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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MINAS GERAIS
CAMPUS DA FUNDAO EDUCACIONAL DE DIVINPOLIS
ODISSIAS DO PERDO EM LA MMOIRE, L HISTOIRE, L OUBLI (2000) DE
PAUL RICOEUR
Nem fcil, nem impossvel
Regina Clia Vaz Ribeiro Gonalves
Divinpolis
2007
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Regina Clia Vaz Ribeiro Gonalves
ODISSIAS DO PERDO EM LA MMOIRE, L HISTOIRE, L OUBLI (2000) ) DE
PAUL RICOEUR
Nem fcil, nem impossvel
Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado da Universidade do Estado de Minas Gerais, Campus da Fundao Educacional de Divinpolis, como requisito parcial obteno do ttulo Mestre em Educao, Cultura e Organizaes Sociais.
rea de concentrao: Estudos Contemporneos Linha de Pesquisa: Cultura e Linguagem Orientador: Prof. Dr. Mateus Henrique de Faria Pereira
Divinpolis Fundao Educacional de Divinpolis
2007
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Gonalves, Regina Clia Vaz Ribeiro G635o Odissias do perdo em La Mmoire, l Histoire, l Oubli (2000) de Paul Ricoeur nem fcil, nem impossvel. [manuscrito] / Regina Clia
Vaz Ribeiro Gonalves. 2007. 111 f., enc.
Orientador : Mateus Henrique de Faria Pereira Dissertao (mestrado) - Universidade do Estado de Minas Gerais,
Fundao Educacional de Divinpolis. Bibliografia : f. 85 - 87
1. Perdo. 2. Memria - Histria. 3. Esquecimento. 4. Cultura Contemporaneidade. l. Pereira, Mateus Henrique de Faria. II. Universidade
do Estadual de Minas Gerais. Fundao Educacional de Divinpolis. III. Ttulo.
CDD: 152.4 306
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Dissertao defendida e APROVADA pela Banca Examinadora constituda pelos
Professores:
Prof. Dr. Mateus Henrique de Faria Pereira (Orientador) FUNEDI/UEMG
Prof. Dr. Alexandre Simes Ribeiro - FUNEDI/UEMG
Prof. Dr. Geraldo Luiz De Mori - FAJE
Mestrado em Educao, Cultura e Organizaes Sociais
Fundao Educacional de Divinpolis
Universidade do Estado de Minas Gerais
Divinpolis, 13 de Dezembro de 2007.
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AUTORIZAO PARA A REPRODUO E DIVULGAO CIENTFICA DA DISSERTAO
Autorizo, exclusivamente para fins acadmicos e cientficos, a reproduo total ou
parcial desta dissertao por processos de fotocopiadores e eletrnicos. Igualmente, autorizo
sua exposio integral nas bibliotecas e no banco virtual de dissertaes da FUNEDI/UEMG.
Regina Clia Vaz Ribeiro Gonalves
Divinpolis, 13 de dezembro de 2007.
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AGRADECIMENTOS
Ao Ivan, Nara, Ricardo e Juliana por sempre terem acreditado em mim.
Ao Mateus, meu orientador e mestre, pela seriedade, serenidade, competncia, esforo e
dedicao, sem quem no teria sido possvel realizar este trabalho.
Ao Frei Leonardo e Frei Bernardino pela disponibilidade nos esclarecimentos necessrios
sobre a questo do perdo.
Aos meus pais, parentes, mestres, amigos, companheiros de luta e, sobretudo a Deus que
sempre tm me perdoado pelas minhas faltas.
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RESUMO
Este trabalho pretende compreender e explicar como Ricoeur apresenta o problema do perdo
em sua obra: La Mmoire, L Histoire, l Oubli (2000). Ele composto de trs partes. A
primeira ser consagrada ao trabalho da memria e o trabalho de luto destacando os
fenmenos mnemnicos sob a perspectiva da fenomenologia no sentido de Husserl. A
segunda dedicada ao esquecimento numa hermenutica da condio histrica dos humanos
que ns somos. A terceira culminar com a problemtica do perdo. Toda a trajetria do
trabalho tentar responder a duas questes: 1) Por que Ricoeur escolhe o perdo como tema
do eplogo de sua obra: La Mmoire, l Histoire, l Oubli que destinada a tratar da
memria, da histria e do esquecimento? 2) Pode o perdo ser um conceito fundamental para
a construo de uma nova tica para o mundo contemporneo?
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RSUM
Ce travail prtend comprendre et expliquer comment Ricoeur prsente le problme du pardon
dans son oeuvre : La Mmoire, l Histoire, l Oubli ( 2000) . Il comporte trois parties. La
premire, consacre au travail de la mmoire et au travail de deuil et aux phnomnes
mnmoniques sous la perspective de la phenomnologie au sens de Husserl. La deuxime,
ddie l oubli dans une hermneutique de la condition historique des humanins que nous
sommes. La troisime, culminant dans une problemtique du pardon.Toute la trajectoire de ce
travail essayera de rpondre deux questions : La premire : Pourquoi est-ce que Ricouer
choisit le pardon comme un thme d un pilogue de son oeuvre : La Mmoire, l Histoire, l
Oubli qui est destine parler de la mmoire, de l histoire, de loubli ? Deuxime : Le
pardon, est-ce qu il peut tre un concept fondamental pour la construction d une nouvelle
tique pour le monde contemporain ?
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SUMRIO
INTRODUO 09 Captulo I: O trabalho de memria e o trabalho de luto 30
1.1 Memria e Imaginao 32 1.2 Memria como reminiscncias 35 1.3 Memria e a temporalidade 40 1.4 Memria-hbito 42 1.5 Trabalho de luto 45 1.6 O olhar interior da memria 48
Captulo II: A condio histrica e o esquecimento 56
2.1 O ser-no-mundo de Heidegger 62 2.2 O ser para a morte de Heidegger . 63 2.3 A existncia autntica construda com vista do ser para a morte 65 2.4 A temporalidade de Heidegger 66 2.5 Crtica de Ricoeur viso heideggeriana 70 2.6 O esquecimento 75 2.7 O esquecimento e o apagamento dos vestgios 76 2.8 O esquecimento como reserva e a persistncia dos traos 77 2.9 O esquecimento e a memria impedida 81 2.10 O esquecimento e a memria manipulada 83 2.11 O esquecimento comandado: a anistia 84
Captulo III: O perdo como elaborao entre a culpabilidade e a reconciliao
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3.1 Perdo e falta 90 3.2 O perdo na travessia das instituies sociais 95 3.3 A culpabilidade criminal 95 3.4 A culpabilidade poltica 98 3.5 A culpabilidade moral 99 3.6 O esprito do perdo 102 3.7 Dom e perdo 103 3.8 Perdo e promessa 105 Consideraes Finais 109 Referncias 117
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INTRODUO
Os fatos atuais mantm o homem perplexo: bombas, ataques terroristas, suicdios, mortes,
assaltos, crime organizado, desemprego, acidentes automobilsticos, corte de rvores,
poluio das guas e do ar. Tudo isto indica desrespeito do homem natureza em geral, da
qual parte integrante. As cidades so hoje verdadeiros campos de batalha, onde poderes
globais se chocam com identidades locais, abandonadas pela desintegrao da solidariedade.
A crescente velocidade com que se desenvolvem as sociedades modernas agrava esta
tendncia por uma transformao cada vez mais intensa das estruturas das diversas
instituies sociais. O saber tradicional, como o transmitia a Igreja, a Escola, a Famlia ou o
Estado, envelhece com maior rapidez fazendo surgir novos modelos, novos mtodos. Por isso,
a caracterstica de nosso tempo a convulso das nossas antigas certezas e o questionamento
das nossas atuais identidades. Estas novas orientaes so conflituosas, porque h o desafio
de atender, simultaneamente, aos interesses do indivduo, mas apoiados na condio
comunitria da sociedade.
A natureza no significa somente guas, plantas, terras e ar. O homem tambm natureza.
Quando silenciosamente destrumos a natureza tambm o homem que est sendo destrudo.
Por isso, Freud (1978) comenta na sua obra o Mal-estar na Civilizao que talvez,
precisamente com relao a isso, a poca atual merea um interesse especial, porque os
homens adquiriram tal controle sobre as foras da natureza, que no tm dificuldades em se
exterminarem uns aos outros, at o ltimo homem e, da que provm grande parte de sua
atual inquietao, de sua infelicidade e de sua ansiedade. Freud afirma ainda que a questo
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fatdica para a espcie humana saber se seu desenvolvimento cultural conseguir dominar a
perturbao de sua vida comunal causada pela agresso e autodestruio prprias do homem.
Sabe-se ainda que o desenvolvimento tecnolgico, na contemporaneidade, trouxe consigo
uma enorme expanso de possibilidades. Enquanto no passado, algumas tcnicas transmitidas
de uma gerao a outras constituam o fundamento da existncia material, existe, hoje em dia,
uma pluralidade aparentemente interminvel de sistemas tecnolgicos em constante
aperfeioamento. Assim, tanto o indivduo como a grande organizao esto diante da
necessidade de escolher uma ou outra possibilidade dessa enorme multiplicidade. Esta
compulso de escolha vai desde os bens triviais de consumo como pasta de dente, at as
opes sofisticadas de carros e aparelhos eletrnicos.
Duas instituies centrais da sociedade moderna promovem a passagem do destino para as possibilidades de escolha e para a compulso de escolher: a economia de mercado e a democracia. Ambas se baseiam na escolha agregada de muitos indivduos e elas mesmas estimulam a um constante escolher e selecionar. O etos da democracia faz da escolha um dos direitos fundamentais do ser humano (BERGER, 2004, p. 59).
Percebemos que quando o homem escolhe, ele elimina, descarta, rejeita algo. assim que
ocorre na contemporaneidade. O indivduo se percebe com uma pluralidade de opes que o
fazem escolher e eliminar ao mesmo tempo. O mais grave que esta estrutura social torna-se
a estrutura da conscincia do indivduo. O mundo subjetivo do indivduo no precisa
concordar plenamente com a realidade objetivamente definida pela sociedade, porque h
pequenas fissuras ou rupturas no processo de socializao, pelas quais perpassam o eu do
indivduo que deseja e escolhe. Portanto o homem hodierno seleciona o que mais atende s
suas necessidades e o resto desprezado.
A ampliao das opes materiais a que se submete o indivduo tambm se estende para o
campo social e intelectual. Antigamente o destino determinava quase todas as fases da vida. O
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indivduo passava pelas fases segundo padres predeterminados: infncia, ritos de passagem,
profisso, casamento, criao de filhos, velhice, doena e morte. Tambm o seu mundo
interior j estava predestinado: seus sentimentos, sua interpretao do mundo, seus valores
e sua identidade pessoal. Hoje, paralelamente multiplicidade de possibilidades de deciso no
campo material surge, nos processos multifacetrios de modernizao, uma pluralidade de
opes no campo social e intelectual: que profisso devo abraar? Com quem casar? Como
educar meus filhos? At mesmo os deuses esto disposio numa multiplicidade de ofertas
de escolha. Posso mudar minha opo religiosa, minha cidadania, meu estilo de vida, minha
auto-imagem. O pluralismo no s permite que escolhamos, mas nos impe escolhas
constantes, principalmente com relao ao consumo: Omo, Minerva ou Tixan; Renault ou
Volkswagen. Hoje, j no possvel no escolher, pois impossvel fechar os olhos diante de
tanta oferta sedutora
No incio dos tempos modernos, pensadores como Descartes, Hobbes, Leibniz e Newton
conheciam quase tudo que era importante de ser conhecido em sua poca, uma vez que
existia um nmero reduzido de publicaes com a facilidade de comunicao pela
universalidade do latim. Hoje, h uma quantidade gigantesca de obras em diversas lnguas,
lanadas numa incalculvel rapidez pela ajuda dos meios de comunicao, tornando
impossvel algum dominar o conhecimento em extenso e em profundidade.
Especialmente durante o sculo XX: a escala do acervo das grandes bibliotecas do mundo saltou do milhar para milhes de volumes. Ou seja: em fins dos anos noventa, 23 milhes para a Biblioteca do Congresso, sediada em Washington...16 milhes para a Biblioteca Nacional da China, sediada em Pequim; 14,5 milhes para a Biblioteca Nacional do Canad,...14,4 milhes para a Biblioteca Alem, 13 milhes para a Biblioteca Britnica;...12 milhes para a Biblioteca Nacional da Frana (DOMINGUES, 2005, p. 28).
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De face desta realidade, conclui-se que o generalista, aquele que visa extenso do
conhecimento, afogaria neste vasto oceano de conhecimento, enquanto que o especialista no
conseguiria apanhar o que se passa no interior profundo de sua disciplina e especialidade. Nas
cincias humanas, a situao seria enormemente agravada pela quantidade de livros, alm das
publicaes indexadas nas mais variadas revistas e outros meios de comunicao. A
transdisciplinaridade se apresenta como uma tentativa de superao e/ou problematizao do
referido dilema no mbito do conhecimento (DOMINGUES, 2005).
A realidade contempornea nos deixa perplexos pela sua complexidade. Percebemos a
destruio do planeta pela violncia humana e pretendemos debruar sobre as reflexes
existentes para encontrar sadas. Contudo, desanimamos, em face dos estarrecedores ndices
de destruio e da infinidade de publicaes existentes. Estamos, pois, alm de perdidos,
desanimados. Vivemos numa era dos homens vazios e cheios. Vazios porque eles se
voltam para si mesmos, sem preocupao com o outro. O individualismo moderno, longe de
ser virtude e autonomia, significa passividade, apatia, egocentrismo. Cheios porque as opes
so quase infinitas.
O homem do sculo XXI vive, em geral, em crise permanente pelo uso descarado da
vantagem social e o desordenado poder do dinheiro, que muitas vezes dirige o curso mesmo
dos acontecimentos. Por um lado encontraremos um grupo com padres abaixo do nvel de
pobreza, enquanto outros se sentem inseguros, amedrontados e escravos do poder e do
dinheiro por estarem muito acima da mdia de poder aquisitivo e renda. Hobsbawm (1999)
afirma que:
O breve Sculo XX acabou em problemas para os quais ningum tinha, nem dizia ter solues. Enquanto tateavam o caminho para o terceiro milnio em meio ao nevoeiro global que os cercava, os cidados do fin-de-sicle s sabiam ao certo que acabara uma era da histria. E muito pouco mais (HOBSBAWM, 1999, p.537).
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E Hobsbawm (1999) encerra sua obra com uma grande preocupao para o nosso sculo:
No sabemos para onde estamos indo. S sabemos que a histria nos trouxe at este ponto e-se os leitores partilham da tese deste livro por qu? Contudo, uma coisa clara. Se a humanidade quer ter um futuro reconhecvel, no pode ser pelo prolongamento do passado ou do presente. Se tentarmos construir o terceiro milnio nessa base, vamos fracassar. E o preo do fracasso, ou seja, a alternativa para uma mudana da sociedade, a escurido (HOBSBAWM, 1999, p.562).
Alm disso, os projetos ambiciosos criados nas ltimas dcadas terminam frustrando, porque
propem-se metas to elevadas que as conquistas permanecem sempre aqum. A luta em prol
da solidariedade tambm no alcana um destaque, porque cada indivduo prefere fechar em
seu mundo de prazer e de lucro. Um projeto para atender aos indivduos na dita ps-
modernidade no conseguiu ainda organizar prioridades e quando escolhe frustra-se ao
colocar em funcionamento, porque o capital o que tem mais se beneficiado no jogo
ideolgico, em detrimento da justia social, solidariedade, emancipao e igualdade.
As crises nos assaltam de fora e de dentro. Inseridos numa sociedade e numa cultura, sentimo-
nos abalados quando percebemos mudanas na legislao, por exemplo, que geram perdas de
direitos adquiridos pelo trabalhador. A concepo de trabalho e de emprego vem mudando e
afetando a maneira de ser dos indivduos pela insegurana financeira que isto pode gerar.
Muitas vezes, alm do desemprego a nova maneira de insero das pessoas no mundo do
trabalho cria dificuldades para o indivduo conduzir at sua vida privada.
Na sociedade tradicional e industrial as pessoas, bem ou mal, escolhiam uma profisso ou
assumiam determinado trabalho que lhes garantia por toda a vida o sustento, salvo algum
percalo mais raro. Hoje a mobilidade no emprego cresceu enormemente em todos os nveis
sociais. O desenvolvimento tecnolgico tem produzido um deslocamento massivo das
pessoas, ora substituindo-as por mquinas, ora exigindo delas um reaprendizado permanente e
a altos custos.
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A mobilidade profissional desgasta profundamente e gera insegurana nos trabalhadores que
hoje j se apresentam mais frgeis psicologicamente. A tendncia do deslocamento dos
setores agrcola e industrial para os de servios afeta fortemente os empregados, pois os
servios pedem das pessoas mais habilidades e capacidades mentais alm de serem criativas,
gerando uma concorrncia mais acirrada, conduzindo a incertezas, dvidas e angstias.
A mdia tambm dilacera as pessoas nesta contemporaneidade, principalmente os mais
pobres, aprofundando ainda mais o corte entre o desejo e a realidade, entre os sonhos e as
possibilidades reais. A mdia amplia os desejos, mas no d o capital. Esse jogo engendra
vrios efeitos nefastos, aumentando a tenso social, a insatisfao das pessoas, levando-as a
atos de violncias, roubos, assaltos para satisfaz-las de um consumismo estimulado pela
propaganda e para o qual no dispem de recursos econmicos. A mdia oferece o prazer. O
telespectador goza da intensidade das sensaes de superfcie que as imagens oferecem, sem
ativar consistentemente os mecanismos de identificao e projeo nos confrontos de
personagens.
Pensamos que hoje est ocorrendo uma banalizao do mal como afirmava Arent (1991), pois
no sabemos mais distinguir entre o que ou no horrendo, pois fomos educados num tempo
em que o horror perdeu seu aspecto extraordinrio. Para uma sociedade excludente,
desrespeitosa, a realidade feia, pobre, negra, mal vestida como se no existisse, por isso
pode ser eliminada.
Poderamos multiplicar as barbaridades de nosso tempo que configuram a crise existencial.
Contudo, apesar das dificuldades apresentadas, temos que reagir, tomar uma atitude, atuar,
posicionando-nos de forma consciente. Estamos, por um lado, presos e emaranhados nesta
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teia que ns mesmos construmos. Entretanto nesta mesma teia, nesta rede catica da
informtica, dos neurnios, das relaes dos homens entre si e com o mundo que se faz
necessria uma organizao em pontos estratgicos. Pontos estes que se agrupam, se
conectam, permitindo o agrupamento das cincias, das tecnologias e das artes num sistema
no fechado, mas aberto, ligado, sem idia de hierarquia, mas com possibilidades de
cruzamento de conhecimentos tanto no plano social quanto no plano individual.
Assim, hoje tempo no somente de constatar o negativo do caos que se instalou, mas
tambm tempo de buscar, principalmente, algumas possibilidades de reflexo. Por isso
devemos nos questionar: possvel redescobrir uma macrotica, vlida para a humanidade?
Nossa hiptese de que preciso criar uma macrotica, mas tambm uma tica da
responsabilidade, fundada na razo de maneira a dominar plenamente as formas culturais
contemporneas.
Sabemos que cada sociedade possui seu ethos, ou se compe de um conjunto de ethos, jeito
de ser que conferem um carter quela organizao social. O indivduo trabalha e consome,
aprende e cria, reivindica e consente, participa e recebe: a universalidade do ethos se desdobra
e particulariza em ethos econmico, ethos poltico, ethos social propriamente dito (LIMA
VAZ, 1988, p.22).
Os papis sociais tm seu fundamento no ethos de uma sociedade. Ethos (grego) e mores
(latino) significam costume, jeito de ser, portanto nos remete criao cultural. No h
costume na natureza. O costume resulta no estabelecimento de um valor para a ao humana,
que criado, conferido pelos prprios homens, na sua relao uns com os outros. O ethos a
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casa do homem (...) o espao do ethos, enquanto espao humano, no dado ao homem, mas
por ele construdo, incessantemente reconstrudo (LIMA VAZ, 1988, p.12).
O domnio do ethos o da moralidade, do estabelecimento de deveres, a partir da reiterao
das aes e da significao a elas atribuda. O ethos a face da cultura que se volta para o
horizonte do dever-ser ou do bem (LIMA VAZ, 1988, p.19).
Hoje, pensa-se somente em criar leis para educar. Sabemos que no basta que uma ao seja
legal para que seja moral. Para que uma ao seja moral necessrio que acontea algo no
nimo ou na vontade daquele que a executa. Um ato moral tem pleno mrito moral quando a
pessoa que o realiza determinou-se a realiz-lo unicamente porque esse o ato moral devido.
Frente a este quadro, a filosofia de Ricoeur nos pareceu a filosofia da esperana, oferecendo
uma sada para alm do nihilismo contemporneo. No devemos entender aqui uma filosofia
distante, idealizada, impraticvel, mas uma filosofia da esperana como uma tica, um dever
ser, como uma vontade que impulsiona o ser humano para o bem nas relaes consigo
mesmo, com os prximos e com aqueles que se encontram mais distantes de ns. Neste ponto,
lembramos que Kant explicava que uma ao denota uma vontade pura e moral quando feita
por respeito ao dever, como imperativo categrico e no como imperativo hipottico. Este
respeito ao dever um imperativo categrico para Kant, ou seja, a lei moral universal, que a
seguinte: age de maneira que possas querer que o motivo que te levou a agir seja uma lei
universal.
Como vimos, as sociedades contemporneas e o sistema mundial em geral esto a passar por
processos de transformao social muito rpidos e muito profundos que pem definitivamente
em causa as teorias e os conceitos, os modelos e as solues anteriormente considerados
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eficazes para diagnosticar e resolver as crises pessoais e sociais. A pobreza extrema de uma
parte significativa e crescente da populao mundial, o agravamento aparentemente
irreversvel das desigualdades sociais, a degradao ambiental, as guerras, as violncias e a
ausncia de solues possveis para qualquer destes problemas, levam-nos a pensar que o
homem como um ser histrico, isto , inserido num tempo e num espao, repete aes, sem
uma leitura crtica da sua realidade e da realidade social, porque sua memria se mantm
esquecida.
Foi participando do programa de ps-graduao stricto sensu em Educao, Cultura e
Organizaes Sociais e analisando criticamente vrios pensadores que ficaram colocadas as
questes: o que fazer face a este panorama da contemporaneidade? Qual tema abordar? A
partir de uma percepo pessoal da problemtica atual, comeamos a pensar na questo do
perdo como possibilidade para a contemporaneidade, a fim de que os indivduos no
somente repetissem os mesmos erros do passado, mas que pudessem esquec-los por meio
de uma reconciliao com o passado. Foi assim, em busca de uma melhor compreenso do
que seja o perdo e do seu valor como uma virtude para ser objetivada pelo ser humano, como
sada e esperana, a partir de uma mudana de seu comportamento no presente, que fomos
procura de pensadores sobre o assunto. Nesta pesquisa tomamos conhecimento recentemente
de uma obra do filsofo francs, Paul Ricoeur: La Mmoire, L Histoire, l'Oubli (Paris, Seuil,
2000), na qual ele escreve um eplogo com o ttulo: perdo difcil. Ento, passamos a estudar
esta obra de Ricoeur, a partir da problemtica do perdo, tentando compreender como o
perdo se encontra imbricado nas idias desta prpria obra, como tambm imbricado em toda
obra de Ricoeur e nos contextos de outros intelectuais. Contudo, ao iniciar nosso estudo, duas
questes foram colocadas norteando este trabalho:
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1. Por que Ricoeur escolhe o perdo como tema do eplogo de uma obra destinada a tratar da
histria, da memria e do esquecimento?
2. Pode o perdo ser um conceito fundamental para a construo de uma nova tica para o
mundo contemporneo?
Esclarecemos que gostaramos de ter tido mais condies de consultar, detalhadamente, obras
comentadas sobre Ricoeur. Contudo para melhor situar o leitor, informamos alguns dados
sobre sua biografia e sua obra1.
Paul Ricoeur (1913-2005), filsofo francs contemporneo. De famlia protestante, estudou
no liceu de Rennes. Perdeu o pai no incio da Primeira Grande Guerra e a me, pouco tempo
depois, ficando sob os cuidados dos avs. Em 1935 laureou-se em filosofia, e sucessivamente
ensinou durante alguns anos em liceus. Convocado em 1939, capturado pelos alemes e
permanece prisioneiro at 1945. Na priso estudou a filosofia de Jaspers e esboou uma
traduo da Idias de Edmund Husserl. Ao sair da priso, ensinou filosofia no colgio
Cvenol, um centro de cultura cristo dirigido por protestantes e situado no alto Loire. Amigo
de Mounier e colaborador da revista Esprit, em 1952 Ricoeur sucede a Jean Hyppolite na
ctedra de histria da filosofia na Universidade de Estrasburgo. Em 1956, tornou-se professor
de filosofia na Sorbonne. Transferindo-se a seguir para a nova faculdade de Nanterre nos anos
difceis da contestao. Tornou-se ainda docente na Divinity School da Universidade de
Chicago, da qual foi declarado professor emrito2.
1 RICOEUR, Paul. A hermenutica bblica So Paulo: Loyola, 2006; SUMARES, Manuel. O Sujeito e a Cultura na Filosofia de Paul Ricoeur. Lisboa: Echer,1989; BLATTCHEN, Edmond. Paul Ricooeur o nico e o singular. So Paulo: UNESP, 2002; DOSSE, Franois. Paul Ricoeur: Le sens d une vie. Paris: La Decouverte, 2001 ; RICOEUR,Paul. La critique e la conviction. Paris: Calmann Lvy, 1996; GREISCH, Jean. Paul Ricoeur l itinrance du sens. Grenoble : Jrme Millon, 2001. 2 Suas obras: De 1947 Karl Jaspers et la philosophie de l existence ( escrito com M. Dufrenne). No ano seguinte Ricoeur publica o ensaio Gabriel Marcel et Karl Jaspers.Philosophie du mystre et philosophie du paradoxe. De 1955 Histoire et vrit. A primeira parte de sua grande obra Philosophie de la volont sai em 1950 com o ttulo Le volontaire et l involontaire; a segunda parte em 1960, com o ttulo Finitude et culpabilit,
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No incio dos anos sessenta foi preso por causa das suas posies a favor da independncia da
Arglia.. Ricoeur construiu uma obra de quase trinta livros atravs do dilogo cerrado com a
hermenutica, a fenomenologia, a psicanlise, a teologia, a filosofia analtica e a histria. Esta
multiplicidade de perspectivas acabou contribuindo por isol-lo do debate intelectual na
Frana estritamente estruturalista dos anos sessenta e setenta. Soma-se a isto o fato do
filsofo ter ocupado o emprego mais ingrato daquela poca: o cargo mais elevado da
Universidade de Nanterre, isto exatamente em 1968. O caminho acabou sendo as
universidades norte-americanas, pas que o acolheu durante vinte e cinco anos e onde sua
influncia se faz sentir nos meios acadmicos de filosofia, histria e literatura. Paul Ricoeur
morreu no dia 20 de maio de 2005, aos 92 anos.
Cinco anos antes de sua morte, Ricoeur escreve uma obra denominada: La Mmoire, l
Histoire, l Oubli. Em formato de bolso, 689 pginas, a obra est dividida em trs partes,
conforme apresentamos cpia, em anexo, do sumrio.
Primeira parte: Da memria e da Reminiscncia
1-Memria e imaginao
2-A memria exercida: uso e abuso
3-Memria pessoal, memria coletiva
Segunda parte: Histria epistemologia
Preldio: A histria: remdio ou veneno?
1-Fase documentaria: a memria arquivada
em dois volumes: L homme faillible e symbolique du mal. De l interprtation. Essai sur Freud aparece em 1965; Le conflit des interprtations. E de 1969 ; La mtaphore vive publicado em 1975. No perodo 1983-1985 temos os trs volumes de Temps et rcit. De 1986 Du texte l action. Essais d hermutique II.
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2-Explicao/ compreenso
3-A representao histrica
Terceira parte: A condio histrica.
Preldio: O fardo da histria e o no- histrico
1-A filosofia crtica da histria
2-Histria e tempo
3-O esquecimento
Eplogo: O perdo difcil.
Partindo de uma anlise fenomenolgica da memria que encontra suas razes em Edmund
Husserl, o filsofo aborda os problemas do estatuto epistemolgico da histria e da partilha
sempre problemtica entre memria e esquecimento. Em La Mmoire, lHistoire, l Oubli,,
Ricoeur busca, de maneira crtica, o sentido da memria, histria e esquecimento e procura
mostrar como este sentido pode ser trazido para o sujeito como algo a ser sempre elaborado
em sua vivncia, objetivando uma utopia pessoal e social. no horizonte destes trs espaos
que Ricoeur nos apresenta a utopia do perdo, visto como possibilidade concreta de um
esquecimento feliz.
Ricoeur nos adverte, no incio de sua obra, que necessrio propor uma poltica da memria
equilibrada, pois o que se v hoje, um espetculo inquietante que nos apresenta de um lado o
excesso de memria, como repetio pessoal ou como um exagero de comemoraes , como
se fosse uma patologia pessoal e social. Por outro lado h um excesso de esquecimento, como
no caso de trauma, ou no caso de pases totalitrios em que predomina-se uma ideologia como
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apagamento do passado. Ricoeur questiona o porqu de serem destacados certos
acontecimentos histricos como o holocausto como se fosse um sobre-recordar e por outro
lado h outros acontecimentos que so sub-recordados.
Continuo preocupado com o inquietante espetculo proporcionado pela memria demais aqui, pelo esquecimento demais acol, para no falar na influncia das comemoraes e dos abusos de memria e de esquecimento. A idia de uma poltica da justa memria , sob esse aspeto, um de meus temas cvicos confessos (RICOEUR, 2000, p. I)
Esta afirmativa demonstra a preocupao do autor, como um cidado que vivenciou, com
conscincia, os desastres de um trgico sculo XX.
Sua obra, La Mmoire, l Histoire, lOubli, comporta, como j foi exposto, trs partes
nitidamente delimitadas pelo seu tema.
Na primeira parte Ricoeur inicia baseando-se na filosofia de Plato e, posteriormente, na
filosofia de Aristteles. Para Plato o mundo sensvel uma cpia do mundo inteligvel. Com
esta teoria da dualidade Ricoeur vai comentar sobre a representao presente de uma coisa
ausente. Por exemplo, quando fomos afetados por alguma situao seja agradvel ou
desagradvel, passado algum tempo, ao lembrar-nos dessa situao teremos o afeto como algo
presente, mas a situao passada permanecer ausente. Esta questo da memria -
reminiscncia retorna ao problema dos gregos que era um problema da imagem. A questo da
presena da ausncia estaria ligada questo do erro, pois podemos nos equivocar ao lembrar.
Contudo no se tem nada melhor do que a memria para se assegurar de que alguma coisa
ocorreu no passado. Vejamos como no estamos diante do problema do conhecimento de si,
mas antes diante do problema da representao de um acontecimento anterior. Esta parte que
consagrada memria e aos fenmenos mnemnicos, baseia-se na fenomenologia de
Husserl. Na discusso sobre memria e imaginao vamos encontrar o distanciamento entre o
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verdadeiro e o falso. Plato j tinha tentado fazer a diferena entre um cone falacioso e um
cone que seria o portador da verdade da coisa.
Em vrias passagens desse captulo, Ricoeur faz referncias psicanlise em relao
fenomenologia. Sabemos que a fenomenologia coloca seu foco principal na questo da
conscincia. Logo, o inconsciente aparecia como um desafio epistemolgico. Afirma Ricoeur:
Ora eu levei muito a srio a noo de inconsciente enquanto algo irredutvel ao que Sartre havia compreendido como m-f. Minha questo era: h lugar para o inconsciente na fenomenologia? A resposta era no. Neste sentido, era necessrio deixar o desafio aberto pois, com o inconsciente, a fenomenologia encontrava seus limites. E lembremos que reconhecer seus limites ainda fazer cincia. Para Kant, a tarefa crtica consiste em reconhecer o que se coloca como limite e, no mesmo movimento, determinar quais so as circunscries de jurisdio da racionalidade. Veja que esta explorao sistemtica dos limites um ponto que ser muito recorrente na minha filosofia (SAFATLE, s/d).
Nessa primeira parte da obra, o autor discute a contribuio da psicanlise para tratar da
memria impedida em que o analisado repete as situaes porque no consegue lembrar o seu
passado, ou no consegue reconciliarse com este passado com vistas a um futuro. Afirma
Ricoeur que, na Psicanlise, necessrio trabalhar as lembranas, pois h sempre resistncias
ao enfrent-las. A questo psicanaltica de vencer as resistncias pode ser transformada na
questo de saber como dizer, ou melhor, como o outro pode fazer algum dizer o que parecia
ser impossvel expressar. Portanto a linguagem fundamental na psicanlise porque onde se
v a importncia do engajamento do sujeito naquilo que ele diz. Ricoeur comenta que Freud
havia encontrado na cura psicanaltica o problema das resistncias e da compulso de
repetio. De fato, ele procurava entender como a memria poderia se liberar da compulso
de repetio.
Ricoeur tambm se refere memria pblica que enfrenta problemas de repetio atravs das
comemoraes. Ento surge a questo: como fazer para que as comemoraes sejam
autnticas, ao invs de se transformarem em meras concesses repetio obsessiva?
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A segunda parte dedicada epistemologia das cincias histricas. Ricoeur vai discutir a
questo de uma memria que atravessou os desafios da histria, transformando-se em
memria coletiva e que passou pelo crivo destes processos que compem a histria e que so:
a escritura, os arquivos, a prova documental, a explicao, a compreenso e a expresso. A
partir da podemos colocar o problema da memria justa, ou interrogar, como as instituies
podero administrar as prticas pblicas da memria? Ricoeur apresenta ainda o problema de
disposies institucionais como a prescrio e a anistia. Anistia comunga em sua etimologia
com a palavra amnsia. Acontece que no caso da anistia no h esquecimento, pois no h um
apagamento da memria da sociedade.
Ao analisar a histria, Ricoeur procura entender como podemos saber se um acontecimento
ocorreu, como tentamos explic-lo e como tentamos narr-lo. A Shoah, por exemplo, um
obstculo ao testemunho, explicao, ao julgamento e ao perdo, fazendo vacilar o
empreendimento historiogrfico. Se o testemunho s compreendido se ele reencontra a
capacidade ordinria de compreenso, como iramos compreender, explicar, aceitar
acontecimentos horrendos sofridos pela humanidade? Assim, so estes acontecimentos
difceis a explicar que colocam prova a nossa capacidade de escuta e de compreenso. Aqui,
pois, est em jogo a memria que impede explicaes e representaes pelos traumas
causados pelos acontecimentos.
A terceira parte discute o problema do esquecimento numa hermenutica da condio
histrica do homem. Apesar da diviso da obra, Ricoeur nos apresenta uma problemtica
comum que atravessa a fenomenologia da memria, a epistemologia da histria e a
hemenutidca da condio histrica, que seria a representao do passado, ou seja, esta
presentificao do que j foi a presena da ausncia. Aqui o esquecimento visto sob duas
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perspectivas: uma do esquecimento como apagamento e outra do esquecimento como reserva.
O esquecimento como apagamento pode ter fundamentos patolgicos, como doenas mentais,
envelhecimento, mortes. J o esquecimento de reserva trata-se de um esquecimento em que
persistem traos das primeiras impresses, daquilo que mais afetou, deixando marcas
profundas no ser humano. Todo esquecimento no um ato, ele um estado, ele sofre uma
ao. Por isso impossvel exigir um esquecimento total de crimes que marcaram uma
sociedade. Por exemplo, nunca esqueceremos os crimes da Shoah, pois no nos basta receber
um comando, dizendo: Esquea, para que tudo desaparea ou apague de nossa memria.
Por outro lado, h um esquecimento j incorporado memria atravs da impossibilidade em
narrar totalmente a histria.
Como eplogo da obra, o autor comenta sobre a questo do perdo. Se o perdo puder ser uma
memria reconciliada ento haver reconciliao com o esquecimento. Nessa parte Ricoeur
discute o perdo como marca ou trabalho difcil, colocando a questo da representao
presente da coisa ausente marcada pelo sinal da uma anterioridade. Sobre este aspecto da
representao explicaremos mais detalhadamente na concluso.
Ricoeur afirma que para se pensar em perdo tem que se considerar o erro que originou um
distanciamento entre as pessoas, paralisando a fora de agir do ser humano como uma
potencialidade. Nesta parte Ricoeur aborda a questo do perdo tambm de maneira
secularizada. Assim, o problema aqui apresentado ser o de como conhecer a obra de Ricoeur,
La Mmoire, l Histoire, lOubli, sua filosofia e as idias de outros pensadores pela janela do
perdo, como um esquecimento feliz atravs de um voto de vontade em busca de uma
reconciliao com o passado. Nossa hiptese de que o perdo seria uma possibilidade de
superao das dificuldades apresentadas nesta dita ps-modernidade.
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Quanto metodologia pretendemos estudar a obra referida por meio de uma abordagem
micro-histrica. Segundo o conceito apresentado por Jacques Revel, esta abordagem afirma
em princpio, que a escolha de uma escala particular de observao produz efeitos de
conhecimento e pode ser posta a servio de estratgias de conhecimentos (REVEL, 1981, p.
20). Por isso seria por esta janela que iramos visualizar o horizonte do perdo imbricado na
memria, na histria e no esquecimento. Por esta janela pensamos caminhar, viajar, voar,
navegar em busca de um lugar que no est em nenhum lugar, ou quem sabe num entrelugar,
onde estaria o perdo como possibilidade de um apaziguamento humano.
Partindo de Geertz (1979, p.15), quando afirma: assumo a cultura como sendo essas teias e a
sua anlise; portanto, no como uma cincia experimental em busca de leis, mas como uma
cincia interpretativa, procura de significado, podemos dizer que a descrio a que nos
propomos fazer ser densa, porque ser atravs do fio do perdo que iremos circular por toda
a teia tentando interpretar o homem procura de um significado. Nossa circulao se dar em
direes diversas, de idas e vindas, pela obra estudada, pela filosofia de Ricoeur, pela viso
de outros pensadores e pela possibilidade de encontrar uma sada neste emaranhado da teia da
contemporaneidade. Assim, nesta rede composta por ligaes, conexes, formando um tipo de
raiz no axial, mas ramificada, espalhando-se por todos os lados que tentaremos construir este
trabalho.
Pensamos, pois, em discutir a obra citada a partir da questo do perdo ali colocada, uma vez
que no temos conhecimento para relacionar a obra em estudo com todo o trabalho
desenvolvido por Ricoeur. Sabemos que um estudo desta natureza implica em riscos, pois foi
uma obra escrita mais no final da vida de Ricoeur, em que ele sintetiza vrias idias j
discutidas podendo dizer que por um lado uma obra de acabamento, porm, por outro lado
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um inachvement, como afirma o autor um inacabamento, porque trata-se da vida. Por isso
embarcamos nesta viagem com todas as limitaes possveis de estudo, de tempo, de
compreenso, porm com uma enorme vontade de ser no algum que somente conhece a
teoria de um filsofo, mas, algum que a vivencia. Portanto esta viagem ser nem fcil, nem
impossvel.
Antes de apresentarmos os captulos, gostaramos de esclarecer que o leitor ir estranhar a
estrutura do trabalho, uma vez que a questo do perdo ser tratada especificamente no
terceiro captulo. Os captulos antecedentes, ou seja, um e dois abordaro elementos utilizados
por Ricoeur para fundamentar a problemtica do perdo, razo pela qual nestes dois captulos
a questo do perdo fica como que secundria, no no sentido da importncia, mas no sentido
de vir em segunda posio. A nossa escolha desse tipo de exposio se deve prpria
estrutura mesma utilizada por Ricoeur na obra La Mmoire, lHistoire, l'Oubli, em que o tema
do perdo tratado como eplogo.
Alm disto, este trabalho representa um primeiro esforo de estudo sobre a obra citada e que
no atende propriamente ao objetivo proposto, qual seja de estabelecer as mltiplas e
possveis relaes entre memria, histria e esquecimento com o perdo, uma vez que na
referida obra, nem o prprio Ricoeur o fez com clareza. Dentro da nossa compreenso
somente em um trabalho posterior e, depois de um conhecimento mais abrangente e
aprofundado das vrias obras do autor que esta possibilidade tornar-se-ia, mais concreta.
Confessamos, por ltimo, com humildade, que esta obra complexa, em lngua francesa sem
traduo3 para o portugus e que exprime elevadssimo grau de erudio do autor, o que
dificultou por demais uma compreenso adequada do seu alcance.
3 Todas as citaes foram traduzidas pela autora deste trabalho, assumindo toda a responsabilidade pelas tradues e pedindo, antecipadamente, perdo pelos erros aqui cometidos.
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Aps estes comentrios, esclarecemos que nosso trabalho ser composto de trs captulos. No
primeiro captulo, trataremos da temtica: O trabalho de memria e o trabalho de luto,
destacando a questo do papel da memria e a imaginao, a memria-reminiscncia,
memria-hbito como representao do passado, mostrando ainda o problema da
temporalidade em Santo Agostinho, a memria pessoal e as dificuldades e as possibilidades
que a memria apresenta para se conseguir o perdo. Comentaremos sobre o qu da
lembrana distinto do quem lembra.
Ainda nesse primeiro captulo chamaremos ateno para os comentrios de Ricoeur sobre a
psicanlise. Ricoeur apresenta uma discusso sobre o problema da memria como patolgico-
teraputico em que discutida a memria impedida, machucada ou mesmo doente.O trabalho
desta memria de repetio impedindo a lembrana do objeto perdido.
Ricoeur discute, ainda, a questo da memria manipulada existente no nvel prtico, pois ela
funciona com base em uma ideologia. Sabemos que em geral no existe comunidade histrica
que no tenha nascido de uma relao originria guerra. Por isso o que se celebra sob o
titulo de eventos fundadores so essencialmente atos violentos legitimados aps golpe de um
Estado de direito precrio, gerando lembranas ora com significado de glria para uns e para
outros uma humilhao.
Sobre o nvel tico-poltico, Ricoeur afirma que interessante interrogar sobre a idia de
justia com relao ao dever de memria, que significa um dever para considerar a falta e
tentar super-la. Esta memria exige um trabalho de superao.
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No segundo captulo ser apresentado: A condio histrica e o esquecimento. No
discutiremos a questo da Histria como epistemologia.4 Daremos preferncia ao aspecto da
condio histrica, principalmente abordando o sentido de Heidegger, por estar mais
relacionada com o perdo. Aqui ser discutido o esquecimento no como um evento, algo que
acontece ou que se faz acontecer, mas como um estado em que o indivduo permaneceria
sofrendo a ao. Este estado uma fora - uma faculdade de inibio ativa que pode ocorrer
por um problema patolgico, como uma amnsia, ou at esquecimentos involuntrios como
apresenta Freud. Assim, enquanto a memria se volta, dando possibilidades retribuio, ao
restabelecimento, absolvio, pelo perdo, o esquecimento desenvolve situaes mais
duradouras em sentido histrico e que so constitutivas do trgico da ao. Veremos tambm,
neste captulo a problemtica da condio histrica do homem que dificulta atingir o perdo,
pois a ao impedida pelo esquecimento de continuar seja pelo emaranhamento dos papis
impossveis de separar, seja pelos conflitos insuperveis em que o desacordo insolvel,
intransponvel, seja ainda pelos erros irreparveis. Se o perdo tem algo a fazer nestas
situaes, ele pode atuar de maneira a tentar fazer o indivduo a saber esperar.
Finalmente, no terceiro captulo, mostraremos o que Ricoeur entende por perdo e como ele
deve ser elaborado para superao das dificuldades, dos traumas, objetivando a felicidade do
ser histrico que o homem.
Este programa de ps-graduao stricto sensu tem como prisma as temticas
transdisciplinares e questes advindas da contemporaneidade. Por isso devemos esclarecer
que a temtica do perdo se justifica como contempornea, uma vez que o nosso sculo XXI
amanheceu mergulhado numa banalizao do mal e que necessrio procurar uma sada para
4 Sobre a epistemologia da histria, ver La Mmoire, l Histoire, l Oubli, 2000, p. 167-359.
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reduzir a violncia pessoal e social. Alm disso, esta temtica transdisciplinar, pois falar de
memria falar de esquecimento, falar de memria e esquecimento falar de histria e no
h memria, histria e esquecimento que no sejam perpassados pelo estilete5 do perdo que,
ao mesmo tempo escreve, registra, mas corta a histria, a memria e o esquecimento.
Enfim, queria ressaltar que La Mmoire, l Histoire, lOubli, apesar de serem trs mastros
distintos, sustentam velas emaranhadas entre si, que pertencem mesma embarcao,
destinada a uma nica viagem, esta das odissias do perdo, em que tem como viajante um
homem capaz e esperanoso de uma vida apaziguada e feliz.
5 Estilete do francs arcaico stylet de onde veio stylo (caneta) aquilo que serve para escrever, registrar como os gregos escreviam em pedras com estiletes. Por outro lado, estilete instrumento que serve para cortar.
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CAPITULO I: O TRABALHO DE MEMRIA E O TRABALHO DE LUTO
Neste captulo trataremos especificamente da fenomenologia da memria que mostra as
mltiplas formas que se pode declinar o ser-do-passado. Para Ricoeur ao analisar a memria
importante perguntar de que se lembra, como se lembra, e quem se lembra. Neste captulo
apresentaremos os pares criados por Ricoeur como: memria imaginao, memria
reminiscncia, memria temporalidade, memria hbito, alem da questo da memria
como um trabalho de luto e a interioridade de um homem que possui memria com poder,
com possibilidade e capacidade de lembrar e esquecer.
Alm disso, ser apresentada a questo das lembranas espontneas, mas principalmente o
esforo de memria que exige um trabalho, o que Ricoeur vai chamar de perlaboration que
chega a superar as resistncias e a compulso de repetio.
Durante a Segunda Grande Guerra, Ricoeur permaneceu como prisioneiro. Na priso, esboou
uma traduo das Idias de Edmund Husserl6 e declarou em sua autobiografia que recebeu
influncia do existencialismo e da fenomenologia.
Por isso, ao iniciar este captulo, esclareceremos algumas idias sobre o que seja a
fenomenologia de Husserl e ao discorrer sobre os fenmenos mnemnicos faremos referncia
a esta fenomenologia para melhor interpretarmos o pensamento de Ricoeur e podermos
compreender o ser da memria com vistas ao perdo nem fcil, nem impossvel.
6Sobre Edmund Husserl (1859-1938) ver ABBAGNANO. Histria da Filosofia,1965, p.80-81.
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A fenmeno-logia, ou seja, a cincia dos fenmenos pretende ser cincia de essncias e no
de dados de fato, mas seu objetivo o de descrever os modos tpicos com os quais os
fenmenos se apresentam conscincia. Portanto a fenomenologia cincia dos modos
tpicos do aparecer e do manifestar-se dos fenmenos conscincia, cuja caracterstica
fundamental a da intencionalidade.
Segundo Abbagnano, (1965, p.75) a fenomenologia, no sentido especfico em que esta
palavra empregada - para designar uma corrente da filosofia contempornea concebe e
exerce a filosofia como anlise da conscincia na sua intencionalidade.
Deve-se esclarecer que para a fenomenologia a conscincia sempre conscincia de alguma
coisa. Quando eu percebo, imagino, penso ou recordo, eu percebo, imagino, penso ou recordo
alguma coisa. Por isso se pode ver, segundo Husserl, que a distino entre sujeito e objeto d-
se imediatamente: o sujeito um eu capaz de atos de conscincia como perceber, julgar,
imaginar e recordar. O objeto, ao contrrio, o que se manifesta nesses atos, ou seja, corpos
percebidos, imagens, pensamentos recordaes. Assim devemos distinguir ainda o aparecer de
um objeto do objeto que aparece. E se verdade que conhecemos o que aparece, para Husserl
tambm verdade que vivemos o aparecer do que aparece. Husserl chama de noese o ter
conscincia, e noema aquilo de que se tem conscincia.
Para tratar do fenmeno da memria j precisamos distinguir o que da memria do quem
da memria. Relativamente questo do perdo teremos tambm necessidade de distinguir o
ato do agente, a fim de no ser to difcil de elaborar um perdo. Sendo assim Ricoeur afirma:
A fenomenologia da memria aqui proposta se estrutura em torno de duas questes: de que
se lembra e de quem a memria? (RICOEUR, 2000, p.3).
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Partindo do princpio de que toda conscincia conscincia de alguma coisa, Ricoeur afirma
que esta viso objetiva coloca um problema no plano da memria. Lembrar seria ou no seria
um ato reflexivo? Lembrar de alguma coisa no lembrar-se de si? Por isso, h que se colocar
a questo O qu antes da questo quem. Colocar primeiramente a problemtica do eu
tenho conscincia (noese), para, posteriormente vir a coisa de que se tem conscincia
(noema). Alm disso, em uma anlise fenomenolgica da memria, Ricoeur vai se preocupar
com o que a memria retm ou esquece e como vivenciamos esse movimento de mostrar e
esconder da memria no nosso dia-a-dia.
A palavra de ordem da fenomenologia da memria que esta possui um dever que o de
voltar realidade das prprias coisas, devendo ser fiel ao real com a marca da temporalidade.
Husserl estava persuadido de que o conhecimento comea com a experincia de coisas
concretas existentes, de fatos. A experincia nos oferece continuamente dados de fato com os
quais nos vemos s voltas na vida cotidiana e dos quais a cincia tambm se ocupa. Contudo a
conscincia no seu processo de intencionalidade busca dados de fato e imagens.
1.1 Memria e imaginao
O termo imaginao derivado do adjetivo latino imaginarius que de um modo geral se
aplicava a tudo aquilo que fosse imagem ou realidade secundria e subjetiva, ou mesmo termo
que se aplicava a dois contedos primeira vista contraditrios: o de no ter um modelo
original na realidade e o de emprestar a uma fantasia tida por irreal a aparncia de uma
realidade. A vivncia do imaginrio foi reconhecida por Freud na experincia da estranheza
do sujeito e o imaginrio se define, no sentido lacaniano, como o lugar do eu por excelncia
(ROUDINESCO, 1944, p.371). Contudo deve-se ressaltar a significao dada ao imaginrio
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por Sartre, como intencionalidade da conscincia em relao ao que percebido: apoiando-
se numa descrio fenomenolgica, procura mostrar que a imaginao no qualquer coisa de
intermdio entre o objeto e a conscincia, mas est estreitamente relacionada com o mundo
do pensamento e com a possibilidade mesma das aes humanas. (LOGOS, 1989, p.1343).
A partir desta significao dada por Sartre observamos o quanto a imaginao plena de
sentido uma vez que est intimamente ligada possibilidade das aes, dos atos, das atitudes
humanas.
Ricoeur afirma que quando se refere ao passado, refere-se representao de um evento ou
uma imagem que se tem quase visual ou auditiva deste passado, causando um tipo de curto-
circuito entre memria e imaginao. Quando evocamos um acontecimento passado, criamos
imagens que podem representar este acontecimento, isto tornar presente o passado, e que
podem colaborar para acontecer a lembrana. Este encadeamento de idias pode afastar da
lgica, do entendimento ou da realidade propriamente dita. necessrio ainda ressaltar que
imaginar no lembrar-se, mas medida que se lembra pode imaginar ou viver em uma
imagem.
A ameaa permanente de confuso entre a rememorao e a imaginao, resultante deste tornar-imagem da lembrana, afeta a ambio de fidelidade na qual se resume a funo verdadeira da memria. Mas no se tem nada melhor que a memria para assegurar algo que passou antes de se formular a lembrana. A historiografia, no conseguir deslocar a convico sem cessar ridicularizada e afirmada de que o referente ltimo da memria permanece o passado, seja como possa significar a passadidade do passado (RICOEUR, 2000. p.7)
A ameaa permanente de confuso entre recordao e imaginao, resultante deste tornar
imagem da lembrana afeta a ambio de fidelidade na qual resume, para Ricoeur, a funo
verdica da memria. Alm disso, h um enigma comum imaginao e memria que se
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trata da presena da ausncia. Este jogo de presena-ausncia trar possibilidades em suas
fronteiras para busca de uma imaginao.
A idia diretriz a diferena que se pode dizer eidtica7 entre duas vises, duas intencionalidades: uma a da imaginao, voltada para o fantstico, a fico, o irreal, o possvel, o utpico; o outro esta da memria voltada para a realidade anterior, a anterioridade constituindo a marca temporal por excelncia da coisa lembrada, da prpria lembrana (RICOEUR, 2000, p. 6).
Considerando esta separao entre presena-ausncia deve-se debruar sobre a teoria
platnica do eikon, no qual Plato faz referncia ao tempo passado que se encontra implcito,
pois a memria do passado, como tambm refere-se possibilidade de imaginar, pois a
coisa est ausente.
A herana grega nos apresenta a posio platnica de que a memria trata da representao,
ou seja, um tornar presente algo que est ausente.
Etimologicamente, fantasma significa imagem ilusria, viso terrfica, medonha, apavorante,
coisa espantosa que existe apenas aparentemente ou que esconde propsitos fraudulentos. O
fantasma, a imagem, a iluso, a viso fantasiosa se apresenta ligada memria. Assim, a
lembrana conduz a uma realidade e a uma no realidade, pois a coisa pode chegar memria
por ela mesma ou atravs de sua fantasia.
Por isso, a inscrio, a representao, a cpia, o eikon platnico um phantasma que pode
apresentar algo de verdadeiro, mas pode apresentar a possibilidade ontolgica do erro.
7 Eidtica = de essncia O conhecimento das essncias uma intuio. uma intuio diferente daquela que nos permite captar os fatos particulares. a ela que Husserl chama intuio eidtica ou intuio da essncia. Trata-se de conhecimento distinto do conhecimento do fato (REALE; ANTISERI. Histria da Filosofia, 2005, p.181).
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Scrates j se perguntava como se podia falar de falso, de no-ser implicado pela no-
verdade? Por isso a memria e a fantasia deixam resqucios gravados uma na outra, uma vez
que esto imbricadas entre si. Alm disso, a memria e a imaginao participam ou fazem
parte do mesmo destino.
Ricoeur cita a questo colocada por Scrates sobre a memria: Suponhamos que algum
venha a saber algo que se conserva na lembrana: ento possvel que neste momento que se
lembra de algo no se saiba isto mesmo que se lembra? Continua o comentrio de Ricoeur:
(...) uma vez que se aprendeu algo no se sabe quando lembrar-se- deste algo (2000, p. 9).
Por isso, Scrates utilizava como procedimento pedaggico a heurstica, conduzindo seu
discpulo a descobrir, ou a encontrar por si mesmo a verdade. Ocorre que neste jogo de
lembrar surge o esquecer, pois ora se lembra para esquecer, ora se esquece para lembrar.
1.2 Memria como reminiscncias
Neste jogo mnemnico, Ricoeur nos alerta fazendo referncia ao caminho que devemos trilhar
passando: (...) do qu? ao quem? passando pelo como? da lembrana memria
passando pela reminiscncia. (RICOEUR, 2000, p.4).
Ricoeur quando faz referncia s reminiscncias da memria, ele se baseia no pensamento
platnico.
Plato divide a realidade em dois mundos: mundo sensvel e mundo inteligvel, o viver no
mundo sensvel seria sempre uma lembrana do mundo inteligvel.
Segundo Plato, o conhecimento humano integral fica nitidamente dividido em dois graus: o conhecimento sensvel, particular, mutvel e relativo, e o conhecimento
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intelectual, universal, imutvel, absoluto, que ilumina o primeiro conhecimento, mas que dele no se pode derivar (PADOVANI, 1990, p.116).
Para Plato o conhecimento anamnsia, ou seja, uma forma de recordao, um emergir
daquilo que j existe desde sempre no interior da alma que teve experincia do mundo
inteligvel. Na obra de Plato importante ressaltar o valor da memria, porque h no homem
marcas, traos anteriores onde se prende a lembrana. H ainda o trao como impresso
advinda da afeco deixada na alma e o trao como marca no corpo.
Reminiscncia ou anamnese designa a teoria platnica segundo a qual o conhecimento humano se reduz a uma simples recordao atual das idias que a alma intuiu ou contemplou diretamente numa existncia anterior. Com este mito da preexistncia da alma Plato pretendeu responder aos sofistas, que afirmavam, por um lado, a inutilidade da investigao do que j se sabe e,por outro, a impossibilidade de se conhecer aquilo de que ainda nada se sabe, e, por outro , a impossibilidade de se conhecer aquilo de que ainda nada se sabe (LOGOS, 1989, p.694).
Plato observa que as noes inteligveis que o homem possui, dizem mais do que os dados
da experincia, porque os sentidos nos proporcionam apenas conhecimentos imperfeitos.
Nossa mente ou nosso intelecto, ao se deparar com os dados dos sentidos, voltando-se para a
prpria profundeza, quase dobrando-se sobre si mesma, encontra neles a ocasio para
descobrir em si os conhecimentos perfeitos correspondentes. E visto que no os produz, no
resta seno concluir que ela os encontra em si e os extrai de si como algo originariamente
possudo, ou seja, deles se recorda.
De fato, impossvel investigar e conhecer aquilo que ainda no se conhece, porquanto, mesmo que se viesse a descobri-lo, seria impossvel identific-lo, pois faltaria o meio para a realizao da identificao. Nem mesmo o que j se conhece pode ser investigado, precisamente porque j conhecido. Exatamente para superar essa aporia que Plato descobre um caminho totalmente novo: o conhecimento anamnese, ou seja, uma forma de recordao, um emergir daquilo que j existe desde sempre no interior de nossa alma (REALE; ANTISERI, 2004, p.146).
A anamnsia explica a raiz ou a possibilidade do conhecimento, quando mostra que o
conhecer possvel porque temos na alma uma intuio originria do verdadeiro. Pensamos
que esta intuio dar a possibilidade ao perdo.
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Para Aristteles a memria no busca suas lembranas no mundo das idias de Plato, pois a
memria do passado e envolve o tempo. no contraste com o futuro da conjetura e da
espera, com o presente da sensao ou percepo que se impe a ligao do passado com a
memria.
Como vimos, para Plato conhecer relembrar para alcanar o mundo inteligvel onde est a
idia de verdade (aletheia)8. Os objetos do mundo sensvel seriam uma ocasio para recordar
o que a alma conheceu como Verdade, Justia, Bem, propiciando o retorno deste mundo
inteligvel.
Diferentemente de Plato, Aristteles defende a tese de que idia no est l, mas aqui na
Realidade. A Verdade ou o Ser est no mundo sensvel, sendo possvel encontr-la
alcanando o universal que est no particular. Assim, o homem conhece e atinge a essncia
aqui e no l, em outro mundo. Por isso Ricoeur afirma:
Plato tinha mitificado (a anamnesis), ligando-a a um saber pr-natal do qual estaramos separados por um esquecimento ligado ao surgimento da alma num corpo qualificado de tmulo, (soma-sema) (...). Aristteles (...) de alguma forma naturalizou a anamnesis, a aproximando assim disso que chamamos na experincia cotidiana de rappel (RICOEUR, 2000, p.33) .
Ricoeur acrescenta que, relativamente memria, a ruptura da teoria aristotlica com a teoria
platnica no foi totalmente completa, pois na medida em que o ana da anamnesis 9significa
volta, retorno, recobrimento daquilo que foi, anteriormente, visto, provado ou aprendido,
significa, pois, de alguma forma uma repetio.
8 Aletheia: do grego, verdade. A teoria aristotlica da verdade e da falsidade assenta na convico de que a verdade no est nas coisas (Meta.1027b-1028), nem no nosso conhecimento das substncias simples(onde s possvel o conhecimento ou a ignorncia), mas sim no juzo, isto , no conjugar de conceitos que no correspondem realidade(Meta.1051b, De na III,430 a; ver doxa). (PETERS. Termos Filosficos Gregos. Um lxico histrico, 1974, p.29) 9 Anamnesis do grego que significa memria, recordao. Segundo Plato temos conhecimento dos eider que no podemos ter adquirido atravs dos sentido, por conseguinte devem ter sido adquiridos num estado pr-natal durante o qual estivemos em contacto com as formas (PETERS. Termos Filosficos Gregos. Um lxico histrico, 1974, p. 30).
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O esquecimento assim designado obliquamente como isto contra o que o esforo da lembrana (rappel) dirigido. a contra-corrente do rio Lethe10 que a anamnese faz seu curso. Procura-se isto que se tem medo de ter esquecido provisoriamente ou para sempre (RICOEUR, 2000, p.33).
Em seguida, Ricoeur coloca a questo sobre o esquecimento: Trata-se de um apagamento
definitivo dos traos aprendidos anteriormente ou de um impedimento provisrio? Esta
incerteza sobre a natureza profunda do esquecimento d lembrana (recherche) sua
colorao inquieta, pois quem procura no encontra necessariamente e o esforo de lembrana
como (rappel) pode ser bem sucedido ou fracassado. Esta lembrana bem sucedida uma das
figuras que Ricoeur denomina de memria feliz.
O cotidiano, as situaes simples podem servir como pretextos para o homem se lembrar. Por
exemplo, eu posso me lembrar de ter aproveitado e sofrido neste perodo de minha vida , eu
me lembro de ter morado muito tempo nesta casa, nesta cidade, de ter viajado para este lugar,
posso at prestar depoimentos na poltica de algo passado que relatado no presente. Por
isso, Ricoeur afirma que o homem se recorda em situaes do cotidiano, escutando as coisas
mesmas. Como esta frase Ricoeur est retomando a fenomenologia de Husserl em que
devemos ir coisa mesma, a sua essncia apresentada no fenmeno.
Para Husserl o lema da fenomenologia seria ir s coisas, a fim de encontrar pontos slidos e
dados indubitveis, coisas to manifestas a ponto de no poderem ser postas em dvida e
10 Do grego: esquecimento. Merece um exame especial nesse contexto a lngua grega (antiga). Nela recebemos para a histria do conceito do esquecimento uma interessante revelao sobre uma palavra que no comeo parece estranha aqui. Refiro-me palavra aletheia verdade que naturalmente assume uma posio central no pensar dos filsofos gregos. O primeiro elemento dessa palavra o a - sem dvida um prefixo de negao (alpha privativum). O elemento seguinte, - leth-, negado pelo a - designa algo encoberto, oculto, latente (essa palavra latina aparentada com ela), de modo que a verdade do significado da palavra aparece com Heidegger- como o no-encoberto, no-oculto, no latente. Mas como esse elemento significativo - leth- negado pelo a- aparece tambm no nome de Lethe dado ao mtico rio do esquecimento, podemos conceber tambm da formao da palavra aletheia a verdade como o inesquecido ou inesquecvel. Com efeito, por muitos sculos o pensamento filosfico da Europa, seguindo os gregos, procurou a verdade do lado do no-esquecer, portanto da memria e da lembrana e s nos tempos modernos tentou mais ou menos timidamente atribuir tambm ao esquecimento uma certa verdade.( WEINRICH, Harald, 2001, p. 20).
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sobre as quais poder fundar uma concepo consistente. Por isso Husserl prope a epoch11.
Segundo Abbagnano (1965, p.84), a epch suspende ou pe entre parnteses a tese da
existncia do mundo em geral. Os cticos gregos j utilizavam o termo epoch para indicar a
suspenso do juzo sobre tudo o que nos dizem as cincias, as doutrinas filosficas e sobre
tudo que cada um de ns afirma e pressupe na vida cotidiana. Contudo o que no se pode pr
entre parnteses, a conscincia, pois ela o fundamento de toda realidade. A conscincia a
realidade que nulla re indiget ad existendum (no precisa de nada para existir) a conscincia
constitui o mundo.
Assim as coisas lembradas esto de certa maneira intrnsecas ou associadas aos lugares12,
contudo estes lugares servem de ndice para nos indicar algo essencial. Os lugares de
memria, como monumentos, edifcios, museus, funcionam como ndice, colaborando com a
memria contra o esquecimento.
Por isso os lugares, as datas tm importncia primordial para a memria numa re-atualizao
do fato passado: Afirma Ricoeur: o esforo de memria deve-se a uma grande parte do
esforo de datao: quando? Desde quanto tempo? Quanto tempo isto durou? (RICOEUR,
2000, p.50). Portanto as comemoraes, os lugares, as datas so ndice e dizem mais do que
aparentam.
11 Ver REALE; ANTISERI. Histria da Filosofia, 2005, p.183. 12 Em francs acontecer pode ser usado como avoir lieu. Por isso Ricoeur afirma: et ce n est pas par mgarde que nous disons de ce qui est advenu qu il a eu lieu. (RICOEUR. La mmoire, l histoire, l oubli, 2000, p.49).
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1.3 Memria e a temporalidade
Toda lembrana acompanhada pela noo de tempo. Ser no tempo ser medido pelo tempo
em si mesmo e na sua existncia. Aristteles aceita o pertencimento da memria alma
sensvel ao modo platnico, porque os olhos vem e a alma sente e lembra de algo que no
est presente. Ento, a dificuldade est na aporia do modo de presena da ausncia, ou seja o
afeto est presente, mas a coisa est ausente e lembra-se do que no est presente. Esta
lembrana ocorre porque, segundo Aristteles, o afeto produzido graas sensao ocorrida
na alma. Deve-se esclarecer que lembrar o que est presente uma mera constatao, mas
lembrar o que no est presente exige uma aisthesis, uma sensibilizao. Mas da a pergunta:
De que realmente a gente se lembra? Daquilo que nos afeta ou da coisa? Da sensao do
objeto ou do prprio objeto? Como pode ocorrer que percebendo uma imagem se possa
lembrar de algo distinto da imagem? A surge a questo da alteridade, ou seja, a falta como
um outro da presena.
No se pode discutir sobre a memria sem compreender profundamente o significado de
tempo. Agostinho foi um dos filsofos que melhor conseguiu esclarecer sobre o tempo. Para
ele o tempo um ser de razo com fundamento na realidade, ou seja, como o homem
apreende o tempo em sua vida e mostra como difcil definir o tempo: o que , por
conseguinte, o tempo? Se ningum mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer
a pergunta, j no sei (AGOSTINHO, 1969, p.17).
Ao tentar explicar o que presente, passado e futuro diz:
Porm, atrevo-me a declarar, sem receio de contestao, que, se nada sobreviesse, no haveria tempo futuro, e se agora nada houvesse, no existiria o tempo presente. De que modo, existem aqueles dois tempos o passado e o futuro , se o passado j no existe e o futuro ainda no veio? Quanto ao presente, se fosse sempre presente, e no passasse para o pretrito, j no seria tempo, mas eternidade. Mas se o presente,
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para ser tempo, tem necessariamente de passar para o pretrito, como podemos afirmar que ele existe, se a causa da sua existncia a mesma pela qual deixar de existir? Para que digamos que o tempo verdadeiramente existe, porque tende a no ser? (AGOSTINHO, 1969, p.17).
O tempo em Agostinho passagem que est intimamente ligada memria, alma, anima,
apresentando trs verses do presente: presente do passado ou memria, presente do futuro ou
busca e presente do presente ou ateno. Segundo Agostinho, o trnsito do tempo consiste em
ir do futuro pelo presente dentro do passado, esquecendo a espacialidade do lugar de trnsito
concentrando sobre a dispora, sobre a disperso desta passagem, pois o tempo no apenas
uma sucesso de instantes separados, mas um contnuo, um indivisvel, uma distenso da
alma.
Diz Agostinho que denominamos longo e breve tanto o tempo passado quanto o futuro
conforme nosso estado interior. Mas Agostinho indaga: como pode ser longo ou breve o que
no existe, pois o passado j passou e o futuro ainda no passou? O presente nunca longo,
porque este voa to rapidamente do futuro ao passado, que no tem nenhuma durao.
Contudo o presente serve como atualizao do passado e do futuro:
Ainda que se narrem os acontecimentos verdicos j passados, a memria relata, no os prprios acontecimentos que j decorreram, mas sim as palavras concebidas pelas imagens daqueles fatos, os quais, ao passarem pelos sentidos, gravaram no esprito uma espcie de vestgios. Por conseguinte, a minha infncia, que j no existe presentemente, existe no passado que j no . Porm a sua imagem, quando a evoco e se torna objeto de alguma descrio, vejo-a no tempo presente, porque ainda est na minha memria (AGOSTINHO, 1969, p.23).
Da mesma forma, o futuro no existe, mas pode-se ter uma viso e fazer um prognstico a
partir das coisas presentes que j existem e se deixam observar:
Vejo a aurora e prognostico que o sol vai nascer. O que vejo presente, o que anuncio futuro. No o sol que futuro, porque esse j existe, mas sim o seu nascimento, que ainda se no realizou. Contudo no o poderia prognosticar sem conceber tambm, na minha imaginao, o mesmo nascimento, como agora o fao quando isso declaro (AGOSTINHO, 1969, p.18).
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Assim, nesta temporalidade agostiniana percebe-se tambm a questo da dimenso individual
e profunda do homem interior:
grande esta fora da memria, imensamente grande, meu Deus. um santurio infinitamente amplo. Quem o pode sondar at ao profundo? Ora esta potncia prpria do meu esprito e pertence minha natureza. No chego, porm, a apreender todo o meu ser (AGOSTINHO, 1969, p.15).
A memria um recurso de referncia ao passado, porque, como j foi dito, o ato de lembrar
se produz quando o tempo j transcorreu. Assim no intervalo de tempo entre a impresso
primeira e seu retorno que a busca ativa percorre. Por isso, a lembrana re-toma, re-coloca
como se no tivesse passado. A coisa no vem, mas vem a sua imagem.
A memria tratada no singular como capacidade, enquanto as lembranas esto no plural
como experincias do que se tem feito, provado, aprendido em uma determinada situao ou
em um determinado tempo particular.
Sabendo que toda lembrana acompanhada da noo de tempo citaremos novamente
Ricoeur:
verdade que lembra-se sem os objetos , de tal forma que necessrio sublinhar que h memria quando o tempo transcorre ou mais brevemente com o tempo. Assim, os humanos dividem com certos animais a simples memria, mas todos no dispem da sensao (percepo) (aisthesis) do tempo. Esta sensao (percepo) consiste na marca da anterioridade que implica na distino entre o antes e o depois. (RICOEUR, 2000, p.19).
1.4 Memria-hbito
Sabemos que o hbito torna-se uma segunda natureza para o homem. Ele aprende algo, repete
inmeras vezes, e com esta repetio memoriza e age como se fosse sua prpria natureza.
O hbito uma propriedade fundamental da prxis humana, e o fato de significar uma aquisio do agente posta sua disposio em virtude da intencionalidade consciente que est na sua origem distingue-o do comportamento instintivo e
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puramente repetitivo que o animal recebe da Natureza. J a formao do hbito procede de uma repetio qualitativa de atos que acaba configurando no indivduo sua segunda natureza (LIMA VAZ, 2002, p.41).
Sabe-se que o hbito e a memria formam um par. Relativamente a este par Ricoeur se
baseia em Bergson afirmando:
A memria-hbito aquela em que apresentamos quando recitamos um texto sem evocar uma a uma de cada leitura sucessiva que foi feito no perodo de aprendizagem. Assim a leitura apreendida faz parte do presente, como meu hbito de andar ou de escrever; ela vivida, uma representao. Em compensao, a lembrana de tal lio particular, de tal fase de memorizao no apresenta nenhum dos caracteres do hbito (RICOEUR, 2000, p.31)
A repetio leva memria mais duradoura e conduz a um saber-fazer, a uma relao entre
ao e representao, como explica Ricoeur, baseando-se em Bergson:
Bergson ressalta o parentesco entre a lio aprendida de cor e meu hbito de andar ou de escreve. O que est em ao o conjunto no qual a recitao pertencente, aos saber-fazer que tm por trao comum estar disponveis, sem exigir o esforo de aprender de novo, de reaprender, eles esto aptos serem mobilizados em mltiplas ocasies, disponveis a uma certa variedade (RICOEUR, 2000, p.31).
Ricoeur comenta que esta memria - hbito conduz o homem ao eu posso, ao homem
capaz: poder falar, poder intervir no curso das coisas, poder narrar, poder se deixar imputar
numa ao constituindo-se como verdadeiro autor (RICOEUR, 2000, p.32). Se o homem
inserido em uma sociedade, aprende e memoriza os comportamentos, os modos de vida, os
costumes, os hbitos da vida em comum como os rituais sociais, as co-memoraes. Nesta
sua atuao social, neste seu trabalho de agir, ele estar sento autor, construtor do seu eu
individual e social. neste aspecto que importante ressaltar a possibilidade do homem em
refazer-se, refazendo o mundo nesta luta, neste trabalho de re-construo, de re
memorizao que o perdo se insere.
Percebemos que o par memria hbito apresenta a potencialidade do homem que pode ser
atualizada, isto , tornar-se ato a qualquer instante. Aristteles apresenta a teoria da potncia e
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ato, como possibilidade de movimento, de ao, de atualizao, ou seja, de realizao do
homem, da natureza, da Realidade.13
O ato oposto potncia, que o ser na sua capacidade de desenvolver-se ( por exemplo, a planta o ato da semente, enquanto a semente a planta em potncia). Os dois conceitos, tomados juntos no seu nexo estrutural, explicam o movimento em todas as suas formas. Para Aristteles potncia e ato no so eqipolentes do ponto de vista ontolgico, ou seja, no grau de ser, mas o ato goza de prioridade em relao potncia, da qual constitui a condio, o fim e a regra. O ato corresponde forma, a potncia matria (REALE; ANTISSERI, 2004, p.201).
Este uso da memria tem um carter pragmtico, relativo a um trabalho, a uma ao, a um e
ato prtico que leva o homem capaz a uma construo primeiro de si mesmo atravs de sua
experincia laborosa e de luta, superando at mesmo a sua natureza, criando uma nova, uma
segunda natureza. Esta possibilidade de atuar colaborar para o perdo, conforme
mostraremos no captulo trs.
A memria hbito guarda em si a possibilidade de um excesso de repeties, um abuso de
memria. Ser que este abuso de memria cria dificuldades para a memria imaginativa que
evoca o passado sob a forma de imagem abstraindo-se da ao presente? Ser que o excesso
de registros, de museus, de dados sobre o passado, utilizados pela histria, no destroem a
memria viva, animada, plena de anima, de alma? Ora, se todo excesso, todo abuso indica
um desequilbrio e torna-se prejudicial, e como afirma Ricoeur: pelo vis do abuso que o
olhar verdadeiro da memria massivamente ameaado (RICOEUR, 2000, p.68)
13 Para Aristteles o homem um animal racional. A racionalidade , pois a diferena especfica do homem, no podendo ser considerado simplesmente um ser natural. Aristteles estuda a atividade racional que, no homem eleva-se sobre a atividade dos sentidos externos e internos, como atividade prpria do intelecto (nous). (PADOVANI; CASTAGNOLA. Histria da Filosofia, 1990). Na teoria aristotlica o homem potncia e ato. Ele possui possibilidades e potencialidades que devem ser atualizadas. Nos seus livros reunidos sob o ttulo de rganon (instrumento) ele recolhe e organiza toda a tradio lgica do pensamento grego. Enfim, o homem aristotlico um ser destinado vida em comum na polis e somente a realiza-se como ser racional e poltico, porque a vida tica e a vida poltica so artes de viver segundo a razo. tica e Poltica so para Aristteles, como tinham sido para Scrates e Plato, entretanto mostra que o campo onde se manifesta a finalidade do homem coroada pelo exerccio da razo ou definida pela primazia do logos.
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1.5 Trabalho de luto
Etimologicamente, luto vem do latim luctu sentimento de pesar ou dor pela morte de
algum. H ainda um outro sentido para a palavra luto que vem do latim lutu que significa
uma massa de diversas composies que endurecendo com o calor, veda inteiramente as
frinchas dos aparelhos de destilao e impossibilita a sada das substncias volteis contidas
em frascos. Luto tambm est associado ao termo latino lucto que significa lutar. Portanto o
luto tem este triplo significado: perda, impossibilidade de ultrapassagem e luta como um
trabalho, uma ao, uma elaborao. Ricoeur cita Freud: O luto, ele disse no incio,
sempre a reao perda de uma pessoa amada ou de uma abstrao erigida em substituto
desta pessoa, tal como: ptria, liberdade ideal, etc (RICOEUR, 2000, p.87).
O luto seria aquela luta sofrida em busca de um objeto ausente que se presentifica com sua
ausncia e no com sua presena e com a sua ausncia traz uma marca, um sinal de
anterioridade.
O luto exige sempre um trabalho de memria para conseguir uma superao.
Quando Ricoeur vai tratar do como se lembrar, ou seja, do trabalho de memria, ele nos
chama ateno para trs denominaes: memria impedida, memria manipulada, memria
obrigatria.
Quanto memria impedida, Ricoeur cita Freud e analisa as manifestaes patolgicas da
memria machucada ou doente que surgem no trabalho clnico. Muitas vezes este trabalho
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exige um esforo, uma elaborao porque a memria se encontrava impedida pelo fato do
indivduo ter sido afetado com algum evento traumtico.
Quanto memria manipulada, Ricoeur afirma ser uma memria fruto de uma cegueira
ideolgica, ou seja, uma ideologia se instaura na sociedade criando uma identidade coletiva
rgida de tal forma que no permite ao cidado uma visibilidade adequada da realidade.
Quanto memria obrigatria, o autor afirma ser uma memria tico-poltica, que trabalha
para que a lembrana possa permitir uma reflexo sobre as situaes histricas. Este trabalho
de memria estaria mais apropriado para ser analisado na hermenutica da condio histrica
que discutiremos no segundo captulo.
Por ora nossa discusso ser sobre a memria impedida, pois ela nos leva a um luto ou a uma
melancolia.
Referindo-se a Freud, o autor comenta que a primeira questo que se pe ao analista a de
saber por qual razo, para certos doentes, surge no lugar do luto a melancolia. Ricoeur explica
a posio de Freud:
A primeira oposio que nota Freud a diminuio do sentimento de si na melancolia, enquanto que no luto no h a diminuio do sentimento de si. Da a questo: qual o trabalho fornecido no luto? Resposta: A prova da realidade mostrou que o objeto amado cessou de existir e toda a libido intimidada para renunciar ao lao que a prende a este objeto. Por que este custo elevado? Porque a existncia do objeto perdido persegue psiquicamente. Assim no superinvestimento das lembranas e das esperas que a libido permanece presa ao objeto perdido, pesando no preo a pagar por esta liquidao: a realizao em detalhe de cada uma d ordens decretadas pela realidade o trabalho do luto(RICOEUR, 2000, p.87).
Na clnica, Freud apresenta como a lembrana exige um tempo de luto. Pode-se falar tambm
de traumatismos coletivos de feridas da memria coletiva que geram um luto, como por
exemplo, a noo de objeto perdido nas perdas que afetam tambm o poder, o territrio, as
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populaes que constituem o Estado. As condutas de luto so ilustradas pelas grandes
celebraes funerrias em que renem inmeras pessoas, cruzando a esfera privada e a
pblica. Ricoeur considera o viver o luto como fundamental, porque aps o trabalho de luto o
eu se liberta: Mas ento por que o luto no a melancolia? E o que faz o luto inclinar em
direo melancolia? O que faz do luto um fenmeno normal, apesar de doloroso, que uma
vez acabado o trabalho de luto, o eu se encontra livre novamente e desinibido (RICOEUR,
2000, p.87).
Ricoeur ressalta a questo do tempo dizendo que a lembrana no comporta somente no
tempo, ela solicita tambm de tempo um tempo de luto (RICOEUR, 2000, p.89). Assim no
que concerne ao luto pode-se ver que um certo tempo deveria transcorrer para que o eu
pudesse retirar do objeto perdido sua libido tornando-a livre.
Freud (2006, p.103) afirma: o luto , em geral, a reao perda de uma pessoa amada, ou a
perda de abstraes colocadas em seu lugar. Continua Freud (2006, p.105) no caso do luto,
pudemos explicar perfeitamente a inibio e a falta de interesse a partir do que sabemos sobre
o assim denominado trabalho do luto que absorve o Eu do sujeito. neste trabalho de luto,
de falta de ausncia de algo que a memria vai trabalhar, objetivando no presente, lembranas
passadas com vistas a uma mudana de comportamento do presente para o futuro.
Quando no consegue uma superao e a memria permanece impedida, h um processo de
repetio. Ricoeur afirma que o excesso de memria-repetio resiste crtica enquanto que a
memria-lembrana fundamentalmente uma memria crtica. Por isso a noo de trabalho
de rememorao e trabalho de luto ocupam uma posio estratgica na reflexo do filsofo e
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em nossa trajetria compreender e explicar os sentidos do conceito de perdo em La
Mmoire, lHistoire lOubli.
Ricoeur destaca a palavra reconciliao como fundamental na questo do perdo. Mas para
que haja esta reconciliao que em ltima instncia se volta para o perdo, o autor destaca o
trabalho, o labor , uma perlaboration (ingls), um retoque ou conserto, uma recomposio,
um remaniement (francs). O importante trabalhar, laborar, elaborar, atuar de maneira
dinmica com a co-laborao do analisando. Assim o trabalho de rememorao se coloca
contra a compulso de repetio.
Para alm do olhar clnico, Freud faz duas proposies teraputicas que sero de grande importncia, no momento de transpor a anlise clnica no plano da memria coletiva (...). A primeira concerne ao analista e a segunda ao analisando. Ao primeiro, aconselha-se uma grande pacincia relativamente s repeties sobrevivendo sob a cobertura da transferncia(...). Mas solicitado algo ao paciente: cessando de gemer ou de esconder de si mesmo seu estado verdadeiro, necessrio encontrar coragem de fixar sua ateno sobre suas manifestaes mrbidas, no considerando sua doena como algo desprezvel, mas olh-la como um adversrio, digno de estima, como uma parte dele mesmo, cuja presena bem motivada em que convir extrair preciosos dados para sua vida ulterior Seno, nada de reconciliao (RICOEUR, 2000, p.85).
1.6 O olhar interior da memria
Ao iniciar a discusso sobre a interioridade da memria, Ricoeur afirma: Lembrando-se de
algo, lembra-se de si mesmo (RICOEUR, 2000, p.115).
A memria algo privado e singular uma vez que: minhas lembranas no so as do outro e
no podem ser transferidas automaticamente. Alm disso, na memria parece residir um lao
original da conscincia com o passado. Assim Ricoeur concorda com Aristteles e Agostinho
afirmando:
a memria do passado e este passado o das minhas impresses, neste sentido, este passado meu passado. por este trao que a memria assegura a continuidade temporal da pessoa. (...) Esta continuidade me permite retornar sem ruptura do
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presente vivido at aos acontecimentos os mais longnquos de minha infncia (RICOEUR, 2000, p.116).
Segundo Ricoeur, as lembranas se distribuem e se organizam em nveis de sentido como em
arquiplagos, eventualmente separados por abismos, enquanto que a memria permanece
como capacidade de percorrer e retornar o tempo. Assim na narrativa, principalmente, que
se articulam as lembranas no plural e a memria no singular. na memria que est atado o
sentido da orientao na passagem do tempo: orientao do passado para o futuro e vice-
versa, sempre atravs do presente vivo.
Memria singular porque trata-se da faculdade mental de reter idias, impresses,
conhecimentos e est intimamente relacionada com a histria uma vez que esta necessita da
memria para narrar, registrar os fatos ocorridos em um espao e em um tempo. Este tempo
atua na histria, arrancando dela alguns dados.
Ricoeur apresenta a idia de Agostinho de que a memria algo que vai alm do singular ,
pois a memria o esprito:
No mais a memria das coisas e memria de mim mesmo coincidem: aqui, eu me encontro tambm comigo mesmo, eu me lembro de mim, do que eu fiz, quando e onde eu o fiz e qual impresso eu senti quando eu o fazia. Sim grande o poder da memria a ponto de que eu me lembro de me ser lembrado. Em resumo o esprito tambm a prpria memria (RICOEUR, 2000, p.119).
Para Agostinho o reconheciment