dissertação de mestrado (adriana zierer)

204
ADRIANA MARIA DE SOUZA ZIERER “O MODELO ARTURIANO EM PORTUGAL — A Imagem do Rei-Guerreiro na Construção Cronística de Sancho II e Afonso III” Dissertação apresentada ao Curso de pós- graduação em História da Universidade Federal Fluminense, como requisito para obtenção do Grau de Mestre em História Social. ORIENTADOR: Prof.ª Dr.ª VÂNIA LEITE FRÓES (UFF) Niterói - RJ 1999 Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Upload: albertososa2014

Post on 08-Sep-2015

10 views

Category:

Documents


4 download

DESCRIPTION

ii

TRANSCRIPT

  • ADRIANA MARIA DE SOUZA ZIERER

    O MODELO ARTURIANO EM PORTUGAL

    A Imagem do Rei-Guerreiro na Construo Cronstica de Sancho II e Afonso III

    Dissertao apresentada ao Curso de ps-

    graduao em Histria da Universidade Federal

    Fluminense, como requisito para obteno do

    Grau de Mestre em Histria Social.

    ORIENTADOR: Prof. Dr. VNIA LEITE FRES (UFF)

    Niteri - RJ

    1999

    Generated by Foxit PDF Creator Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

  • 2

    ADRIANA MARIA DE SOUZA ZIERER

    O MODELO ARTURIANO EM PORTUGAL

    A Imagem do Rei-Guerreiro na Construo Cronstica de Sancho II e Afonso III

    Dissertao apresentada ao Curso de ps-

    graduao em Histria da Universidade

    Federal Fluminense, como requisito para

    obteno do Grau de Mestre em Histria

    Social.

    Aprovada em: _________________

    BANCA EXAMINADORA

    ________________________________________________________________

    Prof.a Dr.a Vnia Leite Fres (orientadora UFF)

    _________________________________________________________________

    Prof. Dr. Francisco Jos Silva Gomes (Histria UFRJ)

    _________________________________________________________________

    Profa. Dra. Lygia Vianna Peres (Letras UFF)

    Niteri - RJ

    Generated by Foxit PDF Creator Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

  • 3

    DEDICATRIA

    A Mariano e Gawaine, os cavaleiros

    que fizeram o meu sonho tornar-se

    realidade.

    Generated by Foxit PDF Creator Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

  • 4

    AGRADECIMENTOS

    Esta dissertao est ligada aos trabalhos do Grupo de Estudos Medievais da UFF,

    hoje Laboratrio Scriptorium, coordenado pela historiadora Vnia Leite Fres. O

    direcionamento da pesquisa est ligado s questes do grupo acerca da construo da

    imagem do rei na Pennsula ibrica.

    Foi fundamental para o nosso trabalho a troca de experincias, discusses e

    sugestes com os colegas Ricardo da Costa, Roberto Fabri Ferreira, Paulo Accorsi Jr., Jos

    dAssuno Barros e Mnica Farias Fernandez. Agradeo tambm a Francisco Jos Vieira

    por ter me emprestado material sobre o ciclo arturiano e por ter traduzido o Rsum desta

    dissertao.

    A minha amiga desde os tempos da graduao, Laurinda Rosa Maciel, por ter sido,

    alm do meu marido, a pessoa que mais me estimulou a fazer o curso.

    A Ana Luiza Marques pelas discusses acerca da imagem de Sancho II, que foram

    muito proveitosas.

    A minha orientadora, Dra. Vnia Leite Fres, pelo estmulo e incentivo, que me

    auxiliaram, graas ao convvio com o Scriptorium, a alcanar um maior amadurecimento

    profissional.

    Ao Professor Dr. Francisco Jos Gomes, que me deu sugestes bibliogrficas

    importantes na poca da defesa do projeto, como o uso de Jean Markale e Herv Martin.

    A Professora Dra. Lygia Vianna Peres pela sua extrema gentileza ao trazer da

    Espanha uma das fontes arturianas ibricas utilizadas neste trabalho, o Libro de las

    Generaciones, que no tnhamos conseguido ter acesso no Brasil.

    Aos amigos Ricardo e Sueila pelo fornecimento de fontes arturianas e gravuras

    obtidas via INTERNET e pelo auxlio na confeco dos quadros.

    Ao meu marido Mariano e ao meu filho Gawaine pelo amor, participao e

    companheirismo demonstrados durante toda a realizao deste trabalho.

    Generated by Foxit PDF Creator Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

  • 5

    SUMRIO

    Lista de Quadros ..................................................................................... 09

    Lista de Abreviaes ............................................................................... 10

    Lista de Ilustraes ................................................................................. 11

    Resumo .................................................................................................. 12

    Abstract .................................................................................................. 13

    Rsum ................................................................................................... 14

    Introduo .............................................................................................. 16

    Parte I: Artur, o Rei-Guerreiro: Um Paradigma Medieval

    Captulo I: Mito, Narrativa e Oralidade ................................................. 26

    Captulo II: As Fontes Arturianas .......................................................... 45

    II.1. Fontes latinas ............................................................... 49

    II.1.1. Geoffroy de Monmouth .................................... 49

    II.1.2. So Gildas ......................................................... 53

    II.1.3. Beda .................................................................. 54

    II.1.4. Nennius ............................................................. 54

    II.1.5. William de Malmesbury ..................................... 57

    II.2. Fontes clticas .............................................................. 58

    II.2.1. Kulwch e Olwen (annimo) ................................ 58

    II.2.2. Gododdin, de Aneirin ........................................ 61

    II.2.3. Preiddieu Annwfn (annimo) ............................. 62

    II.3. Fontes literrias desde o sculo XII .............................. 63

    II.3.1. Roman de Brut (Robert Wace) .......................... 63

    Generated by Foxit PDF Creator Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

  • 6

    II.3.2. Marie de France ................................................ 64

    II.3.3. Chrtien de Troyes ............................................ 65

    II.3.4. Robert de Boron ............................................... 66

    II..3.5. O Ciclo da Vulgata ou O Ciclo Gautier Map ... 69

    II.4. A Matria da Bretanha em Portugal .............................. 73

    II.4.1. Afonso III e o Ciclo Arturiano .......................... 74

    II.4.2. O Ciclo da Ps-Vulgata em Portugal ................ 76

    II.4.3. A Matria da Bretanha no Nobilirio do

    Conde D. Pedro ................................................. 78

    II.4.4. A Matria da Bretanha na Crnica Geral

    de Espanha de 1344 ........................................ 81

    Captulo III: O Rei Ideal na Idade Mdia ................................................. 83

    III.1. Artur como Rei na Historia Regum Britanniae ............ 97

    Parte II: O Modelo Arturiano em Portugal

    Captulo IV: As Descries Portuguesas do Rei Artur ............................. 108

    IV.1. O poder rgio na Pennsula Ibrica ............................... 108

    IV.2. O poder rgio em Portugal ............................................ 113

    IV.3. Modelos rgios em Portugal .......................................... 116

    IV.4. A Demanda do Santo Graal ........................................ 119

    IV.4.1. O Maravilhoso: o Graal .................................... 119

    IV.4.2. Personagens em A Demanda do Santo Graal .... 123

    IV.4.3. Artur em A Demanda do Santo Graal ................ 126

    IV.4.4. Artur no Livro de Linhagens do Conde

    D. Pedro e no Libro de las Generaciones .......... 137

    Generated by Foxit PDF Creator Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

  • 7

    IV.4.4.1. Anlise da narrativa ............................. 137

    Captulo V: Sancho II nas Crnicas dos sculos XIV-XVI ....................... 143

    V.1. A importncia do atributo guerreiro nas Crnicas

    Portuguesas ................................................................... 143

    V.2. Os Monarcas nas Crnicas Portuguesas .......................... 148

    V.3. O governo de Sancho II em linhas gerais ....................... 150

    V.3.1. Os atributos negativos de Sancho II nas Crnicas 152

    V.4. Sancho II na Crnica Geral de Espanha de 1344 .......... 154

    V.5. Sancho II nas Crnicas dos Sete Primeiros Reis de

    Portugal ou Crnica de 1419 ........................................ 155

    V.6. Sancho II nas Crnicas de Rui de Pina ........................... 156

    Captulo VI: Afonso III e o modelo arturiano ......................................... 159

    VI.1. Os atributos arturianos e os atributos positivos de

    Afonso III .................................................................. 163

    VI.2. Afonso III e o modelo arturiano: as Crnicas ............. 169

    Captulo VII: O contraponto das imagens: Sancho II, Afonso III e o

    modelo arturiano ................................................................... 175

    VII.1. Sancho II na historiografia .......................................... 176

    VII.2. Afonso III na historiografia ......................................... 181

    VII.3. Atributos positivos de Sancho II .................................. 182

    VII.3.1. O rei-guerreiro .................................................. 182

    VII.3.2. A fidelidade vasslica ....................................... 187

    VII.3.3. O rei-justo ........................................................ 189

    VII.4. A comparao das imagens de Sancho II e Afonso III . 190

    Concluso .............................................................................................. 192

    Bibliografia ............................................................................................. 197

    Fontes impressas ..................................................................................... 197

    Generated by Foxit PDF Creator Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

  • 8

    Obras citadas .......................................................................................... 199

    Obras consultadas .................................................................................. 206

    Cronologia .............................................................................................. 209

    Generated by Foxit PDF Creator Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

  • 9

    LISTA DE QUADROS

    Quadro 1: Os Bons Reis Bblicos no Nobilirio do Conde D. Pedro ...... 117

    Quadro 2: Os Maus Reis Bblicos no Nobilirio do Conde D. Pedro ...... 118

    Quadro 3: Anlise do Rei Artur nas Narrativas Medievais Ibricas ......... 138

    Quadro 4: Atributos negativos de Sancho II ............................................ 153

    Quadro 5: Atributos de Arthur na Historia Regum Britanniae ................ 165

    Quadro 6: Atributos positivos de Afonso III ........................................... 167

    Generated by Foxit PDF Creator Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

  • 10

    LISTA DE ABREVIAES

    CBN Cancioneiro da Biblioteca Nacional

    CV Cancioneiro da Vaticana

    C. 7 Reis Crnica dos Sete Reis de Portugal

    C. de 1344 Crnica Geral de Espanha de 1344

    C. de Rui de Pina Crnicas de Rui de Pina

    DSG A Demanda do Santo Graal

    HRB Historia Regum Britaniae

    LLV Livro de Linhagens do Conde D. Pedro

    ML Crnicas de Sancho II e Afonso III de Antnio Brando

    (Monarquia Lusitana)

    Generated by Foxit PDF Creator Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

  • 11

    LISTA DE ILUSTRAES

    Mapa da invaso saxnica na Bretanha (sc. V-VI). In: TROYES, Chrtien de.

    Romances da Tvola Redonda. So Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 293 .....................48

    Robert de Boron, LEstoire du Graal [and] Merlin [and] Walter Map,

    Lancelot. Manuscript, French Flanders, ca.1280. Endereo na INTERNET:

    http://www.ritmanlibrary.nl/treasures-077.html .......................................................68

    Amsterdam, Biblioteca Philosophica Hermetica MS 1, ii, f. 140, Lancelot-Graal,

    The First Kiss. Copyright Alison Stones. Endereo na INTERNET:

    http://rocket-red.cis.pitt.edu/~medart/homepage/arthur.html ..................................72

    Rei Artur. Escultura alem do sculo XIII. Germanisches Nationalmuseum,

    Nuremberg. In: DOHERTY, Paul C. Rei Artur.So Paulo: Editora Nova

    Cultural, 1987, p. 02 ........................................................................................................96

    O comeo da Busca, na qual somente trs cavaleiros tiveram sucesso:

    o Santo Graal aparece em uma viso frente da Companhia de Artur.

    MS. Fr. 112 f. 5. c. 1470. BN; Les Chroniques de Hainaut, MS. 9243 f.

    45, 1468. BR. In: JENKINS, Elizabeth. Os Mistrios do Rei Artur.

    So Paulo: Companhia Melhoramentos, 1994, p. 96 ....................................................122

    Lancelote relata suas aventuras a Artur e Guinevere num banquete, em Whitsuntide.

    MS. Egerton 3028, f. 51, sc. XIII, BL; MS Royal f. 14 EIII 89. Frana c. 1316. BL.

    In: JENKINS, Elizabeth. Os Mistrios do Rei Artur. So Paulo: Companhia

    Melhoramentos, 1994, p. 49 ..........................................................................................136

    Mapa: Portugal em 1238 (aps as conquistas de Sancho II). In: PERES, Damio e

    CERDEIRA, Eleutrio (dir.). Histria de Portugal. Edio Monumental. Lisboa:

    Portucalense Editora, 1929, v. I, p. 227 .........................................................................186

    Generated by Foxit PDF Creator Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

  • 12

    RESUMO

    Estudo dos relatos cronsticos dos reis Sancho II e Afonso III, de Portugal e

    sua adequao a elementos da figura de Artur como rei, de acordo com a

    Historia Regum Britanniae, de Geoffroy de Monmouth e outras narrativas. A

    construo da imagem de Artur como governante ideal tem como

    caracterstica principal a imagem do rei-guerreiro. Graas a este atributo

    derivam todos os outros elementos do modelo arturiano: a prosperidade do

    reino devido paz prolongada, a formao de uma corte com cavaleiros

    valorosos, a liberalidade exercida pelo rei e sua capacidade de julgar bem

    auxiliado pela corte. Em Portugal, a guerra esteve ligada aos monarcas e

    construo do sentimento de nacionalidade pela oposio ao Outro os

    mouros, e na afirmao de independncia frente a Castela. Percebemos nas

    crnicas portuguesas do sculo XIV ao XVI que a imagem de Afonso III

    insere-se totalmente no modelo arturiano, associando-o a elementos

    guerreiros, ao contrrio da imagem do seu antecessor, Sancho II. Este

    apresentado de forma negativa como forma de justificar a sua deposio e

    legitimar Afonso III no poder. No entanto, a imagem de Sancho II tambm

    est associada ao modelo arturiano devido ao blica exercida na

    Reconquista, como apontam o Toledano e a Monarquia Lusitana (sculos

    XIII e XVII, respectivamente). Houve uma nova construo da figura de

    Sancho II empreendida pelo novo ramo da dinastia de Borgonha que foi

    cristalizada pela Dinastia de Avis com o intuito de beneficiar os dirigentes do

    poder.

    Generated by Foxit PDF Creator Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

  • 13

    ABSTRACT

    Its a study of the chronisticle image of the kings Sancho II and Afonso III,

    of Portugal, and their adequation to elements of Arthurs figure as a king,

    according to Historia Regum Britanniae, of Geoffroy de Monmouth, and

    other narratives. The construction of Arthurs image as an ideal governant

    has as the main characteristic the image of the warrior king. Thanks to this

    attribute all of the other elements of the arthurian model proceeds: the

    kingdoms prosperity because of the prolonged peace, the formation of one

    court with valuable knights, the liberality performed by the king and his

    capacity to judge well aided by his courtship. In Portugal, war has been

    linked to kings and to the construction of the nationality feeling by the

    opposition to the Other the moors, and by the affirmation of the

    independence towards Castile. On perceive in the portuguese chronicles from

    XIV to XVI that the image of Afonso III is completely inserted in the

    arthurian model, his associating with warrior elements in opposition of the

    image of his antecessor, Sancho II. This one is presented in a negative way

    by means of justification of his deposition and to legitimate Afonso III in the

    political power. However, Sancho IIs image is also associated to the

    arthurian model owing to the belic action performed in the Reconquest, such

    as pointed in the Toledano and the Lusitan Monarchie (centuries XIII and

    XVII, respectively). There had been a new construction of Sancho IIs figure

    engaged by the new branch of Borgonhas Dynasty that has been crystallized

    by de Avis Dynasty with the purpose of doing good to the dirigents of the

    power.

    Generated by Foxit PDF Creator Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

  • 14

    RSUM

    tude des chroniques sur les rois Sanche II et Alphonse III, de Portugal, et

    spm adquation des lments de la figure dArthur en tant que roi, daprs

    lHistoria Regum Britanniae, de Geoffroy de Monmouth et dautres textes.

    La construction de limage dArthur comme souverain idal a comme

    caractristique principale limage du roi gurrier. Grace cet atribut en

    drivent tous les autres lments du modle arthurien: lssort du royaume d

    la paix prolonge, la formation dune cour avec des chevaliers valeureux, la

    libralit exerce par le roi et sa capacit de bien juger avec laide de la cour.

    Au Portugal, la guerre a t lie aux monarques et la construction du

    sentiment de mationalit en opposition lautre les maures, et

    laffirmation dindpndance face Castille. On apperot aux chroniques

    portuguaises du XIV et XVIme sicles que limage dAlphonse III

    sapproche du modle arthurien, en guerrier, au contraire de limage du roi

    davant, Sanche II. Celui est dqualifi aux chroniques pour justifier sa

    dchance et pour lgitimer Alphonse III au pouvoir. Nanmoins, limage de

    Sanche II est associe au modle arthurien elle aussi dans son action exerce

    la Reconquista, comme le montrent le Toledano et la Monarquia Lusitana

    (XIII et XVIIme sicles). Il a eu une nouvelle construction de la figure de

    Sanche II faite par la nouvelle branche de la dynastie de Bourgogne que a t

    fortifi par la dynastie dAvis pour bnficier les dirigeants du pouvoir.

    Generated by Foxit PDF Creator Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

  • 15

    (...) o historiador no um juiz. (...) E a histria no

    julgar, mas compreender e fazer compreender1.

    Lucien Febvre

    1- FEBRE, Lucien. Combates pela Histria. Lisboa: Editorial Presena, 1989, p. 111.

    Generated by Foxit PDF Creator Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

  • 16

    INTRODUO

    A figura de Artur como rei foi sendo construda do sculo VI ao sculo XII quando

    o mito (at ento expresso de resistncia dos bretes contra os invasores saxes) foi relido

    pelos novos senhores da Bretanha, os normandos, que encomendaram uma histria no qual

    Artur era apresentado como modelo de rei cristo e ancestral dos novos dominadores. O

    mito arturiano tornou-se a partir de ento um modelo de conduta rgia em toda a Europa

    Ocidental.

    O objetivo da nossa pesquisa mostrar a influncia do mito arturiano como

    modelo de conduta rgia em Portugal. Recortamos para isso a imagem de dois monarcas

    do sculo XIII, Sancho II e Afonso III, analisando-os a partir dos relatos cronsticos que

    vo desta poca ao sculo XVII.

    Atravs da obra do clrigo Geoffroy de Monmouth, a Historia Regum Britanniae

    (1135-1138) construiu-se um modelo de governante ideal com os seguintes atributos:

    Artur um excelente guerreiro, acabando por atrair para sua corte nobres valorosos das

    mais diversas regies, destaca-se por sua liberalidade, consegue manter a paz e a

    prosperidade no reino por um longo perodo e tem a habilidade de julgar bem, auxiliado

    por seus pares. Essa imagem foi ampliada e difundida em vrias obras por toda a Baixa

    Idade Mdia, sendo transmitida pelos recitadores e jograis.

    O modelo arturiano foi incorporado e utilizado em Portugal na construo da

    imagem cronstica dos reis portugueses. O atributo do rei-guerreiro, principal qualificativo

    do rei Artur, era muito caro aos reis ibricos devido Reconquista. Graas sua

    invencibilidade guerreira, Artur conseguiu formar uma corte-modelo e garantir a

    prosperidade do seu reino. Quanto a Portugal especificamente, era a guerra que fazia o rei

    mais poderoso que os outros senhores. Graas a ela, os portugueses puderam iniciar o

    processo da construo da sua nacionalidade atravs da idia de ser diferente do outro

    os mouros, e de ser uma nao diversa das demais na Cristandade, afirmando sua condio

    de reino independente frente a Castela.

    O motivo de termos escolhido analisar a imagem dos monarcas Sancho II e Afonso

    III no foi casual. Por volta de meados do sculo XIII, o mito arturiano, que j circulava h

    muito tempo oralmente, chegou a Portugal por escrito atravs da traduo do romance de

    cavalaria A Demanda do Santo Graal. Mais tarde, aproximadamente em 1270 outra fonte

    arturiana circulava na Pennsula Ibrica, o Libro de las Generaciones, um relato que

    Generated by Foxit PDF Creator Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

  • 17

    continha a genealogia dos reis bretes, sendo incorporado no sculo XIV ao Livro de

    Linhagens do Conde D. Pedro.

    Atribui-se ao rei Afonso III papel de relevncia na publicao de A Demanda do

    Santo Graal em Portugal devido ao longo perodo que o rei passara na Frana, o que o teria

    aproximado da literatura corts, provavelmente contribuindo como forma de propaganda

    da imagem deste rei.

    impossvel analisar a imagem de Afonso III nos relatos cronsticos sem compar-

    la a de seu antecessor e irmo, Sancho II. Por no ter conseguido conter a turbulncia dos

    nobres, perodo conhecido como a Crise de 1245, Sancho II foi deposto pelo papa, que

    nomeou Afonso III, ento conde de Bolonha, como regedor do reino.

    interessante notar que a imagem que se perpetuou nos relatos cronsticos do

    sculo XIV ao sculo XVI a de Afonso III totalmente inserido no modelo arturiano ao

    passo que a Sancho II foi reservado o papel de fraco e sem nenhum atributo guerreiro. Esse

    fato est ligado ao interesse na produo de memria, buscando legitimar o novo ramo da

    Dinastia de Borgonha iniciado por Afonso III e justificando a deposio de Sancho II,

    projeto que foi iniciado pelo Bolonhs e cristalizado pela Dinastia de Avis.

    No entanto atravs de uma anlise detalhada das crnicas, podemos perceber que h

    dois momentos na construo da imagem de Sancho II. Num primeiro momento, durante o

    seu governo, a memria produzida atribui a ele feitos guerreiros, principalmente atravs da

    ao das Ordens Militares na conquista de Serpa, Juromenha e outras localidades,

    mostrando um importante papel exercido pela atividade de Reconquista no seu governo.

    Essa memria ficou contida no Toledano (1243) e foi conservada tambm em outras fontes

    como a Primeira Crnica General de Espaa, de autoria atribuda ao monarca castelhano

    Afonso X.

    Aps a deposio, pode-se fazer um corte e atribuir a Sancho uma nova imagem: o

    rei fraco incapaz de controlar a nobreza em cujo reinado no havia ocorrido nenhuma

    atividade guerreira. Esta a imagem predominante na Crnica Geral de Espanha de 1344,

    Crnica dos Sete Primeiros Reis de Portugal e nas Crnicas de Rui de Pina. Somente no

    sculo XVII numa obra destinada a engrandecer os monarcas portugueses, a Monarquia

    Lusitana, que Frei Antnio Brando buscou reconstruir a imagem de Sancho II de acordo

    com o relato do Toledano.

    Quanto imagem de Afonso III apresentada a de um rei sem defeitos, que

    prosseguiu e finalizou a Reconquista, conseguindo uma srie de vantagens territoriais para

    Generated by Foxit PDF Creator Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

  • 18

    Portugal, como a posse do Algarve, atravs de hbil poltica diplomtica. Mais da metade

    do relato de suas crnicas trata justamente de mostrar a ao guerreira do rei em conjunto

    com a Ordem de Santiago na conquista do Algarve. As crnicas, com exceo da

    Monarquia Lusitana, omitem os problemas de Afonso III com o clero, que levaram sua

    excomunho no fim de seu governo e louvam atributos de monarca perfeito como justia e

    liberalidade.

    Analisaremos alm das crnicas as obras arturianas em que o papel de Artur como

    rei central, como a Historia Regum Britanniae, e tambm as fontes arturianas que

    circularam em Portugal desde meados do sculo XIII: o romance A Demanda do Santo

    Graal, o relato genealgico breto do Libro de las Generaciones e o Nobilirio do Conde

    D. Pedro.

    curioso notar que as imagens de Sancho II e Afonso III no podem ser vistas

    isoladamente e que em ambas podemos ver traos do modelo arturiano. Se Afonso III um

    exemplo de imagem de rei ideal, Sancho II tambm foi visto como guerreiro em algumas

    fontes. Alm disso, h nos relatos sobre a deposio a conservao de estrias que falam

    de cavaleiros fiis ao rei, que se negaram a trair o compromisso de fidelidade vasslica ao

    rei deposto, mesmo ameaados de excomunho. A conservao destes relatos e de cantigas

    de escrnio nos cancioneiros demonstra o interesse da monarquia em criticar nobres que

    agissem contra o poder central. Ao mesmo tempo permite inserir Sancho II no modelo

    arturiano, pois se os nobres foram fiis ao monarca era porque este era considerado um

    governante que exercia corretamente as funes designadas por Deus.

    *

    A utilizao do modelo arturiano eficaz porque se prende ao imaginrio cristo e

    a um maravilhoso de cunho folclrico, que foi gradativamente utilizado para dar suporte

    aos elementos dominantes da sociedade, os oratores e bellatores. O maravilhoso est

    relacionado a tudo o que prodigioso e sobrenatural, conectando-se a trs termos na Idade

    Mdia: o mirabilis, termo medieval que designava o maravilhoso; o magicus, isto , o

    sobrenatural malfico e o miraculosus ou maravilhoso cristo, que pertencia ao milagre2.

    No entanto, a ligao poder/imaginrio transcende a este aspecto da questo.

    Lembramos aqui Nieto Soria3, que aponta para a necessidade de inserir nas questes da

    2- LE GOFF, Jacques. O Maravilhoso. In: O Imaginrio Medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1994, p. 49; MARTIN, HEV. Mentalits Medivales XI-XV sicle. Paris: Nouvelle Clio/PUF, 1996, p. 176. 3- NIETO SORIA, Jos Manuel. Fundamentos Ideolgicos del Poder Real en Castilla (siglos XIII-

    Generated by Foxit PDF Creator Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

  • 19

    produo da imagem rgia o problema da ideologia, tema polmico no s para o

    historiador, como para todos os estudiosos das cincias humanas.

    Atualmente alguns autores como Michel Vovelle4 e Herv Martin5 procuram dar

    conta do conceito de ideologia, associando-o ao de mentalidade.

    Do mesmo modo, Georges Duby reafirma essa associao, endossando a concepo

    althusseriana de ideologia, entendida como: um sistema de representaes, mitos, idias

    ou conceitos dotado de uma existncia e de um papel histrico no seio de uma sociedade6.

    Para Duby, as ideologias apresentam quatro caractersticas bsicas: so

    globalizantes, deformantes, concorrentes e estabilizadoras. Globalizantes por darem uma

    viso de conjunto da sociedade, de seu passado, presente e futuro, contendo uma certa

    viso de mundo. Deformantes por distorcerem a realidade, concorrentes, porque existem

    vrios sistemas de representao numa sociedade. Por fim, so estabilizadoras por

    pretenderem preservar os privilgios de determinado grupo social. As ideologias tambm

    so conservadoras por tentarem desencorajar as mudanas e garantir as vantagens de quem

    detm o poder7.

    As ideologias, assim como os mitos, baseiam-se num sistema de valores que no

    deve mudar, pretendendo justificar determinados comportamentos8.

    Herv Martin ao tratar a mentalidade como ideologia, usa a seguinte terminologia9:

    ID 0: designa a ideologia em geral, a funo de representao do mundo, to

    consubstancial sociedade como a funo de produo e a funo poltica de

    organizao.

    ID 1: se aplica no mundo cultural existente, ao discurso social total, repartido em

    diferentes setores.

    ID 2: relacionada s ideologias regionais ou setoriais ligadas a aparelhos precisos dotados

    cada um de coerncia e espao prprios.

    XVI). Madrid: Eudema, 1988. 4- VOVELLE, Michel. Ideologias e Mentalidades. So Paulo: Brasiliense, 1991. 5- MARTIN, HEV. Mentalits Medivales XI-XV sicle. Paris: Nouvelle Clio/PUF, 1996. 6- DUBY, Georges. Histria Social e Ideologias das Sociedades. In: LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre. Histria: Novos Problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976, p. 132. 7- Ibid., p. 132/133. 8- NIETO SORIA, Jos Manuel. Fundamentos Ideolgicos del Poder Real en Castilla (siglos XIII-XVI). Madrid: Eudema, 1988, p. 44/45. 9- O autor utiliza esquema baseado na obra de R. Fossaert (Les Structures Idologiques).

    Generated by Foxit PDF Creator Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

  • 20

    Na Idade Mdia, os aparelhos ideolgicos, Igreja e Estado procuraram despossuir

    as redes tradicionais de pensamento, a famlia e a comunidade alde, impondo a sua viso

    de mundo sem nunca conseguir totalmente10. O poder foi sacralizado, adotando elementos

    das representaes tradicionais atravs da unio entre o poder poltico e os representantes

    do campo religioso. Os oratores e bellatores se apropriaram das tradies da comunidade,

    visando o domnio sobre toda a sociedade. A Igreja detinha fora para mudar a cultura, por

    fixar por escrito novos padres de conduta.

    A figura de Artur foi relida pelos clrigos. Eles o transformaram de rei brbaro

    num dos modelos de monarca medieval, que preservava a idia de uma sociedade dividida

    em trs funes. J desde o relato de a Historia Regum Britanniae aparece muito

    claramente a imagem da nobreza como bloco coeso junto ao rei Artur e acima dos outros

    grupos sociais, como os laboratores. Alm disso, a figura construda sobre Artur a de um

    rei modelar, cristo, fiel Igreja, que adota uma postura de empreendedor de cruzada

    contra os pagos. Muito diferente era esta concepo da original, formulada pelos bretes,

    na qual Artur era um rei-guerreiro, um smbolo de resistncia contra os invasores da

    Bretanha no sculo VI. Portanto, uma ideologia regional, a dos bretes, foi apropriada e

    difundida pela Europa Ocidental com o claro objetivo de fortalecer a monarquia, a nobreza

    e o clero.

    No nosso trabalho tambm podemos ver a ideologia aplicada aos interesses de um

    novo grupo que atinge o poder e visa a sua legitimao. A construo da imagem de

    Sancho II como fraco e desqualificado para ser rei atendia aos interesses do novo ramo da

    Dinastia de Borgonha, iniciado com Afonso III11. Este rei ou seu descendente, Dom Dinis

    mandou confeccionar crnicas que mostravam apenas dados negativos sobre o antecessor,

    o que desmentido por imagens anteriores (o Toledano) e muito posteriores (a Monarquia

    Lusitana). Seja como for, esta imagem ideolgica se prolongou com o advento da Dinastia

    de Avis, com o intuito de consolidar os novos dirigentes do poder.

    *

    Na nossa pesquisa, entendemos a representao do rei Artur como um mito. Assim,

    o captulo I trata da discusso do conceito de mito e da relao entre mito e narrativa, pois

    MARTIN, Hrve. Mentalits Mdivales XI-XV sicles. Paris: PUF, 1996, p. 10. 10- Ibid., p. 15. 11- As primeiras crnicas que conhecemos que fornecem uma imagem negativa de Sancho II foram publicadas no sculo XIV, podendo ter sido confeccionadas na poca do governo de D. Dinis (1279-1325). So elas: IV Crnica de Santa Cruz de Coimbra (parte da Crnica de Portugal e Castela, de 1342) e Crnica de 1344, atribuda ao Conde D. Pedro, filho bastardo de D. Dinis.

    Generated by Foxit PDF Creator Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

  • 21

    os mitos se expressam atravs de relatos. Fundamental para que o mito fosse transmitido

    numa sociedade onde a imensa maioria da populao era iletrada, foi a oralidade, sendo a

    escrita o seu suporte, servindo hoje como testemunha de parte do universo literrio

    medieval.

    O captulo II faz um histrico das fontes arturianas desde as primeiras menes a

    Artur conservadas nas fontes latinas (Gildas, Beda, Nennius), passando pelas fontes

    galesas conservadas no Mabinogion (principalmente o conto Kulwch e Olwen, primeiro a

    apresentar a corte arturiana, tendo circulado oralmente muito antes do relato ser escrito) at

    as reelaboraes do mito arturiano por Geoffroy de Monmouth, Chrtien de Troyes e

    outros autores annimos na Baixa Idade Mdia. importante destacar que o principal

    atributo arturiano de acordo com as primeiras fontes o de guerreiro invencvel, sendo

    graas sua invencibilidade que Artur conseguiu atrair nobres valorosos para sua corte e

    tambm manter a paz e prosperidade em seu reino.

    O captulo III trata do papel da realeza na poca medieval e dos atributos

    considerados necessrios para a funo rgia a justia, a liberalidade, o fato de ser fiel

    Igreja que sancionava o poder dos monarcas atravs da uno e da sagrao. A seguir

    feita uma descrio dos atributos arturianos com base na Historia Regum Britanniae: Artur

    como rei invencvel conquistador de trinta reinos e at do Imprio Romano, sendo capaz

    ainda de vencer gigantes. A posio de Artur frente sua corte tambm pode ser

    comparada a um tratado poltico medieval, o Policraticus. O rei age em consonncia com a

    sua corte e jamais pode agir como um tirano.

    No captulo IV discutimos a especificidade do rei na Pennsula Ibrica, de acordo

    com Nieto Soria e Jos Mattoso. O rei ibrico era considerado um ungido diretamente de

    Deus, no sendo necessria a sua sagrao ainda que fosse possvel que em determinadas

    ocasies houvesse essa cerimnia. Quanto cerimnia de coroao em Portugal, tambm

    ocorreu, embora o mais comum fosse a aclamao rgia. Os reis eram considerados

    modelos aos sditos devendo possuir vrias qualidades, como a virtude, a prudncia, a

    piedade. O captulo faz uma demonstrao dos atributos rgios nas trs fontes arturianas

    em Portugal: o Libro de las Generaciones, A Demanda do Santo Graal e o Nobilirio do

    Conde D. Pedro.

    O captulo V apresenta os atributos negativos de Sancho II nas crnicas que vo dos

    sculos XIV ao XVI: Crnica de 1344, Crnica de 1419 e Crnica de Rui de Pina.

    Generated by Foxit PDF Creator Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

  • 22

    O captulo VI relaciona o modelo arturiano imagem de Afonso III nos mesmos

    relatos cronsticos onde encontramos uma imagem que valoriza as suas aes, as quais

    podem ser comparadas s de Artur na Historia Regum Britanniae.

    O captulo VII estabelece uma relao entre as imagens cronsticas de Sancho II e

    Afonso com o modelo arturiano. Como vimos, a imagem de Afonso III se aproxima muito

    deste modelo, pois o monarca apresentado com uma srie de atributos positivos que

    visam no s valorizar o seu governo como tambm justificar a deposio do irmo.

    Buscamos recuperar as fontes que valorizam os atributos positivos de Sancho II,

    associando-o ao atributo guerreiro, como o Toledano e outros relatos acerca da fidelidade

    dos nobres ao rei, que tambm um importante atributo arturiano. Entendemos que a

    construo da imagem destes dois monarcas serviu aos interesses dos grupos dirigentes,

    tanto o novo ramo da dinastia de Borgonha como a Dinastia de Avis. Discutimos tambm a

    tendncia da historiografia contempornea em incorporar as vises sobre Sancho II e

    Afonso III que aparecem nas crnicas mais conhecidas.

    Generated by Foxit PDF Creator Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

  • 23

    Parte I

    Artur, o Rei-Guerreiro: Um Paradigma Medieval

    Generated by Foxit PDF Creator Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

  • 24

    CAPTULO I: MITO, NARRATIVA E ORALIDADE

    I.1 Mito P. 24-30

    Ao trabalharmos com a figura mtica de Artur e a sua utilizao na construo da

    imagem dos reis portugueses, cabe comentarmos a discusso acerca do conceito de mito.

    interessante destacar que o mito arturiano composto por vrios relatos (narrativa)12

    fundamentalmente transmitidos de forma oralizada, que possibilitaram sua apropriao

    para fins polticos na Idade Mdia.

    Existe uma grande dificuldade na conceituao de mito13. Muitos estudiosos

    tentaram definir o mito como smbolos ligados ao inconsciente (Freud e Jung), aos rituais

    das sociedades tribais (Frazer e Malinowski), a uma funo social (Durkheim), ou a

    fenmenos meteorolgicos e cosmolgicos (Max Mller, entre outros, os quais foram

    criticados por Malinowski14). No entanto, os elementos que compem o mito no so

    sempre iguais.

    Para os gregos muthoi significavam as histrias tradicionais de deuses e heris

    narradas em poemas orais, e Plato foi o primeiro a usar o conceito de mitologia

    (muthologia), ligando-a a arte de contar histrias: Em grego muthos significa

    principalmente o dom da palavra, algo que algum diz na forma de um conto, uma

    histria15.

    Os pesquisadores no chegaram a um consenso sobre qual dessas qualidades estas

    histrias necessitam para se tornar mitos. Muitos consideram que histrias tradicionais so

    12- Relato deriva do verbo latino referre (levar consigo, referir, transcrever). Significa o ato ou efeito de relatar (no caso, narrar, expor, descrever). (...) No que nos interessa, narrativa , pois, sinnimo de relato. CARDOSO, Ciro Flamarion. Narrativa, Sentido, Histria. So Paulo: Papirus, 1997, p. 10. 13- Se algo existe que seja caracterstico do mito, o fato de ser inexplicvel. CASSIRER, Ernest. Antropologia Filosfica. So Paulo: Martins Fontes, 1972, p. 121; There can be no single and comprehensive teory about myths (...). (No pode haver uma nica e compreensvel teoria sobre os mitos) (a traduo minha). KIRK, G. S. The Nature of Greek Myths. New York: Penguin Books, 1977, p. 39. 14- No cabe nossa pesquisa discutir como cada um destes autores trabalhou com o mito, ainda que exemplifiquemos alguns casos. O nosso objetivo aqui apenas apresentar um panorama geral acerca da problemtica do mito. Sobre a crtica de Malinowski teoria naturalista. Ver: CASSIRER, Ernest. Antropologia Filosfica, Ibid., p. 125. 15- KIRK, G. S. The Nature of Greek Myths, Ibid, p. 22.

    Generated by Foxit PDF Creator Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

  • 25

    mitos16, mas divergem sobre os motivos que as tornaram universais, imaginativas e com

    contedo abrangente.

    De acordo com a teoria naturalista, o mito uma forma imperfeita de atividade

    intelectual, sendo os fenmenos naturais a explicao de todos os outros17. Por exemplo, o

    filologista Max Mller considerava que os mitos foram formados por uma incompreenso

    dos nomes, especialmente relacionados a objetos celestiais. Considerava os mitos uma

    doena da linguagem18.

    Muitos viram o mito como resultado de uma etapa do pensamento primitivo,

    anterior ao pensamento lgico, como Lucien Lvi-Bruhl19 em A Mentalidade Primitiva

    (1922). O historiador Marc Bloch no livro Os Reis Taumaturgos (1924) foi influenciado

    por esta concepo, ao considerar que a longa crena dos medievais na cura das

    escrfulas20 pelos monarcas da Frana e Inglaterra havia sido um erro coletivo.

    Os romnticos como Schelling (Filosofia da Mitologia) no sculo XIX viram o

    mito como a religio natural do gnero humano, uma fase de auto-revelao do absoluto21.

    J o socilogo mile Durkheim (As Formas Elementares da Vida Religiosa, 1912),

    fundador da escola sociolgica francesa22, considerava o mito como uma projeo da

    realidade social. Comentando Durkheim, Cassirer afirmou que para o primeiro:

    O verdadeiro modelo do mito no a natureza, mas a sociedade. Todos os seus motivos fundamentais so projees da vida social do homem, mediante aos quais a natureza se torna a imagem do mundo social23.

    16- Kirk concorda com esta viso dos gregos. KIRK, G. S. The Nature of Greek Myths, Ibid, p. 23, 27 e 38. 17- Sobre a teoria naturalista conferir KIRK, G. S. The Nature of Greek Myths, p. 43-52. 18- KIRK, G. S. The Nature of Greek Myths, p. 43. 19- (...) Lvi-Bruhl, entre 1910 e 1938, tenta estabelecer que o mundo dos primitivos, constitudo de modo diferente, est radicalmente separado de ns. Os povos da natureza partilham de um pensamento dominado pela afectividade e regido pela lei da participao. DETIENNE, Marcel. Mito/Rito. In: ROMANO, Ruggiero. Mitos/Logos-Sagrado/Profano. Enciclopdia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1987, p. 63/64. 20- Tuberculose ganglionar, ataca os ganglios do pescoo e at mesmo a face. Porm com o tempo a doena melhora sem tratamento. Ver BLOCH, Marc. Os Reis Taumaturgos. So Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 51-61. 21- ABBAGNANO, Nicola. Dicionrio de Filosofia. So Paulo: Mestre Jou, 1982, p. 645. 22- Nome atribudo aos colaboradores e discpulos de Durkheim, cujas atividades floresceram na Frana entre o final da dcada de 1890 e a 2. Guerra Mundial, os quais organizaram publicaes em torno do Ane Sociologique. Cf: OUTHWAITE, William e BOTTOMORE, Tom (Eds.) Dicionrio do Pensamento Social do Sculo XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996, p. 249-252. 23- CASSIRER, Enest. Antropologia Filosfica. So Paulo: Martins Fontes, 1972, p. 131.

    Generated by Foxit PDF Creator Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

  • 26

    De acordo com a teoria psicanaltica de Freud, os mitos esto associados aos

    sonhos24. Freud afirmava que durante o sonho a mente rearruma experincias e emoes

    para reprimir a ansiedade e proteger o sono. Para ele, muitos mitos representam uma

    preocupao ou atitude oculta que se expressam atravs de aes concretas numa esfera

    totalmente diferente25.

    Um de seus discpulos, Otto Rank escreveu no seu Mitos e Sonhos (1909) que o

    mito um fragmento preservado proveniente da vida psquica infantil da raa e que os

    sonhos so mitos do indivduo26. Possivelmente esta relao dos mitos com lembranas da

    infncia da raa est associada a concepo freudiana de que o homem determinado pelas

    emoes, desejos e represses da infncia como o complexo de dipo, tabu do incesto e

    outros temores.

    Jung relacionou os mitos ao inconsciente coletivo, isto aspectos herdados da

    experincia passada da espcie humana sedimentados e preservados no inconsciente sob a

    forma de arqutipos ou figuras simblicas27, determinando a maneira como imaginamos

    e sonhamos.

    No meio da polmica entre antroplogos, psicanalistas e historiadores da religio,

    tornou-se consenso considerar que mito uma forma de narrativa:

    Mito uma estria, uma narrativa com uma estrutura dramtica e um clmax como disse Aristteles, com comeo, meio e fim. Fazer mitos uma forma de contar histrias

    28.

    Porm, ainda que os mitos provenham de histrias tradicionais, nem todas elas se

    tornam mitos, pois nem todas as histrias nas sociedades no letradas obtm sucesso. Cada

    conto para se tornar um mito necessita de alguma qualidade especial que as separa das

    demais histrias passageiras, que por seu carter duradouro se torna um mito.

    24- O historiador Carlo Guinzburg, no ensaio Freud, o Homem dos Lobos e os Lobisomens revisa a obra de Freud e aponta o ambiente cultural circundante como um dos causadores da neurose de um paciente do Pai da Psicanlise. Ver: GUINZBURG, Carlo. Mito, Emblemas e Sinais. So Paulo, Companhia das Letras, 1989, p. 207-217. 25- KIRK, G. S. The Nature of Greek Myths, Ibid., p. 72. 26- ...a fragment preserved from the infantile psychic life of the race, and dreams are the myths of the individual. KIRK, G. S. The Nature of Greek Myths, Ibid., p. 73. 27- BLACKBURN, Simon. Dicionrio Oxford de Filosofia. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1997, p. 200. 28- KIRK, Ibid., p. 27.

    Generated by Foxit PDF Creator Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

  • 27

    Tradicional significativo porque implica no somente que mitos so estrias que so contadas

    especialmente em sociedades de tipo tradicional (o que significa acima de tudo as sociedades no-

    letradas), como tambm que elas obtiveram sucesso em se tornarem tradicionais. Nem todo conto,

    mesmo numa sociedade de contadores de histrias e no-letrados, se torna tradicional sendo

    considerado atrativo ou importante para ser passado de gerao a gerao. Uma narrativa deve ter

    alguma caracterstica especial para isso acontecer, uma qualidade duradoura que a separa do resto

    das histrias passageiras29.

    Observou-se que para se tornar mito uma histria necessita de algo mais alm de

    fora narrativa, como a explicao sobre um fenmeno ou um dilema recorrente,

    expressando uma emoo que satisfaz a comunidade (como, por exemplo, o sentimento

    religioso)30.

    Alm de se relacionar com a perspectiva individual, como os pesquisados por

    Freud, o mito pode referir-se ao aspecto comunal ou social de um grupo, possibilitando s

    sociedades iletradas a conservao de antigas crenas e o estabelecimento de um elo de

    comunicao entre jovens e idosos da coletividade:

    A posio a que chegamos que mitos so por um lado portadores de mensagens importantes

    sobre a vida em geral e na sociedade em particular. Numa sociedade no-letrada e com uma cultura

    fortemente tradicional, histrias so a principal forma no apenas de entretenimento, mas tambm

    de comunicao entre contemporneos e tambm entre velhos e jovens, e portanto, entre

    geraes.31.

    Essa forma de reflexo dos problemas coletivos nas sociedades tradicionais, no

    esttica, podendo mudar, pois os Mitos no so uniformes, lgicos e consistentes internamente;

    eles so multiformes, imaginativos e amplos nos seus detalhes. Alm disso, sua nfase poder mudar

    a cada ano, ou gerao, ou na gerao seguinte32

    .

    Para Cassirer (Filosofia das Formas Simblicas, 1925), os mitos so a principal

    forma simblica de expresso, uma necessidade inerente cultura. O autor definiu o mito

    como ligado aos sentimentos e s emoes33. Ao explicar as idias de Cassirer, Chartier

    29- KIRK, G. S. The Nature of Greek Myths, Ibid., p. 27-28. 30- (histrias) para se tornarem tradicionais devem possuir poder narrativo e uma clara relevncia funcional (a traduo minha). KIRK, G. S. The Nature of Greek Myths, Ibid., p. 28. 31- KIRK, G. S. The Nature of Greek Myths, Ibid., p. 28-29. 32- KIRK, G. S. The Nature of Greek Myths, Ibid., p. 29. 33- O verdadeiro substrato do mito no de pensamento, mas de sentimento. O mito e a religio

    Generated by Foxit PDF Creator Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

  • 28

    afirma que a funo simblica entendida como: uma funo mediadora que informa as

    diferentes modalidades de apreenso do real, quer opere por meio dos signos lingsticos,

    das figuras mitolgicas e da religio, ou dos conceitos de conhecimento cientfico34.

    Segundo Mircea Elade (Mitos, Sonhos e Mistrios, 1957) os que participam do

    mito so transportados para um plano onde o tempo sacro e de intensidade ampliada35. O

    mito reproduz a Era Criativa, tempo antes da histria quando as coisas foram

    desenvolvidas e colocadas em ordem, e o seu objetivo restabelecer a Era Criativa para

    reviver o poder mgico daquele perodo36.

    De acordo com Garcia-Pelayo, o mito cosmolgico foi a primeira forma de mito

    criado. O cu visto como arqutipo da terra, cada espao celeste correspondendo a um

    ponto do espao terrestre, sendo a hierarquia dos poderes terrenos a projeo dos

    celestiais37. Nas culturas plenamente mticas no h distino radical entre o sagrado e o

    profano, sendo o mundo terrestre uma projeo do mundo celeste.

    A criao de mitos (mitopoia) pode ocorrer de maneira espontnea ou

    racionalizada, pois o mito conserva as instituies e une a coletividade contra a derrota, a

    frustrao e o medo38. Alm disso, o mito uma realidade vivida (Malinowski), pois

    quando no vivido torna-se fbula, fantasia, iluso ou lenda39.

    Na sua constituio os mitos possuem vrias funes: integradoras, mobilizadoras e

    esclarecedoras. A primeira, auxiliando a identificao de cada elemento da comunidade

    com o contedo mtico, como por exemplo, a crena dos bretes de que Artur um dia iria

    voltar. A segunda, promovendo a esperana no futuro, e a ltima exprimindo atravs da

    simbologia o que o grupo deseja40.

    Segundo Lvi-Strauss, os mitos dizem respeito a acontecimentos passados (faz

    muito tempo), mas relacionam-se simultaneamente com o presente, passado e futuro41.

    primitiva no so, de maneira alguma, totalmente incoerentes, nem destitudos de sentimento ou razo; mas sua coerncia depende muito mais da unidade do sentimento que de regras lgicas. CASSIRER, Enest. Antropologia Filosfica. So Paulo: Martins Fontes, 1972, p. 134. 34- CHARTIER, Roger. A Histria Cultural entre Prticas e Representaes. Lisboa: Difel, 1988, p. 19. 35- OUTHWAITE, William e BOTTOMORE, Tom (Eds.) Dicionrio do Pensamento Social do Sculo XX. Ibid., p. 470. 36- KIRK, G.S. The Nature of Greek Myths, Ibid., p. 25 e p. 63. 37- GARCIA-PELAYO, Manuel. Los Mitos Polticos. Madrid: Alianza Universidad, 1981, p. 17. 38- GARCIA-PELAYO, Manuel. Los Mitos Polticos, Ibid, p. 19. 39- GARCIA-PELAYO, Manuel. Los Mitos Polticos, Ibid, p. 23. 40- Sobre as funes do mito: Cf GARCIA-PELAYO, Manuel. Los Mitos Polticos, Ibid., p. 23-25. 41- LVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, s/d, p. 242.

    Generated by Foxit PDF Creator Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

  • 29

    Para ele, a mente humana sempre trabalha da mesma maneira, sendo os mitos produtos da

    mente, refletindo sua estrutura comum42. Isso ocorre porque trata de reflexes e

    contradies de todas as sociedades humanas. Por isso, o mito de dipo alm de aparecer

    na Grcia Antiga encontrado em vrias sociedades tribais pesquisadas por ele no sculo

    XX. A substncia do mito a histria relatada (um mito percebido por qualquer leitor

    no mundo inteiro43), sendo que no importa a sua forma, mas sim o contedo da mesma.

    Para compreender um mito necessrio a combinao de seus elementos. A linguagem

    mtica tem propriedades especficas que se encontram acima do nvel lingstico.

    Lvi-Strauss classificou os elementos do mito como grandes unidades constitutivas

    ou mitemas, os quais se combinam at formar um sistema44. O autor analisa cada mito pelo

    conjunto de suas verses, recombinando incessantemente elementos simblicos

    constitudos por grupos de oposies binrias: me/pai, macho/fmea, cru/cozido45.

    No caso do mito de dipo aparece em vrias sociedades exemplificando a

    preocupao do homem com a sua origem (mortal/imortal). Por exemplo, as palavras

    dipo (p inchado) e Laio (p torto), significam a dificuldade para aceitar a origem mortal,

    o fato de ter nascido de um pai e uma me, que se expressam pela dificuldade em andar na

    terra (p torto, p inchado)46. Portanto, Lvi-Strauss, considera os mitos sistemas de signos

    (linguagem cujo sentido codificado e se encontra na superfcie da narrativa), sendo cada

    mito uma variao de elementos simblicos de temas universais47.

    Hoje em dia consenso considerar que todas as sociedades possuem mitos, que

    podem ser formados de maneira emocional ou racionalizada. Georges Sorel na obra

    Reflexes sobre a Violncia (1906), concluiu que conceitos como liberdade, nao, greve

    geral so mitos cujas imagens evocam sentimentos que permitem uma classe ou grupo

    colocar suas energias para a ao poltica48.

    Pretendemos trabalhar na nossa pesquisa com o uso poltico do mito tal como

    proposto por Garcia-Pelayo e adotado por historiadores que trataram da relao entre mito,

    42- KIRK, G. S. The Nature of Greek Myths, Ibid., p. 71. 43- LVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural, Ibid., p. 242. 44- LVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural, Ibid., p. 250. 45- OUTHWAITE, William e BOTTOMORE, Tom (Eds.) Dicionrio do Pensamento Social do Sculo XX, Ibid., p. 470. 46- LVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural, Ibid., p. 246-250. 47- OUTHWAITE, William e BOTTOMORE, Tom (Eds.) Dicionrio do Pensamento Social do Sculo XX, Ibid., p. 470. 48- OUTHWAITE, William e BOTTOMORE, Tom (Eds.) Dicionrio do Pensamento Social do Sculo XX, Ibid., p. 470.

    Generated by Foxit PDF Creator Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

  • 30

    ideologia e propaganda rgia como Nieto Soria49. Quanto s narrativas, que tornaram os

    mitos conhecidos e utilizados na Idade Mdia, eram transmitidas oralmente. Consideramos

    que para a anlise dos escritos medievais essencial estabelecer uma relao entre

    literatura e oralidade, tal como proposta por Paul Zumthor50.

    I.2 Narrativa P. 30-31

    Podemos entender a narrativa como uma forma de comportamento humano

    mimtico (imitativo) e representativo, a servio da comunicao de mensagens entre seres

    humanos51. Os estudos semiticos a partir de fins dos anos 70 passaram a se preocupar

    com a comunicao, expressa na relao leitor/ouvinte e na inteno do produtor

    enunciante.52

    A narrativa pode ser definida como um tipo particular de organizao dos

    enunciados (escritos, orais, no-verbais53), implicando a presena de um narrador ou meio

    narrativo (representao), mas ausncia da realidade propriamente dita:

    O ato de narrar (...) repousa na presena de um narrador ou de um meio narrativo (ator, livro, filme, etc.) e na ausncia dos eventos narrados. Tais eventos esto presentes como fices, mas ausentes como realidades. (...) poder-se-ia dizer que uma narrao mais ficcional se enfatizar os eventos narrados, mais lrica se enfatizar sua prpria linguagem, mais retrica se usar a linguagem ou os eventos para alguma finalidade persuasiva. (Scholes 1982, p. 58 54) .

    Ao conceituar a narrativa, C. Segre considerou importante citar Aristteles, o qual

    rev as categorias de Plato (narrativa pura, mimsis pura ou gnero misto ou alternado) e

    prope na Potica duas categorizaes. A primeira categorizao a diegsis, na qual o

    poeta, como Homero, pode assumir diferentes personalidades ou narrar pessoalmente a

    histria. J na mimsis, so os atores que proferem os discursos e do vida s personagens.

    49- NIETO SORIA, Jos Manuel. Fundamentos Ideolgicos del Poder Real en Castilla (siglos XIII-XVI), Ibid. 50- ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz. So Paulo: Companhia das Letras, 1993. 51- CARDOSO, Ciro Flamarion. Narrativa, Sentido, Histria. So Paulo: Papirus, 1997, p. 10. 52- ADAM, Jean Michel e REVAZ, Franoise. LAnalyse des rcits. Paris: Seuil, 1996, p. 10-11. 53- ADAM, Jean Michel e REVAZ, Franoise. LAnalyse des rcits, Ibid., p. 13.

    Generated by Foxit PDF Creator Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

  • 31

    Assim, enquanto na forma dramtica so os actores que fingem os gestos e proferem os discursos atribudos s personagens (mimese), na forma narrativa, pelo contrrio, o discurso do poeta que realiza um equivalente verbal de aco (diegese), reproduzindo eventualmente, de forma directa ou indirecta, os discursos das personagens55.

    A narratologia atual adota o termo digesis (mundo representado): Tudo o que

    pertence histria contada, ao mundo suposto ou proposto pela fico do filme

    (Souriau)56. Considera que o universo diegtico povoado de indivduos (personagens,

    animais, objetos), possuidores de propriedades que no as necessariamente do nosso

    mundo real. A principal caracterstica do universo diegtico ser construdo pelo

    leitor/receptor a partir do que dito e que est implicitamente pressuposto pelo texto.

    I.3 Oralidade (p. 31-39)

    A transmisso oral da narrativa foi essencial no perodo medieval para que os

    relatos arturianos fossem conservados e conhecidos. Durante esta poca, a maioria da

    populao era analfabeta e o pblico s tinha contato com as histrias atravs de

    intrpretes misto de atores, msicos e poetas, que apresentavam a obra atravs da

    performance57.

    A voz medieval perdeu-se, dela restando fragmentos com os quais procuramos hoje

    pontos de contato com aquela realidade. A relao do homem medieval com o potico e

    com a obra escrita totalmente diversa da nossa. Eram pouqussimos os que sabiam

    escrever e mesmo neste crculo restrito a leitura era vista como atividade fatigante, sendo

    comum nas cortes a presena de um leitor remunerado que lia em voz alta58.

    54- CARDOSO, Ciro Flamarion. Narrativa, Sentido, Histria. So Paulo: Papirus, 1997, p. 11. 55- SEGRE, C. Narrao/Narratividade. In: ROMANO, Ruggiero (Dir.). Literatura-Texto. Enciclopdia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1989, p. 57. 56- ADAM, Jean Michel e REVAZ, Franoise. LAnalyse des Rcits, Ibid., p. 30. 57- (...) so os portadores da voz potica (...). O que os define juntos (...) serem (...) os detentores da palavra pblica; sobretudo, a natureza do prazer que eles tm a vocao de proporcionar: o prazer do ouvido; pelo menos, de que o ouvido o orgo. O que fazem o espetculo. ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz, Ibid., p. 57. 58- (...) repugnncia que os Grandes, ainda que letrados, sentiam ao impor-se o duro trabalho que era a leitura direta. Tanto que, da em diante, era fcil achar entre clrigos ou mesmo burgueses pessoas competentes nessa arte. Uma classe de intrpretes assim especializados precisou formar-se bem rapidamente. ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz, Ibid., p. 62.

    Generated by Foxit PDF Creator Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

  • 32

    A escrita era feita visando a audio, sendo atribudo credibilidade a quem

    pronunciava as palavras. A voz conferia autoridade e o que era enunciado era considerado

    real.

    Quem dominava a tcnica da escrita eram os clrigos, cujo ofcio era primeiro

    ditado e depois copiado. O copista fazia no papel uma reinterpretao do que tinha ouvido:

    O scriptor recebe, em geral auditivamente, o texto a reproduzir. As grafias, mesmo, e suas alteraes, parecem implicar que ele interiorizava uma imagem das palavras mais sonora do que visual. Nos scriptoria onde se mantinha o sistema antigo da pronunciatio, uma equipe escrevia por ditado; funcionava ento, num primeiro momento, como receptora em situao oral-auditiva59.

    Era costume que mesmo aqueles que liam sozinhos o fizessem em voz alta60. No

    sistema educativo, a prtica da memorizao era um recurso muito utilizado, copiando-se

    em cadernos, pequenos trechos de obras de autores conhecidos, que eram depois

    memorizados e discutidos.

    O recitador ou intrprete era um medidor do tempo social, sendo presena constante

    nas festas pblicas e privadas. Apresentava-se em ocasies festivas, como casamentos,

    arsenamento de prncipes e banquetes. Tambm nas guerras e viagens tinham papel

    destacado, e era comum que os reis levassem jograis capazes de lutar nos combates. Na

    Batalha de Hastings, na qual os normandos conquistaram os saxes, um trovador ia

    cantando a Cano de Rolando61.

    O impacto de uma obra recitada tambm variava de acordo com o pblico e o local.

    Seu efeito durante a guerra era diverso daquele sentido no salo do palcio. Por isso, o fato

    de lermos o que restou de uma obra medieval ou a verso escrita que dela nos chegou, no

    suficiente para conhecermos o seu alcance em diferentes momentos e situaes para os

    seus ouvintes originais.

    59- ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz, Ibid., p. 102-103. 60- ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz, Ibid., p. 105. 61- Sete das dez crnicas que nos relatam a batalha, respectivamente redigidas entre 1070 e o incio do sculo XIII, mencionam um jogral que, marchando frente do Exrcito normando, deu com seu canto o sinal do entrevero; trs desses textos lhe do um nome: Taillefer; dois sugerem que cantou uma verso da Chanson de Roland. ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz, Ibid., p. 67.

    Generated by Foxit PDF Creator Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

  • 33

    Sabe-se que tudo o que foi preservado sofreu uma censura j que a escritura que

    lemos hoje foi aquilo que os clrigos consideravam que deveria chegar a ns62. Assim, uma

    narrativa que se conservou como poema, pode ter sido cantada ou servido como sermo.

    A oralidade contribuiu para manter viva a memria coletiva da comunidade, e

    conviveu muito tempo com a escritura. Os livros eram raros e caros, demorando muito

    tempo para serem confeccionados. Eram feitos em oficinas por uma equipe de pessoas

    altamente especializadas no ofcio. Havia um grupo encarregado de desenhar as letras e o

    outro, de copiar o texto. Os exemplares eram copiados um de cada vez.

    Para escrever era requerido um grande esforo fsico da mo, olhos, costas (j que a

    pessoa ficava curvada sobre o pergaminho) e at mesmo da lngua, pois as pessoas falavam

    enquanto escreviam. Era considerada uma atividade verdadeiramente penosa:

    O vocabulrio que designa a operao do escrever provm, em vernculo, diretamente do latim, o que parece mesmo implicar a identidade dos mtodos: dictare, dictitare (at mesmo legere) de um lado, scribere de outro lado. Dictare refere-se ao que se percebe como a origem do texto (...), da a metfora do Deus Dictator, enunciador de sua Criao (...). Scribere exige um esforo muscular considervel: dos dedos, do punho, da vista, das costas, o corpo inteiro participa, at a lngua, pois tudo parece pronunciar-se. (...) No inverno, o frio imobiliza os dedos, e pode-se temer o congelamento da tinta. (...) Escrever exige pacincia: o trabalho de uma cpia se estende por meses, por um, dois anos63.

    As bibliotecas tinham um nmero muito pequeno de exemplares, e a venda de

    cpias iguais de um mesmo livro era rara, cara e difcil de ser encontrada.

    A voz tambm teve papel importante no desenvolvimento de um cristianismo mais

    puro, ligado s origens. Os monges mendicantes eram grandes oradores. Usavam as

    tcnicas dos intrpretes e o pblico no os diferenciava muito destes:

    Donde uma contante troca de funes entre clercs e portadores da poesia. Uma concorrncia inconfessada parece mesmo ter-se instaurado desde o tempo da evangelizao e perdurar at o sculo XIX64.

    62- ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz, Ibid., p. 22. 63- ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz, Ibid., p. 100. 64- ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz, Ibid., p. 76.

    Generated by Foxit PDF Creator Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

  • 34

    No entanto, o intrprete profissional, por estar em constante mobilidade, era uma

    figura mais ou menos parte no seio da sociedade. Passaram a ser contratados por reis e

    prncipes a partir do sculo XIII, mas tambm na mesma poca as autoridades estatais

    visaram controlar o seu nmero65.

    Os medievais davam palavra um carter mgico, considerando a palavra dita mais

    importante que uma atividade concreta. Ao nomear as coisas, acreditava-se que elas j

    passassem a existir. Foi assim que Deus havia criado o mundo, de acordo com o Gnesis:

    verdade que, nos pases cristos, subjaz a idia quando no a lembrana fabulosa do Verbo divino. Foi pelo Verbo que Deus criou o mundo. O verbo cria o que ele nomeia66.

    Houve tambm influncia da cultura judaica que pregava a existncia de uma

    palavra perdida que contm toda a verdade do universo67.

    Os reis e os prncipes foram os primeiros a mandar colocar por escrito os costumes,

    procurando beneficiar-se do poder sobrenatural atribudo ao escrito. Acreditava-se ento

    que o escrito era a expresso da verdade.

    Era crena corrente que o ato de ouvir algum ler era at mesmo capaz de curar

    doenas, como a melancolia, feridas e outras enfermidades68. Como os oratores eram os

    detentores da palavra, julgavam-se os donos do verdadeiro poder, a auctoritas.

    Determinadas culturas como a cltica, valorizavam a palavra vocalizada e

    mantinham sua tradio apenas pela oralidade. As escolas de bardos proliferaram nos

    pases nrdicos (Irlanda e Esccia) at o sculo XVII. Mesmo aps a inveno da

    imprensa, a oralidade continuou como prtica comum por pelo menos mais um sculo, na

    Europa Ocidental. Havia vrias graduaes entre literatti e illitterati, sendo que havia os

    que sabiam ler, mas no escrever e vice-versa. Mesmo os poderosos no eram letrados:

    A maioria dos nobres at o sculo XIII permanecia iletrada: as formas de inteligncia e o tipo de saber exigidos por sua funo

    65- ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz, Ibid., p. 63-66. 66- ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz, Ibid., p. 130. 67- (...) a idia de cabala (de uma raiz hebraica que significa receber, isto , escutardesde o sculo XII delimitou um centro motor, um poder e uma regra, uma palavra, oculta somente no que tinha por primordial e reservada a um pequeno nmero de dscipulos qualificados; transmitida sem escritura porque impossvel de formular de outro modo que no pela boca; jamais fixada; pessoalmente vivida, retransmitida, abrangendo o conjunto dos modos de existir, de pensar e de dizer dos msticos judeus. ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz, Ibid., p. 85. 68- ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz, Ibid., p. 256.

    Generated by Foxit PDF Creator Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

  • 35

    ou impostos para sua situao social no tinham nada que ver com a prtica da leitura69.

    Inicialmente os escritos eram produzidos em latim. Posteriormente, com o

    fortalecimento dos Estados Nacionais e a constituio de naes, a escritura passou a ser

    feita em lngua vulgar. A escolha de um determinado dialeto j representa uma superao e

    censura de um discurso, onde antes predominava a diversidade70. At o sculo XIV num

    mesmo manuscrito havia vrios textos de origens diversas. S a partir desta data

    comearam a surgir livros com textos de um mesmo autor:

    O manuscrito BN fr [Bibliothque Nacional, manuscrito em francs] 1450, do sculo XIII, intercala quatro romances de Chrtien de Troyes no meio do Brut de Wace: para o copista, constituiram a glosa do que Wace diz do rei Artur71.

    O texto escrito era voltado atuao do poeta e mesmo este, no lia tudo porque a

    leitura demandava tempo (incio da constituio das lnguas vulgares, o que gerava

    dificuldade na decifrao das letras e do prprio contedo), podendo prejudicar o ritmo da

    performance. Por isso, o ator-cantor-msico improvisava durante a atuao: (...) as

    comparaes feitas com diversas performances modernas sugerem que o leitor pblico

    trabalhava tanto com a memria quanto com o olho72.

    O livro ou texto escrito, sua presena fsica em cima de um suporte, o fascistol, era

    algo mais a dar veracidade ao narrado, um elemento adicional do espetculo ainda que o

    orador no seguisse o texto risca73. Da a riqueza proporcionada pela oralidade. Uma

    histria narrada tambm sofria mutaes ao ser recontada, recantada.

    O livro era considerado um objeto precioso. Um exemplo so os Livros de Horas de

    reis e prncipes, os quais eram ricamente decorados.

    Na Idade Mdia no havia preocupao autoral nem idia de plgio. Acreditava-se

    que a memria coletiva, o antigo, era capaz de dar veracidade ao relato. Quando a escritura

    tenta se impor apresenta-se como aquela que possui a verdade, proveniente de uma outra

    69- ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz, Ibid., p. 107. 70- ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz, Ibid., p. 120. 71- ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz, Ibid., p. 109-110. 72- ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz, Ibid., p. 104. 73- ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz, Ibid., p. 62.

    Generated by Foxit PDF Creator Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

  • 36

    fonte mais antiga, latina, na maior parte das vezes inventada, que garante legitimidade ao

    que se diz.

    Mesmo assim os relatos tambm podem indicar a presena do oral como em A

    Demanda do Santo Graal que sempre se utiliza do recurso diz o conto que. Conto,

    narrativa oral originadora do relato74.

    Para tentar um contato com a oralidade, podemos apelar para os ndices de

    oralidade75 neste textos, onde aparece neles a idia de voz. Por exemplo, em A Demanda

    do Santo Graal os eremitas so os detentores da palavra, capazes de fazer previses e

    interpretar sonhos76. H tambm em vrios momentos a presena da voz de Deus e da voz

    do diabo na narrativa.

    A Igreja tentara por muito tempo, sem sucesso, o controle da cultura folclrica 77.

    Com o desenvolvimento do romance no sculo XII e da prosa no sculo XIII, o clero

    apropriou-se dos mitos pagos e os reelaborou, dando-lhes uma feio crist:

    fruto de uma cultura selvagem, no oficial (...) poderosa mistura camponesa (isto , pag) de lembranas ibricas, clticas, germnicas, de crenas, de prticas, uma arte com a qual a tradio latina, eclesistica e escolstica obrigada a transigir, na impossibilidade de ter podido extirp-la (...). Pois a partir dos sculos XI, XII e XIII, conforme os lugares, essa cultura popular at ento reprimida no teatro da Ordem (poltica, social, moral) entra ruidosamente em cena e fora os letrados a um prodigioso esforo de inveno para racionaliz-la um pouco que fosse e, assim, arvorar-se algum direito sobre ela. Nesse empreendimento, seu mais poderoso instrumento a

    74- ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz, Ibid., p. 269 e 273. 75- ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz, Ibid., p. 35. 76- Os detentores do sentido formam uma categoria parte entre os personagens: so os santos homens, eremitas, abades e reclusas. Assim como os cavaleiros no podiam saber, stes no podiam agir; nenhum deles participar de nenhuma peripcia, salvo nos episdios de interpretao. TODOROV, Tzvetan. As Estruturas Narrativas. So Paulo: Perspectiva, 1976, p. 170. 77- No utilizaremos aqui o conceito de cultura popular, tal como foi adotado por Bakhtin (Cultura Popular na Idade Mdia e no Renascimento). De acordo com Paul Zumthor, este conceito no deve ser utilizado antes do sculo XV, pois na Baixa Idade Mdia, oral no significa popular, nem erudito designa letrado, sendo que a escrita reproduz em parte as tradies orais mas as modifica, adaptando-as a interesses cristos. Ver ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz, Ibid., p. 118/119. O historiador Roger Chartier tambm questiona o par erudito/letrado. Cf: CHARTIER, Roger. A Histria Cultural entre Prticas e Representaes. Lisboa: Difel, 1990, p. 54/59. Em vez de cultura popular, preferimos o termo cultura folclrica, isto , relativa s crenas das massas camponesas no perodo medieval. Acreditavam em foras sobrenaturais simultaneamente boas e ms ao contrrio da rigidez da cultura clerical ou eclesistica, que detinha a escrita e uma rgida distino entre a noo de bem x mal. Cf: LE GOFF, Jacques. Cultura Clerical e Tradies Folclricas na Civilizao Merovngia. In: Para um Novo Conceito de Idade Mdia. Lisboa: Editorial Estampa, 1993, p. 207-219.

    Generated by Foxit PDF Creator Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

  • 37

    escritura; e esta, cedo ou tarde, liberta-se da mais pesada coero vocal que ainda pesa sobre si: o verso78.

    A prosa demanda um tempo maior para ser lida e leva o leitor a se questionar sobre

    a veracidade do que l, questionamento maior do que feito na performance, em que todos

    os seus sentidos esto como que entorpecidos pelo espetculo.

    Os clrigos foram vitoriosos no controle da voz medieval, pois foi a sua palavra que

    permaneceu, ao passo que as outras vozes ficaram perdidas. O desejo da Igreja em

    controlar o que se dizia mostra-se com clareza na proibio de canes consideradas

    indecentes, principalmente atravs de legislaes contra elas na Alta Idade Mdia (sculos

    V-X)79. A voz considerada perfeita era a dos pssaros e dos anjos.

    Acreditava-se no poder das palavras mesmo depois da morte, estando a idia de

    purgatrio, local intermedirio entre o cu e o inferno, ligado crena que os vivos tinham

    de interceder pelos pecados do morto atravs de oraes vocalizadas:

    Foi, parece, pela crena dos primeiros cristos na eficcia de suas preces pelos mortos (...) que comeou um movimento piedoso que deveria conduzir criao do Purgatrio80.

    Em A Demanda do Santo Graal, o personagem Erec pede aos companheiros que

    rezem por sua alma. Afonso III, soberano portugus do sculo XIII, tambm procurou no

    final da vida reconciliar-se com o clero pois estava excomungado (1277). No seu

    testamento, deixou vrios bens Igreja e pedia para depois da sua morte que: (...) todos

    stes frades rogaro por mim em suas missas e oraes81.

    Foi desde fins do sculo XV e incio do sculo XVI que houve um afastamento do

    homem do seu prprio corpo e consequentemente uma diminuio no uso da voz 82. O

    aparecimento da imprensa levou a um aumento na difuso da leitura, que acabou

    acarretando mais tarde o predomnio do escrito sobre o oral, levando muitas tradies

    oralizadas a desaparecerem.

    78- ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz, Ibid., p. 122-123. 79- ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz, Ibid., p. 49. 80- LE GOFF, Jacques. O Nascimento do Purgatrio. Lisboa: Editorial Estampa, 1993, p. 25. 81- BRANDO, Antnio (Frei). Crnicas de D. Sancho II e D. Afonso III (Ed. atualizada com introduo de A. de Magalhes Basto). Porto: Livraria Civilizao Editora, 1946, p. 334. 82- ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz, Ibid., p. 28.

    Generated by Foxit PDF Creator Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

  • 38

    Utilizaremos no decorrer do nosso trabalho as verses escritas conservadas sobre o

    mito arturiano, sempre atentos para os resqucios de oralidade presentes nestas obras.

    Generated by Foxit PDF Creator Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

  • 39

    CAPTULO II: AS FONTES ARTURIANAS

    A figura de Artur como rei foi construda do sculo VI ao sculo XII quando o mito

    at ento forma de resistncia dos bretes contra os seus dominadores, os saxes foi

    relido pelos invasores normandos, tornando-se modelo de conduta rgia em toda a Europa

    Ocidental.

    Como o mito arturiano surgiu primeiro entre os bretes, seria interessante situar

    historicamente esta populao. Povo de origem cltica, habitantes da Bretanha, os bretes

    viviam em tribos rivais entre si, sendo liderados por um chefe ou rei. Acreditavam na

    existncia do Outro Mundo, povoado por vrios deuses, sempre em contato com os vivos.

    Um conto ilustrativo da passagem dos celtas ao Alm o conto Pwill, Princpe de

    Dyvet. Esta fonte relata a troca de papis entre Pwill, do mundo dos vivos, com o rei do

    Outro Mundo, Arawn. Cada um assume a identidade e forma fsica do outro, sendo que

    Pwill reina no mundo dos mortos e dos deuses por um ano. Sua principal prova consistia

    em matar um oponente de Arawn, no que foi vitorioso. Como prmio, ao voltar ao mundo

    dos vivos, passa a ser conhecido como Pwill, princpe de Awnnwvyn (isto , princpe do

    Outro Mundo)83.

    Devido sua falta de unidade poltica, foram sucessivamente conquistados. No

    sculo I, foram atacados pelos romanos. Estes, apesar da dominao realizada, protegeram

    os bretes de outros invasores atravs da construo das muralhas de Adriano. Os romanos

    tambm no interferiram muito na cultura cltica, apesar de terem perseguido os druidas. O

    druidismo era forte na Bretanha e se constitua num perigo para o pensamento e a poltica

    dos romanos. No ano 61, por exemplo, foram massacrados os drudas de Anglesey e

    destrudo esse grande santurio do druidismo. No entanto, em busca de aliados

    compreensivos nesta regio longnqua do Imprio Romano, a romanizao na regio no

    foi profunda e foi permitido na Bretanha a manuteno da hierarquia cltica tradicional84.

    Mas, com o fim do Imprio Romano no sculo V, os bretes passaram a sofrer o

    ataque de outros povos que pretendiam conquistar a ilha: os escotos, pictos e saxes.

    bom lembrar que os escotos (irlandeses) e pictos (escoceses) eram tambm povos de

    origem cltica, mas sempre estiveram em conflito com os bretes. No sculo VI, sob a

    chefia dos saxes conseguiram dominar a Bretanha.

    83- Ver Pwill, Princpe de Dyvet. In: Mabinogion (Ed. de Victoria Cirlot). Madrid: Siruela, 1988, p. 03-43. 84- Ver MARKALE, Jean. Le Roi Arthur et la Socit Celtique. Paris: Payot, 1994, p. 152-156.

    Generated by Foxit PDF Creator Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

  • 40

    Neste momento, os bretes passaram a difundir histrias sobre a existncia de um

    rei perfeito, Artur, que um dia retornaria da Ilha de Avalon e retomaria o controle da

    Bretanha, expulsando os invasores. Foi assim que surgiu o mito arturiano.

    Estas histrias se espalharam pois muitos bretes aps a dominao sax

    refugiaram-se na Armrica ou Pequena Bretanha.

    A existncia de Artur no atestada pela historiografia. Se existiu, teria sido um

    chefe guerreiro (dux bellorum) vencedor de vrias batalhas contra os saxes, sendo a mais

    importante a batalha do Monte Badon, j no sculo VI.

    Por isso, aps a derrota dos bretes, as histrias construdas em torno da imagem de

    Artur se tornaram um meio de resistncia dominao atravs das idias. O elemento

    bsico do mito a crena de que ele uma realidade vivida, isto , as pessoas acreditam

    que o mito real.

    Com a invaso normanda sobre a Bretanha, houve uma apropriao do mito

    arturiano, pois os conquistadores criaram uma nova interpretao sobre Artur, procurando

    apresentar-se como descendentes do rei breto. Entendo o conceito de apropriao como

    uma nova interpretao de um discurso (ato de comunicao lingustica) 85. Para Chartier

    as prticas discursivas so produtoras de ordenamento, afirmao, distncias, divises; da

    o reconhecimento das prticas de apropriao cultural como formas diferenciadas de

    interpretao 86.

    Artur, transformado ento em modelo de rei cristo, portava agora uma dupla

    ambigidade; possua a espada Caliburn, forjada no Outro Mundo e o escudo com a

    imagem da Virgem Maria, smbolo da religio crist. Neste segundo momento, a figura de

    Artur continuou como um mito, pois transformou em modelo de rei perfeito, espelho dos

    reis medievais, um rei que nunca havia existido.

    Procurarei agora apresentar as principais fontes sobre o mito arturiano, lembrando

    que este relaciona-se estreitamente narrativa, pois o mito expressa-se atravs de um

    relato.

    A partir do sculo XII, comeou a ser construdo por escrito na Europa Ocidental o

    mito do rei Artur. Esta imagem do soberano perfeito, senhor de uma cavalaria modelo

    85- Ver SEGRE: Discurso. In: ROMANO, Ruggiero. Literatura/Texto. Lisboa: Enciclopdia Einaudi. 86 - CHARTIER, Roger. A Histria Cultural entre Prticas e Representaes. Lisboa: Difel, 1988, p. 27-28.

    Generated by Foxit PDF Creator Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

  • 41

    particularmente interessante por ter sido utilizada para fins polticos por diversos grupos

    dominantes na poca rei, nobreza, clero, cada qual visando fortalecer o seu poder.

    As histrias sobre Artur e seus cavaleiros no compem um nico ciclo ou conjunto

    de narrativas. Pelo contrrio, independentes umas das outras, tm em comum alguns

    elementos. Artur, seja personagem central ou secundrio, sempre apontado como rei

    justo, congregando ao redor de si uma corte valorosa. Quando sua atuao blica

    mencionada, seu papel como guerreiro excepcional sempre louvado.

    O mito construdo pelos bretes era bem diferente daquele imaginado pelos

    escribas desde o sculo XII, os quais s conservaram elementos superficiais das histrias

    tradicionais e as reescreveram de acordo com os gostos e interesses das cortes europias.

    Tratarei a seguir das fontes arturianas, fazendo um mapeamento das mesmas e no

    apresentando a viso de uma histria nica e linear sobre Artur.

    Generated by Foxit PDF Creator Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

  • 42

    Mapa da invaso saxnica na Bretanha (sc. V-VI). In: TROYES, Chrtien de. Romances

    da Tvola Redonda. So Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 293

    Generated by Foxit PDF Creator Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

  • 43

    II.1. FONTES LATINAS

    II.1.1. Geoffroy de Monmouth

    A obra que favoreceu a difuso das lendas arturianas na Europa Ocidental foi a

    Historia Regum Britanniae (1135-1138), do clrigo Geoffroy de Monmouth. No que

    esses relatos no fossem conhecidos, como se pode atestar pela presena de esculturas de

    Artur e Guenivre na catedral de Mdena, na Itlia, antes da obra de Geoffroy87. Porm,

    foi a dinastia anglo-normanda, conquistadora da Inglaterra no sculo XI, a primeira a se

    apropriar do personagem Artur para fins polticos, com o objetivo de reforar seu poder.

    O relato uma mistura de crnica histrica e cano de gesta. Enquanto a crnica

    trata de fatos contados na ordem de sua sucesso, codificando esses fatos e suas datas ano a

    ano, reino a reino, numa narrativa sucinta e linear88, a cano de gesta um longo poema

    de tema guerreiro (pico). Era cantada com auxlio de um instrumento de cordas e sua

    temtica eram as lutas da Alta Idade Mdia para a conquista de territrios, nos quais os

    heris lutam contra os inimigos dos cristos. As canes de gesta foram compostas nos

    sculos XII e XIII e fazem parte da literatura aristocrtica. Os poemas mais famosos so A

    Cano de Rolando e A Cano do Mio Cid89.

    Embora cite vrios reinados, o que a caracterizaria como uma crnica, a Historia

    Regum Britanniae no linear; por exemplo, o anncio do nascimento de Artur por Merlin

    uma antecipao90. O relato de Geoffroy aproxima-se das canes de gesta porque Artur

    apresentado como guerreiro invencvel. O fato de ser um rei guerreiro em luta com os

    pagos e de empreender uma guerra santa contra eles era um motivo do gnero pico.91

    O texto ambguo, misturando fico e histria. Ao tentar dar veracidade sua

    narrativa, o autor cita duas fontes: De Excedio et Conquestu Britanniae, de Gildas (sculo

    87- BRUNEL, Pierre. (Org.). Dicionrio de Mitos Literrios. Rio de Janeiro: Jos Olmpio, 1997, p.102; MARKALE, Jean. Le Roi Arthur et la Socit Celtique. Paris: Payot, 1994, p. 101. 88- A crnica um repositrio de fatos contados na ordem de sua sucesso; ela codifica esses fatos e suas datas ano a ano, reino a reino, numa narrativa sucinta e linear. (a traduo minha). MONMOUTH, Geoffroy. Historia Regum Britanniae (Histoire des Rois de Bretagne) (Traduite et comment par Laurence Mathey-Maille). Paris: Les Belles Lettres, 1993, p. 10. 89- VASSALO, Ligia. A Cano de Gesta e o pico Medieval. In: A Cano de Rolando (traduo de Ligia Vassalo). Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988. 90- Uma das caractersticas do gnero pico que ocorrem antecipaes na narrativa que fazem o ouvinte saber o desfecho da histria desde o comeo. Alm disso, no decorrer do relato ocorrem vrias antecipaes. Por exemplo, em A Cano de Rolando, Carlos Magno tem vrias pistas sobre a traio de Ganelo (Ganelon) atravs de sonhos premonitrios. A Cano de Rolando. Traduo de Ligia Vassalo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988, p. 37. 91- MONMOUTH, Geoffroy. Historia Regum Britanniae (Histoire des Rois de Bretagne), Ibid,

    Generated by Foxit PDF Creator Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

  • 44

    VI) e Historia Ecclesiastica Gentis Anglorum (sculo VIII), de Beda, embora utilize

    tambm informaes da Historia Brittonum, de Nennius (sculo IX). Apesar de citar estas

    fontes se apresenta como tradutor de uma fonte bret nica para o latim.

    O objetivo da Historia Regum Britanniae a exaltao dos bretes, procurando

    fazer uma histria genealgica para legitimar os grandes senhores normandos, e logo

    depois a dinastia dos Plantagenetas92. O texto fora uma encomenda da corte de Henrique I

    (1100-1135), av d