mantinham nos EUA uma casa em Malibu, mais uma

Ferrari e itens de coleção de Michael Jackson.

"Houve um incansável roubo e extorsão", indicou Leslie Caldwell, vice-procuradora dos

EUA. "Sem nenhuma vergonha, a família roubou seu país para financiar um estilo de vida de

luxo.

Da multa de US$ 30 milhões, o governo dos EUA decidiu usar US$ 10 milhões para

programas sociais na própria Guine-Equatorial. Afinal, o dinheiro era dessa população.

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Silêncio - De repente a Beija Flor poderia fazer o mesmo e usar parte do dinheiro que recebeu

para destinar a uma escola no país africano e garantir que aquela imagem que ela vai ajudar a

enganar o mundo não seja apenas fantasia.

O mero fato de aceitar o dinheiro já deveria fazer a mão de quem toca o surdo suar frio.

Alguém poderia dizer: agora é tarde demais. Não há como cancelar a festa das festas.

Mas, ao mesmo tempo, com que ilusão alguém samba sabendo que sua fantasia é financiada

pela fantasia de um criminoso que tira dinheiro da educação para alugar uma escola de

samba? Ladrão de sonhos, como diria o refrão!

Um significativo protesto seria o silencio da bateria ao passar diante do ditador na avenida,

num silêncio ensurdecedor. A escola certamente perderia o Carnaval 2015. Mas seria

reverenciada pelo mundo e, acima de tudo, pela oprimida população da Guiné que finalmente

veria a máscara de seu ditador cair, e antes da quarta-feiras de cinza.

Alô Bateria!

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ANEXO 2D

Veículo: Portal Papo de Homem

Autora: Claudia Regina

Data: 22/05/2013

Título: Como se sente uma mulher

Aconteceu ontem. Saio do aeroporto. Em uma caminhada de dez metros, só vejo homens.

Taxistas do lado de fora dos carros conversando. Funcionários com camisetas “posso

ajudar?”. Um homem engravatado com sua malinha e celular na mão. Homens diversos,

espalhados por dez metros de caminho. Ao andar esses dez metros, me sinto como uma gazela

passeando por entre leões. Sou olhada por todos. Medida. Analisada. Meu corpo, minha

bunda, meus peitos, meu cabelo, meu sapato, minha barriga. Estão todos olhando.

Aconteceu quando eu tinha treze anos. Praticava um esporte quase todos os dias. Saía do

centro de treinamento e andava cerca de duas quadras para o ponto de ônibus, às seis da tarde.

Andava pela calçada quase vazia ao lado de uma grande rodovia. Dessas caminhadas, me

recordo dos primeiros momentos memoráveis desta violência urbana. Carros que passavam

mais devagar do meu lado e, lá de dentro, eu só ouvia uma voz masculina: “gostosa!”.

Homens sozinhos que cruzavam a calçada, olhavam para trás e suspiravam: “que delícia.” Eu

tinha treze anos. Usava calça comprida, tênis e camiseta.

Agora, multiplique isso por todos os dias da minha vida.

Sei que para homens é difícil entender como isso pode ser violência. Nós mesmas, mulheres,

nos acostumamos e deixamos pra lá. Nós nos acostumamos para conseguir viver o dia a dia.

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Esses dias, estava sentada na praia vendo o mar, e dele saiu uma moça. Passou por um rapaz

que disse algo. Ela só saiu de perto e veio na minha direção. Dei boa noite, ela falou que a

água estava uma delícia, e conversamos um pouco. Perguntei se o cara havia lhe falado

alguma besteira. Ela disse, “falou, mas a gente tá tão acostumada, né?, começa a ignorar

automaticamente”.

O privilégio é invisível. Para o homem, só é possível ver o privilégio se houver empatia.

Tente imaginar um mundo onde, por cinco mil anos, todos os homens foram subjugados,

violentados, assassinados, podados, controlados. Tente imaginar um mundo onde, por cinco

mil anos, só mulheres foram cientistas, físicas, chefes de polícia, matemáticas, astronautas,

médicas, advogadas, atrizes, generais. Tente imaginar um mundo onde, por cinco mil anos,

nenhum representante do seu gênero esteve em destaque, na televisão, no teatro, no cinema,

nas artes. Na escola, você aprende sobre a história feita pelas mulheres, a ciência feita pelas

mulheres, o mundo feito pelas mulheres.

No seu texto “Um teto todo seu”, Virgínia Woolf descreve por que seria impossível para uma

hipotética irmã de Shakespeare escrever de forma genial como ele. Woolf diz:

“quando lemos sobre uma bruxa sendo queimada, uma mulher possuída por demônios, uma

mulher sábia vendendo ervas… acho que estamos olhando para uma escritora perdida, uma

poeta anulada.”

Desde o início do patriarcado, há cinco mil anos, as mulheres não tiveram liberdade suficiente

para serem cientistas ou artistas. Woolf explica:

“liberdade intelectual depende de coisas materiais. … E mulheres foram sempre pobres, não

por duzentos anos, somente, mas desde o início dos tempos.”

Esse argumento não serve somente para mulheres: negros, pobres e outras minorias não

poderiam ser geniais poetas pois, para isso, é necessário liberdade material.

(Para uma análise mais completa, recomendo: “Um teto todo seu” de Virgínia Woolf: A

produção intelectual e as condições materiais das mulheres.)

Embora o mundo esteja em processo de mudança, ainda existem menores oportunidades e

reconhecimento para mulheres e minorias exercerem qualquer ocupação intelectual. Leitores

de uma página do facebook sobre ciências ainda supõem que o autor seja homem e

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comentaristas de televisão não consideram manifestações culturais que vêm da favela como

cultura de verdade.

É verdade: hoje, a vida é muito melhor, principalmente para a mulher ocidental como eu.

Mas, mesmo sendo uma mulher livre e bem-sucedida vivendo em uma metrópole ocidental,

ainda sinto na pele as consequências destes cinco mil anos de opressão. E, se você quiser ver

essa opressão, não precisa ir nos livros de história. É só ligar a televisão:

Rio de Janeiro, 2013. Um casal é sequestrado em uma van. As sequestradoras colocaram um

strap-on sujo, fedido de merda e mofo, e estupraram o rapaz. Todas elas, uma a uma,

enfiavam aquela pica enorme no cu do moço, sem camisinha e sem lubrificante. A namorada,

coitada, tentou fazer algo mas foi presa e levou chutes e socos.

Ao ver esta notícia, você se coloca no lugar da vítima (que sofreu uma das piores violências

físicas e psicológicas existentes) ou no lugar de quem assistiu? Naturalmente troquei os

gêneros: a violência real aconteceu com uma mulher.

Quantas violências eu sofro só por ser mulher?

Na infância, fui impedida de ser escoteira pois isso não era coisa de menina. Fui estuprada aos

oito anos. (Eu e pelo menos dois terços das mulheres que conheço e que você conhece

sofreram um estupro e provavelmente não contaram para ninguém.) Sofri a pré-adolescência

inteira por não me comportar como moça. Por não ter peitos. Por não ter cabelos longos e

lisos. Desde sempre tive minha sexualidade reprimida pela família, pela sociedade, pela

mídia. Qualquer coisa que eu pisasse na bola seria motivo para ser chamada de vadia. Num

dos primeiros empregos, escutei que mulheres não trabalham tão bem porque são muito

emocionais e têm TPM. Em um outro emprego, minha chefe disse que meu cabelo estava feio

e pagou salão para eu ir fazer escova e ficar mais apresentável pros clientes. Decidi que não

quero ser escrava da depilação e sou olhada diariamente com nojo quando ando de shorts ou

blusinha sem mangas. Já usei muita maquiagem, só porque a televisão e os outdoors mostram

mulheres maquiadas, e portanto é muito comum nos sentirmos feias de cara limpa. Você,

homem, sabe o que é maquiagem? Tem um produto para deixar a pele homogêna, um pra

disfarçar olheiras, outro para disfarçar manchas, outro para deixar a bochecha corada, outro

para destacar a sobrancelha, outro para destacar os cílios, outro para colorir as pálpebras,

outro para colorir os lábios. Quantas vezes você passou tantos produtos na sua cara só porque

seu chefe ou seu primeiro encontro vai te achar feio de cara limpa? Quando estou no metrô

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preciso procurar um cantinho seguro para evitar que alguém fique se roçando em mim. Você

faz isso? Quando vou em reuniões de família, me perguntam por que estou tão magra, e o que

fiz com o cabelo e quem estou namorando. Para o meu primo, perguntam o que ele está

estudando e no que está trabalhando. Na televisão, 90% das propagandas me ofendem. Quase

nenhum filme me representa ou passa no teste de Bechdel. Todas as mulheres são mostradas

com roupas sexy, mesmo as super heroínas que deveriam estar usando uma roupa confortável

para a batalha. As revistas me ensinam que o meu objetivo na cama é agradar o meu homem.

Enquanto você, menino, comparava o seu pau com o dos amiguinhos, eu, menina, era

ensinada que se masturbar é muito feio e que se eu usar uma saia curta não estou me dando o

respeito. Quanto tempo demorei para me desfazer da repressão sexual e virar uma mulher que

adora transar? Quanto tempo demorei para me soltar na cama e conseguir gozar, enquanto

várias das minhas colegas continuam se preocupando se o parceiro está vendo a celulite ou a

dobrinha da cintura e, por isso, não conseguem chegar ao gozo? Quanto tempo demorei para

conseguir olhar para um pau e transar de luz acesa? Quantas vezes escutei, no trânsito, um

“tinha que ser mulher”? Quantas vezes você fechou alguém e escutou “tinha que ser homem”?

Tudo isso para, no fim do dia, ir jantar no restaurante e não receber a conta quando ela foi

pedida pois há cinco mil anos sou considerada incapaz. E tudo isso, porra, para escutar que

estou exagerando e que não existe mais machismo.

Isso é um resumo muito pequeno do que eu sofro ou corro o risco de sofrer todo dia. Eu,

mulher branca, hetero, classe média. A negra sofre mais que eu. A pobre sofre mais que eu. A

oriental sofre mais que eu. Mas todas nós sofremos do mesmo mal: nenhum país do mundo

trata suas mulheres tão bem quanto seus homens. Nenhum. Nem a Suécia, nem a Holanda,

nem a Islândia! Em todo o mundo “civilizado” sofremos violência, temos menos acesso à

educação, ao trabalho ou à política.

Em todo o mundo, somos ainda as irmãs de Shakespeare. E você, leitor homem? Quando é

abordado de forma hostil por um estranho na rua, pensa “por favor, não leve meu celular” ou

“por favor, não me estupre”?

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ANEXO 3

Entrevistas

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ANEXO 3A

Entrevistas

Setembro 2014

Entrevistado: Raúl Osorio Vargas

Raúl Osorio Vargas é mestrado e doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade

de São Paulo (USP), professor e pesquisador colombiano é também Membro do Grupo de

Estudos Literários, GEL, Faculdade de Comunicação, Universidade de Antioquia, Colômbia.

Fundador, diretor e membro do corpo editorial da revista Reportagensaio - Jornalismo em

Trânsito. Desenvolveu em sua tese de doutorado o tema “O lugar da fala na pesquisa da

reportagensaio: "O Homem das Areias", um flagrante do diálogo oratura-escritura”, em 2003.

Estou desenvolvendo uma dissertação sobre o papel e o lugar do ensaio no jornalismo

contemporâneo. Como embasamento teórico, estou trabalhando com o pensamento

complexo de Morin, a imagem complexa de Català, a epistemologia da compreensão de

Künsch e o Jornalismo Literário Avançado de Lima. Minha hipótese é a de que hoje o

ensaio é o modo de exposição mais adequado para que a sociedade compreenda os temas

pertinentes a ela. O que você acha dessa mistura?

Sua proposta é muito interessante, muito boa. Uma boa relação que você estabelece. Você

esta no caminho certo; o ensaio contribui para o jornalismo. A partir da crise econômica, vem

se aprofundando pelos desafios da internet, do mundo digital. O mundo líquido de Baumann

tem relação com a narrativa atual. A Santaella tem um livro que ela fez sobre o Baumann que

pode servir, falando que tipo de narrativa é essa, que tipos de narrativas precisam contribuir

hoje para o jornalismo.

No seu ponto de vista, esse gênero é uma tendência?

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Sim. Muito. Minha proposta é a reportagensaio na minha tese de doutorado. Tenho uma visão

que talvez não seja apenas um gênero. O ensaio é um método de trabalho. Na minha tese só

deixei um pouquinho disso. Estou me aprofundando nisso. Como um método de trabalho no

jornalismo. O trabalho do Adorno sobre o ensaio é fundamental. Esse texto tem que ser

fichado inteiro. O que é ensaio, ciência social. Uma discussão bastante importante. Uma

contribuição de Adorno para esse entendimento. O título não foi muito feliz porque não é

apenas uma fórmula ou formato fechado. Mas o que tem de proposta é o olhar aberto de

diálogo como o que você falou sobre o ato da compreensão.

Você conhece o livro lançado recentemente do Català: A estética do ensaio?

Não. Esse não conheço, mas conheço sobre o filme ensaio. O filme ensaio dá outra pesquisa.

A proposta da imagem complexa do Català dialoga diretamente com ele. Orson Welles fez

um filme sobre o carnaval no Brasil. Uma proposta estética muito interessante. Teóricos e

estúdios de cinema têm chamado o filme de filme ensaio. Os espanhóis têm trabalhado muito

sobre o tema ensaio e em Barcelona tem muitas pesquisas avançadas sobre isso.

Trata-se de uma experiência feita no Rio de Janeiro, em formato de filme ensaio. Assistindo a

ele, pode vir novas propostas para essas análises. O filme ensaio é uma linha muito boa para

discutir o papel do ensaio no jornalismo atualmente. No documentário, tem muitas

contribuições a partir da imagem no cinema para as narrativas que hoje são transmídias.

Existe também um filme que se chama Ricardo lll, do Al Pacino. Ele pega a obra de

Shakespare e faz um filme ensaio. Narrado na segunda pessoa, uma das mais difíceis de

construir narrativas, com imagens e comentando os textos de Shakespare. E faz uma

adaptação e uma transcriação. Acredito que pode te trazer insights para sua pesquisa.

Muita gente escreve com o método ou gênero ensaio, mas não o classifica como tal, não

é?

Sim, é também aquela questão de colocar o dedo nas coisas e colocar um nome. As pessoas

tentam colocar o nome nas coisas e acabam deixando as coisas fechadas.

Na sua opinião o ensaio é um método ou um gênero?

O ensaio é um gênero e ao mesmo tempo é um método. É um gênero porque é uma ampla

forma orgânica o modelo de construção de um tecido de pensamentos em texto de reflexão

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sobre as realidades humanas. É um método porque é um caminho para a construção de

conhecimentos nas ciências humanas e sociais

Em um artigo que desenvolvi no mestrado na disciplina da professora Dulcília, falo

sobre a poética e a estética o do ensaio. Acabei sendo um pouco audacioso e tentei criar

um fluxograma para a construção de um ensaio jornalístico. Gostaria que você visse o

infográfico disso e desse sua opinião.

Acho que essa é uma grande contribuição. Pelo que eu conheço não existe os passos para

fazer um ensaio jornalístico. Não existe até agora na academia alguém que fez essa proposta.

Essa proposta é muito interessante. A única coisa é tentar fazê-la o mais aberto possível para

não cair em uma proposta engessada.

Esse é meu maior medo Raúl, engessar...

Não tem problema, é uma proposta, ela é aberta. Você pode colocar que você tem essa clareza

que não deve ser uma proposta engessada, que não, necessariamente, precisa seguir esses

pontos. Mas eu acho que é válido assim.

Como você chegou ao termo reportagensaio? Pergunto isso, porque existem dentro desse

conceito outros termos como ensaio reportagem, ensaio jornalístico e outras variações.

É o seguinte, isso nasceu. Você precisa falar com a Cremilda Medina. Ela fala muito sobre o

ensaio, sobre a praxies do ensaio e, nas aulas dela, sempre falava disso. Minha pesquisa em

1996, meu interesse era fundamentalmente sobre a reportagem. E com as aulas da Cremilda,

no núcleo de epistemologia que participei om ela, deu esse clic de ver como se fazia o ensaio

e qual era a contribuição do ensaio para a reportagem que obviamente no jornalismo todos os

teóricos e estudiosos sabem que é o gênero mais importante na nossa área. E aí comecei a ver

afinidades e diferenças. E como no doutorado se pede sempre algo novo e inédito, então eu

pensei sobre o que tinha estudado, pesquisas e leituras que recolhi no caminho e pensei “tudo

já tinha sido feito”, aí tive esse clic a partir do Octavio Paz, amigo dos poetas brasileiros, e eu

também estudei história oral com o Carlos José da USP. Estudei também muito o conceito da

transcriação e fiz esse link.

Aí me arrisquei aqui no neologismo que ninguém tinha feito e cheguei em reportagem ensaio.

E aí casei os dois: reportagensaio. Como os concretistas que gostam de criar palavras, como

Guimarães Rosa, eu criei esse termo. Mas se eu não carimbo isso como uma autoria minha, o

termo vai começar a fluir e ninguém vai saber quem é o pai. Aí criei a revista reportagensaio,

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aí pedi para a Cremilda participar e fiz o registro de autor do termo. Um dos ensaístas que

trabalhei muito foi o Darcy Ribeiro. Quando levava o caderno de campo para pesquisar os

índios brasileiros, ele não sabia como fazer essa pesquisa: os cadernos Índios.

Para mim, os cadernos são uma reportagensaio. A história é muito bonita, pois ele estava em

crise de como narrar tudo o que tinha visto, como contar isso para as pessoas. Todas as

dúvidas que eu tenho, que é um pouco das dúvidas que também tem o Al Pacino quando se

confronta com Shakespare. Como vou narrar Shakespare e falar sobre sua obra?

Um dia teve um insight e ele decide escrever cartas para a esposa contando sobre seu trabalho

de campo. Tem um tom pessoal que sempre pode ser nos ensaios, de reflexão individual de

primeira e segunda pessoas que dialogam na narrativa. Acho que lendo um pouco Darcy, pode

te dar insights nessa pesquisa.

Você acredita que a reportagensaio tem espaço hoje nos veículos de comunicação de

massa?

Essa nova tecnologia e mundo líquido e fluído da narrativa e a proposta da narrativa

transmídia é uma narrativa completamente ensaística, ou seja ela permite, dá possibilidades

que o ensaio seja mais aberto, criativo, aprofundado, com muito mais análises que é a

proposta do jornalismo literário de transformação de Edvaldo Pereira Lima. As histórias de

vida, da grande reportagem, da reportagem de profundidade, a reportagem com imagens, com

sons, etc. Ou seja isso é atualíssimo.

 

 

 

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ANEXO 3B

Entrevistas

Outubro 2014

Entrevistado: Edvaldo Pereira Lima

Edvaldo Pereira Lima é escritor, educador e jornalista. Dirige o curso pioneiro de pós-

graduação em Jornalismo Literário no país, administrado por sua empresa, EPL, em parceria

acadêmica com a Faculdade Vicentina de Curitiba. Criou o método Escrita total de redação

espontânea. Professor (aposentado) da Universidade de São Paulo, fez doutorado nessa

instituição e pós-doutorado na Universidade de Toronto. Co-fundador e Vice-Presidente da

Academia Brasileira de Jornalismo Literário – www.abjl.org.br –, Autor de diversos livros, é

também coach de escritores de não ficção, consultor e escritor de narrativas biográficas.

Você considera o ensaio um método, um gênero ou ambos?

Acho que o teu trabalho é bacana, traz uma contribuição boa, porque aqui no Brasil, pelo

menos na área do jornalismo, não se deu muita importância para o ensaio, em termos de

estudos acadêmicos. Na área de Letras, existem estudos sobre o ensaio, ensaio literário; o

ensaio no contexto jornalístico não foi trabalhado até agora.

Agora respondendo diretamente a você, eu considero tanto o ensaio, como o ensaio pessoal

como um gênero. Por quê? Porque ele tem propostas específicas, propósitos bem definidos e

modos de fazer bem definidos. Principalmente o ensaio pessoal. O ensaio pessoal nos EUA

está sendo considerado o gênero mais recente da literatura de não ficção. Porque ele foi

trabalhado pelo pessoal do Novo Jornalismo de um modo diferenciado do que vinha sendo

feito e deram um upgrade bastante interessante em conceito de prática e tudo mais, e a coisa

foi vingando. E quando aconteceu, em 2001, por causa do trauma do que aquilo causou no

inconsciente americano, na sociedade, a proliferação de ensaios pessoais foi uma coisa

extraordinária. Então aí se voltou a pensar nisso. Se viu que no ensaio, a pessoa estava

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encontrando um caminho próprio, e teóricos e pensadores começaram a atribuir ao ensaio

pessoal esse status de gênero específico. Então eu considero que tanto como o ensaio

convencional, tanto o pessoal, são gêneros.

O que é gênero? Tem uma definição específica, propósitos específicos e modo de fazer

específico. Isso tudo vai dando um diferencial que marca o EP como um gênero à parte, mas

dentro do que eu chamo de quadros de gêneros do JL. Quando você olha lá dentro do JL, você

vai vendo que existem diferentes formatos bem definidos. E o EP, em particular, tem

características muito bem diferenciadas, aquela mescla, que você já viu nos seus estudos,

entre a reflexão e a tradição do ensaio e a narrativa, então o EP vai exigir, obrigatoriamente,

que haja essa mescla, essa harmonia entre a reflexão do autor e a narrativa. A outra coisa

chave é que, para ser ensaio pessoal, o tema tem de partir de uma necessidade de uma

condição visceral do autor, não pode começar apenas por uma curiosidade intelectual. Tem de

haver uma necessidade visceral do indivíduo, então há uma questão muito existencial. Nesse

sentido, para mim, as duas coisas são gêneros, o EP é um gênero muito atrelado ao JL. Pouco

a pouco começa a ser conhecido no Brasil.

Um gênero ou um subgênero do JL?

Eu considero um gênero, eu considero o perfil um gênero, eu considero o JL de viagem um

gênero, o texto de memórias, quando trabalhado em formato de JL, um gênero, eu não chamo

de subgênero não. Eu chamo de gênero, pois eles têm especificidades muito claras, mas

mantém uma matriz de conexão com o básico do JL. E o que é o básico do JL? O básico do

JL é a busca da compreensão complexa, mesmo intuitivamente, mesmo os autores mais

antigos que não tiveram estudos acadêmicos nesse campo, mas intuitivamente, eles estavam

em busca de uma leitura complexa do real. Eles partiram para a narrativa do real, muito

abertos a tentar compreender a interação entre diversos fatores, diversas correntes de força

que moldam o acontecimento, e eles, pela genialidade de alguns deles, se abriram para captar

esse entendimento através do racional e também através de outros canais de percepção,

através da emoção, da intuição. Então, para mim, uma coisa essencial que está na matriz do

JL é a busca da compreensão do mundo sob uma ótica complexa, seja de uma maneira meio

intuitiva, meio empírica. Ou de uma maneira mais estruturada nessa nova geração de

pensadores, pesquisadores e praticantes, muitos dos quais eu tive o privilégio de estimular

nessa direção, por exemplo, a Monica Martinez. Então essa complexidade está em todo o JL,

a questão da imersão é essencial para todos os gêneros, a questão da humanização de colocar

a narrativa filtrada pela figura humana é essencial. E os recursos usados em todos os outros

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gêneros. No caso do EP, o autor está em busca de uma autocompreensão diante de um

fenômeno que lhe aconteceu na vida, então isso vai exigir que uma marca do ensaio pessoal

seja o protagonismo então e uma narrativa de JL com as características essenciais, porém com

uma dose essencial de protagonismo.

O propósito de não abordar um tema de forma analítica ou de maneira puramente intelectual é

dissecar aquele tema e encontrar as questões envolvidas. Uma tentativa do indivíduo de se

autocompreender a partir dos elementos que ele tem à disposição, e a partir de sua visão e sua

experiência, então ele não precisa, necessariamente, de um especialista, ou se ele buscar será

de uma maneira leve e complementar. Se você pega o livro da Joan Didion, ela chega a

levantar algum documento médico, etc., mas é de uma maneira muito leve.

Ela traz uns dados, mas na verdade o peso mesmo e o que ela está sentindo, né?

Exatamente. Por isso que é pessoal e difere muito quando você pega, por exemplo, uma

versão de EP no JL uma versão primitiva, se você pega alguns ensaios do George Orwell, eles

eram ensaios pessoais, tem um ensaio pessoal dele chamado De Dentro da Baleia. Por que é

pessoal? Por que ele está tentando entender por que ele escreve, o que o mobiliza escrever, o

que o fez escrever, então ele vai levantar dados da história pessoal dele e vai discutir isso,

então, no meu entender, já é uma forma primária de EP, porque o foco está numa questão

dele, individual. Ele não está atrás de críticos da literatura para saber por que ele escreve, ele

está tentando ver de dentro para fora como ocorre aquilo, então tem esse ponto de conexão

com o EP do século XI. A diferença é que o autor é filho do seu tempo e, no tempo do George

nos anos 30/40, ele estava embebido pelos paradigmas e modelos culturais de sua época. E o

modelo do mundo inglês era um modelo muito racionalista, um paradigma muito calcado no

mecanicismo, no racionalismo, no entendimento lógico da realidade. Então ele vai fundo na

questão, mas vai em um modo controlador de sua própria emoção. Além do ensaio pessoal

primitivo estar muito focado na tentativa de esclarecimento racional da experiência que o

autor está refletindo, a forma narrativa é muito educada, estruturada, esquematizada. Ele

acreditava que podia ser compreendida a realidade puramente através do contato racional, da

sua capacidade de raciocínio analítico, e a gente sabe que não e fácil. A forma narrativa dele é

uma forma muito centrada no hemisfério esquerdo do cérebro, aí você pega Joan Didion,

embora ela seja uma pessoa extremamente racional, ela se permite colocar no texto um pouco

de emoção. Ela se permite mostrar a vulnerabilidade humana dela, ela se permite expressar a

confusão interna. E é isso que torna o ensaio pessoal relevante. A maneira de se fazer hoje, eu

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acho que ele tem que partir do estado da arte atual, ele não pode ficar preso na perspectiva

anterior, que ele vai estar preso no tempo.

Ele pode até trabalhar com o que chamamos de transmídia, né? Texto, imagem e links

para fazer essa composição?

Sim, claro.

E, no Brasil, você acredita que hoje existe espaço na mídia de portais e veículos de

grande circulação.

É importante a gente entender que existe uma cultura muito pobre de ensaio pessoal no Brasil,

se sabe muito pouco o que é o ensaio pessoal e se chuta muito, assim como é o JL, muita

gente não sabe o que é JL e acha que está praticando o JL, o que falta é conhecimento. As

pessoas partem para o JL e captam um pedaço e acreditam que aquilo somente já caracteriza o

JL. O JL para se entender de maneira mais plena, é navegar por vários fatores e entender que

aqueles fatores estão integrados em uma visão complexa. A coisa é pior no ensaio pessoal,

pois no JL bem ou mal já existem estudos sobre isso maiores, então não se estranha muito

quando se fala sobre JL. Quando comecei a trabalhar o JL na USP, nos anos 90, a expressão

era pouquíssimo conhecida nos meios e na academia, hoje já não se estranha muito. E aí o EP,

do ponto de vista do conhecimento do mercado e da sociedade acadêmica brasileira, ele está

no estágio que estava o JL nos anos 90 no século passado. Ou seja, se sabe muito pouco, se

ouve falar, mas é muito pouco. Então na medida em que o conhecimento do EP é baixo, então

isso não favorece que na mídia haja uma receptividade amiga e aberta ao EP, mas acredito

que é um fenômeno cultural na medida em que o profissional conseguir produzir, produzir

com qualidade até os veículos perceberem que tem resultado, e normalmente tem, tem por

quê? Porque o ensaio pessoal, ele vai ao encontro de uma necessidade do leitor, que é se

identificar com a história humana. Então, na medida em que o autor do ensaio pessoal sabe

fazer bem, ele se expõe realmente como ser humano. Para o leitor, isso possibilita a criação

dessa identificação e dessa projeção; é aí por esse lado que o leitor vai gostar.

São ensaios muito frios, muito abstratos demais, mesmo na imprensa, vejo muitos casos

assim. Na revista Piauí, que é uma revista que pratica às vezes um bom JL, mas cuja

tendência predominante é uma tendência mais para um ensaio a moda que se fazia nos anos

80, nos pasquins, na Revista Versus etc. É uma forma que tem o seu lugar, tem o seu papel.

Não estou dizendo que ela não é importante, mas não é um ensaio pessoal, porque o autor se

escuda numa análise intelectual para tratar de um tema, que nem sempre diz respeito às

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vísceras dele, já o EP, para ser bem feito, exige isso. Uma necessidade visceral do indivíduo

se voltar para aquele tema. Por isso, no momento, não há muito espaço, não porque os

dirigentes não o conhecem. As pessoas que estão em posição de poder, editores não conhecem

muito, por não conhecer não o aceitam muito, não lhe dão espaço suficiente, mas pouco a

pouco vai acontecer o que aconteceu com o JL, na medida que aparecem profissionais com

qualidade com vontade de fazer e que conseguem encontrar um espaço. Aí a aceitação

aumenta e a cultura vai se tornando mais conhecida, facilitando com que outras gerações

descubram um território muito mais favorável.

Então eu vou te citar um caso que não é de ensaio pessoal, mas é uma analogia. É o caso do

JL e o caso da carreira da Eliane Brum. Quando a Eliane começou no jornal Zero Hora, ela

tinha uma tendência já a fazer textos diferenciados, e textos que envolvem às vezes um pouco

de reflexão, não só narrativa, mas obviamente ela não encontrou abertura de mão beijada no

Zero Hora, a coisa foi acontecendo. Na época, ela tinha um editor que era o Augusto Nunes

com uma cabeça arejada, aberta para textos diferenciados e percebeu o potencial dela. Alguns

primeiros casos que ela produziu trouxeram resultados muito satisfatórios para o jornal, para o

leitor, então ela foi cavando o espaço dela, foi crescendo, entende? Então é muito, às vezes a

gente pensa que a instituição tem resistência, às vezes a instituição não encontra pessoas

qualificadas para fazer experimentos inovadores. Então o meu entendimento disso, e a minha

resposta a você não é uma resposta linear, é uma resposta complexa que eu acho que envolve

todos esses aspectos. No meu entendimento, o ensaio pessoal em particular e o JL como um

todo, eles correspondem a uma necessidade social que a população tem e não sabe que tem, e

essa necessidade é a necessidade de travar contato com histórias reais bem contadas, não

contadas de maneira esquemática, fria, estruturada de uma forma linear, as pessoas querem

encontrar em textos da vida real, a narrativa que tem o mesmo padrão daquilo que é milenar e

com o qual elas estão acostumadas, que é a velha profissão de contar histórias, então isso é

um aspecto que me faz pensar, por exemplo, num possível fator que ajuda a explicar o

sucesso dos documentários no Brasil.

Se você pega pelo menos a metrópole como São Paulo, agora toda a semana, você pega o guia

em cartaz em salas comerciais, toda semana tem no mínimo um documentário em cartaz, se

tem documentário em cartaz é porque tem público. Os temas que os documentários estão

trabalhando são os mais diversos possíveis e quase todos eles têm trabalhado dentro de uma

postura que é no intuito similar ao JL. São histórias que exigiram um mergulho intenso no

real por parte do cineasta, o foco sobre os personagens reais importantes e uma narrativa que

é poética, que é tanto, digamos assim, tanto objetiva quanto subjetiva.

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Por que o público reage bem? Porque o sujeito se dá o trabalho de sair da sua casa nessa

cidade maluca de trânsito e paga ingresso para ir ao cinema da Augusta ou da Paulista para

ver o documentário? É porque isso traz algo que dentro dele, ele procura, que é real. E na

imprensa, normalmente, na imprensa convencional, ela se esqueceu de contar essas histórias.

Mas existe a necessidade, e como existe essa necessidade, na hora que alguém começa a

produzir, ela tem uma chance de encontrar ecos junto ao público. Isso também me ajuda a

entender o sucesso dos “livros–reportagem” no Brasil e das biografias, porque as melhores

biografias são produzidas de uma forma narrativa muito mais interessante, muito mais

envolvente do que as biografias de 30 anos atrás. Elas são narrativas construídas com uma

qualidade literária, com uma qualidade interessante de analisar a história do indivíduo dentro

do contexto econômico, politico, cultural etc. A mesma coisa é o ensaio pessoal, na medida

em que as pessoas forem conhecendo, praticando e que alguns profissionais forem

desenvolvendo um talento pessoal para produzir isso, eu acho que o gênero tem possibilidade

de encontrar espaço no Brasil, tal como é o espaço, mesmo que marginal, que o jornalismo

literário ocupa.

Tem gente que está praticando ensaio, mas não sabe o que é ensaio ou não o classifica

como?

Pelo menos sabe, mas não assume publicamente, né? O caso da Eliane Brum é realmente isso.

Se você ver os textos dela produzidos para o El País e o que ela já fazia ao blog dela

associado à Revista Época a maior parte dos textos tinha uma nítida característica ensaística, é

um fato, né? Mas com o talento que ela tem e com a voz autoral que ela tem, ela conseguia

trabalhar ali elementos da reportagem, elementos da reflexão e em alguns segmentos,

elementos do JL. Ela humanizava quando ela descrevia personagens daquela história.

Eu acho que vai pegar bem no Brasil, porque uma grande parte do público brasileiro é um

público de um perfil psicológico aberto à emoção. Nós somos latinos, então o ensaio

tradicional é um ensaio para quem é muito mais cerebral, é muito para o inglês, o francês, o

americano, mas o brasileiro no geral, claro que cada ser humano é um ser humano, mas a

média, a maior parte da população brasileira é uma população, se eu pegasse o Jung para me

apoiar, não é uma pessoa essencialmente da função pensamento, o brasileiro é mais da função

emoção, sentimento. Então se é assim o texto que o ensaio pessoal tem trabalhado, de acordo

com os parâmetros do gênero, vai funcionar melhor para o brasileiro, porque o brasileiro

gosta dessa coisa mais pessoal. Por isso que eu acho que o EP pode ter futuro interessante no

Brasil seja na mídia convencional, seja em todas as formas que temos hoje em dia, todos os

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canais. Então, se os jornais e revistas impressas ficarem muito presos à necessidade social e

narrativas diferenciadas, os ensaios continuam. Então, alguns autores que nem estão

comprometidos com a mídia tradicional vão encontrar espaços no Facebook, nos blogs, sei lá

onde, para produzir textos com esse formato, esse estilo, que vão ter uma possibilidade de

encontrar eco no público.