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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS VINICIUS BARBOSA DE ARAÚJO OS CONTRIBUTOS DA SEMIÓTICA PARA O DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO JURÍDICO DOS SÉCULOS XX E XXI: possibilidades de abordagem das problemáticas de Positivismo e Pós-positivismo a partir da Semiótica Jurídica FRANCA 2013

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  • UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JLIO DE MESQUITA FILHO FACULDADE DE CINCIAS HUMANAS E SOCIAIS

    VINICIUS BARBOSA DE ARAJO

    OS CONTRIBUTOS DA SEMITICA PARA O DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO JURDICO DOS SCULOS XX E XXI: possibilidades de abordagem

    das problemticas de Positivismo e Ps-positivismo a partir da Semitica Jurdica

    FRANCA 2013

  • VINICIUS BARBOSA DE ARAJO

    OS CONTRIBUTOS DA SEMITICA PARA O DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO JURDICO DOS SCULOS XX E XXI: possibilidades de abordagem

    das problemticas de Positivismo e Ps-positivismo a partir da Semitica Jurdica

    Dissertao apresentada Faculdade de Cincias Humanas e Sociais, da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho, como pr-requisito para obteno do ttulo de Mestre em Direito. rea de Concentrao: Sistemas Normativos e Fundamentos da Cidadania.

    Orientador: Prof. Dr. Carlos Eduardo de Abreu Boucault

    FRANCA 2013

  • Arajo, Vinicius Barbosa Os contributos da semitica para o desenvolvimento do pensa- mento jurdico dos sculos XX e XXI : possibilidades de abordagem das problemticas de positivismo e o ps-positivismo a partir da se- mitica jurdica / Vinicius Barbosa Arajo. Franca : [s.n.], 2013 250 f. Dissertao (Mestrado em Direito). Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Cincias Humanas e Sociais. Orientador: Carlos Eduardo de Abreu Boucault

    1. Semiotica. 2. Direito Filosofia. 3. Direito Linguagem. 4. Semntica (Direito). I. Ttulo. CDD 340.44

  • VINICIUS BARBOSA DE ARAJO

    OS CONTRIBUTOS DA SEMITICA PARA O DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO JURDICO DOS SCULOS XX E XXI:

    possibilidades de abordagem das problemticas de Positivismo e o Ps-positivismo a partir da Semitica Jurdica

    Dissertao apresentada Faculdade de Cincias Humanas e Sociais, da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho, como pr-requisito para obteno do ttulo de Mestre em Direito. rea de Concentrao: Sistemas Normativos e Fundamentos da Cidadania.

    BANCA EXAMINADORA

    Presidente:__________________________________________________________

    Prof. Dr. Carlos Eduardo de Abreu Boucault

    1 Examinador:_______________________________________________________

    Profa. Dra. Kelly Cristina Canela FCHS/UNESP

    2 Examinador: _______________________________________________________

    Prof. Dr. Marcus Fabiano Gonalves FD/UFF

    Franca, 13 de dezembro de 2013.

  • AGRADECIMENTOS

    Acredito em mulheres e homens: devido a eles que estou aqui, devido a eles que escolho permanecer. Acredito que a existncia individual, com todas as particularidades que a compem, apenas possvel como participao na formao evanescente do gnero humano: ningum , isolada e simplesmente, mas somos na medida da extenso de nossas relaes. Por isso, este trabalho, apesar de individual, , em verdade, a resultante de uma cadeia de relaes, vivncias e esforos, e para com isso eu apenas consigo sentir gratido. Agradeo ento a essas mulheres e homens sem os quais esta dissertao, alm de impossvel, seria intil.

    Agradeo primeiramente minha me, por fazer de mim uma pessoa to capaz de amar. Agradeo tambm a ela pelo papel imprescindvel que desempenhou na reta final do trabalho, cuidando de mim e me incentivando. Agradeo ao meu pai, pelo exemplo de perseverana, compaixo e humildade que sempre me foi. Agradeo tambm por ter-me ensinado o valor do saber. Agradeo Anita, minha melhor amiga, minha companheira, minha cmplice, meu amor. Anita, sem o seu incentivo, esforo e ajuda, nunca teria conseguido realizar isto aqui, vamos de mos dadas pelos caminhos da vida. Agradeo famlia da Anita que mais e mais tem se tornado minha famlia tambm por ajudarem a formar essa pessoa to especial para mim, a quem admiro e amo muito.

    Agradeo aos amigos Priscila Oliveira, Leandro Carloni, Hel Brandemarti e Raquel SantAna, que estiveram bastante prximos de mim ao longo desse processo todo. No apenas o convvio com vocs foi um privilgio, como sua ajuda foi imprescindvel nos momentos finais. Agradeo Snia Godoy pela experincia estimulante de autoconhecimento que pudemos compartilhar: fez-me uma pessoa melhor.

    Agradeo a meu orientador, professor Boucault, pela confiana depositada no tema e em mim. Como lhe escrevi certa vez, professor Boucault, escolhi-o como orientador pela seriedade e compromisso. Espero ter conseguido corresponder como orientando na mesma medida de minha admirao e gratido. Agradeo aos demais docentes e aos servidores do programa de Ps-graduao em Direito da UNESP, sem os quais nada disto seria possvel. Agradeo aos amigos e companheiros dessa jornada de mestrado: Euller Xavier, Jos Roberto Porto, Thiago Lemos Possas, Taylisi Leite, Vinicius Reis Barbosa, Jlia Lenzi, Andr Vieira, Rebeca Makovski, Carla Arantes e Roberto Faleiros. Gosto de pensar que, dadas todas as nossas diferenas, somos irmos de ideias, de sonhos, de luta. Nosso debate constante e a amizade demonstrada em diversos momentos o que levo de mais forte e significativo da experincia do mestrado. Sou grato a todos vocs por permitirem-me viver tudo isso.

  • ARAJO, Vinicius Barbosa. Os contributos da Semitica para o desenvolvimento do pensamento jurdico dos sculos XX e XXI: possibilidades de abordagem das problemticas de Positivismo e Ps-positivismo a partir da Semitica Jurdica. 2013. 250 f. Dissertao (Mestrado em Direito) Faculdade de Cincias Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho, Franca, 2013.

    RESUMO

    Partindo do arsenal categorial fornecido pela Semitica, o trabalho intenta analisar o fenmeno jurdico. Para tanto, busca construir, em sua primeira parte, um aporte metodolgico a partir dos modelos de cincia semitica elaborados por Hjelmslev, Jakobson e Eco, sem ignorar, todavia, as contribuies pioneiras de Saussure e Peirce. A segunda parte do trabalho adentra o ainda incipiente campo da Semitica Jurdica, congregando os instrumentais tericos apresentados na primeira parte com novos, oriundos de trabalhos de semioticistas e juristas, tais como Greimas, Landowski, Bakhtin, Correas, Losano, Wieacker, David, Arajo, Bittar e Ferraz Jr. Procura-se reconduzir as abordagens desses tericos aos termos do referencial instrumental e terico construdo na primeira parte do trabalho. Assim, examina-se o estatuto do direito enquanto objeto semitico e, caracterizando-o como discurso jurdico, busca-se descrever suas diversas dimenses: seu plano da expresso, marcado por uma modalidade predominante dentica e por um arranjo sinttico-narrativo especfico; a formao de seu plano do contedo e de seus nveis (discurso do direito e metadiscurso jurdico) a partir da reelaborao, via conotao, de institutos jurdicos legados pela tradio; a especificidade assumida pelos fatores da comunicao no discurso jurdico, em especial no nvel do discurso do direito; os aspectos pragmticos do discurso jurdico; a formao de gneros a partir da reiterao de formas de significao e comunicao jurdica. Por fim, examina-se a problemtica envolvida na discusso prpria da Teoria do Direito no mbito das escolas positivista e ps-positivista, privilegiando a abordagem de autores como Kelsen, Hart e Alexy.

    Palavras-chave: semitica. semitica jurdica. teoria do direito.

  • ARAJO, Vinicius Barbosa. Os contributos da Semitica para o desenvolvimento do pensamento jurdico dos sculos XX e XXI: possibilidades de abordagem das problemticas de Positivismo e Ps-positivismo a partir da Semitica Jurdica. 2013. 250 f. Dissertao (Mestrado em Direito) Faculdade de Cincias Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho, Franca, 2013.

    ABSTRACT

    Using some arsenal of categories provided by Semiotics, this work intents to analyze the phenomenon of Law. Therefore, in its first part, a methodological support is constructed by visiting the models of semiotic Science elaborated by Hjelmslev, Jakobson and Eco, not ignoring the pioneer contributions made by Sassure and Peirce. The second part of this work deals with the yet incipient field of Semiotics of Law, gathering the theoretical instruments presented in the first part and new ones, resultant of the theories and works by semioticians and jurists, such as Greimas, Landowski, Bakhtin, Correas, Losano, Wieacker, David, Arajo, Bittar and Ferraz Jr. We attempted to conduct the approaches of all those theorists to this categories of the instrumental and theoretical references constructed in the first part of the work. Thus, Laws nature as a semiotic object was examined and, categorizing it as Laws discourse, we attempted to describe its dimensions: its expression plane, distinguished by a deontological modality and a specific narrative syntax arrangement; the formation of its content plane and of its levels (legal discourse and jurisprudential metadiscourse) through the process of reelaboration, by means of connotation, of the juridical institutions transmitted by tradition; the specificity of the factors of verbal communication in laws discourse, especially in legal discourse; the pragmatic aspects of laws discourse; the formation of genres of discourse trough the reiteration of juridical forms of signification and communication. Finally, some issues concerning Jurisprudence are debated following the spectrum of positivist and postpositivist schools and favouring the approaches made by jurists such as Kelsen, Hart and Alexy.

    Keywords: semiotic. semiotics of law. jurisprudence.

  • LISTA DE FIGURAS

    Figura 1 - Tipos de Dependncia para Hjelmslev .............................................................. 239 Figura 3 - Funo Semitica para Hjelmslev ..................................................................... 240 Figura 5 - Estruturao da Lngua Natural segundo Hjelmslev .................................. 241 Figura 10 - Discurso Jurdico .............................................................................................. 242 Figura 11 - Relao de conotao entre realidade fsica, lngua natural e discurso do direito ................................................................................................................. 243 Figura 12 - Relao de conotao entre realidade fsica, lngua natural, discurso do

    direito e metadiscursos jurdicos ..................................................................... 244 Figura 13 - Esquema referente funo semitica contida no conceito de norma jurdica

    de Kelsen ............................................................................................................ 245

    Figura 2 - Quadro esquemtico das espcies de funes previstas por Hjelmslev ......... 247 Figura 4 - Quadro comparativo de formas de contedo em diferentes lnguas, conforme

    Hjelmslev ............................................................................................................ 247 Figura 6 - Fatores da comunicao verbal e funes da linguagem, segundo Jakobson 248 Figura 7 - Modelo de processo comunicativo elementar ................................................... 248 Figura 8 - Modelo de cincia semitica proposto por Eco ................................................ 249 Figura 9 - Tipos de trabalho semitico (emisso) segundo Eco ........................................ 250

  • SUMRIO

    INTRODUO ........................................................................................................................ 9

    PARTE 1 OS MODELOS DE CINCIA SEMITICA PROPOSTOS POR HJELMSLEV, JAKOBSON E ECO: CONSTRUO DO APORTE MEDOTODOLGICO E TERICO DA PESQUISA .................................... 12

    1.1 Hjelmslev ........................................................................................................................... 18 1.1.1 O mtodo da teoria da linguagem .................................................................................... 19 1.1.2 Anlise do texto e suas categorias ................................................................................... 24 1.1.3 Funes, signos e figuras ................................................................................................. 29 1.1.4 Expresso e contedo: a semntica estrutural e a distino semiolgica entre diferentes

    sistemas de forma de expresso e forma de contedo como fatores sociais ................... 33 1.1.5 Ampliao da perspectiva da teoria da linguagem: rumo a uma Semitica Geral .......... 50 1.2 Jakobson: fatores da comunicao verbal e funes da linguagem ............................. 54 1.3 Eco ...................................................................................................................................... 56 1.3.1 Estruturao e extenso do horizonte de preocupaes da Semitica segundo Eco:

    limites polticos, limites naturais e limites epistemolgicos ....................................... 58 1.3.2 Modelo elementar de fenmeno semitico: informao, significao e comunicao ... 72 1.3.3 Teoria dos Cdigos: sistemas, cdigos, expresso, contedo, sintaxe e semntica ........ 82 1.3.4 Brevirio de elementos da Teoria da Produo Sgnica .................................................. 94

    PARTE 2 O ESTATUTO DO DIREITO COMO OBJETO SEMITICO E O ESTATUTO DA SEMITICA JURDICA COMO DISCIPLINA PARTICULAR...................................................................................................... 98

    2.1 O fenmeno jurdico como discurso................................................................................ 98 2.1.1 A Semitica Jurdica ...................................................................................................... 100 2.1.2 Dimenses do discurso jurdico: o direito como semitica ........................................... 103 2.2 O discurso jurdico como expresso: gramtica e narratividade............................... 105 2.2.1 Os elementos e relaes bsicos de uma sintaxe jurdica .............................................. 108 2.2.2 Relaes horizontais e verticais no plano de expresso do discurso jurdico ............... 115 2.2.3 Os atuantes e os atores da narratividade jurdica ........................................................... 117

  • 2.3 O contedo do discurso jurdico: nveis conotados e unidades oposicionalmente organizadas .................................................................................................................... 123

    2.3.1 A relao de conotao entre lngua natural e discurso jurdico ................................... 125 2.3.2 Anlise da classe e coleta dos componentes: discurso jurdico, discurso do direito e

    metadiscurso jurdico .................................................................................................... 128 2.3.3 O discurso jurdico como sistema .................................................................................. 131 2.3.4 O discurso jurdico como texto tradicional apontamentos para um estudo diacrnico e

    comparativo ................................................................................................................... 142

    2.4 O direito como fenmeno de comunicao: a especificidade dos fatores da comunicao verbal no direito ..................................................................................... 162

    2.5 Aspectos pragmticos gerais do discurso jurdico ....................................................... 173 2.6 Os gneros do discurso jurdico .................................................................................... 178 2.6.1 O discurso do direito: sua relao com a moral, seus gneros, sua constituio........... 183 2.6.2 O gnero legiferante do discurso do direito................................................................... 194 2.6.3 O gnero jurisdicional do discurso do direito e a distino entre precedente e

    jurisprudncia de um ponto de vista semitico ............................................................. 198 2.6.4 O gnero administrativo do discurso do direito ............................................................ 210 2.7 Metadiscurso jurdico e as problemticas de Positivismo e Ps-positivismo

    jurdico ............................................................................................................................ 213 2.7.1 A Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen ..................................................................... 213

    CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................... 231

    REFERNCIAS ................................................................................................................... 234

    APNDICES APNDICE A - Lista de Figuras ....................................................................................... 238

    ANEXOS ANEXO A Lista de Figuras .............................................................................................. 240

  • 9

    INTRODUO

    Este trabalho referente a concluso de curso de mestrado em Direito, junto ao Programa de Ps-graduao em Direito da Faculdade de Cincias Humanas e Sociais da UNESP Campus Franca. A dissertao empreendida, para a qual foram imprescindveis as diversas atividades vinculadas ao cumprimento de crditos exigido pelo Programa, props-se a examinar o fenmeno jurdico a partir do arsenal categorial fornecido pela Semitica Jurdica. Mais especificamente, buscou firmar o estatuto do direito enquanto objeto semitico a fim de descrev-lo nesses termos, captando-lhe a dinmica e a estrutura, bem como o conjunto de categorias que o compem. Outrossim, buscou examinar, a partir desse conjunto categorial emergido da anlise, as problemticas relativas ao Positivismo e ao Ps-positivismo jurdico, principalmente a partir dos paradigmas tericos infirmados especialmente no sc. XX e nesta recente passagem ao sc. XXI. Privilegiou-se a pesquisa bibliogrfica e pensa-se ter consultado alguns dos clssicos e mais importantes trabalhos nas reas englobadas pela problemtica da dissertao.

    Sendo a Semitica Jurdica um campo ainda um tanto quanto incipiente, abre-se para ela, todavia, uma diversidade de possibilidades analticas. Destarte, empreender uma pesquisa na seara da Semitica Jurdica implica tomar o fenmeno jurdico como objeto passvel de ser descrito a partir dos procedimentos analticos e metodolgicos prprios da Semitica. Mesmo a estruturao de um campo nomeado como Semitica Jurdica depende dessa possibilidade. Faz-se necessrio, assim, responder a uma srie de indagaes. Se o fenmeno jurdico tem na linguagem um instrumento e um veculo basilar, o estudo acerca do modo de ser da linguagem no geral pode, no mnimo, contribuir para elucida-lo. Se o fenmeno jurdico se d por meio da linguagem, sua estruturao pode ser, em verdade, a da prpria linguagem uma estruturao semitica, portanto. Todavia quaisquer dessas hipteses apenas ho de ser provadas ou refutadas a partir da inteno terica que se traduza em procedimento metodolgico dirigido prpria linguagem do direito. Assim, impe-se o seguinte movimento: o exame das caractersticas gerais da linguagem para, a partir disso, realizar-se o exame das caractersticas gerais da linguagem jurdica. Se o direito ou no uma forma particular de linguagem ou se o direito, como construto distinto, apenas utiliza a linguagem como veculo so questes que somente podem ser respondidas percorrido tal trajeto. Desse modo, esta pesquisa divide-se em duas partes: a primeira debrua-se sobre a Semitica e sua problemtica geral; a segunda, sobre algumas propostas de Semitica Jurdica e sobre algumas obras clssicas referentes histria e estrutura do direito.

  • 10

    Embora se ancore na tradio milenar do chamado pensamento ocidental, a Semitica apenas se firma como cincia particular, dotada de mtodo e objeto prprios, a partir dos trabalhos pioneiros de Ferdinand de Saussure e Charles Sanders Peirce ao final do sc. XIX e incio do XX. O pensamento de Saussure parte da discusso lingustica; o de Peirce, da discusso lgica ambos, todavia, acabam por encontrar um profcuo campo de indagaes comuns, no que pese, entretanto, a especificidade da abordagem e dos referenciais de cada um. Ao longo do sc. XX, em meio ao contexto mais geral em que se encontrava o pensamento ocidental quando a problemtica da linguagem assumiu papel proeminente, dada a chamada viragem lingustica , a Semitica recebeu uma multiplicidade de abordagens e propostas tericas. Dentre os diversos caminhos que se poderia trilhar, elegeram-se para esta pesquisa as sendas e paragens por que passaram as propostas de cincia semitica construdas por Louis Hjelmslev, Roman Jakobson e Umberto Eco. A partir delas se quis flagrar o modo geral de como se do os fenmenos da significao e da comunicao. Valeu-se tambm, para tanto, de outras contribuies, como as dos pioneiros Saussure e Peirce, bem como as de Barthes e Greimas, principalmente. Desse modo, empreendeu-se tambm certo resgate da histria da Semitica, resgate evidentemente parcial, como no poderia deixar de s-lo, uma vez privilegiado o espectro do pensamento estruturalista. A escolha de Eco para compor o referencial terico bsico desta pesquisa, todavia, deu-se justamente com vistas a incorporar as contribuies de outras tradies da Semitica, uma vez que ele busca, por meio de seu modelo terico, sistematizar coerentemente tais contribuies, inclusive visando ao desenvolvimento de pesquisas futuras nos diversos campos em que a Semitica se dividiu.

    Prosseguiu-se com considerar algumas propostas pioneiras na construo de uma Semitica Jurdica, como as de Algirdas Julien Greimas e Eric Landowski, calcadas na sintaxe narrativa, bem como a de Eduardo Bittar, que segue pelo mesmo caminho analtico. A partir dessas contribuies, foi possvel caracterizar o direito como discurso. Considerou-se o trabalho de Clarice von Oertzen de Arajo, especialmente em sua tentativa de descrever a particularizao que os fatores da comunicao verbal descritos por Roman Jakobson sofrem no discurso do direito. As consideraes de Trcio Sampaio Ferraz Jr. sobre as funes pragmticas envolvidas nos fenmenos de comunicao do direito tambm foram consideradas. Desenvolveu-se ainda uma reflexo sobre a formao da estrutura semntica presente no direito, valorizando-se a relao de conotao. Debruando-se brevemente sobre a Common Law e comparando-a ao sistema romano-germnico, defendeu-se a pertinncia da Semitica nos estudos de Direito Comparado, uma vez que ela permite o cotejo entre estruturas semnticas muito dspares e a explicao estrutural dessas diferenas. Ainda se

  • 11

    enveredou, com o auxlio ao pensamento de Mikhail Bakhtin, na discusso dos gneros do discurso, considerando-os como repertrios de textos e mensagens em que se cristalizam certas possibilidades de significao e comunicao decorrentes de uma semitica.

    O direito, enquanto construto cultural, assumiu uma diversidade de formas em meio aos padres civilizatrios em que se instalou. Desse modo, consider-lo propriamente, ainda que seja do ponto de vista da Semitica uma cincia to focada na universalidade das estruturas e processos de significao e comunicao , exige considerarem-se diversas das particularidades decorrentes do prprio devir histrico e da transformao das formas de sociabilidade e cultura humana. Assim, fez-se necessrio visitar autores que buscam reconstruir historicamente, com finalidade terico-explicativa, no apenas as formas institucionais assumidas pelo fenmeno jurdico em sociedades especficas, mas o decurso do prprio pensamento jurdico em tais contextos. Valeu-se, assim, de pesquisas como as de Mario Losano, Ren David e Franz Wieacker. A partir disso, desenvolveram-se apontamentos para uma pesquisa semitica diacrnica, focada na formao dos planos de expresso e de contedo dos sistemas jurdicos a partir dos elementos legados pela tradio e registrados em textos tradicionais como, entre outros, o Corpus Juris Civilis. Por fim, esquadrinhou-se brevemente os pensamentos de Hans Kelsen, Herbert Hart e Robert Alexy a fim de sondar a viabilidade de traduzir, para os termos da Semitica, algumas de suas abordagens para problemas concernentes chamada Teoria Geral do Direito.

  • 12

    PARTE 1 OS MODELOS DE CINCIA SEMITICA PROPOSTOS POR HJELMSLEV, JAKOBSON E ECO: CONSTRUO DO APORTE MEDOTODOLGICO E TERICO DA PESQUISA

    A Semitica, como campo cientfico particular, relativamente recente, datando a elaborao terica de seus precursores mais reconhecidos como tal a saber, Charles Sanders Peirce e Ferdinand de Saussure das ltimas dcadas do sc. XIX e primeiras do XX. Suas propostas nesse sentido, que poderiam passar por sugestes interessantes, mas sem o devido impacto, receberam grande alento devido ao movimento mais ou menos generalizado que se dava no pensamento ocidental, quando as questes relativas linguagem e os campos de estudo a ela dirigidos ganharam vultosa notoriedade: refere-se aqui ao extremamente heterogneo, pluridirecional e talvez mal chamado giro lingustico-pragmtico. Filosofia da Linguagem, Lgica, Hermenutica, Epistemologia, Lingustica, Psicologia, Antropologia,

    Sociologia, toda uma mirade de disciplinas e cincias voltou-se a discutir de vrios ngulos a problemtica circunscrita pelos fenmenos da linguagem, o que fez pulular uma srie de novas formulaes tericas quando nomes do porte de Bhler, Wittgenstein, Russell, Frege, Carnap, Quine etc. ganharam notoriedade , dando origem a diversas escolas de pensamento filosfico e cientfico ou influenciando patentemente outras, como Fenomenologia, Filosofia Analtica, Pragmatismo, Estruturalismo, psicologia gestltica (psicologia das formas), behaviorismo, entre outras diversas passveis de citao.

    Precisar a Semitica em meio a essa profuso de perspectivas cognoscitivas tarefa sobremaneira trabalhosa e truncada, principalmente ao se constatar que seu horizonte de estudos ainda no se encontrava bem definido e sequer se concebia que certos fenmenos, como a comunicao, pudessem integrar seu espectro de preocupaes. Na verdade, a Semitica, nesse perodo, estava muito longe de angariar o status de cincia estabelecida, com objeto e mtodo definidos, tendo ainda de lidar com a necessria distino ante suas matrizes mais evidentes: a Lingustica, em relao a que a semiologia saussuriana seria uma generalizao uma vez que [...] a Lingustica no seno uma parte dessa cincia geral. (SAUSSURE, 2000, p. 24) ; e a Lgica, pois no projeto de Peirce a Lgica [...] apenas um outro nome para semitica. (PEIRCE, 2010, p. 45).

    Como se v, sequer havia consenso sobre como designar tal incipiente cincia, vinculando-se o termo semiologia tradio iniciada por Saussure e semitica tradio

  • 13

    mais prxima a Peirce, que remonta, pelo menos, ao empirismo de John Locke1. Todavia, no se pode afirmar tratar-se de uma simples questo de nomenclatura, pois os estudos de Saussure e Peirce diferem extremamente em relao a seus pressupostos, objetivos e extenses, uma vez que o primeiro busca formular a Semiologia como uma generalizao da Lingustica e particulariz-la no conjunto do conhecimento humano, e o segundo pensa a Semitica como o liame de um projeto cognitivo que transita entre Lgica, Epistemologia e Psicologia. Tal fato leva a posies como a de Coelho Netto, para quem totalmente inadequado [...] dizer simplesmente que semiologia a designao que o estudo do significado recebe na Europa e que semitica o nome pelo qual esse estudo conhecido nos Estados Unidos. (COELHO NETTO, 2010, p. 55).

    Reconhecida a singularidade de cada uma dessas propostas em suas origens, h, contudo, de se admitir que ambas ho de ser consideradas como matrizes iniciais de uma cincia a se desenvolver propriamente apenas ao longo do sc. XX, de modo que, reconhecida a especificidade e os horizontes das propostas de Saussure e Pierce, no se considera aqui que no possam elas ser reunidas sob um mesmo campo cientfico, mesmo porque compartilham diversas preocupaes e objetos cognoscveis comuns. Assim, h de se adotar a designao semitica para o campo cientfico voltado ao estudo dos fenmenos da significao e da comunicao, no por inclinar-se a Pierce, mas porque o termo logrou maior adeso em relao ao termo semiologia, mesmo por aqueles tericos vinculados tradio iniciada por Saussure, em muito com vistas a se diferenciar a Semitica da chamada semiologia mdica2. Ademais, ao longo do sc. XX a Semitica viu surgirem diversas novas

    1 Em seu Ensaio Acerca do Entendimento Humano, Locke distingue, ao final, entre trs objetos do conhecimento, ao que corresponderia a diviso das cincias em trs tipos, sendo o ltimo deles justamente o que chama de [...] semeiotik, ou a doutrina dos sinais; o mais usual so as palavras, e isto adequadamente denominado tambm logik, lgica, cuja funo consiste em considerar a natureza dos sinais que a mente utiliza para o entendimento das coisas, ou transmitir este conhecimento a outros. (LOCKE, 1999, p. 315-316). A despeito de a Lgica ter-se voltado a consideraes sobre a linguagem desde sua formulao no pensamento grego clssico como se depreende, por exemplo, do Tratado das Categorias de Aristteles, integrante de seu rganon (ARISTTELES, 2010) , a vinculao entre semeiotik e Lgica sugere, se no a influncia de Locke sobre Peirce, pelo menos o conhecimento do segundo em relao obra do primeiro.

    2 Nesse sentido, h de lembrar o texto de Barthes intitulado Semiologia e Medicina e publicado entre ns em A Aventura Semiolgica: [...] quando a semiologia proposta por Saussure e desenvolvida depois por outros cientistas constituiu-se em objeto de colquios internacionais, a palavra foi examinada seriamente, e foi proposto substitu-la pela palavra semitica, e isso por uma razo que particularmente nos interessa aqui: a fim de evitar a confuso entre a semiologia de origem lingustica e a semiologia mdica; por isso que foi pedido que se designasse a semiologia no mdica perlo termo semitica. (BARTHES, 2001, p. 233). H de notar, contudo, que o prprio Barthes um dos poucos que insistiu no termo semiologia, e isso por um motivo muito conectado s suas pretenses como terico: partindo principalmente das formulaes de Saussure e de Hjelmslev, e o ltimo ser visitado neste captulo de modo mais intenso a seguir, Barthes notou o potencial que os princpios gerais e a estrutura flagrada por ambos tinham para efetivamente constiturem-se em uma cincia geral dos signos, extrapolando os signos meramente lingusticos, de modo que no apenas a Lingustica seria, como ele mesmo designa, um departamento da Semiologia, mas tambm a prpria

  • 14

    formulaes que no apenas lhe deram estrutura slida e expandiram-lhe o horizonte, como tambm buscaram unificar e ultrapassar ambas as propostas iniciais. Assim, aqui se adota a posio de Umberto Eco a esse respeito:

    Malgrado a diferente origem histrica dos termos semiologia (linha lingustico-saussureana) e semitica (linha filosfico-periceana e morrissiana), no presente livro se adota o termo semitica como equivalente a semiologia [...]. H tentativas prestigiosas de atribuir aos dois termos funes semnticas diferentes [...]. Digamos que os objetos tericos ou os pressupostos ideolgicos que aqueles autores procuraram nomear por meio de uma distino entre os dois temos devam ser reconhecidos e estudados; no entanto, arriscado jogar com uma distino terminolgica que no conserva um sentido nico nos vrios autores que a empregam. (ECO, 2005, p. 1, nota).

    Logo, no apenas por defender-se que as formulaes de Saussure e Pierce podem abrigar-se sob o mesmo guarda-chuva de campo cientfico, mas tambm por convenincia didtica e histrica uma vez que o termo semitica prevaleceu sob semiologia adota-se aqui a designao semitica para a cincia geral dos signos. Ademais, sustentar a impossibilidade de se dar nome comum a um campo de estudo devido s grandes diferenas entre as diversas perspectivas nele existentes no obstante as discrepncias entre seus pressupostos, esteios e objetivos mostrar-se-ia contraproducente a qualquer cincia, ainda mais ao se considerar a necessria delimitao de suas fronteiras no conjunto do conhecimento humano, esforo que se tem empreendido na Semitica no curso dos scs. XX e XXI e que se torna ainda mais premente ante o desenvolvimento de outras formas recentes de conhecimento sobre aspectos da linguagem, como a teoria da informao e as gramticas gerativas, que tambm vieram a pressionar ainda mais as noveis fronteiras da Semitica.

    semiologia mdica, de modo que os sintomas constituram-se em um sistema de formas de expresso ou de significantes cujo contedo ou significado haveria de ser sistematicamente organizado pela atividade de pesquisa mdica: essa justamente a inteno do texto citado, Semiologia e Medicina, demonstrar que a recusa ao termo semiologia a fim de evitar confuso com a semiologia mdica no , como muito se defendeu, desejvel, pois a prpria semiologia mdica se constituiria como um campo particular da cincia geral batizada por Saussure como Semiologia. notrio tambm como tal posio de Barthes est plenamente de acordo com o seu trabalho terico, que em muito se constituiu das tentativas de se construir a Semiologia para alm do signo lingustico, voltando para os objetos arquitetnicos e urbansticos, as formas de parentesco (aqui com grande considerao pelo trabalho do antroplogo Lvi-Strauss), a culinria, a poltica, a publicidade, o vesturio, o mobilirio etc. E necessrio registrar aqui e vai-se voltar a isso de modo a essa posio no restringir-se quase marginalidade de uma nota de rodap que se partilha da posio de Barthes, a de que mesmo a semiologia mdica pode ser descrita em termos de uma Semiologia geral, mas, entretanto, adota-se o termo semitica por ter ele prevalecido historicamente sobre o termo semiologia, em parte pela adeso mesmo de tericos localizados na tradio saussuriana, em parte pela presso dos trabalhos dos tericos vinculados tradio peirceana.

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    O rumo tomado pela argumentao no tem a inteno de sugerir, todavia, que se evite, bem ao gosto de uma epistemologia tipicamente moderna, um enfoque transdisciplinar ou multidisciplinar, mas to-somente de defender a utilidade, inclusive com vistas a colaboraes com outros ramos do conhecimento, de um modelo de cincia semitica que, circunscrito a aspectos particulares da linguagem, produza a respeito deles resultados explicativos precisos e fecundos: precisos de modo a descreverem de forma exaustiva e satisfatria a estrutura e a dinmica dos fenmenos estudados; fecundos por justamente permitirem sua utilizao em pesquisas que transcendam a Semitica ou que venham a lhe somar nimo cognoscente tal como se pretende neste trabalho, com congregar a Semitica Teoria do Direito.

    Diante disso, h de se explicitar desde j as intenes contidas neste captulo: precisar a especificidade do estatuto cientfico da Semitica em meio s diversas cincias e disciplinas voltadas ao estudo da linguagem, esquadrinhar o seu objeto de conhecimento e explicitar as categorias e o nexo interno das teorias semiticas a partir das quais se pretende abordar a Teoria do Direito. Todavia, diante dos objetivos erigidos, h tambm de se demarcar os limites da empreitada, limites de trs ordens, numerados do mais especfico ao mais geral: (a) primeira e principalmente, os limites do pesquisador, que aventura-se em um campo distinto do de sua formao e com o qual vem mantendo contato mais ntimo h apenas poucos anos; (b) em segundo lugar, os limites de um trabalho de dissertao que, alm de no se tratar de um trabalho exclusivo sobre Semitica, deve seguir certos ditames formais e no exceder certo volume, bem como pautar-se por certa metodologia que, necessariamente, impor escolhas e a excluso do no escolhido; (c) por fim, os limites ou, melhor dizendo, o horizonte de projeo epistemolgica da Semitica, que aborda uma ampla gama de fenmenos, muitos dos quais igualmente pertinentes e a outras cincias, interessando-se, contudo, por dois aspectos particulares deles: a significao e a comunicao.

    Se o primeiro limite dispensa maiores explicaes o texto o evidenciar aos leitores e deixar a seu julgamento , os limites segundo e terceiro requerem explanao. Em relao ao segundo limite, apresenta-se ele em dois aspectos coexistentes, muitas vezes simultneos, mas no necessariamente encadeados: o metodolgico e o esttico-formal. O aspecto metodolgico decorre do fato de toda pesquisa passar pela necessidade da escolha, e toda escolha, por sua vez, a eliminao da diversidade em prol de certo grau de inteligibilidade o que no impede, muito pelo contrrio, possibilita, o retorno ao todo e ao mltiplo, agora passvel de ser captado pela razo. Logo, realizaram-se aqui escolhas metodolgicas, implicadas pelo segundo limite, quanto s teorias, aos campos e aos autores a serem expostos

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    de modo detalhado de acordo com a pertinncia e a abertura cada um para possibilitarem o tratamento que se pretende dar, no segundo captulo, Teoria do Direito e, no terceiro, a algumas propostas de Semitica do Direito. Assim, no se vo abordar todos os modelos de Semitica que certamente mereceriam destaque, em parte devido variedade de campos em que a pesquisa semitica se ramificou (como, por exemplo, a zoosemitica ou a anlise esttica semitica), em parte devido profuso de propostas tericas. Aqui tambm se apresenta o aspecto esttico-formal, pois por mais desejvel que fosse tratar-se cada um dos autores consultados, a exposio detalhada de suas propostas, mesmo naquilo em que inegavelmente apresentam de pertinente em relao s intenes da pesquisa, seria tarefa a ocupar espao muito maior do que o de uma dissertao, ou, pelo menos, ser realizada em um trabalho exclusivo sobre Semitica, o que no o caso.

    Desse modo, espera-se fique esclarecida a escolha por expor-se com mais ateno aspectos das obras de apenas trs autores da Semitica e da Lingustica Louis Hjelmslev (1991, 2006), Roman Jakobson (2007) e Umberto Eco (2005) , ousando deixar de lado ou relegando-lhes a citaes pontuais autores como os dois fundadores da Semitica, Saussure e Pierce, bem como outros, tais como Barthes (2001, 2007), Morris (1976), Greimas (1996, 1976a, 1976b) e Landowski (1993). E a segunda forma de limite, em seus aspectos metodolgico e esttico-formal, no pra por a: alm de j se relegar muitos autores a consultas e recursos pontuais, no se deve olvidar de que o trabalho deliberadamente excluiu outros tantos pesquisadores importantes nos estudos da linguagem, da Lingustica e mesmo da Semitica, autores vrios, que a seguinte lista no pode nem pretende esgotar: deixa-se de fora contribuies como as de Volochnov, Bakhtin, Carnap, Lefebvre, Habermas, Apel, Kristeva, Chomsky etc. Ademais, saliente-se tambm que no se pretende cobrir todo o conjunto da obra dos autores a serem abordados, mas, principalmente, aquilo que se mostre de maior relevncia para a pesquisa e que esteja disponvel na lngua nacional ou em lnguas como o espanhol e o ingls.

    Em relao ao terceiro limite, as fronteiras epistemolgicas da Semitica, constitui ele um grande tema dentro do que ser abordado ao longo do captulo, e o trabalho de Umberto Eco, o Tratado Geral de Semitica, a ser abordado, constitui o arrimo terico que auxiliar a dilucid-lo. Com isso, j se quer comear a evidenciar o estatuto particular da Semitica frente a outros campos e cincias constitudas voltadas ao estudo de aspectos da linguagem que extrapolam o horizonte de interesses da primeira. Logo, problemticas como as trabalhadas pela Hermenutica, pela Filosofia da Linguagem, pela Psicologia da Linguagem

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    ou pela Lgica ficam excludas desta exposio ou sero, quando muito, abordadas em termos estritamente semiticos.

    Declarados os limites, h de se particularizar um pouco mais as intenes deste captulo. Assim, tendo em vista os passos seguintes da pesquisa, vai-se aqui procurar expor os modelos de cincia semitica a serem mais utilizados, focalizando seus aspectos segundo o seguinte encadeamento de critrios: (a) concentrar-se nas articulaes intrnsecas e categorias que mais se faam necessrias anlise a ser posteriormente empreendida; (b) apresentar as articulaes e categorias de cada modelo que mais tenham contribudo para o desenvolvimento de uma Semitica geral. A exposio a seguir no tem, nem poderia ter, pretenses de constituir-se numa narrativa do desenvolvimento da Semitica ao longo do sc. XX, mas espera-se que muitos de seus pontos centrais possam ser pelo menos tangenciados. Acredita-se que parte disso ser possvel por se privilegiar-se aqui uma obra surgida em certo momento do desenvolvimento da Semitica (mais precisamente, na dcada de 1970) com a inteno de fornecer uma proposta de sntese obviamente no imune a crticas, limites e vcios a guiar os estudos vindouros: o Tratado Geral de Semitica3, de Umberto Eco (2005). A partir dessa obra, ser possvel considerar-se, ainda que de forma um pouco marginal (pelo menos mais marginal do que seria desejvel), uma grande gama das mais importantes propostas de modelo de cincia semitica, inclusive as de seus formuladores iniciais, Saussure e Peirce. Alm dela, privilegiaram-se tambm os Prolegmenos a uma Teoria da Linguagem, de Louis Hjelmslev (2006), por tratar-se de uma das formulaes iniciais a permitirem efetivamente a abertura da Semitica, em sua matriz estruturalista, para outros sistemas de significao alm da lngua4 e por possibilitar, em conjunto com a obra de Eco, a leitura em termos semiticos de certos aspectos dos modelos de teoria do direito a serem abordados no segundo captulo. Tambm deitar-se- ateno, ainda que breve, 3 Repita-se, o Tratado Geral de Semitica no imune a crticas, limites e vcios, mas pensa-se que constitui uma sntese extremamente plausvel dos estudos nesse campo por apresentar um modelo sistemtico que leva em considerao ambas as tradies clssicas e cobre de maneira extremamente competente a significao e a comunicao, a partir de uma teoria dos cdigos e de uma teoria da produo sgnica, respectivamente; outrossim, o modelo proposto por Eco no Tratado, cuja base tem sido mantida em trabalhos mais recentes do autor conquanto haja expanses, incluses e alguma modificaes , em grande parte calcado no esforo de demarcar epistemologicamente a Semitica e seu objeto, o que possibilita determinar quais os aspectos do fenmeno da linguagem lhe concernem e, com isso, precisar quais contribuies pode fornecer a outras reas do conhecimento e quais delas recebe.

    4 No se pode ignorar que Louis Hjelmslev leva em grande considerao a obra de Saussure e que, em verdade, muitas de suas mais significativas contribuies so, em muito, extrapolaes, generalizaes ou particularizaes de muitas das contribuies de Saussure. Contudo, pensa-se que sua empreitada feita de tal modo original e profcuo que no se pode negar a Hjelmslev as mais altas lureas concedidas ao trabalho cientfico. Ousa-se dizer que apenas pelas mos de Hjelmslev que a proposta inicial de Saussure sobre uma cincia geral dos signos pde se realizar e que seu trabalho, em muito, acaba por explicitar alguns becos sem sada da formulao de Peirce, por exemplo, em relao extensa e muitas vezes pouco funcional tipologia dos signos proposta pelo norte-americano.

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    clssica formulao de Roman Jakobson sobre os fatores da comunicao verbal e sobre as funes da linguagem, o que ser de extrema importncia para demarcar a especificidade do Direito no quadro geral das espcies de discurso que so produzidos e circulam nas sociedades hodiernas.

    Declaradas as intenes para com a Semitica, h de se iniciar a exposio das teorias escolhidas, no curso do que se poder justificar de modo mais convincente as escolhas feitas e suas implicaes sobre o posterior exame da Teoria do Direito. H apenas de realizar uma advertncia: embora se pudesse, a partir da explorao seguinte da Semitica, j remeter a questes propriamente jurdicas, vai-se evitar proceder dessa maneira, pois se acredita que ao deixar tal tarefa aos captulos seguintes, estar-se- assegurando uma aproximao mais organizada e clara problemtica tpica da cincia do direito.

    1.1 Hjelmslev

    O modelo de Hjelmslev alcana um grau de formalidade e refinamento considerado por alguns um tanto quanto bizantino (ECO, 2005, p. 43), mas parece impossvel negar-lhe a preciso, ainda que uma srie de objees possam ser e tenham sido feitas a diversas de suas concluses, talvez especialmente quelas relativas sua distino entre semitica e sistemas simblicos ou entre semitica e no semitica (HJELMSLEV, 2006, p. 116 et seq.; ECO, 2005, p. 78). Muitas de suas formulaes se mostraram, entretanto, imprescindveis para o desenvolvimento ulterior de campos como da Semitica como a Semntica Estrutural (GREIMAS, 1966, p. 36 et seq.; ECO, 2005, p. 62 et seq.) e para a abordagem de sistemas de significao no lingusticos (BARTHES, 2007). Apesar de sua reverncia por Saussure, pode-se dizer que a proposta de Semiologia de Hjelmslev bastante mais complexa e apresenta, conforme h de se demonstrar, muito mais possibilidades de generalizao em direo a sistemas diversos da lngua natural, de especificao de uma mirade de relaes e de integrao de todos esses elementos em um modelo coeso. O conceito de signo ou melhor, de funo semitica de Hjelmslev remete a uma diversidade de dependncias e distines flagradas entre seus elementos constituintes e estas, ao prprio mtodo de investigao erigido, motivo por que iniciar pelo conceito de signo, ao contrrio do defendido em relao a Saussure, mais contribuiria para confundir do que para esclarecer. A forma de mtodo dedutivo adotada pelo linguista dinamarqus implica uma estrita relao de anlise e encadeamento entre seus conceitos e categorias, no sendo possvel apreend-los propriamente fora dessa ordem. Assim, anteriormente ao conceito de

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    signo, h de se expor da forma mais breve possvel suas elucubraes metodolgicas, as categorias gerais de dependncia e de anlise (bastante teis investigao vindoura) e as espcies de funo e funtivos, alm de se fazer uso de uma definio provisria e operacional de signo (a fim de diferenciar signos e figuras), para ento somente poder-se explicitar a noo de funo semitica e seus dois funtivos, expresso e contedo, bem como as demais consequncias a atestarem a potencialidade da teoria da linguagem de Hjelmslev.

    1.1.1 O mtodo da teoria da linguagem

    Apesar de este item abordar uma temtica metodolgica, no ser por meio da metodologia de Hjelmslev que se lograr demarcar o terceiro limite desta pesquisa o horizonte de projeo da Semitica , algo que apenas se estar em condies de realizar a partir da exposio do pensamento de Umberto Eco (2005). Existe a preocupao em Hjelmslev de esquadrinhar fronteiras para sua teoria da linguagem diante de outras disciplinas que abordavam objetos semelhantes, muitas vezes o mesmo, sob diferentes perspectivas (a preocupao de Hjelmslev , sobretudo, com a Lgica); todavia, como se viu ascender nas ltimas dcadas do sc. XX toda uma srie de novas disciplinas a tambm abordarem aspectos da linguagem, a demarcao de Hjelmslev (2006) se mostra, hoje, bastante insuficiente, sendo mais vantajoso intentar essa demarcao a partir da exposio de Eco.

    Feita essa observao, exponha-se o mtodo da teoria da linguagem hjelmsleviana, pois ele h de fomentar, principalmente a partir de suas consequncias, algumas perspectivas adotadas nesta pesquisa. Como o prprio Hjelmslev (2006) admite em diversas passagens dos seus Prolegmenos..., sua anlise parte da chamada lngua natural a lngua falada e, por isso, tem de considerar a Lingustica tradicional, mas sempre no intuito de alargar o ponto de vista inicialmente adotado, o que certamente lhe permitir a primeira formulao consequente da proposta saussuriana de Semiologia5. bem verdade que Hjelmslev, a exemplo de Saussure, concebe que a unidade da linguagem primeira vista, um conglomerado confuso dada pela estrutura lingustica, mas sua concepo sobre a natureza dessa estrutura, bem como sobre a funo semitica, o que permitir, como se espera demonstrar, a extenso de sua teoria para muito alm dos limites da Lingustica e das lnguas naturais, podendo abarcar quaisquer formas de expresso da estrutura lingustica, entendida como forma de

    5 Escolheremos partir das premissas da lingustica tradicional, e construiremos inicialmente nossa teoria a partir da lngua falada dita natural, e apenas dela. A partir desta primeira perspectiva, os crculos iro se ampliando at que as ltimas consequncias sejam extradas. (HJELMSLEV, 2006, p. 24, grifo do autor).

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    contedo, o que h de contribuir para afastar crticas como a de Coelho Netto (2006, p. 58-59), para quem a tradio iniciada por Saussure, devido sua vinculao Lingustica, no seria capaz de desenvolver propriamente uma Semitica geral ou de vislumbrar signos de carter misto, como os decorrentes das trs tricotomias6 de Peirce. A preocupao com o mtodo fundante para a teoria de Hjelmslev, ainda que ele evite utilizar premissas que extrapolem as necessidades de uma teoria da linguagem e adentrar em discusses pertinentes epistemologia. Assim, Hjelmslev tanto se v na necessidade de definir certos termos com que trabalha quanto de legar explicitamente a definio de outros, conforme se ver, epistemologia. Assim, convm expor, ainda que de forma resumida, a metodologia proposta por Hjelmslev para a fundamentao de sua teoria da linguagem. Hjelmslev pensa que deve enderear a toda teoria que deseje evitar a metafsica, a includa a sua, duas exigncias: exigncia de simplicidade, segundo a qual se deve partir apenas das premissas necessariamente requeridas pela natureza do objeto; exigncia de fidelidade, consistente em que a teoria, em suas aplicaes, deva conduzir a resultados conformes aos dados da experincia. Essas duas exigncias conduzem ao conceito sui generis de empirismo adotado por Hjelmslev, empirismo cujo sentido contrasta com o consagrado pela tradio filosfica, uma vez que refuta o mtodo indutivo, declara adeso ao mtodo dedutivo e, assim, aproxima-se bastante mais da noo de racionalismo. Hjelmslev no ignora a objeo a ser-lhe feita por qualquer epistemlogo, mas opta por designar seu mtodo, claramente dedutivo, como emprico devido s exigncias de simplicidade e fidelidade e [...] na esperana de provar, posteriormente, que esta contradio terminolgica nada tem de insupervel. (HJELMSLEV, 2006, p.14).

    Esclarecida sua escolha, Hjelmslev permite-se inclusive a formulao de um princpio terico por ele designado princpio do empirismo: a descrio terica dos objetos postos a exame deve, neste encadeamento de prioridades, ser no contraditria, exaustiva e to simples quanto possvel. Desse princpio h de se deduzir outros, a serem frente referidos. O princpio do empirismo seria compatvel somente com o mtodo dedutivo, aquele que, segundo ele, consistira em passar-se da classe para o componente. O mtodo indutivo, bastante comum na Lingustica que o antecedeu, realizaria exatamente o movimento oposto, 6 Peirce concebe trs tricotomias dos signos: a primeira diz respeito ao signo ou representmen em si mesmo considerado; a segunda, ao signo ou representmen em sua relao para com o seu objeto (referente); a terceira, ao signo ou representmen em relao ao seu interpretante. A primeira tricotomia composta por trs tipos de signo: qualisigno, sinsigno e legisgno. A segunda tricotomia, referente relao entre o signo (representmen) e seu objeto, composta por trs categorias: ndice, cone e smbolo. Na terceira tricotomia, pertinente relao entre o representmen e o interpretante, um signo pode ser denominado rema, dicissigno ou argumento. Um dos textos mais divulgados sobre as trs tricotomias de Peirce o excerto Diviso dos Signos, aqui publicado na coletnea Semitica (PEIRCE, 2010, p. 45 et seq.).

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    do componente para a classe, e assim construiria uma hierarquia de conceitos: por exemplo, dos sons particulares aos fonemas, dos fonemas s categorias de fonemas, das categorias de fonemas aos diversos sentidos, dos diversos sentidos significao fundamental, da significao fundamental s classes de significao etc7. Esse mtodo, que sintetiza em vez de analisar, apresentaria, na viso de Hjelmslev, pelo menos dois inconvenientes: a induo produziria conceitos hipostasiados e os trataria como reais (por isso Hjelmslev a compara ao realismo escolstico8); os conceitos assim produzidos no forneceriam base para uma comparao, pois corresponderiam a um dado estgio de uma lngua e, portanto, possuiriam um valor particular, no generalizvel. Em suma, [...] a induo, neste campo, no leva das flutuaes constncia, mas das flutuaes ao acidental. (HJELMSLEV, 2006, p. 14). Ademais, o mtodo indutivo seria incompatvel com o princpio de empirismo enunciado, por no permitir uma descrio no contraditria e simples, ainda que exaustiva.

    Assim, para atender exigncia de fidelidade e corroborar sua noo de empirismo, Hjelmslev busca um dado da experincia a ser analisado isto , a partir do qual se h de passar da classe ao componente ou do geral ao particular , e o dado pertinente a uma teoria da linguagem seria [...] o texto em sua totalidade absoluta e no analisada. (HJELMSLEV, 2006, p. 14). O procedimento para isolar-se o sistema que subjaz ao texto, encarado como processo, seria o mtodo que o tomasse como uma classe analisvel em componentes, isto , um procedimento claramente dedutivo, que analisaria e especificaria o todo do texto a fim de atingir seus elementos constituintes at as unidades mnimas no mais sujeitas a anlise.

    Definido o objeto da teoria da linguagem e defendida a pertinncia do mtodo dedutivo, Hjelmslev prossegue a exposio de seu mtodo com precisar a relao entre teoria e objeto, que, em termos um tanto quanto ingnuos, pode se referir resposta seguinte pergunta: o objeto que determina e afeta a teoria ou a teoria que determina e afeta o 7 Advirta-se, desde j, para uma distino que, infelizmente, no ser clara nesta altura do desenvolvimento da exposio. Ela se refere ao conceito ligado ao termo significao, pois se vai trabalhar principalmente com dois autores Hjelmslev e Eco que o utilizam ligado a conceitos de ordens muito distintas. Para Hjelmslev, na esteira de Saussure (vide SAUSSURE, 2000, p. 132 et seq.) significao uma substncia amorfa que compe o todo do conjunto de conceitos de uma cultura, substncia a ser segmentada por uma forma do contedo (categoria a ser frente apresentada) e, assim, tornar-se inteligvel e transmissvel. Significao, para Eco, o fenmeno dado pela associao de uma estrutura sinttica a uma estrutura semntica e mesmo a uma estrutura pragmtica por meio de um cdigo. Como nenhuma dessas categorias foi ainda apresentada, esta nota no pode lograr ser inteiramente clara, mas preciso desde j pr essa distino a ser elucidada frente.

    8 Realismo e nominalismo designavam duas posies na chamada disputa dos universais, dada no seio da escolstica medieval, na qual se envolveram importantes pensadores ps-tomistas. Em suma, [...] os realistas garantiam que os universais eram coisas, baseando-se em Plato e na teoria das ideias. Os nominalistas, ao contrrio, sustentavam que os universais eram meros nomes, invocando a autoridade de Aristteles. (RUSSELL, 2001, p. 238). No obstante a assero de Russell, preciso registrar que o tratado das categorias, constante do rganon (ARISTTELES, 2010), tambm d azo a uma leitura realista, pois as categorias podem ser encaradas como realidades a manifestarem-se nas coisas singulares.

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    objeto? Primeiramente, surge a necessidade de definir o que se entende por teoria, e Hjelmslev lembra que teoria palavra polissmica, capaz de abarcar diversas propostas cuja validade de competncia da epistemologia discutir e, entre os diversos sentidos possveis, considera que a teoria pode ser entendida, como mais comumente se a entende, como um conjunto de hipteses e, nesse caso, ser o objeto a afetar a teoria, numa relao unilateral. Hjelmslev prefere uma concepo diferente de teoria, concepo para a qual importam os dois seguintes fatores: (a) a teoria em si mesma, como sistema dedutivo puro, no depende dos dados da experincia e no implica postulados de existncia, de modo que, nesse sentido, apenas ela, teoria, e no o objeto, permite o clculo das possibilidades que resultam de suas premissas; (b) algumas das premissas da teoria devem preencher as condies necessrias para aplicarem-se a certos dados da experincia. Em relao ao primeiro fator, a teoria predicada como arbitrria; em relao ao segundo, como adequada. Portanto, [...] decorre que os dados da experincia nunca podem confirmar ou contrariar a validade da prpria teoria, mas sim, apenas, sua aplicabilidade. (HJELMSLEV, 2006, p. 16). Da teoria pode deduzir-se uma srie de teoremas a apresentarem-se sob a forma de implicaes9, as quais, por sua vez, permitiro a elaborao de hipteses: a validade das hipteses que depende dos dados da experincia via aplicabilidade, no a validade da teoria. Em resumo:

    A teoria da linguagem, portanto, define soberanamente seu objeto ao estabelecer suas premissas atravs de um procedimento simultaneamente arbitrrio e adequado. A teoria consiste num clculo cujas premissas so em nmero to restrito e so to gerais quanto possvel e que, na medida em que tais premissas so especficas a tal teoria, no parecem ser de natureza axiomtica. Este clculo permite prever possibilidades, mas de modo algum se pronuncia a respeito da realizao destas. Deste ponto de vista, se relacionarmos a teoria da linguagem com a realidade, a resposta questo que consiste em saber se o objeto determina e afeta a teoria, ou se o contrrio, dupla: em virtude de seu carter arbitrrio, a teoria a-realista; em virtude de seu carter adequado, ela realista (atribuindo a este termo seu sentido moderno e no, como mais acima, seu sentido medieval). (HJELMSLEV, 2006, p. 17, grifo do autor).

    So essa concepo de teoria e suas premissas que possibilitam a Hjelmslev declarar o texto como objeto da linguagem, embora o conceito correspondente ao texto haja de ser 9 Em lgica, a implicao [...] a relao que subsiste entre dois enunciados p q, quando o correspondente condicional logicamente vlido. (ABBAGNANO, 2007, p. 628), ou [...] a I. a composio de duas proposies por meio do conectivo se... ento, em que a primeira se chama antecedente e a segunda consequente. (ABBAGNANO, 2007, p. 546, grifo do autor). Logo, para Hjelmslev a teoria possibilita produzir, a partir de suas premissas, uma srie de proposies condicionais, seus teoremas, sob a forma de relao entre um antecedente e um consequente, a partir dos quais sero construdas hipteses a serem confirmadas ou refutadas pelos dados da experincia.

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    precisado ainda e apenas por meio do procedimento de anlise. Uma teoria no pode se limitar a dar meios de reconhecer ou compreender um determinado objeto; ela deve permitir a identificao de todos os objetos concebveis (logo, tanto existentes quanto possveis) da mesma suposta natureza do objeto singular dado. Em outros termos, a generalidade da teoria deve permitir identificar, descrever e prever a possibilidade ou atualidade de existncia de qualquer objeto da mesma natureza daquele sobre qual se teorizou. A teoria da linguagem, portanto, deve ser capaz de cumprir tais exigncias e, ao tomar o texto como objeto, deve oferecer um corpo terico que permita identificar, descrever e prever, de modo no contraditrio e exaustivo, qualquer texto. Outrossim, ao encarar o texto como processo ou fenmeno, deve a teoria da linguagem permitir que se chegue estrutura ou essncia que possibilita a existncia do texto, e esse elemento sistmico ou estrutural , no caso, a lngua. No se h de apressadamente imputar um carter pejorativamente lingustico, no sentido mais comum do termo, teoria da linguagem hjelmsleviana, como se sua teoria no pudesse abarcar outros tipos de signo que no o corriqueiramente chamado signo lingustico, mas s se estar em condies de iniciar a demonstrao da amplitude de seu modelo quando da apresentao de sua concepo de lngua como forma de contedo a ser manifesta em diversos sistemas de forma de expresso.

    Por meio da aplicao de seu mtodo, Hjelmslev pensa que, de uma coleo de textos especficos produzidos numa lngua especfica, podem-se construir elementos analticos que permitam descrever outros textos existentes ou possveis na lngua dada. Contudo, a teoria, ao pretender-se da linguagem, no pode se restringir a descrever o sistema de uma lngua particular, como o portugus, mas deve possibilitar a descrio dos sistemas de quaisquer outras lnguas e dos processos (textos) dados a partir delas. Assim, em razo de sua adequao, o trabalho da teoria da linguagem emprico; em razo de sua arbitrariedade, ele de clculo: de um modo adequado, a teoria da linguagem parte de um conjunto de dados da experincia (textos) e os analisa, e de um modo arbitrrio define quais os objetos a que se aplica e os submete a um clculo que prev todos os casos possveis, independentemente dos dados da experincia, o que permite descrever e reconhecer um dado texto e a lngua em que ele elaborado. Se o clculo permitir diversos procedimentos de reconhecimento e descrio no contraditrios e exaustivos, deve-se escolher o mais simples a essa prescrio de escolha Hjelmslev chama princpio da simplicidade, uma derivao do princpio de empirismo.

    Dessarte, a teoria da linguagem de Hjelmslev se prope a procurar a constncia no interior da lngua e no fora dela e, com isso, procede a uma limitao provisria, mas

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    necessria, de seu objeto, partindo do mais simples ao mais complexo, de acordo com as segunda e terceira regras do mtodo de Descartes10. Com isso, a teoria se torna satisfatria se permite voltar, aps a anlise, voltar ao todo complexo da linguagem e v-lo no mais como um [...] conglomerado acidental de fato mas como um todo organizado ao redor de um princpio diretor. (HJELMSLEV, 2006, p. 23). A descrio exaustiva, em conformidade com o princpio do empirismo, o que permite a passagem do simples ao complexo, isto , a ampliao da perspectiva inicial, mas a forma que a descrio toma depende do tipo de objeto inicialmente considerado: no caso de Hjelmslev, parte-se da lngua falada, dita natural, a fim de se ampliar a perspectiva diversas vezes e ver includos aspectos anteriormente considerados. Resta acompanh-lo na empreitada para decidir se seu modelo extrapola ou no as fronteiras da Lingustica rumo construo de uma Semitica11.

    Por fim, h de lembrar que a proposta terica de Hjelmslev, ao contrrio da de Peirce, no procura fiar-se em consideraes filosficas mais gerais, pois para ele a teoria deve evitar aquilo que chama de metafsica com diminuir as suas premissas implcitas ao mnimo necessrio. Alerta ainda para que ser necessrio, uma vez que se parte do mais simples ao mais complexo, utilizar definies operacionais (provisrias) a serem substitudas no curso da anlise e que no se trata de esgotar, com seu mtodo, a compreenso do objeto, mas de determin-lo em relao a outros objetos igualmente definidos ou pressupostos como conceitos fundamentais.

    1.1.2 Anlise do texto e suas categorias

    A escolha da base de anlise depende de sua adequao e, portanto, variar conforme os textos. Logo, no se trata de um procedimento universal, pois apenas o princpio de anlise, decorrente da exigncia de exaustividade do princpio de empirismo, universal. Contudo, o princpio de anlise deve adequar-se base de dados de modo a no impedir que emerjam fatores que viriam tona em outros procedimentos de anlise. Contudo, no se trata

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    Hjelmslev se refere aos preceitos lgicos que Descartes decide conservar na sua investigao do Discurso do Mtodo: [...] o segundo, o de dividir cada dificuldade examinada em tantas partes quantas puder e for necessrio para melhor resolv-las. O terceiro, conduzir pela ordem os meus pensamentos, comeando pelos objetos mais simples e mais fceis de se conhecer, para subir aos poucos, como por degraus, at o conhecimento dos mais compostos e supondo haver certa ordem entre os que no se precedem naturalmente uns aos outros. (DESCARTES, 2008, p. 25).

    11 No se ignora que Hjelmslev, fiel proposta de Saussure, utiliza o termo Semiologia, mas, conforme j explicitado, denominar-se- neste trabalho, seguindo a posio de Umberto Eco (2005), Semitica cincia da significao e da comunicao. Hjelmslev um dos autores que procura distinguir semitica e semiologia, dando a cada um dos ternos significados prprios, o quais ho de ser frente esquadrinhados.

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    de conforme procederia o que Hjelmslev chama de realismo ingnuo dividir um objeto a fim de encontrar outros objetos, pois se haveria de escolher entre vrias decupagens possveis. Trata-se de dividir o objeto em partes, mas de maneira a adaptar a anlise para que seja conforme as dependncias mtuas existentes entre os componentes e o todo do objeto, pois:

    Tanto quanto suas partes, o objeto examinado s existe em virtude desses relacionamentos ou dessas dependncias; a totalidade do objeto examinado apenas a soma dessas dependncias, e cada uma de suas partes define-se apenas pelos relacionamentos que existem 1) entre ela e outras partes coordenadas, 2) entre a totalidade e as partes do grau seguinte, 3) entre o conjunto dos relacionamentos e das dependncias e essas partes. (HJELMSLEV, 2006, p. 28).

    Logo, uma totalidade como a do texto no se compe simplesmente de objetos, mas de dependncias de variados tipos, havendo de se atentar para os trs tipos gerais de dependncia enumerados. Outrossim, no a substncia do objeto, mas seus relacionamentos internos e externos que tm existncia cientfica. E Hjelmslev reconhece o mrito de Saussure na questo, pois, ao reconhecer a prioridade das dependncias na lngua, [...] por toda parte ele procura relacionamentos, e afirma que a lngua forma, e no substncia. (HJELMSLEV, 2006, p. 29). Hjelmslev ento procede anlise com classificar as formas de dependncias de um modo extremamente especfico, mas que, alm de se mostrar til para alm de seus intentos imediatos, h de ganhar nova dimenso com a expanso de sua perspectiva para alm do modo de ser do signo lingustico. Inicialmente, Hjelmslev procede classificao das dependncias do tipo 1 a dependncia entre as partes coordenadas vislumbra trs tipos (figura 1): (a) interdependncia, em que as partes ou componentes se pressupem mutuamente, isto , a presena ou existncia de um implica e pressupe a do outro; (b) determinao, a parte ou componente A pressupe e implica B, mas B no pressupe ou implica A, ou seja, no uma dependncia recproca, mas unilateral; (c) constelao, as partes ou componentes considerados se relacionam e combinam reciprocamente, mas um no pressupe ou implica o outro. Hjelmslev tambm encontra a necessidade, que ao abordar o binmio esquema/uso tornar-se- bastante necessria, de distinguir esses trs tipos de dependncia conforme se refiram aos relacionamentos entre partes concebidos num sistema (lngua) ou num processo (texto): no sistema, nomeia interdependncia, determinao e constelao respectivamente como complementaridade,

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    especificao e autonomia; no processo, tambm respectivamente, como solidariedade, seleo e combinao. Essas funes foram esquematizadas na figura 2.

    Se se deitar a ateno sobre um processo como um texto construdo em lngua portuguesa e ainda se est a levar em considerao os textos compostos de signos tipicamente lingusticos h de se vislumbrar essas diversas espcies de dependncia. No texto, h solidariedade entre um verbo transitivo e seu objeto ou entre um sujeito e um predicado; h seleo entre um verbo e um advrbio, entre um nome e sua regncia, entre um substantivo e um adjetivo ou entre um sujeito e o adjunto adnominal; h combinao entre oraes coordenadas ou no interior de um sujeito composto etc. importante salientar que, do ponto de vista do sistema, esses elementos podem apresentar dependncias no correspondentes s espcies verificadas no processo: por exemplo, se num texto h solidariedade entre um sujeito e um predicado, no h necessariamente complementaridade entre eles no sistema da lngua portuguesa, pois existe a possibilidade de oraes sem sujeito, como aquelas referentes a processos naturais, sendo assim mais preciso falar-se em especificao entre sujeito e predicado no interior do sistema da lngua, pois todo sujeito, de um ponto de vista sinttico, implica um predicado, mas nem todo predicado implica um sujeito.

    Do mesmo modo, se entre um substantivo e um adjetivo h, no texto, seleo, do ponto de vista do sistema da lngua portuguesa, h entre essas classes complementaridade. E as dependncias no existem somente entre palavras, mas no interior de uma nica palavra entre radical, prefixos, sufixos etc. Tambm por esse motivo que Hjelmslev se dispe a abandonar a diviso da gramtica de uma lngua, sustentada desde a Antiguidade, entre morfologia e sintaxe, pois [...] se se levar esta tese ao ponto limite o que foi feito algumas vezes a morfologia s se prestaria a uma descrio do sistema e a sintaxe apenas descrio do processo. (HJELMSLEV, 2006, p. 31).

    Reitere-se: as categorias surgidas da anlise do texto ainda se encontram em uma dimenso puramente lingustica, mas, como se est preste a apresentar, Hjelmslev ampliar essa perspectiva inicial a ponto de transcender a considerao das formas da expresso e h de logo se precisar o que se entende por formas da expresso das lnguas naturais. Por ora, resta prosseguir com a apresentao das categorias da anlise do texto, a qual consiste no registro de certas dependncias entre termos, chamados partes do texto. As categorias j apresentadas, reitere-se, dizem respeito s formas especficas de dependncia entre as partes coordenadas, e h de se passar s categorias da dependncia existente entre as partes (termos) e o todo (o texto analisado). A dependncia entre a totalidade e as partes marcada por sua homogeneidade, caracterstica que implica considerar-se, na perspectiva de Hjelmslev, serem

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    as partes-objeto interiores totalidade, o que diferencia esse tipo de dependncia das existentes entre as partes coordenadas e entre totalidades. Assim, [...] todas as partes coordenadas resultam apenas da anlise de uma totalidade que depende dessa totalidade de um modo homogneo. (HJELMSLEV, 2006, p. 33). Para prosseguir em seu intento de verificar as formas especficas de dependncia entre a totalidade do texto e suas partes, Hjelmslev necessita definir a prpria noo de anlise:

    A anlise, em sua definio formal, ser portanto a descrio de um objeto atravs das dependncias homogneas de outros objetos em relao ao primeiro e das dependncias entre eles reciprocamente. [...] A definio de anlise pressupe apenas termos ou conceitos que no so, eles, definidos no sistema de definies especfico da teoria, e que colocamos como indefinveis: descrio, objeto, dependncia, homogeneidade. (HJELMSLEV, 2006, p. 34, grifo do autor).

    Hjelmslev, assim, deixa Epistemologia a tarefa de definir conceitos como os de descrio, objeto, dependncia e homogeneidade por entender que sua definio extrapolaria o horizonte de preocupaes prprio da teoria da linguagem; contudo, o conceito de anlise, crucial a sua proposta terica, necessita ser esclarecido. O objeto a ser descrito por meio da anlise por Hjelmslev designado classe, e os seus componentes seriam os objetos registrados por um nico procedimento de anlise como dependentes uns dos outros e da classe homognea e reciprocamente. Assim, as dependncias entre os termos do texto, conforme classificao apresentada, ho de ser compreendidas como espcies de dependncia entre componentes de uma classe. Ao se tomar um texto um processo ou fenmeno, isto , um dado da experincia como a totalidade a ser analisada como classe a fim de encontrar os seus componentes, surge a necessidade de se distinguir entre o texto como classe e o texto como componente de outras classes mais amplas. Assim, Hjelmslev introduz a noo de hierarquia, definida como uma classe de classes, da qual haveria duas espcies: processos e sistemas. Se o texto visto tambm como uma totalidade, h de distinguir entre totalidade e classe. Uma totalidade, assim, a composio das mltiplas dependncias existentes entre uma classe e seus componentes. Logo, a totalidade h de ser compreendida como um conceito que engloba outros trs: classe, componente e dependncia. Portanto, uma hierarquia expressa as dependncias entre totalidades, havendo a necessidade de diferenci-las em dependncia como processos ou como sistema.

    Assim, os fenmenos ou processos particulares ho de ser vistos como classes uma vez que podem ser analisados em componentes homogeneamente dependentes uns dos outros

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    e do todo do texto e tambm como componentes de uma classe mais ampla, os processos. Os processos so espcie de hierarquia por constiturem-se como uma classe de classes, especialmente em relao totalidade que se escolheu como ponto de partida, em respeito ao princpio de empirismo: o texto. Do mesmo modo, h de vislumbrar o sistema como uma hierarquia, uma classe de classe de elementos reciprocamente relacionados e dependentes.

    Dessa distino, surge para Hjelmslev a necessidade de se adotar designaes especiais para classes e componentes conforme sejam extrados de processos ou de sistemas, isto , de uma ou outra espcie de hierarquia (Figura 1). Assim, classe e componentes so respectivamente definidos como paradigma e membros quando extrados de um processo e como cadeia e partes quando extrados de um sistema. Do mesmo modo, h de se distinguir entre os procedimentos de anlise conforme visem um processo ou um sistema: diviso a anlise de um processo e articulao a anlise de um sistema. Logo, em respeito ao princpio de empirismo, surge que a tarefa do procedimento de anlise prprio da teoria da linguagem realizar a diviso do texto, como fenmeno e processo, a fim de que possa ele ser descrito como uma cadeia (classe) compostas de partes (componentes) tais como proposies, oraes, palavras, slabas etc. Essas partes tambm de ser compreendidas como cadeias se uma nova diviso for capaz de descrev-las desse modo, ou seja, se um novo procedimento de anlise for capaz de flagrar que sua composio se d pelas relaes de dependncia recproca e homognea entre suas partes e seu todo como classe, at que as partes sejam irredutveis por uma nova anlise, at que se esgotem as possibilidades de diviso. Apenas desse modo a exigncia de exaustividade do princpio de empirismo h de ser cumprida. Hjelmslev alerta, contudo, para que:

    A descrio do objeto dado (isto , o texto) no se esgota com uma diviso continuada mesmo que levada a cabo, a partir de uma nica base de anlise, mas que se pode ampliar a descrio, isto , registrar novas dependncias atravs de novas divises efetuadas a partir de outras bases de anlise. Falaremos ento em um complexo de anlises, ou complexo de divises, isto , de classe de anlises (ou divises) de uma nica e mesma classe (ou cadeia). (HJELMSLEV, 2006, p. 35, grifo do autor).

    Assim, a descrio exaustiva implica a realizao de um complexo de anlises (ou divises, j que se tem o texto por ora em vista) e entre cada nvel dessas anlises encadeadas h determinao, pois que um nvel consequente pressupe o antecedente, mas o antecedente no pressupe o consequente. Tal como as dependncias entre os componentes, a relao entre os nveis de anlise podem ser consideras como relao de especificao (sistema) ou de

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    seleo (processo), conforme se trate, respectivamente, de nveis de uma articulao (sistema) ou de uma diviso (processo). A totalidade desse procedimento de diversos nveis de anlise (articulaes e divises) encadeados compe aquilo que Hjelmslev designa deduo. Dessarte, ao definir operao como uma descrio conforme o princpio do empirismo e procedimento como uma classe de operaes encadeadas, Hjelmslev (2006, p. 35, grifo do autor) conclui que [...] um procedimento pode ento constituir ou em anlises e ser uma deduo ou ento, pelo contrrio, constituir em snteses e ser uma induo. Por fim, Hjelmslev declara que apenas utilizar os termos componente, parte e membro apenas para designar os objetos resultantes da anlise simples (analise realizada apenas em um nvel), preferindo derivados para os objetos resultantes dos demais nveis de anlise que se empregue. Assim, a partir dessa substituio terminolgica, uma hierarquia passa a ser compreendida como uma classe com seus derivados. Por sua vez, derivados de uma classe so os componentes e os componentes-de-componentes atingidos no interior de um mesmo procedimento dedutivo-analtico. Assim, pode se dizer que a classe compreende os derivados e que os derivados entram na classe. O grau dos derivados corresponde ao nmero de classes comuns mais baixo do qual os derivados dependem homogeneamente: segundo o exemplo de Hjelmslev (2006, p. 37), ao se considerar grupos de slabas, slabas e partes de slabas, as slabas so derivados de primeiro grau dos grupos de slabas, encarados nessa relao como classe, e as partes de slaba so derivados de primeiro grau das slabas e de segundo grau dos grupos de slabas. A fim de colocar nesses termos a terminologia utilizada, esclarea-se que Hjelmslev reserva, pois, o termo componente aos derivados de primeiro grau.

    1.1.3 Funes, signos e figuras

    Hjelmslev prossegue a exposio com introduzir, a fim de evitar ambiguidades, as noes de funo e funtivo. Essas duas noes exigiro a substituio de algumas das definies operacionais utilizadas por outras, definitivas. Apesar de, em princpio, poder parecer uma complicao desnecessria a uma exposio que se pretende sinttica, optou-se, principalmente em relao ao item anterior, pela apresentao das definies operacionais por elas clarificarem sobremaneira a compreenso da argumentao e o entendimento sobre a teoria da linguagem hjelmsleviana. Feita essa considerao, diga-se que a funo uma dependncia que preenche as condies de uma anlise e o funtivo, um objeto que tem uma funo em relao a outros objetos: logo, os funtivos de uma funo so [...] os termos entre os quais esta existe. (HJELMSLEV, 2006, p. 39). Assim, um funtivo contrai uma funo

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    com os demais e a funo o todo de dependncia entre tais funtivos (os funtivos mais sua relao de dependncia), podendo, pois, ser analisada. Com a introduo dessas noes, Hjelmslev no realiza apenas a substituio de uma noo operacional por uma definitiva (dependncia por funo, a serem entendidas como sinnimas), mas tambm consegue precisar ainda mais as espcies de dependncias (ou funes) j apresentadas. Para tanto, ele necessita, anteriormente, distinguir entre dois tipos de funtivos: as constantes, funtivos cuja presena condio obrigatria para a presena do funtivo com que contraem a funo; as variveis, funtivos cuja presena no condio obrigatria para a presena do funtivo com que contraem a funo. Logo, a interdependncia h de ser compreendida como uma funo entre duas constantes, a determinao como a funo entre uma constante e uma varivel e a constelao como a funo entre duas variveis. Hjelmslev tambm prope, alm das nomenclaturas utilizadas para diferenciar as trs espcies de funo, nomenclaturas que ressaltam as semelhanas e dessemelhanas entre elas. Assim, a interdependncia e a determinao, funes que possuem em comum um fato de apresentarem pelo menos um funtivo constante, so chamadas por Hjelmslev de coeses. interdependncia e constelao, funes com apenas um tipo de funtivo (na primeira, constantes e, na segunda, variveis), Hjelmslev designa reciprocidades, o que indica que, ao contrrio da determinao, essas funes no so orientadas (orientao decorrente da natureza diversa dos funtivos). Saliente-se que essa nomenclatura utilizada para designar, entre outras coisas, as espcies de funes e a relao entre seus funtivos leva em conta funes compostas apenas por dois funtivos, e Hjelmslev prev que elas podero ser contradas por um nmero maior de funtivos, mas mantm a nomenclatura por entender que essas funo multilaterais ou multinrias podem ser compreendidas como funes entre funes bilaterais ou binrias.

    H ainda a introduo de uma grande variedade de nomenclaturas12 com finalidade explicativa ou de substituio das definies operacionais, de modo que doravante se remete a elas como permanentes. Entre as novas nomenclaturas introduzidas, a de maior importncia

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    Hjelmslev (2006) v ainda a necessidade de distinguir-se com outra nomenclatura os funtivos de dependncias do tipo determinao (seleo ou especificao), funes dadas entre uma constante e uma varivel (funes orientadas, portanto): a constante designada determinada (selecionada ou especificada) e a varivel, determinante (selecionante ou especificante). No obstante, para os funtivos que contraem reciprocidades (funes no orientadas, como a interdependncia e a constelao) Hjelmslev mantm os mesmos nomes: so interdependentes (solidrios ou complementares) os funtivos que se pressupem reciprocamente e constelares (combinados ou autnomos) os funtivos que no se pressupem reciprocamente. Dos funtivos que contraem reciprocidade, diz-se que so recprocos, e dos que contraem coeso, coesivos. Essa , sem dvidas, uma amostra do grau de formalidade a que o modelo hjelmsleviano chegou, o que de certo lhe valeu uma srie de crticas, ainda que tal procedimento pudesse angariar como justificativa a necessidade de nomear cada espcie de relao e dependncia com que se deparasse.

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    de certo a referente diferenciao entre relaes (funes conjuntivas) do tipo e...e e correlaes (funes disjuntivas) do tipo ou...ou, pois essa a base da distino entre os conceitos de processo e sistema: no texto (fenmeno ou processo) h uma conjuno e os funtivos das diversas funes estabelecidas se apresentam concomitantemente, ou seja, coexistem na expresso relacionam-se ; no sistema (ainda considerado como lngua) h, contrariamente, uma disjuno, uma alternncia entre os funtivos que o compem e, assim, correlacionam-se. Alerte-se, todavia, para que no h oposio absoluta entre relao e correlao, ou entre sistema e processo, pois todos os funtivos da lngua participam tanto do processo quanto do sistema, isto , eles contraem ao mesmo tempo relaes (conjuno, coexistncia) e correlaes (disjuno, alternncia). Assim, pode-se definir [...] um sistema como uma hierarquia correlacional, e um processo como uma hierarquia relacional.

    (HJELMSLEV, 2006, p. 43, grifo do autor). Outra substituio de termos que merece destaque justamente a realizada sobre

    processo e sistema: tais denominaes cumprem um papel explicativo no sistema de Hjelmslev e, por mais teis que tenham se mostrado, aventa-se a necessidade de alter-las por termos que, sendo menos genricos, possam identificar a natureza particular de processos e sistemas semiticos ante todos os outros tipos especficos de processo e sistema com que outras cincias lidem: assim, Hjelmslev conserva os termos texto e lngua referidos chamada lngua natural e teorizao especificamente lingustica, mas com vistas a ampliar a

    perspectiva, sugere, conforme a traduo para o portugus, os termos sintagmtica e paradigmtica como substitutos de processo e sistema respectivamente. Note-se que o termo paradigmtica, designativo de um sistema semitico, no se confunde com paradigma, termo reservado s classes componentes da paradigmtica. Alerte-se ainda para que as noes de paradigmtica e sintagmtica e as de paradigma e cadeia de Hjelmslev no podem ser consideradas como idnticas s de paradigma e sintagma em Saussure, porque estas possuem um alcance a ser considerado ainda exclusivamente lingustico, uma vez que o linguista genebrino no logrou o desenvolvimento de uma Semiologia estruturada. As noes de paradigmtica e sintagmtica hjelmslevianas inserem-se em um modelo terico que pretende extrapolar as barreiras da lngua natural e da Lingustica, assero a ser corroborada ainda no decorrer desta exposio.

    Por fim, resta apresentar brevemente, a fim de ser em seguida elucidada, a distino entre signos e figuras. Hjelmslev parte da noo de signo por ele considerada imprecisa e realista, a de signo (ou melhor, j adiantando uma noo frente apresentada, a de forma da expresso) como signo de alguma coisa, o que indicaria a presena de uma funo, pois o

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    signo, em oposio a um no signo, portador de uma significao ou realiza uma funo de significao entre funtivos. Utilizem-se dois exemplos, um lingustico e outro no lingustico. No primeiro caso, ao se adotar uma palavra como entristecer como classe e analis-la tanto do ponto de vista de seu significante quanto de seu significado (para lembrar-se as noes saussurianas enquanto no so apresentadas as de Hjelmslev), chega-se ao prefixo en, ao sufixo ecer e ao radical trist, e cada um desses componentes carrega uma significao mnima: en prefixo grego com sentido de posio interior ou movimento para dentro, ecer sufixo verbal latino que transmite noo incoativa e trist radical referente ao adjetivo portugus triste, derivado do latim trstis. Se se intentar mais um nvel de anlise, chega-se a elementos como as slabas e letras, que no carregam significao.

    No segundo caso, considere-se uma pea de vesturio, como o culote, uma espcie de cala, larga na parte superior e justa na inferior: essa pea de vesturio hoje um tanto quanto incomum j foi utilizada em diversas pocas e de vrias formas possveis, como veste da nobreza europeia no princpio da Modernidade, como padro dos uniformes militares dos exrcitos da Europa na passagem do sc. XVIII ao XIX, como cala de equitao etc. Se se considerar um sistema de vesturio, um culote pode integr-lo em sua relao de oposio aos outros elementos componentes desse sistema e, assim, adquire um significado, inclusive remetendo aos seus usos passados e presentes, a certa poca e certo sistema social13. Se se considerar o culote como uma classe e se o decompuser em seus elementos constituintes seus componentes, como tecido, linhas, botes etc. , esses componentes no possuem significado do ponto de vista de vista do vesturio como possvel sistema semitico14. A fim de diferenciar esses componentes ou derivados que apresentam uma carga mnima de significao daqueles que no possuem significao em relao paradigmtica considerada, Hjelmslev introduz as definies signo e figura.

    Assim, enquanto os signos apresentam significao, ainda que entrem como componentes ou derivados numa classe, as figuras, como no signos, carecem de significao.

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    Lembre-se de que, por exemplo, a expresso francesa sans-culottes (sem-culotes) foi utilizada para designar as camadas menos abastadas do terceiro Estado (composto principalmente por pequenos proprietrios, artesos e diversas espcies de trabalhadores) durante a Revoluo Francesa. Nesse contexto, um culote remete ao significado nobreza, relacionado a um estamento social que, em sua relao com o todo social do qual faz parte, ocupa determinada funo e ope-se a outros estamentos. A questo que a relao de um culote, tomado como derivado de uma classe, pode remeter a diversos sistemas e processos cuja estruturao relacional pode ser abordada em termos semiticos.

    14 Evidentemente, uma linha ou um boto possuem ainda significao como construtos culturais, pois podem funcionar como smbolo ao remeterem a certo grau de desenvolvimento tecnolgico prprio de uma poca e de um contexto social. Contudo, se se decompuser esses elementos em seus componentes, tm-se objetos naturais que, em estado bruto (isto , no conjugados na composio de tecidos, linhas ou botes), no possuem significado como construtos culturais.

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    Por isso [...] a economia relativa entre os inventrios de signos e de no-signos responde inteiramente quilo que provavelmente a finalidade da linguagem. (HJELMSLEV, 2006, p. 51). Assim, na estrutura de uma linguagem haveria de se ter um nmero limitado de figuras como o sistema de letras do alfabeto ou o sistema dos materiais utilizados para construo de peas de vesturio que serviriam construo de um nmero maior e crescente de signos a partir dos quais se poderiam engendrar novos signos, progressiva e constantemente. Hjelmslev conclui, pois, que um trao fundamental de qualquer estrutura de linguagem a possibilidade de construo de um inventrio crescente e amplivel de signos a partir de um nmero restrito de figuras. Logo, a comum definio de linguagem como sistema de signos apenas daria conta da relao entre lngua e fatores extralingusticos, pois para que se pudesse alcanar a estrutura interna da linguagem de um ponto de vista ampliado e propcio fundamentao de uma cincia de todos os sistemas semiticos haveria de se considerar que a linguagem formada por sistemas de figuras que servem