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UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL

VIVENDO NO ESPETÁCULO, APRENDENDO COM O ESPETÁCULO –

Cultura Rave e Produção de Jovens Contemporâneos

Canoas2010

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

ESTUDOS CULTURAIS EM EDUCAÇÃO

Page 3: Dissertação - Sandro

SANDRO FACCIN BORTOLAZZO

VIVENDO NO ESPETÁCULO, APRENDENDO COM O ESPETÁCULO-

Cultura Rave e Produção de Jovens Contemporâneos

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Luterana do Brasil como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Educação.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Marisa Cristina Vorraber Costa

Canoas

2010

Page 4: Dissertação - Sandro

A verdadeira viagem de descobrimento não consiste em procurar novas paisagens, e

sim em ter novos olhos. (Marcel Proust)

Page 5: Dissertação - Sandro

AGRADECIMENTOS

Considerando este trabalho de dissertação o resultado de uma longa

caminhada que iniciou antes mesmo do ingresso no curso de mestrado na

Universidade Luterana do Brasil, agradecer me parece ser uma tarefa um tanto

quanto árdua, e, muitas vezes, injusta.

Portanto, se deixei de agradecer a algumas pessoas que, de alguma

maneira, passaram pela minha vida e contribuíram de forma direta ou indireta na

construção deste trabalho, peço que se sintam inclusas nos meus agradecimentos.

Agradeço particularmente pela contribuição direta na construção da

pesquisa àqueles que me ajudaram indicando bibliografias, sites e materiais,

discutindo e me indagando sobre os assuntos que envolviam o trabalho:

O que seria de mim sem a fé que depositei em Deus? Por isso,

agradeço de forma simbólica, algo que só minhas orações foram capazes de

mover.

Meu obrigado à amiga Denalize Goulart Leite pelo apoio nos

momentos pré-seleção do mestrado. As leituras, a preparação do projeto, a

escrita do memorial e os resumos dos livros. Agradeço o carinho, a atenção e

a amizade.

Agradecimentos especiais à orientadora Marisa Vorraber Costa

pelas instigantes discussões e pelos sábios ensinamentos. Obrigado por ter

acreditado no meu trabalho. Acreditar que um assunto tão polêmico como a

cultura rave poderia ser pensado através das lentes pedagógicas.

Agradeço em especial a uma colega do mestrado que fez com

que eu não me sentisse um estranho no meio acadêmico. Carla Simone

Page 6: Dissertação - Sandro

Corrêa Marcon, muito obrigado pelo apoio, carinho e amizade durante esses

dois anos. Foram seminários, palestras, bancas de avaliação e

apresentações, todos sem a mesma importância se não fosse junto contigo.

Agradeço também a sua família por ter me recebido de forma tão calorosa e

gentil nos finais de semana quando estudávamos para finalizar os projetos.

Tenho certeza que uma grande amizade nasceu. Uma amizade que pretendo

cultivar por toda minha vida.

Obrigado à colega de mestrado Camile Moreira Alves por

acreditar no meu trabalho e ter me proporcionado uma experiência incrível de

iniciar minha carreira oficialmente como professor.

Aos meus pais, obrigado pelo carinho e pelo apoio em todos os

momentos. Sem vocês, grande parte do meu trabalho intelectual não seria

realizado com sucesso.

Diretamente na pesquisa, agradeço ao amigo e sujeito-rave,

Marcos Tomazetti, que me ajudou nas investigações, no desenho do universo

da cultura rave e foi meu companheiro nas idas às festas. Além de ser um

excelente profissional da área do design gráfico, com ele pude discutir

assuntos relevantes no meu trabalho. A maioria das artes gráficas do trabalho

contou com a sua colaboração. Obrigado também pela ajuda na elaboração e

edição do vídeo.

Em especial, cito aqui o nome de algumas pessoas que foram

igualmente importantes na construção do meu trabalho: obrigado à prima

Cristina Bortolazzo e aos irmãos Clécio e Denita Bortolazzo.

Page 7: Dissertação - Sandro

RESUMO

Inscrito em um referencial teórico inspirado nos Estudos Culturais, o presente trabalho busca investigar, entender e apontar as relações entre a cultura rave e a produção de certos tipos de sujeitos jovens que habitam o mundo de hoje. Entende-se por cultura rave o conjunto de manifestações associadas à música eletrônica, envolvendo componentes visuais e identitários, redes tecnológicas de comunicação, consumo de drogas, variados estilos de som, formação de tribos e itens de consumo.A pesquisa tem o objetivo de chamar a atenção para as inúmeras convocações da cultura rave e como elas estão implicadas na composição das identidades de determinados jovens contemporâneos. A análise pretende colocar em evidência características dessa parcela da juventude atrelada à cultura da mídia e do consumo. Utiliza-se como referencial teórico autoras e autores que problematizam questões referentes à condição pós-moderna, às neotribos contemporâneas e às pedagogias culturais. Dentre eles destaco Harvey, Debord, Lipovetsky, Baudrillard, Hall, Bauman, Maffesoli, Steinberg e Kincheloe. Os achados da pesquisa apontam para uma juventude que frequenta as festas rave e que vem sendo constituída na velocidade, no imediatismo, na efemeridade, no consumo e no espetáculo dos tempos pós-modernos. A relação entre os jovens-rave, a formação de tribos, a música eletrônica e as tecnologias digitais é central na formação de um ethos de pertencimento.

Palavras-chave: cultura rave, pós-modernidade, neotribalismo, sujeitos-rave, juventude.

Page 8: Dissertação - Sandro

ABSTRACT

Inscribed in a theory reference inspired on Cultural Studies, the present study aims to investigate, understand and point out the relations between rave culture and the production of certain kinds of individuals who inhabit world today. The research aims to draw the attention to the numerous convocations of rave culture and how they are implicated under the identities composition of certain contemporaneous young. As rave culture is understood by the set of manifestations associated with electronic music, involving identity and visual components, networks technologies of communication, drug use, varied styles of sound, formation of tribes and consumption items. The analysis places in evidence characteristics of this youthfulness linked to media and consumption culture. Referential theory was searched in authors that deal with issues regarding postmodern condition, contemporary neotribes and cultural pedagogies. Among them highlighted Harvey, Debord, Lipovetsky, Baudrillard, Hall, Bauman, Maffesoli, Steinberg and Kincheloe. The research results reveal a youthfulness that attend regularly rave parties and has been made in speed, immediatism, ephemerality, consumption and the spectacle of postmodern times. The relation between young-rave, the formation of tribes, electronic music and digital technologies is central to the formation of belonging ethos.

Keywords: rave culture, post modernity, neotribe, youth-rave, youthfulness.

LISTA DE FIGURAS

Page 9: Dissertação - Sandro

FIGURA 1 – Rave Tropical Vibration ....................................................................... 19

FIGURA 2 – Vista externa do Creamfields Chile ..................................................... 25

FIGURA 3 – Vista do palco principal do Creamfields Portugal ............................... 25

FIGURA 4 – Vista frontal do palco principal do Creamfields Malta ......................... 26

FIGURA 5 – Jogo de luzes do Creamfields Polônia ................................................ 26

FIGURA 6 – Vista lateral do Creamfields Inglaterra ................................................ 27

FIGURA 7 – Vista do palco principal do Creamfields Argentina ............................. 27

FIGURA 8 – Rave Atmosphere ............................................................................... 64

FIGURA 9 – Jovens adeptos da moda Candy ........................................................ 72

FIGURA 10 – Candy raver em evento de música eletrônica (São Francisco/EUA) 73

FIGURA 11 – Comunidade RAVE ........................................................................... 89

FIGURA 12 – Comunidade P.L.U.R ........................................................................ 91

FIGURA 13 – Comunidade Psy RS ......................................................................... 94

SUMÁRIO

Page 10: Dissertação - Sandro

APRESENTAÇÃO .............................................................................................. 11

CAPÍTULO IO ESPETÁCULO Á CÉU ABERTO – TRILHANDO CAMINHOS PARA A PESQUISA .......................................................................................................... 18

1.1 Um anfitrião chamado Estudos Culturais .................................................. 181.2 Diversão na rave: uma cena globalizada .................................................. 221.3 A juventude como foco de pesquisa ......................................................... 311.4 Pedagogias Culturais: as raves sob uma perspectiva educacional .......... 341.5 As neotribos e as comunidades guarda-roupas ........................................ 371.6 Um convite ao espetáculo ......................................................................... 431.7 Ravers: consumidores da era digital ......................................................... 47

CAPÍTULO IICULTURA RAVE: UM LUGAR NA PÓS-MODERNIDADE ............................... 54

2.1 O urbano e o eletrônico: o encontro da cultura eletrônica na terra da bossa nova .......................................................................................................... 57

2.2 A droga e a festa: o Ecstasy como válvula de escape .............................. 632.3 PLUR: reinventando Woodstock ............................................................... 672.4 Moda Rave: um encontro com o lúdico ..................................................... 702.5 Buscando um jovem no www – um passeio entre as redes sociais online 74

CAPÍTULO IIICONVOCANDO JOVENS PÓS-MODERNOS PARA A CULTURA RAVE ....... 80

3.1 Convocações e espetáculo: aprendendo com as festas rave ................... 823.2 Convocação virtual: aprendendo nas comunidades do Orkut .................. 873.3 Convocação musical: aprendendo com o som eletrônico ......................... 973.4 Cultura Rave: aprendendo a ser sujeito na pós-modernidade .................. 100

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 110

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................... 114

Page 11: Dissertação - Sandro

APRESENTAÇÃO

A sabedoria não se transmite, é preciso que nós a descubramos fazendo uma caminhada que ninguém pode fazer em nosso lugar e que ninguém nos pode evitar, porque a sabedoria é uma maneira de ver as coisas.

(PROUST, 1983, p.19)

Uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze,

treze, quatorze, quinze, dezesseis, dezessete, dezoito, dezenove e, até vinte horas

de festa. O fôlego requerido para a leitura da frase anterior já é suficiente para

sugerir uma reflexão sobre o volume de energia despendido por sujeitos (das mais

variadas idades e de distintos lugares do mundo) que, nos finais de semana, ao som

da música eletrônica, festejam o carpe-diem1 contemporâneo. Eis o ponto de partida

da minha pesquisa: as festas rave.

Gostaria de convocar o leitor para um momento de abstenção moral.

Refiro-me a uma tentativa de afastamento das afirmações circulantes que, de certa

forma, produzem alguns preceitos sobre tais festas — eventos realizados ao ar livre,

ao som da música eletrônica e com duração de muitas horas — e sobre os sujeitos

que as frequentam. Faço isso porque considero que um entendimento mais ou

menos compartilhado sobre as festas rave tem sido construído, em grande parte, a

partir dos meios de comunicação de massa. E, por este motivo, para a grande

maioria das pessoas que desconhecem o território cultural2 das raves, as leituras

1 Carpe Diem é uma frase em Latim de um poema de Horacio (poeta lírico e satírico romano, além de filósofo). Carpe Diem é popularmente traduzido para colha o dia ou aproveite o momento. É também utilizada como uma expressão para solicitar que se evite gastar o tempo com coisas inúteis ou como uma justificativa para o prazer imediato.2 Entendo território cultural como sendo um lugar, um conjunto de lugares ou mesmo um espaço (intelectual, material ou virtual) onde uma pessoa ou um grupo de indivíduos compartilha idéias, sentimentos, valores. Um território cultural também está associado a um ambiente (espacial ou virtual) onde os modos e as condutas de vida são expressos dentro de uma coletividade.

Page 12: Dissertação - Sandro

são feitas a partir do que se publica nos veículos de comunicação – sejam eles

virtuais, televisivos, impressos ou radiofônicos – que, em geral, veiculam notícias

com tom de reprovação.

Por outro lado, assumo ser complicado sugerir uma posição neutra, já que

estamos implicados naquilo que conhecemos e vivemos. No entanto, o que faço é

convidar aqueles que porventura tenham interesse a me acompanhar nesta

investigação sobre o instigante universo da cultura rave.

Considero este trabalho uma tentativa de tradução, embrionária ainda,

dos elementos inscritos em uma das culturas contemporâneas que mobilizam jovens

de vários países. Procurei me munir de ferramentas teóricas provenientes de outras

áreas do conhecimento além da educação, o que me foi favorecido pelo campo dos

Estudos Culturais. Acredito que este seja um trabalho que transita por dados

históricos, sociológicos, antropológicos, filosóficos, mas também pedagógicos e

culturais. Escrevi, apaguei, transcrevi e, muitas vezes, até me perdi. A rima, podem

acreditar, foi mera coincidência, pois estar perdido em muitos cruzamentos do

caminho foi a minha fórmula para desenhar o mapa da dissertação.

Diante de um cenário esboçado pelas rápidas transformações nas formas

de comunicação, pelo desenvolvimento das tecnologias digitais e pela disseminação

de conteúdos imagéticos e artísticos, o presente trabalho busca investigar, entender

e mostrar as relações entre a cultura rave e a produção de certos tipos de sujeitos

jovens que habitam o mundo de hoje.

A vida nas sociedades contemporâneas tem sido marcada por uma

estrutura social complexa, minuciosa em suas múltiplas dimensões. Os arranjos

sociais estão sendo compostos, ao mesmo tempo, do arcaico e do moderno, da

linearidade e do descompasso, da ordem e do caos, do público e do privado, do

coletivo e do pessoal. Elementos ambivalentes que estão presentes no cotidiano,

ora ocorrendo simultaneamente, ora se alternando.

Segundo Lyotard (1998), as transformações verificadas a partir do final do

século XIX no campo da ciência, das comunicações, da literatura e das artes,

modificaram de tal forma “o pensar social” que, hoje, podemos observar uma variada

gama de conceitos expressando tentativas de descrever os modos de vida na

contemporaneidade.

O cenário contemporâneo pode ser analisado através de múltiplos

enfoques. Múltiplos porque mudanças intensas e profundas nas estruturas

Page 13: Dissertação - Sandro

econômica, cultural e política permitem essas leituras. Em concordância com Harvey

(2000), percebo nossa sociedade imersa em uma condição que pode ser

considerada pós-moderna. Os indivíduos inscritos nela são constantemente

incitados por uma espetacularização da vida, em um mundo inundado por imagens,

símbolos, propagandas, eletrônicos, marcas, mercadorias, cores, sons, luzes, sinais

e representações (DEBORD, 1997).

O “consumir” serve como motor e indica uma vida organizada em torno do

consumismo, que não se refere à plena satisfação dos desejos, mas “à incitação do

desejo por outros desejos, sempre renovados — preferencialmente do tipo que não

se pode, em princípio, saciar" (BAUMAN, 2008, p.121). Produtos, artefatos e objetos

criados, moldados e disseminados nas cópias, nos simulacros (BAUDRILLARD,

1991).

Assim percebo a atual cartografia social, organizada na coexistência de

variados arranjos familiares, valores de vida distantes da esfera religiosa tradicional

e uma ordem econômica tomando as rédeas nas sociedades contemporâneas.

Dentro desse contexto, um certo raciocínio justifica o nascimento das neotribos

identificadas por Maffesoli (2006), onde indivíduos ostentam traços simbólicos em

favor de uma fidelidade momentânea.

Inicio a pesquisa contextualizando a origem das festas rave, procurando

mostrar como essa cultura alastrou-se com elos em diversas partes do mundo. Isto

quer dizer que as características da cultura rave apresentam muitas similaridades

em suas manifestações. Eventos rave que ocorrem no Brasil, na Inglaterra, nos

Estados Unidos, na Argentina, na Austrália, nos países africanos ou mesmo nas

nações asiáticas compartilham uma imensa gama de elementos comuns.

Parece que a configuração do que hoje se nomeia cultura rave só tem

sido possível porque temos vivenciado uma era plena da globalização, onde os

fenômenos culturais (de qualquer ordem) repercutem em diversos lugares do

planeta. Com Canclini (2006), afirmo que os processos globalizadores não se

encontram inscritos somente na esfera econômica, a globalização é também política,

tecnológica, musical e cultural.

A abertura da economia de cada país aos mercados globais e a processos de integração regional foi reduzindo o papel das culturas nacionais. A transacionalização das tecnologias e da comercialização de bens culturais diminuiu a importância dos referentes tradicionais de identidade. Nas redes globalizadas de produção e circulação simbólica se estabelecem as tendências e os estilos das artes, das

Page 14: Dissertação - Sandro

linhas editoriais, da publicidade e da moda. Grande parte do que se produz e se vê nos países periféricos é projetada e decidida nas galerias de arte e nas cadeias de televisão, nas editorias e nas agências de notícias dos Estados Unidos e da Europa. (idem, p.164-165)

Diante disto, a pesquisa me fez perceber a presença de uma parcela da

juventude que penso poder denominar de pós-moderna, marcada pelo

compartilhamento de uma cultura global onde as fronteiras geográficas se revelam

insignificantes ou mesmo inexistentes. Talvez uma das razões desse borramento

seja o fato de que a aceleração tecnológica e o surgimento das mídias digitais foram

capazes de promover uma aproximação entre os indivíduos mediante ferramentas

virtuais.

Ainda que não tenha me tornado um exímio amante da música eletrônica

e dos eventos rave (pelo menos até o momento), consegui me aproximar com

bastante facilidade deste universo, e percebi que tal manifestação, assim como

tantas outras, apresenta como central uma necessidade de identificação e

pertencimento.

A pesquisa que aqui apresento desenvolveu-se em torno de três eixos

centrais que conduziram a investigação. São eles:

Eixo 1 – Aproximação do universo rave a partir da literatura especializada

sobre o assunto.

Neste primeiro eixo, tomei contato com a literatura específica sobre a

cultura rave, especialmente focado em dois autores o inglês Simon Reynolds

(1998) e o canadense Jimi Fritz (1999). Além destes, busquei referenciais analíticos

de Nicholas Saunders (1997), hoje considerado o mais importante pesquisador

sobre o Ecstasy no mundo.

Com o intuito de montar um panorama do universo rave, também me

aproximei de autores amplamente utilizados por estudiosos que se dedicam ao

estudo da cultura rave. Entre eles estão o italiano Massimo Canevacci (2005) e o

professor da Open University (UK) Kenneth Thompson (2005).

Os jornalistas Zuenir Ventura (2006) e Tomás Chiaverini (2009), bem

como o sociólogo João Freire Filho (2008), a partir de uma abordagem mais local do

cenário das festas rave que ocorrem no Brasil, me ofereceram análises apuradas,

registrando a multiplicidade de nuances que o tema concentra, e também

descrevendo características e especificidades da cultura rave.

Page 15: Dissertação - Sandro

Eixo 2 – Investigação da constituição da cultura rave, descrevendo-a e

discutindo como pode ser compreendida como uma movimentação pós-moderna.

Neste segundo eixo da pesquisa, procurei matizar a cultura rave,

elencando o conjunto das manifestações que estão atreladas a ela. Para isso, utilizei

contribuições teóricas de Claudio Manuel Duarte de Souza (2001), André de Lemos

(2003), entre outros.

Para lançar mão de ferramentas teóricas que me ajudassem a olhar e

operar conceitualmente no cenário contemporâneo, me aproximo das análises

filosóficas e sociológicas de Zygmunt Bauman (2008, 2007, 2005, 2003, 2001,

1999), Jean Baudrillard (1991), Michel Maffesoli (2007, 2006, 2004, 2003, 1995),

Jean François Lyotard (1998) e Néstor Garcia Canclini (2006).

Eixo 3 – Identificação das convocações implicadas na formação dos

sujeitos- rave.

Neste movimento investigativo, procurei mostrar e identificar a

proveniência das convocações direcionadas aos jovens, que acabam por

transformá-los em aficionados da cultura rave. Segundo os autores referidos nos

eixos um e dois da pesquisa, inúmeras são as formas como a cultura pós-moderna

contemporânea tem constituído novas maneiras de ser sujeito na

contemporaneidade. Portanto, considerei importante também trabalhar conceitos

para entender como nos tornamos sujeitos. E para tanto, realizei recortes a partir da

leitura de textos de Nikolas Rose (2001), Stuart Hall (1997) e Marisa Vorraber Costa

(2008).

Neste terceiro eixo da pesquisa, fiz registros de como entendo a produção

de sujeitos jovens conectados à cultura rave. Organizei os dados do meu diário de

campo e alguns apontamentos relevantes a partir dos sites especializados em

música eletrônica, mas também através de outros espaços virtuais, como as redes

sociais online, especialmente através de algumas comunidades do Orkut.

Como forma de aproximação desse reduto, frequentei seis festas rave. Ao

longo dos capítulos da dissertação, detenho-me em pelo menos dois desses

eventos. A publicação de material fotográfico, bem como a edição de um vídeo estilo

documental (anexo à dissertação) foram outras formas complementares que adotei

para exposição dos meus dados de pesquisa.

Page 16: Dissertação - Sandro

O resultado dos movimentos realizados nos três eixos da investigação

são aqui organizados e apresentados em três capítulos, que compõem a

dissertação.

No primeiro capítulo, o espetáculo a céu aberto trilhando caminhos para

a pesquisa, estão reunidos títulos que se dedicam a sinalizar o campo de estudos no

qual esta investigação foi desenvolvida. Dentro deste capítulo apresento minha

trajetória de pesquisa, a configuração da cultura rave através de uma cena

globalizada, a questão da juventude como foco de pesquisa e as ferramentas que

considero centrais para a análise. Opero com os conceitos de neotribalismo, de

Maffesoli (2006); comunidades guarda-roupa e consumismo, de Bauman (2005,

2007); sociedade do espetáculo, de Debord (1997); e simulacro, de Baudrillard

(1991).

No segundo capítulo da minha pesquisa: cultura rave um lugar na pós-

modernidade mostro a constituição da cultura rave localizando o conjunto de

elementos que a formam. Entre eles estão a música eletrônica, a cibercultura, o

consumo de drogas, a moda e a filosofia rave. Os elementos descritos fazem parte

do que hoje se entende por cultura rave, tendo como referência central a música

eletrônica e as festas rave como reduto da conformação desses jovens

contemporâneos.

No terceiro capítulo da pesquisa, convocando jovens pós-modernos para

a cultura rave, apresento minhas análises, expondo e discutindo as relações que

encontro entre a formação de sujeitos-rave e a condição pós-moderna. A

multiplicidade de convocações implicadas na constituição de determinados tipos de

sujeitos atrelados à cultura rave é analisada na pesquisa a partir de três focos: as

comunidades do Orkut, a música eletrônica e as próprias festas rave. Logo após,

faço um apanhado da Cultura Rave, explicitando como a mesma forja identidades e

ensina jovens a se constituírem sujeitos pós-modernos.

Este estudo adota uma forma particular de aproximação para analisar a

cultura rave que, certamente, é uma das muitas possíveis. O tipo de abordagem

atende ao meu objetivo de mostrar a cultura rave como um lugar de constituição de

sujeitos. A pesquisa não pretende dar conta da complexidade do tema e oferece

apenas uma visão, entre muitas outras, apontando algumas formas de ver e pensar

sobre os sujeitos-rave urdidos nos tempos pós-modernos.

Page 17: Dissertação - Sandro

Está também presente, entre meus objetivos, sinalizar a festa rave como

uma manifestação carregada de marcas da cultura pós-moderna, e, assim, imersa

na cultura da mídia e do consumo. Por tudo isso, faço desta pesquisa, antes de

qualquer coisa, um convite: venha comigo!

Page 18: Dissertação - Sandro

CAPÍTULO I

O ESPETÁCULO Á CÉU ABERTO – TRILHANDO CAMINHOS PARA A

PESQUISA

A festa, portanto, certamente é a coisa mais bem compartilhada do mundo, e basta dizer que a essência da vida coletiva e da existência individual é lúdica.

(MAFFESOLI, 2004, p.89)

1.1 Um anfitrião chamado Estudos Culturais

Sábado, onze horas da noite. Ruas cheias, bares lotados, casas noturnas

com filas de espera e uma multidão à procura de divertimento. Numa primeira

tentativa de esboçar meu objeto de pesquisa, parto de Porto Alegre em direção ao

município de Viamão. A cidade, localizada na região metropolitana de Porto Alegre,

é conhecida por abrigar as festas rave mais movimentadas do Rio Grande do Sul.

Ao volante por cerca de trinta quilômetros, dirigindo por estradas desertas

e atravessando inúmeros sítios, chácaras e fazendas (propriedades típicas dessa

região), um canhão de luz iluminava o céu orientando a direção, e um brilho na

atmosfera aguçava a ansiedade de pesquisador.

Page 19: Dissertação - Sandro

Na companhia de dois amigos — um considerado da cena3 eletrônica e o

outro novato, como eu, chegamos ao local4. No portão de entrada da festa,

cambistas vendiam os últimos ingressos e um grupo de seguranças organizava o

tráfego dos automóveis. Duzentos metros em direção ao sítio, policiais armados

garantiam a revista completa5 e, para meu espanto, na entrada principal do evento, a

vistoria era reforçada.

Um local bonito, harmonioso, rodeado de bosques e repleto de animais.

Toda uma infra-estrutura composta de banheiros, camping, bares, estacionamentos,

seguranças e até mesmo uma ambulância móvel assinalavam que o ambiente era

“seguro” para o “festejar”. O grande chalé redondo de madeira com janelas de vidro

localizado na parte central do sítio, permitia aos que chegavam à festa, avistar, de

longe, a pista principal de dança. Cores fosforescentes, do laranja ao verde-limão, e

tecidos dos mesmos tons ornamentavam o ambiente e marcavam o espírito de

alegria e descontração da festa. O lugar em meio à natureza e a coloração utilizada

para a decoração do evento são elementos que fazem parte do contexto que

originou as festas rave.

3 A noção de cena, neste trabalho, se traduz a partir de um universo de modos de pensar, comportamentos e práticas associados à música eletrônica. A cena é um termo usado para classificar um conjunto de manifestações. Pode se referir à totalidade de um determinado movimento (a cena da música eletrônica), como especificar um estilo dentro dela (a cena techno, a cena trance, a cena house, etc.).4 Esta festa aconteceu no dia 25 de outubro de 2008. O nome da rave é Tropical Vibration. O local escolhido chama-se Sitio Trilha do Sol, localizado na Avenida Frederico Dihl, 3336 (Estrada do Cocão), município de Viamão - RS. Outras informações através do site http://www.an2web.com.br/tropicalvibration/. 5 No caso dessa festa, a revista completa foi uma vistoria onde os policiais examinaram carros, bolsos e objetos em geral com o intuito de evitar a entrada de materiais cortantes, armas, drogas ou bebidas.

Page 20: Dissertação - Sandro

Figura 1 - Rave Tropical Vibration 6.

A estas alturas, alguns estarão se perguntando o que a história de uma

festa de longa duração tem a ver com uma investigação em um curso de mestrado

em educação?

Haja vista que este estudo se esboça inspirado em uma aproximação

entre os Estudos Culturais e a educação, é oportuno observar como tais estudos

foram sendo desenvolvidos.

O campo dos Estudos Culturais institucionalizou-se na Universidade de

Birmingham, na Inglaterra, através do Centro de Estudos Culturais Contemporâneos

(do inglês Centre for Contemporary Cultural Studies, CCCS), ainda na década de 50.

Entre seus maiores expoentes estão os fundadores Raymond Williams, Richard

Hoggart, E.P.Thompson e Stuart Hall. Esses estudos surgem, sobretudo, diante da

alteração dos valores tradicionais da classe operária inglesa que se apresentava no

período pós-guerra.

Os Estudos Culturais procuram vislumbrar o campo da cultura não como

um espaço pronto, definido, com sistemas de idéias dominantes e inflexíveis, mas

fundamentalmente, como um espaço de lutas e desencaixes. Assim, os estudos

relativos às expressões culturais vão perdendo, aos poucos, a aura de um domínio

literário e erudito. E, de acordo com Giroux (1995), passam a abranger um campo

bem maior:

6 Fotografia de autoria do pesquisador.

Page 21: Dissertação - Sandro

Os Estudos Culturais estão comprometidos com o estudo da produção, da recepção e do uso situado de variados textos, e da forma como eles estruturam as relações sociais, os valores e as noções de comunidade, o futuro e as diversas definições do eu. Os textos, neste sentido, não se referem simplesmente à cultura da imprensa ou à tecnologia do livro, mas a todas aquelas formas auditivas, visuais e eletronicamente mediadas de conhecimento que tem provocado uma mudança radical na construção do conhecimento e nas formas pelas quais o conhecimento é produzido, recebido e consumido. Vale a pena observar que a juventude contemporânea não depende apenas da tecnologia e da cultura do livro para construir e afirmar suas identidades, em vez disso, eles/elas se enfrentam com a tarefa de encontrar seu caminho numa paisagem cultural descentrada, não mais presa nas amarras da tecnologia da imprensa, de estruturas narrativas fechadas ou na certeza de um futuro econômico seguro. As novas e emergentes tecnologias que constroem e posicionam os/as jovens representam terrenos interativos que atravessa a linguagem e a cultura, sem exigências narrativas, sem complexidade de caráter. (p. 98)

A apreciação da cultura popular, bem como a operacionalização de um

conceito de cultura mais expandido, passa a incluir os rituais da vida cotidiana como

episódios significativos. É dentro dessa ótica que os Estudos Culturais compõem um

espaço de contestação frente às noções hierárquicas que antagonizam alta cultura e

cultura de massa, cultura erudita e cultura popular.

Neste campo do conhecimento,

A cultura não pode mais ser concebida como acumulação de saberes ou processo estético, intelectual ou espiritual. A cultura precisa ser estudada e compreendida tendo-se em conta a enorme expansão de tudo que está associado a ela, e o papel constitutivo que assumiu em todos os aspectos da vida social. (COSTA, SILVEIRA, SOMMER, 2003, p. 38).

O campo dos Estudos Culturais é fecundo para meu propósito de

pesquisa porque, desde seu surgimento, esteve implicado com o estudo da cultura

popular e seus significados. Kenneth Thompson (2005), professor de ciências

sociais da Open University (UK), consegue descrever, de forma concisa, como um

campo de conhecimento teve origem e hoje se propaga como área científica de

estudo.

Primeiramente, o surgimento dos Estudos Culturais como uma atividade interdisciplinar mostrou-se relacionado com o crescimento do seu objeto de atenção – o boom no âmbito da cultura popular e seu significado na vida das sociedades ocidentais a partir dos anos

Page 22: Dissertação - Sandro

1960. Um segundo ponto que merece ser registrado é que as formas particulares adotadas pelos Estudos Culturais em diversas áreas do mundo também têm sido afetadas por preocupações e circunstâncias locais, sendo que diferentes ênfases são encontradas no Reino Unido, nos Estados Unidos e na América Latina (THOMPSON, 2005, p. 15).

A cultura popular começa a ser percebida como uma arena de

aprendizagem, sentido e investigação. O conteúdo da cultura popular, ou seja,

aquilo que é difundido, midiatizado, discutido, analisado e observado, em grande

parte, tem como porta-voz os aparatos industriais dos mass media. Hoje, o cinema,

a televisão, as rádios, os jornais, as revistas, a internet e outros meios de

comunicação ganham um papel de destaque na composição da cultura popular.

Os principais telejornais do mundo, os programas de televisão de grande

audiência, as fotografias publicadas nos jornais e nas revistas, os livros didáticos, as

grandes festividades internacionais, os websites, as peças de teatro, as arenas

culturais da música, dentre outros espetáculos contemporâneos, são artefatos

produtivos que representam, dão sentido e operam enquanto prática cultural.

Portanto, é através das lentes multifocais dos Estudos Culturais que o

objeto de estudo foi construído. Lanço mão da aproximação entre os Estudos

Culturais e o campo da educação, tendo como finalidade uma abordagem das

conexões entre a cultura rave e a produção de sujeitos jovens na

contemporaneidade

1.2 Diversão na rave: uma cena globalizada

Para aqueles que nunca estiveram numa rave e somente conhecem a partir do que lêem nos jornais locais, a imaginação pode correr solta com correntes mistérios sobre locais secretos na calada da noite. Mas a verdade é menos misteriosa do que as reportagens sensacionalistas e míopes de nossa obsessiva mídia. Então, abandone seus preconceitos na porta e deixe-se levar a um tour por uma típica rave [grifos do autor] (FRITZ, 1999, p. 23).7

7 Todas as notas em língua estrangeira foram traduzidas pelo autor no corpo do texto. No original: For those who have never been to a rave and only know what they have read in the local newspaper, the imagination can run wild with mysterious goings on in the dead of night in secret locations. But the truth is far less than mysterious then the sensational and myopic reporting of our disaster obsessed media. So leave your preconceptions at the door and let´s take a tour through a typical rave (FRITZ, 1999, p. 23).

Page 23: Dissertação - Sandro

Desde o final da década de 1980, tornou-se prática entre os jovens das

principais metrópoles européias festejarem e dançarem por mais de 10 horas

seguidas ao embalo da música eletrônica e sob o efeito de psicoativos8,

especialmente um denominado Ecstasy.

A palavra rave, entre outros significados, designa delírio, estado de

grande empolgação, fala irracional, entusiasmo ou avanço maior. Tal palavra

ganhou visibilidade através das festas realizadas em espaços abertos e fora do

perímetro urbano. Hoje, a rave é tida como um evento social, familiar à juventude

contemporânea.

A origem das festas rave gera muita controvérsia, incluindo, no mínimo,

três variantes. Uma versão explica que, no final dos anos 60, na ilha de Goa (Índia),

o movimento foi iniciado por hippies que escutavam na praia uma espécie de

embrião da música eletrônica misturada aos elementos musicais locais. As festas

realizadas em Goa tocavam uma mistura do rock psicodélico do início dos anos 70

com a música típica dos hippies. Como a região é famosa pelas praias paradisíacas

e pela busca espiritual, muitos jovens vindos da Europa passavam suas férias na

região litorânea da Índia.

Outra versão, talvez mais aceita e comentada, é de que as raves

passaram a existir a partir da segunda metade da década de 80, quando jovens se

reuniam para dançar por várias horas na região portuária de Londres, na Inglaterra.

De acordo com Fritz (1999):

A música tocada era o acid house e as festas eram conhecidas como acid house parties. Esses eventos passaram a serem realizados a céu aberto a partir do verão de 1987, marcando o nascimento do free party movement, uma progressão natural do free festival movement que era prevalente na Inglaterra do mesmo período [grifos meu] (p. 32).9

8 Drogas psicoativas são substâncias que alteram o funcionamento do sistema nervoso do usuário temporariamente. São exemplos de drogas psicotrópicas a maconha, a cocaína, o álcool, o LSD, etc.9 No original. The music being played was acid house and the parties were known as acid house parties. These events moved outside in the summer of 87, marking the birth of the free party movement, a natural progression from the free festival movement that was prevalent in England at the time. (FRITZ, 1999, p.32)

Page 24: Dissertação - Sandro

As festas eram consideradas ilegais e se propagavam através da boca-a-

boca e de flyers10 improvisados. No início dos anos 90, as raves foram

criminalizadas, uma vez que estavam intimamente ligadas ao consumo de drogas.

Este fato contribui para a difusão da idéia do evento rave como festa marginal.

Mais uma versão ainda surge para marcar o início das raves. Verão de

1987, Ibiza (Espanha). De acordo com Saunders (1997), entre o final de 1987 e o

começo de 1988, um estilo de celebração começou a se popularizar em Ibiza — o

ensolarado paraíso espanhol da elite londrina. Era uma música cheia de energia que

as pessoas gostavam de dançar noite adentro sob a influência de uma droga de

laboratório, o Ecstasy. O chamado “verão do amor” inaugurou um momento em que

se misturavam pistas de dança ao ar livre, Ecstasy e música eletrônica. Diante de

todos os estímulos congruentes, teria emergido o que se pode chamar de cultura

rave.

Porém, antes de discorrer sobre as definições de cultura rave —

trabalhadas com mais afinco no próximo capítulo do trabalho — uma pergunta cabe

ser feita: por que se vai a uma rave?

Partindo daqueles familiarizados, conhecedores da “filosofia” que envolve

a cultura da música eletrônica, uma resposta possível seria a atmosfera criada na

festa, passando por um sobrecarrego sensorial causado pelas batidas sonoras. O

compasso musical, a emoção e o transe que toma conta das pessoas que estão

imersas dentro do acontecimento também congregam momentos de prazer e

vibração. Momentos sentidos por cada um e, ao mesmo tempo, só possíveis na

presença do coletivo.

Portanto, é a partir de episódios simultâneos, ocorridos em diversas

partes do mundo, e com características semelhantes, que uma cultura foi sendo

inventada, esboçada. Não uma cultura local, mas uma cultura híbrida, digitalizada.

Em suma, uma cultura que se poderia denominar de globalizada.

Pelos aspectos que hoje caracterizam a cultura rave em qualquer

localidade, pode-se dizer que se constitui como um fenômeno pós-moderno,

transcultural e imune a fronteiras. Um evento que ocorre na região metropolitana de

Porto Alegre carrega os mesmos elementos (considerados os desenhos peculiares

10 O flyer é um termo atualmente usado no Brasil para designar pequenos folhetos publicitários que têm a função de anunciar e promover eventos, serviços ou instruções numa ampla gama de aplicações. Os flyers são impressos e visam atingir um público determinado. Disponível em: http://www.pragatecno.com.br. Acesso em: 20/02/09

Page 25: Dissertação - Sandro

ao Rio Grande do Sul) de uma festa rave que acontece em qualquer outra parte do

mundo.

Com o intuito de retratar a abrangência global dos eventos de música

eletrônica, apresento, a seguir, algumas fotografias. Entre os muitos festivais que

acontecem ao estilo rave, o Creamfields11 me parece ser um exemplo bem

emblemático já que o evento rodou o mundo, reunindo nomes consagrados do

cenário eletrônico. Além disso, é o primeiro grande evento de música eletrônica que

apresenta, em sua estrutura, shows e performances ao vivo.

Atualmente, o festival vem se espalhando, com eventos ocorrendo em

várias partes do mundo. Entre os países estão: Inglaterra, Espanha, Argentina,

Turquia, México, República Tcheca, Chile, Peru, Portugal e Brasil. Cada edição atrai

entre 15 a 50 mil pessoas. Um número recorde foi registrado em 2005 na cidade de

Buenos Aires (Argentina), quando 75 mil pessoas compareceram ao festival.

Figura 2 - Vista externa do Creamfields Chile12.

11 Informações referentes ao festival podem ser acessadas através de http://www.creamfields.com. As fotografias também foram retiradas do mesmo site. 12 O evento ocorreu na cidade de Santiago no dia 7 de Novembro de 2008.

Page 26: Dissertação - Sandro

Figura 3 - Vista do palco principal do Creamfields Portugal 13.

Figura 4 - Vista frontal do palco principal do Creamfields Malta14.

13 O evento ocorreu na cidade de Loulé no dia 22 de Agosto de 2009.14 Malta é um pequeno país Europeu e faz parte da União Europeia. O evento ocorreu no dia 28 de Junho de 2008.

Page 27: Dissertação - Sandro

Figura 5 - Jogo de luzes do Creamfields Polônia15.

Figura 6 - Vista lateral do Creamfields Inglaterra16.

15 O festival ocorreu na cidade de Wroclaw no dia 16 de Agosto de 2008.16 A festa aconteceu nos dias 29 e 30 de Agosto de 2008.

Page 28: Dissertação - Sandro

Figura 7 - Vista do palco principal do Creamfields Argentina17.

O que podemos enxergar através das fotografias é que as festas ocorrem,

quase sempre, em lugares á céu aberto. Alguns espaços ficam localizados próximos

a regiões urbanas, outros um pouco mais afastados. Dentro de um festival de

música eletrônica, tem-se uma infinidade de elementos que compõem o cenário.

Entre eles, estão a própria batida da música computadorizada, as luzes psicodélicas,

as variadas formas de dança, o consumo de drogas e bebidas e a celebração

coletiva. Atrações que envolvem shows de Djs, aparatos tecnológicos de última

geração e jogos de som e de luzes.Nesses festivais, em que não há apenas ravers,

estão presentes todos os elementos simbólicos da cultura rave.

As roupas coloridas seriam vistas pelos jovens como uma forma

descontraída e divertida de encarar a vida. Sua relação com ambientes abertos e

junto à natureza pode ser interpretada no sentido de mostrar uma relação dos seres

humanos como se fossem um só corpo. As cores vibrantes são compreendidas

como a capacidade que cada ser humano tem de emitir bons fluidos, ou seja, a

aptidão que cada pessoa possui para irradiar luz própria.

A conjugação entre música eletrônica, drogas, aparatos tecnológicos e

uma multidão participando de uma espécie de transe coletivo hedonista caracteriza

os eventos rave. A rave é uma festa realizada, usualmente, longe dos centros

urbanos, em sítios ou armazéns em desuso, abandonados. O evento tem longa

17 O evento ocorreu na cidade de Buenos Aires n dia 29 de Agosto de 2009.

Page 29: Dissertação - Sandro

duração, variando de doze horas até sete dias. Embora a maioria das raves

aconteça em zonas rurais, grande parcela de seus frequentadores são jovens

urbanos pertencentes à classe média e moradores das regiões metropolitanas.

Assim como os grandes acontecimentos esportivos (jogos olímpicos,

copas do mundo), hoje, empresas gastam vultosas somas de dinheiro no patrocínio

de eventos de música eletrônica. É comum companhias como Coca-Cola, Sony,

Nike e algumas marcas de cerveja fornecerem suporte para festas rave. No caso do

festival Creamfields realizado no Brasil, entre os patrocinadores estavam a Pepsi, a

Skol, a marca de bebida energética Burn e a rádio Jovem Pan.

Parto do pressuposto de que, para entender o fenômeno corrente das

raves e tentar posicioná-las como um evento contemporâneo, é preciso olhar um

pouco para o passado. Faço esse exercício com o intuito de esclarecer, aos que

enxergam de fora as festas rave, como as trajetórias apresentam certa circularidade.

Peço licença, também, para descrever brevemente alguns fatos que, na

minha compreensão, solaparam mudanças de paradigmas na sociedade. Com

auxílio nesta tarefa, tomo emprestado algumas posições de Fritz (1999), Reynolds

(1998) e Saunders (1997), autores que realizam um estudo minucioso sobre a

cultura rave.

Segundo entendimento mais ou menos compartilhado, a primeira grande

revolução cultural e social do século XX teve início logo depois da Primeira Guerra

Mundial. O fim da conformidade imposta por teologias e políticas disciplinares cedeu

lugar a um tempo de contestações sociais, demonstrando nítidas incongruências

entre o poder Estatal e a burguesia que ansiava em tomar as rédeas da sociedade.

Os anos 20 do século passado mostraram uma guerra imperialista

ocasionada pelo longo boom econômico e por um acúmulo na produção de bens

materiais. A prosperidade, o aumento do número de mulheres no mercado de

trabalho e outras mudanças apregoavam as modificações sociais da época. As

transformações culturais rompiam os contratos sociais tradicionais e, na contramão,

conservadores se debatiam para manter o controle. A sociedade que emergia

buscava diferentes formas de experimentação e celebração.

No tocante à música, explorações resultavam numa passagem do

formalismo para expressões de individualidade. Os cânones da música clássica,

Page 30: Dissertação - Sandro

dominantes por vários séculos, foram cedendo lugares a formas populares, como os

sons folclóricos, incluindo o próprio surgimento do jazz18.

O movimento Dada (Dadaísmo), iniciado na Alemanha e compartilhado

por um grupo de escritores e artistas plásticos, se espalhou facilmente pela América

durante os anos 20. O Dadaísmo demonstrou ser um movimento artístico e literário

que refletia a difusão niilista de protesto contra todos os aspectos da cultura

ocidental, caracterizado pela oposição a qualquer tipo de equilíbrio, pelo ceticismo

absoluto e pela improvisação. Entretanto, apesar da aparente falta de sentido, o

movimento protestava contra a loucura da guerra.

Essa agitação também se tornou inspiração para o movimento surrealista,

criado pelo poeta e crítico francês André Breton, o mesmo que publicou o manifesto

Surrealista em Paris no ano de 1924. O artista teve grande influência nas novas

formas de criatividade, declarando a superioridade do subconsciente e a importância

dos sonhos na arte. Como o Dadaísmo, o Surrealismo inspirou atividades de muitos

artistas, como Salvador Dali, René Magrite e Juan Miró, só para citar alguns.

A transformação na literatura, da mesma forma, marcou a diferença na

maneira como as pessoas pensavam sobre elas mesmas e sobre o mundo ao seu

redor. Franz Kafka, Jean Paul Sartre e outros expoentes da época marcaram

expressões da filosofia durante a primeira metade do século XX.

Já no pós Segunda Guerra Mundial, expõe-se um momento de fragilidade

social e de reconstrução, marcado pelo retorno dos valores familiares e de algumas

posições políticas. O panorama mundial apresentou-se bipartido, de um lado, as

ideologias comunistas e, do outro, o “American Way”. Este modo de vida propagava

e alimentava certo frenesi consumista que garantia comida no prato de cada um,

carros nas garagens e televisões em cada cômodo da casa. (FRITZ, 1999)

Com as inquietações sociais em voga, as liberdades pessoais pulsavam,

varrendo a América do Norte e a Europa. A própria guerra se transformou no

catalisador da mudança. As pessoas não queriam apenas liberdade para elas

mesmas, mas insistiam numa consciência coletiva que demandava igualdade de

direitos.

18 O jazz é uma manifestação artística-musical originária dos Estados Unidos da América. Tal manifestação teria surgido por volta do início do século XX na região estadunidense de Nova Orleans e em suas proximidades, tendo na cultura popular e na criatividade das comunidades negras que ali viviam um de seus espaços mais importantes. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Jazz. Acesso em: 12/02/09

Page 31: Dissertação - Sandro

O conflito no Vietnã, iniciado no ano de 1959, foi um marco na

consciência do mundo inteiro e alimentou um forte sentimento em favor da paz. A

guerra tornou-se cada vez mais fraca, dando asas a uma revolução marchada com

as pernas dos jovens que tomaram ruas e praças para fazer nascer o vibrante e

ativo movimento pela paz. Outros numerosos movimentos sociais migraram na

mesma direção.

De acordo com Fritz (1999), o movimento pela paz, pelos direitos civis de

igualdade racial, a revolução feminista e os direitos gays eram assuntos de pauta.

Um exército de jovens exigia seus direitos e liberdades. O choque de realidades que

a guerra provocou fez surgir uma movimentação de pensamentos que pregavam a

paz e o amor. Os hippies mostraram sua força em números promovendo festivais de

música ao ar livre e atraindo recordes de público, culminando com seu evento

máximo, o Woodstock19.

Os hippies se tornaram os porta-vozes de toda uma geração de

pensadores livres que abraçavam a filosofia da paz, do amor e da liberdade. Era o

antídoto para o conservadorismo dos anos 50 e para a guerra do Vietnã. Agregado

está o surgimento das tecnologias de comunicação que mudaram o cenário do pós-

guerra, fazendo-se perceber mudanças no âmbito intelectual, cultural, econômico,

filosófico e musical.

É difícil apontar indícios da trajetória de uma cultura que é

fundamentalmente amnésica e não verbal. Diferente do rock, a música rave não é

construída em torno de letras e sim propagada com a idéia de que não importa o

que aquela música significa, mas como ela opera.

Adentro o universo rave como um outsider20, procurando uma posição

dentro daquele espaço, primeiramente, como jovem. Acabo percebendo um rico

nicho a ser explorado, cheio de nuances e movimentações que me servem como um

desafio para conectar essa matriz da juventude ao campo da educação.

19 O Festival de Música e Artes de Woodstock foi o mais importante festival de música da sua época. Foi realizado em uma fazenda em Bethel, Nova Iorque, O festival exemplificou a era hippie e a contracultura do final dos anos 1960 e começo de 70. Trinta e dois dos mais conhecidos músicos da época apresentaram-se durante um chuvoso final de semana defronte a meio milhão de espectadores. Apesar de tentativas posteriores de emular o festival, o evento original provou ser único e lendário, reconhecido como um dos maiores momentos na história da música popular. 20 Adoto aqui os conceitos de outsiders e estabelecidos do autor alemão Norbert Elias (1994). Segundo o autor, outsiders são aqueles indivíduos “novos”, que ainda não estão integrados nos esquemas de relações já sedimentadas pelos participantes efetivos. A classificação em estabelecidos ou outsider não é necessariamente definitiva. Dependendo de seu grau de envolvimento com a cena, um participante pode passar de outsider para estabelecido.

Page 32: Dissertação - Sandro

Um ponto a ser destacado é que a cultura rave revela uma cultura

globalizada que vem sendo analisada e discutida em diversos campos do

conhecimento, podendo-se apontar algumas linhas de abordagens do tema nos

estudos de Religião, na Sociologia, nos Estudos Culturais, na Musicologia, na

Comunicação, além da produção de cunho jornalístico.

1.3 A juventude como foco de pesquisa

Meu interesse em investigar o universo das festas rave foi sendo

instigado a partir dos debates nos congressos de educação, das infinitas discussões

em sala de aula no curso de mestrado e no estudo de textos nos campos dos

Estudos Culturais, da Comunicação, da Educação e da Sociologia. Estudos que

abordavam outras configurações de sujeitos contemporâneos e diferentes olhares

para as pedagogias serviram como um desafio para pesquisar os sujeitos-rave.

Pesquisas relativas às mídias e às culturas juvenis também foram importantes para

meu intento de pesquisa.

Jornalista por formação, ingressei no curso de mestrado pensando em

articular motes midiáticos como o telejornalismo, as novelas, os jornais e as revistas

junto a questões educacionais. Temas que discutissem a formação de um professor

multimídia atrelado às novas tecnologias de comunicação e informação eram

assuntos que igualmente me interessavam. Por isso, diante da facilidade com que a

profissão de comunicador me permitiu lidar com os mais variados públicos, (para

quem eu já estava acostumado a escrever textos, contar histórias) minha integração

e inserção no campo da educação ocorreu de forma mais ou menos tranquila.

O terreno dos Estudos Culturais serve de solo fértil para produzir

conhecimento no meio de duas áreas que realmente me inspiram a educação e a

comunicação. A aproximação entre os dois campos tem sido apresentada como uma

linha de pesquisa abundante em seus processos de investigação, quando observada

a grande popularização das interfaces midiáticas.

É a telenovela das oito que permeia os assuntos do dia-a-dia, a nova

música da Madonna cantada pelos jovens e tocada incessantemente nas principais

rádios do mundo, os sites de relacionamentos que geram furor ou a onda de

Page 33: Dissertação - Sandro

tocadores de música digital. Na presença de uma infinidade de opções, é difícil

qualquer tipo de síntese quanto à relação entre os estudos que permeiam o campo

da Cultura, da Comunicação e da Educação. Basta compreendê-los como um

espaço para discussões, pesquisas e interação. De acordo com Costa, Silveira e

Sommer (2003):

Uma possibilidade é conceber os Estudos Culturais em Educação como um compartilhamento de entendimentos, de conceitos-chave e “formas de olhar” que eles trouxeram, principalmente, para a área das humanidades, da comunicação, da literatura. Entretanto, isso soa um tanto parcial e inexato, uma vez que não se trata apenas de “partilhar”, “apropriar-se” ou “utilizar”; as “lentes” dos EC parece que vêm possibilitando entender de forma diferente, mais ampla, mais complexa e plurifacetada a própria educação, os sujeitos que ela envolve, as fronteiras (p.54).

Os assuntos recorrentes a respeito das culturas contemporâneas, aliadas

às leituras de teor sociológico, fizeram com que eu me afastasse um pouco dos

meus primeiros interesses (embora ainda persistam em meu horizonte), e passasse

a dirigir meu olhar para um campo onde as pesquisas, a meu ver, ainda apresentam-

se incipientes, pouco visíveis — as culturas juvenis.

Nas últimas décadas, têm crescido o interesse de pesquisadores em

investigar essa faixa da população. A palavra juventude suscita uma variedade de

expressões que vão desde “rebeldias sem causa” a “futuro da nação”. Se outrora a

fase adulta era a mais cobiçada, hoje indubitavelmente, todos desejam ser jovens.

Eles são alvos de poderosos conglomerados mercantis que, gradativamente, aliam

suas marcas e ideologias a esse público. Por isso, hoje é possível observar uma

gama de produtos televisivos, virtuais e publicitários que têm como único e

específico objetivo atingir o público jovem.

Discorrer sobre culturas juvenis ou sobre a juventude (que pode ser

discutida na sua flexão em número juventudes) é um trabalho um tanto quanto

arriscado. A própria noção de juventude é contraditória, pois num contexto circulado

por culturas fragmentadas e comunicações midiáticas massivas de grande alcance e

poder, o conceito de jovem dilata-se, tornando avessa toda espécie de categoria que

pretenda fixar faixas etárias.

Buscando um entendimento sobre a juventude, compreendo que a

constituição de sujeitos está inscrita em um processo mais amplo, que não pode ser

Page 34: Dissertação - Sandro

reduzido a uma passagem. Esse conceito é amparado por diversos pesquisadores

brasileiros, sintetizado por Dayrell (2003):

Construir uma noção de juventude na perspectiva da diversidade implica, em primeiro lugar, considerá-la não mais presa a critérios rígidos, mas sim como parte de um processo de crescimento mais totalizante, que ganha contornos específicos no conjunto das experiências vivenciadas pelos indivíduos no seu contexto social. Significa não entender a juventude como uma etapa com um fim predeterminado, muito menos como um momento de preparação para a vida adulta (p. 42).

De acordo com Dayrell (2003), a juventude é parte de uma condição

social, mas também fruto de representação. É muito variada a maneira como cada

sociedade, como cada grupo social lida com os jovens. Por isso, não se pode

essencializar a juventude, já que ela é matizada com base nas etnias, nas classes

sociais onde os jovens estão inseridos, no gênero, na religião e também nos

espaços geográficos que habitam.

Dessa discussão, entendemos a juventude como parte de um processo mais amplo de constituição de sujeitos, mas que tem especificidades que marcam a vida de cada um. A juventude constitui um momento determinado, mas não se reduz a uma passagem; ela assume uma importância em si mesma. Todo esse processo é influenciado pelo meio social concreto no qual se desenvolve e pela qualidade das trocas que este proporciona (DAYRELL, 2003, p.42).

Portanto, para falar de juventude ou juventudes em pleno século XXI, e

tentar posicioná-las neste período, descrevo algumas características que, a meu ver,

são peculiares à geração jovem que adentra a primeira década deste milênio. Passo

a denominá-la, neste trabalho, de juventude pós-moderna, porque é em congruência

com autores que utilizam o termo pós-modernidade que venho operando. Quando

utilizo a expressão sujeitos-rave, passo a enxergá-los dentro desta mesma ótica.

Percebo uma juventude pós-moderna que tem na fruição e no gozo dois

de seus valores centrais. Jovens em busca de prazeres instantâneos, de curto-

prazo, imediatos e, por isso, uma juventude “agorista”. Jovens que trocam o futuro

pelo tempo presente.

Assim, a noção de juventude pós-moderna vai sendo construída levando

em conta questões mais experimentais do que propriamente conceituais, pois as

Page 35: Dissertação - Sandro

mesmas incitam um ethos de pertencimento efêmero no tempo, simbólico no espaço

e facilmente descartável.

O entendimento do que venha a ser jovem em nosso tempo é cada vez

mais elástico. De acordo com a Secretaria Nacional da Juventude, no Brasil,

aproximadamente, 34 milhões de pessoas estão na faixa etária que vai dos 15 aos

24 anos. Podendo alcançar os 40 milhões se aumentarmos ou diminuirmos as faixas

de idade.

O público jovem tem se consolidado como alvo de uma série de

estratégias que vão desde o marketing publicitário, os programas de televisão, as

indústrias de consumo, passando até pelas políticas públicas. Consequentemente,

crescem as demandas por estudos que privilegiem os aspectos das juventudes no

Brasil.

1.4 Pedagogias Culturais: as raves sob uma perspectiva educacional

Ao optar pelo campo dos Estudos Culturais, adoto como ferramenta

teórica o conceito de Pedagogia Cultural para pensar o movimento rave. Entendo

pedagogias culturais como aquelas que atravessam a vida dos indivíduos para além

das pedagogias escolares tradicionais ou das pedagogias religiosas e familiares.

De acordo com Giroux e MacLaren (1995):

Existe pedagogia em qualquer lugar em que o conhecimento é produzido, em qualquer lugar em que existe a possibilidade de traduzir a experiência e construir verdades, mesmo que essas verdades pareçam irremediavelmente redundantes, superficiais e próximas ao lugar comum (p 144).

A mídia, segundo Giroux e MacLaren (1995), é uma produtora de

imagens e artefatos que preenchem a vida das pessoas, sejam elas crianças, jovens

ou adultos. Desta forma, todas as modalidades de educação ampliam sua gama de

abrangência, ficando também a cargo de outras instâncias culturais, que não

somente a escola. As próprias teorias pós-modernas expõem as ferramentas

conceituais necessárias para pensar numa ampliação da definição da pedagogia.

Page 36: Dissertação - Sandro

Essas questões exercem papel importante na definição do significado e do propósito da escolarização, no que significa ensinar e na forma como os/as estudantes devem ser ensinados/as para viver em um mundo que será amplamente mais globalizado, high tech e racialmente diverso que em qualquer outra época da história. [grifos do autor] (GIROUX, MACLAREN, 1995, p. 88).

Steinberg e Kincheloe (2001) utilizam-se do termo Pedagogia Cultural

para designar um campo pedagógico onde o poder é organizado e difundido,

incluindo-se bibliotecas, TV, cinemas, jornais, revistas, brinquedos, propagandas,

videogames, livros, esportes, etc. Do mesmo modo, fora das instituições

educacionais, existe um aparato publicitário e mercantil que produz diversão e, do

ponto de vista pedagógico, captura nossa imaginação e constrói nossa consciência.

Para os intentos desta pesquisa, considero a publicidade, os shopping

centers, as casas noturnas, os ambientes virtuais, como espaços pedagógicos,

porque ali existem relações entre culturas e aprendizagens.

Para além das salas de aula, é possível encontrar um arsenal de reinos

mágicos, histórias animadas, dramaturgias envolventes e convergência de mídias

que servem de entretenimento e amortecem os desprazeres da vida diária.

Podemos considerar como instâncias educativas a mídia impressa, os programas de

televisão, os filmes, os desenhos animados, os espaços de entretenimento e lazer.

Educativos porque nos ensinam determinadas formas de ver o mundo, de pensar e

agir sobre as coisas ao nosso redor. Pedagógicos porque as produções culturais, ao

difundirem representações, elas mesmas vão construindo identidades,

internalizando valores e condutas.

O conceito de Pedagogia Cultural surge do encontro entre os Estudos

Culturais e a Educação. O ensinar e o aprender vão sendo vistos como praticados

nos mais diversos lugares, não estando somente a cargo das instituições educativas

tradicionais. É no entrecruzamento entre os artefatos culturais e a educação que as

Pedagogias Culturais começam a ser percebidas e consideradas como um reduto de

investigação (COSTA, 2000).

Nas palavras de Costa (2000):

Hoje, estou entendendo que programas de TV, catálogos de propaganda, revistas, literatura, jornal e cinema para citar apenas alguns exemplos dentre a parafernália de produtos culturais circulantes no nosso universo cotidiano são textos culturais que operam constitutivamente em relação aos objetos, sujeitos e

Page 37: Dissertação - Sandro

verdades de seu tempo (p.37).

À medida que as mídias foram incorporadas à vida das pessoas, o

potencial das pedagogias culturais foi ampliado. As mídias eletrônicas, notadamente

a de entretenimento, e também a virtual, ingressaram de tal forma no cotidiano que

passaram a pautar desde as conversas mais casuais até os assuntos da imprensa.

Quando Kellner (2001) discute a questão da cultura da mídia, ele afirma

que dos meios de entretenimento brotam pedagogias culturais que nem sempre são

perceptíveis, mas que “contribuem para nos ensinar como nos comportar e o que

pensar e sentir, em que acreditar, o que temer e desejar e o que não” (p.10).

Segundo ele:

O entretenimento oferecido por esses meios freqüentemente é agradabilíssimo e utiliza instrumentos visuais e auditivos, usando o espetáculo para seduzir o público e levá-lo a identificar-se com certas opiniões, atitudes, sentimentos e disposições (KELLNER, 2001, p.11).

As Pedagogias Culturais ampliam as noções de educação e pedagogia,

mostrando que, além do conhecimento formal (visto aqui os ensinamentos

aprendidos nas escolas, nas universidades, etc.), estamos cercados por objetos,

práticas, imagens e representações que também exercem uma função educativa. Os

artefatos culturais estão estruturados de tal forma que ensinam às pessoas uma

infinidade de práticas, comportamentos, e incitam sonhos e desejos, às vezes, de

forma irresistível e sedutora.

Na verdade, desde o início do meu projeto de pesquisa a questão

pedagógica sempre foi considerada a de maior preocupação e, ao mesmo tempo, o

maior desafio. Embora o universo das festas rave não se encontre implicado

usualmente dentro do espectro de atividades da educação, ao considerá-lo um

espaço cultural que atrai e movimenta uma grande parcela de jovens, pode-se

pensar em uma determinada pedagogia que aciona mecanismos que fascinam e

convocam os jovens a participar e a se comportar de determinadas formas.

O espetáculo contemporâneo tem invadido nossas vidas e aciona outras

formas de compreensão do mundo. Os modos como se celebram a vida vêm sendo

reinventados a todo o momento, seja pelas convocações ao consumo ou mesmo

pelo hedonismo. Minha interpretação do termo Pedagogia Cultural remete àquelas

Page 38: Dissertação - Sandro

pedagogias que abarcam a socialidade dos sujeitos, os ambientes e práticas onde

as afetividades e também as racionalidades estão presentes.

As aspirações, os deleites e a busca pelo bem-estar são elementos que

fazem parte da cena rave, montada e composta para forjar e comportar

determinados modos de ser. É dentro dessa ótica que se pode pensar em

estratégias pedagógicas peculiares. Podemos enxergar as festas como um espaço

pedagógico no sentido de que os sujeitos são forjados a partir de uma série de

convocações próprias da cultura rave: a música, as drogas, o imperativo do gozo, a

velocidade, os prazeres, o espetáculo, a tecnologia. A juventude rave, assim como

tantos outros grupos juvenis, expressa uma forma característica de habitar a

contemporaneidade e de ser jovem no século XXI.

Assim, para este estudo, lanço mão de análises de filósofos, sociólogos,

músicos, educadores e estudiosos da cultura contemporânea que procuram

interpretar os matizes da cultura rave e suas relações nos processos de produção de

sujeitos.

1.5 As neotribos e as comunidades guarda-roupas

A discussão do conceito de comunidade inspira-se nas análises de

Bauman (2005) e Maffesoli (2006). Esses autores, respectivamente, consideram que

a formação dos laços sociais está inscrita em uma ótica pós-modernista, que

Bauman vai chamar de comunidades guarda-roupa e Maffesoli de neotribos. Os dois

conceitos são centrais em minha problematização porque ambos consideram que os

arranjos dos grupos ocorrem de forma momentânea e passageira.

Michel Maffesoli é sociólogo e professor da Universidade René Descartes,

Paris V, Sorbonne. Hoje, o autor é considerado um pensador que se interessa pelas

formas de socialidade no contemporâneo temas sempre constantes em suas

obras.

Entre as inúmeras nomenclaturas (subculturas, formas de resistência,

culturas extremas, culturas alternativas) que se arriscam a descrever e nomear o

universo das manifestações juvenis contemporâneas, considero o conceito de

neotribalismo proposto pelo francês Michel Maffesoli (2006) o mais adequado para

Page 39: Dissertação - Sandro

minha pesquisa. O autor recorre ao termo tribalismo para identificar os inúmeros

grupamentos da sociedade e, quando se refere à constituição de grupos, procura

salientar a partilha de sentimentos e suas relações de afinidade como características

presentes no âmbito social.

Analisando a cultura rave como parte das manifestações culturais da

juventude, o conceito de neotribalismo serve para corroborar a presença do ethos de

pertencimento. O estar-junto, segundo o autor, constitui o verdadeiro cimento

societal.

É para dar conta desse conjunto complexo que proponho usar, como metáfora, os termos de “tribo” ou de “tribalismo”. Sem adorná-los, cada vez, de aspas, pretendo insistir no aspecto “coesivo” da partilha sentimental de valores, de lugares ou de ideais que estão, ao mesmo tempo, absolutamente circunscritos (localismo) e que são encontrados, sob diversas modulações, em numerosas experiências sociais [grifos do autor] (MAFFESOLI, 2006, p. 28).

A partir das análises de Maffesoli, passo a enxergar as agregações nas

festas rave como uma comunidade neotribal, já que aí se constrói uma lógica

identitária que se estrutura através do afeto e da comunhão. Quando são

apresentadas outras formas de convivência, não restritas à esfera familiar ou

religiosa, pode-se caracterizar essa formação ao estilo neotribal.

Na contramão do tribalismo clássico, o que autor chama de neotribalismo

tem na fluidez sua característica essencial, seja pelos agrupamentos espontâneos e

temporários ou mesmo por sua rápida dispersão. É assim que se pode “descrever o

espetáculo das ruas nas megalópoles modernas. O adepto do jogging, o punk, o

look retro, os ‘gente bem’, os animadores públicos, nos convidam a um incessante

travelling” [grifos do autor] (MAFFESOLI, 2006, p.107).

O termo neotribalismo permite trazer para o campo das ciências sociais

algumas análises da vida social, levando em conta parâmetros como emoção,

imaginário, ludicidade, sentimento, que interferem nas práticas cotidianas das

sociedades. A organização da vida, por sua vez, não se reduziria às relações de

ordem racional, mas incorporaria uma lógica afetiva e de contornos indefinidos.

Em outras palavras, a socialidade vai nascer do entrecruzamento das

múltiplas agregações, somente podendo ser compreendida quando da posse das

marcas que modulam o cenário contemporâneo. Entre elas estão a moda, o

Page 40: Dissertação - Sandro

espetáculo, a publicidade, as festas, os programas de televisão, os sites, etc. Eles

formam um conjunto significativo que carrega e dissemina valores da cultura pós-

moderna. Assim, a vivência no interior de associações tribais funcionaria como um

meio simbólico de expressão identitária e de pertencimento.

Na análise de Maffesoli (1995), o neotribalismo estaria presente como

uma espécie de compensação, uma réplica a estruturas sociais fragmentadas, a

uma sociedade competitiva e burocrática. Agora, uma relação táctil e guiada pela

fusão prevaleceria. Nesses encontros, as pessoas se cruzam umas com as outras,

elas se tocam, e é nestes instantes que propriamente se estabelecem as interações

nas neotribos.

Na reflexão de Maffesoli (2004), a humanidade estaria se confrontando

com novas formas de comunhão.

De fato, as diversas instituições sociais, havendo-se tornado cada vez mais abstratas e desencarnadas, já não parecem estar em contato com a exigência reafirmada da proximidade. Daí a emergência de um neotribalismo pós-moderno que se assenta na necessidade – sempre e mais uma vez – de solidariedade e proteção que caracteriza todos os grupos sociais. Nas selvas de pedra que são as megalópoles contemporâneas, a tribo desempenha o papel que lhe competia na selva stricto sensu [grifos do autor] (p.22).

As análises de Maffesoli (2006) vão ao encontro da abordagem de

Bauman (2005), quando discute o termo comunidade, ressaltando duas dimensões

centrais: uma unidade comunal e um caráter espetacular e breve das agregações

sociais contemporâneas. Ao mesmo tempo em que oferece “proteção”, a vida em

comunidade apresenta determinadas restrições à liberdade individual. O sentido de

comunidade discutido por Bauman decorre justamente desta busca por segurança e

proteção, ou seja, uma forma de estar no mundo unido e podendo contar com a

ajuda ou solidariedade dos outros.

Para o autor, a comunidade tem nos encontros seu ponto máximo, pois as

pessoas vão aos lugares para se encontrar com os outros que portam os mesmos

distintivos e símbolos que caracterizam estilos e gostos em comum. “São

comunidades com prazos fixos, das quais ‘debanda’ quando o grupo se dispersa,

embora sendo livre para sair antes disso, a qualquer momento em que o interesse

comece a diminuir” [grifos do autor] (BAUMAN, 2005, p. 143). O sociólogo ainda

discute o conceito de comunidade localizando sua atualidade na sociedade

Page 41: Dissertação - Sandro

contemporânea.

Ela se adapta bem à experiência do tempo pontilhista composto de instantes, de episódios com tempo fixo e novos começos; ela libera o presente que deve ser explorado, e explorado em sua plenitude, dos tormentos do passado e do futuro, que podem ter impedido a concentração e prejudicado a excitação da livre escolha (BAUMAN, 2005, p. 109).

Nas tribos contemporâneas, o ethos comunitário estaria ligado por um

emaranhado de expressões que remetem direto ao compartilhamento de emoções

coletivas. A aprovação no grupo é quase sempre imediata, fugaz, sem uma

necessidade de objetivos concretos para assegurar sua continuidade. Procura-se

viver com intensidade cada instante. São eventos pontuais, pontilhistas, mas com

uma função exclusiva de reafirmar um sentimento de pertencimento (MAFFESOLI,

2004).

Os festivais de música eletrônica, por exemplo, distanciam-se de uma

ordem racional para celebrar uma outra ordem implicada através da emoção, do

gozo, da festa, do consumo e do espetáculo. Seja nas raves ou nos clubs21, a

coletividade se faz presente porque ali se encontram informações que compõem

todo um cenário — o imaginário coletivo.

Embora exista uma narrativa sobre as festas rave posicionando-as como

lugar de negação da racionalidade e da produtividade fordista, um enorme aparato

estratégico, próprio da racionalidade instrumental ainda vigente na sociedade

contemporânea, está lá para garantir que as festas funcionem e se tornem

sancionáveis, como segurança, ambulância, etc.

Maffesoli (2006) é identificado como um pensador interessado no

cotidiano e nas múltiplas fisionomias do imaginário. Ele utiliza o termo tribalismo

para analisar o renascimento dos fenômenos sociais, criado pela saturação dos

valores individualistas da modernidade. “Tribos religiosas, sexuais, culturais,

esportivas, musicais: o número delas é infinito e sua estrutura é idêntica ajuda

mútua, compartilhamento dos sentimentos, ambiente afetuoso” (p. 24).

No universo dos jovens, a identidade geradora de aglutinados ao redor de

modismos, estilos, comunidades virtuais, celebridades, implica um ethos, ou seja,

um “eu” pertencente a um determinado grupo, mesmo que de forma passageira. Do 21 Bares noturnos urbanos onde toca música eletrônica. No Brasil, a expressão clubs não é utilizada, sendo mais comum uma menção a casas noturnas, bares ou danceterias.

Page 42: Dissertação - Sandro

ponto de vista identitário, o pertencimento torna-se o principal vetor de sociabilidade

no universo jovem.

De acordo com Bauman (2005):

Tornamo-nos conscientes de que o “pertencimento” e a “identidade” não têm a solidez de uma rocha, não são garantidos para toda a vida, são bastante negociáveis e revogáveis, e de que as decisões que o próprio indivíduo toma, os caminhos que percorre, a maneira como age – e a determinação de se manter firme a tudo isso – são fatores cruciais tanto para o “pertencimento” quanto para a “identidade” [grifos do autor] (p. 17).

Os habitantes do líquido mundo moderno buscam construir e manter as

referências comunais das identidades em movimento — lutando para juntar-se aos

grupos igualmente móveis e velozes, e tentar manter-se vivos por um momento, mas

não por muito tempo (BAUMAN, 2005).

A construção de uma identidade é um processo contínuo, sem fim, um

projeto sempre incompleto. As comunidades presentes no mundo contemporâneo

são próprias para corpos flexíveis, mutáveis e adaptáveis. A comunidade ou as

comunidades, nessa fase líquida da modernidade, deve estar de acordo com essa

nova identidade. Segundo a argumentação de Bauman (2003):

A “comunidade”, cujos usos principais são confirmar, pelo poder do número, a propriedade de escolha e emprestar parte de sua gravidade a que confere “aprovação social”, deve possuir os mesmos traços. Ela deve ser tão fácil de decompor como foi fácil de construir.Deve ser e permanecer flexível, nunca ultrapassando o nível até nova ordem e enquanto for satisfatório [grifos do autor] (p.62).

Bauman (2005) garante que existe uma crescente demanda pelas

chamadas comunidades guarda-roupas. Elas existem apenas nas aparências e

penduram os problemas individuais como o fazem os frequentadores de teatros.

Essas comunidades duram o tempo exato do espetáculo, ou seja, quando a sessão

termina, apanham seus casacos e prontamente vão embora.

Os frequentadores de um espetáculo se vestem para a ocasião, obedecendo a um código distinto do que seguem diariamente o ato que simultaneamente separa a visita como uma “ocasião especial” e faz com que os frequentadores pareçam enquanto durar o evento, mais uniformes do que na vida for a do teatro. É a

Page 43: Dissertação - Sandro

apresentação noturna que leva todos ao lugar por diferentes que sejam seus interesses e passatempos durante o dia. Antes de entrar no auditório, deixam os sobretudos ou capas que vestiram nas ruas no cloakroom da casa de espetáculos. Durante a apresentação, todos os olhos estão no palco; e também a atenção de todos. Alegria e tristeza, risos e silêncios, ondas de aplauso, gritos de aprovação e exclamações de surpresa são sincronizados como se cuidadosamente planejados e dirigidos. Depois que as cortinas se fecham, porém, os espectadores recolhem seus pertences do cloakroom e, ao vestirem suas roupas de rua outra vez, retornam a seus papéis mundanos, originários e diferentes, dissolvendo-se poucos momentos depois na variada multidão que enche as ruas da cidade e da qual haviam emergido algumas horas antes. Cloakroom communities (comunidades cabide) precisam de um espetáculo que apele a interesses semelhantes em indivíduos diferentes e que os reúna durante certo tempo em que outros interesses que os separam em vez de uni-los são temporariamente postos de lado, deixados em fogo brando ou inteiramente silenciados [grifos do autor] (BAUMAN, 2001, p.228).

Segundo Bauman (2005), as comunidades guarda-roupas não exigem

permissões para entrar ou sair, e não possuem critérios rígidos para selecionar

quem pode ou não fazer parte da comunidade. A afiliação à determinada

comunidade é muito subjetiva, pois o que realmente conta é a experiência do

presente vivida na comunidade.

Numa existência de consumo vivida sob a tirania do momento e avaliada pelo tempo pontilhista, a facilidade de entrar e sair à vontade dá a experiência da comunidade fantasma, ad hoc, uma clara vantagem sobre a “coisa real”, desconfortavelmente sólida, restritiva e exigente [grifos do autor] (BAUMAN, 2005, p.143).

Lugares tradicionalmente investidos de sentimentos de pertença como a

família, a igreja e a vizinhança são colocados a prova e, conforme afirma Bauman

(2005) “no admirável mundo novo das oportunidades fugazes e das seguranças

frágeis, as identidades ao estilo antigo, rígidas e inegociáveis, simplesmente não

funcionam” (p.33).

Para este autor, sujeitos constituídos nos tempos pós-modernos são

“caçadores de emoções e colecionadores de experiências; sua relação com o

mundo é primordialmente estética: eles percebem o mundo como um alimento para

a sensibilidade, uma matriz de possíveis experiências (...) e o mapeiam de acordo

com elas” (BAUMAN, 2005, p. 202).

Page 44: Dissertação - Sandro

É esse movimento de identidades que percebo entre os frequentadores

das festas rave, já que, no momento em que a festa é finalizada, cada um retorna à

sua rotina. O conceito de comunidades guarda-roupas ou cabide de Bauman pode

ser pensado no mesmo sentido das neotribos propostas por Maffesoli.

1.6 Um convite ao espetáculo

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação (DEBORD, 1997, p. 13).

Guy Debord intelectual, cineasta e filósofo escreveu, aos 26 anos, A

Sociedade do Espetáculo (1967), obra na qual anunciava que no século XXI nosso

planeta estaria povoado por máquinas “inteligentes”. A Sociedade do Espetáculo

condensa, em poucas páginas, reflexões e aforismos sobre a sociedade

contemporânea. O autor reúne 221 teses relatando as mudanças sofridas pelos

sujeitos e pelas formas de vida a partir da emergência do espetáculo.

Foi Debord, na segunda metade do século XX, quem trouxe o conceito de

espetáculo para o campo das análises sociais e culturais. Hoje, é difícil aludir ao

conceito de espetáculo da forma como venho tratando nesta pesquisa, sem chamar

atenção para os estudos de Debord.

Este conceito tem sido utilizado amplamente para discorrer a respeito da

movimentação contemporânea, composta pela disseminação de imagens, pelas

distintas visibilidades e pelos aparatos midiáticos. Em sua tese de número 34,

Debord afirma que o espetáculo é o capital, em tal grau de acumulação, que se

torna imagem.

A Sociedade do Espetáculo descrita por Debord não deve ser percebida

somente como uma mera referência aos meios de comunicação de massa, pois os

conjuntos de manifestações fazem parte de uma totalidade mais espetacular. A

atualidade do conceito é incontestável, haja vista as vitrines midiáticas a que

constantemente estamos expostos (televisão, jornal, revistas, outdoors, internet,

etc), sem contar os inúmeros aparatos tecnológicos que estimulam o olhar, as

Page 45: Dissertação - Sandro

sensações, os sentidos e, também, as nossas percepções.

Outro aspecto a ser observado diante da Sociedade do Espetáculo é o

fato de Debord declarar que o espetáculo tem se apresentado como “constituidor da

própria sociedade, como instrumento de unificação” (DEBORD, 1997, p. 14). Ou

seja, a valorização das imagens e as relações de consumo encontram-se mediadas

pelos meios de comunicação de massa (mas não somente por eles), e produzem

por meio do cinema, da publicidade, dos noticiários, dos eventos esportivos, das

telenovelas, uma forma de experimentar que aciona outra noção de realidade.

Na sociedade do espetáculo, os indivíduos trabalham para serem

merecedores de férias (aqui entendidos como descanso, lazer), para obter o poder

de consumo. Segundo Debord (1997), nada escapa à lógica espetacular do

consumo, visto exatamente como um supermercado que orienta gostos, anuncia

estilos de vida, conduz prioridades e desejos. Mais do que isso, é um lugar onde se

compram valores, prazeres, rotinas, etc.

Vive-se numa sociedade saturada, carregada de imagens, cheia de cores

vibrantes e impregnada de sons e movimentos. Seguindo a linha de raciocínio de

Debord (1997), o espetáculo dita as normas de cidadania, organiza as relações

sociais, estabelece valores e formata as identificações.

Contudo, o espetáculo não se concentra somente no conjunto de

imagens, mas nas relações entre as pessoas, as mídias e as representações. Esse

conceito vai explicar uma grande diversidade de fenômenos que estão em evidência,

entre eles, a própria experiência da festa rave, os jogos olímpicos e as grandes

exposições de arte.

Na verdade, o espetáculo parece persistir 24 horas por dia. São as

revistas, os jornais, os programas televisivos, os sites da internet, o rádio. Os meios

se constituem como aliados capazes de transformar comportamentos, aparências e

criar modismos.

Diversas áreas do cotidiano foram completamente transformadas pelos

avanços da ciência e da tecnologia. Hoje, é difícil imaginar um mundo desprovido de

televisões, computadores ou redes de telefonia. Os avanços tecnológicos são

contínuos como uma via de mão única, não havendo qualquer possibilidade de

retrocesso.

A onda consumista desencadeada pelos Estados Unidos, resumida na

expressão “American way of life”, traz consigo os símbolos de uma cultura capitalista

Page 46: Dissertação - Sandro

que se caracteriza pela prosperidade econômica, pela estabilidade política e pela

promessa de uma vida sempre melhor a cada dia. Nesse sentido, a propagação de

imagens através da publicidade, de modo geral, apontou para a força de um sistema

organizado em torno do consumo, ou seja, um espetáculo midiático montado e

composto para fins de potencializar o consumo. Nosso tempo, sem dúvida, está

muito mais ligado à imagem do que à coisa em si, está mais apoiado à cópia do que

ao original, a uma representação da realidade.

As imagens que pululam na vida urbana contemporânea, e que têm

refletido diretamente na cultura rave, podem ser visualizadas na forma de pequenas

aglomerações, grupos identitários que se justapõem conceitualmente àquilo que

Maffesoli chama de neotribalismo. Este neotribalismo está estampado e prolifera no

cenário contemporâneo.

Outro autor, o sociólogo e filósofo francês Jean Baudrillard (1991),

desenvolveu uma série de estudos que vão desde os impactos dos meios de

comunicação nas sociedades contemporâneas até a construção de análises onde a

cultura de massa passa a produzir uma realidade virtual. O autor destaca que as

novas formas de tecnologia da informação são essenciais para marcar a passagem

de uma ordem social situada na produção para uma ordem centrada na reprodução,

onde simulações e modelos prontos acabam constituindo o mundo. Para Baudrillard,

a sociedade de consumo é uma alavanca para o mundo do signo — o simulacro.

Pronunciar o vocábulo simulacro22 é evocar o nome do francês Jean

Baudrillard. Em parte porque em sua obra está contida a afirmação de que “o que se

vive hoje é a simulação”. “Vive-se a era do virtual, nem verdadeiro nem falso, nem

bem nem mal, a de uma indistinção do real e do referencial, a de uma reconstrução

artificial do mundo onde todos conquistam a imunidade total” (BAUDRILLARD, 1995,

p.68).

Segundo ele, as grandes verdades não sustentam mais o mundo porque

se descobriu que as mesmas não merecem tanta confiança como em outras épocas

se acreditou. Hoje, escancaram-se as inúmeras faces da política, do sexo, das artes,

e as ideologias em geral vão sendo criadas em nome de um gozo de liberdade e de

bem-estar, seja ele individual ou coletivo. O simulacro é moldado através de um

conjunto de objetos-signos que carregam possibilidades de gozar a felicidade.

22 A noção de simulacro, defendida por Baudrillard, propõe que o “signo” (ou a imagem) absorve e reedifica o referente, tornando-se mais real que o próprio real: hiper-real.

Page 47: Dissertação - Sandro

Segundo Baudrillard (1995), a busca da felicidade está vinculada a uma certa lógica

do consumo, sendo um direito natural do homem, possível de ser alcançada através

da aquisição de bens.

A simulação para o autor não é a simples imitação do real, nem

dobragem, nem paródia, mas é a substituição do real pelos signos do real.

Baudrillard não faz nenhuma oposição entre simulação e realidade, já que não existe

uma crise do real sendo vivenciada. Para ele, a simulação é o próprio apogeu do

real.

Desta forma, o autor salienta que se vive ao abrigo dos signos e na

recusa do real. Ele ainda observa que a penetração da lógica de consumo amplia

gradativamente o distanciamento do real e a ilusão de felicidade que dele deriva.

Portanto, ao não satisfazer os desejos, o consumo do signo mais angustia do que

alivia as tensões. A angústia e a insatisfação acabam por constituir parte ideológica

da sociedade organizada em torno do consumo.

Em suas palavras,

O que distingue a sociedade de consumo não é a ausência deplorada de cerimônias (...). A comunhão cerimonial, no entanto, já não se dá através do pão e do vinho, que se tornariam a carne e o sangue, mas através dos mass media (...). O que é repartido deixa de ser a “cultura”: o corpo vivo, a presença atual do grupo (tudo o que fazia a função simbólica e metabólica da cerimônia e da festa); é um estranho corpo de signos e referências, de reminiscências (...) que define a menor panóplia comum de objetos a possuir pelo consumidor médio para aceder ao título de cidadão da sociedade de consumo [grifos do autor] (BAUDRILLARD, 1991, p. 108).

Visto sob as lentes culturalistas, a própria cultura cotidiana (da mídia, do

consumo, da publicidade, da internet) encontra-se dominada pelo hedonismo: bem-

estar individual, lazer, interesse pelo corpo, valores individualistas de sucesso

pessoal e profissional.

De qualquer modo, os autores que trabalham com a cultura rave

enfatizam o caráter de comunhão emocional e de um hedonismo presente na união.

A experiência da festa rave remete à idéia da experiência de si, no qual a música

desempenha um papel central. Então, é possível desencadear o seguinte

pensamento. Se para Debord o que se configura é o espetáculo, para Baudrillard, o

espetáculo é o simulacro.

Page 48: Dissertação - Sandro

1.7 Ravers: consumidores da era digital

Os usos e significados do espaço e do tempo acabaram se modificando

na transição do capitalismo fordista23 para o da acumulação flexível. Isto tudo devido

à rápida implantação de novas formas organizacionais e do desenvolvimento das

tecnologias digitais. O “mundo fordista” gerou um modelo de industrialização, de

acumulação e de regulação em que a engenharia social estava orientada pela

ordem e pelo impedimento da mobilidade. No “capitalismo pesado”, o capital, a

produção e os trabalhadores estão fixados, enraizados e estáveis dentro de uma

rotina sólida.

A sociedade do “capitalismo pesado” caracterizou-se pela organização e

por uma certa ordem, esta última traduzida por Bauman (2001) no sentido de

monotonia, repetição e regularidade. O mundo concebido a partir do “capitalismo

pesado” era um lugar controlado, com fronteiras limitadas, fixando os trabalhadores

e o próprio capital a um determinado espaço.

Hoje, os fluxos de capital e as pessoas viajam com leveza — apenas com

a bagagem de mão, que inclui pasta, telefone celular e um computador portátil. Isso

permite aos “passageiros” embarcar e partir de qualquer ponto, sem precisar

demorar-se em nenhum lugar além do tempo necessário. (Bauman, 2001). É o que

Bauman denomina de “mundo do capitalismo leve”, sempre associado a uma idéia

de liquidez, onde os sólidos, ou seja, os elementos de uma ordem organizada em

torno do “capitalismo pesado”, começam a se liquefazer na possibilidade de poder

acomodar pessoas, coisas e objetos aos mais diversos encaixes e desencaixes.

Com a aceleração generalizada dos processos inscritos na produção de

artefatos e de bens de consumo, acentua-se uma volatilidade nas técnicas

produtivas de trabalho. No “capitalismo leve”, o mundo se torna uma coleção infinita

de possibilidades.

O mundo cheio de possibilidades é como uma mesa de bufê com tantos pratos deliciosos que nem o mais dedicado comensal poderia esperar provar de todos. Os comensais são consumidores, e a mais

23 Fordismo é um sistema produtivo baseado numa linha de montagem, tendo como objetivo a produção industrial elevada. Esse conjunto de princípios foi criado pelo americano Henry Ford em 1909. Sua meta principal era buscar o aumento da produção no menor espaço de tempo, utilizando o trabalhador que reproduzia mecanicamente a mesma ação durante todo o dia.

Page 49: Dissertação - Sandro

custosa e irritante das tarefas que se pode pôr diante de um consumidor é a necessidade de estabelecer prioridades: a necessidade de dispensar algumas opções inexploradas e abandoná-las. A infelicidade dos consumidores deriva do excesso e não da falta de escolha [grifos do autor] (BAUMAN, 2001, p.75).

Você pode escolher o seu visual. “Escolher em si, optar por algum visual

não é a questão, uma vez que é isso que você deve fazer, só podendo desistir ou

evitar fazê-lo sob risco de exclusão” (BAUMAN, 2008, p. 110).

O trabalho, força outrora produtora da mais-valia, hoje já não carrega

consigo um valor primário, mas um meio para alcançar momentos de deleite e bem-

estar. A valorização do onírico, do lúdico, do afetivo e do “irracional” disputa lugar na

organização dos arranjos sociais, sendo competente na sua capacidade de driblar

adversidades, esquecer problemas, unir e construir.

As festas rave emitem sinais de fumaça ao fordismo, fazendo crer que as

grandes fábricas já não produzem aquilo de que se necessita. As fábricas estão

sendo queimadas, incineradas e transformadas pelos movimentos tecnológicos. O

espaço das antigas fábricas, hoje é utilizado para as festas rave, que celebram o seu

fim. Canevacci (2005) aponta para “a rave como multiplicidade de sujeitos que

dissolve o poder da velha fábrica taylorista e a transforma numa festa prolongada

nos ritmos acelerados da técnica” (p.155).

O que se tem chamado de cena eletrônica é uma construção simbólica

organizada para o consumo. Nela, operam mecanismos responsáveis pela

identificação e pelo pertencimento. Na cena rave circula uma enorme variedade de

artefatos confeccionados para os ravers, como CDs, roupas, livros, adereços,

brinquedos, que associados a sites, flyers, etc, constituem marcas de pertencimento.

Na sociedade de consumidores é necessário um público que se faça

presente para que esses “produtos” ou redes de serviços, sejam eles materiais,

imateriais ou virtuais, possam circular e serem consumidos. É como uma espécie de

ampla e complexa engrenagem onde vão atuar movimentos cadenciados e

sequenciais permitindo os efeitos das festas rave.

Recorrendo às análise de Bauman (2007) sobre o consumo, parto da

definição de consumismo para pensar o movimento das festas rave, já que o autor

considera o consumo como o organizador central da vida nas sociedades

contemporâneas.

Page 50: Dissertação - Sandro

Pode-se dizer que o “consumismo” é um tipo de arranjo social resultante da reciclagem de vontades, desejos e anseios humanos rotineiros, permanentes e, por assim dizer, “neutros quanto ao regime”, transformando-os na principal força propulsora e operativa da sociedade, uma força que coordena a reprodução sistêmica, a integração e a estratificação sociais, além da formação de indivíduos humanos, desempenhando ao mesmo tempo um papel importante nos processos de auto-identificação individual e de grupo, assim como na seleção e execução de políticas de vida individuais [grifos do autor] (BAUMAN, 2007, p.41).

Bauman (2008) avalia que existe uma interpelação para com seus

membros essencialmente pelo viés consumista. Uma sociedade que avalia seus

integrantes pelas capacidades e condutas com relação ao consumo. “Na sociedade

de consumidores, ninguém pode ser tornar sujeito sem primeiro virar mercadoria, e

ninguém pode manter segura sua subjetividade sem reanimar, ressuscitar e

recarregar de maneira perpétua as capacidades esperadas e exigidas de uma

mercadoria vendável” (p. 20).

O consumo não se encontra circunscrito exclusivamente pelo desejo e

pela satisfação, mas envolvido em processos de identificação marcados por signos,

símbolos e filosofias. Portanto, é necessário prestar atenção no fato de que os

produtos não são apenas roupas, carros, eletrônicos, objetos em geral, mas também

estão incluídos o lazer e os espaços de entretenimento. Significados simbólicos que,

no curso do tempo, são fabricantes das próprias culturas.

Imersos nas cerimônias onde se dão a união de pessoas, criam-se jogos

de valores, pertencimentos e padrões de comportamento. As práticas de consumo,

de certa forma, são elementos presentes na configuração das sociedades

contemporâneas, forjando sujeitos, identidades, modos de ser e pertencer. Os

símbolos consumidos por esses sujeitos carregam marcas e dão sentido quando se

adquire.

O valor mais característico da sociedade de consumidores, na verdade seu valor supremo, em relação ao qual todos os outros são instados a justificar seu mérito, é uma vida feliz. A sociedade de consumidores talvez seja a única na histórica humana a prometer felicidade na vida terrena, aqui e agora e a cada “agora” sucessivo. Em suma, uma felicidade instantânea e perpétua [grifos do autor] (BAUMAN, 2007, p.60).

Em um mundo rodeado e instigado por desejos e prazeres, por um

determinado “encontro” com a felicidade, inúmeros significados são regulados.

Page 51: Dissertação - Sandro

Valores, condutas, gostos, atitudes, modos de comportamento e maneiras de se

vestir. Todos esses elementos atuam na formação de sujeitos dos nossos tempos.

A configuração de grupos jovens assume um caráter múltiplo quando

relacionada ao movimento de expansão do consumo. O desenvolvimento das

indústrias culturais e dos meios de informação e comunicação de massa, atrelados à

oferta de bens e atividades de lazer, descreve pontos essenciais na formação dos

(novos) sujeitos da cena pós-moderna.

A formação dos sujeitos jovens já não compete primordialmente às

esferas familiar, religiosa ou escolar. Outras instituições e espaços também estão

implicados nisso e, às vezes, de forma mais eficaz e constante. É o caso dos

espaços comerciais como shopping centers, os ambientes festivos (foco deste

trabalho), os programas de televisão, as páginas da internet, etc.

É por meio de uma série de convocações e mecanismos que tais

instituições vão moldando e, ao mesmo tempo, disseminando maneiras de ver o

mundo, formas de se ver, de enxergar o outro, e, portanto, modos de ser sujeito.

O mais significativo é que esta é a primeira geração que cresceu com a

tecnologia de computadores amplamente disponível. Essa geração nasceu no

mundo da tecnologia e possui uma enorme familiaridade com os inúmeros artefatos

que vão surgindo a cada dia. Os jovens de hoje não somente abraçam as

tecnologias, como as celebram, consomem e usam como instrumento o tempo todo.

Os sites, por exemplo, se espalham com uma velocidade incrível. E “com muita

rapidez deixaram de ser apenas uma opção entre muitas para se tornarem o

endereço default24 de um número crescente de jovens, homens e mulheres”

(BAUMAN, 2008, p. 8).

A internet é o meio de acesso à informação e propagação do universo da

música eletrônica. É o espaço onde os bens simbólicos da cultura rave estão em

circulação e onde podem ser consumidos. Dentro da web, pode-se baixar músicas e

sets25 inteiros de DJs, trocar arquivos digitais com outros usuários e conferir as

últimas informações e lançamentos. Seguindo na mesma linha de raciocínio, Fritz

(1999)26 comenta a proximidade entre ravers a as tecnologias:

24 Default do inglês significa padrão25 Set é o termo usado para se referir tanto ao conjunto de trechos musicais “mixados” pelo DJ para construção de seu texto musical, como ao conjunto de discos de vinil ou CDs usados pelo DJ em sua performance. 26 No original - Ravers are generally computer literate and many spend time surfing the net. If you do a search on the world rave you will find thousands of web sites and services that relate directly to rave

Page 52: Dissertação - Sandro

Ravers têm, geralmente, habilidades com computadores e gastam muito tempo surfando pela internet. Se você fizer uma pesquisa no mundo rave irá encontrar milhares de web sites e serviços relacionados diretamente à cultura rave. Além dos flyers e do boca-a-boca, a rede é um dos poucos lugares para encontrar informações a respeito de eventos que estão para acontecer. A rede é também um bom espaço para encontrar dance music eletrônica e obter informações a respeito de DJs e produtores [grifos meu] (p.195).

Uma das razões pelas quais as raves se espalham tão rapidamente é

porque as tecnologias correntes fornecem as ferramentas essenciais para comunicar

informações relativas às festas, às últimas novidades da música eletrônica a um

número maior de pessoas com mais facilidade do que em qualquer outra época na

história da humanidade.

Neste sentido, a rave é realmente um tipo de corrida de aquecimento ou fase de aclimatação para a realidade virtual; ela está adaptando o nosso sistema nervoso, acelerando o nosso aparato sensório e perceptivo, arregimentando-nos em direção a uma subjetividade pós-humana, que a tecnologia digital requer e engendra (REYNOLDS apud FREIRE FILHO, 2007, p. 49).

Com relação a este assunto, Marisa Costa e Jorge Ramos do Ó (2007),

em entrevista publicada pela revista Educação e Realidade, apresentam análises de

como enxergam a emergência e o papel das tecnologias na vida das crianças e

jovens contemporâneos.

Conforme Ramos do Ó (2007), é preciso se adaptar aos artefatos aliados

às tecnologias e fazer uso deles como recurso para transformar a nossa visão de

mundo.

Isso porque o mundo tornou-se muito mais extenso, mais complexo, sobretudo, através das novas tecnologias, não fazendo mais sentido, por exemplo, opor natureza e cultura. Para o que me interessa é óbvio que hoje as crianças e os jovens utilizam uma escrita que permanece fora da instituição escolar. De alguma maneira, acho que as novas tecnologias constituem a base de uma linguagem que os meninos e meninas desses novos tempos estão a construir. Parece que nunca as crianças e jovens de alguma geração haviam produzido uma forma de comunicação escrita como a que se plasma no MSN (Messenger) ou nos celulares, etc. (Idem, p. 112).

culture. Apart from flyers and word of mouth, the net is one of the few places to find information on upcoming events. The net is also a great place to find electronic dance music and get information about Djs and producers. (FRITZ,1999, p. 195)

Page 53: Dissertação - Sandro

De acordo com Costa (2007), os jovens têm experimentado de forma

intensa esse cotidiano inundado pelas tecnologias, que não se resume ao

computador em si, mas a um conjunto de materiais midiáticos, jogos eletrônicos,

outdoors, celulares, MP3s, entre outros, que formatam nossos modos de ver e

pensar sobre o mundo em que vivemos.

Isso que chamo de cultura da imagem faz parte do dia-a-dia e, como a educação escolarizada não dá conta disso, as crianças vão resolvendo por sua própria conta. Por exemplo, essa escrita reduzida que se usa em mensagens de internet, celular, etc. (qdo, vc, blz), e tantas outras escritas novas, icônicas – ;) :- :-o :P (h) :) que eles vão criando, são tentativas de movimentar-se em meio a um novo ambiente em que as tecnologias misturam-se com o humano, em novas ecologias. Quer dizer, crianças e jovens estão inventando novas linguagens nessa simbiose com as máquinas. Parece que a escola não considera, não consagra e não está interessada em trabalhar com isso, algo que, a meu ver, seria extremamente estimulante para as crianças (COSTA, 2007, p. 113).

Portanto, o ingresso das tecnologias digitais na vida dos jovens tem

produzido subjetividades e vem compondo outros jeitos de ser sujeito no mundo

contemporâneo. Neste sentido, o universo da cena eletrônica está intimamente

ligado ao desenvolvimento das ferramentas tecnológicas de comunicação. A cena

eletrônica é um dos produtos da cibercultura. Ambas (a cena eletrônica e a

cibercultura) imersas na sociedade contemporânea, reverberam uma estrutura

pautada pelo consumo. Um consumo digital, multiplicado nos acessos aos sites, na

busca de informações e no próprio consumo musical.

Page 54: Dissertação - Sandro

CAPÍTULO II

CULTURA RAVE: UM LUGAR NA PÓS-MODERNIDADE

Quanto mais importante – mais “central” – se torna a cultura, tanto mais significativas são as forças que a governam, moldam e regulam

(HALL, 1997, p. 35)

Neste capítulo me dedico a descrever o universo que compõe a cultura

rave. Para entender a noção de cultura rave, é importante mostrar de que forma

opero com o conceito de cultura, abordado a partir da perspectiva dos Estudos

Culturais.

Dentro do escopo desta pesquisa, inspirado particularmente em Stuart

Hall (1997), emprego o conceito de cultura entendendo-a como um conjunto de

manifestações produzido socialmente, imerso em regras, crenças, códigos,

ideologias e representado por algumas visões de mundo.

Na revolução cultural verificada nos meados do século XX, as expressões

culturais passaram a desempenhar um papel importante na vida em sociedade. A

cultura, de um modo geral, tem assumido um lugar de centralidade no que diz

respeito à organização das sociedades contemporâneas. É algo que nos diz de onde

viemos e para onde vamos, algo que fomenta o espírito e geralmente faz a vida

habitável.

Com Stuart Hall (1997) analiso o conceito de cultura.

Page 55: Dissertação - Sandro

Os seres humanos são seres interpretativos, instituidores de sentido. A ação social é significativa tanto para aqueles que a praticam quanto para os que a observam: não em si mesma, mas em razão dos muitos e variados sistemas de significado que os seres humanos utilizam para definir o que significam as coisas e para codificar, organizar e regular sua conduta uns em relação aos outros. Estes sistemas ou códigos de significado dão sentido às nossas ações. Eles nos permitem interpretar significativamente as ações alheias. Tomados em seu conjunto, eles constituem nossas “culturas”. Contribuem para assegurar que toda ação social é “cultural”, que todas as práticas sociais expressam ou comunicam um significado e, neste sentido, são práticas de significação [grifos do autor] (Idem, p. 16).

O campo dos Estudos Culturais amplia os significados da cultura. Hall

(1997), quando nos fala da “virada cultural”, afirma que as questões culturais

passam a ocupar uma posição central “ao lado dos processos econômicos, das

instituições sociais e da produção de bens, da riqueza e de serviços” (p.27). Assim,

tal abordagem passa a enxergar a cultura como constitutiva da vida social.

Em concordância com Hall, considero a cultura interpelativa, algo que

chama ao convívio e que passa a delinear um espaço de significação, de

compreensão e de explicação da sociedade em que vivemos.

Segundo Costa, Silveira e Sommer (2003), o conceito de cultura deixa de

ser, gradativamente, um domínio exclusivo da erudição, das tradições artísticas ou

mesmo literárias, e passa a abranger e contemplar os gostos das multidões. “Em

sua flexão plural – culturas – e adjetivado, o conceito incorpora novas e diferentes

possibilidades de sentido. É assim que podemos nos referir, por exemplo, à cultura

de massa, típico produto da indústria cultural ou da sociedade techno

contemporânea” (idem, p. 36). Os Estudos Culturais foram eficientes no sentido de

desconstruir ou mesmo reformular um conceito de cultura. Isso revela que diante da

produtividade do conceito de cultura, hoje tem sido melhor falar de culturas em vez

de falarmos em cultura.

Os Estudos Culturais, em sua ampla gama de abordagens, indicam uma

maneira de olhar para a cultura, ou melhor, inúmeras maneiras de ver culturas,

analisando-as como algo que atravessa distintos campos do conhecimento. Mas,

também, qualquer coisa que, ao mesmo tempo, orienta nossas práticas cotidianas.

Nos Estudos Culturais, a cultura é pensada sob uma perspectiva mais antropológica

do que crítica. E, partindo dessa compreensão, os sujeitos produzem e reproduzem

Page 56: Dissertação - Sandro

uma cultura (ou as culturas), atravessando um domínio para além do material. A

cultura passa também a ser estudada sob uma instância simbólica, no sentido de

construir significados.

Os sujeitos, ao forjarem sentidos sobre determinadas práticas, eles

mesmos constroem esta cultura, instituindo modos de viver, de ser, de experimentar,

de habitar, de compreender a si mesmo, aos outros e as coisas ao seu redor. Em

outras palavras, entendo a cultura como constituidora de sujeitos e produtora de

identidades.

Haja vista a pluralidade de artefatos que nos convocam cotidianamente,

os significados culturais podem ser tramados nos mais variados espaços. Seja pelos

aparatos midiáticos, pela escola, pela família, pela igreja, pelos amigos, pela

internet, mas igualmente através dos ambientes de entretenimento e lazer tais como

as festas, os espaços virtuais e os shopping centers, somos incitados a agir e

construir determinadas percepções de mundo.

A cultura impregna o cotidiano dos sujeitos e, em intensidades variadas,

nos interpela através de diversas narrativas, das inúmeras batidas e dos distintos

sons, da proliferação de imagens, dos apelos publicitários, entre outros. Ela tem se

tornado central na vida dos sujeitos porque determina, representa e significa formas

de ser e conviver em sociedade. A centralidade da cultura é indicada aqui, segundo

Hall (1997), através da maneira como a cultura penetra em cada recanto da vida

social contemporânea, propagando textos culturais dirigidos a uma infinidade

heterogênea de receptores.

As revoluções tecnológicas têm desenhado os cenários mundiais. Elas

influenciam nossos saberes, nossos modos de vida e o nosso próprio jeito de

atuarmos como indivíduos. A mídia, do mesmo modo, com seus aparatos

tecnológicos, pode ser considerada uma das grandes propulsoras da expansão

cultural, e os meios de comunicação, os principais canais de circulação de imagens

e informações. Assim, passam a constituir certos modos e poderes de regulação

sobre os sujeitos.

Em função da velocidade com que as informações circulam, em grande

parte, fruto dos processos de globalização e da sofisticação tecnológica, temos sido

tomados pelas mais diversas instâncias no sentido de produzir e reproduzir

discursos sobre o que vestir, o que comer, o que ler, ouvir ou assistir.

Page 57: Dissertação - Sandro

Logo, para que se possa pensar numa determinada produção da cultura

rave, uma série de discursos foram sendo construídos e tomam parte num complexo

que, em constante ação, convoca essa juventude a participar dessa cultura e

permanecer nela. Não se trata de uma simples festa que gera uma cultura com o

objetivo de convidar ao divertimento. A cultura rave é mais do que isso. É um

emaranhado de acontecimentos que convocam, capturam e direcionam desejos,

geram vibrações, congregam, estimulam experiências coletivas e a aproximação

entre os participantes, embora as aproximações não sejam duradouras, mas

episódios fugazes.

Autores que discutem o cenário rave, entre eles Saunders (1997),

Reynolds (1998) e Fritz (1999), partem do entendimento de que a cultura rave se

define por um conjunto de manifestações associadas à música eletrônica,

envolvendo componentes visuais e identitários, redes tecnológicas de comunicação,

consumo de drogas, variados estilos de som, formação de tribos e itens de

consumo. Assim, a intenção da pesquisa também foi a de explorar e mostrar de que

forma esta cultura engendra determinados tipos de sujeitos.

2.1 O urbano e o eletrônico: o encontro da cultura eletrônica com a terra da

bossa nova

Para desenvolver este estudo, recorri a uma apurada revisão bibliográfica

de obras que contavam e discutiam a trajetória da música eletrônica, seus processos

de produção, as tecnologias envolvidas e seu desenvolvimento ao longo dos anos.

Além disso, também foram constatados alguns métodos utilizados nos processos de

expansão e divulgação deste tipo de som, bem como sua entrada em território

brasileiro.

Como já mencionei, a difusão da cultura da música eletrônica,

acentuadamente em evidência na década de 90, está diretamente relacionada aos

avanços e transformações dos meios de comunicação de massa e ao

desenvolvimento das tecnologias digitais, sendo a internet sua maior vitrine.

No tocante ao campo da música eletrônica, minhas pesquisas estão

centradas em dois autores o inglês Simon Reynolds (1998) e o canadense Jimi

Page 58: Dissertação - Sandro

Fritz (1999). Reynolds é considerado um dos maiores nomes da critica inglesa

quando o assunto é gênero musical. Jimi Fritz é músico, produtor, diretor de cinema

e descreve aspectos essenciais para a compreensão do cenário das grandes

metrópoles no surgimento da cultura da música eletrônica e das festas rave.

A imagem do futuro vista nas capas das revistas, nos outdoors, nas

bancas de jornal, nos filmes, nos sites da internet, nas embalagens de produtos e

em anúncios publicitários, geralmente ilustra o perfeito enlace entre o

desenvolvimento tecnológico e seu impacto, sempre indicado como “benéfico”, na

vida dos seres humanos. A tecnologia tem se tornado uma parte anexa, ou melhor,

anexada do cotidiano. Filmes, músicas, jogos de videogame, ipods27, telas de

plasma, home teathers, homebank, celulares, palmtops e uma infinidade de artefatos

que atravessam nosso dia-a-dia envolvem intensa tecnologia de ponta, assinalando

a evolução tecnológica como um elemento inconteste para a melhoria de vida e

definição de seus contornos.

O som eletrônico nasce nos anos 50, na mesma corrente das tecnologias

digitais, sendo produzido primeiramente em laboratório junto à evolução da

microinformática. A música eletrônica está assentada e programada de acordo com

uma série de repetições e sequências. Embora pareça controverso discorrer sobre

sequência e repetição ao mesmo tempo, a estrutura desse tipo de som se arranja a

partir de camadas que ditam e ordenam elementos, mesclando timbres, batidas,

ritmos e melodia.

O aparecimento do moog (sintetizador portátil) e dos samplers (máquinas

que retiram amostras de sons para serem recolocadas e repetidas infinitamente)

abriram caminhos para novas formas de se produzir música através da manipulação

eletrônica (SOUZA, 2001). Outro equipamento que influenciou o desenvolvimento da

música eletrônica foi o prato de toca-discos, mais conhecido pelo seu nome em

inglês — turntable.

É preciso alertar, contudo, que esta pesquisa não pretende discutir ou

analisar os elementos técnicos que fizeram com que a música eletrônica se

expandisse. Meu propósito é meramente descritivo, cabendo pontuar o

aparelhamento que considero fundamental para um entendimento da composição da

música eletrônica.

27 Ipod é uma marca registrada da empresa Apple e refere-se a uma série de tocadores de áudio digitais projetados e vendidos por esta marca.

Page 59: Dissertação - Sandro

Quanto à forma de projeção da música eletrônica, Fritz (1999, p.55) 28

afirma que “não se trata somente de manipulação e transformação de sons já

existentes. É também uma criação completamente nova, sons originais jamais antes

vibrados no ouvido humano”.

Com a consolidação do estilo musical nas pistas de dança de todo o

mundo, surge o papel dos DJs29. Principal artista da cena musical eletrônica, o DJ

explora elementos como espacialidade, ambientação, atmosfera, movimento e

modulação.

A batida eletrônica também busca levar as pessoas a sensações que

“induzem” percepções próximas à batida do coração e ao pulsar dos músculos.

Canevacci (2005) consegue descrever, de forma breve, o que o som eletrônico pode

proporcionar:

A música que altera. A música de novos transes, não mais homologáveis de acordo com metodologias passadistas empoeiradas aos transes folclóricos e menos ainda aos transes étnicos. Os novos movimentos techno da música constroem um corpo que se altera e que é atravessado por sons, por batidas por minuto, por ruídos pós-industriais e orquestras pós-fordistas. A rave é a morte da polis. A rave ganha da metrópole. A rave faz pulsar os corpos metrópoles (p. 54).

Ainda segundo o autor, a música eletrônica é propriamente líquida,

“quando passa entre gêneros e autores, quando derrete as memórias fixas, para

fazer fluir novas sensações sonoras” (CANEVACCI, 2005, p.177).

A música eletrônica pode ser classificada de diversas maneiras e vários

autores, inclusive músicos têm feito isso (Souza, Fontanari, Fontes). Porém, para os

objetivos desta pesquisa, classifico-as em quatro grupos básicos: house30, techno31,

28 No original: Electronic music is not only about manipulation and transforming existing sounds. It is also about creating completely new and original sounds that have never before vibrated in a human ear. (FRITZ,1999, p.55)29 Disc Jockey é um artista-técnico que mistura músicas diferentes ou iguais para serem dançadas, usando suportes como vinil, cd ou arquivos digitais sonoros. 30 House – Estilo de música eletrônico que apareceu nos anos 80, em Chigado (EUA). Atualmente existem muitas sub-vertentes do house, tais como: Funky-House, Tech-House, Disco-House, Progressive-House, Electro-House, Acid House, Soulful House, Neo-Jazz-House entre outros. Sua velocidade varia de 110 a 133 bpm’s (batidas por minuto)31 Techno – Originado em Detroit (EUA), no início dos anos 80. Batida seca e repetitiva, sem vocais. Vai de 130 a 140 bpm’s.

Page 60: Dissertação - Sandro

trance32 e drumb and bass33. Há inúmeras ramificações dentro de cada estilo e estas

categorias não são, de forma alguma, absolutas. Cada estilo apresenta uma história,

um formato e seu respectivo desenvolvimento. Meu propósito não é analisar cada

uma das categorias e sim tratá-las como uma grande corrente, a eletrônica.

Como cada estilo apresenta uma história em particular, basta assinalar

também que cada festa rave é guiada por uma inspiração, organizada em torno e de

acordo com o estilo de som tocado no evento. É preciso destacar que essas

categorias não são estanques, ou seja, as barreiras entre os estilos musicais são

borradas, permitindo a mistura e até mesmo um certo ecletismo musical.Techno, por

exemplo, deriva da palavra technologic (do inglês, tecnológico). Isso significa que a

produção desse tipo de material acontece através das interfaces tecnológicas. A

tecnologia, vista por essa ótica, não pode mais ser percebida como algo que se põe

de cima para baixo, mas como algo latente e maleável, uma tecnologia que se

deseja e é desejosa.

A cultura da música eletrônica está inserida dentro do universo jovem e,

por isso, aglutina as mais diversas tribos, incluindo ravers, adeptos da cena fashion

(unindo moda e eletrônica), e aqueles da cena gay (marcada por passeatas e clubes

de música eletrônica), entre outros. Ou seja, o que se observa é uma expressão

ampla que envolve desde os idealismos de paz, amor, união e respeito (PLUR34) até

o envolvimento empresarial (SOUZA, 2001).

A localização das festas está intimamente associada ao tipo de som e à

batida eletrônica indicada pelo DJ do evento. Quando o house (derivado da palavra

em inglês Warehouse, que significa depósito) é tocado, por exemplo, geralmente as

festas são realizadas em galpões ou fábricas em desuso. Uma rave na praia pode

significar o escapismo, um armazém abandonado pode sugerir o declínio da

industrialização e do fordismo, e uma quadra de esportes pode ser a própria

inserção da diversão no circuito comercial.

32 Trance – Criado na Alemanha, já é uma derivação do techno. Texturas se sobrepõem às batidas. Som viajante. O hard trance acelera as batidas para até 150 bpm e o psy trance (em torno de 138/150 bpm’s) aumenta as camadas de texturas e efeitos sonoros e mistura com trechos de sons étnicos indianos. O trance usa a estrutura e bpm da house ou do techno. 33 Drum and Bass – originário dos guetos negros de Londres (1991/92) esse estilo, saído da cena Hip Hop, associa os baixos potentes com batidas sincopadas. Pode se associar a outras estéticas, como o Jazz, fazendo surgir o jazzy drum and bass, ou no caso brasileiro à MPB,com os DJs e produtores Marky, Xerxes e Patife. Seu ritmo apresenta 160 bpm’s. Disponíveis em: Pragatecno, http://www.pragatecno.com.br. Acesso em: 23 maio. 2008.34 PLUR do inglês peace, love, union and respect.

Page 61: Dissertação - Sandro

Segundo Canevacci (2005), quando as raves acontecem em locais

abandonados, expressam uma celebração eufórica da crise da civilização industrial

e o desvio dos escombros-de-cimento para cimento-em-revolta.

A profissionalização das festas despertou o interesse de grandes

empresas em associarem suas marcas ao público jovem. Com um início

relativamente tímido, as raves eram uma alternativa para poucos. Não se imaginava

esse tipo de evento como uma festa massificada. Passada pouco mais de uma

década no Brasil, as raves fazem frente a eventos mais tradicionais como as

micaretas35 de carnaval e as casas noturnas. Atualmente, as raves transformaram-se

de zonas proibidas a espaços programados para o prazer. A cada final de semana,

algo em torno de dois milhões de pessoas por todo mundo participam das festas

rave.

Nos últimos anos, a música eletrônica cresceu poderosamente. Eventos

de “música para dançar” tornaram-se uma parte integrante dos movimentos da

juventude, incorporando DJs, dançarinos e performances variadas36. A música que

não acaba e o alto nível de bpms (batidas por minutos) são significativos construtos

desse tipo de entretenimento.

O suporte de divulgação independente, exilado das mídias comerciais,

sempre esteve conectado à tecnologia. Produzida e gerada na microinformática e

em tecnologias dela decorrentes, a música eletrônica atrela característica de

autonomia e centralização do processo. Com um pequeno aparato tecnológico, o

produtor musical ou mesmo o DJ pode criar seu próprio som (techno, house, etc.)

sem compromissos contratuais e/ou comerciais. E a internet, por sua vez, é o

espaço mais utilizado para a promoção de eventos, reportagens e fóruns sobre o

tema.

De acordo com Fritz (1999), hoje se pode escutar um techno ou mesmo

um drum and bass nas trilhas sonoras de filmes e propagandas. Tanto que não é

preciso ouvidos apurados para observar as vinhetas dos principais telejornais e as

aberturas de alguns programas televisivos. Muitos deles, inscritos dentro de uma

ordem tecnológica, utilizam-se dessa ferramenta e desse estilo de som como forma

35 Micareta é um nome que se convencionou chamar, no Brasil, o "carnaval fora de época”. 36 A tese de Airton Tomazzoni dos Santos, intitulada Lições de dança no baile da pós-modernidade: corpos (des)governados na mídia, vai mostrar quanto a dança está sendo incorporada como uma pedagogia contemporânea direcionada a variados objetivos.(Doutorado em Educação) Universidade Federal do Rio Grande do Sul,2009.

Page 62: Dissertação - Sandro

de “capturar” e convocar o espectador.

Fritz (1999) assegura que a “eletrônica está mudando a forma como

classificamos uma música, borrando-se fronteiras entre gêneros, forçando–nos não

somente a ouvir mais atenciosamente, mas requerendo desenvolvimentos novos

nas habilidades de escuta” [tradução minha] (p. 75). 37

Nesta pesquisa, o termo música rave ou na sua forma inglesa rave music,

serve para designar qualquer música eletrônica tocada nas festas rave.

O agrupamento de uma série de sons, estruturas, poliritmos e gêneros

diferentes faz com que se crie um painel sonoro que tem um objetivo específico —

fazer ouvir quem escuta ou dança. A vibe38, ou seja, a atmosfera criada em torno das

vibrações, é a responsável pelo que é sentido por cada participante, possível

somente na presença do coletivo.

Uma cultura da música eletrônica, que opera como inspiração identitária,

só chegou ao Brasil no final da década de 80. Foi a partir dessa época que o país

começou a integrar-se de vez no cenário eletrônico mundial. Anos mais tarde,

apareciam as primeiras raves brasileiras. No início, somente na região de São Paulo

e, logo em seguida, espalhando-se por outras metrópoles brasileiras. Além disso, os

DJs brasileiros passaram a ganhar prestígio no cenário musical eletrônico

internacional.

Desde seu início, no final dos anos 80 quando as primeiras raves

enfrentavam perseguições da polícia, devido a sua associação ao consumo de

drogas o cenário musical eletrônico mudou muito. Dispersou-se por vários países,

acompanhou o surgimento de novos estilos, passou a fazer parte do circuito

mercantil (recebendo milhares de pessoas numa mesma festa e propagando uma

gama de produtos) e, por fim, tornou-se um conjunto de manifestações culturais.

Esta cultura da música eletrônica, onde se engendram produção, difusão e

animação de festas, passa também a ditar influências na moda e nos

comportamentos dos jovens contemporâneos.

37 No original: Electronica is changing the way we classify music, blurring the boundaries between genres, forcing us to not only listen more closely but requiring that we develop new listening skills (FRITZ, 1999, p.75).38 Do inglês vibe significa o estado emocional de uma pessoa ou a atmosfera de um ambiente.

Page 63: Dissertação - Sandro

2.2 A droga e a festa: o Ecstasy como válvula de escape

Sábado, 12 de setembro de 2009. Athmosphere39 é o nome de uma das

festas rave que frequentei. Localizada no Sitio Pousada da Figueira, na cidade de

Viamão, eu e um amigo resolvemos conhecer mais uma das badaladas festas de

música eletrônica do Rio Grande do Sul.

Depois de uma semana de muita chuva em todo o Estado, o final de

semana não foi diferente. O tempo chuvoso dava sinais de que festejar a céu aberto

não seria uma idéia tão atrativa assim. Porém, meu palpite estava completamente

errado. E não era isso o que pensavam os mais de 1000 jovens que foram ao evento

e que, de antemão, já haviam garantido o ingresso antecipado para a festa.

Após dirigir por mais ou menos 30 quilômetros até encontrar o local do

evento, uma fila gigantesca de automóveis em plena rodovia esperava para

estacionar. A esta altura, tinha plena certeza de que a festa iria lotar. O evento era

uma promoção da Rádio Atlântida de Porto Alegre e, para garantir a entrada, além

do valor do ingresso que custava cerca de R$ 30,00 reais, era preciso doar um quilo

de alimento não perecível. Aliás, em várias das raves de que participei, esse tipo de

coleta é bastante comum.

A chuva continuava, o meu carro atolava e, mesmo assim, a

movimentação não parava. Ao entrar no sítio, um grande lago dava as boas vindas,

seguido por uma estrada rodeada de flores e árvores. Logo a frente, já era possível

avistar a pista principal de dança. E, para proteger os frequentadores, um toldo foi

montado próximo ao palco do Dj. Mesmo assim, o que pude observar é que muitos

jovens preferiam permanecer ao relento, aproveitando a música bem próximos às

caixas de som.

O palco principal, como pode ser observado através da fotografia logo a

seguir, trazia na sua montagem e composição, uma mistura de cores fosforescentes

que variavam do verde-limão, do roxo, do laranja ao rosa, passando também pelo

azul e pelo amarelo. Uma decoração montada como se mostrasse tochas de fogo

nas cores já mencionadas.

A festa contava com a participação de um público consideravelmente

39 Informações adicionais através do site http://www.noize.com.br/2009/09/12/atmosphere-120909-sitio-pousada-da-figueira-viamao-rs/

Page 64: Dissertação - Sandro

grande, em vista das condições do tempo. Como no local, além de mim, havia outros

fotógrafos trabalhando para alguns sites de festas de música eletrônica, fui abordado

várias vezes para tirar foto de uma ou outra pessoa. No começo, fotografei algumas

pessoas e tentei explicar qual era o meu propósito dentro da festa. No final, eu já

estava dizendo. Sou pesquisador, não fotógrafo!

Figura 8 – Rave Atmosphere.

Entre alguns motivos, como o mau tempo e o cansaço físico, não

consegui permanecer na rave até o amanhecer e, às 4 horas da madrugada, já

estava me retirando do evento. Para minha surpresa, demorei cerca de 30 minutos

para sair com o carro porque muitos veículos ainda esperavam para entrar.

Dentro do escopo das análises, buscava também observar a presença

do consumo de drogas nos eventos rave. Nessa festa, não percebi qualquer

alteração na movimentação dos jovens que estavam na pista de dança. Porém,

quando avistava alguns poucos já afastados do palco principal e localizados em

cima de um pequeno morro, percebi nitidamente que, ali, eles não estavam somente

dançando, mas consumindo drogas.

Muito embora as drogas estejam presentes, e eu pude observar isso,

parece que as festas rave só começaram a ser associadas ao consumo de drogas

como o Ecstasy, o LSD, a cocaína, anfetaminas, entre outros psicoativos, porque no

início as festas eram chamadas de acid parties.

O acid era um estilo de música que despontava no final da década de 80.

Page 65: Dissertação - Sandro

Como estava intimamente ligado à idéia de psicodelia, fazia alusão ao consumo de

drogas. Este foi um elemento que serviu de inspiração para que os frequentadores

das festas combinassem música eletrônica e drogas. A junção poderia, de certa

forma, potencializar as sensações de curtição e deleite. Era um estilo de música que

emergia o chamado acid house fazendo alusão do acid para ácido, drogas, etc.

Nesta época, o termo “rave” ainda não existia.

Segundo Reynolds (1998), a palavra rave (que significa delirar, falar com

euforia) começa a despontar no cenário comercial no início dos anos 90, reforçando

uma relação da música eletrônica com o Ecstasy e práticas hedonistas. Trata-se de

uma criação da mídia inglesa da época para caracterizar uma grande festa onde se

reuniam milhares de pessoas.

O acid house40 só ganhou atenção no final dos anos 80, na Inglaterra. Na

verdade, esse movimento foi um dos geradores das festas rave, originalmente

denominadas acid parties e tiveram como pátria mítica a ilha de Ibiza na Espanha

(FRITZ, 1999). Segundo o mesmo autor, esse movimento foi essencialmente

marcado pelo consumo do Ecstasy, uma droga sintética a exemplo do LSD. A droga

possui o efeito de otimizar o clima de hedonismo nas festas. O Ecstasy,

primeiramente, foi desenvolvido em 1917, como medicamento.

A ação da droga ocorre sobre os neurotransmissores químicos do

cérebro, como a serotonina, a qual é responsável pela sensação de prazer. O

Ecstasy passou a receber o apelido de “droga do amor”. É uma droga com efeito de

potencialização e promove uma abertura empática em relação aos demais.

A própria música eletrônica discotecada nas raves, com uma textura

sinestésica e seus ritmos excitantes, aumenta o efeito da droga, facilitando a

libertação do corpo e um desprendimento da fala. Reynolds (1998) assim descreve

alguns dos efeitos do Ecstasy.

O efeito da droga é aumentar drasticamente a disponibilidade de dopamina e serotonina, neurotransmissores que conduzem impulsos eletroquímicos entre as células do cérebro. Excesso de dopamina estimula a atividade motora, aumenta o metabolismo e cria euforia. A serotonina é geralmente a reguladora do humor e do senso de bem-estar, mas em excesso, pode intensificar estímulos sensoriais e fazer

40 O Acid House é um estilo de música eletrônica derivado do house. Também se refere ao movimento surgido na Inglaterra no final dos anos 80 que passou a agregar um status cultural às manifestações centradas na e-music. Disponível em http://www.pragatecno.com.br. Acesso em: 22/02/09.

Page 66: Dissertação - Sandro

com que as percepções se tornem mais vívidas, algumas vezes, ao ponto de alucinação (p.83). 41

De acordo com Saunders (1997) apesar de o Ecstasy ter um efeito oposto

ao da ressaca, a maior repercussão da droga, dias depois, envolve fadiga,

depressão, irritabilidade e mudanças de humor entre alegria e desolação. A

dopamina, nesse sentido, é reposta mais rapidamente no organismo do que a

serotonina, que leva em torno de uma semana para os níveis voltarem ao normal.

Mesmo sem nenhuma atividade física, o Ecstasy aumenta a temperatura corporal e

pode causar desidratação.

A droga incita um fervor flutuante, um prazer individual, uma energia que

se mobiliza para lado nenhum e que, em poucas horas, se dissolve. A euforia

causada pela droga reage fortemente no corpo e tem como efeitos, sobretudo, a

fragilidade mental e a melancolia.

Os estimulantes são usados para prover energia e atrasar o sono,

funcionam como um intensificador e maximizador do tempo de lazer. O consumo de

drogas do tipo Ecstasy e LSD também remetem à figura da criança, já que atuam

como desinibidores. Essas drogas reforçam um desapego do plano material em

função de uma busca pelo prazer com o outro, uma busca de ligação, de

pertencimento (SAUNDERS, 1997).

O Ecstasy se diferencia das outras drogas recreativas, na medida de sua capacidade de melhorar a comunicação entre as pessoas. Foi isso que tornou a droga popular em eventos sociais, cruzando a barreira da psicoterapia formal e das experiências de introspecção pessoal. Pode ser que a popularidade da droga reflita alguns problemas da nossa sociedade: isolamento, medo da auto-revelação e da expressão do amor não-sexual. O uso hedonista trouxe-lhe má reputação, mas a utilização social do Ecstasy como uma droga dance tem tantos resultados positivos quanto negativos estes muito mais amplamente noticiados [grifos do autor] (Idem, p. 251).

Ainda segundo Saunders (1997), que contextualiza brevemente o

consumo de drogas, os hippies, por exemplo, eram consumidores de maconha,

droga que causava um efeito ao estilo calmante. Os punks, por sua vez, já eram

41 Do original: The drug´s effect is to dramatically increase the availability of dopamine and serotonin, neurotransmitters that conduct electrochemical impulses between brain cells. Excess dopamine stimulates locomotors activity, revs up the metabolism, and creates euphoria. Serotonin usually regulates mood and the sense of well being, but in excess it intensifies sensory stimuli and makes perceptions more vivid, sometimes to the point of hallucination. (REYNOLDS, 1998, p.83)

Page 67: Dissertação - Sandro

adeptos do álcool e de “drogas rápidas”, como a cocaína e os derivados da

anfetamina, responsáveis pela aceleração do metabolismo. O MDMA42 já está

totalmente ligado aos ravers, uma vez que proporciona energia, motivação e

entusiasmo.

Os estudos sobre o consumo de drogas entre os jovens (mas não só

entre eles) causam uma certa curiosidade entre os cientistas sociais. Para os

usuários, a urgência ou a necessidade do uso das drogas é simplesmente parte da

diversão. Saunders (1997) leva em conta que “a combinação da droga com música e

dança pode produzir um maravilhoso estado de transe, talvez semelhante aos que

são experimentados em rituais tribais e cerimônias religiosas” (p.50).

As drogas representam, sem dúvida, um dos pontos mais críticos e o de

maior entrave da cultura rave, e seu consumo é o aspecto mais comentado e o mais

visível pela publicação em notícias nos meios midiáticos. Portanto, é impossível

fazer generalizações sobre o uso do Ecstasy e sua relação com as raves. Alguns

artigos, assim como retratos dessa cultura realizados pelos meios de comunicação

de massa, sugerem que o tecido moral da sociedade esteja em risco. Os

frequentadores são descritos como se vivessem fora das fronteiras dos estados de

“normalidade”, “saúde” e “moralidade”.

Conforme a linha de pensamento de Saunders (1997), a grande questão

da cultura rave não pode ser reduzida simplesmente ao consumo de drogas, ou

melhor, a um tipo de droga específico, o Ecstasy. A rave é mais do que música

misturada às drogas. É um manancial de estilos de vidas e comportamentos

ritualizados que forjam certos tipos de sujeitos.

2.3 PLUR: reinventando Woodstock

Ao longo da década de 80 e 90, o fenômeno das festas rave se espalhou

rapidamente pelos países da Europa e, logo depois, por todo o mundo. No início da

década de 1990, as festas começaram a acontecer nos Estados Unidos, sendo

42 MDMA (metilenodioxidometanfetamina) é um composto derivado da anfetamina que possui uma molécula semelhante a um alucinógeno com efeitos moderados que variam entre a sensação de alucinação provocada pelo LSD (ácido lisérgico) e a de excitação criada pela cocaína. Disponível em: http://www.pragatecno.com.br. Acesso em: 20/02/09

Page 68: Dissertação - Sandro

produzidas, principalmente, na Costa Leste. E a base de uma filosofia da cultura

rave está atrelada aos eventos rave de mesma inspiração que vinham ocorrendo em

solo norte-americano no mesmo período.

Chiaverini (2009), assim conta o surgimento de uma filosofia conectada

às raves.

Numa dessas festas, que reuniu mais de cinco mil pessoas num galpão abandonado do Queen, um DJ chamado Frankie Bonés, inspirando-se no espírito das raves inglesas, resolveu parar a música por alguns instantes e fazer um discurso. Falou sobre paz, amor, união e respeito, valores que mais tarde seriam resumidos numa palavra formada por suas iniciais em inglês: PLUR (Peace, Love, Union, Respect). Até hoje, ravers de todo o planeta usam as quatro letras para resumir as bases de sua cultura [grifos meu] (p. 50).

Este conceito PLUR surgiu a partir desta festa histórica em Nova York,

onde dois grupos de gangs rivais estavam prontos para uma briga. Foi quando

Frankei Bonés baixou o volume do som e, ao microfone, proferiu uma mensagem

pedindo paz, amor, união e respeito. O discurso terminou com o som aumentado a

todo volume e um mar de ravers balançando suas mãos no ar. Frankie não sabia

que do seu discurso nascia uma importante parte da história das raves.

A doutrina PLUR foi abraçada pelos jovens adeptos da cultura rave e,

agora, forma a base de um movimento global. Dos congelantes fiordes da Finlândia

até as praias escaldantes do Brasil, paz, amor, união e respeito tornaram-se

elementos de uma potente e positiva “frase de efeito” para essa nova geração.

Simplificando:

Peace (paz) - a promoção da paz com as pessoas ao seu redor.

Love (amor) - estar em contato com o próximo.

Union (união) - a união para as causas universais de paz e amor.

Respect (respeito) - para compreender a diversidade de culturas,

gêneros, sexos, raças, etc.

Hoje, a sigla PLUR já se encontra disseminada, inclusive em marcas de

artigos esportivos e artefatos em geral. Conforme Fritz (1999):

A filosofia básica da cultura rave pode ser resumida no acrônimo PLUR, o qual regularmente aparece em flyers e ingressos em todo o mundo e recentemente têm aparecido no design em marcas de roupas esportivas líderes de mercado. Este simples mantra tem sido

Page 69: Dissertação - Sandro

amplamente aceito como o guia fundamental da cultura rave [grifo meu] (p.203). 43

Estudiosos como Saunders (1997), Reynolds (1998), Fritz (1999),

Chiaverini (2009), Freire Filho (2008) e Ventura (2006) descrevem que grande parte

do ravers (aqui entendidos como aqueles que freqüentam as festas rave) adotam

como filosofia de vida alguns hábitos saudáveis de alimentação. Muitos deles são

vegetarianos, esportistas, gostam de estar em contato com a natureza e são

adeptos da cultura de preservação do meio ambiente. Além desse grupo que

compõe parte dos frequentadores das raves, existem aqueles que não se encontram

envolvidos em nenhum dos aspectos relacionados à sigla PLUR. Chiaverini (2009)

assim os descreve:

Eles não são vegetarianos, não querem saber de religiões orientais e não pregam nada além do culto ao corpo. Usam cabelo raspado ou bem curto, calça jeans e desfilam sem camisa, exibindo músculos depilados, estufados de maltodextrina, sem um grama de gordura. As meninas usam bota plataforma, calças que embalam as curvas a vácuo e tops justos transbordando de silicone. Os homens e as mulheres desse segundo grupo são malvistos pelos ravers conceitos [grifos do autor] (p. 17).

Muitas pessoas acreditam que a sigla PLUR é uma filosofia que deriva da

época do Woodstock. Em parte, isso é procedente porque os hippies foram os

grandes propagadores do “paz e amor”. Apesar disso, essa filosofia não está restrita

aos hippies dos anos 60. Boa parte dos conceitos da cultura rave foi absorvida do

mundo oriental, mais precisamente da Índia, país onde fica localizado Goa, um dos

locais em que teriam surgido as festas rave.

Os jovens da década de 1960 e 1970 saíam às ruas em busca de

mudanças e faziam meditações coletivas para tentar interromper a guerra do Vietnã.

Em pouco tempo, o movimento que pregava a paz adquiriu grande força e espalhou-

se por diversos setores da sociedade. E, entre os ravers, não são poucos os que se

inspiram abertamente no movimento hippie.

Fazendo uma rápida comparação, Ventura (2006) afirma que, depois de

quase quadro décadas passadas do Woodstock, toda aquela efervescência contra

43 Do original: The basic philosophy of rave culture can be summed up in the acronym PLUR, which regularly appears on, rave flyers and tickets all over the world and has recently turned up on various clothing products from some of the leading sportswear designers. This simple mantra has been widely accepted as the guiding principals of rave culture (FRITZ, 1999, p. 203).

Page 70: Dissertação - Sandro

cultural parece ter surtido algum efeito na geração dos jovens de hoje. A história não

se repete, mas tenta. “Nas raves, não há sexo, drogas e rock and roll. Ou melhor,

não há tanto sexo, as drogas são sintéticas e mais abundantes, e o rock virou

trance, house e techno. Mas o espírito ainda é o mesmo, ainda que os tempos não”

[grifos do autor] (VENTURA, 2006, p. 80).

Desenhados a partir de sons, batidas e ritmos, a música eletrônica

movimenta corpos que dentro dos clubs, em ambientes ao ar livre ou em

construções civis abandonadas, trazem vida ao espaço, nem que seja por uma

noite.

Segundo Chiaverini (2009), as raves, nos últimos anos, têm perdido um

pouco do seu caráter original, construído em torno da paz, do amor, da união e do

respeito. Invadidas por jovens que vão à busca de novas drogas, hoje as festas

parecem estar contaminadas por preconceitos e brigas, distanciando-se de sua

inspiração inicial. Essa mudança serviu como estopim para ataques da mídia e de

autoridades.

Para aqueles que se dizem genuinamente ravers, PLUR é uma sigla, mas

que atende a uma espécie de filosofia de vida também. Nessa filosofia, seria preciso

saber cultivar a paz individual e coletiva, sentimentos de carinho e amor para com o

próximo, incitar a união entre todos e respeitar o meio ambiente, bem como aqueles

que estão ao seu redor, independentemente de credo, raça, religião ou opiniões.

É esse espírito que tem rondado algumas festas rave, onde

comportamentos comuns de simpatizantes da cultura eletrônica do Brasil, da

Inglaterra, dos Estados Unidos, da Índia ou da China são igualmente percebidos.

Torna-se importante assinalar que toda essa corrente só é possível graças à

cibercultura, que forma mosaicos, os quais, conectados uns aos outros, criam uma

tessitura global.

2.4 Moda Rave: um encontro com o lúdico

A moda, um conceito tão discutido e corriqueiro na atualidade, nem

sempre foi um assunto de pauta. Durante milênios, homens e mulheres primavam

Page 71: Dissertação - Sandro

pela manutenção das tradições, e as roupas reproduziam e mantinham as

aparências e valores da época.

De acordo com Lipovetsky (2006), a partir do final da Idade Media, já é

possível observar uma ordem da moda, com seus sistemas, algumas metamorfoses,

movimentos intensos de transformações e extravagâncias. É diante de um reino

permeado pela efemeridade e pela novidade que a moda se estabelece e cria

raízes.

[...] enquanto nas eras de costume reinam o prestígio da antiguidade e a imitação dos ancestrais, nas eras da moda dominam o culto das novidades, assim como a imitação dos modelos presentes e estrangeiros — prefere-se ter semelhança com os inovadores contemporâneos do que com os antepassados (LIPOVESTKY, 2006, p.33).

Diante da consagração do instantâneo, do efêmero, do descartável e do

obsoleto, a moda passou a fazer parte da vida dos indivíduos e também a ditar

algumas regras nas ordens de consumo, uma vez que “durante a mais longa parte

da história da humanidade, as sociedades funcionaram sem conhecer os

movimentados jogos das frivolidades” (LIPOVETSKY, 2006, p.27).

Hoje, a moda está calcada na depreciação do antigo, mas também na sua

revalorização, na constituição de significados, na interpelação por conta da

publicidade, na mobilização que adereços, objetos e roupas em geral suscitam na

vida de uma infinidade heterogênea de consumidores. A moda é considerada “[...]

uma prática dos prazeres, é prazer de agradar, de surpreender, de ofuscar. Prazer

ocasionado pelo estímulo da mudança, a metamorfose das formas, de si e dos

outros” (LIPOVETSKY, 2006, p.62).

A relação entre moda e música eletrônica tem influenciado algumas

tendências, formas de se vestir, de se comportar, de estar e habitar o mundo

contemporâneo. No início, havia uma vestimenta comum associada aos sujeitos-

rave, mas com o tempo, essa tendência de moda dissipou-se.

Fritz (1999) ressalta que a maneira streetwear e as formas andrógenas de

vestimenta permearam boa parte da cena rave no final dos anos 80 até a década de

90. Com a multiplicação dos eventos de música eletrônica, bem como sua

disseminação a uma imensa parcela heterogênea de jovens, as disposições se

alteraram.

Page 72: Dissertação - Sandro

O que observei durante as festas é que um estilo mais despojado e

esportivo tem invadido as raves. Geralmente, os jovens estão vestidos com

camisetas esportivas, tênis e calça jeans. Hoje, as roupas dependem mais do clima

e do lugar onde as festas acontecem. Entretanto, o mais distintivo e puro caráter da

rave fashion style é chamado de “candy” 44. A moda candy envolve adereços

coloridos que vão desde colares de néon, braceletes, pulseiras brilhantes, jóias, até

chapéus divertidos em cores fortes e berrantes. Todos estes adereços do tipo

“candy” hoje invadem outros nichos celebrativos e de mercado, enfeitando e

animando festas de casamento, aniversários, formaturas e bailes de carnaval.

Figura 9 - Jovens adeptos da Moda Candy45

44 Candy, do inglês, significa doce, bala, etc.45 Figura 9 - Foto disponível em http://www.flickr.com/photos/18623248@N00/2917214459

Page 73: Dissertação - Sandro

Figura 10 - Candy Raver em evento de música eletrônica (São Francisco-EUA)46

Talvez as duas fotografias anteriores (fig. 8 e 9) sejam bem emblemáticas

e até um pouco exageradas para o que pretendo mostrar. Mas é exatamente neste

excesso que um conjunto de artefatos da cultura rave pode ser observado. A

começar pelos cabelos pintados e pelos inúmeros colares que lembram doces e

peças de brinquedos do mundo infantil. Essas vestimentas retratam, de certa forma,

o espírito de alegria e descontração que ronda as festa rave.

Entre as minhas observações, o que pude notar é que os jovens que hoje

frequentam as festas rave (analisadas aqui a partir dos eventos de que participei)

usam adereços coloridos e marcantes, mas eles não estão assinalados de forma tão

alegórica como nos jovens expostos nas fotos. As vestimentas coloridas não estão

inscritas na roupas, mas no detalhe de uma tatuagem à mostra, na pulseira e colar

brilhantes ou mesmo em um tênis chamativo. O que pude apreender também é que

a decoração desses eventos é o ponto de destaque das festas. Os palcos são

montados com bastões fluorescentes, tecidos de cores cintilantes, aparelhagens

com tecnologia de ponta, shows pirotécnicos e de malabarismos.

Enfim, uma moda que surgiu na cultura rave encontra-se espalhada por

inúmeros espaços festivos e de celebração, apostando num conceito

contemporâneo de divertimento. Uma maneira atual que inclui decorações coloridas,

46 Foto disponível em http://www.flickr.com/photos/loupiote/2470068747

Page 74: Dissertação - Sandro

lugares inusitados e longa duração. Também é importante lembrar que alguns

adereços coloridos e vibrantes que fazem parte da indumentária apresentam

duração efêmera. Pulseiras cintilantes duram somente o momento da festa e, logo

depois, dissipam-se, perdem seu brilho e cor, restando um objeto despido dos

atributos que o fazia especial.

As roupas apresentam uma importante função. Vistas como um elemento

de comunhão, têm circulado como um símbolo de respeito, amizade e afeto.

Brinquedos do mundo infantil como pirulitos, lasers, ursos de pelúcia e outros

objetos celebram uma certa dimensão lúdica e ingênua do evento. Para alguns

ravers, esses brinquedos criam uma atmosfera inocente, já para outros, a

interpretação é a de que eles funcionem como uma válvula de escape para

amortecer a realidade do dia-a-dia.

2.5 Buscando um jovem no www – um passeio entre as redes sociais online

A rede mundial de computadores, internet, concebida enquanto um

espaço de dimensão global, arquitetada como um ambiente desprovido de

fronteiras, e por isso, habitável por qualquer um que tenha acesso à rede,

“territorializa” determinados tipos de comunidades. Para além das instituições que

formavam os pilares da modernidade como a família, a escola e a igreja, hoje, outras

instâncias e espaços culturais também se tornam centrais na produção de

subjetividades e identidades.

As tecnologias de comunicação e informação corroboram algumas

transformações nas formas de compor e recompor culturas, forjar identidades e

disseminar modos de ver e pensar. Dessa forma, as ferramentas virtuais de

comunicação ocupam lugar de destaque no arranjo social de indivíduos dentro do

cenário contemporâneo.

Uma sociedade em rede, segundo Castells (1999), é aquela que se forma

a partir de circuitos de informação oriundos do avanço das tecnologias com base na

microeletrônica o embrião da internet.

Neste sentido, o termo cibercultura passou a ser utilizado para designar

qualquer composição social moldada no ambiente virtual ou ciberespaço. Segundo

Page 75: Dissertação - Sandro

Lemos (2003), essas comunidades estão ampliando e popularizando a utilização da

internet e de outras ferramentas tecnológicas de comunicação.

Uma entre as muitas acepções da palavra cibercultura que ajudou a

popularizar o termo no Brasil foi indicada por Lemos, quando do lançamento da obra

de mesmo nome em 2002. O autor define a cibercultura como a forma social e

cultural emergente das relações entre a sociedade e as tecnologias. A cibercultura,

conforme Lemos (2003), pode ser entendida a partir dos vários desdobramentos no

âmbito histórico, social, econômico, cultural, ecológico e teria sua origem diante de

um cenário descrito como pós-moderno, derivado da falência das metanarrativas e

da criação de outras possibilidades de comunicação.

Dos flyers à web, a convocação dos jovens para o universo da música

eletrônica ocorre através dos componentes ligados ao desenvolvimento das

tecnologias digitais de comunicação e informação. Distante da sua esfera original,

onde as informações sobre os eventos rave se expandiam de forma clandestina e,

principalmente, no boca-a-boca, hoje a internet satisfaz essa demanda, formando

tribos, reunindo e divulgando uma infinidade de materiais relativos a este universo.

Para Lemos (2003), a cibercultura ocupa lugar especial no desenho da

cultura rave. A cultura da música eletrônica é a própria expressão da cibercultura

contemporânea por ser uma apropriação social das tecnologias digitais.

O cenário eletrônico musical tem se utilizado das mídias alternativas para

a divulgação dos eventos através de mensagens via celulares, sites de divulgação

de festas, chats, listas de discussão na web, comunidades virtuais e redes sociais.

As ferramentas comunicacionais legitimam uma aproximação entre a cultura

eletrônica e as novas tecnologias.

A cibercultura que se forma sob os nossos olhos, mostra para melhor ou para pior, como as novas tecnologias estão sendo, efetivamente, utilizadas como ferramentas de uma efervescência social (compartilhamento de emoções, de convivibialidade e de formação comunitária). A cibercultura é a socialidade como prática da cultura (LEMOS, 2003, p. 96).

A rápida velocidade e o poder com que a mídia dissemina informações

transformam a maneira como as pessoas vivenciam o tempo e o espaço. Inúmeros

fatos são noticiados todos os dias, das mais variadas formas (mídia impressa,

eletrônica, televisiva, digital) e pelos mais distintos canais de comunicação

(televisão, rádio, internet, etc.). Ao mesmo tempo em que se tem a impressão de

Page 76: Dissertação - Sandro

poder de escolha, podendo filtrar, entre as muitas informações, aquelas que

realmente interessam, também se mantém um sentimento de confusão, já que se

torna difícil operar com demasiada e excessiva oferta de informação.

A multiplicidade de acontecimentos que são veiculados 24 horas por dia,

de alguma maneira, serve para alertar que uma cultura apressada e veloz produz

outras formas de habitar o espaço e o tempo. Em qualquer site, é possível visualizar

imagens, escutar músicas, assistir vídeos e ler textos. São múltiplas e interativas as

formas de recepção e as convergências das mídias.

Du Gay (apud Hall, 1997) ajuda-nos a entender:

(...) a nova mídia eletrônica não apenas possibilita a expansão das relações sociais pelo tempo e espaço, como também aprofunda a interconexão global, anulando a distância entre as pessoas e os lugares, lançando-as em um contato intenso e imediato entre si, em um “presente” perpétuo, onde o que ocorre em um lugar pode estar ocorrendo em qualquer parte (...). Isto não significa que as pessoas não tenham mais uma vida local que não mais estejam situadas contextualmente no tempo e espaço. Significa apenas que a vida local é inerentemente deslocada que o local não tem mais uma identidade “objetiva” fora de sua relação com o global [grifos do autor] (p.18).

Com o reconhecimento desses espaços e da relevância que os mesmos

apresentam, compreende-se que um conjunto de redes eletrônicas virtuais, serviços

e produtos articulados ao ciberespaço como os sites pessoais ou institucionais, os

blogs47, as salas de bate papo e as redes sociais online48, compõem um dos

elementos que formam a cultura rave.

O universo empírico da minha pesquisa, relacionado às redes

tecnológicas de comunicação, surgiu a partir do site de relacionamento Orkut. Foi

neste espaço virtual que iniciei as aproximações e abordagens ao universo rave.

Fóruns, comunidades, convites para festas — tudo girava e passava pela rede

social, mas as informações não se encontram limitadas a este espaço.

47 Blog é uma página na web que serve como uma espécie de diário virtual, onde os blogueiros (como são chamadas as pessoas que tem blogs) divulgam inúmeras notícias, fatos cotidianos, acontecimentos importantes nas suas vidas. Porém, os blogs não estão restritos a isso. Existem blogs que abrangem os mais variados tópicos desde economia, política, cultura, educação, etc. E muitas vezes, meios de comunicação, por meio de seus funcionários tais como repórteres e colunistas, mantêm blogs atualizados com o intuito de formar novos leitores e divulgar seus trabalhos.48 Quando uma rede de computadores conecta pessoas, isso é uma rede social. Uma rede social é um conjunto de pessoas (ou organizações ou outras entidades sociais) conectadas por um conjunto de relações sociais, tais como de amizade, trabalho ou assuntos específicos.

Page 77: Dissertação - Sandro

A rede social Orkut, lançada em janeiro de 2004 pela empresa Google,

tem como meta ajudar os membros a cria novas amizades, reencontrar amigos e

oferecer oportunidades de fundar comunidades de interesse. A rede visa também

reunir pessoas por afinidades, que podem se agregar de acordo com determinados

temas tais como esporte, religião, tecnologia, televisão, rádio e até mesmo alguns

hábitos cotidianos.

Atualmente, é possível observar a expansão das redes sociais online e,

hoje, são tidas como instrumentos poderosos de comunicação e de grande

popularidade, especialmente entre o público jovem. Blogs, chats49, MSN

Messenger50, Orkut, MySpace51, Facebook52, Twitter53, LinkedIn54, entre outras redes

sociais, são praticamente ícones desta geração que adentra a primeira década do

século XXI.

No início, procurei me aproximar dos participantes dos eventos rave

enviando, trocando mensagens e solicitando informações sobre as festas. No

decorrer de dois meses, minha caixa de e-mails transbordava com convites,

inclusive com promoções de agências de turismo especializadas em levar e trazer

os ravers de festas que aconteciam longe dos centros urbanos, além de cruzeiros

em transatlânticos com proposta de festas rave.

Lemos (2003) alerta que, pela primeira vez na história, qualquer pessoa

(haja vista suas habilidades) pode receber e transmitir informações em tempo real,

sob diversos formatos e para qualquer lugar do planeta. A rede mundial de

computadores surge como elemento máximo da cibercultura e funda uma era de

conexão globalizada e instantânea. Em sua modulação móvel, a internet se encontra

cada vez mais deslocada de espaços fixos, lugares e territórios. É a revolução do

49 Chats são as chamadas salas de bate-papos dentro dos espaços virtuais.50 Programa de troca de mensagens instantâneas em que diferentes indivíduos podem conversar em tempo real. Icq, Skype, Google Talk, entre outros, são programas similares.51 Uma entre as diversas redes sociais, o MySpace tem uma peculiaridade de ser uma rede mais voltada para a disseminação de músicas e dos trabalhos de artistas. Página oficial disponível em: http://www.myspace.com. Acesso em: 7 out. 2009.52 Facebook é uma rede social on-line a exemplo do Orkut. Ela apresenta os mesmo elementos que compõe uma rede social. O Facebook atingiu a cifra de 40 milhões de integrantes no semestre de 2007. Página oficial disponível em: http://www.facebook.com. Acesso em: 9 out. 2009.53 O Twitter é uma rede social para microblogging que permite aos usuários enviarem e lerem atualizações pessoais de outros contatos (em textos de até 140 caracteres, conhecidos como "tweets"), através da própria Web, por SMS e por softwares específicos instalados em dispositivos portáteis como celulares. Disponível em : http://www.twitter.com .Acesso em: 9 out. 2009. 54 LinkedIn é uma rede de negócios fundada em Dezembro de 2002 e lançada em Maio de 2003. É principalmente utilizada por profissionais. Disponível em: http://www.linkedin.com. Acesso em: 10 out. 2009.

Page 78: Dissertação - Sandro

Wi-Fi55.

As comunidades no ciberespaço, geralmente, se formam de maneira

esporádica, casual, e se constituem à medida que os indivíduos navegam pela rede.

Os internautas (como são chamadas as pessoas que transitam pela internet)

encontram, por todo o planeta, pessoas com as quais compartilham os mesmos

gostos, interesses ou afinidades. Lemos (2003) comenta que a vida social na rede é

caracterizada pela fluidez e por uma constante mobilidade.

O ciberespaço é, ao mesmo tempo, lócus de territorializações (mapeamento, controle, máquinas de busca, agentes, vigilância), mas também de reterritorialização (blogs, chats, P2P, tecnologias móveis). Trata-se de afirmar a potência desterritorializante, mas também reterritorializante, das tecnologias da cibercultura (idem, p. 15-16).

Maffesoli (2006) interpreta que a internet serve como um centro para a

comunhão dos santos pós-modernos. É no ciberespaço que se incentivam a

propagação de idéias, valores, práticas e onde qualquer encontro aparentemente

ocasional ou casual tem como único status a valorização do estar-junto. Nas tribos

pós-modernas, um ethos de comunhão é formado por um conjunto de expressões

que nos remetem ao compartilhamento de emoções. A adesão à comunidade ou ao

grupo ocorre, quase sempre, de forma espontânea, fugaz e sem necessidade de um

objetivo ou fidelidade perpétua (MAFFESOLI, 2006).

Na mesma corrente, Canclini (2006) considera que as ferramentas

eletrônicas fizeram surgir outros profissionais que, ao longo do tempo, abarcaram

lugares de antigas profissões.

A inovação estética interessa cada vez menos nos museus, nas editoras e no cinema; ela foi deslocada para as tecnologias eletrônicas, para o entretenimento musical e para moda. Onde havia pintores ou músicos, há designers e discjokeys. A hibridação, de certo modo, tornou-se mais fácil e multiplicou-se quando não depende dos tempos longos, da paciência artesanal ou erudita e, sim, da habilidade para gerar hipertextos e rápidas edições audiovisuais ou eletrônicas. Conhecer as inovações de diferentes países e a possibilidade de misturá-las requeria, há dez anos, viagens frequentes, assinaturas de revistas estrangeiras e pagar avultadas contas telefônicas; agora se trata de renovar periodicamente o equipamento de computador e ter um bom servidor de internet (CANCLINI, 2006, p.35).

55 Internet sem fio

Page 79: Dissertação - Sandro

Com o desenvolvimento das tecnologias voltadas à confecção de material

sonoro, produzir música e publicá-la na internet tornou-se fácil e acessível. O avanço

desta interface tecnológica também ocasionou uma considerável redução nos custos

de produção. Os indivíduos inscritos dentro desse universo passaram a fabricar seu

próprio som por meio de computadores pessoais. O mercado de softwares para a

criação de músicas abriu caminho tanto para a profissionalização dos DJs quanto

para os que a enxergam como um passatempo.

No próximo capítulo da pesquisa, analiso algumas comunidades virtuais

relacionadas à cultura rave. A internet (ciberespaço) serve como um dos elementos

que compõe a cultura rave, seja nas convocações para os eventos de música

eletrônica, seja como um ambiente para promoção e divulgação de DJs, bem como

para a propagação de idéias relacionadas a este universo e suas diversas

manifestações. Assim, enxergo os espaços e as comunidades virtuais como lugares

que corroboram os processos de convocação destes jovens a participar das festas e

incluir-se na cultura rave.

Page 80: Dissertação - Sandro

CAPÍTULO III

CONVOCANDO JOVENS PÓS-MODERNOS PARA A CULTURA RAVE

Eles pulam, eles se abraçam, eles dançam, eles bebem e, muitos deles,

se drogam. O comportamento desse tipo de juventude que vai às festas rave não

pode ser restringido somente ao consumo de drogas, ao hedonismo e ao

divertimento. O conceito que envolve a cultura rave está atrelado a um determinado

estilo de vida que vai se compondo nas nuances de uma sociedade sempre em

movimento. Não há uma definição preestabelecida de comportamentos dentro das

raves, já que as festas são produzidas de acordo com algum tipo de inspiração e

conforme determinado tipo de música eletrônica.

Uma característica marcante nos eventos rave em que estive presente é a

ausência de qualquer forma de preconceito. Não existem rótulos para categorizar ou

marcar distinções de classes sociais, raciais ou mesmo sexuais. Percebo isso

porque os sujeitos-rave não vão às festas com o intuito de retirar-se para namorar,

beijar, ou melhor, esse não é seu objetivo principal. Os jovens têm na diversão seu

foco primordial. E é esse divertimento compartilhado que faz as festas rave

acontecerem.

Quando fui às festas, o que pude observar é que a celebração coletiva

com o outro, que pode até ser um desconhecido, é um retrato característico da

cultura rave. Outro aspecto bem intenso associado à cultura rave é a solidariedade

irrestrita entre seus frequentadores. Em uma das festas que frequentei, quando os

participantes passavam mal por causa do consumo exagerado de drogas ou

bebidas, eles eram atendidos e socorridos prontamente por outros jovens. Mas a

solidariedade não fica restrita a isso. A solidariedade também está para com os

novatos nesse universo. Muitas vezes, ao circular nas festas como observador, era

chamado a dançar com eles, a interagir, era convocado a participar. Não basta estar

no evento, é preciso vivê-lo em comunhão com os demais. A impressão que se tem

Page 81: Dissertação - Sandro

é que, mesmo indo sozinho à festa, você nunca se sentirá só. Sempre vai surgir

alguém para conversar, dançar, se divertir.

Se, nas práticas culturais coletivas da década de 80, já era possível

perceber um crescente estímulo ao aumento dos prazeres corporais, vejo que a rave

está levando isso ao extremo quando alcançamos o final da primeira década do

século XXI. Apesar de poder observar uma grande fragmentação nos formatos das

festas rave, o que une, na cultura rave, é a busca incansável e sempre constante do

limite do prazer.

O que tenho notado igualmente é que o consumo de expectativas é

intensamente maior e mais importante para esses jovens do que qualquer outro tipo

de consumo. Expectativas no sentido de esperar o que vai surgir, qual a próxima

música, qual a próxima batida. E não apenas de música, mas também de tendências

e estilos a serem celebrados. O comportamento do consumidor jovem rave pode ser

visto como um certo culto à aceleração, expresso numa excitante expectativa sobre

as consequências do encontro com as novas tecnologias.

Tudo indica que a fruição começa bem antes da festa. Esses jovens se

preocupam em “esquentar” antecipadamente o evento, postando mensagens em

comunidades virtuais, relatando sua ansiedade para o dia da festa e compondo o

próprio visual. Trata-se de uma certa pré-euforia ou um clima de entusiasmo

antecipado. Assim, pode-se dizer que o acontecimento das festas rave e a

disseminação da cultura desafiam qualquer declaração simplista de que a rave é

uma festa independente e que esgota em si mesma.

Meu objetivo, neste capítulo, é apontar para as principais formas como

essa cultura convoca uma parcela da juventude para fazer parte de acontecimentos

tão peculiares e fugazes como o que venho descrevendo neste estudo. Como

pesquisador, ao tentar me aproximar da cultura rave, fui alvo de suas interpelações

e de suas pedagogias, e pude experimentar um lugar de aprendiz. Foi quando

percebi que pedagogias precisam ser praticadas para que um sujeito se torne um

raver. No meu caso, para aprender com essa cultura foram necessários exercícios

constantes de concentração, porque são tantos os estímulos que povoam o

ciberespaço, as festas e os lugares onde essa cultura circula que, muitas vezes, o

trabalho do pesquisador se torna complicado. É possível olhar para inúmeros

lugares e cada um deles poderia ser objeto de análise.

Page 82: Dissertação - Sandro

3.1 Convocação e espetáculo: aprendendo com as festas rave

A amplitude do fenômeno das festas rave pode ser percebida a partir de

como se denominam os jovens-rave: uma tribo global. A noção de tribo global é vista

aqui por uma perspectiva de simultaneidade, espalhada na procura por lugares

longínquos distribuídos pelos cinco continentes do planeta, e ainda na maneira

encontrada de confraternizar dentro de um mesmo espaço.

Bauman (1999), na obra Globalização, reitera que uma parte dos

processos de globalização se dá através da progressiva segregação espacial.

As tendências neo-tribais e fundamentalistas, que refletem e reformulam experiência das pessoas na ponta receptora da globalização, são fruto tão legítimo da globalização quanto a “hibridização” amplamente aclamada da alta cultura alta cultura globalizada [grifos do autor] (BAUMAN, 1999, p. 9).

Na mesma linha de pensamento, Canclini (2006) afirma que a

globalização é um processo complexo e independente de qualquer raiz ideológica. O

fenômeno da globalização, segundo o autor, permite sua extensão ao campo da

cultura. Predomina hoje uma transacionalização de culturas impulsionada pelas

tecnologias de comunicação, o que faz existir uma justaposição de culturas.

Uma abordagem sobre os grupos juvenis urbanos imersos no cenário

contemporâneo, como os próprios ravers, exige uma análise que identifique a

complexidade dos discursos que envolvem o universo da cultura rave e as práticas

culturais de seus participantes.

Estudos sobre as culturas jovens, como a clubber56 e a raver, estão

frequentemente associadas ao uso de drogas, o que as torna foco de análise

complexa e delicada no campo da educação. As manifestações clubbers ou ravers,

segundo Thompson (2005), são distintas das suas antecessoras, como a cultura

punk e, de fato, necessitam de teorias diferentes para dar conta de suas

idiossincrasias.

56 Clubber é um termo em inglês atribuído a pessoas que frequentam danceterias (os clubs em inglês). Essa nomenclatura foi comum nos anos 90 e ajudou a elevar a cultura noturna pelas metrópoles. No Brasil, o termo clubber designa aqueles indivíduos que são frequentadores das casas noturnas e que em suas vestimentas utilizam-se de acessórios e adereços coloridos e vibrantes.

Page 83: Dissertação - Sandro

A experiência coletiva no modo de festejar dentro das festas rave

estabelece relações típicas de caráter neotribal. As afinidades ali estabelecidas não

se encontram baseadas em vínculos biológicos, institucionalizados, fixos ou mesmo

permanentes. A reunião tribal típica do século XXI vivenciada nos eventos rave se

dissolve ao término da festa, podendo ser reeditada num próximo acontecimento,

com os mesmos ou com outros participantes.

Consequentemente, é preciso atentar ao fato de que, mesmo sendo um

agrupamento tribal disperso e móvel, ele permanece vivo ainda por algum tempo. Os

jovens conectados à cultura rave, quando navegam pela internet através das

comunidades virtuais e pelos sites especializados em música eletrônica, estão, de

certa forma, dando continuidade à festividade e celebrando aspectos dessa cultura.

Seja para tecer comentários sobre a festa, seja para planejar o próximo evento ou

mesmo para baixar as fotografias e as músicas dos Djs, a reunião neotribal do tipo

rave ocorre num espaço delimitado e parece durar um tempo desejado, mas este

tempo é movediço porque, às vezes, sobrevive em outros ambientes.

O que tenho analisado é que esses festejos coletivos são episódios

transitórios, locais e efêmeros, realizados nos finais de semana e organizados para

que os indivíduos vivam aquele universo durante um período e numa esfera com sua

própria orientação. A festa rave ensina aos seus frequentadores que o prazer da

dança e da celebração hedonista não pode ser adiado. A festa rave ensina também

que o espetáculo da tecnologia está a nossa disposição para ser usado, vivido,

consumido, e logo depois, descartado, sem arrependimentos.

O deslocamento físico dos participantes, considerando-se a localização

variada das festas rave, efetiva uma fuga simbólica, mas também um subterfúgio

real do universo das grandes cidades e de suas veemências. O próprio evento tem

um lugar peculiar na vida social dos frequentadores, pois tenta distanciar-se da

lógica e das regras da vida cotidiana, dirigindo-a para um determinado lugar onde o

espetáculo e a “liberdade” podem ser vividos, aceitos e celebrados.

Outra maneira de enxergar a relação das festas rave com a vida

contemporânea pode ser expressa pela forma de festejar, que vai acompanhando os

movimentos cíclicos do dia. As festas perduram, pelo menos, até o primeiro nascer

do sol. É ao amanhecer que, geralmente, cria-se um período de euforia entre os

participantes, comemorando um enlace com a natureza no momento em que

aparecem os primeiros raios de sol.

Page 84: Dissertação - Sandro

O período da noite e da madrugada, por sua vez, é o escolhido para a

realização dos grandes espetáculos e atrações das raves: shows de raio laser,

efeitos fluorescentes, performances variadas, espetáculos de pirotecnia só para

citar algumas das atrações encarregadas de construir um cenário de ludicidade e

divertimento dentro dos eventos.

Para discorrer a respeito da tribo raver, vou ao encontro do pensamento

de Lemos (2006), que diz que não há um padrão para a formação das tribos, uma

vez que elas não precisam se originar em um local situado geograficamente, e nem

ser uma exclusividade da virtualização. As neotribos podem nascer no espaço

virtual, mas do mesmo modo, a partir de uma localização física um país, uma

cidade, um bairro, uma escola, um clube, etc. Essas tribos passam a coexistir e se

relacionar no ambiente virtual, porém as relações não se encontram restritas ao

ciberespaço, visto que também ocorrem interações fora dele. Todo espaço,

independentemente de sua natureza, seja físico ou simbólico, real ou virtual, pode

vir a se transformar em território cultural no momento em que é apropriado pelos

seus usuários.

Mais interessante do que aproximar ou diferenciar essa juventude, o que

se tem observado é que os jovens fazem das festas rave e dos lugares onde elas

acontecem, um ritual do século XXI. A propagação da idéia de que “o futuro é agora”

anuncia uma atitude hedonista que não posterga o prazer.

De acordo com Reynolds (1998):

A dance music há tempos tem sido a casa de duas versões radicais opostas sobre o que significa a rave. De um lado, o transcendentalismo, a nova psycodelia discursiva de planos maiores de consciência imersos na humanidade/terra/cosmos. No outro lado, o Ecstasy e a música rave inserem-se na emergente “cultura rápida” de chutes adolescentes e vibrações baratas; vídeo games, skate, snowboard, bunjee jump, e outros esportes radicais; filmes da blockbuster onde as narrativas são meras estruturas superficiais para a exibição de efeitos especiais espetaculares [grifos meu] (p. 10). 57

57 No original: Dance music has long been home to two radically opposed versions of what rave is “all about”. On one side, the transcendentalist, neopsychedelic discourse of higher planes of conscious merger with Humanity/Gaia/the Cosmos. On the other, Ecstasy and rave music slot into an emergent “rush culture” of teenage kicks and cheap thrills: video games; skateboarding, snowboarding, bungee jumping, and other “extreme sports”; blockbuster movies whose narratives are merely flimsy frameworks for the display of spectacular special effects (BERTMAN, 1998, p. 10).

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Para mostrar a produção do jovem contemporâneo imerso na cultura

rave, trabalho na segunda linha de raciocínio proposta por Reynolds, onde a

movimentação das festas rave está em concordância com as características da

sociedade contemporânea: a velocidade, o imediatismo, o agorismo, entre tantas

outras. Stephen Bertman (apud Bauman 2007) cunhou o termo “cultura agorista” e

“cultura apressada” para demonstrar a forma como vivemos em nossa sociedade.

Revela também que a idéia de juventude está estreitamente ligada ao conceito de

velocidade.

O amor pela juventude, como o próprio poder do agora, está relacionado à idéia de velocidade. Como um tempo de vida com grande vigor, a juventude é o período de maior capacidade de movimento. Para simplificar, quando se é jovem, pode-se mover mais rápido do que quando se é velho e devagar. E mover-se é precisamente um valor da sociedade sincrônica (BERTMAN, 1998, p.50). 58

De acordo com Lemos (2003), as mídias digitais alteraram a percepção

do espaço e do tempo ao oferecer formatos particulares de emitir informações para

além de uma espacialidade. As transformações midiáticas vêm acompanhando a

humanidade desde sua forma mais primitiva, a escrita, e agem como instrumentos

de memória. Passou pelo telégrafo, acompanhou as evoluções no campo da

telefonia, no rádio, na televisão, até chegar à internet, que introduz uma cultura

marcada pelas tecnologias digitais: a cibercultura. Na cibercultura, pode-se estar

aqui e agir à distância (LEMOS, 2003).

O fato é que o mecanismo de comunicação digital permite a divulgação

de informações que podem ser de interesse geral, podendo atrair um grande número

de pessoas, como também permite a difusão de características bem específicas de

uma cultura, a exemplo da rave, de tal modo a despertar interesse de um grupo

determinado e bem específico.

Portanto, nas festas que celebram a cultura rave, os fluxos de linguagens

variados como a da música, a iluminação, a moda e as performances em geral, se

cruzam, vão tecendo afinidades eletivas, dão vida a espaços e configuram territórios

existenciais. Territórios não perenes, mas provisórios, compostos na linha de uma

58 No original: The love of youthfulness, like now´s own power, is related to the idea of speed. As the time of life with the greatest vigor, youth is the period most capable of motion. To put it simply, when we are young, we can “keep up” more readily then when we are old and slow. And “keeping up” is precisely a synchronous society values (BERTMAN, 1998, p.50).

Page 86: Dissertação - Sandro

cultura viajante, em movimento, e que a própria civilização legou à

contemporaneidade.

As festas rave, parte integrante de uma cultura maior, estão intimamente

relacionadas a uma organização dos grupos ou tribos, onde se acham impressas

marcas da cotidianidade desses sujeitos. As festas rave fazem parte da realidade

social e da vida desses jovens e, como tal, expressam ativamente suas vivências,

conflitos e tensões.

Quando se analisa o espaço da raves, considera-se que tal festividade

está menos sujeita a regras (embora elas estejam presentes) e, assim,

hierarquicamente menos estruturadas do que outras formas coletivas de

organização. É pelo estilo de música que gostam de ouvir, pela facilidade com que

lidam com as tecnologias ou mesmo pelo gozo intenso do presente, que a cultura

rave tem sido discutida como uma forma progressiva e pós-moderna de “afirmação

juvenil”.

No imaginário criado ao redor das culturas jovens, as festas rave

apresentam um caráter de liberdade. Podem ser diagnosticados nos acontecimentos

alguns traços que nos fazem refletir, como a fuga das grandes cidades para “outros

lugares”, para além das casas noturnas, para além do muros de concreto, para além

dos espaços da escola, do igreja, da empresa ou da própria casa.

O lugar da cultura rave, ao fazer uso das tecnologias digitais e de saberes

não institucionalizados, deslocou alguns territórios de conhecimento. E as festas,

bem como a própria cultura rave, foram se reinventado, cada qual com suas

ferramentas, suas sonoridades, suas multidões e tribos, suas estéticas, suas

imagens, seus espetáculos e, dentro de seus ambientes, têm produzido

determinados tipos de sujeitos.

As raves e os sujeitos-rave fluem pelos espaços urbanos, estão em

movimento e são impossíveis de serem fixados em um determinado lugar. As raves

existem como um lugar que permite ao indivíduo imaginar um espaço da diferença e

da semelhança, um espaço para experimentar o limite. De fato, nas festas rave, os

sujeitos testam os limites do festejar, os limites do corpo e dos delírios da alma.

Por algumas ou por muitas horas, é possível deixar de lado um mundo

cheio de contradições, competições, conflitos, confusões e adentrar uma esfera

onde qualquer um pode “festejar” o que de fascinante está manifestado nos tempos

pós-modernos: os movimentos, as tecnologias, as cores vibrantes, a interação.

Page 87: Dissertação - Sandro

Elementos que são as leis da ilha, da praia, do galpão ou da fábrica abandonada.

Para alguns, este é o único momento de comunhão. Para outros, pode significar

novas perspectivas de vida. E para muitos, é só um momento de diversão e de

experimentar novas drogas.

O que venho constatando nas festas é que a realização imediata, mas

também sua exaustão, cria e destrói interesses com a mesma velocidade que incita

prazeres cadenciados. Em uma era do consumo volátil, a transitoriedade dos gostos

afronta a durabilidade dos meios e a perenidade dos lugares.

Esses elementos são suficientes para localizar os sujeitos e o movimento

rave como uma celebração pós-moderna que cria, recicla, mixa, descarta e inventa

novas roupagens para coisas velhas.

As raves não representam a resposta para nenhuma crise social e nem

têm tal intenção. São compostas por sujeitos que criam outras formas tribais para

satisfazer necessidades humanas fundamentais e esquecem por algumas horas

uma sociedade cheia de problemas. Participar das festas rave pode ser um tipo de

demonstração afirmativa de valores e de práticas que mudam a maneira com que

uma vasta parcela da população jovem conduz suas vidas e, nesse sentido, pode

ser mais imperativa do que qualquer participação política na acepção tradicional.

3.2 Convocação Virtual: aprendendo nas comunidades do Orkut

Venho mostrando como uma parcela da juventude com características

peculiares e imersa dentro de uma condição entendida como pós-moderna pode ser

analisada olhando-se para alguns elementos que convocam esses jovens. Seja

através do som eletrônico, dos convites ao espetáculo, da celebração coletiva, do

consumo de drogas e dos intensos chamados virtuais, a juventude rave é incitada a

festejar uma fuga da vida cotidiana.

Entre as muitas redes sociais na internet, escolhi o Orkut como foco de

análise. Selecionei tal site de relacionamento por ser uma rede social de grande

alcance e muito acessada pelos brasileiros. Isso não significa que outros espaços

virtuais sejam ignorados. Essa foi uma escolha pessoal porque dentro deste site

consegui me familiarizar e me movimentar com facilidade, já que o Orkut faz parte

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da minha vida há, pelo menos, quatro anos. Sou membro do Orkut desde 2004,

quando do lançamento. O Orkut possui uma estrutura, além das ferramentas

necessárias para sua navegação, onde diferentes espaços podem ser percorridos:

foto principal, perfil do usuário, álbum de fotografias, depoimentos, livros de recados,

rede de amigos e também as comunidades. As últimas, em grande parte,

responsáveis por determinadas construções identitárias dos usuários que, através

de uma série de discursos, acabam influenciando sujeitos para uma tomada de

posição diante de uma infinita variedade de temas.

As escolhas foram pessoais, assim como os filtros que utilizei para a

pesquisa dentro do Orkut. Procurei por comunidades virtuais através de palavras

que representassem algo do universo rave. Portanto, busquei comunidades que se

relacionassem com as seguintes palavras-chave: “rave”, “PLUR” e “rave Rio Grande

do Sul”.

Como minha intenção não é desbravar esse lugar do ciberespaço, mas

mostrá-lo em operação, selecionei três comunidades virtuais. A seleção se deu pela

maior quantidade de membros. Foi uma espécie de categoria que criei para apontar

como os elementos da cultura rave, as informações sobre os eventos e a interação

entre os participantes também ocorrem através das interfaces tecnológicas ─ que

apresentam um papel importante na produção dos sujeitos-rave.

Com a palavra “rave”, o site mostrou mais de 1000 comunidades com

referência ao termo. Algumas comunidades em língua portuguesa, mas muitas

também disponibilizadas em língua inglesa. A comunidade selecionada contava, no

momento em que acessei (setembro de 2009), com a participação de 77.525

membros. A cada dia, quando ingressava na comunidade à procura de outras

informações e atualizações sobre o cenário rave, o número de participantes

aumentava. Em outubro de 2009, a comunidade já contava com 78.273 integrantes.

A partir da análise da comunidade RAVE, é produtivo pensar o

ciberespaço como um lugar que informa e modifica as relações que os indivíduos

mantêm consigo mesmos e com os outros. Na descrição inicial da comunidade, já

está claro que se trata de um espaço virtual destinado exclusivamente para o mundo

da cultura e das festas rave. Confira a seguir a descrição:

Você gosta de festas rave?Está no lugar certo! Pois esta é a primeira comunidade no orkut totalmente dedicada às raves!

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Rave é um tipo de festa que acontece em sítios (longe dos centros urbanos) ou galpões, com música eletrônica. É um evento de longa duração, normalmente acima de 12 horas, onde DJs e artistas plásticos, visuais e performáticos apresentam seus trabalhos, interagindo, dessa forma, com o público. Uma comunidade para compartilhar músicas, divulgar eventos e conversar com quem compartilha o gosto por este tipo de festa e seus estilos musicaisSOMOS CONTRA A APOLOGIA ÀS DROGAS

.ılı.lıllılı.ıllı.DESDE JANEIRO DE 2004 .ılı.lıllılı.ıllı

Figura 11 - Comunidade RAVE

Dentro da comunidade há uma narrativa do que é uma festa rave, e, na

sequência, uma explanação dos objetivos daquele espaço: compartilhar músicas,

divulgar eventos e comunicar informações sobre festas e estilos de som. Logo, na

descrição inicial da comunidade, já encontramos lições sobre como funciona aquele

ambiente virtual, a que tipo de sujeito ele atende e suas razões de existir.

Por se tratar de uma comunidade que iniciou junto ao surgimento do

Orkut, no dia 29 de Janeiro de 2004, esta foi uma das primeiras comunidades

Page 90: Dissertação - Sandro

criadas com exclusiva dedicação ao tema. Talvez isso mostre uma certa

credibilidade da comunidade, haja vista sua quantidade de membros.

Outra observação realizada através desta comunidade é que seus

integrantes participam ativamente dos fóruns, discutindo temas relativos ao consumo

de drogas, trocando idéias e informações. Na página de abertura da comunidade,

um lembrete deixa explícito sua total aversão ao consumo de drogas. No texto da

própria comunidade afirma-se: “Somos contra a apologia às drogas”.

De fato, isso revela aos seus membros que esse lugar do ciberespaço

torna-se sancionável à participação, ou seja, se está diante de um lugar

aparentemente lícito, de boa fé e preocupado exclusivamente com o entretenimento.

Na parte direita inferior da página está o que o site chama de

“comunidades relacionadas”. Na comunidade RAVE, todas as “comunidades

relacionadas” estão atreladas a elementos já mencionados que compõem a cultura

rave, como categorias da música eletrônica, DJs e comunidades específicas de

eventos rave. Já com relação aos “fóruns” apresentados na parte inferior da página,

os mesmos trazem informações sobre alguns sets de DJs e lugares específicos para

baixar músicas.

Foi também através da comunidade RAVE que encontrei pistas para

adentrar o universo das festas. Nos “fóruns”, por exemplo, a indicação de sites

especializados, bem como uma infinidade de sugestões de páginas para baixar

músicas, me faziam navegar com uma certa frequência. E, quando ingressava em

uma determinada página, já estava sendo sugerido visitar outros sites, ver outras

coisas interligadas ao universo rave. Quase como um índex para aprender sobre

aquela cultura.

Participar de uma comunidade com inspiração identitária na cultura rave,

de certa forma, inscreve seus membros num conjunto de mecanismos direcionado

ao consumo. Um espaço onde os adeptos devem consumir as músicas, inteirar-se

dos últimos acontecimentos e lançamentos, estar de acordo com determinados

modos de viver e se comportar. Essas estratégias convocam os jovens a integrar-se

neste universo, percorrer lugares (sites) em busca de elementos e conhecimentos

que possam transformá-los em membros daquela cultura. Assim, as relações

travadas no Orkut podem ser consideradas uma prática pedagógica de tipo

contemporâneo em seus modos de operar, porque está implicada na formação de

sujeitos.

Page 91: Dissertação - Sandro

Quando pesquisei no Orkut a sigla PLUR, o mesmo ocorreu. Foram

catalogadas mais de 1000 comunidades relacionadas ao acrônimo. Entre todas, a

escolha ocorreu da mesma forma. Elegi aquela que possuía o maior número de

membros. A comunidade P.L.U.R contava com 8.090 membros no momento da

pesquisa.

Figura 12 - Comunidade P.L.U.R

Um fato interessante é que, na descrição da comunidade P.L.U.R, já

ficam expostos todos os elementos da sigla, sendo comentado cada um deles de

forma breve e simples.

P(eace)A tranqüilidade interior que está dentro de cada um de nós, apesar de nem sempre sermos capazes de encontrá-la. Quando a possuímos, passamos calma e serenidade a tudo e todos que estão à nossa volta.

Page 92: Dissertação - Sandro

L(ove)O sentimento incondicional de afeto que sentimos por algo ou alguém. Pela lei universal da ação-reação todo amor que você der a alguém será devolvido a você de alguma forma. As duas primeiras letras do PLUR representam a base do ideal hippie de vida (Paz e Amor).U(nity)Apesar de todas as nossas diferenças, todos compartilhamos um conjunto comum de características: somos todos humanos, imperfeitos e dependemos uns dos outros para nossa sobrevivência.Com paz e amor a unidade permite a você se relacionar com outras pessoas APESAR de suas diferenças e, se enriquecer com esta troca de experiências.R(espect)Saber reconhecer e aceitar que somos diferentes, APESAR de nosso conjunto comum de características.

Da mesma forma, nas comunidades relacionadas, inúmeras estão em

concordância com elementos que compõem o universo da cultura rave, ou seja,

comunidades que fazem referência às raves, à Goa (Índia) e também aquelas que

apresentam enlace com alguns estilos de música eletrônica.

Nos fóruns, por sua vez, já é possível observar apelos ao consumo, com

a indicação de páginas para a venda de camisetas com a sigla estampada, além de

outros artigos. Eventos de música eletrônica também são constantemente indicados

no mesmo espaço.

As quatro palavras representadas pela sigla PLUR marcam o universo

rave como um fenômeno cultural, na medida em que propõem uma filosofia de vida

em relação a questões como o cuidado com a natureza, a paz e a união entre as

pessoas e o amor ao próximo. Não se trata de promover a sigla como uma forma de

revolução política no sentido usual, mas os próprios sujeitos-rave tendem a acreditar

que festas como essas, que atraem multidões por todo o planeta, incorporam uma

espécie de revolução emocional e espiritual.

O que entendo é que através dessa comunidade, mas também por meio

da comunidade mencionada anteriormente, é possível que um participante tenha

plena capacidade de aperfeiçoar-se cada vez mais como membro da cultura rave. Já

na página inicial da comunidade P.L.U.R, me estava sendo indicado visitar e

adentrar cinco outras comunidades relacionadas à sigla. Três delas direcionadas a

estilos de música eletrônica e as outras duas mais voltadas aos lugares onde

acontecem os eventos.

A meu ver, isso mostra que um sujeito, ingressando em tal comunidade,

pode munir-se de um arsenal de elementos para se tornar um jovem rave. É como

se fosse um tipo de curso que prepara para ser membro integrante da cultura rave,

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pois através da comunidade virtual, ele pode se aprimorar nas práticas daquilo que

identifica aquela cultura.

Todo o aparelho informacional e prático-didático que a comunidade

disponibiliza serve para, de certa maneira, constituir e forjar sujeitos afinados com a

cultura rave, sujeitos conectados a uma certa filosofia de vida inspirada nos

significados da sigla PLUR. Seus aficionados podem estar se embrenhando em

determinadas práticas de si, que nada mais são do que percorrer aquele universo,

informar-se sobre as músicas, conhecer os DJs, trocar arquivos digitais sonoros com

outros membros e obter informações relativas aos eventos celebrativos.

Com relação à pesquisa pela expressão rave Rio Grande do Sul, tão logo

o mesmo ocorreu, mais de 1000 comunidades foram encontradas no Orkut. Entre

elas, procurei partir da mesma categoria. Escolhi aquela que possuía o maior

número de membros uma comunidade que tinha como nome Psy RS e possuía

15.728 membros. O Psy59 é um estilo de música eletrônica que tem sido bastante

comum nas festas rave que frequentei.

59 Psy é um estilo de música eletrônica que tem uma batida rápida, entre 135 e 165 batidas por minuto.

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Figura 13 - Comunidade Psy RS

A comunidade Psy RS serve para reunir adeptos da cultura e das festas

rave que se encontram localizados no território do Rio Grande do Sul. Ou seja, é um

espaço que remete a uma noção mais local, onde os participantes podem interagir

com outros membros fisicamente mais próximos. É importante ressaltar que minha

aproximação ao universo rave local foi realizada especialmente a partir da

comunidade Psy RS. No Orkut, procurei adicionar como amigos aquelas pessoas

que serviam como moderadores (são considerados os “donos”) da comunidade,

sempre procurando investigar e obter informações sobre as festas rave que vinham

acontecendo no Estado. Os moderadores serviram como porta-vozes no meu

trabalho de campo, sempre me indicando o próximo evento ou anunciando as

novidades daquele universo no Rio Grande do Sul.

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O mais emblemático da comunidade Psy RS é que a fotografia da página

de abertura mostra uma menina tomando chimarrão, ou seja, adiciona à inspiração

global, traços culturais do Rio Grande do Sul. Na descrição da comunidade, estavam

presentes os mesmos elementos da cultura rave encontrados nas outras

comunidades analisadas. A explicação dos significados da sigla PLUR e os objetivos

da comunidade anunciar festas, confraternizar, trocar informações e debater

assuntos de interesse do universo da cultura rave.

Por se tratar de uma comunidade mais especificamente voltada aos

jovens-rave do Rio Grande do Sul, ela serviu como referência principal para meu

acesso às festas. Na seção “fóruns”, desta página, encontrei informações sobre as

raves mais próximas da região metropolitana de Porto Alegre. Ali era apresentado

um calendário de festas que serviu como base para a organização do trabalho de

campo. Além disso, as festas que vinham ocorrendo no interior do Rio Grande do

Sul também eram postadas nos “fóruns” e, nesse sentido, o material se tornou

importante fonte de pesquisa e uma forma de aproximação deste reduto.

Assim é que vão surgindo outros desenhos de sociabilidade na

cibercultura contemporânea, que tem na aparência, na imagem, no sentimento e no

afeto, características que permitem a formação das tribos. A temática de destaque

na comunidade Psy RS fornece subsídios para investigar mecanismos de

territorialização e de uma certa identidade cultural rave ligada ao Rio Grande do Sul.

A formação de comunidades do tipo tribal, segundo a perspectiva

maffesoliana, proporciona aos participantes uma nova forma de identificação que

nasce espontaneamente e é estimulada por alguns mecanismos de atração ou de

repulsa. As agregações sociais no ciberespaço carregam consigo, de modo

intencional ou não, a marca cultural dos participantes, componentes de identificação

que ligam ou colam as pessoas a um determinado tema de mesmo interesse.

Igualmente, a existência desse tipo de comunidade tribal no site Orkut pode sugerir

uma tendência de fechamento de grupos em torno de temas bem específicos,

promovendo uma integração a partir de preferências.

Trata-se de mais uma possibilidade de construir laços sociais que vão

sendo consolidados no ambiente online. O papel das comunidades analisadas,

enquanto rede de suporte emocional e de divulgação de informações, é expressivo,

pois os participantes se apropriam desse espaço para comentar, pedir e trocar

idéias, bem como divulgar trabalhos. As mais distintas formas de apropriação de

Page 96: Dissertação - Sandro

uma rede social por grupos tribais colaboram para reforçar a noção de ciberespaço

como um locus de extrema complexidade e heterogeneidade, sendo considerado

também um dos elementos responsáveis por um ethos de pertencimento.

As agregações do tipo tribal, onde predominam sentimentos envoltos

numa afinidade subjetiva, delimitada por um território simbólico, é um aspecto

marcante do ciberespaço, e os integrantes sentem-se parte de um agrupamento ao

estilo comunitário (LEMOS, 2003), podendo criar um laço social contínuo.

Para Maffesoli (2006), no neotribalismo, buscam-se formas de

solidariedade que não estariam mais associadas a instituições habituais. O

tribalismo refere-se a um anseio por “estar-junto”, onde o que importa é o

compartilhamento de emoções em comum, compondo uma certa “cultura do

sentimento”, estabelecida a partir de relações tácteis, coletivas e que se preocupam

com um momento vivido no presente.

Um diferencial dos contatos sociais via ciberespaço estaria na

possibilidade de eleger traços próprios de identificação, pois os indivíduos podem

escolher os grupos de que pretendem fazer parte, assim como entrar e sair deles a

qualquer momento.

De acordo com Maffesoli (2006), as novas formas de agrupamentos

sociais e as manifestações emergentes do ciberespaço, a exemplo da efervescência

da internet, da disseminação das comunidades virtuais, da multiplicação das festas

rave, exprimem um encontro da tecnologia com a socialidade contemporânea.

O conceito de tribalismo contemporâneo ou neotribalismo pode ser

aplicável para descrever a relação entre as tecnologias e a sociedade, já que o

conceito vem pontuar campos da cultura onde os acontecimentos cotidianos, as

formas de agregação (festiva, religiosa, musical, midiática) incidem pelo seu caráter

de atração.

O que posso perceber é que as comunidades do Orkut atuam como

fatores de difração de um comunitarismo tribal contemporâneo. A socialidade marca

o tom dos agrupamentos urbanos, depositando ênfase nos instantes vividos no

presente, nas relações banais do cotidiano, nos momentos não institucionais ou

racionais. A socialidade para Maffesoli (2006) é um conjunto de práticas quotidianas

que escapam de um determinado controle social rígido, estabelecida mais numa

perspectiva hedonista, tribal e enraizadas no agora.

Page 97: Dissertação - Sandro

As relações que compõem essa socialidade instituem o substrato da vida

em sociedade. São momentos de engajamentos efêmeros, de submissão da razão

em favor da emoção tudo isso dando corpo a um agregado social. Na perspectiva

de Maffesoli (2006), é a socialidade que faz a sociedade. Ela é formada na

multiplicidade de experiências coletivas baseadas no cotidiano, não na

institucionalização ou racionalização da vida.

Os sites de relacionamentos unem as pessoas através de interesses

comuns, na exposição de fatos, nos comentários, independentemente de sua

natureza pessoal, ideológica, política ou profissional. O Orkut está em concordância

com uma das principais tendências de uso da Internet, que, segundo Lemos (2003),

viria a ser a busca efetiva de uma conexão social. Além disso, como explica

Maffesoli (1995), a sociedade vem sendo tomada por ondas de modismos, onde

quem adere a tal tendência, se sente incluso. Os integrantes do Orkut, por exemplo,

se sentem incluídos socialmente ao participarem daquelas comunidades que

satisfazem seus interesses.

3.3 Convocação Musical: aprendendo com o som eletrônico

Lyotard (1998), em sua obra A condição pós-moderna, caracteriza os

tempos pós-modernos pelo fim, ou melhor, pela incredulidade nas metanarrativas.

Os esquemas explicativos totalizantes parecem não dar mais conta de um mundo

transformado pelo novo capitalismo e pela ótica consumista.

A música eletrônica como um dos ícones centrais da cultura rave é

concebida pela montagem e (re) composição de amostras de outras músicas. De

certo modo, dissolve o esquema das narrativas, fugindo do padrão início-refrão-

meio-refrão-fim. O som eletrônico concentra-se em ciclos, e a estrutura repetitiva é

considerada um elemento da estética eletrônica.

Chiaverini (2009) expõe como o som eletrônico discotecado nas raves é

distinto de qualquer outra composição musical.

Praticamente não há melodias com letras, os compositores são quase todos desconhecidos e raramente há intervalo entre as faixas, criadas para fazer dançar ininterruptamente. Para muitos ravers, o

Page 98: Dissertação - Sandro

estado de consciência resultante desse mergulho no som está próximo àquele encontrado por certos povos que usam a dança e a música em rituais religiosos. A função dos ritmos eletrônicos, portanto, é diferente daquela de uma faixa de jazz ou de MPB (p. 103).

Segundo Chiaverini (2009), a música eletrônica tem que criar todo um

universo de sons que, somado às luzes, ao espetáculo, ao ambiente e, com alguma

frequência, acompanhado por determinada droga sintética, permita que aquele

grupo oscilante de seres humanos mergulhe num verdadeiro estado de transe

coletivo.

Divorciando sons dos seus contextos físicos e culturais, a rave music cria

uma realidade descentrada e caótica, que sugere diferentes formas de escuta. A

cena eletrônica pode ser vista como expressão de uma sociedade que imprime as

mesmas características. Ou seja, releva um caráter fragmentado, descontínuo e

cíclico.

Observando a música eletrônica enquanto construção, pode-se percebê-

la como reveladora de uma condição pós-moderna. Seu som repetitivo é produzido

por meios binários, ou seja, a partir da microinformática, logo, sua concepção se dá

com base no uso das tecnologias digitais. E estas mesmas tecnologias são sua

condição de possibilidade.

A música eletrônica está disseminada tanto em pontos metropolitanos

como em cidades do interior. Hoje, a localização física já não importa porque a

internet expandiu a música eletrônica por todo o globo. Sua estrutura, formada por

timbres sintetizados, é o resultado da conexão entre tecnologia de ponta,

experimentação e sensibilidade estética, que ganha expressões artísticas não como

manifestação local, mas global e não mais territorializada.

O que eu venho destacando é que a música eletrônica pertence a quem a

manipula e tem incontáveis donos. É uma música que serve como uma espécie de

banco de dados musical, totalmente disponível para ser utilizada e manipulada.

Tudo isso só é possível porque as ferramentas tecnológicas favoreceram a

proliferação desse tipo de cultura, com artistas ganhando espaço, sem grandes

conhecimentos teóricos, mas com talento.

Como tenho procurado demonstrar, através da apropriação das

tecnologias, a música eletrônica alterou radicalmente os acessos e as composições

musicais e tem desafiado noções existentes de estilos de sons. Na verdade, as

Page 99: Dissertação - Sandro

composições não pertencem mais a um determinado estilo de música, borrando

fronteiras e formando uma série de outros gêneros, cada vez mais híbridos.

A música eletrônica, por ser um estilo de som multiestratificado, é

composta por bricolagens de outras músicas, confeccionada de forma rápida e

imersa na estética da repetição. A música rave, como o culto da aceleração digital,

utiliza-se de componentes tecnológicos como um meio de produção e difusão.

Autores como Canevacci (2005) e Thompson (2005) consideram esses

indivíduos jovens que escutam música eletrônica e frequentam festas rave como a

própria manifestação da vida contemporânea, e têm nomeado esses jovens de

sujeitos-rave. Assim, inspiro-me nas palavras de Costa (2006) para afirmar que

“esses são sujeitos urdidos nas tramas da linguagem e da cultura, sujeitos pensados

para os tempos pós-modernos, tempos nem piores, nem melhores do que outros,

tempos apenas diferentes, outros tempos” (p. 14).

As características dessa juventude pós-moderna conectada à cultura rave

estão presentes nos momentos de lazer e divertimento. Sujeitos ansiosos, que

vivem intensamente o agora.

É exatamente por essas razões que a vida “agorista” tende a ser “apressada”. A oportunidade que cada ponto pode conter vai segui-lo até o túmulo; para aquela oportunidade única não haverá “segunda chance”. Cada ponto pode ter sido vivido como um começo total e verdadeiramente novo, mas se não houve um rápido e determinado estímulo à ação instantânea, a cortina pode ter caído logo após o começo do ato, com pouca coisa acontecendo [grifos do autor] (BAUMAN, 2007, p.50).

A cultura da música eletrônica é um exemplo significativo do sintético e de

um estilo de vida tecnológico. As colagens na estética rave — de som e de códigos

visuais — e os hibridismos de estilos musicais, ocorrendo em grande velocidade,

são expressões de recriação e de ressignificação dentro de uma estrutura em

rearranjo constante.

As festas que tocam música eletrônica encarregam-se de compor toda a

atmosfera de diversão junto à tecnologia. Timbres sintetizados ganham impulsos

através de luzes estroboscópicas. As festas configuram-se em um evento ao estilo

estético da pós-modernidade, convocando os sujeitos a permanecer nela.

Vários estudiosos das festas ao ar livre localizam nelas um espírito

carnavalesco ao transformar aquele lugar físico num momento de celebração,

Page 100: Dissertação - Sandro

intensa atividade social, mistura de prazeres musicais, táteis, sensuais, emocionais,

químicos e corporais.

A efemeridade, a instantaneidade e a velocidade da música abrem

caminho para descadenciar nossas vidas, mas cadenciar a festa. São estímulos

subsequentes. A cultura da música eletrônica parece absorver um público cada vez

maior. Uma juventude que se insere no compasso da música veloz, na euforia

coletiva, na correria e no stress contemporâneo, criando novas práticas culturais.

Assim, a música eletrônica em conjunção com a celebração rave ajuda a formar um

tipo de sujeito particular.

As tribos se reconhecem pelos ritmos e timbres. A música eletrônica,

percebida não apenas como um recurso técnico à disposição, mas igualmente como

linguagem, vem estabelecendo padrões de diferenciação nas percepções musicais.

Acertada por um certo poder da tecnologia, a experimentação na música eletrônica

era vista como objeto para gente “estranha. Hoje, apoiados por softwares cada vez

mais sofisticados e, ao mesmo tempo, simples de operar, qualquer pessoa pode se

tornar um artista e compositor da música eletrônica.

3.4 Cultura Rave: aprendendo a ser sujeito na pós-modernidade

Inspirado em Jameson (1996), parto do pressuposto de que se existe uma

cultura pós-moderna, uma economia pós-moderna, uma sociedade dita pós-

moderna, também devem existir sujeitos pós-modernos.

Portanto, foi olhando para um tipo de sujeito imerso e formatado na cena

contemporânea que me voltei para a cultura e para as festas rave e, logo, também

aos sujeitos que frequentam esses eventos.

A efemeridade, o espetáculo, a fragmentação, a percepção múltipla de

tempos e espaços, a dinamicidade, a flexibilidade, a ambivalência, os

reagrupamentos, o surgimento de novos grupos e o desaparecimento de tantos

outros são indícios de uma época de constante experimentação e liberdade sob as

mais variadas formas.

Com base em autores que discutem a formação de sujeitos na

contemporaneidade, percebo que os sujeitos-rave que circulam pelos espaços

Page 101: Dissertação - Sandro

urbanos, têm, na movimentação, no espetáculo e na tecnologia elementos

encaixados em seus modos de vida. São maneiras de habitar o contemporâneo e de

viver em uma sociedade veloz, fugaz, instantânea e volátil.

Discorrer sobre a pós-modernidade ou sobre os tempos pós-modernos

não é sugerir a mudança de uma época para outra, ou seja, a interrupção da

modernidade e a emergência de uma nova totalidade social com seus princípios

organizadores próprios e distintos. Harvey (2000) argumenta sobre a pós-

modernidade alertando:

Começo com o que me parece ser o fato mais espantoso sobre o pós-modernismo: sua total aceitação do efêmero, do fragmentário, do descontínuo e do caótico que formavam uma metade do conceito baudelairiano de modernidade. Mas o pós-modernismo responde a isso de uma maneira bem particular; ele não tenta transcendê-lo, opor-se a ele e sequer definir elementos “eternos e imutáveis” que poderiam estar contidos nele [grifos do autor] (p. 49).

A segunda metade do século XX assistiu à aceleração do

desenvolvimento das tecnologias de comunicação, à transformação nas formas das

artes e às mudanças de paradigmas na sociedade. Embora nem todos os teóricos

da contemporaneidade empreguem o conceito de pós-modernidade e pós-

modernismo, nesta pesquisa, ele é utilizado para referir-se à esfera cultural da

sociedade pós-industrial (HARVEY, 2000).

A desintegração dos movimentos culturais da década de 60 e o início de

uma nova era do capitalismo leve são indicativos do que podemos chamar de

sociedade pós-moderna. Jameson (1996) entende o pós-modernismo como a lógica

cultural do capitalismo tardio, que teria como elementos de diferenciação a grande

expansão das empresas multinacionais, uma globalização de mercados, o consumo,

a cultura de massa e uma intensa rede de fluxos de capital.

O que se pode aprender vivendo numa sociedade pós-moderna? De que

forma sujeitos e identidades são forjados diante de um determinado tipo de cultura

contemporânea como a rave?

O descentramento do sujeito, característica marcante na sociedade pós-

moderna, reflete uma menor densidade subjetiva e, por isso, as identidades tornam-

se menos duradouras do que em outros momentos da história. O que se pretende

com essa abordagem analítica é ressaltar que, outrora, o sujeito psicológico

Page 102: Dissertação - Sandro

clássico, revestido de uma sólida identidade, hoje parece tomado pela constante

necessidade de mudança.

Hall (2004), na obra Identidade Cultural na Pós-modernidade, faz uma

triagem mostrando três concepções de identidade. O sujeito do iluminismo,

centrado, unificado e dotado de razão, o sujeito sociológico e o sujeito pós-moderno.

Com relação à concepção sociológica,

a identidade é formada na interação entre o eu e a sociedade. O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o “eu real”, mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais “exteriores” e as identidades que os mundos oferecem [grifos do autor] (HALL, 2004, p.11).

O autor trabalha com a idéia de que o sujeito pós-moderno, ao contrário

do sociológico, não apresenta uma identidade fixa, essencial ou permanente. Ele vai

assumindo identidades diferentes em distintos momentos.

Do mesmo modo, segundo Bauman (2005), quando a vida social é

cercada pelo mercado da globalização de imagens, estilos, modismos, pelos sonhos

e desejos materiais perpassados pelas ações midiáticas e por todos os sistemas

comunicacionais, as identidades tornam-se desligadas das tradições e dos lugares.

É exatamente assim que venho examinando a formação identitária dos

sujeitos-rave. Quando os jovens conectados à cultura rave absorvem uma série de

artefatos inscritos em roupas, imagens, comunidades virtuais, etc, eles estão

mostrando que pertencem àquela cultura. Também nos revelam que estão de

acordo com os códigos, tanto visuais como materiais, que compõe aquele universo.

Esses jovens têm revelado suas marcas de identificação por inúmeros espaços onde

esta cultura circula. É nas redes sociais online, nos festivais de música eletrônica,

nas lojas especializadas, nos shopping centers, dentre inúmeros outros lugares.

Uma das metáforas utilizadas por Bauman (2005) com relação à

construção das identidades está ligada à composição de um quebra-cabeça. Porém,

um quebra-cabeça incompleto, onde faltam peças e onde jamais saberemos

quantas. Neste processo de montagem, é necessário saber escolher as peças e

colocá-las no local adequado. O trabalho não é direcionado a um determinado fim tal

quais os quebra-cabeças comprados nas lojas, mas aos meios. Logo, montar um

quebra-cabeça identitário ligado aos sujeitos-rave só pode ser entendido nessa

Page 103: Dissertação - Sandro

direção ─ na composição de um indivíduo que monta a sua própria identidade, seja

no consumo musical, na vestimenta ou mesmo na adoração pelas tecnologias.

Os sujeitos-rave que habitam o cenário contemporâneo, isolados ou

ativamente conectados a uma tribo, insistem nos encontros, em modos de inventar,

reinventar e produzir subjetividades na medida em que, ao mesmo tempo, produzem

também efetivamente os espaços.

Os processos de subjetivação são métodos que fazem com que o sujeito

se torne aquilo que ele é. Refere-se às propriedades que caracterizam o ser humano

como sujeito. Na verdade, o termo subjetividade carrega conotações de

interioridade, de pessoalidade.

Segundo Rose (2001), a subjetividade é o nome dado a todo o movimento

de compor e recompor forças, relações e práticas na medida em que tenta

transformar (ou opera para isso) o ser humano em sujeito.

...os seres humanos são interpelados, representados e influenciados como se fossem eus de um tipo particular: imbuídos de uma subjetividade individualidade, motivados por ansiedades e aspirações a respeito de sua auto-realização, comprometidos a encontrar suas verdadeiras identidades e a maximizar a autêntica expressão dessas identidades em seus estilos de vida [grifos do autor] (ROSE, 2001, p.140).

A cultura rave e as festas como um espaço destinado à celebração e ao

divertimento hedonista, são consideradas componentes que permitem operar dentro

de uma ótica contemporânea eficaz em seus processos de subjetivação. Se existe

subjetividade no agrupamento tribal, isto conforma uma analogia de que as

aglomerações sociais possuem um forte componente emotivo. E com relação à tribo

rave, trata-se de um grupo que se (re) atualiza na formação de um ethos que se

espraia por um mundo, há muito tempo, globalizado.

Os processos de fabricação de subjetividades dizem respeito ao

simbólico, à emoção e à representação que o indivíduo faz da realidade ao seu

redor. Trata-se de uma relação do “eu” com o mundo e do “eu” com o “outro”.

(COSTA, 2006)

As sociedades e culturas em que vivemos são dirigidas por poderosas ordens discursivas que regem o que deve ser dito e o que deve ser calado e os próprios sujeitos não estão isentos desses

Page 104: Dissertação - Sandro

efeitos. A linguagem, as narrativas, os textos, os discursos não apenas descrevem ou falam sobre as coisas, ao fazer isso eles instituem as coisas, inventando sua identidade (p.32).

Há uma conformidade dentro dos ambientes festivos porque ali existem

distinções que permitem enxergar quem faz parte da comunidade e quem não faz.

Permite reconhecer a si e ao outro. Aliás, esse pertencimento só pode ser percebido

quando da posse de um conjunto de códigos que estão inscritos dentro daquele

universo.

A reunião tribal celebrada nas festas rave, de um prazer coletivo vivido

hedonisticamente, vai ao encontro do pensamento do sociólogo francês Michel

Maffesoli quando argumenta que os acontecimentos cotidianos estão sob os pilares

do empirismo, e por isso mesmo, tornam-se polissêmicos. “Não possui um sentido

determinado, mas sentidos que são postos à prova e vividos à medida que vão

surgindo” (MAFFESOLI, 2006, p. 14).

De acordo com Lipovestky (2006), o hedonismo pós-moderno em suas

múltiplas faces, descaracteriza uma moral heróica, e a mesma parece não ter mais

legitimidade. “Quer-se viver o presente, com a maior intensidade que se puder

alcançar, e não se guardar para um futuro de gratificações remotas e

compensadoras” (idem, p. 10).

Na mesma linha, o sociólogo e filósofo francês Jean Baudrillard (1991)

destaca que as novas formas de tecnologia da informação são essenciais para

marcar a passagem de uma ordem social situada na produção para uma ordem

centrada na reprodução, onde simulações e modelos prontos acabam constituindo o

mundo. Para Baudrillard, a sociedade de consumo é uma alavanca para o mundo do

signo — o simulacro.

De acordo com a estética da cultura rave, o que observo é que o

simulacro é moldado através de um conjunto de objetos-signos que carregam uma

possibilidade de gozar a felicidade. A dança, o consumo de bebidas e drogas, a

festa-espetáculo com seus shows de performances altamente tecnológicos e a

multiplicação de uma filosofia que busca paz, amor, união e respeito todos esses

elementos são congruentes para uma vida moldada no simulacro. Não se trata de

uma felicidade espontânea, mas incitada, provocada e instigada.

Page 105: Dissertação - Sandro

Maffesoli (2003), por sua vez, caracteriza a pós-modernidade como a

“sinergia do arcaísmo e do desenvolvimento tecnológico” (p.10). Para ele, esta é a

única definição que permite dar conta da pós-modernidade.

As agências informáticas, as redes sexuais, as diversas solidariedades, os encontros esportivos e musicais são todos indícios de um ethos em formação. É isto que delimita esse novo espírito do tempo que podemos chamar de socialidade [grifos do autor] (p 103).

Conforme a noção maffesoliana, a pós-modernidade vem se mostrando a

partir de um estilo estético, ou seja, um estilo em que os sujeitos se relacionam para

experimentar emoções e prazeres em comum. Uma forma estética que nos mostra

como se vive e como se experimentam sensações coletivas. Nada mais aceitável

quando analisamos os sujeitos-rave da cena contemporânea. Eles vão às festas

rave porque ali é possível degustar e sentir os prazeres da vida em comunidade, a

emoção de compartilhar sentimentos com o outro.

Entre os inúmeros espaços que congregam no cenário contemporâneo,

tais como os shows, os eventos esportivos, os lugares de entretenimento e lazer

(como os cinemas, os teatros, os parques de diversões, os museus), os tempos pós-

modernos aglutinam também por uma forma peculiar de religiosidade. Uma religião

não institucionalizada conceitualmente como se pode pensar num primeiro

momento, mas um religamento (re-religar) que ocorre por meio de imagens, rituais,

símbolos, artigos de consumo.

O desenvolvimento do espetáculo, o jogo de imagens, as explosões do

esporte e do turismo seriam, antes de tudo, a causa e o efeito dessas novas formas

do estar - junto. O espetáculo instaura-se em toda a parte, permeando grande

parcela dos aspectos da vida social. Um espetáculo rápido no tempo e com vínculos

efêmeros (MAFFESOLI, 2004).

A prevalência da festa, em suas diversas formas, as diferentes manifestações do “cuidado consigo mesmo” e os diversos cultos do corpo são, na verdade, independentemente do que possa parecer, modulações dessa “contemplação” dionisíaca”. Eles constituem, ao mesmo tempo, a música interior de determinado corpo social e o ritmo que o faz vibrar em uníssono. Nesse sentido, basta nos lembrarmos de alguns recentes agrupamentos de massa religiosas: as Jornadas Mundiais da Juventude; musical: a Techno Parade pelas ruas de Paris; esportivo: a efervescência da Copa do

Page 106: Dissertação - Sandro

Mundo , para avaliar o impacto da sintonia coletiva da “histeria” [grifos do autor] (Idem, p.86).

Os instantes vividos eternamente, para Maffesoli (2004), podem ser

pensados como um retorno das temáticas noturnas encontradas na multiplicação

dos clubs de música dance, na propagação das festas raves e de outras tantas

agremiações juvenis que não podem mais ser consideradas fenômenos sem

conseqüência.

Nada mais convidativo do que participar delas. As festas rave se

apresentam como lugares compartilhados da existência individual e coletiva onde o

lúdico está sempre sendo explorado. O excesso de informações dentro do universo

da cultura rave envia sinais claros de um caráter fragmentado, descontínuo e veloz,

produzindo a impressão de que o sujeito-rave está sempre em débito.

Bauman (2001) afirma que, quando as distâncias percorridas passam a

depender das tecnologias, os limites podem ser transgredidos. Essa sensação de

“perder o controle do presente” leva a uma pulverização da vontade política e a uma

descrença de que algo possa ser construído coletivamente.

Daí resultam os sentimentos neotribais e fundamentalistas que inevitavelmente acompanham a atual privatização da ambivalência. Sua postura é a promessa de por um fim à agonia da escolha individual ao abolir a própria escolha; de curar a dor da incerteza e da hesitação individuais terminando com a cacofonia de vozes que nos deixa inseguros da sabedoria de nossas decisões. (Idem, p.94)

Para o autor, as explosões de solidariedades e espíritos de grupamentos

acontecem de forma esporádica e com uma vida curta. Esse tempo é pontilhista,

considerado um tempo fragmentado, sempre vivido em infinitos instantes, porém

preso nas amarras da velocidade.

(...) a cidade é pontilhada por uma multiplicidade de pequenos “altares” que têm a mesma função: neles se elaboram os “mistérios da comunicação-comunhão”. Pode ser o pequeno restaurante da esquina, a tabacaria onde se aposta nos cavalos, a praça do bairro, os bancos do passeio público, as pracinhas ou espaços urbanos, a “lojinha árabe” mais próxima ou a rua comercial onde as pessoas encontram os vizinhos. Sem esquecer, é claro, esses lugares específicos que podem ser os salões de ginástica, onde se constrói o corpo comum, as salas dos plantões políticos, onde se elaboram o futuro coletivo da sociedade e as carreiras individuais, as sedes das associações sem fins lucrativos e todos os clubes de encontros

Page 107: Dissertação - Sandro

ideológicos, religiosos ou de amizade, onde vamos “trocar”, mais ou menos eufemisticamente, o outro com quem se constrói o mundo em que eu vivo. É em todos esses laboratórios que se elabora a misteriosa alquimia da socialidade [grifos do autor] (BAUMAN, 2007 p. 58).

A satisfação imediata nas festas rave imuniza qualquer projeto de sonho e

deixa impotente o paraíso futuro. É o aparecimento de uma espécie de Narciso60

amadurecido, responsável, organizado, eficiente e flexível.

Os objetos devem ser aproveitados de forma imediata e a satisfação se

torna instantânea e obsoleta ao mesmo tempo. “Num mundo em que o futuro é cheio

de perigos, qualquer chance não aproveitada aqui e agora é uma chance perdida;

não aproveitá-la é imperdoável e não tem justificativa”. (BAUMAN, 2007, p.198)

A cultura rave está inserida em um mundo multiplicado de incertezas, no

cotidiano fragmentado em instantes efêmeros e prontos a uma satisfação do “agora”.

Há um imperativo do gozo intenso e instantâneo, aproveitável durante o momento da

festa-espetáculo e só naquele momento. Jovens que podem, com rapidez, mover-

se, seduzidos pela propaganda, pelo desejo, moldado para viver sensações. “O

antigo lema carpe diem adquiriu um sentido totalmente diferente e leva uma nova

mensagem: colha seus créditos agora, pensar no amanhã é perda de tempo”

(BAUMAN, 2003, p.209).

O sujeito pós-moderno é um ser em constante mutação, mimético,

transformando-se segundo as situações e as relações com seus grupos,

comunidades ou tribos. Os valores têm mudado rapidamente e a condição pós-

moderna compõe um emaranhado de elementos que envolvem tecnologia,

tribalismo, hibridismo, estética, fragmentação, desconstrução, reconstrução, jogos

de linguagem, ambiguidades, entre outros. Diante disso, o sujeito contemporâneo

precisa estar superando-se cotidianamente.

O tribalismo contemporâneo de que nos fala Maffesoli (2006) é entendido

como uma característica cultural que reúne os indivíduos em torno de totens

contemporâneos como o futebol, a religião, as festas, só para citar alguns deles. A

subjetividade, as escolhas, os sentimentos e as angústias entram em cena para

disparar os movimentos pós-modernos de vibração em comum e sensação

compartilhada.

60 Na Mitologia Grega, Narciso era um herói famoso pela sua beleza e orgulho, que afogou-se no lago em que se mirava, apaixonado pela própria imagem.

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Muitas adesões, agrupamentos, crenças, ideologias e movimentos

sociais, não podem mais ser explicados somente a partir da razão ou do seu

conteúdo. De acordo com Maffesoli (2004), esse sujeito moldado pelo imaginário

pós-moderno não necessita somente de informação, mas também, e primeiramente,

ele quer ver e ser visto, quer ouvir e falar, participar, contar a si e aos outros. Busca

existir diante do olhar do outro e das interações sociais.

Significativas mudanças e transformações nas formas de organização da

sociedade trouxeram à tona reflexões sobre a vida dos sujeitos que habitam a pós-

modernidade. Um novo mundo que se apresenta é percebido como “[...] contingente,

gratuito, disperso, instável, diverso e imprevisível”. (COSTA, 2005, p. 210).

Distinguido, segundo a autora:

[...] entre outras coisas, pelo mundo disperso e efêmero das novas tecnologias, pelo consumo de toda a sorte de produtos da indústria cultural (inclusive imagens, identidades e modos de ser), por variadas e difusas políticas de identidade, por conformações de curto prazo e grande flexibilidade no trabalho [...](COSTA, 2005, p.209).

Vivemos em um mundo de infinitas oportunidades, humanamente

impossíveis de serem escolhidas e experimentadas em sua plenitude. A vida

contemporânea, com seus modos de organização, nos inscreve em uma liberdade

ambígua de estar e de habitar o mundo de forma inacabada e incompleta.

É assim que observo a formação de um sujeito-rave. É um sujeito pós-

moderno. Um ser incompleto, feliz em alguns momentos, em débito, sempre em

construção, um indivíduo que sobrevive à deriva, enfrenta turbulências e navega nas

ondas da instabilidade e das incertezas, mas também navega nas ondas da internet

e possui determinado fascínio pela tecnologia. Mas este mesmo sujeito-rave pós-

moderno é aquele que vive com intensidade momentos de deleite e prazer.

Momentos em que comemorar a felicidade não pode ser adiado.

Para corroborar, Maffesoli (2004) nos diz o seguinte:

É este êxtase inquietante que vamos encontrar nos diferentes transes coletivos que não faltam em nossa época. Em particular, naturalmente, nos ajuntamentos musicais que envolvem o desvario. Há muito a dizer sobre esses fenômenos. Para começar, que são tudo, menos insignificantes. A tendência tampouco é efêmera, indicando um movimento de fundo. Cabe notar igualmente que a desconfiança que provocam é das mais instrutivas, bem

Page 109: Dissertação - Sandro

demonstrando, ao contrário, que não podem mais ser considerados irrelevantes ou marginais (p.157).

Então, as maneiras como certos grupos, a exemplo dos ravers,

produzem, estudam, habitam, convivem, se divertem e trabalham, são realizadas

conforme uma lógica social e cultural, o que lhes garante um ethos de

pertencimento, e, ao mesmo tempo, de distinção relativamente a outros grupos.

Estamos diante de uma juventude em constante transformação e

composta num emaranhado de signos. Assim parece ser também a juventude rave

pós-moderna. Sujeitos jovens que abraçam a cibercultura e a celebram num jogo de

simulação e espetáculo. A cibercultura se configura como a própria simulação do

espetáculo, é a manipulação do espetáculo no seu sentido digital, multimídia e

interativo. Percebo que a cultura rave está forjando identidades e constituindo

sujeitos atrelados à contemporaneidade. Sujeitos compostos nas redes tecnológicas,

envoltos e enleados nelas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Page 110: Dissertação - Sandro

Nas sociedades contemporâneas, as constantes ressignificações do

espaço e do tempo entram em comunhão para promover uma aceleração da vida,

um atraso consentido e a imersão de um sujeito em débito. Um sujeito que busca a

felicidade, uma existência feliz e significativa a cada dia. Busca também modos de

expressar-se e narrar-se.

Qualquer que seja a origem semântica ou histórica do fenômeno rave,

sua formação e delineamento expandiram uma conotação cultural plural, envolvendo

formas eletrônicas musicais e movimentos neotribais de reunião de pessoas que

dançam a noite inteira.

Na vida diurna e noturna das grandes cidades, mas também de locais

distintos dos centros, o neotribalismo encontra sua atualização permanente e

constante. O que se pode observar, sem grandes surpresas, na vertente do

neotribalismo contemporâneo, e que se torna visível na cultura rave, é que a

afinidade do indivíduo com o grupo tende a ser uma relação de harmonia.

Um certo rompimento com o tédio do dia-a-dia e momentos de fruição

máxima podem fornecer ânimo para que esses jovens, na segunda-feira, voltem

comportadamente ao trabalho. Eles dançam, gritam, pulam, drogam-se, abraçam-se,

dançam mais um pouco e podem passar vários meses seguintes lembrando dos

bons momentos ou esperando a próxima celebração. (CHIAVERINI, 2009)

De fato, as festas apresentam uma importante função de reforçar a união

dos indivíduos em sociedade, o que só ocorre porque elas permitem um rompimento

com a rotina diária. O isolamento do local onde ocorrem essas festas e a própria

viagem a um território aparentemente desconhecido é como ir ao encontro de um

templo hedonista erguido a céu aberto.

Entendo que toda a estrutura que configura e faz acontecer as festas rave

e a disseminação dessa cultura resultam de um emaranhado de produtos culturais

que estão em circulação todo tempo. Seja nas convocações de liberdade e alegria

reveladas nos convites das festas, seja no chamado envolvente e delirante dos

meios virtuais, seja no apelo ao espetáculo que promete liberdade, prazer e paz,

seja pelos fecundos envolvimentos do conceito PLUR, isso faz parte das relações

Page 111: Dissertação - Sandro

entre sujeitos, lugares, objetos e verdades que vão sendo delineadas para o nosso

tempo, ou seja, verdades produzidas para os jovens contemporâneos.

Uma identidade raver foi sendo desenhada porque, dentro desta cultura,

um conjunto de discursos incluindo-se os eventos de música eletrônica, os sites

onde as informações sobre o universo rave circulam, as comunidades virtuais, etc

vêm produzindo sujeitos contemporâneos, imersos em uma ótica social vulnerável e

veloz. Um sujeito urdido para lidar habilmente com as tecnologias de ponta e para

fazer retumbar aos ouvidos a música que alia tecnologia e rapidez.

Não é possível apenas remeter essa juventude atrelada à cultura rave a

um determinado remake das concepções tradicionais referentes à família, à religião,

em suma, aos ideais mais clássicos. As festas rave constituem sua própria casa, um

lar que alia música eletrônica e espetáculo sensações compartilhadas na junção

da dança e das drogas com a música computadorizada.

Outra forma de conceber a cultura rave é através de uma sinalização

progressiva e pós-moderna de afirmação juvenil. O sujeito jovem da atualidade se

encontra imerso num processo de globalização onde as distâncias são diminuídas a

todo o momento. No universo das raves, podemos perceber isso de forma explícita.

Uma cultura é celebrada localmente, haja vista os lugares onde essas festas

ocorrem, mas decorre de uma inspiração global. Resguardados os desenhos

peculiares de cada lugar, uma festa rave em Porto Alegre, em São Paulo, em

Londres ou em Roma apresentam os mesmos componentes. Desta maneira, é

possível afirmar que a cultura rave caminha junto com uma determinada cultura

global.

Reynolds (1997) define a cultura rave como a mais exemplar experiência

pós-moderna, no sentido de que ali não existe um objetivo ou objeto, mas um culto à

aceleração, à criação de sensações, à celebração da celebração, ao seu excesso de

energia, à busca por estados alterados da mente. A cultura rave, arremata o autor,

nunca esteve relacionada com a mudança da realidade, mas exclusivamente com a

subtração dela.

A cultura rave pode ser vista como uma junção neotribal, implicada na

vivência coletiva de experiências. A partilha, repetida em cada festa, ritualiza-se no

reconhecimento e na reafirmação de determinados valores e práticas entre seus

participantes. 

Page 112: Dissertação - Sandro

O estar-junto tribalizante momentâneo já não necessita percorrer um

grande objetivo para se justificar. Ele se basta por si só. Na afetividade, no sensível,

no vivido aqui e agora. Os jovens frequentadores das festas rave têm como objetivo

primário a celebração do presente, o festejar do momento. A exploração de todas as

formas de emoção e prazer, sem adiamento, sublima uma satisfação imediata que

substitui o lugar dos futuros sonhos. Portanto, comemoram esse tempo presente

pós-moderno e o valorizam.

Nas tribos contemporâneas, os indivíduos juntam-se como membros de

um grupo social específico para um propósito particular, como ouvir música.

Tornam-se parte de um grupo e seguem as suas regras para satisfazer uma

determinada necessidade de pertencimento. A identificação não precisa estar

necessariamente atrelada a uma localização física e espacial porque as tecnologias

digitais ofereceram-nos as ferramentas necessárias para criar laços sociais em

qualquer lugar do mundo. As comunidades virtuais no Orkut, por exemplo, se

organizam em torno de interesses em comum, independentes de fronteiras ou

demarcações raciais e territoriais. A cibercultura faz com que os sujeitos busquem

através das tecnologias uma nova forma de agregação social, seja ela efêmera,

espontânea, esporádica, eletrônica ou mesmo planetária.

O que me parece é que a geração que adentra a primeira década do

século XXI já se encontra habituada à estética multimídia, à realidade virtual e às

redes de tecnologia de informação guiadas telematicamente. Essa geração, que

inclui os sujeitos-rave, não é mais literária, individual e racional, mas opera de forma

simultânea, tribal e presenteísta como afirma Maffesoli. É, ao mesmo tempo, uma

geração "simulacro" dela mesma como reitera Baudrillard.

Essas foram algumas possíveis conexões entre a música eletrônica, as

festas (e a cultura) rave, novas tecnologias, formação de tribos urbanas, cibercultura

e a configuração de sujeitos na cena pós-moderna. Sem, de forma alguma,

pretender esgotar o assunto, parece viável mostrar a multiplicidade de caminhos que

o tema concentra. Seja no campo da antropologia onde o assunto reúne inúmeros

artigos, seja na área dos estudos da juventude ou dos Estudos Culturais, meu

propósito com esta pesquisa foi o de direcionar o olhar para as contingências que

forjam os sujeitos jovens que frequentam as festas rave e que, também, hoje

frequentam nossas escolas, universidades e outras instituições.

Page 113: Dissertação - Sandro

A cada dia, surgem sujeitos que se debruçam sobre as tecnologias,

criando e recriando ritmos dentro de uma estética eletrônica. A música pode ser

pensada como o som étnico do milênio. E a música das tribos é um som que mexe

com os sentidos, é a música dos movimentos pulsantes e intensos. Uma música que

está em plena concordância com o trânsito sonoro latente das grandes metrópoles.

Também está em conformidade com um mundo cercado pelas tecnologias digitais e

incitado pela celebração do espetáculo e do consumo.

Page 114: Dissertação - Sandro

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