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MARIA APARECIDA MARTINS SOUZA
Retalhos de Vidas: Escravidão contemporânea nas agropecuárias do
Araguaia (1970 – 2005)
Cuiabá 2009
1
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE CIENCIAS HUMANAS E SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
Retalhos de Vidas: Escravidão contemporânea nas agropecuárias
do Araguaia (1970 – 2005)
Maria Aparecida Martins Souza
Dissertação apresentada como requisito para obtenção do grau de Mestre em História pelo Instituto de Ciências Humanas e Sociais – Programa de Pós-Graduação Mestrado em História da Universidade Federal de Mato Grosso, sob orientação do Prof. Dr. João Carlos Barrozo.
Cuiabá-MT Junho de 2009.
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S237r Souza, Maria Aparecida Martins.
Retalhos de vidas: escravidão contemporânea nas agropecuárias do Araguaia (1970-2005) / Maria Aparecida Martins Souza. – 2009. 163 f.; il. ; 30 cm. -- (inclui figuras e tabelas).
Orientador: João Carlos Barroso.
Dissertação (mestrado). Universidade Federal de Mato Grosso. Instituto de Ciências Humanas e Sociais. Programa de Pós-Graduação em História, 2009.
1. Trabalho escravo. 2. Violência. 3. Exploração. 4. Araguaia-
história. 5. Mato Grosso. I. Título.
CDU 94:331-058.243.4(817.2)
3
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE CIENCIAS HUMANAS E SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
Maria Aparecida Martins Souza
Retalhos de Vidas: Escravidão contemporânea nas agropecuárias do Araguaia
(1970 – 2005)
Banca Examinadora
Presidente: Prof. Dr. João Carlos Barrozo
Orientador
Profª. Drª. Ângela Maria de Castro Gomes
Membro Externo
Prof.ª Drª. Regina Beatriz Guimarães Neto
Membro Interno
Prof. Dr. Vitale Joanoni Neto
Suplente
Cuiabá-MT Junho de 2009.
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Dedicatória
Aos vários Peões, que com sua coragem, denunciaram o trabalho escravo
contemporâneo, descortinando o mundo de violência que se produz no interior das
fazendas.
À D. Pedro Casaldáliga bispo emérito da Prelazia de São Félix do Araguaia, que
incessantemente sempre lutou e denunciou a prática do trabalho escravo na
Amazônia. “Minhas causas valem mais que minha vida”. (D. Pedro Casaldáliga).
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Agradecimentos A presente dissertação só foi possível porque contei com a contribuição de várias
pessoas, que neste percurso me ajudaram, compreenderam e me apoiaram. Portanto, quero
agradecer aos meus pais, Abraão Souza Silva e Maria Permina Martins Souza, que mesmo nunca
tendo frequentado escola, sempre lutaram para que seus filhos estudassem. A minha madrinha
Maria de Lourdes Carlos, que carinhosamente cuidou da minha filha nos momentos em que
estive ausente.
Nesse mestrado foram importantes as várias conquistas, entre elas quero destacar a
amizade de Daniela Alves Braga Sant’ana e Marluce Scalop, duas grandes amigas com quem
sempre pude contar nesses momentos em que estive morando em Cuiabá, e suas preciosas
leituras foram de grande contribuição para este trabalho, vocês são muito importantes para mim.
Agradeço a uma pessoa a qual admiro muito pela sua capacidade de compreensão, nas
mais diversas situações, Maria do Rosário Soares Lima, minha comadre querida e, mãe do meu
filho de coração João Pedro e seus irmãos Carlos Augusto e Laura Beatriz, que sempre me
incentivou a pleitear o mestrado. Rosário mesmo no momento em que você estava distante se
fazia presente. Você é para mim um exemplo de pessoa, conviver com você é um novo
aprendizado a cada momento.
Ao Edson Flávio Santos, irmão de coração que sempre me incentivou e, carinhosamente
lê os meus textos, mesmo distante você se faz presente na minha vida.
A professora Maria do Socorro Souza Araújo e Luiz Antônio Barbosa Soares, amigos
que me incentivaram, e acreditaram que seria capaz de realizar a pesquisa.
A Ana Maria de Souza, amiga que compartilhou comigo muitas angustias e também
alegrias, obrigado amiga.
Aos colegas do Curso em especial Abrelino, Aluisio, Carlos, Anderson, Leonan e
Arthur.
A minha querida filha, Pâmella Martins Souza que soube suportar a minha ausência
durante o curso. A Enéia Barbosa que nos momentos em que estava distante cuidou e assumiu o
papel de mãe da minha filha, muito obrigado.
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As amigas Leuter Inês de Carvalho, Dagmar Aparecida Teodoro Gatti e o amigo Pe.
Félix Valenzuela, com vocês aprendi a querer sempre mais e a trilhar novos caminhos, sem
esquecer o próximo.
Aos amigos Egidio Clair Quinhões e Maria Bonfim Souza Torres, que sempre me
incentivaram e acreditaram que seria possível desenvolver a pesquisa.
A amiga Analucia Ribeiro de Sousa, sempre atenciosa, suas palavras sempre foram
animadoras.
A amiga Rosimeire Santos Souza, que mesmo distante está sempre presente na minha
vida.
As amigas Francielme Mendes e Noemi Ruthi Wong Goméz, com quem compartilhei
momentos de angústias, aflições e alegrias no período em que estive em Cuiabá.
Ao D. Pedro Casaldáliga, sempre disposto a falar, denunciar, lutar e enfrentar o
problema do trabalho escravo contemporâneo no Brasil e no mundo.
A amiga Regina Beatriz Guimarães Neto, que aceitou fazer parte da minha banca,
trazendo uma contribuição impar para este trabalho, e que tem um carinho especial pelas
pesquisas e as pessoas do Araguaia.
A professora Drª. Ângela Maria de Castro Gomes, suas contribuições foram importantes
para o meu trabalho.
Aos vários peões que me concederam entrevistas e conversas, sem a colaboração de
vocês seria impossível desenvolver este trabalho.
À Universidade do Estado de Mato Grosso- Campus de Luciara- Núcleo Pedagógico de
Confresa.
À CAPES – Coordenadoria de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior que me
concedeu a bolsa que possibilitou a realização do mestrado.
À Prelazia de São Félix do Araguaia que possibilitou a pesquisa em seus arquivos.
Ao meu orientador João Carlos Barrozo, que com suas preciosas orientações e amizade
foi possível desenvolver este trabalho.
Por várias razões o resultado dessa pesquisa é um esforço coletivo de pessoas que fazem
parte da minha vida.
Sou grata a todos vocês...
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Sumário
Introdução----------------------------------------------------------------------------------------------13
Capítulo I– Araguaia territórios e territorialidades-----------------------------------------------30
1.1- Migração: o encontro com o estranho---------------------------------------------------------31
1.2- Políticas públicas: reconfiguração do espaço na fronteira amazônica--------------------44
Capítulo II – Prelazia de São Félix do Araguaia: Uma Igreja em defesa da Vida------------57
2.1 – Discursos e práticas: a opção pelos pobres--------------------------------------------------58
Capítulo III – O Trabalho escravo contemporâneo na Amazônia hoje: debates, problemas e
discussões----------------------------------------------------------------------------------------------83
3.1 - Trabalho escravo contemporâneo – o caso brasileiro--------------------------------------97
3.2 – A escravidão contemporânea sob o ponto de vista jurídico-----------------------------105
Capítulo IV – Trajetória do peão: do roçado para o “cativeiro”-------------------------------108
4.1 – O aliciamento do peão------------------------------------------------------------------------118
4.2 – O peão dentro da fazenda--------------------------------------------------------------------126
4.3 – A degradação dos trabalhadores ------------------------------------------------------------137
4.4 – As estratégias de sobrevivência e fugas dos peões---------------------------------------142
4. 5 – Os peões depois da “libertação”------------------------------------------------------------145
Considerações finais -------------------------------------------------------------------------------148
Referencias bibliográfica---------------------------------------------------------------------------151
Anexos------------------------------------------------------------------------------------------------162
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Lista de abreviaturas
BASA – Banco da Amazônia
CEAS – Centro de Estudos e Ação social
CBs – Comunidades de Base
CODEARA – Companhia de Desenvolvimento do Araguaia
CNBB – Confederação Nacional dos Bispos do Brasil
CP – Código Penal
CPT – Comissão Pastoral da Terra
DTC – Departamento de Terras e Colonização
GEMF – Grupo Especial de Fiscalização Móvel
IBAMA – Instituto Brasileiro de Recursos Renováveis
INCRA – Instituto de Colonização e Reforma Agrária
MPT – Ministério Público do Trabalho
OIT – Organização Internacional do Trabalho
ONGs – Organizações Não Governamentais
ONU – Organização das Nações Unidas
PF – Policia Federal
PIN – Programa de Integração Nacional
POLOAMAZÔNIA – Programa de Desenvolvimento da Amazônia
POLOCENTRO – Programa de Desenvolvimento dos Cerrados
PROTERRA – Programa de Redistribuição de Terras e Estímulos à Agropecuária do
Norte e Nordeste
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SIT – Secretaria de Inspeção do Trabalho
SUDAM – Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia
SUDECO – Superintendência de Desenvolvimento do Centro Oeste
TL – Teologia da libertação
UNEMAT – Universidade do estado de Mato Grosso
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Lista de figuras
Figura 01- Mapa da localização da área de estudo
Figura 02 - Mapa com projetos agropecuários com incentivos da SUDAM.
Figura 03 - Mapa do Território da Prelazia de São Félix do Araguaia em 1970
Figura 04 - Mapa Território atual da Prelazia de São Félix do Araguaia
Figura 05 - Cortadores de cana na destilaria Gameleira no município de Confresa/MT
Figura 06 - Mapa do trabalho escravo no Brasil
Figura 07 - Caderneta de anotações de um gato
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Resumo
Nesta dissertação apresentamos a trajetória de vida de trabalhadores, homens e mulheres que se
deslocam de um lugar a outro em busca de trabalho e melhoria de vida. Mas, muitos encontraram
no novo lugar uma situação de violência e degradação humana. Essas pessoas constituem parte
importante da história do Araguaia, situado no nordeste de Mato Grosso. Na construção desta
narrativa, analisamos diversas fontes que registraram a memória, as representações, práticas
sociais e políticas vivenciadas pelos diferentes grupos na ocupação do território do Araguaia.
Esta dissertação baseou-se em relatos orais, em fontes escritas, mapas, fotografias e filmagens em
vídeo. A ocupação do nordeste de Mato Grosso, por grandes empresas, incentivadas pelo governo
federal, a partir da década de 70 do século XX tem revelado múltiplos conflitos, embates e
disputas pelo uso e posse da terra. A pesquisa realizada para esta dissertação mostra a
complexidade e a singularidade das relações no mundo do trabalho. A precarização do trabalho,
novas formas de exploração, algumas mais sutis outras escancaradas, as quais levam à exploração
e degradação do trabalhador. A abordagem das trajetórias de vida dos peões revelou estratégias
diversas para escapar do aprisionamento, da super exploração, das diversas formas de violências,
no mundo do trabalho.
Palavras-chave: Trabalho – Violência – Exploração – Mato Grosso – Araguaia.
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Abstract
This dissertation shows the life trajectory of workers, men and womem who move from one
place to another seeking a work and a better life. Though, many have found a violent scenario
and human degradation in this new place. These people make up an important part of the History
of Araguaia, in the Northeast of Mato Grosso. During the development of this narrative, we
analysed various sources that recorded memoirs, representations, social and political practises
experinced by the different groups during the settlement of Araguaya territory. This dissertation
is based on oral and written reports, maps, photographies, and e video camera.The settlement of
the Northeast of Mato Grosso, by big companies, and encouraged by the federal goverment since
the 70's in the twentieth century have revealed multiple conflicts, clashes and disputes due to the
use and possession of land. The research which was carried out for this dissertation shows the
complexity and uniqueness of the relationship in the world of business. The precariousness or
lack of work, new ways of exploitation, in which some are more subtle, others aren´t, which leads
to the exploitation and degradation of the worker. The approach of life trajectories for walkers
showed different strategies to escape from the imprisonment, of overexploitation, of various ways
of violence in the world of work.
Keywords: Work – Violence – Exploration – Mato Grosso – Araguaia.
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Introdução
Para estudar a história do tempo presente, “[...] o historiador do presente é
contemporâneo de seu objeto e, portanto partilha com aqueles cuja história narra, as mesmas
categorias essenciais, as mesmas referências fundamentais”. (Chartier, 2002, p. 216). Viver o
mesmo tempo histórico, e partilhar categorias e referências fundamentais, criam alguns
problemas de ordem metodológica, os quais podem dificultar a análise. Ao selecionar as histórias
de homens e mulheres que se deslocam no território amazônico, que aqui serão apresentadas,
realizamos escolhas e elegemos documentos a serem trabalhados na construção de nossa
narrativa entrecruzando uma diversidade de fontes orais e escritas documentos escritos com a
intenção de dar maior inteligibilidade aos fatos, atribuindo significados ao passado.
A escrita da história ao ser considerada por Certeau (1982, p. 66) como uma
operação, ele destaca que “[...] a operação histórica se refere à combinação de um lugar social,
de práticas “cientificas” e de uma escrita”. Como também essa escrita segue regras, e controles
que nos possibilitam criar uma narrativa com efeitos de “verdades”. É como montar uma
encenação, onde as peças escolhidas, selecionadas (documentos, referências bibliográficas) vão
encaixando-se, sendo costuradas para dar compreensão ao que queremos contar.
Nesta dissertação apresentamos a trajetória de vida de trabalhadores, homens e
mulheres que se deslocam de um lugar a outro em busca de trabalho e melhoria de vida, mas que,
no entanto encontraram no novo lugar uma situação de desenraizamento sócio-cultural que os
tornam vulneráveis à violência e a degradação humana. Essas pessoas constituem parte
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importante da história do Araguaia1, situado no nordeste de Mato Grosso. Ao falar no Araguaia
estamos nos referindo apenas à parte situada em Mato Grosso (Baixo e Médio Araguaia), na
divisa com o sul do Pará. São quinze municípios que compõem a micro-região Araguaia/Xingu,
com uma população de aproximadamente 100.000 habitantes (IBGE, 2007). Esse espaço
corresponde à área da Prelazia de São Félix do Araguaia. Ao longo da dissertação nos referimos a
este espaço de estudo como o Araguaia.
A população residente na área enfocada, se refere à região denominando-a “o
Araguaia”. Por esta razão optamos por manter essa terminologia, que para aquele grupo social
tem um conteúdo definido, como veremos no decorrer desse trabalho.
1 A denominação Araguaia utilizada nesse trabalho compreende o Nordeste do Estado de Mato Grosso, do qual fazem parte os seguintes municípios: Alto da Boa Vista, Bom Jesus do Araguaia, Confresa, Canabrava do Norte, Luciara, Novo Santo Antônio, Porto Alegre do Norte, Querência, Ribeirão Cascalheira, São Félix do Araguaia, São José do Xingu, Santa Cruz do Xingu, Santa Terezinha e Vila Rica. Essa denominação acrescida do município de Cerra Nova Dourada, constitui a micro-região do norte do Araguaia (com exceção do município de Querência esse na micro região da Canarana ( segundo dados do IBGE) , sendo ainda a área de jurisdição da Prelazia de São Felix do Araguaia, Prelazia criada em 13 de março de 1970, através do Decreto Papal “Quo Commodius” assinado por Paulo VI. São 14 municípios da micro região norte do Araguaia e um, Querência, da micro região de Canarana.
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Mapa 01 - localização da área de estudo
SEAL
PE
PARN
CE
PI
MA
BA
MG
GO
SP
AM
PB
PR
SC
RS
RO
MT
Vila Rica
Alto Boa Vista
Bom Jesusdo Araguaia
Canabrava do Norte
Confresa
Luciara
Querência
RibeirãoCascalheira
Santa Cruz do Xingú
Santa Terezinha
São Félixdo Araguaia
São José do Xingú Porto Alegre
do Norte
ILHA DO BANANAL
PRELAZIA DE SÃO FÉLIX DO ARAGUAIA
BRASIL
América do sul - BRASIL
PARÁ
AMAZONAS
RONDÔNIA
BOLÍVIA
MATO GROSSO DO SUL
GOIÁS
Escala
0 70Km
TOCANTINS
60° 56°
8°
52°
12°
16°
ESTADO DE MATO GROSSO
01
ILHA DO BANANAL
01- Vila Rica02- Santa Cruz do Xingú03- São José do Xingú04- Confresa05- Santa Terezinha06- Porto Alegre do Norte07- Canabrava do Norte
Novo Santo AntônioSerra Nova Dourada
04
02
0305
06
07 08
0910
111213
14
15
Municípios que Integram a Área de Estudo
08- Lucaiara09- São Félix do Araguaia10- Alto Boa Vista11- Serra Nova Dourada12- Novo Santo Antônio13- Bom Jesus do Araguaia14- Querência15- Ribeirão Cascalheira
Fonte: Cartografia de Leodete Miranda
O recorte temporal da pesquisa compreende o período entre a década de setenta do
século XX, estendendo-se até os primeiros anos do século XXI (1970 a 2005). A partir da
documentação analisada, este recorte temporal justifica-se pelos seguintes aspectos: é um
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momento em que, no Araguaia2, está no auge a abertura das fazendas; é nesse período que vieram
a público as primeiras denúncias de exploração dos trabalhadores, particularmente os que estão
localizados nas agropecuárias. Deve-se ressaltar o papel de destaque que teve a Prelazia de São
Félix do Araguaia, criada na década de 1970, bem como o seu enfrentamento com os grandes
proprietários e o governo militar.
Durante a pesquisa, analisamos diversas fontes que registraram a memória, as
representações, práticas sociais e políticas vivenciadas pelos diferentes grupos na ocupação do
Araguaia. Esta dissertação baseou-se em relatos orais, em fontes escritas, mapas, fotografias e
filmagens em vídeo, além da observação participante e a elaboração de um diário de campo.
Ressaltamos a importância do Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia que possui uma rica
documentação sobre a história do Araguaia e do país3.
Ao trabalharmos com a história do presente, as fontes orais possibilitaram a utilização
de depoimentos de pessoas que vivenciaram práticas violentas na (re) territorialização desse
espaço. Utilizamos a história oral como método de pesquisa histórica, entrevistando e
conversando prioritariamente com agentes sociais envolvidos 4 como estratégia para compreender
as trajetórias de vida dessas populações pobres, os peões5, que migram à procura de trabalho,
2 Se levarmos em conta a localização geográfica do Rio Araguaia situada no estado de Mato Grosso, podemos considerar que este território esta no Baixo Araguaia. 3 O Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia possui uma importante documentação sobre a luta pela terra no território do Araguaia. Neste arquivo, a documentação encontra-se digitalizada e disponibilizada para consulta. Foi um das principais fontes documentais para o desenvolvimento desta pesquisa. Ver site da Prelazia, www.alternex.com.br/~prelazia 4 Agentes de pastoral da Prelazia de São Félix do Araguaia, agentes da CPT – Comissão Pastoral da Terra, presidentes de Sindicato dos Trabalhadores Rurais e os peões. 5 Peões - definido no dicionário Aurélio (2005) como: individuo recrutado em geral em outro Estado como mão-de-obra para as grandes empresas radicadas na Amazônia; ajudante de boiadeiro; trabalhador rural; amansador de cavalos, burros e bestas; condutor de tropa. Contudo, essas de nominações necessitam ser significadas no curso das ações dos trabalhadores pobres e mais, nas especificidades de suas experiências. Neide Esterci (1987), ressalta que este termo carrega noções de inferioridade, impregnadas de negatividade que desqualificam os trabalhadores. Optamos nesta dissertação pelo termo peão para designar os trabalhadores. Durante as entrevistas eles mesmos se alto designavam como peão.
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melhoria de vida, em busca de um sonho, objeto de nosso estudo. Como destacou Ana Maria de
Souza (2007, p. 71):
A mobilidade e deslocamento de segmentos sociais pobres, como fator de luta
pela sobrevivência, é uma prática significativa da apropriação e configuração
contemporânea dos espaços sociais do Estado de Mato Grosso. Essa mobilidade
produz algumas figuras exemplares desses deslocamentos, expressas através de
designações como peões de trecho, trecheiros, andarilhos e pés-inchados.
Imagens emblemáticas de deslocamentos populacionais que podem ser
flagradas em vários outros espaços sociais do Estado de Mato Grosso.
No percurso desta pesquisa realizamos reflexões sobre o trabalho do historiador no
tempo presente, porque se trata de estudar acontecimentos históricos, “[...] à luz de depoimentos
de pessoas que deles participaram ou os testemunharam” (Alberti, 1989, p. 2). Os peões ao
relatarem suas histórias revisitam a memória trazendo fragmentos do que foi vivido, em que
muitas vezes o passado e presente entrecruzam-se em suas falas. A história dessas pessoas como
considerou Guimarães Neto (2008, p. 9) “[...] São histórias e memórias tecidas em
territorialidades configuradas e re-configuradas em um universo marcado por conflitos os mais
diversos”. São histórias entrelaçadas na luta pela terra, pela sobrevivência, em busca de sonhos na
maioria das vezes inalcançáveis. Nesse entrelaçar de histórias muitos desses trabalhadores
relatam suas histórias como se tivessem vivenciado duas vidas; uma a que sonhou e a outra a
realidade encontrada nas fazendas, povoados e pensões em que chegavam. Foram aventuras que
os envelheceram, ficando apenas o sofrimento, os sonhos não realizados. Como destacou um
peão, “[...] a aventura vai ficando velha, a cabeça vai ficando branca, quando a gente sai do
serviço sai pobre”6. Ao envelhecerem os peões continuam pobres, longe das famílias e já não
6 Entrevista realizada com I. S. em São José do Xingu, maio de 2008.
18
servem mais como mão-de-obra nas fazendas, perambulando nas periferias das cidades. Muitos já
velhos vão morar em abrigos, albergues e casas de idosos7.
No procedimento de análise das fontes orais recorremos a vários autores8, que através
de seus trabalhos nos auxiliaram, possibilitando um maior entendimento do uso da metodologia
da história oral. Nessa perspectiva, a história será reconstruída atribuindo-lhe significados, visto
que “[...] a memória emerge de um grupo que ela une, o que quer dizer, que há tantas memórias
quantos grupos existentes, que ela é por natureza, múltipla e desacelerada, coletiva, plural e
individualizada”. (Nora, 1993, p. 9). Sob este aspecto, este trabalho apresenta parte da história da
ocupação recente de Mato Grosso.
Considerando o conjunto de depoimentos orais produzidos pelas entrevistas no
decorrer da pesquisa, em parte fragmentados, porém ricos. Entendemos que “[...] a memória não
se acomoda a detalhes que a confortam; ela se alimenta de lembranças vagas, telescópicas,
globais ou flutuantes, particulares ou simbólicas sensível a todas as transferências, cenas,
censuras ou projeções”. (Nora, 1993, p. 09).
Nesse sentido realizamos uma “operação” ao analisarmos um mosaico de
depoimentos, considerando todas essas especificidades da memória. Ao mesmo tempo colocamo-
nos perante o desafio de dialogar com as memórias do trabalho que os peões constroem e suas
dimensões no processo de degradação e violência vivenciado por eles. No entanto precisamos ser
cautelosos com os afazeres da memória como (re) significação do mundo do trabalho. Essas
pessoas se referem ao trabalho nos relatos, atribuindo-lhe um significado que vai além de uma
7 Em São José do Xingu-MT, existe um casa que abriga peões velhos, que não encontram mais trabalhos nas fazendas. Nesta casa há alguns que moram lá a mais de 6 anos, estive neste local e conversei com vários deles, muitos não sabem mais da família, ou tem vergonha de procurá-los, pois estão velhos e pobres. Este local foi organizado por um peão que conseguiu juntar um pouco de dinheiro e criou uma Associação com vários outros moradores de São José do Xingu. Hoje é mantida pela prefeitura municipal. 8 Montenegro (2003, 2005) Guimarães Neto (2006, 2008), Nora (1993), Alberti ( 1990), Maria Isaura P. de Queiroz
(1983, 1988),
19
simples ocupação ou apenas um salário para garantir a sobrevivência cotidiana. Denota a busca
pela realização de expectativas e as possibilidades de um futuro diferente. Como também
representa as suas frustrações, angústias e sonhos não realizados. Como destacou Montenegro
(2003, p. 22), “[...] no momento em que os entrevistados narram acontecimentos que transcendem
o fazer mais imediato de suas vidas, são sempre os elementos que têm aspectos comuns com as
experiências do cotidiano as marcas relembradas”.
Nessa perspectiva, podemos destacar nas falas como a violência física ou psicológica
a que foram submetidos os peões, a saudade das famílias, a vergonha de não poder voltar porque
não conseguiram melhorar de vida, as distâncias percorridas, são acontecimentos que marcam de
maneira profunda suas vidas. Foram vidas que se esfacelaram, em busca de um sonho, ou pelo
menos de uma vida não tão sofrida. Essas falas também são reveladoras do universo da
exploração do mundo do trabalho. É através desses fragmentos de memória que podemos
perceber o quanto, através de pequenos gestos, falas e ações, essas pessoas reivindicam a sua
condição de pessoa humana, sua dignidade; “[...] dona eu não sou vagabundo, olha as minhas
mãos, eu trabalhei, quero só o que tenho direito” 9. Mostrar as mãos com cicatrizes produzidas
pelo trabalho pesado, exaustivo durante entrevistas e conversas com eles, era um gesto constante.
Com este gesto eles estavam denunciando a violência e humilhações que haviam sofrido.
Verena Alberti (1989, p 07), contribui com essa discussão chamando a atenção do
pesquisador para o respeito que se deve ter com o entrevistado:
O trabalho com a história oral exige do pesquisador um elevado respeito pelo
outro, por suas opiniões, atitudes e posições, por sua visão de mundo enfim. É esta
visão de mundo que norteia seu depoimento e que imprime significados aos fatos
e acontecimentos narrados. Ela é individual, particular àquele depoente, mas
9 Entrevista realizada com F. R. S. em Canabrava do Norte/MT, junho de 2006.
20
constitui também elemento indispensável para a compreensão da história de seu
grupo social, sua geração, seu país e da sua humanidade como um todo, se
considerarmos que há universais nas diferenças.
Nos depoimentos dos peões podemos considerar que há particularidades que podem
ser generalizadas. A violência, a humilhação e os longos percursos realizados por estes
trabalhadores aparecem praticamente em todos os relatos. Já as estratégias de fugas, os
relacionamentos, são como uma marca particular de cada um, que os diferenciam. Nos relatos,
eles realizam mentalmente uma cartografia dos espaços percorridos como no relato a seguir: “[...]
estive lá naquela fazenda, que fica do outro lado do rio Xingu; [...] quando saímos do Piauí,
trabalhei no Goiás, depois vim para Mato Grosso, cheguei e fui trabalhar lá na Codeara, lá perto
do Rio Araguaia”. 10
Os depoentes transformam os espaços geográficos em espaços sociais. Essa
transformação se dá através de suas práticas. Os peões dão um novo sentido ao lugar, passando
do mundo sonhado ao inferno vivido no interior das fazendas. “[...] Eu fui para a fazenda
enganado. Chegando lá era obrigado a trabalhar das 5 da manhã às 7 da noite, se não eu apanhava
ou eles me matavam” 11.
Em seus relatos os peões recompõem e decompõem os territórios por onde passam.
Há uma constante transformação do espaço social. Para eles cada lugar tem um significado
diferente, pois foram experiências que marcaram parte de suas vidas que passaram nesses lugares.
Eles vivem deslocando-se de um lugar a outro, mas quase sempre sem encontrar o seu próprio
lugar, se sentem como estrangeiros dentro da própria pátria. Como considerou Certeau ( 1994, p.
10 Entrevista realizada com I .S. em maio de 2008, em São José do Xingu/MT. 11 Entrevista com C. P. S. realizada em julho de 2006 em Confresa-MT.
21
183) “[...]um universo de locações freqüentada por um não-lugar ou por lugares sonhados”. No
caso dos peões, eles passaram do lugar sonhado ao “inferno” vivido.
Desse modo, os relatos de memória desses homens e mulheres que narram suas
experiências sobre a abertura das fazendas no Araguaia, trazem múltiplas leituras da (re)
ocupação desse espaço. Assim, as experiências vivenciadas nesse período podem ser entendidas
como leituras múltiplas, plurais de cada narrador que viveu o cotidiano do trabalho nessas áreas
de ocupação recente.
O tema da ocupação recente da Amazônia é complexo e aparece envolvido em uma
multiplicidade de questões, pois os contextos da Amazônia ou Amazônias (Gonçalves, 2005), são
variáveis e heterogêneos, o que nos possibilita diferentes análises. Guimarães Neto (2002), tem
chamado a atenção para trabalharmos com as especificidades da Amazônia fugindo das
homogeneizações que nos imobilizam, na construção de um conhecimento mais pertinente e
profícuo. É importante se destacar que existem grupos distintos que mesmo estando no mesmo
território amazônico possuem singularidades e práticas próprias. Como destacou Guimarães Neto
(2008, p. 18) referindo-se aos relatos de trabalhadores que circulam pelo território Amazônico,
“[...] as histórias narradas, ao transitarem pelas experiências dos personagens e grupos
focalizados, levando-se indicadores de comportamentos e atitudes de homens e mulheres, que
anunciam suas escolhas no imbricado jogo das redes sociais”.
A (re) ocupação do nordeste de Mato Grosso, por grandes empresas, incentivadas
pelo governo federal, a partir da década de 70 do século XX tem revelado múltiplos conflitos,
embates e disputas pelos usos e posse da terra. A partir de 1964, os governos militares,
elaboraram e conduziram um projeto de ocupação e controle de acesso às terras na Amazônia,
materializado pelo Estatuto da Terra (Lei 4.504/64). A política de integração nacional, parte do
22
projeto civil-militar para o Brasil iniciada na década de 70 do século XX, deveria segundo seus
objetivos incorporar grandes áreas de terra ao processo produtivo e integrar economicamente a
Amazônia, objetivando dessa forma, reduzir os desequilíbrios regionais, através da ocupação
desses novos espaços (Guimarães Neto, 2002). Mas o que ocorreu foi à concentração de grandes
áreas de terra, a expropriação e exploração de índios, posseiros e peões, causando intensos
conflitos pela posse da terra.
O estabelecimento das empresas agropecuárias trouxe para a Amazônia uma série de
conflitos de duração prolongada, principalmente porque essas terras consideradas “vazias” eram
ocupadas, há muito tempo, por índios, pequenos agricultores e posseiros. De acordo com Ianni
(1979), o maior número de incentivos fiscais destinados pela SUDAM (Superintendência do
Desenvolvimento da Amazônia) foram para as agropecuárias, o que provocou uma
reconfiguração do espaço agrário: “Foram os projetos agropecuários que receberam elevados
incentivos fiscais e creditícios governamentais, que provocaram uma intensa e generalizada
transformação das terras tribais, devolutas, ou ocupadas em terras de grileiros, latifundiários,
fazendeiros ou empresários” (Ianni, 1979, p. 79).
Segundo José de Souza Martins (1997), este território desde o início da sua conquista
tornou-se objeto de múltiplos e complexos movimentos, seja na caça e escravização do índio ou
na busca e coleta das plantas conhecidas como “drogas do sertão’, e também, na coleta do látex e
da castanha. Mas, “[...] a partir de 1964, a Amazônia transformou-se num grande cenário de
ocupação territorial violenta e rápida” (1997, p. 47). Outros autores que também tem estudado o
tema da ocupação da Amazônia podem ser mencionados no que diz respeito ao movimento de
expansão, apropriação e reconfiguração das suas terras. Entre esses autores que se dedicam a
estudar essa questão podemos destacar: José de Souza Martins (1973; 1975; 1997); Alcir Lenharo
23
(1985); José Vicente Tavares dos Santos (1994); Regina Beatriz Guimarães Neto (2003; 2005;
2007; 2008) Ariovaldo Umbelino de Oliveira (1989; 1997), Octávio Ianni (1978; 1979), João
Carlos Barrozo (1992; 2008) Carlos Walter Porto Gonçalves (2005), entre outros.
Na discussão sobre a temática do trabalho escravo contemporâneo trabalhamos com
diversos autores que desenvolveram pesquisa sobre o tema na Amazônia como: Neide Esterci12,
Ricardo Resende Figueira13 (2004), Binca Le Brenton14 (2002), João Carlos Barrozo15 (1992),
Pedro Casaldáliga16 (1971), José de Souza Martins17 e Ângela de Castro Gomes (2007).
No Araguaia, entre as décadas de 1960 a 1980, foram implantados vários projetos
agropecuários financiados pelo Governo Federal, através da SUDAM18. Para a instalação das
grandes fazendas na Amazônia, foi necessário arregimentar milhares de trabalhadores braçais
para abrir a mata, fazer cercas, plantar pasto. Estes trabalhadores foram aliciados por fazendeiros
e gatos19, sobretudo nos estados do Nordeste e de Goiás, com promessas de ganhar dinheiro fácil
e o sonho de uma vida melhor, um futuro promissor para eles e seus familiares. Esses
12 Antropóloga que morou e desenvolveu pesquisa na área de Prelazia de São Félix do Araguaia no final da década de 1970 e inicio de 1980. 13 Padre que trabalha na CPT no sul do Pará e desenvolveu pesquisa no Araguaia também, fez mestrado e doutorado em antropologia sobre a temática do trabalho escravo contemporâneo. 14 Jornalista inglesa que mora em Minas Gerais e escreveu um livro (Vidas Roubadas) sobre o tema, abrangendo áreas do sul do Pará e o Baixo Araguaia. 15 Sociólogo e professor da Universidade Federal de Mato Grosso desenvolveu, uma pesquisa para dissertação de mestrado sobre o trabalho escravo contemporâneo nas agropecuárias de Mato Grosso. 16 Bispo emérito da Prelazia de São Félix do Araguaia, uma das primeiras pessoas a fazer denúncias da prática do trabalho escravo contemporâneo na Amazônia. 17 Sociólogo e professor da USP possui, pesquisa sobre a Amazônia. 18A criação do Banco de Crédito da Amazônia (atual BASA Banco da Amazônia), e da SUDAM, ambas em 1966, tinha por objetivo estimular os projetos de ocupação da região Amazônica. Em 1970 foi lançado o Programa de Integração Nacional (PIN), marco de uma ação mais ostensiva do Governo Federal sobre toda a região, criado através do decreto lei nº 1.106, de 16/06/70. O primeiro Plano Nacional de Desenvolvimento (1972-1974), elaborado sob a orientação do ministro do Planejamento Reis Velloso, esteve mais voltado para grandes projetos de integração nacional (transportes, inclusive corredores de exportação, telecomunicações). 19 Agentes contratados por fazendeiros/latifundiários para aliciar os peões e vigiá-los nas fazendas para onde foram enviados. Segundo Corrêia (199, p. 77) “em alguns casos, o gato pretende-se investido da qualidade de empreiteiro, dotado de relativa autonomia; em outros, mais se aproxima de mero líder de turma, sofrendo espoliações similares à experimentada pelos demais trabalhadores, com os quais usualmente presta serviço. Em ambos os casos, porém, resulta clara a intermediação fraudulenta de mão-de-obra, aplicada em atividades essenciais ao tomador dos serviços e em seu manifesto proveito, o que caracteriza sua responsabilidade final pela relação de trabalho”.
24
trabalhadores foram obrigados a enfrentar longas jornadas de trabalho e castigos físicos no
interior das fazendas; outros foram mortos ou submetidos ao trabalho escravo contemporâneo.
No Brasil é possível estabelecer uma relação entre a concentração fundiária e a
utilização do trabalho escravo contemporâneo, porque além da riqueza concentrar-se nas mãos de
poucos, a grande propriedade praticamente extingue qualquer perspectiva de geração de emprego
e renda para os pequenos agricultores, pois não há como estes concorrerem com a grande
produção. Esses agricultores sem a terra e sem financiamentos são forçados a migrar,
abandonando seus locais de origem em busca de melhores oportunidades. Não suportando mais a
pobreza em seus estados de origem, saem à procura de trabalho em outros estados, onde são
aliciados por empreiteiros e gatos. São esses trabalhadores que estão mais expostas à prática do
trabalho escravo contemporâneo.
Embora houvesse uma população carente na Amazônia, que poderia ter ocupado as
terras, a opção foi pela distribuição de extensas áreas, com incentivos fiscais e empréstimos
milionários para as grandes empresas, inclusive multinacionais. A Volkswagem foi uma das
empresas que ocupou uma grande área no sul do Pará, posteriormente envolvida em denúncias de
trabalho escravo. As áreas que localizam-se fora das rodovias dificulta o acesso do grupo de
fiscalização, e à ganância dos grandes proprietários são ingredientes importantes para a
exploração do trabalhador nessas propriedades. Algumas dessas grandes empresas
estabeleceram-se no Araguaia: Codeara, Suiá Missu, Tamakavi, Bordon, Frenova, entre outras.
Na Amazônia, onde ocorre uma grande concentração fundiária, a utilização da do
trabalho escravo contemporâneo como de mão-de-obra de fácil acesso é empregada, sobretudo,
na transformação da floresta em pastos para a pecuária e lavouras, especialmente na monocultura
de soja, de algodão, criação de gado e cana-de-açúcar. As práticas dos fazendeiros se perpetuam,
25
em alguns casos produzindo igualmente violência, trabalho escravo contemporâneo e desrespeito
às leis trabalhistas (Figueira, 2004). São temporalidades diversas e formas de ocupação do
Araguaia que se sobrepõem, em um universo marcado pelo conflito e pela violência.
A incidência do trabalho escravo contemporâneo está concentrada, especialmente, nas
áreas de expansão agropecuária da Amazônia e do Cerrado. Contudo, há casos confirmados nos
Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, o que demonstra que
este fenômeno não está vinculado apenas à abertura de novas áreas, mas a outros elementos que
perpassam por realidades sociais distintas (CPT, 2005).
As ocorrências de trabalho escravo contemporâneo, na maioria das vezes, começam
como forma de obtenção de mão-de-obra para as grandes fazendas. Geralmente estas estão
instaladas em locais distantes de onde saíram os trabalhadores. Estes, atraídos com promessas de
um trabalho decente e bem remunerados, se constituem em uma presa fácil para os aliciadores. A
composição da dívida com o gato se inicia pela cobrança do transporte dos trabalhadores, pelo
adiantamento de um determinado valor no momento do aliciamento, ou pelo pagamento dos
débitos contraídos em pensões, o que se tornará para o trabalhador impagável, sujeitando-o ao
trabalho forçado (Esterci, 1994).
Os casos de trabalho escravo contemporâneo, denunciados e noticiados, no geral,
possuem um período de duração curta, o que dificulta a fiscalização, pois em grande parte quando
os fiscais chegam já não há mais trabalhadores (Figueira, 2004). Portanto, esta prática de
exploração do trabalhador pode estar apontando para novas formas de exploração no mundo do
trabalho, e sua precarização na contemporaneidade, especialmente em razão da terceirização e da
supressão de direitos sociais. Nas últimas décadas do século XX, as denúncias sobre a escravidão
contemporânea aumentaram de forma a chamar a atenção da sociedade. A imprensa tem um
26
importante papel na divulgação desses fatos. O Brasil, reconhecendo a existência do problema,
passou a adotar uma série de medidas para coibir essa prática. Entre elas podemos destacar o
Plano Nacional para a erradicação do trabalho escravo, lançado pelo governo federal em 200320.
No cenário internacional, a O.I.T. elaborou novas recomendações para que os países signatários
adotassem essas convenções, garantindo os direitos fundamentais do trabalhador.
A nova escravidão em alguns aspectos é mais vantajosa para os empresários que a
escravidão da época do Brasil-Colônia e Império, sobretudo do ponto de vista financeiro e
operacional (Figueira, 2004; Sakamoto, 2006).
Podemos destacar o fato que, na escravidão colonial, era permitida a propriedade
legal do escravo. Era muito mais caro comprar e manter um escravo do que hoje. O negro
africano era um investimento dispendioso que poucas pessoas podiam ter. Hoje, o custo do
trabalhador explorado nas fazendas é muito baixo. Paga-se apenas o transporte e, no máximo, a
dívida que a pessoa possui em algum comércio ou pensão. O valor desta dívida será descontado
posteriormente do trabalhador, e multiplicado várias vezes (Sakamoto, 2008, Breton, 2002,
Casaldáliga, 2000, Figueira, 2004, Barrozo, 1992 e Martins, 1997)21.
A estrutura econômica e política do país estimulam a concentração de renda e amplia
a miséria, promove a formação de aglomerados de trabalhadores dispostos a aceitar as piores
condições em troca de um trabalho que lhe permita o sustento próprio e de sua família. Como
assinalou Bourdieu (1997, p. 164) “[...] os que não têm capital são mantidos à distância, seja
física ou simbólica, dos bens socialmente mais raros e condenados a estar ao lado das pessoas ou
dos bens mais indesejáveis e menos raros”. No caso dos peões desprovidos da posse de qualquer
20 Este plano encontra-se disponível no site do Ministério do Trabalho e emprego www.mte.br. 21 A ONG Repórter Brasil possui, no seu site www.reportebrasil.com.br , vários tipos de informações dobre a temática do trabalho escravo contemporâneo, como também vários artigos e reportagens, constituindo-se em uma importante fonte de pesquisa.
27
bem, a não ser sua força de trabalho, são empurrados para as fazendas onde possivelmente serão
submetidos a situações de violência e degradação humana.
Em entrevista ao jornal o Globo a auditora Fiscal do Trabalho e responsável pela
coordenação dos grupos de Fiscalização Móvel, que combatem o trabalho escravo no Brasil
desde 1995, a auditora Ruth Vilela, secretária de Inspeção do Trabalho do governo federal,
afirma categoricamente sobre quem são esses novos escravos :
A enorme maioria, 99%, é de seres humanos invisíveis. Nascem sem certidão
de nascimento e vão morrer sem atestado de óbito. Nas fazendas, vivem em
condições desumanas, sob lonas sem higiene, e bebem a mesma água do gado.
Os animais são mais bem tratados, vivem em estábulos pintados e arrumados. 22
No interior das grandes fazendas esses trabalhadores vivem um cotidiano de
violência, são pessoas pobres que por diversas razões, vivem em constantes deslocamentos.
Chegam às novas áreas de abertura de fazendas a procura de trabalho e, na sua grande maioria
sem qualificação, sem documentos, são considerados como um incomodo nas cidades e vilas.
Para garantir o próprio sustento submetem-se a condições de trabalho cruéis e desumanas.
A pesquisa realizada para esta dissertação mostrou a complexidade e a singularidade
das relações no mundo do trabalho. A precarização do trabalho, novas formas de exploração,
algumas mais sutis, outras escancaradas, mas ambas levam à exploração e degradação do
trabalhador.
Assim, a abordagem das trajetórias de vida dos peões revelou estratégias diversas
para escapar do aprisionamento, da super exploração, das diversas formas de violências, no
mundo do trabalho. São essas pessoas que também construíram a história do Araguaia, que se
caracteriza pelos múltiplos conflitos relacionados à luta pela terra.
22 Entrevista cedida ao Jornal O Globo disponível em www.globo.com/oglobo , acessado em janeiro de 2008.
28
No arranjo dos capítulos que integram esta dissertação procuramos articular as fontes
escritas, orais e visuais à construção da narrativa histórica, observando “[...] um conjunto de
regras que permitam “controlar” operações destinadas à produção de objetos determinados”
(Certeau 1982, p. 109).
No primeiro capítulo trazemos um quadro da ocupação do Araguaia, para
compreender o espaço em que desenvolvemos a pesquisa. Faz-se uma análise das políticas
públicas que contribuíram para a reconfiguração daquele espaço, dentro do projeto de ocupação e
exploração do território amazônico.
No segundo capítulo enfocamos a importância e a atuação da Igreja Católica,
representada regionalmente pela Prelazia de São Félix do Araguaia, no combate ao trabalho
escravo contemporâneo e em defesa dos posseiros, índios e peões. O bispo, D. Pedro Casaldáliga,
juntamente com os padres e agentes de Pastoral, enfrentaram o regime militar na década de 1970,
para defender os pobres do Araguaia.
No terceiro capítulo procuramos realizar uma discussão sobre o uso do termo trabalho
escravo contemporâneo, considerando que, ao utilizarmos o termo “trabalho escravo”, este foi re-
significado, chamando a atenção para um novo fenômeno que surge no mundo do trabalho na
contemporaneidade. Este possui especificidades próprias nas novas formas das relações de
trabalho.
No quarto capítulo propomos construir uma cartografia dos espaços percorridos,
através das memórias de homens e mulheres, e a trajetória de vida dos peões, através de
entrevistas, de cartas, bilhetes, relatórios, jornais, declarações e processos judiciais que
29
encontram-se no Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia23. Os documentos pesquisados
sobre os peões que se deslocaram para o Araguaia, indicam um intenso movimento de homens e
mulheres desterritorializados a procura de novos espaços e melhores condições de vida. A
história desses trabalhadores no Araguaia está cercada de imagens que são amálgamas de sonhos,
realidades e irrealidades. As experiências vivenciadas por essas pessoas são reconstruídas com as
memórias dos tempos das aberturas das fazendas, das festas nos cabarés, e do afastamento das
famílias, entre tantos outros sonhos que não foram realizados.
Os relatos de memória desses homens e mulheres que narram suas experiências sobre
a abertura das fazendas no Araguaia trazem múltiplas leituras dessa (re) ocupação. As
experiências vivenciadas nesse período pelos trabalhadores podem ser entendidas como leituras
plurais de mundo que cada narrador desenvolve.
23 Os documentos do Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia, encontram-se digitalizados, sendo permitido pesquisas nos arquivos. Neste arquivo as pastas estão divididas por temática e por Municípios que fazem parte da Prelazia. No site da prelazia www.alternex.com.br/~prelazia é possível encontrar várias informações.
30
Capitulo I
Araguaia territórios e territorialidades
Caminhar é ter falta de lugar. É o processo indefinido de estar ausente e à
procura de um próprio. Uma imensa experiência social da privação de
lugar, uma experiência, é verdade, esfarelada em deportações
inumeráveis e infinitas (deslocamentos e caminhadas) compensadas
pelas relações e os êxodos que se entrelaçam. (...) um pulular de
passantes, uma rede de estadas tomadas de empréstimo por uma
circulação, uma agitação através das aparências do próprio, um universo
de locações freqüentadas por um não-lugar, ou por lugares sonhados
(Certeau, 1994, P. 183).
31
1.1. Migração: o encontro com o estranho
Neste capítulo discorreremos sobre a dinâmica da migração de trabalhadores para as
áreas de abertura de grandes fazendas, no nordeste de Mato Grosso, Baixo Araguaia. Esses
deslocamentos populacionais ocorrem em diferentes momentos, tecendo assim, a história desse
território. Também discutiremos as políticas públicas de ocupação dos espaços amazônicos24,
para uma melhor compreensão do espaço geográfico em que se desenvolve a pesquisa.
Ainda que o início do século XX não esteja inserido no recorte temporal selecionado
para este trabalho, consideramos importante voltar a esse período para compreender a
procedência das pessoas que ocupam o espaço estudado. Pois é através de suas histórias que
iremos construir nossa narrativa, trabalhando com as complexas relações sociais, econômicas,
políticas, culturais e espaciais que estão constituindo-se entre, o posseiro, o fazendeiro, o peão, o
índio, a Igreja Católica e o Governo.
Na abertura de novas áreas são constantes as migrações, pois as pessoas estão à
procura de oportunidades. Nesses espaços, para quem vive em situação de pobreza, há a
possibilidade de construir uma vida com menos sofrimento. Na Amazônia, no inicio do século
XX, esses deslocamentos migratórios se deram principalmente com a vinda de pessoas do
Nordeste do país. De acordo com Guimarães Neto (2007, p. 89): “[...] famílias inteiras, com a sua
24 A Amazônia Legal possui uma extensão de 5.109.812 km², que corresponde a cerca de 60% do território nacional. Por ser a maior parte dessa área coberta por florestas, com grande dificuldade de acesso, ficou por vários anos sem ter sua ocupação e exploração como prioridades dos governos. Essa situação, contudo, começou a se modificar quando foi verificada a possibilidade de exploração dos valiosos recursos naturais descobertos na região. Pode-se dizer que o marco inicial dessa fase foi a exploração do látex para a produção da borracha no final do século XIX. Essa exploração proporcionou grande desenvolvimento econômico para a Amazônia, possibilitando a geração de divisas para o país. Ao mesmo tempo, atraiu uma população miserável que buscava uma oportunidade de sustento, mas que acabou sendo explorada como escravo. Essa história de exploração econômica da Amazônia foi acompanhada de violência e exploração do homem, situação que perdura até os dias de hoje. Informação disponível em: <http://www.ada.gov.br/amazonia.asp>. Acesso em 28 de maio de 2007.
32
história de vida e morte, abandonaram sua terra, procurando fugir à miséria, à seca. Lutando
contras as adversidades do meio físico mas, sobretudo contra as arbitrariedade do domínio
político do latifúndio e da exclusão social, fizeram-se nômades”.
Num primeiro momento com o ciclo da borracha e, a partir da década de 1940 com a
“marcha para o Oeste”, intensificando-se a migração em 1942 com os “soldados da borracha”,
que foram levados, sobretudo, dos estados do Nordeste para os seringais na Amazônia. Durante a
segunda guerra mundial, o governo brasileiro firmou acordos com o governo norte-americano
para suprir aquele país com a matéria prima para a fabricação da borracha (Hevea brasiliensis e
Castilloa elástica). O governo brasileiro organizou uma campanha nacional para incentivar a
migração dos nordestinos para a Amazônia, no que foi denominado pelo governo como “a
Batalha da Borracha” 25.
Na segunda metade do século XX a migração para a Amazônia se intensificou com a
implantação de empresas agropecuárias, contando com a mão-de-obra de nordestinos para
trabalhar na abertura das fazendas e a colonização privada ou pública com os colonos da Região
Sul26. Esses deslocamentos populacionais, em momentos distintos, foram incentivados e
organizados pelo Governo.
Para Martins (1980) esses descolamentos tiveram três momentos importantes na
reocupação de terras no país no século XX:
Podem-se distinguir no país três grandes correntes migratórias, duas das quais
orientadas para a região amazônica. Uma delas é a já antiga e conhecida
corrente que leva trabalhadores do Nordeste para o Sul, particularmente para o
25 Ver o trabalho de GUILLEM, Izabel Cristina Martins. Errantes da Selva História da Migração Nordestina para a Amazônia. Recife, Ed. Universitária UFPE, 2006, IANNI, Octávio. A luta pela terra: história social da terra e da luta pela terra numa área da Amazônia. Petrópolis, Vozes, 1978 e Guimarães Neto, Regina Beatriz – Cidades da Mineração: memória e práticas culturais – Mato Grosso na primeira metade do século XX. Cuiabá Carlini & Caniato; EDUFMT, 2006. 26 Ver sobre a Ocupação recente de Mato Grosso os trabalhos de Guimarães Neto (2002), Oliveira (1989) Santos ( 1993) Souza ( 2004), Barrozo ( 2000), entre outros.
33
São Paulo, Rio e Paraná. [...] um outro fluxo migratório do Nordeste em direção
ao Norte e ao Centro-Oeste, o que basicamente quer dizer Amazônia Legal.
Uma outra grande corrente migratória, mais recente, é a que se dirige do Rio
Grande do Sul e do Paraná para Mato Grosso e Rondônia (Martins, 1980, p.
82).
Na área banhada pelo Araguaia, no nordeste de Mato Grosso, é possível identificar
quatro momentos distintos de deslocamentos populacionais, estabelecido por pessoas de diversas
regiões do país, que foram ocupar esse território No primeiro momento chegaram famílias que
formam pequenos povoados às margens do rio Araguaia (inicio do século XX), constituído por
uma migração espontânea. Os primeiros povoados foram Furo de Pedra (Santa Terezinha), Mato
Verde (Luciara) e São Félix do Araguaia. Nesse primeiro momento chegam famílias do
Maranhão, Goiás e Pará (Soares, 2004). Essa migração dá-se através de uma rede de parentesco e
compadrio que procuram melhores condições de vida e novas terras. Segundo Soares (2004, p.
34): “Estes deslocamentos populacionais eram lentos e as notícias sobre os garimpos
diamantíferos do leste mato-grossense e de novas terras de pastagem propicias para a criação do
gado eram veiculados “de boca em boca”.
Muitas dessas pessoas chegam para o Araguaia no inicio do século XX, algumas
vezes vinham alguns membros (mais especificamente o pai e algum dos irmãos mais velhos) para
olhar as terras e depois voltavam para buscar os outros integrantes do grupo familiar. Em alguns
casos estavam de passagem para os garimpos do leste mato-grossense e constituíam família nesse
lugar. Como também alguns grupos foram para o Araguaia seguindo a representação mítica das
“bandeiras verdes” 27. Essas pessoas como observou Guimarães (2007, p. 90):
27 Profecia de Padre Cícero, de que os nordestinos deveriam seguir para o Oeste onde havia matas e rios que não secavam, ver os trabalhos de Martins ( 1992) Lima (2002) Capelete (2002).
34
Levavam em sua bagagem não só a miséria que se restringia à penúria
econômica e à exploração degradante do trabalho, mas a que também pode ser
vista em outra dimensão: aquela que pressiona grupos sociais pobres a se
deslocarem de um lado ao outro, aprisionados a incessantes construções míticas.
Essa população que ocupou as margens do Araguaia, até inicio da década de 1950,
vivia principalmente da caça, pesca, extrativismo e venda de pele de animais para barcos que
navegavam pelo rio Araguaia. Os caçadores/coletores trocavam as peles de animais por sal, café,
tecido e açúcar.
No inicio da ocupação, essa população foi assistida pela Prelazia de Conceição do
Araguaia até 1971. Como observou Casaldáliga (1971, p. 06):
A maior parte do elemento humano na região é sertanejo: camponeses
nordestinos, vindos diretamente do Maranhão, do Pará, do Ceará, do Piauí, ou
passando por Goiás. Desbravadores da região, “posseiros”. Povo simples e
duro, retirante como por destino numa forçada e desorientada migração, com a
rede de dormir nas costas, os muitos filhos, algum cavalo magro e uns quatros
“trens” de cozinha carregados na sacola.
Antes da ocupação desse território por migrantes de vários estados, esse espaço era
ocupado por povos indígenas das etnias: Xavante, Karajá, Tapirapé e Kaiapó. Os Karajá habitam
às margens do Araguaia há mais de três séculos, convivendo sem grandes conflitos com as
populações que chegaram no inicio do século XX. O Kaiapó, um povo guerreiro, aparece nos
relatos como um povo que vivia em constantes conflitos com os não índios e índios de outras
etnias, como os Tapirapé que foram quase dizimados por eles. 28 Como destacou Soares (2004,
p. 52)
28 Sobre a sobrevivência e reorganização desse povo ver o “Diário das Irmãzinhas de Jesus”, lançado em 2004, em comemoração aos 50 anos de convivência dessas irmãzinhas com o Povo Tapirapé e BALDUS, Herbert. TAPIRAPÉ: Tribo Tupi no Brasil Central. São Paulo, Companhia Editorial Nacional, 1970.
35
[...] pelos indícios é possível pensar na complexidade desta longa experiência de
contatos entre as diferentes sociedades indígenas e os sertanejos/posseiros que
fixaram residência nas margens dos rios Araguaia e Tapirapé construindo o
povoamento não indígena desta parte nordeste de Mato Grosso. Foram mais de
seis décadas de contatos, de convívio diário, demarcando/construindo um novo
re-ordenamento neste espaço.
Essas áreas às margens do Araguaia com a chegada dessas populações, oriundas do
nordeste do país e do sul do Pará, juntamente com as etnias que já habitavam esse espaço
vivenciam um complexo contato inter-étnico, que resultou em conflitos os mais diversos29.
Conceição do Araguaia no final do século XIX e início do XX constituiu-se em um
importante núcleo urbano do sul do Pará (Ianni, 1978), tornando-se para as pessoas que vinham
do nordeste do país para os garimpos do leste de Mato Grosso um importante lugar de passagem.
Com o ciclo da borracha do inicio do século XX este povoado desenvolveu-se
consideravelmente. Aparece constantemente nos relatos de viajantes e entrevistados. Para chegar
a Santa Terezinha, Luciara e São Félix do Araguaia vindos, sobretudo do Maranhão, essas
pessoas passavam primeiro por Conceição do Araguaia30.
A queda na produção da borracha na década de 1910 provocou uma reorganização na
economia dos povoados do sul do Pará, que se constituíram em função da expansão da borracha.
Com a crise da borracha31, os garimpos do leste de Mato Grosso, atraíram grande parte dessa
população que subiu o Rio Araguaia em direção às áreas de garimpos (Soares, 2004).
29 Sobre esses conflitos e contatos inter-étnicos ver o trabalho de WANGLEY, Charles. Lágrimas de boas-vindas:índios Tapirapé do Brasil Central. São Paulo, Edusp, 1988, BALDUS Op. cit. 30 Octávio Ianni desenvolveu um importante trabalho sobre Conceição do Araguaia. IANNI, Octávio. A luta pela terra: história social da terra e da luta pela terra numa área da Amazônia. Petrópolis, Vozes, 1978. 31 Sobre a expansão e a crise da borracha consultar o trabalho de WEINSTEIN, Barbara. A Borracha na Amazônia: expansão e decadência (1850- 1920). São Paulo, UCITEC, 1993 e Ianni, op. cit.
36
As pessoas que seguiam para os garimpos do Leste de Mato Grosso32, alguns
permaneciam nos povoados às margens do Araguaia, onde se dedicavam à agricultura e criação
de animais. Foi o caso da família do senhor Cecílio Carlos Pereira. Seu pai, Martiniano Carlos
Pereira, chegou no inicio da década de 1920, no povoado Furo de Pedra (hoje Santa Terezinha),
vindo do Maranhão, perfazendo o caminho a pé, a cavalo e em alguns trechos de canoa, levando
consigo toda a família. Cecílio casou-se e constituiu família. Mais tarde na década de 1940,
deixou sua família no povoado e partiu para garimpo no leste de Mato Grosso, retornando anos
mais tarde. No princípio conseguiu um pouco de dinheiro, o que proporcionou melhorias para a
família. O senhor Cecílio teve nove filhos, sendo quatro deles homens que mais tarde, já na
década de 1980, também seguiram para garimpos no leste de Mato Grosso33.
Muitos dos que migraram para o Araguaia, antes de estabelecerem-se nos povoados,
moraram e trabalharam na Ilha do Bananal34. A maioria dessas pessoas não tinha um lugar
definido para se fixar, pois vinham seguindo informações verbais de outras pessoas que já
moravam na área ou ouviram falar dela (Cardoso, 2002).
Essas pessoas migraram para escapar da extrema pobreza nos locais de origem
(Nordeste e Goiás) e à procura de terras férteis para plantar (Soares, 2004). Para esses migrantes
a Ilha do Bananal se apresentava como a concretização de melhoria de vida, como destaca em seu
depoimento, um ex-morador:
Nós viemos para a Ilha do Bananal em 1968, por causa da criação de gado.
Quando casei com Jú eu era pobrezinho, e o meu sonho era ser fazendeiro, e eu
tinha uma terra e um pouco de gado, mas aquele lugar (Maranhão) era tão
32 Sobre as migrações para os garimpos em Mato Grosso ver os trabalhos de Guimarães Neto, Regina Beatriz – Cidades da Mineração: memória e práticas culturais – Mato Grosso na primeira metade do século XX. Cuiabá Carlini & Caniato; EDUFMT, 2006 e BARROZO, João Carlos, Em busca da pedra que brilha como estrela: garimpo e garimpeiros do Alto Paraguai. Cuiabá, Carlini & Carniato EDUFMT, 2007, entre outros. 33 Informações obtidas a partir de entrevistas com Maria de Lourdes Carlos, filha de Cecílio Carlos Pereira. 34 Sendo a maior ilha fluvial do mundo, este espaço foi ocupado, desde o final do século XVII, por populações indígenas de várias etnias. Somente a partir do final do sec. XIX é que passou a ser ocupada por não índios.
37
pobre, cheio de erva, o gadinho que tinha, que nós arrumamos, o gado secava e
morria na saída das águas, ( depoimento de J. A. G. C. apud, Cardoso, p. 6).
Os estudos sobre as migrações do Nordeste para a Amazônia têm apontado diversos
fatores que levam as pessoas a migrarem; fome, seca, procura por terras livres, melhores
condições de vida e a questão mítica, de que na Amazônia há a possibilidade de enriquecimento
fácil, como considerou Barrozo (2007, p. 130) em sua pesquisa sobre garimpo e garimpeiros do
Alto Paraguai/MT: “[...] As migrações estão articuladas com o processo de mudança
desencadeado no conjunto das relações de produção. Os fluxos migratórios expandem-se e
retraem-se de acordo com os ciclos econômico”. E Aragon (apud, Barrozo, 2007, p. 131) assinala
que: “[...] as pessoas que migram muitas vezes vão à procura de uma retribuição pessoal, mas
como integrante de uma estratégia grupal, cujo objetivo é melhorar as condições de vida ao nível
agregado da família”. No primeiro momento da migração essas pessoas vinham em grupos
articulados com a rede de parentesco e compadrio.
Trabalhando também com migrações para a Amazônia, Guimarães Neto (2006, p. 97-
98) destaca que:
Não se pode perder de vista que os deslocamentos migratórios para a Amazônia
alinhavam-se na trama de conteúdo mítico, alimentados por técnicas de
propagandas do Estado, projetando poderosas imagens, nas quais se produzem
bandeirantes, soldados da borracha, soldados do trabalho, novos bandeirantes.
Portando, os regimes de poder, em seu próprio funcionamento, exigem e
produzem um discurso mítico sobre a terra prometida, ajustada às
“necessidades nacionais” (em diferentes versões); e os trabalhadores,
apresentados como migrantes culturalmente desterritorializados, apareciam,
pois, como conquistadores de novos territórios, construtores da nação e
pioneiros na fundação das cidades.
38
O Estado incentivou e direcionou os deslocamentos migratórios em diferentes
momentos da história do país, agindo conforme seus interesses sem levar em conta as
necessidades dos pequenos agricultores, trabalhadores sem terra, pessoas que se deslocaram de
seus locais de origens. O Estado deixou os trabalhadores e pequenos agricultores à própria sorte
quando estes já não atendiam aos interesses dos governantes, como sucedeu com os “soldados da
borracha”, abandonados nos rincões da Amazônia, de onde muitos nunca mais conseguiram
voltar ao seu lugar de origem (Guillem, 2007). De forma análoga aconteceu com os colonos do
Sul, que foram atraídos pela colonização, pública ou privada. Ao chegarem às terras de Mato
Grosso, de Rondônia e outras áreas do território amazônico, não puderam contar com o apoio do
Estado e das colonizadoras.
A partir do final década de 1960, há um segundo momento migratório, com a
transformação do espaço social, cultural, econômico e geográfico desse território, devido à
chegada das empresas agropecuárias subsidiadas pelo governo federal. As terras antes comunais35
passam a ser propriedade privada, gerando vários conflitos pela posse da terra36. Até inicio da
década de 60 do século XX, nesse espaço não havia grandes fazendas.
Até então, no Araguaia existiam quatro povoados: Santa Terezinha, São Félix,
Luciara e Porto Alegre do Norte. Todos faziam parte do Município de Barra do Garças que
abrangia mais de 200.000 km². Essa população praticamente não conhecia o trabalho assalariado.
Se matava que fosse um porco, todo mundo da rua comia. Quando era gado ia
mais de um quilo para os vizinhos. Aqueles vizinhos que agradava mais,
mandava duas vezes. O que agradava menos recebia uma vez só, mas todos
35 As terras comunais no Araguaia constituíam as várzeas, varjões, aguadas, que eram utilizadas por todos dependendo da necessidade de cada um, essas pessoas não possuíam titulo dessas terras. 36 O território Araguaia nas décadas de 60,70,80 do século XX, ficou conhecida pelos vários conflitos e luta pela terra, ver Souza ( 2002), Pereira (2002), Martins (1994), Esterci (1987) , Canuto (1972) e Casaldáliga (1971).
39
ganhavam nem que fosse gordura.....E não comprava não, tudo isso era trocado
(Luiza moradora de Santa Terezinha, apud Esterci, Neide, 1987, p. 101).
Com a chegada das empresas agropecuárias, constitui-se nesse espaço o trabalho
assalariado, sobretudo nas empresas agropecuárias. Essas empresas utilizam o trabalho do peão
levado de outros estados. Quando há posseiros na área ele é expropriado e expulso ou então passa
a ser explorado pelas fazendas.
A população local sobrevivia praticamente da troca de produtos e serviços entre se.
Havia barcos que percorriam o Araguaia – armazéns flutuantes - trocando sal, café e tecidos com
os moradores das margens do Araguaia. No entanto, com a chegada das empresas agropecuárias
há uma transformação no modo de vida dos moradores. Dona Joselita relata como eram
realizadas as trocas:
As coisas eram muito difícil, quase não tinha dinheiro, ai se eu tenho uma coisa
para vender, mas não tem quem comprar, eu troco, você fica com o meu, eu
fico com o seu, é assim. Com o serviço no roçado era também assim, quando
meu marido colocava a roça ou ia colher, ele trocava dia de serviço com o
compadre ou outro vizinho mais próximo, ninguém pagava para o outro e todo
mundo trabalhava assim37.
Nesses relatos podemos observar um pouco do cotidiano da comunidade de Furo de
Pedra (atual Santa Terezinha). Na década de 1950, o comércio era muito precário ou
praticamente inexistente. O que acontecia era a troca de produtos e serviços entre os moradores.
Com a abertura das fazendas a procura por mão-de-obra intensifica-se ao longo das
décadas de 1970 e 1980. Na abertura destas fazendas, foram contratados centenas de peões para
trabalhar, sobretudo, na derrubada da mata.
37 Entrevista realizada com Joselita Filomena Costa, em 10 de novembro de 2000, em Goiânia.
40
Houve assim, uma segunda corrente migratória para o Araguaia, constituída pelos
peões que chegam para trabalhar nas fazendas que estão sendo formadas no Baixo Araguaia.
Quando terminava a “empreitada” eles permaneciam nesse território, muitas vezes perambulando
de vilarejo em vilarejo ou de fazenda em fazenda. Alguns constituem novas famílias, mesmo
tendo mulher e filhos no lugar de procedência. Eles vem principalmente do Nordeste e de Goiás.
São homens à procura de melhores condições de vida, fugindo das adversidades vividas no seu
lugar de origem.
Com a chegada dessas pessoas no Araguaia há uma desestruturação dos povoados.
Em Santa Terezinha em 1970, chegaram para trabalhar na fazenda CODEARA (Companhia do
Desenvolvimento do Araguaia) aproximadamente 1.200 trabalhadores e o povoado contava com
aproximadamente 140 famílias (que não chegava a 500 pessoas). Muitas vezes os “chegantes”
são mais numerosos que a população local, provocando rupturas na organização social,
econômica e cultural desse espaço social, uma desestabilização e fragmentação dos povoados.
Naquele período, surgiram os prostíbulos e muita violência, denunciada por Casaldáliga:
O peão fechado na mata por muitos meses, nessas condições de tensão
desumana, quando vai ou é levado à cidade, gasta, muitas vezes, tudo o que
recebeu, em bebedeiras, prostituição e é facilmente roubado. Vários chegam a
São Félix depois de 4 ou 5 meses de trabalho na mata (Casaldáliga, p. 27,
1971).
Essa situação foi constante em praticamente todos os povoados do Araguaia no inicio
da década de 1970. Para as pessoas do lugar era um grande constrangimento ver suas filhas junto
com os peões, forasteiros como eram denominados pelos habitantes do lugar. Estes estavam
sempre envolvidos em brigas e assassinatos.
41
Norbert Elias e John Scotson (2000) estudaram uma pequena cidade do interior da
Inglaterra, Winston Parva, no início da década de sessenta do século XX. Os autores centraram
suas análises em torno das relações estabelecidas na vida social desta cidadezinha da Inglaterra.
O que eles chamam de fantasias grupais, o imaginado e o vivido, na Amazônia podemos
considerar como o mítico, o lugar promissor que passa a ser o inferno vivido pelos peões do
Araguaia.
No Araguaia os outsiders, utilizando um termo empregado pelos autores, são os peões
que na maioria das vezes nunca são aceitos na comunidade. Para Elias e Scotson, os outsiders
mesmo vivendo por vários anos na comunidade não conseguem integrar-se à mesma, sendo a
maioria das vezes, tratados como estranhos pelos estabelecidos.
Em Winston Parva, havia uma distinção entre os grupos que viviam em áreas
diferentes da cidade. Em situação análoga, os peões nas cidades do Araguaia têm os lugares
determinados onde podem circular, ou seja, são tratados como estrangeiros no lugar em que
chegam. Isso gera tensões múltiplas entre os habitantes do lugar e os que chegam depois. Os
peões são indesejados, e a população os quer longe das cidades e fora dos lugares que são
freqüentados pelas famílias.
Segundo Norbert Elias e John Scotson (2000, p. 26) “[...] não é fácil entender a
mecânica da estigmatização sem um exame mais rigoroso do papel desempenhado pela imagem
que cada pessoa faz da posição de seu grupo entre outros, e, por conseguinte de seu próprio status
como membro desse grupo”. Portanto, essa população está olhando, analisando e julgando os
peões a partir da posição que ocupam nessas cidades.
Os migrantes do Nordeste, destacando-se os peões ou trabalhadores temporários que
chegam para trabalhar, como mão-de-obra não qualificada nas agropecuárias, vieram também em
42
busca de terras para trabalhar como agricultores. Estas pessoas são agricultores pobres que
fugiram das mais diversas e complexas situações no Nordeste: concentração de terra, seca, fome,
entre outras. Essa corrente migratória intensificou-se a partir da década de 1960. O Governo,
também estimulou a migração como estratégia para resolver as pressões que os movimentos
sociais do Nordeste faziam sobre ao Governo Federal. Naquele momento, lutavam por acesso à
terra e contra a concentração desta. Essas migrações atenderam em parte às necessidades de
mão-de-obra para trabalhar nas empresas que se instalaram na Amazônia.
Em um terceiro momento dos deslocamentos migratórios para o Araguaia podemos
destacar a segunda metade do século XX, quando chegaram os migrantes vindos do Sul, através
dos projetos de colonização privada. Estes projetos contavam com incentivos e subsídios do
Governo Federal. Favorecendo esse fluxo migratório houve uma intensa propaganda por parte
das colonizadoras privadas. Os agricultores que possuíam uma pequena propriedade no Sul do
Brasil migraram para Mato Grosso por várias razões. Naquele momento estava em andamento
um processo de modernização da agricultura, que exigia o remembramento das pequenas
propriedades. A solução proposta pelo Governo Federal para não fazer uma reforma agrária e
evitar os conflitos sociais na região sul, foi a transferência desses agricultores para projetos de
colonização na Amazônia. Segundo Ianni (1979) o governo faz uma “contra reforma agrária”.
No Araguaia foram formados seis núcleos de Colonização privada: Vila Rica,
Querência, Santa Cruz do Xingu, Água Boa, Canarana e Confresa, gerenciados pelas
colonizadoras: Vila Rica, CODEBRASA, Confresa e COOPERCANA. No caso de Confresa,
Santa Cruz do Xingu e Vila Rica, as colonizadoras não cumprindo com os acordos firmados com
os colonos, sobretudo no que se refere à questão da mecanização das terras que não foi realizado
por parte das colonizadoras. Algumas nem mesmo possuíam maquinários. Os colonos
43
reclamavam da falta de escola para os seus filhos, assim como da inexistência ou precariedade
das estradas que davam acesso aos lotes. Os colonos foram abandonados à própria sorte, longe
dos centros urbanos e sem dinheiro para retornar ao lugar de origem. Dinheiro público que serviu
para enriquecer os donos das colonizadoras e empobrecer os trabalhadores, que saíram de seu
lugar de origem à procura de melhoria de vida.38
A partir da década de 1990, configura-se no Araguaia um novo migrante, o
“sazonal39”. Este trabalhador irá ocupar espaços mais definidos, como o da destilaria Gameleira
que se instala no Município de Confresa a partir de 1980. Esses migrantes que vão trabalhar no
corte da cana são originários, principalmente de Alagoas, Pernambuco, Piauí e Maranhão. Em
alguns casos os migrantes não retornam para o lugar de onde saíram, constituindo família no
novo lugar. Na cidade de Confresa há bairros onde um percentual alto dos moradores é
constituído por migrantes do Nordeste, que vieram para trabalhar na destilaria Gameleira40.
A partir da década de 1970 intensificou-se a chegada de migrantes de diversas regiões
do país no Araguaia, assim como o avanço do capital através das empresas agropecuárias e
colonizadoras que se instalaram naquele espaço.
38 Sobre essas áreas de colonização no Araguaia ver os trabalhos; Martini, Ângela Maria. Reféns da Esperança- Artífices da Cidade em construção: relatos da colonização em Vila Rica/MT (anos 1980). Monografia de especialização, Confresa, UNEMAT, 2007; RECH, Marinez Irene Folador. Mulheres na Colonização de Vila Rica/MT – 1970 a 1980. Monografia de especialização, Confresa, UNEMAT, 2007 (ambas sobre a colonização de Vila Rica); Ribeiro, Carla Soraya Nunes. A mulher na colonização de Confresa (1970 a 1980). Monografia de conclusão de curso, UNEMAT, 2007. Silva, Aureci Barros da. A formação da cidade de Confresa a partir da memória década de 1970 a 1980 (sobre Confresa); Fedrigo, Elsedir Maria. Terra, Sonho e Saga: Construção histórica sobre Santa Cruz do Xingu. Monografia de conclusão de curso, UNEMAT, 2007 ( sobre Santa Cruz do Xingu) . 39 Estamos nos referindo especificamente aos cortadores de cana, que vêm dos estados do nordeste (Maranhão, Piauí e Pernambuco) para trabalhar na Destilaria Gameleira. 40 Ver o Trabalho de SANTOS, Francisco José dos. Contaminação das águas dos poços na Rua Wilson Saivá por fossas em Confresa-MT. Monografia, Luciara, UNEMAT, 2007.
44
1.2. Políticas públicas: Reconfiguração do espaço na fronteira
amazônica
Na década de 1930, Getúlio Vargas assume o poder no país, cria o Estado Novo em
1937, e reorganiza as instituições estatais, com o objetivo de empreender o desenvolvimento e
integração do país, promovendo a ocupação dos “espaços vazios”. Getúlio Vargas propõe uma
política de integração nacional, como projeto de desenvolvimento do país que ficou conhecida
como “Marcha para o Oeste”. Em seu governo foram colocados em ação programas para que essas
políticas se concretizassem. Vejamos um trecho do Discurso de Getúlio Vargas sobre o seu projeto
de ocupação dos “espaços vazios”:
Desse modo o programa rumo ao Oeste é o reatamento da campanha dos
construtores da nacionalidade, dos bandeirantes e dos sertanistas, com a
integração dos modernos processos de cultura. Precisamos promover esta
arrancada sob todos os aspectos e com todos os métodos, para sanar os vácuos
demográficos do nosso território e fazer com que as fronteiras
econômicas coincidem com as fronteiras políticas (discurso de Getúlio
Vargas em 1937, apud, SOUZA, 2002, p 15).
De acordo com Lenharo (1980, p. 59): “[...] O Estado inventou novos dispositivos de
apoio à sua obra civilizadora. Dentre eles a Fundação Brasil Central é a sua realização mais
avançada e espetacular”. A Fundação Brasil Central e Expedição Roncador-Xingu, são parte
importante dessa arrancada para o Oeste, mais precisamente no Leste e Nordeste de Mato Grosso.
Foi com esse discurso de integração e exploração dos “espaços vazios” que
organizou-se a Fundação Brasil Central e a expedição Roncador-Xingu. A Fundação Brasil Central
45
criada em 1943 com objetivo de desbravar e colonizar as áreas do Araguaia e Xingu. A primeira
base foi organizada em Aragarças (GO), e posteriormente em Xavantina (MT).
O incentivo para a colonização do norte acabou por vir indiretamente no bojo
das medidas implantadas pelo Estado Novo, ainda em 1943. Neste ano foi
criada a Fundação Brasil Central, com o objetivo de desbravar e colonizar as
áreas do Estado: Araguaia, Xingu, estimulou a colonização do nordeste do
Estado e facilitou a penetração de contingentes de migrantes que avançaram em
regiões de garimpo. (Lenharo, 1983, p. 39).
Com a Fundação Brasil Central as ações do governo federal abrangeram maiores
dimensões territoriais e políticas, chegando a abarcar a parte norte e nordeste do estado de Mato
Grosso. Atendia ao interesse da colonização dos “espaços vazios”, demonstrando que era possível
ocupar esse território “imensamente desocupado”. Porém, essa área não era “desocupada”. Havia
povoados (como Barra do Garças e os garimpos) com milhares de pessoas, como também não
consideravam as populações indígenas que neste momento ocupava esse espaço expressivamente.
Como considerou Lenharo (1980, p. 74) “[...] também nessa parte do estado, a imagem da
exploração de um território ainda vazio não correspondia à realidade”.
A ação da Expedição Roncador-Xingu se estendeu do Rio Araguaia, saindo de Barra do
Garças, rumo ao Rio das Mortes e posteriormente até o Rio Xingu. Essa área era entendida como
um imenso território a ser conquistado, como mostra o relato dos irmãos Villas Boas:
Em 1943, os nossos quarenta e tantos milhões de habitantes viviam
praticamente na faixa litorânea. A Amazônia era um mundo remoto, e o Brasil
Central parecia mais distante do que a África. Nascia assim, em plena guerra,
um impulso expansionista, desta feita alentado pelo próprio Estado. Dois
organismos foram criados pelo Governo: o primeiro a expedição Roncador-
Xingu; o segundo a Expedição Brasil Central, com função definida de implantar
46
núcleos populacionais nos pontos ideais marcados pela Expedição. O primeiro
órgão era assim a vanguarda do segundo (VILLAS BÔAS, Orlando, VILLAS
BÔAS, Cláudio, 1994, p. 24).
A “Marcha para o Oeste” foi uma das primeiras políticas de colonização e exploração
da Amazônia constituída pelo Governo no século XX. Esta política pública será retomada mais
tarde nos Governos militares após 1964.
A ocupação e exploração da Amazônia passaram a ser uma prioridade para os
governos militares, após o golpe de 1964. Com o lema “é preciso integrar para não entregar”,
promoveu-se uma grande campanha de integração e exploração da Amazônia41. Para desenvolver
este programa, o governo construiu uma rede de estradas, ao longo das quais foram implantados
projetos de colonização pública e privada, onde seriam assentados os colonos deslocados de outros
Estados. O processo concebido pelos governos militares para integrar, ocupar e explorar a
Amazônia foi organizado a partir de programas, tais como o PIN (Programa de Integração
Nacional) 42 e o PROTERRA (Programa de Redistribuição de Terras e Estímulos à Agropecuária
do Norte e Nordeste). Além disso, foram criados os “pólos” de desenvolvimento, entre os quais o
POLOAMAZÔNIA, o POLOCENTRO43 e o POLONOROESTE. Parte vital do ambicioso projeto
41 Os programas criados pelo governo federal para viabilizar a política de integração nacional da Amazônia foram discutidos em Cardoso e Müller (1977), Soares (2004), Moreno (1993), Oliveira (1997), Barrozo (2000), Souza (2004) e Guimarães Neto (2002). Sobre a política de ocupação de terras no Centro-Oeste brasileiro, sobretudo em Mato Grosso ver. Lenharo (1986). O autor discute pontos importantes sobre a especulação com a terra no Oeste brasileiro desde o Estado Novo até (com maior ênfase) a década de 1950. O autor aponta os critérios políticos que favoreceram a atribuição de terras aos detentores de capital, em detrimento de trabalhadores pobres. 42 PIN – Plano de Integração Nacional, previa a localização dos projetos de colonização oficial numa faixa de 100 quilômetros de cada lado das rodovias federais na Amazônia e Centro-Oeste. Criado durante o governo do presidente Médici (1969-74) pelo decreto lei nº 1.106 de junho de 1970, o PIN tinha entre outras finalidades, financiar o plano de obras de infra-estrutura nas áreas de atuação da SUDAM e da SUDENE e promover sua mais rápida integração à economia nacional. Além do plano de irrigação do Nordeste, a primeira etapa do PIN compreendia a construção de rodovias na Amazônia. Entre elas, a Transamazônica e a BR 163, ligando Cuiabá, em Mato Grosso à cidade de Santarém, no Pará. ( Ianni, 1979,Cardoso e Miller, 1997, Barrozo, 1997 Souza 2005 e Soares 2004). 43 O POLOCENTRO – Programa de Desenvolvimento dos Cerrados – foi criado no governo do general Geisel através do Decreto nº 75.320 de 29/01/1975 para transformar os cerrados em áreas de expansão de frentes comerciais a partir do Centro-Oeste e Oeste de Minas Gerais. Como meta, deveria incorporar cerca de 3,7 milhões de hectares
47
foi a construção das rodovias Transamazônica, Cuiabá – Santarém, Cuiabá – Porto Velho, Porto
Velho – Manaus, Manaus – Boa Vista. No Araguaia foi construída a BR 158, ligando Barra do
Garças a Marabá e Belém. Com o mesmo objetivo, foram criados a SUDAM (Superintendência do
Desenvolvimento da Amazônia)44, o BASA (Banco da Amazônia)45 e a SUDECO
(Superintendência do Desenvolvimento do Centro – Oeste).
O governo militar após 1964, monta um grande aparato para atender ao grande capital
nacional e estrangeiro, pois a ocupação da Amazônia era considerada uma questão de segurança
nacional. Sem incentivos e uma infra-estrutura mínima, os empresários não investiriam nem
instalariam empresas na Amazônia.
A partir de 1968 ocorreram conflitos violentos pela posse da terra no nordeste de Mato
Grosso46. Visando “solucionar” esses conflitos e ao mesmo tempo controlar a ocupação dessas
terras, o governo volta os olhos para esse território, até então pouco habitado, intensificando a
ocupação através das empresas agropecuárias.
A construção da BR 158, interligando o Baixo Araguaia com o centro-sul do Brasil, e
com o sul do Pará, foi uma importante via de comunicação e acesso a este território. Até a abertura
da rodovia (1975) a principal via de transporte era o rio Araguaia, que na época da seca ficava
praticamente intransitável, dificultando o acesso dos moradores e migrantes. ao setor produtivo nas áreas de agricultura, pecuária e florestas. Suas ações preconizavam apoio à infra-estrutura (armazenamento, estradas rurais, eletrificação e assistência técnica, preocupando-se ainda com pesquisas de sementes visando promover o plantio de soja no cerrado). ( Ianni, 1979,Cardoso e Miller, 1997, Barrozo, 1997 Souza 2005 e Soares 2004). 44 A Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), foi criada no governo de Castelo Branco, em 1966, mantida através de incentivos fiscais e financeiros especiais para atrair investidores privados, nacionais e internacionais. A SUDAM substituiu uma outra autarquia denominada Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA), criada por Getúlio Vargas, em 1953, com objetivos semelhantes aos da SUDAM. ( Ianni, 1979,Cardoso e Miller, 1997, Barrozo, 1997 Souza 2005 e Soares, 2004). 45 O BASA – Banco de Desenvolvimento da Amazônia - foi criado em 1966, em substituição ao Banco de Crédito da Borracha, fundado em 1942, com o objetivo de garantir o suprimento de borracha natural aos aliados, durante a Segunda Guerra Mundial. ( Ianni, 1979,Cardoso e Miller, 1997, Barrozo, 1997 Souza 2005 e Soares 2004). 46 Em Santa Terezinha ( posseiros X Codeara), São Félix do Araguaia (posseiros e índios X Suiá Missú), Serra Nova Dourada ( posseiros X Bordon), Porto Alegre do Norte (posseiros X Fazenda Frenova) Novo Santo Antônio ( posseiros X o grupo Abdalla Zarzu).
48
A SUDAM era o órgão responsável pela aprovação dos grandes projetos empresariais
na Amazônia, promovendo um re-ordenamento fundiário. Segundo Ianni (1974, p.79), os objetivos
da SUDAM eram:
a) concentração de recursos em áreas selecionadas em função de seu potencial e populações
existentes;
b) adoção de política migratória, aproveitando excedentes populacionais internos e
contingentes selecionados externos;
c) incentivo e amparo à agricultura, à pecuária e a piscicultura como base de sustentação
das populações regionais;
d) ampliação conjunta dos recursos federais constantes da administração centralizada e
descentralizada, ao lado da contribuição do setor privado e de fontes externas;
e) adoção de intensiva política de estimulo fiscais, creditícios e outros para atrair
investimentos nacionais e estrangeiros e assegurar a elevação da taxa de re-inverção na
região, dos recursos nela gerados;
f) concentração da ação governamental nas tarefas de planejamento, pesquisa de recursos
naturais, implantação e expansão da infra-estrutura econômica e social, reservando para a
iniciativa privada as atividades industriais, agrícolas, pecuárias, comerciais e de serviços
básicos rentáveis.
Para por em prática os seus objetivos a SUDAM não respeitou as populações que
habitavam a Amazônia, sobretudo os posseiros e índios. No território do Araguaia as agropecuárias
com projetos aprovados pela SUDAM e com incentivos fiscais, colocaram em prática uma política
de expropriação de índios e posseiros47. D. Pedro Casaldáliga em um poema assim se refere à
SUDAM: “[...] Maldito seja o latifúndio, exceto os olhos da vaca. Maldita para sempre a SUDAM,
47 Sobre os conflitos de terra no Araguaia, especificamente sobre o conflito entre posseiros e a empresa CODEARA ver ESTECI ( 1986), SOUZA (2002), entre outros.
49
a sua amante ilícita. Maldita para sempre, a CODEARA!” (Casaldáliga, apud, Escribano, 2000, p.
67) 48.
A ação da SUDAM no Araguaia foi através das agropecuárias, fomentando a ocupação,
a exploração e o controle da Amazônia. Segundo Ianni (1979, p. 60):
A SUDAM passou a ser, desde sua criação em 1966, provavelmente o principal
órgão do governo federal para a dinamização da economia amazonense. Além
de coordenar e supervisionar (e mesmo elaborar) programas e planos de outros
órgãos federais atuando na região, a SUDAM criou incentivos fiscais e
financeiros especiais para atrair investidores privados, nacionais e estrangeiros.
Foi a partir da criação da SUDAM que começaram a ganhar dinamismo os
empreendimentos dos setores agrícola, pecuários, industriais e de mineração.
A partir desse conjunto de políticas, mantidas à custa de subsídios governamentais, os
governos militares desenvolveram seu projeto de ocupação e exploração da Amazônia,
especialmente voltado à instalação nesse território de grandes empresas agropecuárias e
colonizadoras com capital nacional e estrangeiro. Com base neste conjunto de políticas, o governo
federal concretizou uma aliança com o capital privado, numa clara preferência pelo grande capital,
deixando de fora dessas políticas uma grande parcela da população que vivia na Amazônia,
sobretudo os índios, posseiros e ribeirinhos. Esta população será desagregada e des-territorializada,
para que outros sejam re-territorializados. Este processo instituiu uma prática de
expropriação/expulsão e exploração das populações tradicionais no espaço agrário brasileiro.
48 Companhia do Desenvolvimento do Araguaia, na época um latifúndio com mais de 190.000 hectares de terra, esteve em conflito com os posseiros de Santa Terezinha de 1968 a 1975. Sobre este Conflito ver o trabalho de ESTERCI, Neide. Conflitos no Araguaia: Peões e Posseiros Contra a Grande Empresa. Petrópolis, Vozes, 1987, SOUZA, Maria Aparecida Martins, A Luta pela permanência na terra: Resistência dos posseiros de Santa Terezinha ( década de 1970). Monografia de graduação, Luciara- UNEMAT, 2002. Relatórios, e documentos do Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia.
50
No que se refere ao Estado de Mato Grosso, convém destacar que o Estado foi
privilegiado com recursos de quase todos os programas do Governo Federal para a Amazônia
(Ferreira, 1986). Nesse contexto econômico-social de ocupação e exploração da Amazônia um
grande número de empresas agropecuárias do Centro Sul do Brasil se instalou no Araguaia,
atraídas pelas terras baratas e pelos vantajosos incentivos fiscais. Esta política modificou as práticas
sociais dos grupos que ocupavam esse território. Como indica Soares (2004, p. 100), “[...] Essas
empresas nacionais e internacionais instituíram novas práticas de domínio do espaço,
desencadeando uma série de conflitos nestes antigos povoados. As ações para expulsar os posseiros
e índios de seu território foram as mais diversas”.
Entre os anos de 1966 e 1977, a SUDAM concedeu incentivos fiscais a centenas de
empresas, aprovando 549 projetos de empresas agropecuárias. A maior parte dos incentivos
concedidos foi destinada às agropecuárias. Um total de 335 projetos que tiveram incentivos
liberados, dos quais foram aprovados 205 projetos no estado de Mato Grosso. Essas empresas são
predominantemente do Centro-Sul do país.
51
Mapa 02 com projetos agropecuários com incentivos da SUDAM
FONTE – SUDAM In. GARRIDO, Irene Filha, 1976.
Neste mapa podemos visualizar o grande número de projetos instalados em Mato
Grosso, destacando-se o Araguaia, sendo a maioria de agropecuárias. Com a chegada dessas
empresas há uma reordenação do espaço, onde eclodiram conflitos pela posse da terra.
A especulação da terra passou a ser um meio para os “grileiros”49 agirem, sempre
abrigados por governos estaduais que não tomaram nenhuma atitude, no sentido de coibir ou
controlar a grilagem. Ao contrário, contribuíram para que essas práticas se fortalecessem,
sobretudo, em/nas terras tradicionalmente ocupadas por índios e posseiros (Oliveira, 1997).
49 Os grileiros ocupam uma área com o objetivo de vender para ganhar dinheiro. Normalmente não moram nela. Alguns põem um morador na terra ocupada para dar a impressão de que é uma posse. Os grileiros também são identificados como falsificadores de documentos de terra.
52
O Estado acelerou o processo de apropriação privada da terra, principalmente a partir
da década de 1970, concedendo, através da SUDAM, os incentivos fiscais largamente utilizados
por grandes empresas e latifundiários, os quais deflagraram uma verdadeira corrida para ocupar
terras, sobretudo na Amazônia. Em conseqüência da ânsia governamental de desenvolvimento da
Amazônia, a chamada política de integração e desenvolvimento, vastas áreas de terra foram
vendidas por preços baixos a grandes empresas nacionais e estrangeiras.
A análise do processo de alienação de terras públicas, a partir da década de 1960, é
indispensável para entendermos a existência das atuais grandes propriedades no Araguaia. Trata-se
do re-ordenamento do espaço agrário e da produção de uma nova dinâmica demográfica induzida,
desterritorializando populações tradicionais e constituindo novas territorialidades, como sucedeu
com os peões.
A alienação de terras públicas, em Mato Grosso muitas vezes, fazia-se através de
compras por procuração ou em nome de diferentes membros da mesma família. Estas práticas
envolveram procuradores, imobiliárias e cartórios na fabricação de documentos falsos. (Moreno,
2007).
No Araguaia o Cartório de Barra do Garças de propriedade do Senhor Valdon Varjão
era o responsável pela emissão de escrituras das terras. Muitas dessas fazendas estavam a mais de
700 quilômetros de distância do cartório, facilitando a corrupção na titulação das terras. Como os
cartórios estavam distantes dos locais onde as terras eram negociadas, ficava praticamente
impossível saber se a área que estava sendo vendida era a área descrita na escritura. Foi o que
parece ter ocorrido com a Fazenda CODEARA, localizada no município de Santa Terezinha, na
divisa com o Pará. O Estado foi conivente com a ilegalidade e os interesses do grande capital.
53
Funcionários do Departamento de Terras e Colonização (DTC) aceitando subornos; governadores
utilizando as terras públicas como moeda de troca política. (Moreno, 2007).
O Governo de Mato Grosso emitiu os títulos definitivos de áreas sem que estas
fossem localizadas, medidas e demarcadas contrariando todas as normas legais. Muitos desses
proprietários nem sabiam onde se localizavam as terras, das quais receberam o título. A
corrupção fragilizou da Lei de Alienação de Terras Públicas de Mato Grosso (Lei 3.922/77). O
agrimensor ou engenheiro que fazia a demarcação e medição da área deveriam ser pagos pelo
comprador. Obviamente estes atendiam ao interesse do comprador, demarcando uma área
superior à comprada. Segundo Moreno (2007), a corrupção e o abuso de poder eram constantes.
Em geral os documentos foram elaborados no cartório, sem sair a campo. Estas
práticas fraudulentas eram frequentes, sendo denunciadas por vários governadores e diretores do
Departamento de Terras e Colonização (DTC), como uma das causas da grande desordem que se
instalou nos cadastros de terras do Estado, mas nenhum deles agiu no sentido de coibir essa
prática.
O fato é que centenas de processos foram formalizados irregularmente, e
milhares de hectares de terras foram destinados de forma indiscriminada, sem a
observância dos dispositivos legais, que pregam a alienação para fins de
interesse coletivo, objetivando o interesse coletivo do estado. A maior venda
executado pelo INTERMAT, foi nessas circunstâncias, sem a existência de
qualquer projeto que pudesse revelar um programa mais amplo de política
fundiária para o ordenamento territorial do estado (Moreno, 2007, p. 258).
Segundo Moreno (2007), foram constantes as práticas de distribuição de terras pelas
instituições públicas e as políticas dos governadores que favoreciam o processo de alienação de
terras públicas à iniciativa privada.
54
No Araguaia, entre as décadas de 1960 a 1980 foram instalados vários projetos
agropecuários financiados pelo Governo Federal. Foi neste período que um grande contingente de
trabalhadores foram aliciados pelos gatos e fazendeiros para trabalharem na abertura das
fazendas incentivadas pela SUDAM.
As agropecuárias com a maior área (anexo a relação das agropecuárias situadas no
Araguaia) estão localizadas no nordeste de Mato Grosso no Baixo Araguaia: a CODEARA, a Suiá
Missú50 e outras, que são constantemente denunciadas pelos peões à Prelazia de São Félix do
Araguaia pela exploração e violência a que submetiam os trabalhadores (peões). Estas denúncias
foram constatadas em centenas de cartas/relatórios no Arquivo da Prelazia. Destaca-se a
CODEARA, que na década de 1970, levou centenas de trabalhadores para a derrubada da floresta,
e expulsou os antigos moradores de Santa Terezinha da maior parte das terras.
Abria-se, assim, um vasto campo para expansão do capitalismo na Amazônia,
transformando os usos do espaço e inaugurando novas, conflituosas e violentas relações sociais de
produção nesse território. Era objetivo do governo e dos empresários, ocupar e produzir nessas
terras de “ninguém”. Para desenvolver seus projetos de ocupação e expansão na Amazônia, as
empresas valiam-se da violência do “jagunço”, da super exploração do trabalho e do “trabalho
escravo”, (a exploração dos trabalhadores será discutida no IV capítulo). Ainda hoje, dezenas de
trabalhadores, em regime de trabalho análogo ao de escravo são encontrados, com relativa
freqüência, em empresas agropecuárias no Araguaia, no nordeste de Mato Grosso.
50 A Suiá Missú foi uma grande fazenda (695.843ha.), que pertencia na década de 1970 ao Grupo Ometto e Ariosto da Riva. Na sua expansão expropriou e entrou em conflito com posseiros e índios da etnia Xavante. Pois esta fazenda foi instalada dentro de terras do povo Xavante que foram deportados para o Parque do Xingu. Nesta fazenda foram feitas várias denúncias de trabalho escravo. Na década de 1990, esta entrou em decadência e inicia-se um processo junto ao Governo Federal para devolução de parte das terras indígenas dos Xavantes, o que está esperando uma decisão judicial para a desocupação da área e retornos dos xavantes. Sobre instalação e os conflitos com os Xavantes ver o trabalho de Lima, Terezinha Gomes. Suiá Missú X Sociedade Xavante: a deportação dos Xavantes da aldeia Marâiwatsede – Baixo Araguaia. Monografia de conclusão do Curso de História, UNEMAT, 2002.
55
As empresas prometem a esses trabalhadores boas condições de trabalho e bons
salários, ou empreita. Para os que estão em situação de pobreza, as propostas parecem melhores do
que a situação no local de origem.
Chegando ao local de trabalho, no interior da mata, os trabalhadores têm que enfrentar
um ambiente desconhecido, sempre sob o controle armado dos gatos e seus auxiliares, sendo
proibidos de sair do acampamento. Vivem em barracos (de lona plástica ou de folhas de palmeira)
sem pagamento, mal alimentados, sem assistência médica e submetidos ao trabalho duro, do nascer
ao pôr-do-sol. As promessas morrem na porteira da fazenda.
Esta forma de exploração passou a ser considerada como “trabalho escravo” ou
“escravidão branca”, para se diferenciar da escravização dos africanos, embora grande parte do
contingente de peões fosse formada por negros e mestiços. Atualmente, esta forma de trabalho é
chamada de escravidão temporária, porque dura enquanto durar a empreitada na mata. Entretanto,
em muitos casos, a situação se prolonga, porque o peão é retido pelo gato, por conta de supostas
dívidas. Por isso, perde-se também a ilusão do retorno à terra natal. Mesmo aqueles que conseguem
fazer o caminho de volta estão com a saúde debilitada e sem dinheiro. Sem contar que muitos
desses peões chegam a perder a própria vida nos ambientes violentos em que são isolados. (Ver
Capítulo IV).
É importante ressaltar que, nas áreas de ocupação recente na Amazônia a empresa
agropecuária que, supostamente, representaria a modernidade utiliza-se de uma forma arcaica de
trabalho (a peonagem), para incrementar o processo de acumulação de capital. Entretanto,
estabelece-se no interior destas fazendas um tipo de relação social de produção, onde o trabalhador,
peão, não vende a sua força de trabalho, mas ele mesmo que é “comprado”, tornando-se uma
56
mercadoria (Esterci, 1996). Estas pessoas são aliciadas nas regiões pobres, rurais e urbanas, nas
pensões e na periferia das cidades.
Essa prática no estado de Mato Grosso se reporta ao inicio do século XX quando a
Companhia Matte Laranjeira, foi denunciada por manter centenas de trabalhadores, em regime de
escravidão no corte e processamento do mate. Essa empresa utilizou da violência física e o
elemento da dívida para manter os ervateiros atrelados a ela, e em vários momentos contava com o
apoio do poder público para exercer seu domínio sobre essa população51.
Outros mecanismos mais diretos, como a violência física ou castigos
disciplinares, para quem tentasse fugir, somavam-se aos já apontados. Os mais
significativos entres os instrumentos de coerção física eram os chamados
“comitiveiros”, grupo de homens armados e mantidos pela Cia. para “caçar” os
mineiros e peões que fugissem do local de produção com débito na “conta”. Os
fugitivos apanhados com vida aplicavam-se surras com chicote (Arruda, 1997,
p. 106).
Na abertura das agropecuárias no Araguaia os fazendeiros e gatos utilizam várias
formas de aliciamento, inclusive valendo-se de meios legais para arregimentar a mão-de-obra.
Assim, embora em alguns casos assinem a “carteira” do trabalhador e lhe ofereçam alojamento,
como determina a Lei, valem-se do antigo expediente da dívida para manterem os peões no
trabalho forçado e degradante, transformando-os, na prática, em escravos. A dívida, agora, não é
mais acumulada nos barracões das fazendas, sendo transferida para os supermercados da cidade,
que mantêm acordo com os fazendeiros, praticamente aprisionando o trabalhador até que ele
consiga pagar a dívida sempre crescente.
51 Sobre a atuação dessa empresa e a organização dos trabalhadores no processo de trabalho na extração da erva mate, ver o trabalho de ARRUDA, Gilmar. Frutos da terra: os trabalhadores da Matte Laranjeira. Londrina, Ed. Da UEL, 1997.
57
Capítulo II
Prelazia de São Félix do Araguaia: Uma Igreja em defesa da Vida
Em certo sentido, a palavra romantismo significa também viver a história, ter
memória forte, ter capacidade de sentir de entusiasmar-se, de ser utópico. Seria
bom se houvesse um pouco mais de romantismo hoje, nessa pós-modernidade
pragmatista, imediatista. Seria bom. Sem um certo romantismo, a vida não tem
beleza nem romantismo (Casaldáliga, 2000).
58
2.1. Discurso e prática: a opção pelos pobres
Neste capítulo apresentamos a Prelazia de São Félix do Araguaia, enfocando as ações
voltadas para no combate ao trabalho escravo contemporâneo e às diversas formas de exploração
dos trabalhadores das agropecuárias, sobretudo nas décadas de 1970 e 1980.
A Prelazia de São Félix do Araguaia foi criada em 197052, abrangendo uma área de
aproximadamente 150.000 km². Está localizada no nordeste do estado de Mato Grosso. Na época
de sua criação apenas existiam dois municípios no Nordeste de Mato Grosso, Luciara e Barra do
Garças. Atualmente fazem parte da Prelazia os seguintes municípios: Alto da Boa Vista, Bom
Jesus do Araguaia, Confresa, Canabrava do Norte, Luciara, Novo Santo Antônio, Porto Alegre do
Norte, Querência, Ribeirão Cascalheira, São Félix do Araguaia, São José do Xingu, Santa Cruz
do Xingu, Santa Terezinha e Vila Rica.
Naquele momento as instituições governamentais ali instaladas atendiam
principalmente ao interesse do grande capital, deixando a população local desprotegida da
assistência básica à saúde, educação e acesso à justiça. Como destacou Casaldáliga (1971, p.31):
Os moradores da região, em condições de pura sobrevivência, submetidos às
provas do clima tropical e desatendidos por parte das autoridades e dos
organismos responsáveis, vivem numa falta habitual de assistência básica. (...) a
saúde é um trágico problema em toda a região. Um problema sem solução para
80% dos moradores.
52 Através do decreto “Quo commodius”, assinado por Paulo VI, aos 13 de março de 1970.
59
A Igreja Católica sediada em São Félix do Araguaia, tendo à frente o bispo D. Pedro
Casaldáliga organizou as equipes de pastoral e passou a oferecer um pouco de assistência básica
aos índios, posseiros e peões que estavam sendo expropriados de suas terras e explorados pelas
grandes empresas que estavam se instalando naquele território.
Para amenizar os problemas de saúde a Prelazia organizou equipes em São Félix e
Santa Terezinha, construindo um ambulatório que atendia gratuitamente a população. Para juntar-
se a esta equipe veio uma enfermeira da França, Srª. Suzane Robin, que trabalhou por vários anos
em Santa Terezinha. A Prelazia também organizou a assistência à educação, construindo em São
Félix do Araguaia o GEA – Ginásio Estadual do Araguaia. Esta Instituição foi construída com
recursos da Prelazia. Alguns anos depois a Escola foi repassada para a Secretaria de Educação do
Estado de Mato Grosso. Dessa forma a Igreja Católica passa a assumir ações que o Estado não
assumia junto à população. Nesse mesmo período, D. Pedro passa a defender os peões que estão
chegando de diversos estados contra a exploração e violência que sofriam nas fazendas do
Araguaia e Xingu. (Ver Mapa Nº 02).
60
Mapa 03 - Território da Prelazia em 1970
Fonte: Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia – jornal Alvorada nº. 01/1970
Mapa 04 – Território atual da Prelazia de São Félix do Araguaia
Fonte: Cartografia de Leodete Miranda
61
Os padres Manoel e Pedro Casaldáliga chegaram ao Araguaia em 1968, antes da
criação da Prelazia de São Félix do Araguaia, para organizar as bases da Igreja de São Félix. O
Padre Francisco Jentel53, um francês que veio em dezembro de 1954 para trabalhar com o povo
Tapirapé juntamente com as irmãzinhas da Congregação de Charles de Foucaud54, que haviam
chegado no inicio do ano de 1954.
É preciso lembrar que no período da organização da Prelazia de São Félix do
Araguaia, o país passava por um regime ditatorial, com um controle rigoroso pelos militares,
mesmo nas mais longínquas áreas do país. A Prelazia nos anos de 1972 a 75 passou por um
controle e vigilância sistemática promovida pelos militares, que muitas vezes ocuparam a casa do
bispo e dos agentes de pastoral. Assim como invadia qualquer instituição ou reunião que fosse
suspeita.
Quando Casaldáliga foi sagrado bispo, em 1971 ele organizou as equipes com base
nos princípios de solidariedade, e co-responsabilidade que se apóiam e organizam na distribuição
das funções e responsabilidades entre os componentes das equipes. Essas equipes eram formadas
por pessoas de diversas regiões do país e do exterior, sendo constituídas por professores,
enfermeiros, padres, irmãs e leigos.
No momento da sagração episcopal, D. Pedro Casaldáliga55, em um gesto pessoal, fez
uma opção de estar ao lado dos pobres, pondo a Igreja da Prelazia de São Félix do Araguaia na
53 Sobre Pe. Francisco Jentel ver: DUTERTRE, Alain; CASALDÁLIGA, Pedro; BALDUINO, Tomás. Francisco Jentel defensor do povo do Araguaia. São Paulo. Edições Paulinas, 1986, REIS, Ana Amélia Teixeira. O Pe. Jentel narrado nas vozes da lembrança: história resistência pela memória. Monografia de conclusão de curso – UNEMAT, 2007. 54 Sobre as Irmãzinhas de Jesus e o povo Tapirapé ver o trabalho de conclusão de curso de NOGUEIRA, Margarete. Uma luz para o povo Tapirapé: a história de vida das Irmãzinhas de Jesus que vivem com o povo Tapirapé desde 1952. UNEMAT, 2007 e O Renascer do Povo Tapirapé: Diário das Irmãzinhas de Jesus de Charles de Foucaud. São Paulo, Ed. Salesiana, 2002. 55 Casaldáliga renuncia a toda pompa eclesiástica. Demonstrando, que seria um bispo diferente. Decidiu não utilizar nem mitra, nem báculo, nem anel. Dizia em seu diário: “não quero dar lição a ninguém”. Simplesmente quero ser consequente.
62
luta pelos direitos dos pobres daquele território, como relata no trecho da carta Pastoral que
publicou na sua posse:
Olhamos com bastante amor a terra e os homens da Prelazia. Nada dessa terra
ou desses homens nos é indiferente. Denunciamos fatos vividos e
documentados. Quem achar infantil, distorcida, imprudente, agressiva,
dramatizante, publicitária, a nossa atitude, entre na sua consciência e leia com
responsabilidade o Evangelho; venha morar aqui, neste sertão, três anos, com
um mínimo de sensibilidade humana e de responsabilidade pastoral.
(Casaldáliga 1971, p. 42).
É importante destacar que no seu convite/lembrança da cerimônia de sagração é
evidenciada uma declaração de escolha por uma Igreja Católica dos “pobres de Deus” 56 como
definiu Casaldáliga. Ao redigir este documento Casaldáliga demonstrava sua opção pastoral:
Tua mitra será um chapéu de palha sertanejo, o sol e o luar, a chuva e o sereno,
o olhar dos pobres com quem caminhas e olhar glorioso de Cristo, o senhor.
Teu báculo será a verdade do evangelho e a confiança de teu povo em ti. Teu
anel será a fidelidade da Nova Aliança do Deus libertador e a fidelidade ao
povo desta terra. Não terás outro escudo que a força da Esperança e a Liberdade
dos filhos de Deus, nem calçarás outras luvas, a originalidade do convite, que o
serviço do amor. 57
A cerimônia de sagração foi presidida pelo arcebispo de Goiânia, Dom Fernando
Gomes dos Santos. Este bispo havia protegido muitas vezes os religiosos mais progressistas da
Igreja Católica. Casaldáliga o chamava afetuosamente de “padrinho”. Também participaram
outros bispos, como Tomás Balduíno, da diocese de Goiás, um dos idealizadores da criação e
organização da CPT (Comissão Pastoral da Terra), e um grande amigo de Casaldáliga e
companheiro das “causas dos pobres”.
56 Esta é uma expressão amplamente utilizada por Casaldáliga em documentos e entrevistas. 57 Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia, 1971.
63
Referindo-se à Carta Pastoral intitulada “Uma Igreja na Amazônia em Conflito com o
Latifúndio e a Marginalização Social”, D. Tomás Balduíno destacou58 que era a primeira vez que
alguém se atrevia a fazer uma denúncia pública e documentada contra a situação de exploração e
violência na Amazônia. E apesar da censura imposta pelo regime militar, o documento chegou a
todo país e exterior.
D. Pedro Casaldáliga foi uma das primeiras pessoas que organizou uma denúncia
contundente e irradiadora, pois apresentava documentos relatando a situação de expropriação e
exploração de índios, posseiros e peões e se posicionou contra a política fundiária do governo
brasileiro na Amazônia. Este documento distribuído no ato de sua sagração ganhou repercussão
mundial59. Tornar púbica suas ações foi uma estratégia que a Prelazia de São Félix do Araguaia
utilizou para enfrentar o regime militar e os grandes proprietários de terras que se instalaram no
Araguaia no final da década de 1960 e ao longo da década de 1970.
O Jornal Alvorada é um veículo de comunicação que a Prelazia de São Félix do
Araguaia mantém desde 1970. Este jornal circula dentro da Prelazia, mas também circula em
outras partes do país e no exterior. O jornal “Alvorada” veicula diversos tipos de
informações/denúncias e tem sido um importante veículo de informação, divulgação e denúncia
da violência a que é submetida a população do Araguaia60. Em um fragmento do jornal podemos
verificar como é o teor dessas noticias/denúncias:
58 Cf. de documentos do Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia 59 Cf. de documentos do Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia 60 Sobre o Jornal Alvorada ver a pesquisa que Marluce Scaloppe esta desenvolvendo para a Dissertação de mestrado, no Programa de Pós-Graduação de História da Universidade Federal de Mato Grosso.
64
Fonte – Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia - Jornal Alvorada Agosto de 1976, p. 3.
Casaldáliga ao fazer a opção de defender centenas de sertanejos, peões e índios que
viviam nas mais precárias condições naquele sertão, entra em choque com os grandes
proprietários que vêem nessa ação de defender os pobres uma ameaça aos seus planos de
ocupação e exploração de vastas áreas no Araguaia. Pois diante da violência com que era tratado
o ser humano como dizia ele: “nessa terra é fácil nascer e morrer, difícil é viver”. Nesse quadro,
ele teve que escolher entre os dois lados (de um lado peões, posseiros e índios e de outro o grande
latifúndio que explorava e violentava parte da população) como assegura:
Olha, em áreas conflitivas é muito difícil, por um lado, a demarcação dos
campos e, por outro, a equanimidade, pois tudo é quente. Você não pode andar
com meias tintas. É preciso deixar claro de que lado você está. Então nós éramos
maldosamente chamados de comunistas, terroristas, diziam que estávamos
65
envolvidos com a guerrilha no Pará. Advertiam a quem chegava: cuidado com a
Prelazia, cuidado com o bispo. Tudo porque, na época, se não organizássemos
nós, não organizaria ninguém. Isso fez com que o próprio povo tivesse de optar:
com a Prelazia ou contra a Prelazia61.
Na década de 1970, a SUDAM aprovou sessenta e seis (66) projetos agropecuários no
município de Barra do Garças e Luciara ( Casaldáliga, 1970)62. Na época a fazenda Suiá Missú,
um dos maiores latifúndios do país com 695.843 ha. A fazenda estava no município de Barra do
Garças, porém a sua a sede estava localizada nas proximidades de São Félix do Araguaia. Na
Suiá Missú chegaram a trabalhar centenas de peões como relatam os trabalhadores nos
depoimentos.
Ao ser convidado para uma festa na fazenda Suiá Missú, Casaldáliga constatou a
situação de degradação em que se encontravam centenas de peões nessa fazenda. Esse episódio
aconteceu em 1969. Essa foi uma das poucas vezes que Casaldáliga esteve com os grandes
proprietários de terra do Araguaia. Ele relata em vários documentos e entrevistas trecho desse
episódio:
Cento e sessenta pessoas empanturrando-se com cinco bois assados,
cabritos, sobremesas e bebendo. Uma palhaçada! Vinte aviões na pista da
fazenda, a poucos passos da mata, em contraste com a mais primitiva
civilização. Nessas circunstâncias, é difícil não sair logo gritando irado.
Tanta fartura diante de tanta miséria! Foi um dos dias em que menos
comi. Aquela tarde fui visitar a pensão dos peões, chegados como
náufragos em busca de trabalho: havia uns 12 doentes, entre eles um que
61 Trecho da entrevista concedida ao diário de Cuiabá em 23/02/2003, acessado em junho de 2007. www.diariodecuiaba.com.br. 62 Ver os trabalhos sobre a ocupação da região do Araguaia de ESTERCI, Neide. Conflito no Araguaia: Peões e posseiros contra o grande latifúndio. Petrópolis, Vozes, 1987. SOARES, Luis Antônio Barbosa Soares. Trilhas e Caminhos: Povoamento não- indígena no Vale do Araguaia – parte nordeste do estado de Mato Grosso, na primeira metade do séc. XX Dissertação de Mestrado, UFMT, 2004.
66
tentara suicidar-se. Verdadeiramente o contraste era duro (Casaldáliga,
1971).
Sua indignação é expressa nos seus discursos e sermões. Para ele, “[...] Foi uma opção
terrível, que violentava nosso temperamento, a vontade natural de estar bem com todo mundo, a
formação de mansidão evangélica recebida, a velha norma pastoral de não apagar a mexa que
ainda fumega”. (Casaldáliga, 2000, apud, Escribano, 2000, p. 18).
A decisão de ficar do lado dos pobres deu origem a muitos problemas, conflitos e lhe
criou inimigos considerados “poderosos”, mas também o ajudou a encontrar amigos para toda a
vida, os “seus pobres do evangelho” como ele considera:
Temos dito muitas vezes que, aqui, ou você está de um lado, ou do outro.
Tenho dito muitas vezes que o missionário que uma vez por semana vai tomar
café na casa de um rico não pode fazer opção pelos pobres, [...] não é que eu
não possa ir um dia tomar café na casa de um rico, mas, se vou lá toda semana
e não acontece nada, não digo nada, não dou uma sacudida naquela casa,
naquela consciência, já me vendi já neguei minha opção pelos pobres. (Idem,
p. 19).
Viver nesse mundo de injustiças, longe de tudo e de todos como destaca Casaldáliga,
é como se a vida das pessoas não tivesse valor. “[...] aqui se morre e se mata mais do que se vive.
Morrer ou matar é mais fácil aqui, e está mais ao alcance de todos, do que viver. “Aqui manda o
38”63.
Quando Casaldáliga começou a denunciar as injustiças cometidas pelos grandes
proprietários de terras começou a ganhar a confiança dos peões, dos camponeses e dos índios.
Então os representantes do governo militar da época, que estavam em geral, do lado de quem
detinha o poder econômico, começaram a vigiar mais proximamente as ações da Prelazia de São
Félix do Araguaia, e de modo particular, o bispo e os seus colaboradores.
63 Cf. documentos do Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia.
67
As ações da Prelazia de São Félix do Araguaia na luta contra a exploração e violência
a que eram submetidos os peões foram diversas, como: denunciar as autoridades, esconder os
peões, protegendo esses dos gatos nas casas das equipes e do bispo, quando doentes
encaminhando-os ao único hospital público nesse território do Araguaia, que ficava na Ilha do
Bananal64. Ações como estas foram realizadas dezenas de vezes, havendo registros das mesmas
no arquivo da Prelazia. Em um documento Casaldáliga descreve a tentativa de não deixar morrer
um peão:
Fonte – Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia
A Prelazia de São Félix do Araguaia, por meio do bispo ou de seus agentes de pastoral
envolveu-se na defesa das pessoas pobres que estavam no Araguaia e os que iam chegando entre 64 Um hospital construído na década de 1950 para atender a população indígena que moravam na Ilha do Bananal ficava localizado na aldeia Santa Izabel, a poucos quilômetros de São Félix do Araguaia na outra margem do Rio Araguaia.
68
eles os peões. Estes sofreram exploração e violência, pelos fazendeiros e gatos. Casaldáliga toma
a frente e os defende, o que é evidenciado nos escritos/denúncias em diversas entrevistas e
discursos. D. Pedro utiliza os meios de comunicação para denunciar a prática de trabalho escravo
no Araguaia.
Fonte: Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia – Jornal Alvorada ano 25 nº. 187, Julho/Agosto- 1995.
A Igreja Católica no Araguaia abrangia um território relativamente grande em
extensão, porém com poucos habitantes, com baixa densidade demográfica, se comparada a
outras áreas do país. No território da Prelazia de São Félix do Araguaia encontram-se os povos
69
indígenas: Karajá, Tapirapé, Xavante, Kayapó e outras etnias no Parque Nacional do Xingu65.
Neste território também se instalaram vários dos maiores latifúndios do estado de Mato Grosso
que passaram a ocupar a área no final da década de 1960 e inicio de 1970. Entre estes se
destacam a Suiá Missú (695,843 ha.), e a CODEARA (196,947 ha.) e outras empresas 66.
A Prelazia de São Félix do Araguaia se constitui pautada em um novo modo de ser
Igreja Católica no Brasil, atendendo aos pobres, agindo contra os interesses do grande capital.
Uma Igreja que, segundo Fernandez (1994) nasce na “periferia”, mas que é revolucionária e
profética:
A Igreja do Araguaia, enquanto figura associada à “periferia” é vista como uma
Igreja “profética” que tem uma presença decisiva na vida da Igreja
contemporânea brasileira e exerce uma grande força no imaginário das pessoas
e das lideranças que participaram diretamente da sua constituição. (Fernandez,
1994, p. 9)
Na sua organização a Prelazia contou com a participação de uma equipe constituída de
leigos, jovens, que eram universitários ou estavam terminando o colegial, quase todos originários
do sul e sudeste do país. Alguns haviam participado de movimentos contrários ao regime militar e queriam
de alguma forma combatê-lo. Uma Igreja na Amazônia e com um espírito revolucionário seria o
“cenário” ideal para a atuação, sobretudo de jovens que não aceitavam as imposições do regime militar.
Entre os muitos jovens que foram para a Prelazia de São Felix na década de 1970,
estava Dagmar Aparecida Teodoro Gatti. Era uma jovem que se casou com um jovem italiano,
que havia trabalhado na construção da transamazônica. O casal saiu de São Paulo em 1976
65 O Parque Nacional do foi criado em 1961, através do Decreto nº. 50.455, com uma área de aproximadamente 22.000 quilômetros quadrados. Sobre o processo de construção desse parque ver o trabalho de SOARES, Lima. Luiz Antônio. Trilhas e Caminhos: Povoamento não- indígena no Vale do Araguaia – parte nordeste do estado de Mato Grosso, na primeira metade do séc. XX. PPG-História , Instituto de Ciências Humanas e Sociais, UFMT, 2004. 66 Anexo segue uma lista com as agropecuárias que se instalaram no Araguaia com financiamento/incentivos fiscais do Governo Federal.
70
(Franca) para trabalhar na Prelazia. Ela trabalhou como professora, e auxiliar da Irmã Irene
Franceschini na organização do Arquivo dessa instituição. A Srª. Dagmar permanece até hoje no
Araguaia. Atualmente ela ainda participa das atividades desenvolvidas pela Prelazia. Ela também
se engajou na política partidária no município de Santa Terezinha, como sucedeu com vários
outros jovens que foram trabalhar na Prelazia, os quais tiveram uma atuação importante no
período de redemocratização do país.
A Prelazia de São Félix do Araguaia propunha uma forma diferente de ser Igreja
Católica naquele momento, vivenciando as causas do povo. Como diz Casaldáliga “minhas
causas valem mais do que a minha vida”. Esta postura era assumida, no inicio, por todos os
membros das equipes de pastoral. Procurando, cada qual, entregar-se ao desafio em cada atitude.
Este tipo de Igreja Católica foi alicerçada nas diretrizes da Conferência Episcopal de
Medellín ( 1968) e Puebla (1979), dentro de uma nova configuração de Igreja Católica na
América Latina. Um marco de ruptura com a Igreja tradicional. No Brasil parte dessa Igreja
renovada institui uma pastoral voltada para a Amazônia67, a partir das orientações da Conferência
Episcopal de Medellín.
A partir de 1968, com as Conferências Episcopais de Medellín e Puebla, as mais
importantes reuniões da Igreja Católica na America Latina, membros dessa Instituição foram
convocados a colocar em prática o conceito de Povo de Deus discutido no Concilio Vaticano II68.
Nessas conferências a Igreja Católica fez uma opção pelos pobres como um modo de intervir na
sociedade para superar os problemas sociais em que viviam grande parte da população na
67 Cf. Estudo realizado pelo CEAS ( Centro de Estudos e Ação Social) – Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia – Pasta B- 7-1-23. 68 O Concílio Vaticano II foi convocado pelo Papa João XXIII, em 1962 e foi concluído no pontificado do Papa Paulo VI em 1965. Foi idealizado por João XXIII para realizar o que ele chamou de aggiornamento (atualização) da Igreja Católica no mundo. Para mais informação sobre esse assunto ver: BRAÚNA, Guilherme (org). A Igreja do Vaticano II. Petrópolis, Vozes, 1965.
71
America Latina. A Prelazia de São Félix do Araguaia nasce dentro de uma nova orientação da
Igreja Católica. Como também o bispo da Prelazia vem da Europa no “[...] ano (1968)
revolucionário na Europa do proibido proibir, dizia a juventude”. (Casaldáliga, 2000, apud,
Escribano, 2000, p. 20). Ele mesmo passara pela experiência de ter vivido na Espanha durante
guerra civil. A Prelazia de São Félix do Araguaia nasceu com o espírito revolucionário em seus
princípios e experiências pessoais:
Vivia-se na Espanha, um tempo de revolução e de confronto. Em casa, éramos
camponeses e católicos, e isso na Catalunha daquela época queria dizer que
éramos de direita. Falava-se em casa, de Gil Robles e de La Ceda. Os
Casaldáliga eram gente da ordem e da tradição, mas não eram ricos. Uma das
frases que meu pai mais repetia em casa e que me parece que ainda agora
escuto é: “nós somos pobres”. Nunca chegamos a passar fome, mas em casa
não sobrava nada. Em casa, respirava-se um certo menosprezo em relação aos
ricos, o dinheiro mal ganho, a exibição. Já quando era pequeno, o luxo me
parecia uma ofensa. Os padres e as freiras eram perseguidos. Todos viviam
permanentemente num clima de perseguição. As persianas de casa sempre
abaixadas, tínhamos de falar em voz baixa. A escola do povoado, mista e atéia,
era dirigida por uma professora socialista que minha mãe sempre chamava
depreciativamente de “a porca”. Tivemos de acostumar-nos ao segredo, éramos
muito jovens, mas aprendemos a calar quando vinham os milicianos
perguntando pelo esconderijo de um padre ou de freira. Nós não tivemos
adolescência. (Casaldáliga, apud, Escribano, 2000, p. 53).
Casaldáliga procura manter a Prelazia de São Félix do Araguaia a serviço dos pobres. Neste
caso, juntavam-se indignações provindas de convivência com regimes de opressão e exploração
econômica de setores da população.
72
A Teologia da Libertação69 e as idéias marxistas tiveram uma grande influência na
estruturação das práticas dos agentes de pastoral da Prelazia de São Félix do Araguaia. A
Teologia da Libertação era uma nova forma de fazer teologia, articulando fé e transformação
social. Nesse sentido, parte da Igreja Católica orientada por essa nova postura da Igreja Católica,
sobretudo na América Latina, se envolve na luta em defesa dos direitos humanos, como afirma
Casaldáliga:
O diálogo aberto com o marxismo e com os marxistas tem tido lugar na
América Latina. Aqui, misturamos as canções, o suor e o sangue. E é mentira
afirmar que a Teologia da Libertação se inspira no marxismo: a Teologia da
Libertação se inspira no Evangelho e na pobreza. Mas, evidentemente,
utilizamos categorias marxistas e, graças a Marx, temos entendido melhor o
capitalismo (Casaldáliga, 2000).
Em um período de regime militar que desrespeitava os direitos humanos e convivendo
com diversos tipos de violações, a Prelazia de São Félix do Araguaia assumiu a nova orientação
social e política de Puebla e Melellin, passando a defender os direitos de índios, peões e posseiros
em um território em que estes praticamente não eram considerados e respeitados. Casaldáliga, à
frente da Prelazia, assumiu essa causa, e em consequência desta postura alguns dos membros
foram perseguidos, torturados e expulsos do país. Entres os membros da Prelazia de São Félix do
Araguaia que foram perseguidos podemos citar o Padre Francisco Jentel, que foi preso em 1972,
enviado para Campo Grande-MT e processado. Ele foi julgado por um tribunal militar e
69 Para uma compreensão mais detalhada sobre a Teologia da Libertação ver trabalhos de Leonardo Boff (1981 e 1998), Frei Beto (1986), Clodovis Boff (1985) Carlos Meister (1982) que são alguns nomes de destaque que escreveram sobre a Teologia da Libertação.
73
condenado a dez anos de prisão. Depois de cumprir dois anos da pena na prisão ele foi expulso do
Brasil. 70
Na década de 1970 na Amazônia e Nordeste, um setor da Igreja, sintonizado com as
diretrizes de Puebla e Medellín, organizam as Comunidades Eclesiais de Base71. Nestas
Comunidades de Base nasce uma Igreja Católica com dois princípios orientadores na Amazônia:
por um lado - o princípio de encarnação que faz descobrir as bases da Igreja nas situações reais e
dinâmicas em que vive o homem comum; e de outro - o princípio de libertação que alerta,
sobretudo, para a situação de domínio e submissão em que esse homem vive72.
Nessa perspectiva, a Igreja Católica na Amazônia estava orientada “à luz de uma
difícil sociologia do Pai Nosso” que, nas palavras do cardeal D. Avelar Brandão Vilela era:
Muito profunda e capaz de provocar as mais sérias conseqüências. Somos um
continente em transformação. E a consciência religiosa não quer ser o ponto de
apoio para a garantia de privilégios de uma pequena minoria contra a
esmagadora maioria da população. Não quer também jogar essa maioria contra
a minoria. Mas se sente obrigada a advertir a minoria de que não se pode cuidar
primeiro, e por tempo indeterminado, de seus interesses e só depois, sem saber
exatamente quando, se cuidaria dos interesses da maioria o ‘x’ do problema que
70 Sobre Pe. Francisco Jentel ver o trabalho de, REIS, Ana Amélia Teixeira. O Pe. Jentel narrado nas vozes da lembrança: história resistência pele memória. Monografia de conclusão de curso – UNEMAT, 2007. DUTERTRE, Alain; CASALDÁLIGA, Pedro; BALDUINO, Tomás. Francisco Jentel defensor do povo do Araguaia. São Paulo. Edições Paulinas, 1986 e Esterci, op. Cit. 71 As CBs como ficou conhecida teve o ponto de partida a base popular, que constitui grupo que participa de qualquer programação e se orienta pelos próprios interesses do grupo. A solidariedade e co-responsabilidade se apóiam e desenvolvem na distribuição de funções entre os componentes do grupo, diversificando-se de tais funções progressivamente, na medida do crescimento quantitativo e qualitativo do grupo, até abrange a vizinhança, aldeia, etc. O dinamismo fundamental da comunidade vem de suas lideranças, suficientemente treinadas, a partir das quais se processa a animação, estruturação, planejamento de atividades de vida dos grupos comunitários. A condição de sobrevivência da comunidade é a sua abertura, que implica a sua colaboração com organismo, oficiais ou particulares atuantes na área no sentido do desenvolvimento social. A inspiração religiosa fundamental do grupo se mantém graças ao dialogo continuo entre a fé e a vida, sendo possível partir, tanto desta como daquela. Nos casos em que a formação da fé tem prioridade, os agentes de pastoral passam a ser liderança também prioritária. 72 Estudo realizado pelo CEAS (Centro de Estudos e Ação Social) – Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia, p. 8, 1973, Pasta– B- 7-1-23.
74
deve ser objeto de estudos e de revisões, numa linha de respeito ao
desenvolvimento da sociedade. 73
A Igreja Católica na Amazônia passou a ter uma orientação voltada para o homem,
que vive sob as diversas formas de dominação; econômica, cultural e política. A Prelazia de São
Félix do Araguaia seguiu esses princípios. A organização das equipes das CEBs da Igreja
Católica na Amazônia e no Araguaia, que seguem essa linha de Igreja, foram influenciadas pela
teologia da libertação. Na opinião de Casaldáliga a Teologia da libertação foi fundamental na
estruturação da Prelazia e na definição do modo de agir de seus agentes de pastoral.
A Igreja Católica do Araguaia adquire, assim uma significação própria, de uma luta
por dignidade e direitos humanos. Uma Igreja que nasce pobre no meio dos pobres:
Desse olhar-se no “povo”, surge a imagem da Prelazia de São Félix do
Araguaia como uma igreja “Popular”, considerada “pioneira “, no Brasil, na
defesa das causas camponesas: a luta pela posse da terra, o combate ao
latifúndio. Entendendo por Igreja “Popular” um novo modo de ser Igreja que se
origina da presença cada vez maior do “povo” nas decisões e atividades da
Igreja ( Fernandez, 1994, p. 14).
Nessa construção a Prelazia de São Félix do Araguaia enfrentou o governo militar
para defender os pobres; peões, índios e posseiros, o que lhe custou caro, como perseguição e
difamação dos padres, irmãs, leigos e o próprio bispo, que foi ameaçado e sofreu vários processos
de expulsão do país74. Em uma das ameaças de morte em 1971, entre tantas que sofreu o
pistoleiro contratado para matar Casaldáliga se arrepende de fazer o “serviço” encomendado e
73 Trecho da entrevista de D. Avelar Brandão, “A Igreja na Amazônia”, Veja, 22 de agosto de 1973, p. 5. apud estudo realizado pelo CEAS ( Centro de Estudos e Ação social) – Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia, p. 3 e 4, 1973, – Pasta B- 7-1-23. . 74 O bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, Pedro Casaldáliga nasceu em Balsareny, pequena cidade da província catalã de Barcelona, a 16 de fevereiro de 1928, chegou ao Brasil em 1968. Cresceu no ambiente de pós-guerra civil da Espanha, e estudou em vários seminários em pleno regime franquista.
75
relata tudo a outro padre que estava na equipe, que o orientou a denunciar à policia. Segue o
depoimento:
Eu, Vicente Paulo de Oliveira, peão da companhia Bordon, declaro que o
empreiteiro Benedito Teodoro Soares, vulgo “boca quente”, disparou contra
três homens ( Benedito da Silva, Geraldo e Vicente Paulo), porque não estavam
de acordo com o pagamento recebido. Benedito boca quente me pediu para
matar o padre Pedro e, se eu matasse, me daria mil cruzeiros, um revolver 38 e
uma passagem para onde eu quisesse. Ele me pediu insistentemente que o
matasse e me avisou que, se eu o denunciasse me mataria. (Arquivo da Prelazia,
1971).
Além das ameaças e sofrimentos os dirigentes dessa Igreja convivem com outros
problemas. D. Pedro Casaldáliga também é referência para várias pessoas quando procuram a
solução para os mais diversos problemas; seja em caso de doença, violência, exploração, questões
de conflitos de terras de índios ou posseiros:
A única pessoa que nós podíamos contá era com o bispo D. Pedro Casaldáliga
que enfrentava os grandes, os donos das fazendas de peito aberto. (...) Ele
assumia a postura de líder mesmo sendo ameaçado de morte todos os dias. O
bispo D. Pedro foi ameaçado várias vezes mas nunca deixou se intimidar,
sempre falava que suas causas valiam mais que sua vida. E que ele estava aqui
para defender os fracos e oprimidos. 75
Porém, havia enfrentamentos, pois a Prelazia de São Félix do Araguaia, ao denunciar
os desrespeitos aos direitos humanos sofre críticas de setores da própria Igreja Católica e,
sobretudo, do governo militar. Intensificaram-se também as ameaças e perseguições pelos
grandes proprietários de terras que sentiam seus interesses prejudicados. As constantes denúncias
75 Entrevista realizada com um morador de Confresa em 2006, por Carla Soraya Ribeiro Nunes, para a monografia de conclusão do curso de história.
76
formuladas de trabalho escravo por Casaldáliga descortinam uma prática que já existia no país.
Entretanto, as autoridades faziam questão de ignorá-la. A questão era complexa, envolvendo
diferentes interesses das “elites” da Amazônia.
Porém, Casaldáliga não se amedrontou ante as ameaças, perseguições e calúnias.
Juntamente com outros setores da Igreja Católica, organizou a CPT (Comissão Pastoral da Terra)
em 1975. Esta entidade, ligada à CNBB, foi criada com o objetivo de assessorar os trabalhadores
rurais, denunciar a violência a que eram submetidos, e defender na justiça estes trabalhadores76.
A Prelazia de São Felix do Araguaia, tornou-se um referencial da luta contra o trabalho escravo
no Brasil.
As ações da Prelazia foram se alargando, rompendo muros, estabelecendo pontes na
denúncia de exploração dos trabalhadores e de modo particular em relação ao trabalho escravo. A
partir da década de 1990, no Baixo Araguaia surgem novos atores nesse cenário, como os
Sindicatos de Trabalhadores Rurais, já um pouco mais estruturados, a própria CPT, que tem uma
atuação contundente juntamente com o Ministério do Trabalho e o Grupo Móvel de
Fiscalização77.
76 A CPT é uma entidade de caráter ecumênico que possui ligação com a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, e presta serviços a camponeses e trabalhadores rurais. Pela tradição já de vários anos de ajuda aos trabalhadores egressos da escravidão contemporânea e, por estar localizada em várias pequenas cidades nas regiões Norte e Nordeste, a CPT é reconhecida pelo seu trabalho no combate às relações neo-escravocratas, seja recebendo e organizando as denúncias, seja alojando temporariamente os trabalhadores fugidos ( Rezende, 2004, Casaldáliga, 2002). 77 O Grupo Móvel de Fiscalização criado em 1996, é constituído, por membros da Polícia Federal – Delegados Federais e Agentes – e Ministério Público do Trabalho – Procuradores do Trabalho, e tem desempenhado um importante trabalhos de combate as práticas de trabalho escravo contemporâneo.
77
Fonte: Relatório de 2007 do núcleo de Direitos Humanos da Prelazia de São Félix do Araguaia, p. 03 - . Arquivo A.47.4.01.
A atuação do Estado no combate ao trabalho escravo, nessa nova configuração no
Araguaia é importante, pois agora não é mais só a Igreja Católica, mas também as instituições
públicas que participam deste trabalho. A criação e posterior ação destes órgãos e instituições
facilitam o combate ao trabalho escravo, estimulando as denúncias78:
Fonte: Relatório de 2007 do núcleo de Direitos Humanos da Prelazia de São Félix do Araguaia, p. 01 - . Arquivo A.47.4.01.
Hoje a Prelazia de São Félix do Araguaia conta com o balcão de direitos humanos, um
programa ligado ao Ministério do Trabalho e Secretaria Nacional de Direitos humanos, que
atende as reclamações da população carente. Como também tem ações junto à população
carcerária, tendo uma advogada que auxilia neste trabalho.
78 As ações do Grupo Móvel de fiscalização, se intensificaram a partir do final da década de 1990.
78
Fonte: Jornal Alvorada, ano 31, nº. 221, Maio/junho de 2001
As ações e os discursos dessa Igreja também se modificaram. A partir do momento
que o Estado organizou as instituições públicas de educação, saúde e assistência social, mesmo
que estas não sejam de boa qualidade, elas estão atendendo a população. Por outro lado no que
diz respeito aos direitos humanos e às questões de terra, ainda há muito a ser feito, surgindo
novos e diferentes desafios. A violência com que são tratados os trabalhadores e as condições de
exploração e degradação humana a que são submetidos, no território do Araguaia é gritante. E as
ações da Prelazia de São Félix do Araguaia visam atender a essa demanda, que ainda não é
suprida pelas instituições públicas. Como podemos perceber nas perspectivada da Prelazia para o
trabalho com os direitos humanos para o ano de 2008:
1 - Continuar e fortalecer as ações em parcerias, com o Estado e entidade da
sociedade civil, com o propósito de efetivar um trabalho verdadeiramente articulado;
2 - Reativar os grupos de direitos humanos nos regionais e dinamizar os que ainda
atuam como grupos;
79
3 - Continuar as denúncias de violação de direitos humanos;
4 - Fortalecer e dinamizar a formação de lideranças em direitos humanos;
5 - Investir nas ações (formação e denúncia) contra a violência doméstica de que é
vítima a mulher;
6 - Tendo em vista as eleições, retomar a discussão, estimulando e orientando grupos
que queiram trabalhar com a Lei 9.840/98 contra a compra de votos79.
A atuação das instituições públicas (DRT, Justiça do Trabalho, Ministério Público do
Trabalho) no Araguaia têm algumas vezes (quando solicitada) atendido às necessidades dos
trabalhadores que são explorados por fazendeiros e gatos80:
A Justiça do Trabalho (Vara de São Félix do Araguaia), apesar de tudo, tem
condenado fazendeiros ao pagamento de indenizações por danos morais
coletivos, em se de Ação Civil Pública proposta pelo Ministério público do
Trabalho, Oficio de São Félix do Araguaia e os valores destas condenações são
revertidos e aplicados na própria comunidade.
E um fato inédito aconteceu em 2007, quando um grupo de 10 trabalhadores
fugiu de uma fazenda e eles próprios, por meio de advogado, ajuizaram ação de
indenização por dano moral e material individual, obtendo sentença favorável ao
pedido81.
Atualmente, contando também com apoio de instituições governamentais a Prelazia de
São Félix do Araguaia tem formulado denúncias de trabalho escravo no país, tornando públicas
essas ações, seja através da imprensa ou através de cartas aos “amigos“, registrando e
documentado essas ações. Exemplarmente foram encaminhadas denúncias à ONU. Ao tomar essa
79 Fonte: Relatório de 2007 do núcleo de Direitos Humanos da Prelazia de São Félix do Araguaia, p. 05 - . Arquivo A.47.4.01 80 Podemos citar as sentenças do juiz da Vara Trabalho de São Félix do Araguaia que tem condenado gatos, empreiteiros e fazendeiros a pagar direitos trabalhistas e indenizações à trabalhadores que foram submetidos ao trabalho análogo ao de escravo. 81 Fonte: Relatório de 2007 do núcleo de Direitos Humanos da Prelazia de São Félix do Araguaia, p. 05 - . Arquivo A.47.4.01
80
atitude, a Prelazia tem chamando a atenção do mundo para a exploração dos trabalhadores. Os
dirigentes pastorais consideram que muitas vezes só denunciar as autoridades brasileiras não tem
resolvido o problema. Segundo Casaldáliga (2007) “[...] só levando fatos assim ao conhecimento
das Nações Unidas é que se chama a atenção do mundo para a existência de trabalho escravo em
Mato Grosso. O que convenhamos é um sinal de atraso! Reclamar à ONU é a única opção que
resta”.
Fonte: Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia - A. 47.3.32
Com intensificação dessas denúncias, procurando atingir os problemas para sua
resolução, a prelazia de São Félix do Araguaia nos últimos anos tem organizado ações juntamente
81
com a comunidade. Dentre os trabalhos destaca-se o Grupo de Direitos Humanos e o Balcão de
Direitos Humanos, este em Convênio com a Secretaria Especial de Direitos Humanos do
Governo Federal. A Prelazia também participou da Campanha de Combate e Erradicação do
Trabalho Escravo no Araguaia. Na consideração dos agentes de pastorais, esta Campanha é
importante porque divulga informações sobre o que é o trabalho escravo, bem como a formação
de pessoas e grupos, principalmente os trabalhadores, priorizando a prevenção e punição dos
responsáveis quando o crime ocorre.
Aqui mesmo na região temos tido recentemente casos de escravidão nos
municípios de Santa Terezinha, Vila Rica e Confresa. E este trabalho contra o
trabalho escravo que faz a CPT é sobretudo no Norte de Mato Grosso, no Sul do
Pará e no Tocantins. O primeiro documento que eu fiz, no ano de 1970,
intitulado "Feudalismo e Escravidão no Norte de Mato Grosso", foi um primeiro
grito contra essa escravidão que, à época, não se tratava de um caso ou outro
caso. Era o sistema, era o regime (Casaldáliga, 2003)82.
As ações dos agentes da CPT e dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais, através dos
cursos de formação para os sindicalizados, intensificaram o apoio às vitimas da violência. A
Prelazia mantém uma advogada para encaminhar e orientar os trabalhadores nas causas
trabalhistas. Os cursos e palestras visam esclarecer os trabalhadores a fim de minimizar o
problema da exploração dos trabalhadores, sobretudo, os migrantes e desassistidos.
As antigas correntes de ferro não mais aprisionam os braços e pernas dos
escravos. Elas foram substituídas pelas correntes simbólicas da dívida e da
violência, que agora aprisionam os trabalhadores e impedem que fujam das
fazendas. Existe também uma corrente de eventos ligando os fatores que levam
à escravidão: a pobreza, a migração, o aliciamento e as condições indignas de 82 Trecho da entrevista concedida ao diário de Cuiabá em 23/02/2003, acessado em junho de 2007. www.diariodecuiaba.com.br.
82
trabalho. Mas há ainda uma contra-corrente, que combate essa prática
criminosa. Ela representa a articulação dos novos abolicionistas lutando contra
o trabalho escravo. (Cadernos da CPT, 2006).
83
Capítulo III
O Trabalho escravo na Amazônia hoje: debates, problemas e discussões
Toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a
condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o
desemprego.
Ninguém será mantido em escravidão ou servidão.
Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.
(Declaração Universal dos Direitos Humanos)
84
Considerando a importância da questão da exploração dos trabalhadores e as diversas
denominações para essa prática, discutiremos neste capítulo a utilização do termo trabalho
escravo83 na contemporaneidade, suas discussões na historiografia e os seus usos políticos nos
diferentes tempos e espaços. Consideramos o trabalho escravo contemporâneo como um novo
fenômeno que produz novos deslocamentos. Segundo Gomes (2007, p. 01) “[...] um fato novo da
história recente do país que, se de um lado, tem relações com práticas seculares de exploração do
trabalhador, de outro, possui singularidades próprias ao contexto recente de sua emergência”.
Este fenômeno tem sido pouco trabalhado pelos historiadores. A maior parte das pesquisas e
produções está no campo da sociologia, antropologia e do direito. Há uma necessidade de suprir
esta lacuna com estudos no campo da história.
Para compreender a problemática do trabalho escravo contemporâneo, realizamos
diversas entrevistas em diversos locais do Araguaia com os agentes envolvidos (peões,
representantes de Sindicatos e CPT), utilizando a metodologia da história oral. Esse conjunto de
entrevistas (que utilizo neste capítulo e no IV capítulo) nos possibilitou analisar esta problemática
a partir dos depoimentos de pessoas que foram submetidas à prática do trabalho escravo
contemporâneo, ou estiverem envolvidos no processo de denúncias e resgate dessas pessoas. As
entrevistas e conversas84 realizadas com os peões algumas vezes foram em botecos, Sindicatos
83 Os termos escravo e escravidão já eram utilizados pelos romanos através dos vocábulos servitus e servus. Na Península Ibérica, os termos captivus e sarracenus gradualmente substituíram o termo servus, o que se explica pelo número crescente de muçulmanos reduzidos ao cativeiro durante a Reconquista Cristã. Mas o tráfico de cativos dos países eslavos introduziu o termo sclavus também na Espanha, durante o século XIV. Em Portugal, é no século XV que o novo termo escravo se generaliza, significativamente num momento em que começava a tomar corpo o tráfico de negros trazidos da África. Igualmente aqui, a distinção de origem étnica ou racial adquiriu conteúdo social (Palo Neto, 2006, p. 64). 84 Algumas vezes não foi possível gravar as entrevistas, porque os trabalhadores não queriam ou a situação não permitia, mas nestes casos, eu anotava o que era possível.
85
dos Trabalhadores Rurais, casa do idoso85 e na casa de agentes de pastoral da Prelazia de São
Félix do Araguaia. As entrevistas realizadas com os Agentes da CPT e Prelazia de São Félix do
Araguaia permitiram compreender as formas de organização no combate a esta prática.
Quando a pesquisadora chega até os entrevistados, num primeiro momento, a reação
é de desconfiança. Por um lado, por ser uma mulher que está conversando com um peão, por
outro, o medo de que o que dizem poderá mais tarde ser utilizado contra eles. Mas também
vislumbram a oportunidade de fazer uma denúncia, de reclamar pelo pagamento que não foi
realizado pelo gato ou fazendeiro. É alguém de fora das suas relações que está lhes dando
atenção. Falar de seus problemas para alguém que eles não conhecem, algumas vezes provoca
uma reação de estranhamento86, mas também de interesse, quando eles percebem que podem
expor a situação a que foram submetidos.
As entrevistas foram realizadas com peões jovens e idosos. Algumas foram obtidas
logo após a fuga da fazenda. Em outras eles já haviam passado por essa prática a algum tempo,
mas na memória isto é muito recente. São feridas ainda abertas, marcas que não se apagam
facilmente. Para chegar até esses trabalhadores e fazer as entrevistas, contei com a colaboração
de representantes de Sindicatos de Trabalhadores Rurais e amigos que os conheciam, facilitou a
aproximação, viabilizando as entrevistas.
Trabalhar com esses relatos nos possibilitou ouvir as angústias, indignações e
esperanças desses trabalhadores que na maioria das vezes são tratados não como pessoas, mas
como coisas, como mercadoria que pode ser comprada, usada e descartada. Eles reclamam com
85 Em São José do Xingu, realizei algumas entrevistas na casa de idosos, onde encontra-se vários peões que trabalharam em diversas fazendas no território do Araguaia e agora não podendo mais trabalharem nas fazendas e distantes das famílias esse é o lugar em que podem morar. 86 Depois de ser apresentada para os trabalhadores por alguém que os conhecia, em geral a reação de estranhamento se dissipava. A desconfiança diminuía, aumentando a confiança. Mesmo assim, algumas vezes me pediam para desligar o gravador ou não escrever o que estavam falando.
86
frequência que apenas querem trabalhar para conseguir o sustento da família. São pessoas que
vivem o cotidiano do não ter, desde a comida com qualidade até um lugar decente para dormir.
Estudar a problemática do trabalho escravo contemporâneo no Brasil dentro do
campo da história nos possibilita fazer novas reflexões sobre o mundo do trabalho. Como
considerou Gomes (2007), este fenômeno é relativamente novo nas discussões acadêmicas, e na
sua existência também.
Uma das primeiras denúncias públicas foi feita por D. Pedro Casaldáliga, então
bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia. Em 1971, por ocasião da sua sagração episcopal,
D. Pedro publicou a Carta Pastoral “Uma Igreja na Amazônia em conflito com o latifúndio e a
marginalização social". Neste documento o bispo denuncia a situação dos índios e posseiros
que estão sendo expropriados pelas grandes empresas que começam a se instalar no Araguaia, e
os peões que estão sendo submetidos ao trabalho análogo ao trabalho escravo.
D. Pedro Casaldáliga foi uma das pessoas mais importantes a utilizar o termo
trabalho escravo e escravidão branca, entre outros. Diversas denúncias também surgiram na
imprensa, como a que foi publicada em 1971 pelo Jornal do Brasil que noticiava a libertação,
por Agentes da Policia Federal, de trabalhadores escravizados na Fazenda CODEARA, no
município de Luciara.
Fazenda formada com incentivos fiscais na área da SUDAM mantém
1.200 empregados em regime de trabalho escravo. (...) era um verdadeiro
campo de concentração, onde centenas de homens vivem em completa
escravidão, diz a Policia Federal (Jornal do Brasil, 1971, arquivo da
Prelazia de São Félix do Araguaia - Pasta B. 07.3).
Entretanto, este é um problema complexo e muitas vezes designações como:
trabalho análogo ao trabalho escravo, trabalho escravo contemporâneo, escravidão branca ou
escravidão por dívida, por si só não dão conta de expressar a complexidade do problema que
87
envolve especificidades próprias do mundo do trabalho na contemporaneidade. A O.I.T. tem
utilizado o termo “trabalho forçado”, uma categoria mais ampla que engloba diversas
modalidades de trabalhos não voluntários, para definir as diferentes situações de exploração do
trabalho no mundo. É preciso compreender essas designações dentro do campo político e social
de disputas e de novas formas de um sistema de exploração do trabalhador87, como também as
especificidades das práticas que ocorrem nos diferentes lugares do mundo.
A acepção que produz significância ao termo trabalho escravo deve estar sempre
associada a um determinado contexto histórico. Falar em escravismo na antiguidade clássica
(Grécia e Roma) é diferente de falar do trabalho escravo histórico (da escravidão com negros
vindos da África para serem explorados nas novas terras na América no período Colonial e
Imperial do Brasil); bem como das formas contemporâneas de trabalho escravo no Brasil (Jardim,
2007).
Koselleck (1992, p.3) ao discutir a história dos conceitos, afirma que “[...] todo
conceito articula-se a certo contexto sob o qual também pode atuar, tornando-o compreensível”.
Neste trabalho o termo trabalho escravo está sendo utilizado para chamar a atenção para a
compreensão de um novo fenômeno, que ultrapassa e distingue as designações clássicas e
modernas.
Conforme Neide Esterci (1994 p. 12), a melhor forma de classificar essa relação de
trabalho é de fato ir além de uma discussão, partindo “[...] de definições já estabelecidas nas
convenções internacionais expressas em códigos legais nacionais ou elaboradas nos trabalhos de
87 Ao falarmos em sistema de exploração, “de trabalho escravo” estamos nos referindo a uma cadeia que envolve o patrão, o gato, a (o) dona de pensão, o motorista que leva ilegalmente os peões à fazenda desviando de barreiras e quando é preciso suborna o policial que faz vista grossa, conforme descrito por D. Pedro Casaldáliga (1971) Neide Esterci (1994) José de Souza Martins (1997) João Carlos Barrozo ( 1997), Binka Le Breton (2002) e Ricardo Rezende Figueira (2004).
88
especialistas”. Para a antropóloga é necessário intensificar a pesquisa e o diálogo porque há
muitos questionamentos em torno dessa temática. E um deles é o das classificações, dos nomes
que se empregam segundo, “[...] o contexto, os critérios e as posições dos diversos atores
envolvidos ou que se pronunciam em cada caso”. Porque as formas de exploração do trabalho
não ocorrem com a mesma configuração, mas cada caso tem as suas especificidades.
Ricardo Rezende Figueira88, explica que as diversas entidades de defesa dos direitos
humanos89 que atuam na fiscalização do trabalho, quando empregam a categoria “escravo” para
essa forma de exploração do trabalhador estão fazendo menção a um:
Modelo de trabalho temporário sob coerção com o pretexto de dívida,
existente com muita regularidade em empresas agropecuárias,
principalmente desde os anos 1960. Essa forma de trabalho tem maior
incidência quando as fazendas estão derrubando as árvores para plantar
capim, erguendo, recuperando ou protegendo cercas e pastos ou
executando diversas dessas atividades simultaneamente. (Figueira, 2004,
p. 34).
Como ressaltou Koselleck (2006, p. 105), os conceitos podem sofrer transformações
ao longo do tempo, não são estáticos e as sociedades apropriam-se deles de formas diferentes
em tempos e espaços variados. “[...] as palavras que permanecem as mesmas não são, por si só,
um indício suficiente da permanência do mesmo conteúdo ou significado por elas designado”.
Ou seja, a designação trabalho escravo permanece, mas o seu significado alterou-se, se re-
significou, dando novo sentido ao seu uso. O trabalho escravo contemporâneo utiliza práticas
que divergem da escravidão clássica, do período colonial brasileiro. Foi apropriado em outro
88 Ricardo Rezende Figueira, padre que trabalhou por vários anos na CPT (Comissão Pastoral da Terra), no sul do Pará, desenvolveu pesquisas para o mestrado e doutorado em antropologia sobre a temática do trabalho escravo contemporâneo. 89 Sindicatos, Igreja, CPT e servidores públicos Grupo Móvel de Fiscalização, Ministério Público Federal e Policia Federal.
89
tempo e espaço, para chamar a atenção de um fenômeno que, mesmo legalmente não existindo,
considerando que a escravidão foi abolida no Brasil em 13 de maio de 1888, encontra
similaridades importantes, como coerção, restrição da liberdade de ir e vir, castigos físicos e
falta de remuneração pelo trabalho desenvolvido.
Muitas vezes, o termo escravidão é utilizado por pessoas e entidades sem a intenção
de se reportar às práticas da escravidão colonial, mas manifestando sentimentos de repúdio e
recusa a situações que rompem com limites aceitáveis de degradação dos trabalhadores.
(Esterci, 1994).
Para Gomes (2007, p. 06) “[...] quando uma categoria é excessivamente ampliada,
pode perder completamente a capacidade de atribuir sentido ao que designa, pois passa a se
referir a um sem número de fenômenos muitos diferenciados no tempo e no espaço”.
Atualmente a designação de trabalho escravo é empregada para as mais diversas formas de
exploração do trabalhador. A utilização generalizada incorre no perigo de banalizar o termo,
perdendo completamente a sua significação.
Neide Esterci (1994, p. 16) chama a atenção para a re-significação do termo trabalho
escravo, a qual expressa a necessidade de superar essa variação nos termos utilizados como
forma de enfrentamento do problema:
[...] a multiplicidade de palavras e expressões (que em parte refletem as
disputas, as indefinições e as mudanças conceituais referidas) obscurece,
às vezes, a compreensão do problema, deixando o observador num
impasse: são os termos utilizados sinônimos entre si e, então, as
situações referidas devem ser pensadas como sendo do mesmo tipo, ou,
como sugere uma observação mais atenta, as situações diferem entre si?
E, neste caso, qual o significado das generalizações que têm sido feitas?
Qual a importância de recuperar a particularidade de cada caso?
90
O termo trabalho escravo em alguns casos tem sido banalizado, sendo utilizado para
designar diferentes formas de exploração do trabalhador, ou mesmo para chamar a atenção da
opinião pública. Portanto há necessidade de se definir conceitual e juridicamente o que realmente
seja trabalho escravo contemporâneo. O que está em jogo não é um significante meramente
teórico. Mas todo o conjunto de atuação preventiva e repressiva acerca do trabalho escravo
contemporâneo, naquilo que se refere à sua ineficácia/ineficiência, pode ser iniciado a partir da
falta de um entendimento maior à sua compreensão (Gomes, 2007). Segundo Esterci (1994) a
escravidão tornou-se uma categoria eminentemente política, fazendo parte do campo de lutas,
sendo utilizado pelas diversas entidades para designar o trabalho não livre.
Esterci, (1994, p. 49) observa que:
Determinadas relações de exploração são de tal modo ultrajantes que
escravidão passou a denunciar a desigualdade no limite da desumanização;
espécie de metáfora do inaceitável, expressão de um sentimento de
indignação que, afortunadamente, sob esta forma afeta segmentos mais
amplos do que os obviamente envolvidos na luta pelos direitos.
A crítica à terminologia trabalho escravo existe por vários motivos. Os trabalhadores
chamados de escravos atualmente diferenciam-se do conceito histórico de escravo90. A principal
razão dessa diferença reside no fato de que o cerceamento da liberdade do escravo
contemporâneo não se dá de forma tão explícita como nos moldes da escravidão abolida no Brasil
no século XIX. A coerção não é só física, mas também a moral, simbólica91. O expediente da
dívida é para o trabalhador um fator de cerceamento da liberdade. Para ele sair devendo é 90 Refere-se à escravidão de africanos no Brasil nos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX. 91 Sobre as relações simbólicas, ver BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Bertrand / Rio de Janeiro: Difel, 2000. Para Bourdieu, o poder simbólico surge como todo poder que consegue impor significações e impô-las como legitimas. Os símbolos afirmam-se, assim, como instrumentos por excelência de integração social, tornando possível a reprodução da ordem estabelecida.
91
vergonhoso, não é digno de um homem que empenhou sua palavra ao receber o adiantamento do
gato. Uma das principais diferenças é que, na atualidade, a escravidão enquanto um sistema legal
já foi abolido, portanto, essa situação ocorre na clandestinidade. Além do mais, não há uma venda
formal do trabalhador, mas uma coerção (proibição de afastamento do local de trabalho, que é
perda temporária do direito de “ir e vir”) provocada por uma dívida, na maioria das vezes
ilegítima.
Autores como Eduardo França Paiva (2005) tem chamado a atenção para os usos do
termo trabalho escravo e suas implicações. Um dos problemas levantados pelo autor é a
vitimização do trabalhador. Este não é mais visto como um sujeito capaz de ações, mas sim como
coisa: “[...] Já transformar o escravo em coisa, ignorando-se sua humanidade, suas capacidades,
seus conhecimentos, suas habilidades, seus sentimentos, é, creio, uma opção equivocada e
reducionista, adotada por intelectuais de épocas que aceitavam essas simplificações, mas
inaceitável hoje”. (Paiva, 2005, p. 02).
Surgem assim, vários questionamentos. Como pensar a precarização do trabalho numa
perspectiva histórica relacionada à experiência social contemporânea? Como evitar armadilhas de
reduzir os trabalhadores a vítimas do sistema, ofuscando a complexidade das relações sociais
desenvolvidas, mesmo nas situações de aprisionamento e violência, desqualificando totalmente
estas práticas? Há uma necessidade de construir outro campo de análise que não reproduza a
naturalização das categorias pobre e vítima desses trabalhadores que têm demonstrado fantásticas
estratégias para escapar do aprisionamento, violência e exploração dentro das fazendas. (Souza,
2007).
Nas nossas análises, utilizando uma vasta documentação, não há como tratar esses
trabalhadores como não sendo sujeitos, capazes de ações. Pois essa prática de exploração do
92
trabalhador tem sido conhecida e denunciada porque essas pessoas têm conseguido romper com
o cerco armado dentro da mata, utilizando uma multiplicidade de estratégias para sair desses
locais e denunciar o que acontece no interior das fazendas 92.
Um caso que teve notoriedade foi o de uma denúncia de que era utilizado trabalho
escravo na fazenda CODEARA no ano de 1971. Este fato teve grande repercussão no país93.
Como destacou Casaldáliga, (2003) “[...] Na fazenda Codeara viu-se o maior caso de
escravidão branca da história do Brasil”. Este episódio foi denunciado por dois rapazes
memores de idade que conseguiram fugir da fazenda, sendo relatado em uma entrevista de
Antônio Canuto94:
Tinha um menino de 16 anos e outro de 15, fugiu e denunciou e foi
quando a Policia Federal baixou lá e regatou 500 trabalhadores (...) É,
naquele tempo, era um tempo que o pessoal trazia os peões cada ano;
trazia de um canto, porque, no ano seguinte, a notícia chegava no lugar
de origem, não vinham do mesmo lugar. Em 72, eu mesmo ajudei 70 a
fugir, eles chegavam lá em casa eu os escondia lá no morro, aí de noite
eles atravessavam o Araguaia e iam embora. È naquele ano fugiram uns
400 pelo menos95.
Quando realizamos as entrevistas e/ou conversas com esses trabalhadores que foram
submetidos a essas práticas, podemos pensar em outras possibilidades de leitura que implicam em
descortinar e problematizar as classificações e distinções96 sociais construídas em torno de grupos
92 Discutiremos sobre essas estratégias no capitulo IV. 93 A denúncia foi publicada em jornais de circulação nacional: O Globo, Correio Brasiliense, Folha de São Paulo, entre outros. 94 Antônio Canuto é um ex-padre que trabalhou na Prelazia de São Félix do Araguaia por mais de 30 anos. Ele ajudou dezenas de trabalhadores a fugirem, bem como encaminhou denúncias de trabalho escravo a diversos órgãos do Governo Federal. Hoje ele integra a equipe da CPT na coordenação nacional 95 Entrevista realizada em 16 de outubro de 2007, com Antônio Canuto em Goiânia. 96 Ver distinção em BOURDIEU, Pierre. A distinção: Critica social do juramento. São Paulo, Edusp, 2005.
93
sociais pobres97. Segundo Souza (2007, p. 12) “[...] Essas classificações gerais e unificadoras
aparecem como evidências supostamente objetivas e naturais, como se fossem propriedades
essenciais atribuídas às relações entre os espaços, os homens e as mulheres”. Portanto, é preciso
considerar que estes trabalhadores reproduzem maneiras próprias de reinventar as ações
cotidianas e desnaturalizar essas classificações, que são carregadas de significação que
reproduzem um discurso dominador/dominado. As práticas desses trabalhadores têm mostrado
que eles ultrapassam, vão além dessa relação de forte/fraco. Eles são pessoas, que não podem ser
tratadas como coisas ou mercadorias.
A multiplicidade de termos empregados, inclusive no meio acadêmico, para nomear
esta relação de trabalho, nos sugere que um novo conceito está sendo forjado e/ou re-
significado, com base nas práticas de coerção e exploração do trabalhador, resultantes dos
embates no campo social, político, cultural e econômico. A visibilidade deste fenômeno é
evidenciada na literatura brasileira e nos meios de comunicação a partir da década de 1970.
Em geral, os trabalhadores, tidos como escravos modernos são recrutados por
agenciadores de mão-de-obra, denominados gatos. Estes recebem dos gerentes ou donos das
fazendas a “encomenda” de trabalhadores. São eles que saem para arregimentar os
trabalhadores temporários na época da safra. Levados para lugares distantes de sua residência,
esses trabalhadores já chegam às fazendas com dívidas de transporte, de adiantamentos, de
alimentação, as quais dificilmente serão quitadas. Trata-se de um ciclo vicioso e, apesar do
absurdo da situação, o próprio trabalhador sente-se obrigado a permanecer no local com o
objetivo de pagar a dívida, o que raramente ocorre.
97 Sobre deslocamentos de grupos de trabalhadores pobres que vivem a procura de novos espaços ver o trabalho inovador de SOUZA, Ana Maria. Relatos de Cidades: nomadismo, territorialidades urbanas e imprensa Cuiabá-MT – segunda metade do século XX. Cuiabá, Entrelinhas – EDUF, 2007.
94
Os gatos sabem que se o peão empenhar sua palavra significa que irá executar o
serviço por mais que seja difícil. Eles aproveitam desse contrato verbal, confiando na palavra
do trabalhador, aproveitando para explorá-lo ainda mais. Segundo Jeane Belline98, o gato
utiliza-se de artifícios como amizade, conhecer e saber o nome dos trabalhadores, enfim toda
uma simbologia para convencer os peões a deixarem seu lugar de origem e irem trabalhar em
outras localidades:
Eles não vêm só escondidos, eles vêm por que confiam no gato, e já está
adiantando pra ajudar a família, mas aquele adiantamento é dívida
entende, então, é toda uma psicologia de dominação, mas muito bem,
que o peão acaba sentindo que ele tem nome e os gatos também
aprendem os nomes, é todo um fenômeno. E pra mim é porque na cultura
camponesa o homem tem que ser o provedor da família, ele tem que ser
aquele que dá conta, reconhecido de alguma forma e eles vivem a
vergonha constante de não estar dando conta. Então, o gato, ele não pode
elaborar do jeito que ele esta dizendo, mas ele aprendeu como trabalhar
esta mentalidade dos homens. Tem deles que ficam muito fiéis ao gato e
teve vez que eles não queriam contar o que tinha acontecido, na cabeça
deles por causa desse lado afetivo, eles diziam para nós, não ele (o gato)
não é tão ruim, eles diziam que esse era um fato concreto, foi uma
decepção (Jeane Belline, outubro de 2007).
As astúcias utilizadas pelos gatos, fingindo serem amigos dos peões são formas de
mantê-los leais a eles. Em alguns casos os peões denunciam as tentativas de fugas dos próprios
companheiros, para manter a boa relação com o gato. Quando esta confiança é quebrada, ele
sente-se decepcionado. Mas, de alguma forma, decide “proteger” o gato, pois mais tarde irá 98 Entrevista Realizada com Jeane Belline em Goiânia, outubro de 2007. Jeane Belline é uma freira que trabalhou por mais de 30 anos na Prelazia de São Félix do Araguaia como Agente de Pastoral primeiramente na Equipe de São Félix do Araguaia depois em Porto alegre do Norte. Na Prelazia de São Félix do Araguaia, trabalhou com pessoas que foram resgatados de fazendas onde existia a prática de trabalho escravo, e atualmente, desenvolve trabalhos na equipe da coordenação nacional da CPT.
95
precisar de trabalho e quem poderá conseguir para ele é o gato. Dessa forma é difícil para eles
denunciarem as explorações e violências que sofreram no interior das fazendas.
A dívida é uma forma do empreiteiro/gato manter o trabalhador imobilizado, pois
enquanto o trabalhador tiver dívida ele fica impedido de dispor livremente de sua força de
trabalho. Na concepção do trabalhador ele tem a obrigação moral de liquidar a dívida. Muitas
vezes o trabalhador não percebe que já pagou a dívida várias vezes e, esta é mais uma forma do
empregador manter imobilizado o peão, como destacou Esterci (1994, p. 43):
Os efeitos da forma de constrangimento moral que pesam sobre os
dominados que podem ainda ser mais eficazes que o uso da força. Isso
expressa bem o caráter de divida que escraviza, porque a desigualdade
obriga a se endividarem com outros. (...) Mas, como fica claro em todos
os casos que denunciam como escravidão, a dívida ao mesmo tempo em
que resulta da super-exploração via comércio nos barracões ou via baixa
remuneração do trabalho, funciona como um instrumento, um pretexto
para a imobilização.
A eficiência do aparelho de repressão depende de múltiplos fatores, tais como a
violência física e/ou psicológica, a responsabilidade moral sentida pelos trabalhadores frente à
dívida e a presença de homens armados. A vulnerabilidade das pessoas aumenta com a distância
entre a fazenda e o local de recrutamento. Eles não estão apenas longe de suas cidades, mas de
uma rede de solidariedade que poderia ser acionada, composta por seus parentes, amigos e
conhecidos. (Figueira, 2004).
O trabalho escravo contemporâneo necessita ser analisado e compreendido dentro de
um conjunto de práticas sociais e políticas, que envolvem vários atores (gato, peão e fazendeiro),
como também as especificidades dos momentos e espaços em que ele ocorre. Não é só a
denominação que está em jogo, mas um conjunto de significações no mundo do trabalho.
96
Como ressalta Gomes (2007, p. 24):
Tal designação não precisa ser vista como fruto de simplificação e/ou
distorção, mas como uma metáfora discursiva, que mobilizando o
passado, quer compreender o presente e defender um futuro, no qual
trabalhadores sejam homens livres, com direitos protegidos pelo Estado e
assegurados em lei.
Embora defenda internacionalmente a utilização da expressão trabalho forçado, a
O.I.T. reconhece a particularidade brasileira com relação à designação:
[...] No Brasil, a expressão preferida para práticas coercitivas de
recrutamento e emprego em regiões remotas é 'trabalho escravo'; todas as
situações cobertas por essa expressão parecem enquadrar-se no contexto
das convenções da OIT sobre trabalho forçado. (Relatório da OIT, 2005,
p. 08).
Portanto, as dificuldades são ainda ampliadas quando buscam definir o que seria
trabalho escravo com a inserção de outro elemento, que são as condições degradantes de trabalho:
A expressão “trabalho escravo” refere-se a condições degradantes de
trabalho e à impossibilidade de deixar o emprego por força de débitos
fraudulentos e da presença de guardas armados. Esse é realmente o
principal aspecto do trabalho forçado no Brasil rural, onde os
trabalhadores são imobilizados por coerção física até a quitação desses
débitos fraudulentos. (Relatório da OIT, 2005, p. 45).
97
3.1. O Trabalho escravo contemporâneo – o caso brasileiro
A grande propriedade rural, sobretudo na Amazônia, tem sido a principal responsável
pela prática da escravidão contemporânea. Os proprietários de grandes áreas de terras, ainda
agem como senhores donos de escravos, exercendo autoridade absoluta em sua área de
influência, desafiando o Estado. Eles estabelecem seus poderes arbitrários com a certeza da
impunidade, utilizando-se de relações de compadrio com outros proprietários e políticos, além
de uma influência direta na política local e regional. O julgamento das ações de casos de
trabalho análogo ao trabalho escravo, na esfera Federal, vem contribuir para diminuir a
impunidade desses crimes. Entende-se que estando fora da esfera estadual, estes fazendeiros
não têm poder para influenciar nas decisões judiciais.
O conceito de “trabalho escravo”, utilizado no Brasil atualmente, sobretudo, pelas
entidades de defesa de direitos humanos e dos operadores do direito, faz referência a uma
espécie de trabalho que se distingue daquele tipo exercido na antiguidade (a escravidão clássica
como é definida por alguns autores), bem como no período colonial brasileiro (a escravidão de
negros africanos). O fato é que o trabalho escravo, trabalho forçado, escravidão por dívidas, ou
qualquer denominação que seja dada a ele, existe no Brasil contemporâneo.
Nos últimos dez anos, mais de vinte e cinco mil pessoas foram escravizadas em
diferentes localidades do Brasil, especialmente nas áreas rurais e distantes, nas quais se tornam
difícil a fiscalização e atuação do Ministério Público do Trabalho. (CPT, 2006).
Segundo Gomes (2007. p. 23), “[...] O que se deseja acionar é seu potencial
explicativo e mobilizador, que permite uma rápida apreensão de um fenômeno novo, amplo e
complexo: o da perda de parâmetros internacionais, que demarquem as condições de trabalho
“humano” no mundo contemporâneo”.
98
O caso brasileiro possui especificidades próprias, sendo que este fenômeno ocorre
principalmente em áreas rurais e distantes dos grandes centros99. O maior número de
incidências está nos estados com grandes extensões de terra e de ocupação recente, sobretudo
nos Estados do Pará e de Mato Grosso, que são os campeões da prática de trabalho escravo
contemporâneo (a partir do final da década de 1960 e inicio da década de 1970). Esta forma de
exploração de trabalho é encontrada nas áreas de cultivo de cana-de-açúcar, algodão, soja,
pecuária, limpeza de pastagem e abertura de fazendas.
Quadro das operações do grupo móvel de fiscalização, fazendas fiscalizadas e
libertação de trabalhadores no Brasil – 1995-2007.
Ano Nº. de operações Nº. de Fazendas
Fiscalizadas
Trabalhadores
libertados
2007100 57 112 3.296
2006 109 209 3.417
2005 85 189 4.348
2004 72 275 2.887
2003 67 188 5.223
2002 30 85 2.285
2001 29 149 1.305
2000 25 88 516
99 Há alguns casos de trabalho escravo contemporâneo nas cidades, sobretudo, com trabalhadores imigrantes, que trabalham na ilegalidade, um dos casos que teve grande repercussão foi o caso de bolivianos escravizados, nos porões de fábricas em São Paulo. 100 No ano de 2007, está contabilizado apenas o primeiro semestre.
99
1999 19 56 725
1998 18 47 159
1997 20 95 394
1996 26 219 425
1995 11 77 84
TOTAL 568 1.789 25.064
Fonte: Relatório do Grupo Móvel de Fiscalização e CPT.
A caracterização do trabalho escravo no Brasil é possível ser identificada através de
vários fatores; Os trabalhadores permanecem vinculados a dívidas injustas (referentes à
alimentação, transporte e equipamentos de trabalho, contraídas desde o momento em que são
aliciados. Os valores cobrados são muito superiores ao valor devido ao trabalhador). Em
conseqüência da dívida, eles são impedidos de saírem devido ao controle dos gatos e gerente de
fazendas. Este controle é facilitado pela relativa distância geográfica onde estão localizadas as
áreas de trabalho, no interior das grandes propriedades. A dificuldade aumenta quando as
fazendas estão na região Amazônica, em áreas de floresta amazônica. Algumas fazendas estão
situadas a dezenas ou centenas de quilômetros de distância das vias de acesso ou das cidades
mais próximas e, de seus lugares de origem. Nestas condições, os trabalhadores estão fora do
alcance dos agentes de fiscalização, e ameaçados pela presença inibidora de pistoleiros101
armados que os castigam ou até mesmo os matam quando há tentativas de fuga.
101 Pessoa contratada pelo fazendeiro ou gato para vigiar os trabalhadores nas fazendas, um assassino profissional.
100
Hoje as condições desumanas de trabalho e o impedimento de sair da propriedade
continuam, mas ficou muito mais difícil para o fazendeiro manter a mão-de-obra escrava retida
dentro da propriedade, devido a maior fiscalização. (CPT, 2006).
O fazendeiro, não precisa mais comprar seus escravos, já que se tornou ilegal alguém
ser propriedade de outra pessoa. Hoje, apenas pagam o transporte até a fazenda, assume a dívida
do trabalhador na pensão pioneira e adianta uma quantia pequena em dinheiro para sua família. O
adiantamento será cobrado do trabalhador, com juros e correção, com um grande valor acrescido.
O peão contratado paga todas as despesas efetuadas por ele, como parte
do adiantamento do empreitado, tendo que aceitar qualquer salário102,
pois já estava na dependência de recursos financeiros para soldar sua
dívida perante o hoteleiro ou pensionista (Martins, 1981, pág. 61).
Quando o trabalhador adoece, sofre um acidente de trabalho ou passa a produzir
menos, isso também não causa prejuízo ao fazendeiro. Basta que ele o abandone na estrada,
sem gasto nenhum, e recrute novos escravos. (CPT, 2006). Isso porque existe muita mão-de-
obra disponível, resultante da situação sócio-econômica, de pobreza e miséria, desemprego e
falta de perspectiva que atinge aproximadamente trinta milhões de pessoas no Brasil. (CPT,
2006).
Na escravidão histórica, com africanos, o relacionamento entre o trabalhador e patrão
era por um longo período. O escravo permanecia sob a dependência do senhor por toda a vida.
A dependência se estendia aos dependentes, também escravos. Nessa nova escravidão não há
uma relação entre trabalhador e patrão. Os peões apenas se relacionam com o gato ou o gerente
102 O peão não recebe salário. Ele recebe um pagamento acertado em forma de “empreitada” um valor fixo a ser pago por um serviço determinado.
101
da fazenda, por um curto período. Assim que termina o serviço não é mais preciso dar sustento
a este trabalhador.
Na escravidão colonial brasileira, os escravos se distinguiam por serem negros
africanos. Na escravidão atual, a característica étnica não é relevante. Hoje os escravos não se
caracterizam mais pela cor da pele, mas pela sua origem sócio-econômica. São pessoas pobres
e miseráveis, oriundas, sobretudo de algumas regiões pobres do Nordeste do Brasil. Os negros
eram considerados, por lei, propriedade do fazendeiro, o qual precisava gastar dinheiro na
compra e na “manutenção” do seu escravo. O depoimento a seguir, da Procuradora Ruth Vilela,
destaca essa forma de trabalho escravo contemporâneo, evidenciando que o mesmo é tão ou
mais cruel que a escravidão “clássica”:
Quando você compara, ponto a ponto, quase chega à conclusão que a
escravidão contemporânea, sob determinados e específicos aspectos, é
pior que a escravidão “clássica” (...). O trabalhador escravo de hoje, com
certa fartura de mão-de-obra, é descartável. Ele não tem valor
econômico, valor de mercado, como tinha o escravo negro. E por mais
que fossem comuns os castigos corporais etc., o senhor de escravo tinha
que tomar algumas providencias para manter o escravo vivo e saudável.
O escravo de hoje não; ele é inteiramente descartável. [...] Por outro lado,
os grilhões, que decorrem da “clássica” são hoje substituídos por outra
espécie de grilhões, que decorrem da ruptura das referencias dos
indivíduos e também da questão moral [refere-se ao compromisso dos
trabalhadores com as dívida que julgam ter e precisam pagar]. 103
A questão da sazonalidade da mão-de-obra não impede que o trabalho seja executado
em jornadas consideradas extenuantes. O critério de definição para um período diário de trabalho
103 Depoimento de Ruth Vilela, In. GOMES, Ângela de Castro. Trabalho análogo ao trabalho escravo: construindo um problema. Mimeo, 2007, p. 20-21.
102
não é o número de horas máximo permitido pela legislação trabalhista, mas definido pelo gato
enquanto for possível trabalhar com a luz do sol, só deixando o trabalho no inicio da noite.
Assim, o trabalhador inicia suas tarefas quando amanhece, e somente termina ao anoitecer.
As refeições são feitas durante uma breve interrupção do trabalho, sem o período de
descanso necessário. Na maioria das vezes esta é apenas um bocado de arroz, feijão e raramente
algum tipo de carne, em geral seca (charque ou jabá).
Em geral, este tipo de escravidão dura enquanto durar a derrubada ou a “limpeza” das
áreas. Os novos escravos são pessoas pobres, negros, mulatos e/ou brancos. Segundo dados da
CPT, 98% são analfabetos, e muitos não possuem documentos de identidades ou certidão de
nascimento, não aparecendo nas estatísticas do Governo. Eles não existem legalmente, como
destacou em seu depoimento Jeane Belline.
A pobreza é tão grande nos lugares de origem, que mesmo passando pela exploração e
ou a prática do trabalho escravo eles retornam para trabalhar nas empresas por anos seguidos. Um
caso exemplar é o da destilaria Gameleira104. Esta empresa consta na “lista suja” 105 do Ministério
do Trabalho Emprego:
Quando visitamos a destilaria Gameleira, uma turma lá em barracos
terríveis, nossa demais! A grande maioria é do Maranhão, nós
perguntamos numa reunião, nós conseguimos visitar alguns alojamentos e
reunir uma turma e conversar e eu perguntei depois que eles foram
104A destilaria Gameleira está localizada no município de Confresa foi autuada pelos fiscais do Ministério do Trabalho por desrespeito as leis trabalhistas e a prática de trabalho escravo nos anos de 1997, 2001, 2003 e 2005, recentemente mudou de nome, sendo denominada Destilaria Araguaia, pois como destilaria Gameleira fazia parte da Lista Suja do Ministério do Trabalho e Emprego, ficando impedida de utilizar financiamentos em bancos oficiais. 105 Empresas que constam nesta lista encontram restrição de financiamentos públicos, a "lista suja" também lida com a desvalorização da imagem do empregador que tiveram seus nomes incluídos. A idéia segundo, o Ministério do Trabalho e Emprego é promover um amplo conhecimento das empresas que mantêm pessoas escravas em sua produção econômica como forma de inibir o consumo dos seus produtos ou serviços. O boicote comercial não se direciona apenas ao consumidor final, mas também a outras empresas que mantenham relação econômica com os infratores incluídos na lista, evitando, assim, a aquisição de matérias-primas que serão utilizadas na produção de outros bens.
103
contando as coisas que eles tinham passado, perguntei logo, por que vocês
vieram uma segunda vez? Por que alguns deles tinham vindo 2, 3, 4 anos
seguidos do Maranhão. Ai um deles disse se vocês vissem quem ficou pra
trás chorando porque não coube no caminhão, no ônibus, então a pobreza
do Maranhão que empurrava também106.
O fato desta empresa ter sido autuada várias vezes pela prática do trabalho análogo ao
trabalho escravo, não inibiu os trabalhadores de retornarem para o corte da cana na mesma
empresa. Há uma grande miserabilidade no lugar de origem. Quando eles não conseguem viajar
para o corte da cana, ficam impossibilitados de manter o sustento da família.
Na abertura das fazendas na Amazônia, esta mão-de-obra é utilizada para desmatar a
floresta, plantar a pastagem, no preparo da terra, na cata de raízes, sobretudo nos campos de soja.
O tempo necessário para a realização das tarefas é de alguns meses, dependendo do tamanho da
área. O que significa, então, que o trabalho escravo contemporâneo rural é temporário, que dura
enquanto durar a empreitada. É um trabalho temporário que utiliza uma mão-de-obra provisória.
Os trabalhadores são temporários e substituíveis.
O mapa 05 mostra uma radiografia do trabalho escravo contemporâneo. Através dele é
possível visualizar os principais fluxos de trabalhadores, os principais estados fornecedores de
mão-de-obra, e os receptores desses trabalhadores. No estado de Mato Grosso estes trabalhadores
estão presentes nas fazendas tradicionais, como em algumas empresas do agro-negócio,
destacando-se as usinas de cana-de-açúcar. Na área da pesquisa (nordeste do estado de Mato
Grosso, entre o Xingu e Araguaia) podemos identificar a prática do trabalho escravo na limpeza
de pasto, cultivo de cana-de-açúcar, pecuária e desmatamento.
106 Entrevista realizada com Jeane Belline, outubro de 2007, em Goiânia.
104
Figura 06 – Mapa -5 trabalho escravo no Brasil
Pecuária
ALGODÃO
SOJA
CAFÉ
Fonte: CPT, 2003.
105
3.2. A escravidão contemporânea sob o ponto de vista jurídico
Na legislação brasileira o termo “trabalho análogo ao trabalho escravo” já existe no
código penal desde 1940. Porém, poucas vezes o preceito legal foi utilizado para apoiar os
trabalhadores. O governo brasileiro só começou a reconhecer a existência de trabalho escravo no
país a partir de 1993, a partir de pressões de entidades como a C.P.T. e, sobretudo da O.I.T., que
incluía sistematicamente a prática do trabalho escravo (ou forçado) em seus relatórios anuais. A
partir de 1993 o Brasil finalmente reconheceu a prática, e se comprometeu a combatê-la. O
Governo a partir do reconhecimento, frente à necessidade de dar respostas às pressões nacionais e
internacionais, organizou o Grupo Móvel de Fiscalização107 ligado à Presidência da República.
Segundo Gomes (2007, p. 15):
[...] A categoria, que existia no Código Penal desde 1940, começa a
ganhar trânsito entre os operadores do direito, no mesmo momento em
que passa a ser conhecido o problema concreto a que ele se referia. Até
inicio dos anos 1990, momento inaugural das novas funções do
Ministério Público no Brasil, mesmo no MPT, não se praticava seu uso,
embora já se desse início a ações que tocavam no ponto central do
problema, que ela designava e que, a nosso ver, é a dos direitos humanos
do trabalhador, e não apenas seus direitos trabalhistas.
No ano de 2003, dá-se uma nova redação ao Artigo 149 do Código Penal (CP) na
tentativa de definir o crime de trabalho análogo ao trabalho escravo:
107 O Grupo Móvel é formado por Auditores-Fiscais, Policiais Federais, Ministério Público do Trabalho de várias localidades que se reúnem para uma atuação planejada de alguns em uma determinada região. As ações de fiscalização desenvolvidas pelo GEFM são organizadas pela Secretaria de Inspeção do Trabalho – SIT a partir de denúncias recebidas de trabalho escravo, nas mais diversas regiões do País. O coordenador da ação (Auditor-Fiscal do Trabalho), em conjunto com a SIT, faz a comunicação à Polícia Federal, ao Ministério Público do Trabalho e a Procuradoria-Geral da República, além do IBAMA e INCRA (quando necessário e possível). MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO. Manual de procedimentos para as ações fiscais de combate ao trabalho escravo. Brasília, 2004.
106
Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer
submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer
sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por
qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o
empregador ou preposto:
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena
Correspondente à violência.
§ 1º Nas mesmas penas incorre quem:
I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador,
com o fim de retê-lo no local de trabalho;
II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de
documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no
local de trabalho.
§ 2º A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:
I – contra criança ou adolescente;
II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.
Para alguns autores e operadores do direito, esta lei cria mais confusão (Rodrigues
Junior, 2005, Gomes, 2007), no entendimento do que seja trabalho análogo ao de escravo,
dificultando para alguns a compreensão desse fenômeno.
Nesse sentido, no caso do trabalho escravo, além da informalidade, tida aqui em seu
sentido restrito, como a ausência de registro na CTPS, estão, indubitavelmente, presentes todos
os elementos acima expostos. Seria reducionismo, ou mesmo maquiagem da realidade, afirmar
que se trata simplesmente de trabalho informal.
O trabalho escravo Colonial não rendia lucros altos aos senhores de escravo devido
aos custos de manutenção. Na contemporaneidade, a mão mão-de-obra é substituível devido ao
grande contingente de trabalhadores desempregados. São aliciados pelos gatos que possuem
informações sobre os locais de mão-de-obra, sua localização e custo, poupando esforços ao
107
fazendeiro e ao administrador para recrutarem e gerenciarem o trabalho. Os casos de escravidão
contemporânea estão freqüentemente relacionados à miséria, à baixa instrução e à falta de
oportunidades. Não é por acaso que as regiões mais pobres do Brasil são as principais fontes de
mão-de-obra escrava no país. No entanto, os locais de exploração da mão-de-obra escrava são
diversos do local de origem dos trabalhadores, pois é justamente quando esses trabalhadores
saem em busca de melhores condições de vida que se tornam presas fáceis dos fazendeiros e
gatos que os levam para as fazendas submetendo-os ao trabalho escravo. (Esterci, 1994, Breton,
2002, Barrozo, 1987 e Figueira, 2004). A condição de migrante é uma característica comum
identificada no trabalho escravo. Essa característica pode ser observada tanto na situação de
trabalhadores nacionais como estrangeiros (CPT, 2007).
Utilizar a expressão trabalho escravo, para designar o aparecimento contemporâneo de
escravidão como considerou Esterci (1994) Gomes (2007), é um modo de não aceitar as formas
atuais de exploração do trabalhador, “[...] uma metáfora do inaceitável”. Tornando assim, “[...]
uma categoria eminentemente política, faz parte de um campo de lutas”. (Esterci, 1994, p. 44).
Portanto, as associações com as imagens do escravismo histórico brasileiro de escravos negros
traficados em embarcações abomináveis e trabalhando sob o jugo imediato do senhor, sob pena
de castigos no tronco e vivendo acorrentados, sugere uma indignação, frente à existência das
práticas contemporâneas de escravidão, sobretudo pelo estranhamento de que tais imagens
possam repetir-se na cotidianidade. Nesta perspectiva, é olhar um objeto do presente com
imagens do passado, levando à negação da aceitação de sua ocorrência no presente.
108
Capítulo IV
Trajetória do peão: do roçado para o “cativeiro”
Saí da cidade pro mundo de aventura, e a aventura vai ficando
velha, a cabeça vai ficando branca, quando a gente sai do serviço
sai pobre. Aí a gente sai pra voltar rico e a riqueza não se encontra
e vai fincando..., vai entregando aos janeiros, uns ainda dá sorte
fica, com a cabeça branca e outros morrem antes, né. ( Ismael Silva
– peão).
109
Trabalhamos neste capítulo com a trajetória de vida dos peões, percorrendo, através de
seus relatos, diferentes espaços em que se deslocam, transitando por suas angústias, esperanças e
sonhos, perpassando por suas narrativas que envolvem uma multiplicidade de sentidos. Uma
cartografia de vidas, permeadas de encontros e desencontros, através das viagens da memória. As
histórias desses trabalhadores no Araguaia estão repletas de imagens que são amálgamas de
sonhos, realidades e irrealidades. Tentamos compreender o universo social dos “novos” espaços
que vão se constituindo com a chegada dos peões, acompanhando a trajetória de vida desses
trabalhadores, através de relatos, cartas e bilhetes.
Entendemos que o relato é definidor de lugar, pois as pessoas relatam os lugares em que
constroem suas relações. O relato, segundo Certeau (1994), é delinqüente porque não segue uma
linearidade, constrói seus próprios espaços deslocando-se de um lugar a outro. Os peões ao se
referirem aos espaços nas fazendas relatam também a vida no local de origem. Pois os lugares
vividos tornam-se representações de ausências e presenças. Portanto, o espaço é um lugar
praticado.
Os relatos, especialmente de trabalhadores, muitas vezes, denotam condições de vida
submetidas a práticas sociais violentas, que, são “[...] específicos do movimento de ocupação
recente do território amazônico, a partir da década de 70 do século XX”. (Guimarães Neto 2002,
p. 02). São vidas que se esfacelaram em busca de melhorias. São homens e mulheres que se
lançaram em um ”novo” mundo de aventuras. A vida nessas áreas a todo o momento é
ressignificada, reelaborada e reinventada. Trabalhamos, sobretudo, com entrevistas que nos
possibilitaram a reconstrução de parte da história de pessoas que ainda lutam a cada dia pela
sobrevivência. As entrevistas pensadas de forma metafórica, segundo Montenegro, (2005, p. 21):
[...] são painéis pintados coletivamente, através do diálogo entre entrevistador e
entrevistado. No entanto, ao se tornarem públicas, não revelam o processo de
110
construção. Trazem, sim, os contornos, as imagens, os acontecimentos, as
emoções, os desafios, os sonhos, os desejos realizados ou não, as vitórias e
algumas vezes as derrotas que o entrevistado (a) seletivamente organiza para
dizer do que fez e como fez da e na sua própria vida.
Nesses “painéis pintados” pelos peões encontramos marcas que na maioria das vezes
eles querem e, até mesmo precisam esquecer para continuar vivendo, procurando outras formas
para melhorar de vida. É nesse momento (da entrevista) que muitas vezes só as palavras não dão
conta de explicar aquilo que o depoente quer transmitir. Trabalhamos com memórias que
produziram feridas, as quais na maioria das vezes não estão cicatrizadas, apenas adormecidas. O
entrevistador as desperta provocando uma voragem de emoções e sentimentos. Em geral essas
pessoas sentem vergonha de se expor. O entrevistador, nestas situações, sente-se impotente para
agir diante das denúncias feitas pelos entrevistados.
Segundo observações de Ferreira e Grossi (2004, p. 48) “[...] o lugar do historiador
que trabalha com a oralidade é na escuta sensível de onde emerge a voz de sujeitos que são
portadores de uma memória, cuja significação tece fios na história de uma época”. Através da
memória dessas pessoas (os peões) é possível reconstruirmos parte da história do Araguaia. Uma
história que é marcada pela violência, pela luta pela terra, pela esperança de centenas de
trabalhadores pobres que saíram na segunda metade do século XX de várias regiões do país em
busca de uma vida melhor.
Ao realizarmos as entrevistas e analisar os múltiplos movimentos migratórios
alcançados ao longo de suas vidas, instigamos nessas pessoas uma revisitação ao passado, a
lugares que muitos querem esquecer. É como se estas pessoas vissem um filme da própria vida. É
significante o trabalho com a memória desses migrantes, entretanto “[...] privilegiar os itinerários
111
migratórios individuais como instrumento metodológico não significa, no entanto, negar a
importância de determinados tipos de migrações.” (Menezes, 2002, p. 51).
Os itinerários dos trabalhadores que vieram para Mato Grosso, se entrelaçaram
construindo novos espaços. Os homens migram à procura de trabalho e as mulheres ficam com a
responsabilidade de cuidar da família. Muitos peões constituíram novas famílias no lugar de
chegada. Raramente eles voltam para suas famílias de origem, vivendo em uma constante procura
por “lugares”.
Os peões como foram considerados por Casaldáliga, são brasileiros expatriados,
estrangeiros na sua própria pátria:
Os peões fazem parte dos milhões de brasileiros deserdados, tangidos, sem
pátria, brutalizados pela violência e injustiça, que cambaleiam pelos sertões na
procura de um futuro melhor. São homens que deixam o Nordeste atrás da terra
prometida, que lhe foi negada. Mas percebem logo a amarga decepção: a vida
não mudava, mudava só o lugar108.
Estes mesmos que ainda re-territorializados já não são os mesmos, constroem-se e
desconstroem-se nas multiplicidades dos espaços109. Há uma ressignificação da vida no novo
lugar, os sentidos dados a determinados acontecimentos agora são outros. O peão precisa lutar
incessantemente pela própria vida. Tudo é perigoso, falar, fazer amizades ou inimizades. Perdem-
se determinados valores, constroem-se outros. Muitas vezes no lugar de origem valorizam-se
pouco as relações familiares. Quando o peão está longe, no interior da mata, eles percebem a
108 Documento arquivo da Prelazia de São Feliz do Araguaia – B-8.2.48, p. 02. 109 Para Guatari e Rolink ( 1986, p. 323, apud, Haesbaert e Bruce 2005 ) “a espécie humana está mergulhada num imenso movimento de desterritorialização, no sentido de que seus territórios “originais” se desfazem ininterruptamente com a divisão social do trabalho, com a ação de deuses universais que ultrapassam os quadros da tribo e da etnia, com sistemas maquínicos que levam a atravessar cada vez mais rapidamente, as estratificações materiais e mentais”. Para uma melhor compreensão sobre territorialização e desterritorialização e reterritorialização, ver Guimarães Neto (2005), Ianni (2003), Deleuze e Guattari ( 2002) , Guattari e Rolink (1986) Haesbaert e Bruce (2005).
112
importância da família, que eles aspiram a reencontrar. “[...] lá não dava muito valor pra minha
mãe não, agora eu sei o que é ficar longe de mãe, sei que ela se preocupa comigo. Aqui ninguém
liga pra ninguém não” 110. Os relacionamentos amorosos com as mulheres, no novo lugar de
chegada, são sempre provisórios, estão de passagem, “[...] vou voltar com dinheiro e casar lá no
Piauí, talvez eu volte, mas com uma mulher” 111.
Essas pessoas estão recordando parte de suas vidas, e o ato de lembrar aflora, expõe
sentimentos, que por algum motivo ficaram na reminiscência do passado. Uma entrevista que me
emocionou bastante, quando o entrevistado ao mostrar suas mãos cheias de cicatrizes do trabalho
na derrubada da mata, limpeza de pastagem e a construção de cercas, diz: “[...] dona eu não sou
vagabundo sou gente, olha as minhas mãos, vivo do meu trabalho tomo a minha cachaça, mas
trabalho” 112.
A indignação desse trabalhador expressa a violência, exploração e a sujeição aos maus
tratos que ele passou no interior de várias fazendas onde trabalhou em Mato Grosso e no Pará.
Mas também reivindica a condição de ser humano, que possui dignidade. O fato de “beber
cachaça”, não o torna menos humano ou desprovido de decência. Porque muitas vezes os peões
são tratados como se não fossem seres humanos.
Apesar da vida sempre difícil e sacrificada, e mesmo que sejam silenciados dentro das
fazendas, os peões constroem sua história com uma habilidade própria, através das narrativas e
conversas em bares, bordéis, pensões e em outros lugares. É a partir dessas narrativas que estamos
reconstruindo parte dessa história de luta, de sonhos, frustrações, realizações e irrealizações. A
chegada ao novo lugar leva os trabalhadores a um novo mundo – o das desilusões. Os espaços
percorridos por eles são estranhos, tudo parece ser perigoso. Eles criam estratégias para se 110 Entrevista realizada com F. R. S. em Canabrava do Norte/MT, junho de 2006. 111 Idem. 112 Entrevista realizada com F. R. S. em Canabrava do Norte/MT, junho de 2006
113
organizarem e fugir desse isolamento e, no dia-a-dia, dividem entre si a miséria, a saudade de
familiares, compartilhando desde o fumo até os alimentos. Tecem experiências, das codificações e
recodificações, mas também, da produção de outros modos de existência que desestabilizam a
composição da organização dentro das fazendas. Entretanto, mesmo que construam relações de
amizade, há uma grande desconfiança entre eles, como nos relatam: “pois não dá para confiar em
ninguém”. Alguns foram enganados pelas falsas promessas do gato, tiveram seus direitos
usurpados e foram violentados, desde a saída de sua casa. Outros retornam as fazendas por não
terem condições de trabalho no lugar de origem. Como enfatiza Casaldáliga (2003) sobre os peões
que trabalhavam na fazenda Suiá Missú: “[...] Apesar de tudo, aquela fazenda era para muitos
como uma mãe, porque dava emprego. Esse mundo da peonada do trecho é dos mais
dramáticos”113.
Ao recordar passagem de suas vidas essas pessoas (re) compõem, na esfera mental,
imagens e discursos que, tornam presente um acontecimento ausente. Pois estão relembrando
com a significação do presente, a partir do que estão vivendo. Segundo Walter Benjamin (2000
p.37.): “[...] um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao
passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que
veio antes e depois”. Ou seja, a presentificação do passado não nos remete apenas para o fato
recordado, mas interconecta palavras e imagens, correlacionando sentidos, dando um novo
significado ao que foi vivido. (Pesavento, 2006). É nesse momento de ressignificação da
memória que alguns dos peões, sobretudo, os mais velhos expõem sua indignação, pois muitas
vezes, não tinham “consciência” da situação de exploração no momento em que esta aconteceu.
113 Trecho da entrevista concedida ao diário de Cuiabá em 23/02/2003, acessado em junho de 2007. www.diariodecuiaba.com.br .
114
Mas ao longo do tempo e convivendo com outras pessoas, é como se despertassem para a
“realidade”. Pois estão falando do que viveram, agora sob a luz de novas relações e informações.
Os peões relataram as memórias de estranhamento do novo lugar. Essas memórias
trazem as alegrias, as tristezas, o sofrimento, as emoções mais intensas. Considerando que na
memória, o tempo não é marcado pela cronologia, o que importa é o significado dado a ela. O
tempo da memória é o tempo da experiência, das vivências. (Halbwachs, 1990).
Portanto, as memórias do passado estão em constante movimento com as memórias do
presente. Sendo assim, o ato de lembrar reporta ao passado vivido por essas pessoas. A
lembrança, segundo Halbwachs (1990, p. 71), é “[...] uma reconstrução do passado com a ajuda
de dados emprestados do presente”.
A reconstrução de algumas trajetórias de vida dos trabalhadores que vieram para
trabalhar nas fazendas agropecuárias, através de seus próprios relatos pode oferecer luzes para
compreendermos a complexidade da ocupação do Baixo Araguaia e de Mato Grosso. Sendo que
para o Araguaia foram vários grupos sociais e, muitos indivíduos isolados, com experiências de
vida bastante diversificadas. Os testemunhos norteadores da nossa narrativa sobre a ocupação do
Araguaia, articulados com outros documentos e pesquisas acadêmicas possibilitam-nos, também,
algumas reflexões sobre a história recente do Brasil e de Mato Grosso em particular.
Entender parte dessa trajetória que os peões realizaram é mergulhar em um mundo de
desrespeito aos direitos humanos, de humilhações, perseguições, violência e mortes. O senhor
Ismael nos relata fragmentos dessa memória do mundo do trabalho ao fugir da fazenda Bela
Manhã em São José do Xingu-MT com seus companheiros:
A gente saía de noite, fugia né. Ai se eles pegavam, esse sofria! Aqueles que
eles viam que voltavam quietinhos eles ainda davam umas lapadas boas neles,
ai eles vinham trabalhar. Eu mesmo cansei de ver peão trabalhar amarrado,
115
trabalhava de dia quando era de noite eles punham uns correntão nos pés deles
para não fugir. Mas tinha aqueles que já tinha fugido mesmo... Ai eles sempre
maltratava aquela turma que fugia, algum assim era excluído, não podiam ficá
juntos com os outros. Ai aquela turma ficava ali trabalhava de dia quando era
de noite jantava, tomava banho. Amarravam eles lá no pé do pau, os capangas
ficavam lá vigiando com medo de outro ir lá e cortar as cordas e eles irem
embora. Já vi isso na fazenda Bela Manhã. 114
Essa memória do trabalho nas fazendas, relatada por senhor Ismael é ressignificada no
tempo presente. Para ele essas lembranças parecem envergonhá-los. Isso fica evidenciado em
várias entrevistas realizadas com trabalhadores que fugiram ou foram resgatados de fazendas,
onde viviam submetidos às condições de trabalho escravo. Poucos admitem que tenham sido
torturados e maltratados. Foi sempre com algum companheiro ou, como aparece em algumas
entrevistas dizem que “[...] o gato não era tão ruim para mim” 115.
Alguns admitem que fosse perto de onde trabalhavam, mas raramente aceitam que foi
com ele: “[...] a fazenda que eu trabalhei que disseram que era ruim, que tinha um gato que
espancava peão, foi do outro lado do rio pra ali, pra mim não foi tanto assim” 116. É uma desonra
ter passado por uma situação de aprisionamento, e ainda mais ter sido espancado. Na concepção
do peão ele perde a sua condição de homem provedor da família, e para suportar tudo isso, dizem
“[...] a cachaça é a minha companheira, quando bebo, esqueço tudo o que aconteceu comigo na
mata” 117.
É possível concluir que, mesmo não estando na fazenda e, muitas vezes, a centenas de
quilômetros de distância dela, o peão continua com medo do gato, uma figura que aterroriza os
114 Entrevista realizada com I. S. em maio de 2008, em são José do Xingu/MT. 115 Entrevista realizada com F. R. de S. em Canabrava do Norte/MT, junho de 2006. 116 Entrevista Realizada com R. L. em São José do Xingu/MT, maio de 2008. 117 Entrevista realizada com F. R. de S. em Canabrava do Norte/MT, junho de 2006.
116
peões por muito tempo, ou talvez por toda a vida. Esse medo do gato de alguma forma explica a
resistência dos peões em falar da violência a que foram submetidos.
A história de vida desses trabalhadores também mostra que eles passaram por
seguidas migrações, tendo trabalhado em diversos estados do país. Mesmo sendo escravizados em
uma fazenda e conseguindo voltar, eles novamente vão para outra fazenda, onde possivelmente
serão outra vez escravizados. Vivem à procura de novos espaços, movendo-se sempre em lugares
que não são os seus. Por isso, mesmo impedidos de sair das fazendas por um determinado tempo,
os peões são movidos pelo sonho irrealizável de ganhar dinheiro e voltar para família que deixaram
há anos, muitas vezes, a centenas de quilômetros de distância, como foi relatado pelo senhor.
Ismael:
Eu tenho vontade de voltar para São Paulo ou Bahia; eu agora me deu vontade
de voltar pra onde está meus irmãos e filhos. Já fiquei desde dezessete anos
longe dos meus parentes. Com cinqüenta e cinco anos o que tinha de arrumar, já
arrumei, ao menos pra morrer. Morrer tudo lá mais perto tem uns pra chorar
pelo outro. Aqui a gente só tem amizade das pessoas, aqui eu conheço desde os
pequenininhos até os mais grandes. 118
Voltar sem dinheiro é ser fracassado, é não realizar o que procuraram durante toda a
vida. Esses trabalhadores vivem o cotidiano do não ter. Para os peões permanecer no lugar que
conhecem algumas pessoas lhes traz, de alguma forma, certo conforto. Mas estar com a família
na velhice é um sentimento que é recorrente em vários dos entrevistados. Muitos ficam
perambulando nas periferias das cidades e nunca retornam para onde estão suas famílias. Existe
um sentimento de pertencimento àquele lugar, mas precisa encontrar-se em outro, estar com a
118 Entrevista realizada com I. S. em maio de 2008, em são José do Xingu/MT.
117
família. O senhor Ismael quer voltar para perto da família, mas sente vergonha da situação em
que se encontra119:
É minha família, sabem que eu tô aqui no Mato Grosso, agora só não sabem
que eu to com essas pernas entrevadas, depois que eu entrevei as pernas não
comuniquei com eles mais não. Eu era perfeito agora não vou ser pai enquanto
não melhorar dessas pernas eu acho que vou acabar voltando e com pernas
assim mesmo. To esperando essa próxima eleição no mês de outubro que eu sou
eleitor aqui há vinte anos, ai sou obrigado a esperar pra não voltar aqui. Espero
a votação aqui e vou embora pra São Paulo. Não vou trabalhar mais aqui, ficar
menos perto dos parentes, né120.
Por mais dura que seja a situação em que se encontram esses trabalhadores eles
exercem a cidadania, como mostram os depoimentos. Portanto, considerá-los como vitimas é
legitimar um discurso que os trata como coisas. Eles têm a percepção dos direitos e deveres
básicos da pessoa humana. A todo o momento eles relatam a sua situação, reivindicando os seus
direitos.
4.1. O aliciamento do peão
O senhor Celestino Pereira da Silva nasceu em Imbuzeiro no estado do Piauí, saiu
deste Estado ainda criança, indo para o Ceará, Maranhão e Mato Grosso. Em Mato Grosso
trabalhou em São Félix do Araguaia, Porto Alegre do Norte, Xingu e Confresa. Atualmente mora
em São José do Xingu. Veio a cavalo, a pé e de barco. Ainda criança, após a morte de seus pais
119 Sr. I.S. sofreu um acidente de trabalho em uma fazenda em São José do Xingu e perdeu os movimentos da perna esquerda. Não podendo mais trabalhar foi morar na casa do idoso em São José do Xingu. 120 Entrevista realizada com I. S. em maio de 2008, em são José do Xingu/MT.
118
foi levado para o Ceará para ser criado com outra família. Como estes eram muitos severos, ele
fugiu e foi procurar parentes no Maranhão. Ainda muito jovem, aos dezesseis anos foi trabalhar
como vaqueiro no Maranhão, onde com dezessete anos encontrou um gato, que o aliciou e trouxe
para trabalhar em Mato Grosso. Atualmente com sessenta e quatros anos, velho, sem trabalho,
vive perambulando de cidade em cidade e não acha mais trabalho como peão nas fazendas.
Vinha assim, ele (o gato) mentia. Enganou os coitados, dizia que na fazenda
dele tinha toda profissão. Chegava lá (o gato) virava bandido ruim. Aí os canto
cheio de foice e machado, era assim, vinha enganado, aí os coitados ia
trabalhar. Tava bom, aí a urubuzada121 era grande, mandava matar e jogava lá
dentro (uma lagoa nas proximidades da fazenda). Ele não queria nem que
ninguém de fora encostasse naquele lugar, era arrudiado de pistoleiros. 122
O momento da saída de sua terra associado ao estranhamento da chegada à fazenda
ficaram marcados em sua memória, como também um desencanto com o gato que ele havia
confiado e que poderia ajudá-lo a sair da difícil situação em que se encontrava no Maranhão.
Podemos considerar que a trajetória de Celestino é uma trajetória coletiva. Centenas de
trabalhadores, pobres como ele, saíram do Nordeste à procura de trabalho e melhoria de vida em
Mato Grosso.
Segundo Esterci (2003, p. 268):
Os trabalhadores são recrutados através de propostas sedutoras ou, pelo
menos, de algum modo mais vantajosas que outras. Mesmo começando já
endividados, e comprometidos a pagar a dívida com trabalho, contam
como certo que ao final de algum tempo terão saldado a dívida e estarão
de volta para casa.
121 O trabalhador está referindo-se as diversas formas de violência e descumprimento dos acordos que os gatos cometiam no interior das fazendas. 122 Entrevista com C. P. da S. realizada em julho de 2006, em Confresa.
119
Porém, raras vezes eles conseguem saldar essa dívida. Em alguns casos eles ficam
meses dentro da mata trabalhando de doze a quatorze horas por dia e, dificilmente conseguem
quitar a dívida. Os peões que vieram para trabalhar na abertura das fazendas agropecuárias no
Araguaia foram (e são) aliciados, sobretudo, nos estados do Nordeste e Goiás. Em uma entrevista
realizada com o senhor Celestino, ele nos apresenta a situação por que passou ao ser aliciado no
Maranhão, para vir trabalhar em Mato Grosso em 1964. A imagem que esses trabalhadores
constroem das fazendas de Mato Grosso é um pouco mítica: de riqueza, da terra em abundância,
fazendo com que muitos venham na esperança não só de trabalhar nas fazendas, mas também
poder, um dia, conseguir um pedaço de terra e reconstruir a vida, o que raramente acontece.
O senhor Celestino Pereira de Souza nos relata com detalhes quando foi aliciado aos
dezessete anos no estado do Maranhão para vir trabalhar na derrubada de matas em Mato
Grosso:
Aí o Cara (o gato) levou uma carta e o retrato duns balaios e panelas
dum casamento. Uns tachos de carne de porco e eu comendo macambira
(no Maranhão). Já tava parecendo uma pipa, assim, rapaz sofrimento. Eu
digo: eu não vou morrer de fome não, que eu tenho condição de viajar
pra muito longe né, viajar com fome, criança morrendo de fome né,
comendo feijão com farinha no dia que dava certo. Eu vou embora. Eu
mando uma carta pedindo um primo dele pra vim tomar conta da fazenda
aqui no Maranhão. Aí vendi o cavalo pra esse homem que eu vim com
ele. Levou o retrato dos que estavam comendo no Mato Grosso arroz,
banana era demais naquele... Aí perguntei: isso tudo é comida, é bóia que
tem lá? Ele disse: é, é isso aqui. Tava assim, um bocado de velha fazendo
e a festa ia zuar. Aí eu disse: rapaz, esse lugar eu vou ficar lá. Nem que
eu me acabe pra lá, longe de meu povo, mas eu vou embora pra esse
120
lugar. Eu vou matar minha fome, senão eu morro aqui nesse Maranhão. 123
O relato mostra como os gatos aliciam os peões em outros estados. Este fragmento de
memória do senhor Celestino, mostra a astúcia dos gatos para aliciar os trabalhadores. Este
trabalhador, que saiu do interior do Piauí com dezesseis anos de idade, e depois foi aliciado por um
gato, é um caso exemplar da utilização dos métodos perversos que os gatos empregam para
atraírem os trabalhadores que estão em situação de extrema pobreza. O gato mostrou a fotografia
da comida em abundância, para o senhor Celestino. Aquela imagem em um momento de penúria
determina a sua partida. Ele precisava sair daquela situação degradante em busca de condições
mais dignas.
Neste caso a memória reconstrói parte da trajetória do seu sofrimento, dando ênfase
ao que para ele era significante, saciar sua fome. No momento de sua fala ele busca uma
justificativa para sua condição, ao mesmo tempo em que se indigna com esta, procura meios para
fugir, não quer de forma alguma a acomodação e conformidade com sua situação. Fica evidente no
depoimento que a fotografia do “balaio de comida” é o que o motiva a tomar a decisão de partir.
Ou seja, a fome leva-o a ir embora para longe de sua terra, pensando que naquele lugar poderá
saciá-la. A fotografia representa o imaginário de fartura, a fuga, o afastamento e o desprendimento
de tudo o que ele tinha de ruim no lugar de origem.
As lembranças o remetem a períodos de sua vida que por algum motivo estavam
“adormecidos” na memória. Na construção da narrativa é como se isso tudo tivesse acontecido há
pouco tempo. Segundo Verena Alberti ( 2004, p. 12) “ [...] ele (o entrevistado) se constitui (no
sentido de tornar-se algo) no momento mesmo da entrevista. Ao contar suas experiências, o
123 Entrevista com C. P. da S. realizada em julho de 2006 em Confresa.
121
entrevistado transforma aquilo que foi vivenciado em linguagem, selecionando e organizando os
acontecimentos de acordo com determinado sentido”.
No relato e nas expressões do senhor Celestino, há um desencantamento com a vida,
com as pessoas, pois ao chegar em Mato Grosso, tudo foi muito diferente. As promessas de comida
em abundância que o haviam motivado a partir não se concretizaram. Pelo contrário, na mata para
onde foi levado para trabalhar, a comida também faltava em alguns momentos, ou era de péssima
qualidade. Ficou perambulando de fazenda em fazenda, sem conseguir melhorar de vida, como ele
nos mostra nesse trecho do relato, referindo-se ao gato que o aliciou, trazendo-o para Mato Grosso
destaca:
Pois aquele homem (o gato) não era bom não. Aquilo é peça ruim. E eu
enfrentei tudo; passei fome, medo, frio, doença. Aí trabalhei lá na fazenda, eu
fui tomando conhecimento com gatos, tudo, todo mundo da Suiá. As fazendas
estavam formando. Essa Reunidas, São Francisco, São João, tudo. Esse mundo
de fazendas que tem hoje aqui. Tudo eu cheguei ainda no princípio. Eu saí
fugido das matas pra não morrer. Pros pistoleiros não me matar, e agora estou
aqui sem trabalho. 124
O senhor Celestino, aos sessenta e quatro anos de idade, já se casou por duas vezes,
mas na velhice está só. Passou por diversas situações de violência no interior de várias fazendas
no Araguaia. Quando saiu, ainda adolescente do Maranhão procurava melhorar de vida. A
realidade encontrada nas fazendas em que trabalhou, foi totalmente diferente. Mas ainda,
continua a procura por “dias melhores”. O fato de estar desempregado e que nesta idade já não é
fácil encontra trabalho como peão, o deixa um pouco desencantado com a vida. Homens como
senhor Celestino estão sempre à procura de trabalho em diferentes lugares. Eles passaram a vida
percorrendo fazendas, povoados e vilas.
124 Entrevista com C. P. da S. realizada em julho de 2006 em Confresa.
122
Outra forma de explorar os trabalhadores, constante no aliciamento do peão, eram os
acordos que os gatos e fazendeiros mantinham com os donos de pensões. Eles assumiam a dívida
do trabalhador e os levavam para trabalhar na fazenda. A dívida muitas vezes super-faturada era
transferida para o gato, passando a ser uma justificativa para manter o trabalhador dentro da mata.
Em fragmentos do relato do senhor D. S. B. são evidenciadas as manobras dos gatos e donos de
pensões:
Eu vim no pau de arara de lá pra cá. Tinha uma mulher na Santa Helena em
Goiás que chamava tia. Ela tinha uma pensão que sempre que chegava a
campanheirada ficava ali, ajuntava um lote de gente pra vir pro Mato Grosso, ai
os empreiteiros chegava lá e ela arrumava e vinha mais os empreiteiros até na
Barra do Garças. Chegava na Barra do Garças o empreiteiro pagava o que a
gente ficava devendo para ela. Naquele tempo tinha um negócio do empreiteiro
arrumar um adiantamento pra companheirada. Aí, por exemplo, o Ronildo aqui
era o empreiteiro ele chegava aqui, tinha eu, tinha o Baiano, tinha seu João, ai
nós via ele e ele falava como é que era pra nós trabalhar. Queria fazer as contas,
falava que queria trezentos cruzeiros né, aí é pagar com o trabalho. 125
Estes trabalhadores homens, mulheres e em alguns casos crianças126, uma mão-de-
obra desqualificada, substituível, são recrutados e iludidos com a promessa de ganhar dinheiro.
Quando chegavam ao local de trabalho, no interior da mata, tinham de enfrentar um ambiente
desconhecido, sempre sob a vigilância e o controle armado dos gatos e seus auxiliares. Sendo
proibidos de sair do acampamento, viviam, assim, praticamente sem pagamento e mal
alimentados, sem assistência médica e submetidos ao trabalho duro, esgotados, desesperançados,
desejando dias menos sofridos. Esses peões são levados para outras regiões, distantes de seu
lugar de origem onde são “estranhos”.
125 Entrevista realizada com D. da S. B., maio de 2008 em São José do Xingu-MT. 126 Cf. Os documentos do Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia que tem registro de algumas fazendas. Em 1971 na fazenda CODEARA, e na Fazenda Araguaia Hevea, foram encontradas crianças trabalhando nesses locais.
123
Eles passam uma boa parte da vida à procura de novos lugares:
Foi em 1964 que eu cheguei naquela região (São Félix do Araguaia). Aí
peguei, vendi o cavalo, peguei a “Leda” que era uma balsa que tava
viajando nesse tempo pra essa Codeara. Essa condenada matava gente
demais. Quanto não morria no tiro, na porrada, era na base da malária.
Aqui dava malária! Era essa Santa Teresinha aí, tinha índio pra lá. Eu
digo: é, eu não vou pra lá não, eu vou pular aqui por São Felix, tão
pegando pião pra Suiá Missú. E eu vou pegar o embalo. Foram quase uns
duzentos peões pra roçar e derrubar, outros cortar arroz. (...) Tinha uma
caminhonete que puxava gente. A estrada era ruim, passava quase o dia
todo para chegar em São Felix, saindo do Alto da Boa Vista e da Suiá. E
aí tinha aqueles caminhões que vinha da Suiá carregado de São Paulo,
Maranhão, Piauí, Bahia, Ceará. Era muita gente e jogava tudo bem na
mata. 127
A fazenda Suiá Missú128, a qual se referi o senhor Celestinho e também citada em vários
outros depoimentos, instalou-se no Araguaia no final da década de 1960. A empresa aprovou seu
projeto pela SUDAM, para a criação de gado de corte e instalação de um frigorífico para a
exportação de carne bovina. Através da SUDAM recebeu incentivos fiscais do governo federal para
sua implantação. Na época era uma das maiores propriedades privadas do país (aproximadamente
695.843ha.). Esta fazenda ocupou terras de índios e posseiros, gerando conflitos pela posse da
terra.
Segundo Casaldáliga:
127 Entrevista com Celestino Pereira da Silva realizada em julho de 2006 em Confresa. 128 Sobre os conflitos nesta fazenda, ver o trabalho de Lima, Terezinha Gomes. Suiá Missú X Sociedade Xavante: a deportação dos Xavantes da aldeia Marâiwatsede – Baixo Araguaia. Monografia de conclusão do Curso de História, UNEMAT, 2002.
124
Porque era uma fazenda grande, que na época chegou a ser a maior fazenda de
gado da América Latina. Chegou a ter três mil peões, em uma época em que São
Félix tinha pouco mais de 600 habitantes. Ali o regime era de escravidão
mesmo. Havia uma curva de estrada pouco antes de chegar à Suiá, com um
precipício, uma espécie de grota como uma cratera. Na época mais dura da Suiá
Missú, os peões diziam que aquele era o passeio do papai. Pegavam peões,
matavam e jogavam os corpos lá. Eles diziam: eu não tenho nem um passarinho
para criar, a minha casa é o meu chapéu. Morriam muitos de malária, muitos
matados, às vezes por pistoleiros, às vezes entre eles mesmos. Quando vinham
aqui para São Félix, era só para bebedeira, prostituição e violência. Isso também
mudou muito pouco 129.
A maior parte desses peões foram submetidos à exploração, violência e humilhações
nas fazendas. A maioria deles é constituída de analfabetos, o que em parte facilita serem
ludibriados pelos empreiteiros/gatos. Mas isso não os impede de constituírem estratégias para
saírem do aprisionamento. Eles também não podem contar com a policia local que, com freqüência,
está a serviço do fazendeiro. Denunciar à policia é assinar a sua condenação, aos castigos corporais
e até mesmo à morte, como podemos identificar em um exemplo citado por Casaldáliga (1971, p.
48), que denuncia as situações vivenciadas pelos peões em diversas fazendas no Araguaia:
A própria polícia local é utilizada com freqüência para manter ainda mais
escravizados os peões. Na Tamakavy, por exemplo, alguns peões chefes de
"time" (turma), ao irem reclamar com o Capitão de Polícia de Barra do Garças,
por maus tratos, receberam dele uma carta para o gerente, Geraldo, em que
denunciava os peões. O Gerente, ao tomar conhecimento do que os peões
reclamaram, solicitou a presença da polícia de São Félix que, armada de
metralhadoras, foi à fazenda e prendeu a Pedro Pereira dos Anjos, líder dos
peões.
129 Trecho da entrevista concedida ao diário de Cuiabá em 23/02/2003, acessado em junho de 2007. www.diariodecuiaba.com.br.
125
A violência policial enfrentada pelos peões em geral está a serviço dos fazendeiros.
Lembrando que nesse período de abertura das fazendas no país havia um regime militar e
qualquer organização dos peões seria considerada como um ato subversivo. O senhor Dijalmir
relata como aconteceu a captura de alguns peões em uma Fazenda em São José do Xingu-MT em
1975:
Nessa época (1979) como não existia lei aqui (São José do Xingu-MT) ainda,
tinha pouca policia, tinha muito pouco e as leis eram mais compradas no
dinheiro. Aí eles (os policiais) iam atrás dos peões batia de corrente de moto-
serra, eles tinham até um cachorro policial treinado pra pegar gente. Os peões
fugiam, eles iam atrás por tocaia nas estradas quando os peões vinham, eles
entravam no mato, aí eles soltavam o cachorro. O cachorro ia, começava a
morder os peões e os peões voltavam para trás, aí eles (os policiais) colocavam
dentro da camionete e levava para o serviço novamente. Quantas vezes
fugissem, eles iam atrás130.
4.2. O peão dentro da fazenda
Ao chegarem às fazendas os peões se deparam com uma situação nova, diferente da
prometida pelo gato. As regras do “jogo” são alteradas. Um dos principais problemas
enfrentados eram as distâncias. Muitos chegavam ao local do trabalho de avião e, quando era de
carro à noite, dificultando o reconhecimento do lugar.
130 Entrevista realizada com D. da S. B., maio de 2008 em São José do Xingu-MT
126
Já viemos (em junho de 1970) direto com o dono da fazenda. Quando nós
viemos de lá do Goiás pra Três Flechas, nós já viemos trazidos de avião pelo
dono da fazenda. Fazer cantina, pra roçar, veio o empreiteiro que era o finado
Manoel. E aí a gente foi roçar mato e derrubar de machado, mais esse
empreiteiro. Porque aqui era meio revoltado, aqui era [...] Matava muita gente,
e não tinha nada, era Bang Bang mesmo. A gente trabalhava em fazenda e veio
fazer uma visita aqui, eu trabalhava em fazenda, trabalhava na Três Flechas do
Wilmar, vindo do Goiás pra Mato Grosso. Aqui na época tudo era mato. Aqui
era tudo capoeira131.
Raimundo Lustosa nasceu no Piauí, saiu de sua terra para trabalhar na construção de
Brasília na década de 1950, depois foi para Goiás e Mato Grosso. Em Mato Grosso trabalhou em
fazendas no município de Luciara. Chegou de avião com mais 15 companheiros. Atualmente ele
vive no município de São José do Xingu.
No Araguaia há muitas pessoas cujas histórias de vida retratam a história de
exploração e violência por que passaram os peões no interior das fazendas. Estes trabalhadores
vieram com esperança de um “futuro promissor”, ou pelo menos melhor do que a vida que levavam
no lugar de origem.
A Prelazia de São Félix do Araguaia realizou ações para enfrentar a problemática do
trabalho escravo contemporâneo no Araguaia. Ela atuou fazendo denúncias e informando a
população local sobre o que estava acontecendo nas grandes fazendas que estavam se instalando
naquele espaço. As equipes de pastoral tiveram um papel fundamental no processo de combate ao
trabalho escravo contemporâneo no Araguaia.
131 Entrevista Realizada com R. L. em São José do Xingu/MT, maio de 2008
127
Esquema de funções, posições e formas de remuneração numa empresa agropecuária do território amazônico.
Trabalhadores Mensalistas
Trabalhadores Remunerados por Produção
Trabalhadores Indiretos
Diretoria
Assessoria Técnica
gerente
Contador Capataz Fiscal Empreiteiro Geral
Auxiliar de Escritório
Geral
Fiscais (jagunços)
Gatos
Retagato
Vaqueiros Tratoristas Operadores de Moto-Serra Auxiliares
Peões
Auxiliares
Trabalhadores Diretos
Fonte: Equipe de Pastoral da Prelazia de São Félix do Araguaia. 1983: 21
Este esquema elaborado pela equipe da Prelazia de São Félix do Araguaia contribui
para a compreensão da organização do trabalho dentro de uma fazenda, demonstrando como era
feita a distribuição das funções. Os gatos assumem um papel essencial dentro das empresas. Pois
são estes que saem para arregimentar os trabalhadores para levá-los às fazendas. Eles não
possuem um contrato (carteira assinada) com os donos das empresas, mas em geral fazem um
contrato informal com o gato 132.
O senhor Eurípides é um trabalhador que, na década de 1970, veio do interior de
Goiás com sua família para Mato Grosso á procura de terras férteis para a agricultura, percorrendo
longas distâncias com sua família. Ele relata que “[...] uns andava montado a cavalo ou jumento,
132 Estes contratos informais muitas vezes é apenas a palavra que fica empenhada.
128
outros andava a pé. Levamos meses para chegar a Santa Terezinha”. O relato permite compreender
parte da complexidade das relações nas longas viagens até chegar ao interior das fazendas. Quando
chegou a Santa Terezinha foi aliciado por um gato, indo trabalhar na Fazenda CODEARA, onde
sofreu e presenciou violência e exploração:
Olha nas aberturas da fazenda não tinha tempo definido. Não tinha tempo não, e
assim tinha gente trabalhando o tempo todo. Era assim 50, 100, 200, eu
acompanhei turma de até de 400 homens. [...] Olha na mata aconteceu de eu
entrar uma vez, isso aconteceu com vários [...] vou contar um exemplo que
aconteceu comigo, de eu entrar dia primeiro de abril e sair dia vinte e cinco de
agosto, ficar na fazenda quatro meses. Tinha o problema de gato com
trabalhador, quando dava muitos problemas às vezes batia [...] de facão, de pau,
com uma coisa qualquer. Vi acontecer, não foi uma vez e nem duas vezes, foi
varias vezes. Com facão tirava da bainha e batia, batia também de pau aí
qualquer. Eu vi foi várias vezes, não tinha ninguém, condição nenhuma. A
questão que naquele tempo era uma humilhação muito grande quem escapava
da mão daqueles gatos, tinha quatro, cinco pistoleiro pra segurar ele, ficava
zuando na mata, ficava lá [...] dominava autoridade que fazia presente na
cidade, fazer o que? 133
Narrativas como a do senhor Eurípides permitem a reconstrução de parte de uma
história que por algum tempo não foi trabalhada pela historiografia, e que a partir de algumas
pesquisas realizadas sobre essa problemática no Araguaia, começam a ser evidenciadas, discutidas
e refletidas.
Um bilhete de um peão da fazenda CODEARA, destinado à sua esposa residente em
Gurupi (na época Goiás) que foi enviado por um companheiro que fugiu da fazenda a pé, demorou
72 dias até chegar Gurupi, permite constatar a violência exercida no interior da fazenda pelos gatos
e dirigentes da Companhia:
133 Entrevista realizada com E. F. R. setembro de 2005, em Confresa.
129
Delfina estou aqui numa boca quente em Mato Grosso. Olhe nem pense em vir
aqui. A fogueira que estou nela é alta. Se um dia eu saltar essa fogueira um dia
chego lá. Aqui tudo é preso. Só sai se for fugido. O mais o Carcará te conta.
Nada mais. Aceita as minhas lembranças e saudades. Lembranças e bênçãos a
todos os meninos. Delfina se tu está muito apertada vai para onde teu pai,
porque estou mais do que tu. Só não estou sofrendo doença, o mais estou
sofrendo 134.
O conteúdo desse bilhete permite projetar uma imagem da violência em que os
trabalhadores nas fazendas no Araguaia foram submetidos. O trabalhador denuncia a “prisão” que
está sofrendo e, também encontra uma forma de enviar notícias a sua família. Ele está longe, mas
também se sente presente e preocupado, é o chefe da família, precisa dar as “ordens”. Neste trecho
o relato aponta, ainda, para os desdobramentos da construção de subjetividades na escrita. Ao
escrever, o peão dá uma significação à situação em que está vivendo. Como considerou Araújo
(2006, p. 273):
Num exercício de verbalização, é possível pensar cartas como artefatos
complexos que produzem curiosidades se forem consideradas como partes
constitutivas dos tempos da vida de pessoas singulares. O conteúdo de uma
carta possibilita sempre ao leitor projetar, na imaginação, umas
condições capazes de configurar as cenas que estão descritas e
enunciadas pelo conteúdo que apresenta. São representações das
verdades do emissor, as quais atualizam informações, (re) formam
cenários e (re) formulam emoções 135.
134 Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia. – A 09.0.1CA 135 Sobre o trabalho com cartas e bilhetes ver o Trabalho de ARAUJO, Maria do Socorro Sousa. Paixões Políticas em Tempos Revolucionários: nos caminhos da Militância, o percurso de Jane Vanini. Dissertação de Mestrado, UFMT, 2002.
130
O bilhete está carregado de significados múltiplos, “só não estou sofrendo doença, o
mais estou sofrendo”. Violência física e/ou psicológica, fome, saudade, medo. Para esse peão o
bilhete pode significar livrar-se da condição de isolamento em que se encontrava. Pode de alguma
forma, revelar para outras pessoas o que estava passando no interior da mata. Ao mesmo tempo
talvez, para não fazer a mulher sofrer ainda mais ele não entra em detalhes sobre a sua situação.
A forma e as condições em que esse trabalhador escreveu o bilhete, constrói uma
imagem do que estavam passando, considerando que no momento da escrita a fazenda CODEARA
possuía centenas de trabalhadores aprisionados na mata. Percebe-se o imperativo do pai, marido, o
provedor da família. Ele é o responsável, e mesmo que esteja “preso e apertado”, determina
(sugere) à esposa para “ir para a casa do pai”.
As cartas como destacou Araújo (2006, p. 289) “[...] são lugares que potencializam o
exercício pleno das liberdades múltiplas onde a individualidade cria e recria suas tramas íntimas, e
assim regula suas relações de sociabilidade. São esses espaços singulares e libertadores que
produzem os tempos dos desejos e dos prazeres pessoais”. Portanto, o bilhete escrito por este peão
é uma representação do vivido no interior da fazenda, trazendo significações daquele momento que
ele estava passando.
Os bilhetes dos peões, escritos em uma situação de isolamento e violência, são fontes
portadoras de memórias, narrativas carregadas de fragmentos que trazem múltiplas experiências.
Eles montam cenários imbricados de simbologias para expressar os sentimentos, os lugares, as
percepções e, até mesmo as denúncias.
Como o bilhete para Delfina, localizado no arquivo da Prelazia de São Félix do
Araguaia, há vários outros retratando a situação em que viviam centenas de peões. Através desses
bilhetes é possível reconstruir a história desses trabalhadores que estava “esquecida”. Por um
131
longo período a historiografia não se interessou pela a história dos homens “comuns”. O foco eram
as histórias dos grandes homens e dos grandes feitos e acontecimentos. A partir da década de 70 do
século XX, a historiografia produz novos deslocamentos dando atenção para a história das
mulheres, do medo, das crianças, dos trabalhadores entre outras, possibilitando a construção de
novos olhares sobre novos objetos.
A empresa CODEARA, à qual o peão que escreveu o bilhete para sua esposa se
refere, chegou a ter aproximadamente 1.200 peões trabalhando na derrubada da mata nos entre os
anos de 1968 a 1975. Era uma das maiores empresas agropecuárias instaladas no Araguaia.
Recebeu incentivos fiscais do governo federal e crédito de bancos oficiais para a sua instalação.
Esta empresa também entrou em conflito com os antigos moradores e índios daquele território,
tendo sido denunciada pela Prelazia de São Félix do Araguaia pela prática de trabalho escravo. Em
1972 a empresa foi alvo de uma ação da Policia Federal, que libertou centenas de trabalhadores.
Vejamos os relatos dos peões:
A fazenda Codeara eu também trabalhei. Trabalhei na Codeara em
setenta e quatro, o gerente naquele tempo era um homem por nome seu
[...]. um tal de Salomão. Falaram que a Policia Federal pegou ele de taca
fez ele subir de costa em um pau. Por que ali morreu muita gente naquela
fazenda. Ali morreu muita gente, ali, tinha uma lagoa ali, que eles
falavam assim: a fazenda que menos pagou gente era aquela fazenda.
Codeara era apertada, pagava a peonada, aí diz que tinha um jagunço que
ia atrás, matava, tomava o dinheiro e voltava com o dinheiro, depois
jogava os peões na lagoa de lá. Naquele tempo tinha uma conversa feia
na Codeara, eu tinha era medo de trabalhar na Codeara. Tinha muito
peão naquele tempo 136.
136 Entrevista com I.S. realizada em maio de 2008 em são José do Xingu.
132
Podemos destacar no depoimento do senhor Ismael o medo que ele sente de trabalhar
na fazenda Codeara. Raramente um peão admite que tenha medo de algo e menos ainda, de
trabalhar em alguma fazenda. As práticas dentro dessa fazenda eram tão violentas que extrapolam
os sentimentos dos peões. A ação da Policia Federal em 1971 na fazenda Codera foi destaque em
vários jornais do país.
O Globo noticiava:
Chegou à justiça Federal o inquérito realizado pela Policia Federal neste
Estado e apontado como – talvez o maior -, sobre escravidão branca no
Brasil. [...] As diligências dos federais estão sendo realizadas com base no
depoimento prestado por João Biriba, um sergipano de 28 anos, à chefia do
Serviço de Repressão ao Trafico de Pessoas. João conseguiu escapar do campo
de trabalhadores forçados, distante cerca de 1.700 quilômetros de Brasília, na
localidade de Santa Terezinha, em frente à Ilha do Bananal, depois de passar
mais de 20 dias no mato, para fugir de um grupo de jagunços que pretendiam
matá-lo para evitar que a existência do campo de trabalho forçado fosse
denunciada às autoridades (O GLOBO, 03 de agosto de 1970, apud. Casaldáliga,
1971, p. 111).
Ao sair à procura de trabalhadores (peões) os gatos recebiam uma quantia
considerável de dinheiro adiantado dos fazendeiros ou gerentes para “comprar” trabalhadores em
regiões pobres. Muitas vezes os peões referem-se a esta prática com naturalidade, para eles que
estavam devendo para os donos das pensões e precisavam saldar a dívida. Pois é uma questão
moral não ficar devendo. Essa dívida na maioria das vezes é cobrada por um valor muito acima
da dívida com o dono da pensão, ou mesmo com outro gato ou fazendeiro:
133
Para ir às fazendas é o seguinte, tem um caminhão de gente vai pra
alguma cidade e está sem serviço, ai aquele dono do caminhão leva,
anuncia fazenda fulana está precisando de tantos peões, ai o caminhão
vai lá, o dono da pensão diz: eles me devem tanto, você quer ficar com
eles, ai a fazenda fica, paga aquele dinheiro que você deve a ele. Aí eu
vou trabalhar pra pagar, mas a fazenda paga [...] e ai é onde fala que a
fazenda comprou o peão. Eu mesmo fui desses que cheguei lá e eu devia
um pouco e eu não tinha o dinheiro, e eu tive que ficar lá 137.
Essa prática também foi encontrada e denunciada por fiscais do Grupo Móvel de
fiscalização do Ministério do Trabalho, em diversas diligências dessa equipe. Em uma caderneta
de um gato apreendida pelos fiscais em uma fazenda de Mato Grosso em 2003, está evidenciada
a prática de “comprar” os peões:
137 Entrevista Realizada com R. L. em São José do Xingu/MT, maio de 2008.
134
Caderno do gato para anotação
das dívidas dos peões
Compra da liberdade do
peão...
Fonte: Ministério do Trabalho e Emprego – GMFCTE, 2003
Como podemos ler na caderneta, está escrito claramente: “compra liberdade (pião)
52,25. A seguir está escrito: “compra liberdade (pião) 50,00 e compra liberdade” 138,00. Alguns
produtos estão sem o valor. Esta também era uma prática comum entre os gatos. Eles anotavam
só o produto, pondo o valor só no momento do acerto, alguns meses depois. Algumas
mercadorias chegam a custar cinco vezes mais que o valor no mercado regional. Devido ao alto
custo cobrado pelos produtos o trabalhador dificilmente poderá liquidar a dívida.
A dívida é uma forma do empreiteiro/gato, manter o trabalhador imobilizado e
atrelado à fazenda, pois para o trabalhador enquanto houver dívida ele fica impedido de dispor
livremente de sua força de trabalho. O próprio trabalhador considera que tem a obrigação moral
135
de liquidar a dívida. Muitas vezes o trabalhador não percebe que já a pagou por várias vezes. Esta
é mais uma forma de reter o peão no trabalho, como considerou Esterci (1994, p. 43):
Os efeitos da forma de constrangimento moral que pesam sobre os dominados
podem ainda ser mais eficazes que o uso da força. Isso expressa bem o caráter
da dívida que escraviza, porque a desigualdade obriga pessoas a se
endividarem com outras. Mas, como fica claro em todos os casos que
denunciam como escravidão, a dívida, ao mesmo tempo, que resulta da
super-exploração, via comércio nos barracões ou via baixa remuneração
do trabalho, funciona como um instrumento, um pretexto para a
imobilização.
Para prender as pessoas ao local de trabalho, são criados mecanismos de
endividamento artificial e formas de controle e repressão. O uso da violência física, psicológica
e confinamento são usuais, para assegurar que o trabalhador não escapará e se submeterá ao
trabalho até que a tarefa seja finalizada. Esse quadro representa uma forma de degradação e
violência na relação de trabalho. Em geral o trabalho é acertado por tarefa ou empreitada.
O senhor Francisco foi levado de Canabrava do Norte-MT por dois gatos
juntamente com mais três companheiros para trabalhar na Fazenda Rio Cristalino, no Sul do
Pará, relembra que:
Eles (os gatos) nos levaram daqui (Canabrava do Norte-MT) em janeiro de 2003
para derrubar e roçar uns 20 alqueires. Aí fizemos os 20 alqueires, falamos
assim, ô vamos sair agora, vamos acertar as coisas. Mas ele (o gato) disse assim:
acertar, vocês não tem saldo não, vocês comeram arroz, comeram feijão e
comeram muita carne, então não tem saldo. Nego podia morrer lá de trabalhar de
foice, era de corta assim o coração. Aí ele falou assim, vocês vão roçar mais,
roçar esses vinte alqueires mais, ou vão embora? Com um revolver não mão. Aí
falamos nós vamos roçar. Vocês vão roçar mais vinte, vocês vão roçar esse resto
136
que tem, é esse resto logo todo. Pensei, nós não vamos dá conta... nós não damos
conta de derruba não, então roçar mais vinte alqueires. Aí ele passou por mim
assim, olhando como quem eu já ia fugir. Falei pros companheiros vamos
embora, o bicho vai pegar aqui. Foi quando nós fugimos de noite, andando a pé
até chega a uma cidade. Eu queria era voltar para Canabrava do Norte
lugarzinho bom [...] aqui não devo nada pra ninguém 138.
A destilaria Gameleira de propriedade do Grupo Monteiro, de Pernambuco, está
situada no Município de Confresa, em Mato Grosso. Em junho de 2005, essa empresa foi autuada
sob a acusação do crime de trabalho análogo ao de escravo, conforme define o Código do
Processo Penal brasileiro no Artigo 149. Nesta operação foram resgatados 1.200 trabalhadores,
originários de Alagoas, Pernambuco e Maranhão.
Essa ação só foi possível a partir da denúncia feita pela presidente do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Confresa ao Grupo Móvel de Fiscalização e Combate ao Trabalho
Escravo. A presidente do sindicato que tem enfrentado os grandes fazendeiros e políticos do
Araguaia em defesa dos trabalhadores, é uma figura impar, destacando-se na defesa dos peões.
4.3. A degradação dos trabalhadores
Ismael Silva nasceu em São Paulo, mudou-se ainda criança para Minas Gerais, depois
Bahia, Goiás e Mato Grosso, Pará e Mato Grosso. Chegou ao Araguaia em 1970, onde trabalhou
nas fazendas Codeara, Reunidas Tamakavy.
138 Entrevista realizada com F. R. de S. em Canabrava do Norte/MT, junho de 2006.
137
Quando cheguei aqui (São José do Xingu-MT) fiquei trabalhando ai nessas
fazendas, eu derrubei essas fazendas, ai tudo ai eu trabalhei, derrubando mata,
derrubando, roçando, fazendo cerca, curral. Naquele tempo a gente derrubava
era de machadão brabo. Ai a gente ficava seis meses, oito meses na mata. Eu
mesmo já passei de nove meses na fazenda. Naquele tempo eu tinha uma base de
uns dezenove anos e ainda achava bom. Lá (nas fazendas) era tudo armado, era
com revolver e carabina, aqueles que fossem com a gente era tudo armado.
Aquilo lá (se referindo a fazenda Bang em São José do Xingu) primeiro ficava
trabalhando [...] os fiscais que era todo mundo armado. Quando vinha com a
gente do serviço era com revólver, com a espingarda nas costas. Tinha uns que
fazia um serviço que não era pra fazer, ai tinham que repassar, eles faziam
repassar na marra tinha que fazer. 139
Em São José do Xingu, município situado no Nordeste de Mato Grosso, na divisa
com o sul do Pará, onde se instalou um grande número de fazendas. No final década de 70 e
inicio de 80 do século XX, iniciou-se a abertura dessas fazendas. Centenas de trabalhadores
vindos de diversos estados foram trabalhar nessas fazendas. A Prelazia de São Félix do Araguaia,
CPT e Sindicatos dos Trabalhadores Rurais encaminharam várias denúncias de trabalho escravo
naquelas fazendas.
Segundo dados da CPT e Ministério do Trabalho no Brasil de 1995 a 2007 mais de
trinta mil pessoas foram resgatadas em operações de fiscalização realizada por órgãos do Governo
Federal (Grupo Móvel de Fiscalização e Policia Federal). Os dados coletados por essas
organizações têm demonstrado que quem escraviza, não são proprietários desinformados ou
empresas arcaicas. Pelo contrário, são empresários que utilizam alta tecnologia (Sakamoto, 2006).
No município de Confresa/MT, a destilaria Gameleira, uma empresa que produz mais de trinta
milhões de litros de álcool por ano (Vitali, 2008), já foi autuada pelos fiscais do Ministério do
139 Entrevista com I. S. realizada em maio de 2008 em são José do Xingu.
138
Trabalho nos anos de 1997, 2001, 2003 e 2005, por utilizar a prática de trabalho análogo ao de
escravo. No Sul do Pará a Fazenda Rio Cristalino ligada ao Grupo Volkswagen140, até então
especializado na fabricação de veículos automotores, com os incentivos fiscais concedidos pelo
Governo Federal através da SUDAM, entrou no ramo do agronegócio, sendo flagrada nas décadas
de 1980 e 1990, utilizando a prática de trabalho escravo 141.
Os peões no interior das fazendas são tratados de forma inferior aos animais (gado,
cavalos e cachorros) que muitas vezes possuem abrigos e alimentação mais decente que as pessoas
“[...] do jeito que estão fazendo conosco, é pior do que escravo, a gente tem que ficar na lama que
nem boi” 142. Segundo Figueira (2004, p. 292) “[...] são tratados como impuros, uma planta
desqualificada ou um animal repelente, desqualifica a pessoa, degrada-a diante de si e do outro”.
Para esses trabalhadores falar da situação pela qual passaram é muito constrangedor. O
senhor Ismael, ao relatar a situação que vivenciou, se emocionou a ponto de rolarem lágrimas de
seus olhos. Ele pede desculpas por essa condição, dizendo: “[...] não sou mais como uma pessoa,
mas um bicho que foi abandonado”.
Em fragmentos do relato do senhor Raimundo Lustosa, ele expõe um fato que
aconteceu com um companheiro seu, relatando com riqueza de detalhes a situação de humilhação
que este peão passou na frente de vários companheiros, os quais não puderam fazer nada para
ajudá-lo:
140 Está empresa investiu 38 milhões de dólares de recursos próprios e mais 116 milhões da Sudam. Essa fazenda, em particular, foi alvo de denúncias de trabalho escravo, e a notícia teve repercussão internacional. 141 Sobre a escravidão moderna nessa empresa ver o trabalho de BUCLET, Benjamin. Entre tecnologia e escravidão: a aventura da Volkswagen. Revista de Pós-Graduação em Serviços Social da PUC-Rio “O social em Questão” nº. 13, no primeiro semestre de 2005. “ Em Maio e junho de 1983, as primeiras denuncias sérias são divulgadas na imprensa e comunicada às autoridades públicas. O esquema do sistema de trabalho da fazenda vai, pouco a pouco mostrando a dura realidade. Ela empregava mais ou menos 500 trabalhadores, fora da época da derrubada, momento em que mais de 1.000 trabalhadores são empregados”. 142 Trecho da fala de um trabalhador em uma reportagem do Fantástico- Programa da Rede Globo, www.fantastico.globo.com, acessado em 2/06/2006.
139
Eu vi lá uns dois sofrer, mas, eu vi um rapaz da minha cidade, do meu lugar
sofrer lá nessa fazenda. Ele aguentou uma decepção, ele não apanhou porque
ele fez o que o homem mandou. Ele falou no serviço, lá no cafezal, que a vida
boa é a de cachorro, esse rapaz, porque comia e não fazia nada e vivia gordo. O
puxa saco como tem, chegou lá falou, o fulano falou que vida boa é a vida de
cachorro, porque não trabalha e vive gordo [...] Não tinha essa necessidade dele
falar não, mas chegou lá ele falou, e no meio de quarenta, sessenta homens
ninguém pode falar nada, ai ele falou na hora da janta era na fila, mas ai ele
disse qual foi que falou, e ai o rapaz apontou. Você sai da fila, deita ali, ele
ficou em pé, ele disse é pra deitar, ai ele deitou, o rapaz deitou aquilo pra ele vê
que a vida boa era a nossa, tinha tanto homem lá e a gente não podia falar nada.
Nós íamos falar, o que, pra sofrer também, ele mandar nós deitar também. Que
jagunços tinham muitos jagunços. Quando acabou de nós todos pegar a comida
ele falou com o velho que tratava dos cachorros, coloca a comida lá no cocho,
era um cocho grandão, ele tinha uns trinta cachorros esse homem, só cachorro
de caça, matava vaca só pra dá pros cachorros não era pra gente comer,
ninguém nunca comeu um pedaço de carne, e nem de mateiro, era só pros
cachorros, ele não dava nada de caça pra ninguém, aí mandou: agora você vai
comer junto com os cachorros, e aí ele ia falar o que! Não, aí foi. Com a mão
não, você vai comer com a boca, os cachorros empurravam ele pra lá e ele
comeu bem pouco, mas ficou de quatro pés lá junto com os cachorros143.
Situações como estas são freqüentes no interior das fazendas servindo de exemplo
para os outros peões. A violência sofrida não é só a física, como também simbólica. As imagens
das humilhações são fragmentos de memórias às quais estes trabalhadores, nas entrevistas
constantemente se reportam. Para eles algumas situações como a descrita pelo senhor Raimundo
são inaceitáveis, porque os desonram. A violação dos direitos básicos desses trabalhadores e a
precarização dessas relações leva à degradação humana. Muitos desses trabalhadores quando
saem dessa situação, não mais se reconhecem como homens capazes de construir relações sociais,
143 Entrevista Realizada com R. L. em São José do Xingu/MT, maio de 2008.
140
com base no respeito à pessoa humana. Nas ruas, bares, botecos, são pessoas extremamente
violentas, matam por qualquer motivo. “[...] a pessoa bebia cachaça tinha uma rixa com outra,
quando pensava que não matava, ai qualquer coisa bebia cachaça um com outro aí, se estranhava
pronto, neguim pegava e matava, já vi muito companheiro morto nessa rua”144. A vida para eles
passa a não ter mais valor algum.
Casaldáliga enfatiza que a vida de um peão vale tanto quanto a de um fazendeiro, pois
este vive do que produz com seu trabalho.
A vida de um peão pra nós vale tanto quanto a de um fazendeiro. Mas se um
fazendeiro é assassinado, Deus nos livre, o sertão se cobriria de horror e sairia
nas manchetes de jornal. As providências graves seriam tomadas sem perda de
tempo. Se morre um peão? É sangrado como um animal? Fala-se em
providência? Só se faz uma ou outra vez, pedir uma missa em sufrágio e
desagravo do morto. Mas quem morreu, morreu. E as viúvas e órfãos que se
arranjem. É preciso também que do mesmo modo e com igual horror o país
estremeça sabendo que os peões das companhias e projetos aprovados pela
SUDAM, continuam sendo espancados e assassinados no Mato Grosso e
Amazônia 145.
Casaldáliga em sua luta sempre foi solidário com os peões, nunca deixou de atendê-
los, em qualquer situação que estes trabalhadores enfrentavam. Ajudou-os a fugirem muitas vezes
dos pistoleiros e gatos, escondendo-os em sua própria casa. Sempre se indignou com a violência
para com esses trabalhadores.
Quando esses trabalhadores ficavam doentes eram levados para barracões dentro da
própria fazenda. Em geral tinha um auxiliar de enfermagem que fazia o atendimento médico.
Muitos peões morriam antes mesmo de chegar a esses locais ou quando chegavam nele como
relata o senhor Ismael:
144 Entrevista com I. S. realizada em maio de 2008 em são José do Xingu-MT. 145 Documento arquivo da Prelazia de São Felix do Araguaia – B-8.2.48, p. 02.
141
É o hospital, era assim um barracãozão de palha de bananeira mesmo ai a gente
atava as redes ali quando adoecia, punha o soro ali. Tinha uns que escapava,
muitos morria também porque não sabia da qualidade da doença que estava
tratando. Uma injeção, quando aplicava era poucos que ficava vivo. Tinha
empreiteiro que não, quando começava a adoecer ele tirava pra longe, tirava
naquele tempo pra Porto Nacional. Ai outros não, ai melhora, dava um
remedinho, dava um comprimido ia piorando, quando pensava que não o
camarada morria. 146
As doenças com frequência eram a malária e acidentes com moto-serra. Algumas
vezes na derrubada das árvores os trabalhadores se acidentavam. Como as fazendas estavam
distantes das cidades, os fazendeiros improvisavam “hospitais” dentro da mata mesmo. O que
não atendia nas necessidades básicas dos trabalhadores e muitos morriam, por falta de
atendimento adequado.
4.4. As estratégias de sobrevivência e fugas dos peões
Para sobreviverem no interior da mata os peões desenvolveram estratégias diversas,
que construíram a partir da re-significação dos novos espaços de trabalho. Estas estratégias
individuais ou articuladas coletivamente, influenciaram e interferiram na história da exploração
dos trabalhadores no Araguaia. Essas estratégias apontam dimensões sociais das ações dos
indivíduos nas trajetórias de vida. Estes trabalhadores enfrentaram a violência, viveram incertezas
e realizaram escolhas, explorando as possibilidades de saírem da condição em que se
146 Entrevista com I. S. realizada em maio de 2008 em são José do Xingu-MT
142
encontravam. Mesmo que para sobreviver fosse preciso aliar-se ao gato ou fazendeiro,
“falsificar” documentos para sair do cerco armado.
Fonte: Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia
Esse documento, foi de um trabalhador da fazenda CODEARA que impedido de sair
do local onde trabalhava, encontrou meios para fugir, forjando uma autorização. Ele utilizou o
nome do gato para conseguir passar pela porteira da fazenda, que mantinha jagunços armados
para impedir que os peões saíssem do local de trabalho. Os peões relatam que alguns dos
jagunços também eram analfabetos. “[...] como ele não sabia ler, era só esperar o dia que ele
estava de guarda e entregar o papel que a gente saia. Teve um dia que um companheiro entregou
pro errado, ai ele foi pego” 147.
O senhor Celestino Pereira de Souza nos relata como aconteceu sua fuga de uma
fazenda em que estava trabalhando:
147 Entrevista realizada com E. F. R. em Confresa, setembro de 2005.
143
Eu saí fugido das matas pra não morrer, pros pistoleiros não me matar, porque se
eu amanso, eles me matava. Quando eu ia levava aquele pacote de coisa, sempre
fui largadinho no mundo, mas nunca fiquei sem comer as coisas. Minha feirinha
né. E uns três metros de plástico, porque quando eu chegava no pantanal eu
botava aqueles trem todinho, botava a corda e botava no dente e ia nadando. Aí
um rapazinho chamou nós: - Piauí, vem cá. Era de São Felix, nós éramos
acostumados a brincar. Olha, dessa pista bem aí, lá na frente tem uns 40
quilômetros é 40 quilômetro de mata, só picadãozinho velho de picadeiro e, é daí
sai na Reunidas. Eu disse, vou encarar, topa Raimundo? Raimundo tinha uma
peixeirinha só e eu com um facão. Pode deixar comigo, pode deixar comigo! Nós
vamos se embora. Aí eu peguei aquelas coisas com tanta dó; panela novinha, tudo
[...] lima, facão, tudo, enxada, era uns 60 kg mesmo. O Raimundinho tinha
pouquinha coisa, só umas roupas e uma rede. Aí eu peguei e disse, pois é, falei
pro rapaz, ó você foi muito amigo porque eu ia sair na mata, eu ia cravar na mata,
cortar de onde o avião veio. Olha a idéia, passamos três dias pra sair cá na
Reunidas, no picadão. Eu ia cortar por onde o avião partiu, que largou nós, era ali
que eu ia, pegar a rota, era para sair para São Félix. Ia custar, ia passar era mês.
Aí eu joguei aqueles trem no mato e disse assim, toma conta pra tu rapaz, que me
ensinou aonde é que é. 148
Fugas assim, eram constantes nos locais de derrubada da mata. Muitos trabalhadores
eram capturados pelos gatos e seus capangas, sendo levados de volta para o local de trabalho. Os
depoentes relatam situações análogas ao que aconteceu com o senhor Celestino. Ele consegue
escapar desse cerco, mas retorna para outras fazendas de onde também fugiu. Ele destaca em seu
relato, que “já era largadinho no mundo”, ou seja, não era a primeira vez que fugia de uma
situação assim. Já andava com suas “tralhas”, roupas, comida, rede e ferramentas de trabalho,
pronto para escapar dessas armadilhas.
148 Entrevista com C. P. da S. realizada em julho de 2006 em Confresa.
144
Segundo Guimarães Neto (2001, p. 21), “[...] os grupos sociais desterritorializados
aparecem fundando estratégias de ação frente aos limites socialmente impostos ou aos desmandos
dos grandes proprietários”. Esses peões são portadores de ações que os possibilitam sobreviver e
escapar da violência no interior das fazendas.
4.5. Os peões depois da “libertação”
José Francisco Rezende nasceu em Goiás, morou um período na Ilha do Bananal,
depois se mudou para Canabrava do Norte, trabalhou no Pará, de onde fugiu e fez a denúncia a
Prelazia de São Félix do Araguaia que encaminhou ao Grupo Móvel de Fiscalização na fazenda
Rio Cristalino. Atualmente mora em Canabrava do Norte.
Eu tava pra fora, cheguei ontem aqui, minha mãe de novo cheguei eu sou assim
o que é meu é meu, e o que não é não é, eu sou assim, pode ser um irmão meu se
ele roubar um milhão de reais eu sou assim, igual dizia minha mãe assim, graças
145
a Deus. Minha mãe chorou mais meu avô e, eu com essa agora vou mexer só
com o gadinho deles, eu sou assim. Você viu homem honesto rico?
Os trabalhadores que são “resgatados” pelo Grupo Móvel de Fiscalização na maioria
das vezes não retornam para seu lugar de origem, pois voltar implica em ser considerado um
fracassado. Eles sentem vergonha do que passou e se encontram em precária situação econômica,
social e, sobretudo emocional, como aponta Figueira (2004, p. 292):
O trabalhador, não obtendo sucesso econômico no deslocamento, pela vergonha
do fracasso, pode não mais retornar nem manter contato com os familiares.
Voltar é, no caso, confirmar o insucesso. É desfazer o orgulho da partida, a
prova da coragem no empreendimento de uma viagem ao desconhecido: a
destruição de um sonho.
Os peões, ao relembrarem a sua triste história narram apenas alguns momentos, pois
muitos têm vergonha das humilhações que passaram, não gostam de falar dos momentos “feios” de
sua vida. Essas pessoas percorreram grandes distâncias à procura de um sonho e sobrevivem a todo
tipo de violência. Essas angústias aparecem em muitos relatos, como no descrito abaixo:
O que eu sinto pode passar 100 anos eu não esqueço não, é humilhante é
duro né, é ruim você dizer, eu vou embora e o cara dizer trabalha ou
apanha. E ser ameaçado, você trabalhar com uma arma apontada para
você e uma pessoa dizer que vai te bater se você não trabalhar, não
importa se você está doente149.
Os relatos de José Francisco Rezende são regados de muita emoção e indignação. Sua
experiência de vida é repleta de tensões vividas no espaço de trabalho e familiar, ele reconhece a
sua condição de peão e reclama por seus direitos. As humilhações por que passou estão presentes
constantemente em sua fala durante a entrevista, como também mostra as suas mãos cheias de
149 - entrevista realizada em Canabrava do Norte com o Sr. J. F. R. em Novembro de 2006.
146
cicatrizes do trabalho pesado nas fazendas, e se indigna por não ter recebido o que lhe era de
direito quando trabalhou na fazenda Rio Cristalino no Pará.
A situação dos trabalhadores atualmente mudou um pouco no Araguaia, o que não
significa que melhoraram as condições de trabalho. Por um lado não há mais tantas fazendas com
grandes derrubadas de mata. Portanto, não há mais tantos peões como na década de 1970. Por
outro, estes trabalhadores saem para outros estados à procura de trabalho em fazendas. Sem
qualificação, são presas fáceis para os gatos. A atuação de agentes de fiscalização e as denúncias
feitas pelas organizações como CPT, Sindicatos dos Trabalhadores Rurais e Prelazia de São Félix
do Araguaia, de certa forma tem contribuído para a desarticulação desse sistema de exploração
dos trabalhadores. O senhor Dijalmir ressalta que:
De certa forma mudou pra melhor, mas de certa forma ficou pior pra peonada,
porque teve uma fazenda ai, que peão saiu, fez denúncia da fazenda, essa fazenda
tava com regime de trabalho escravo, aí marcaram o homem que trabalhava na
fazenda, aí marcaram o filho dele também com marca de gado, foi! Aí a coisa
ficou séria, aí esse homem saiu e deu parte pra policia. Aí veio aquelas [...] que
fala, que vem ministério do trabalho, vem policia federal, vem tanta coisa junto.
Ai chegaram na fazenda lá e descobriu mesmo, que tinha o trabalho escravo,
entendeu?
O Governo Federal tem implementado algumas ações para combater o trabalho
escravo contemporâneo. Podemos destacar a ação do Grupo Móvel de Fiscalização, Plano
Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, o cadastro de propriedades onde tenha acontecido
trabalho escravo a “lista suja”, decisão do Supremo Tribunal de Justiça reconhecendo a
competência da Justiça Federal para processar julgar e condenar o crime de trabalho escravo, a
alteração do Artigo 149 do Código Penal e a liberação de Seguro Desemprego para trabalhadores
libertados do trabalho escravo. No Araguaia no ano de 2006, houve algumas ações mais
147
especificas como a sentença do Juiz da Vara do Trabalho de São Félix do Araguaia, condenando
os donos das fazendas São Pedro, em Vila Rica e Destilaria Gameleira em Confresa, a pagarem
indenizações por dano moral. O Programa Balcão de Direitos Humanos ligado à Secretaria
Especial de Direitos Humanos, Coordenado pela Prelazia de São Felix do Araguaia também tem
agido em defesa dos trabalhadores.
No entanto, os trabalhadores depois de “resgatados” das fazendas, possivelmente
irão para outras, pois não possuem qualificação e essas políticas governamentais ainda são
precárias, não atendendo às necessidades reais dos trabalhadores. Como destacou Moraes (2006,
p. 127):
Mas não bastam essas ações. É preciso que haja esforço concentrado e
articulado do estado em todos os Poderes e esferas e, em especial do governo.
[...] É preciso que o Poder Judiciário assuma sua responsabilidade no tocante à
impunidade, fazendo caminhar os processos para que os autores do crime de
trabalho escravo sejam julgados e condenados e punidos.
148
Considerações finais
Neste trabalho, enfocamos a trajetória de vida dos trabalhadores das agropecuárias do
Araguaia, os peões, procurando compreender as relações sociais de produção nas quais eles estão
inseridos.
A pesquisa utilizou um conjunto de fontes, constituído de relatos, depoimentos e
histórias de vidas de trabalhadores de vários estados do país que migraram para Mato Grosso.
Através dessas fontes documentais (relatórios, cartas, bilhetes e entrevistas) foi possível
reconstruir parte da história destes trabalhadores que sofreram diferentes tipos de exploração e
violência no trabalho. As fontes escritas são quase todas do Acervo da Prelazia de São Félix do
Araguaia.
Esta pesquisa, e a leitura de autores de outras áreas do conhecimento, mostraram que,
no campo da história, o estudo sobre o trabalho escravo contemporâneo precisa avançar mais,
produzir novos deslocamentos historiográficos que possibilitem uma maior compreensão desse
fenômeno que ocorre com relativa freqüência e intensidade nas áreas de abertura na fronteira
amazônica.
Trabalhar com as histórias destes trabalhadores, os peões, nos possibilitou mergulhar
em um mundo de violência e exploração. Estes trabalhadores desenvolvem diferentes estratégias
para sobreviver no interior das fazendas, assim como para fugir quando isto é possível. A
pesquisa e as leituras mostraram que esses trabalhadores não podem ser trados apenas como
vítimas. Eles são sujeitos capazes de atitudes que revelam sua inconformidade com as relações
sociais de produção às quais estão submetidos, e a capacidade de reagir mesmo quando parece
149
que não tem possibilidade alguma. Fugir não é apenas uma ação isolada, mas faz parte de um
conjunto de ações e de sujeitos que estão evolvidos na sua concretização.
As nossas análises buscaram evidenciar as novas configurações dos espaços sociais
que vão se formando a partir da década de 1970 no Araguaia. As políticas públicas estimularam e
impulsionaram o processo de (re) ocupação da Amazônia. Esse modelo de (re) ocupação
desconsiderou as especificidades das populações locais, como posseiros, índios e pequenos
agricultores, os quais tinham uma organização baseada no trabalho e organização familiar. As
políticas dos órgãos públicos não favoreceram a ocupação da terra pelos migrantes pobres que
chegavam de diferentes localidades do país. (Souza, 2007).
Com base na pesquisa empírica destacamos a importância de compreender a re-
configuração dos espaços sociais no Araguaia e as novas relações no mundo do trabalho que vão
se constituindo nesse espaço.
Entretanto, foram os relatos orais, colhidos através de entrevistas, que permitiram
uma análise que evidenciou as trajetórias desses trabalhadores. Os relatos explicitaram as
estratégias criadas pelos trabalhadores para sobreviver na mata. Essas espertezas se expressam
nas diferentes formas de fugir do gato, burlar os vigias nas guaritas das fazendas ou mesmo
aproveitar as oportunidades para fugir do confinamento ou aprisionamento.
Esses trabalhadores (os peões) estão em constante deslocamento no território
amazônico. Eles enfrentaram em suas trajetórias diferentes formas de exploração e violência.
Compreender a trajetória desses trabalhadores, migrantes pobres que saíram à procura de
melhores condições de vida nos colocou em contato com um mundo de violência, mas também
de sonhos e esperanças, na maioria das vezes não realizadas, ou irrealizáveis. Porém, essas
pessoas também participaram da construção da história do Araguaia.
150
É importante observar, nos relatos que rememoram a chegada às fazendas, as fugas,
que reforçam a busca pela realização de um sonho. Para alguns o sonho é ter comida em
abundância, ou um trabalho certo com um salário decente. Esses trabalhadores estão sempre à
procura de lugares que lhes ofereçam uma melhoria de vida, de ganhar algum dinheiro para
poderem voltar para a família. Porém, muitos nunca voltam, pois não acumulam nada, como
haviam planejado quando migraram. E voltar pobre, sem dinheiro é vergonhoso, é reconhecer o
fracasso.
Reconstruir a trajetória de vida desses trabalhadores através de suas narrativas nos
permitiu a leitura de uma história, que ainda está por ser escrita, de centenas de mulheres e
homens que transitaram e transitam no Araguaia. Uma história que é marcada pela exploração e
pela violência, na luta pela terra, por condições de trabalho decentes, pela procura de melhoria de
vida, pela conquista da dignidade humana.
151
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Jornais
Alvorada
Boletim informativo da CPT
Boletim informativo da ANAMATRA
O diário de Cuiabá
Vídeos
Aprisionamento por promessas
160
Escravo nem pensar
Correntes
Tabuleiro de cana xadrez de cativeiro
Sites consultados
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www.mte.gov.br
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Arquivos consultados
NDIHR - Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional da UFMT
Arquivo Público de Mato Grosso
Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia
Arquivo da CPT Nacional
Arquivo da CPT Regional Araguaia/Tocantins – Porto Alegre do Norte
Arquivo do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Vila Rica
161
Arquivo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Confresa
Relação dos peões entrevistados
Entrevista 01
Eurípides Florenço Roxo, nascido em 1945, Cristalândia Tocantins. Veio para Santa Terezinha-
MT com sua família em 1969, uma das primeiras fazendas que trabalhou foi a Codeara,
localizada no município de Santa Terezinha . Entrevista Realiza em Confresa, setembro de 2005.
Entrevista 02
Celestino Pereira de Souza, nascido em 1944, Teresina Piauí. Veio para trabalhar nas fazendas de
Mato Grosso em 1968, trabalhou inicialmente na Fazenda Suiá Missú, localizada no Município
de São Félix do Araguaia, depois trabalhou em várias outras fazendas no Araguaia. Entrevista
realizada em Confresa, Julho de 2006.
Entrevista 03
Francisco Rezende de Souza nasceu em 1962, Pium Tocantins, chegou a Canabrava do Norte em
1979. Na década de 1990, foi trabalhar nas fazendas no sul do Pará. Entrevista realizada em
Canabrava do Norte, setembro de 2006.
Entrevista 04
Ismael Silva nasceu em 1950, Guairá São Paulo, mas mudou-se ainda criança para Correntina na
Bahia. Veio para Mato Grosso em 1972 e foi trabalhar em fazendas em São José do Xingu.
Entrevista realizada em São José do Xingu, maio de 2008.
Entrevista 05
Raimundo Lustosa nasceu em 1940, no Piauí chegou a Mato Grosso em 1970 para trabalhar em
fazendas em São José do Xingu. Entrevista realizada em São José do Xingu, maio de 2008
Entrevista 06
Dijalmir da Silva Bernades nasceu em 1959, Campinopolis Minas Gerais chegou a Mato Grosso
em 1975 para trabalhar em fazendas em São José do Xingu. Entrevista realizada em São José do
Xingu, maio de 2008.
162
Anexo 01
Projetos de agropecuárias aprovados pela SUDAM no Araguaia Mato-grossense
Nome da Fazenda Área aproximada – m hectares
Incentivos Ficais –Cr$
Agropecuária Suiá-Missu 695.843 7.878,000 Agropecuária do Araguaia – AGROPASA 48.165 7.122,208 Agropecuária São Francisco do Xingu 21.000 3.921,364 Agropecuária Guanabara 25.800 4.398,889 Agropecuária São José 19.915 4.960,318 Agropecuária santa Rosa 19.360 3.968,033 Agro-Pastoril Nova Patrocínio (fazenda Portal Da Amazônia)
26.817 3.083, 467
Agropecuária Tapirapé 27.614 3.109,694 Agropecuária Foltran 13.741 3.309,720 Agropecuária Três Maria 20.000 3.505.768 Agropecuária Duas Âncoras 23.005 4.191,575 Agropecuária 7 se setembro Ltda 18.582 2.025,620 Agropecuária Médio Araguaia – AGROPEMA 11.370 4.288,877 Agropecuária Alvorada Mato Grosso – APEME 29.703 4.332,496 Agropecuária Santa Silvia 35.574 3.028,000 Agropecuária Califórnia Comércio e Industria AGROINSA
29.831 3.142.165
Agropecuária Duas Pontas ------- 812,719 Agropecuária Nova Amazônica – FRENOVA ------- 4.872,318 Agropecuária Cocal ------- 4.235,909 Agropecuária Tamakavy 24.999 5.144,623 Agropecuária Roncador 24.251 5.369,188 Agropecuária Colorado 5.413 1.526,140 Agropecuária São João da Liberdade ------- 6.213,140 Agropecuária Rio Manso ----- 2.307,809 Agropecuária Tatuibi 19.936 5.973,970 Agropecuária Campo Verde 64.819 6.565,129 Agropecuária Bela Vista 36.125 4.390,924 Agropecuária Remanso Açu ------- 2.989,015 Buritizal Agropecuária 30.621 3.939,638 Cia de desenvolvimento do Araguaia – CODEARA 129.497 16.066,900 Colonização e Representação do Brasil COREBRASA
52.272 3.130,000
Cia Agro-Pastoril Sul da Amazônia 24.200 4.288,877 Cia desenvolvimento Agropecuário de Mato Grosso
26.824 2.342.725
Cuaruá 9.455 1.432,528 Cia Agrícola e Pastoril São Judas Tadeu ------ 5.955, 380
163
Companhia Agropecuária Sete Barras 19.360 6.320.477 Cia. de Desenvolvimento Garapu – CODESGA 9.000 3.207.265 Cia Agro-Pastoril Aruanã - CIAGRA ------ 5.975, 784 Colonizadora e Representações Brasileiras COLBRASA
24.969 6.774,833
Empresa Agropecuária Ema 8.952 1.514,838 Elagro Pecuária 29.466 6.459,426 Fazenda Tanguru 35.562 2.149.072 Fazenda Nova Viena 29.503 4.718.377 Fazenda Nova Quênia -------- 2.115,148 Fazenda Associadas do Araguaia – FAASA 10.000 1.413,188 Independência Agropecuária ------- 1.460,546 Joaçaba Agropecuária 9.744 1.417,255 Noideri Agropecuária ------- 2.66,771 Nativa Agropecuária ------- 1.593.654 Norte Pastoril Mato-Grossense ------- 5.881,454 Paubrelândia Agro-Pastoril do Brasil Central ------ 1.913.721 Pastoral Agropecuária Couto Magalhães 50.176 2.451,662 Porto Velho Agropecuária 49.994 6.193,496 Rancho Santo Antônio 21.780 4.788,884 Rio Fantoura Agropecuária 14.864 3.754,920 Santa Luiza Agropecuária 4.930 1.959,037 Sociedade Agropecuária Vale do Araguaia – SAPEVA
72.567 6.208,686
Sociedades Agropecuária Brasil Central 31.110 3.729,142 Tabaju Agropecuária 19.931 3.019,474 Tapiraguaia Agrícola e Pecuária 21.923 2.519,404 Tracajá Agropecuária 29.880 3.798,133 Urupiranga Agropecuária 50. 468 6.573,321 Total 2.166.189 261.647,972 Fonte: SUDAM, In. SOARES, 2004.