discursos do século xx sobre arquitetura neogótica no brasil
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Monografia realizada no curso de bacharelado em História da Universidade Federal de Pernambuco, tratando-se de um balanço historiográfico de estudos acerca da produção arquitetônica neogótica no Brasil.TRANSCRIPT
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Universidade Federal de Pernambuco
Centro de Filosofia e Cincias Humanas
Departamento de Histria
Curso de Bacharelado em Histria
Discursos do sculo XX sobre arquitetura neogtica no
Brasil: entre o romntico e o ecltico.
Diomedes de Oliveira Neto
Recife, 2014
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Universidade Federal de Pernambuco
Centro de Filosofia e Cincias Humanas
Departamento de Histria
Curso de Bacharelado em Histria
Discursos do sculo XX sobre arquitetura neogtica no
Brasil: entre o romntico e o ecltico.
Trabalho apresentado como requisito
complementar para obteno do grau de
Bacharel em Histria e orientado pela
Prof. Marlia de Azambuja Ribeiro
Diomedes de Oliveira Neto
Recife, 2014
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AGRADECIMENTOS
Um trabalho desta extenso e contedo no se faz do dia para a noite e nem mesmo pequenos detalhes
so frutos de apenas uma mente. Apesar de uma nica assinatura em meu nome, das noites em claro
escrevendo e regado s inspiraes momentneas, sem dvida durante todo este processo contei com a
ajuda de vrias pessoas, direta ou mesmo indiretamente para confeccionar este trabalho ao longo de
todos esses meses; e gostaria de, neste espao, deixar meus agradecimentos.
Agradeo minha famlia pelo apoio, meus amigos pela pacincia e aos professores do Curso de
Histria da UFPE pelo incentivo. Em especial, toda minha gratido minha orientadora Marlia
Ribeiro pelo estmulo e apoio em todo o processo de minha maturao do tema e escrita do trabalho.
Aos amigos Glena Vieira, Patrcia Alcntara, Mercs Santos, Raphaela Rezende, Giovanni Sellaro,
Mariana Andrade, Andresa Santana, Ana Karolina e Anglica Botelho pelas ideias, revises,
conversas inspiradoras e indicaes que muito enriqueceram o desenrolar da minha pesquisa.
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RESUMO
A pesquisa tem por tema central os discursos do sculo XX referentes produo arquitetnica
neogtica no Brasil, esta experimentada em princpios do sculo XIX at meados do sculo XX, com
destaque para as edificaes no eixo Rio-So Paulo, ento as regies mais estudadas na historiografia
do tema. Este estudo teve por objetivo geral analisar a historiografia brasileira do sculo XX referente
ao neogtico no pas. Esta historiografia, na maioria das vezes, est relacionada aos estudos sobre a
arquitetura ecltica brasileira, que junto com outros estilos e vocabulrios arquitetnicos contempla
tambm a produo neogtica nacional. Para alcanar o objetivo geral proposto, recorreu-se
primeiramente s concepes tericas a respeito do neogtico no Ocidente (com destaque para o
pensamento na Frana e Inglaterra entre os sculos XVIII e XIX), nos escritos de pensadores como
Augustus Pugin, John Ruskin e Viollet-Le-Duc, que contemplam o neogtico sob diferentes
perspectivas. A identificao destas teorias serviu para perceber suas apropriaes pela produo
arquitetnica carioca e paulista no sculo XIX at princpios do sculo XX. Posteriormente foi
realizado um levantamento da produo e arquitetos e engenheiros e das variaes do neogtico no
Brasil (eixo Rio-So Paulo) tomando como base a bibliografia do tema, no sentido de se obter um
quadro panormico, porm parcial, dessas construes. Por fim uma comparao entre os estudos do
sculo XX a respeito do neogtico no Brasil permitiram contrapor os diferentes discursos, divididos
basicamente entre os arquitetos modernistas da primeira metade do sculo XX (Lcio Costa, Paulo
Santos, Yves Bruand e Carlos Lemos) e os acadmicos e historiadores da arte ps dcada de 1970
(Mrio Barata, Giovanna Del Brenna, Annateresa Fabris e Pollyanna Dias).
Como resultados da anlise desta historiografia, percebe-se que, com a exceo do trabalho de
Pollyanna Dias, os estudos sobre neogtico acompanham as pesquisas sobre a arquitetura do sculo
XIX e do ecletismo brasileiros. Os juzos de valor atribudos arquitetura ecltica pelos arquitetos
adeptos do modernismo e a pouca ateno dos acadmicos especificamente para o neogtico,
demonstram a ausncia de estudos mais especficos sobre esta prtica arquitetnica no Brasil, apesar
da quantidade percebida de edificaes e de documentao que abrangem no apenas o eixo Rio-So
Paulo, mas praticamente todas as regies brasileiras.
Palavras chaves: Arquitetura brasileira, neogtico, ecletismo
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ABSTRACT
The research has as central theme the twentieth century discourses concerning the neo-Gothic
architectural production in Brazil, experienced in the early nineteenth century until the mid-twentieth
century, especially for buildings in Rio and So Paulo, then the most studied regions in the
historiography of the subject. This study analyzes the overall Brazilian historiography of the twentieth
century regarding the Gothic Revival in the country. This historiography, in most cases, is related to
studies on Brazilian eclectic architecture, which along with other "styles" and architectural
vocabularies also includes the neo-Gothic domestic production. To achieve its overall goal, it appealed
primarily to theoretical conceptions of Gothic Revival in the West (especially the thought in France
and England between the eighteenth and nineteenth centuries), in the writings of thinkers such as
Augustus Pugin, John Ruskin and Viollet -Le-Duc, which include the Gothic Revival from different
perspectives. The identification of these theories served to realize its appropriations by Rio and Sao
Paulo architectural production in the nineteenth century to the early twentieth century. Subsequently a
survey of architects and engineers plus the production and changes in the Gothic Revival in Brazil
(Rio and So Paulo), taking as a basis the bibliography of the subject, in order to obtain a panoramic
view, however partial, of these constructions. Finally a comparison between studies of the twentieth
century about the Gothic Revival in Brazil allowed counteract the different discourses, divided
primarily among modernist architects of the first half of the twentieth century (Lcio Costa, Paulo
Santos, Yves Bruand and Carlos Lemos) and academics and art historians after the 1970s (Mrio
Barata, Giovanna Del Brenna, Annateresa Fabris and Pollyanna Dias).
The results of the analysis of this historiography, realizes that, with the exception of the work of
Pollyanna Dias, the neogothic studies follow the researches on the architecture of the nineteenth
century and the Brazilian eclecticism. Value judgments assigned to the eclectic architecture by
architects of modernism and little attention from scholars specifically for the neogothic demonstrate
the absence of more specific studies on this architectural practice in Brazil, despite the perceived
buildings and amount of documentation covering not only the Rio-So Paulo, but practically all
Brazilian regions.
Key-words: Brazilian architecture. Neo-Gothic. Eclecticism
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LISTA DE ILUSTRAES
Figura 1 Antiga Catedral de St. Paul antes da reforma em 1633......................................15
Figura 2 Projeto para fachada Oeste da Catedral de St. Paul...........................................16
Figura 3 Fachada leste de Strawberry Hill.......................................................................17
Figura 4 Gravura de residncia projetada por Vanbrugh em 1710 .................................18
Figura 5 Domo no interior do Panthon de Paris.............................................................19
Figura 6 Gravura de Piranesi............................................................................................20
Figura 7 Gravura de Wenceslas Hollar da Catedral de Strasbourgo................................23
Figura 8 Quinta de Monteserrote em Sintra.......................................................... ..........42
Figura 9 Igreja do Santssimo Sacramento, Rio de Janeiro.............................................45
Figura 10 Detalhe da fachada do Mosteiro dos Jeronimos.................................................47
Figura 11 Fachada do Real Gabinete Portugus................................................................48
Figura 12 Fachada do Colgio So Jos - Rio de Janeiro..................................................49
Figura 13 Educandrio em So Cristvo.........................................................................50
Figura 14 Fachada do prdio da Imprensa Nacional.........................................................50
Figura 15 Fachada do Prdio da Ilha Fiscal......................................................................52
Figura 16 Fachada da Igreja Imaculada Conceio - Praia de Botafogo.........................54
Figura 17 Woolworth Building - New York.....................................................................57
Figura 18 Igreja do Senhor do Bonfim - Copacabana (demolida)....................................59
Figura 19 Igreja Metodista do Catete................................................................................59
Figura 20 Casa Arthur Napoleo na Avenida Central (destaque em vermelho)...............60
Figura 21 Projeto da Igreja das Carmelitas Descalas......................................................61
Figura 22 Projeto de Max Hehl para a Catedral da S - So Paulo..................................63
Figura 23 Quartel da Fora Pblica.................................................................................66
Figura 24 Colgio Des Oiseaux.......................................................................................68
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Sumrio
Introduo ................................................................................................................................. 8
As origens do Movimento neogtico ..................................................................................... 14
O neogtico e a arquitetura nos s. XVII e XVIII .................................................................. 14
O neogtico no sculo XIX ................................................................................................... 24
Revival ou survival? ............................................................................................................. 36
O neogtico e sua produo no Brasil Um panorama ...................................................... 40
O neogtico no Rio de Janeiro .............................................................................................. 40
O neogtico em So Paulo .................................................................................................... 61
A historiografia do sculo XX do neogtico brasileiro ........................................................ 70
O neogtico entre os adeptos da arquitetura modernista ...................................................... 71
O neogtico em perspectivas acadmicas mais recentes ...................................................... 83
Consideraes Finais .............................................................................................................. 93
Referncias Bibliogrficas ..................................................................................................... 98
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Introduo
O neogtico foi um movimento arquitetnico surgido ainda no sculo XVIII na
Europa como uma atitude de revalorizao da arquitetura gtica medieval, inspirada em
atitudes tanto pitorescas, romnticas, nacionalistas como tambm historicistas. Esses
discursos atribudos a tais edificaes se encontram presentes em vrios escritos e trabalhos
monogrficos que citam edificaes a exemplo de igrejas, residncias e construes civis
configuradas a tal maneira de construir e ornamentar, abordadas no sentido da busca de uma
moralidade para a arquitetura.
Os escritos historiogrficos europeus acerca da arquitetura neogtica ganham destaque
na produo de arquitetos e acadmicos ao longo do sculo XX. Autores de referncia na
histria da arquitetura como Leonardo Benevolo, Nikolaus Pevsner e Siegfried Giedion, iro
tratar do neogtico no sculo XIX como uma prtica eminentemente historicista. Manifestos
por uma arquitetura moderna, que deveria atender aos anseios e espritos da poca, estes
arquitetos iro apontar o neogtico como uma prtica desprovida de muita originalidade.
Para estes autores, a produo arquitetnica dos sculos XVIII e XIX seria apenas uma
fase transitria, de incertezas, um perodo de preparao para uma verdadeira unidade na
arquitetura, que representaria o esprito da poca (Zeitgeist) e atingiria sua moralidade, tal
qual a unidade do esprito gtico no sculo XIII. Esta unidade estaria presente na arquitetura
moderna.1
Na histria da arte, este perodo tambm ser analisado, com destaque para E.H.
Gombrich que, diferente dos advogados modernistas do Zeitgeist, considera tambm a
produo particular dos arquitetos e suas solues inovadoras, permitindo uma abertura para a
reviso da arquitetura historicista ou ecltica, no se prendendo apenas a aspectos sociais e
econmicos que porventura desqualificassem essa prtica arquitetnica como no pertencente
a um estilo de poca.
No Brasil, o neogtico viria a influenciar inicialmente arquitetos ligados Escola de
Belas Artes no Rio de Janeiro do sculo XIX e posteriormente os adeptos da arquitetura dita
ecltica no incio do sculo XX.
1 Em seu livro, A estratgia da Aranha (2013), o pesquisador Gustavo Rocha Peixoto apresenta um panorama da
historiografia da arquitetura a partir do sculo XIX, indicando 3 fases distintas, a primeira historicista, seguida da
prtica histrico-modernista (a exemplo dos escritos de Giedion e Pevsner) e o historiogrfico-culturalista. Sobre
questes de moralidade e arquitetura h tambm interessante trabalho de David Watkin em sua obra Architecture
and morality (1977)
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Autores brasileiros como Cristina Meneguello2, discorre acerca dos ecos que o
movimento neogtico se fez valer em terras do Atlntico, fortalecido pela necessidade de um
revigorar do catolicismo, com a construo/reforma de edificaes catlicas. Na Europa
continental, mais especificamente na Frana, a Escola de Belas-Artes iria se apropriar dessas
influncias, tidas como historicistas (ou eclticas), sendo difundidas, inclusive, para o Brasil
no Rio de Janeiro ainda imperial.3
Muitos autores brasileiros4 classificam as formas neogticas como componentes do
pensamento ecltico no pas, figuradas entre as estticas neoclssicas, ao lado de tantos outros
neos. Nas palavras do arquiteto Jos Liberal de Castro, na arquitetura, o neogtico se
manifesta apenas a alguns elementos caractersticos, geralmente aplicados em igrejas (...)
telhados ngremes, pinculos e torre axial nica.5
Nos clssicos da historiografia brasileira, a exemplo de Lcio Costa, Paulo Santos e
Yves Bruand, suas escritas, tomadas quase como manifestos em prol da arquitetura moderna,
acusam o neogtico e outras formas historicistas como meros modismos, numa fase
transitria para uma arquitetura maior que estaria por vir.
Estudos mais recentes da dcada de 1970 e 1980 como os de Carlos Lemos, Mrio
Barata, Giovanna Del Brenna e Nestor Goulart Reis, apesar de j apresentarem um estudo
mais aprofundado das produes neogticas no pas, ainda as qualificam dentro do bloco do
ecltico, carregando, inclusive, diversos juzos de valor em suas anlises.
Considerado por muitos um fenmeno revivalista em pases como a Inglaterra e
Frana, tomando por base uma arquitetura de inspirao medieval europeia, o neogtico e
suas formas podem ser encontrados em todo o territrio brasileiro, seja na arquitetura
vernacular das pequenas residncias, seja nas catedrais e igrejas paroquiais no interior de
muitos Estados.
O mais intrigante sobre essa presena neogtica no Brasil, e um dos principais motivos
que despertou meu interesse nessa pesquisa, se deu pelo fato de nunca termos experimentado
uma arquitetura gtica medieval, e que, portanto, o neogtico aqui no seria um fenmeno de
revival, mas sim um caso a ser melhor estudado, sendo at ento praticamente ignorado pelos
estudos acerca da arquitetura brasileira.
2MENEGUELLO, Cristina. Da runa ao edifcio: neogtico, reinterpretao e preservao do passado na
Inglaterra Vitoriana. So Paulo: Annablume, 2008. p. 97 3FABRIS, Annateresa (org.). Ecletismo na arquitetura brasileira. So Paulo: Nobel/Edusp, 1987. P. 29-67
4 FABRIS (1987)
5 Ibid. p. 213
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Com trabalhos e experincias na rea de patrimnio cultural, sobretudo para o
patrimnio arquitetnico, em muitas de minhas viagens pelo interior de Pernambuco encontrei
edificaes revestidas e projetadas por ornamentos e vocabulrios de inspirao gtica, a
despertarem minha curiosidade de como aquele fenmeno chegara a regies to diversas e
espalhadas nos sertes brasileiros.
Porm, antes mesmo de me lanar a uma documentao e mesmo a uma anlise em
campo das edificaes percebidas como neogticas ao longo do Estado, senti a necessidade de
realizar uma reviso historiogrfica daquilo que j fora escrito a respeito do neogtico no
Brasil, estando ciente desse fenmeno tambm em vrios outros Estados, a partir de minhas
andanas por Fortaleza, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e So Paulo.
Assim, nas lacunas observadas em estudos sobre a arquitetura ecltica no Brasil,
sobretudo no que tange produo historiogrfica do neogtico, acredito que atravs dessa
pesquisa tenha sido realizada uma anlise dos estudos historiogrficos a respeito deste
neogtico, ento includo nos estudos da arquitetura ecltica e da arquitetura brasileira do
sculo XIX, trazendo para o centro de discusso do pensar e fazer arquitetnico questes
artstico-culturais e seus fatores sociais.
A realizao de uma reviso bibliogrfica do que j fora desenvolvido a respeito do
tema proposto possibilitou verificar novos caminhos para futuros estudos sobre a produo
arquitetnica neogtica no Brasil, desconstruindo discursos fundados em juzos de valor ou
em interesses sociais e polticos (a exemplo dos manifestos modernistas que negligenciaram
estudos da produo ecltica e neogtica no pas), assim como as anlises mais
panormicas que ainda no consideraram o neogtico como uma forma particular do construir
no sculo XIX e incio do sculo XX.
Props-se, portanto, nesta pesquisa analisar os estudos existentes sobre a arquitetura
neogtica no Brasil (destacando-se o eixo Rio-So Paulo), sob um recorte de sua produo
arquitetnica entre meados do sculo XIX at as trs primeiras dcadas do sculo XX. A
escolha do eixo Rio-So Paulo se deveu ao fato de boa parte da historiografia do neogtico (e
do ecltico) se limitar a essas regies. Sabe-se, no entanto, da presena de muitas construes
e formas (neo) gticas ao longo de todo o territrio brasileiro, incluso a regio Nordeste e o
Estado de Pernambuco.
Para atingir o objetivo proposto, debrucei-me sobre a historiografia produzida no
Brasil no sculo XX referente ao neogtico, numa tentativa de apontar novas possibilidades
para o estudo deste objeto no territrio brasileiro, desprendendo-se das anlises da Histria da
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Arte per se, bem como das limitaes da Histria Social da Arte e da Arquitetura, indo em
direo a uma perspectiva que alinhe os fatores artsticos aos sociais6.
A reviso bibliogrfica desta historiografia se deu a partir de uma abordagem da
histria da arte, fundada nos escritos de E.H. Gombrich7 que relaciona questes de ordem
econmico-social alinhadas s produes artstico-individuais; e na histria da arquitetura, em
autores como David Watkin8 e Gustavo Rocha Peixoto
9, que propem uma reviso da histria
da arquitetura, que rotulava anteriormente a produo arquitetnica a estilos e esprito de uma
poca (Zeitgeist), onde o ecletismo e atitudes de revival como o neogtico estariam
marginalizados (fora de seu tempo).
No Brasil, a produo arquitetnica do neogtico entre meados do sculo XIX e as
primeiras dcadas do sculo XX apresentou-se de maneira bastante diversificada,
diferenciando-se de acordo com o momento em que a construo foi realizada, a proposta e
formao do arquiteto e mesmo as solicitaes de uma clientela, aliados a uma determinada
tipologia para o edifcio.
A versatilidade plstica proporcionada por este fazer arquitetnico, fundado sob
teorias e ideias que passeavam por temas que iam desde o romantismo e pitoresco, at ao
historicismo, pesquisa arqueolgica e ao racionalismo das formas, possibilitou edificaes
tanto formal quanto moralmente distintas. Do prdio da ilha fiscal, planejado no Rio de
Janeiro do sculo XIX por Adolpho Del Vecchio, passando pelo Real Gabinete Portugus de
Leitura (projetado por Raphael Galvo) construo da Catedral da S em So Paulo por Max
Hehl na dcada de 1910, diversas foram as formas e teorias apropriadas e aplicadas para as
construes neogticas.
Para se entender essa complexidade no fazer arquitetnico e das apropriaes destas
teorias pelos arquitetos e intelectuais daquele perodo no Brasil, foi necessrio identificar as
concepes arquitetnicas do neogtico no Ocidente (com destaque para as teorias na Frana
e Inglaterra), buscando a bibliografia especializada nas teorias da Frana de Viollet-le-Duc10
e
na Inglaterra com John Ruskin11
, Augustus Pugin12
e Charles Eastlake13
.
6 Sobre essa abordagem cabe citar os trabalhos de E.H. Gombrich - A Histria Social da Arte. In: Meditaes
sobre um cavalinho de pau: e outros ensaios sobre a teoria da arte. So Paulo: EDUSP, 1999; Norma e Forma.
So Paulo: Martins Fontes, 1990 e Histria da Arte. So Paulo: LTC Editora, 2002. Alm de David Watkin na
Histria da Arquitetura em A history of western architecture. Londres: Laurence King, 1986; e Morality and
architecture. Oxford: Claredon Press, 1977.
7 GOMBRICH (1999) (1990) (2002)
8 WATKIN (1977) (1986)
9 ROCHA PEIXOTO (2013)
10 VIOLLET-LE-DUC (1846) (1993)
11 RUSKIN (1992) (2006) (2008) (2004)
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A partir dessa compreenso das ideias e concepes do neogtico, coube o segundo
passo, referente ao panorama da produo e clientela da arquitetura gtica no eixo Rio So
Paulo (Brasil) entre 1872 e 1930. Como no me dispunha ainda de fontes documentais, o
recurso utilizado para este passo da pesquisa foi o de se debruar sobre a prpria
historiografia brasileira a respeito do neogtico no Brasil, e como esses escritos abordam e
elencam as construes gticas no pas a partir de seus arquitetos e da demanda na poca.
Para tanto, recorreu-se aos trabalhos de Lcio Costa14
, Paulo Santos15
, Yves Bruand16
,
Carlos Lemos17
, Mrio Barata18
, Annateresa Fabris19
, Giovanna Del Brenna20
e Pollyanna
Dias21
, que em seus levantamentos e anlises sobre arquitetura ecltica incluem exemplares e
casos do neogtico, com exceo de Pollyanna Dias, que tem uma abordagem especfica para
o neogtico.
Por fim, a percorrer o caminho de se analisar a produo historiogrfica do sculo XX
sobre o neogtico foi realizada uma comparao entre os diversos estudos sobre o referido
objeto, a fim de evidenciar os diferentes discursos de acordo com o lugar e a abordagem
terico-metodolgica de cada autor, dividindo-os basicamente em duas linhas distintas, sem
porm tom-las como blocos fechados.
Num primeiro momento estariam os manifestos e anlises dos arquitetos como Lcio
Costa Sobre Arquitetura (reunio de escritos da dcada de 1930), Paulo Santos Quatro
Sculos de Arquitetura (da dcada de 1960), Yves Bruand Arquitetura Contempornea no
Brasil (da dcada de 1970) e Carlos Lemos Arquitetura Brasileira (1979), inspirados pelos
tericos modernistas europeus e dentro de um processo de consolidao por uma arquitetura
modernista no Brasil adotariam ao longo de suas vidas uma histria da arquitetura brasileira
no sentido de se preparar para a forma ideal arquitetnica residente no modernismo.
Aps a dcada de 1980, se verificaria os trabalhos de acadmicos brasileiros por uma
histria da arquitetura construda com base numa reviso historiogrfica do tema, sobretudo
da arquitetura do sculo XIX, conduzida no exterior por acadmicos como E.H Gombrich (na
12
PUGIN (1843) (1841) 13
EASTLAKE (1872) 14
COSTA (1962) 15
SANTOS (1981) 16
BRUAND (1981) 17
LEMOS (1979) (1987) 18
BARATA (1952) (1983) 19
FABRIS (1993) 20
DEL BRENNA (1987) 21
DIAS (2008)
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Histria da Arte), David Watkin, Claude Mignot22
e Luciano Patetta23
(os trs na Histria da
arquitetura).
Dentre os acadmicos brasileiros para a anlise da pesquisa foram escolhidos Mrio
Barata - Sculo XIX. Transio e incio no sculo XX. (escritos na dcada de 1980), Giovanna
Del Brenna Ecletismo no Rio de Janeiro (sc XIX XX) e Annateresa Fabris Arquitetura
ecltica no Brasil: o cenrio da Modernizao (1993).
Ao explorar nesta pesquisa este vasto universo bibliogrfico, das teorias neogticas
europeias (francesas e inglesas), dos quadros de arquitetura do sculo XIX e XX no Brasil na
historiografia local, passando pelos discursos de acadmicos e arquitetos a respeito da
arquitetura ecltica, atentando-se s formas neogticas no Brasil, se buscou apontar outras
possveis perspectivas para estudos sobre o neogtico no Brasil, inclusive para regies do
Nordeste, como sua presena no Estado de Pernambuco, hoje apresentando-se um tema ainda
escassamente estudado.
Para dar conta do objetivo geral, a pesquisa se desdobrou, portanto, nestas trs etapas,
resultando nos trs captulos propostos para esta monografia. A primeira etapa se destinou a
identificar as teorias do neogtico na Europa do sculo XIX (destacando-se a Frana e
Inglaterra) e como essas ideias foram apropriadas pelos arquitetos no Brasil na poca da
produo do neogtico nacional.
Para o captulo seguinte foi pensado um levantamento da produo arquitetnica e
clientela do neogtico no Brasil tomando por base a historiografia produzida acerca do objeto
proposto (limitada ao eixo Rio-So Paulo). Foi considerado o levantado pelos autores e os
recortes e abordagens referentes nestes quadros panormicos.
Por fim, no terceiro captulo, realizou-se uma comparao entre os diferentes discursos
presentes na produo historiogrfica do sculo XX no Brasil referente arquitetura ecltica
(e mais especificamente neogtica), a fim de analisar os discursos dos modernistas e dos
acadmicos e apontar possibilidades para novos estudos do neogtico no Brasil sob uma
perspectiva diferente da quem vem sendo trabalhada.
22
MIGNOT (1983) 23
PATETTA (1987)
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As origens do movimento neogtico
Como um passo inicial para se perceber a complexidade do movimento neogtico em
seu fazer arquitetnico e das apropriaes de suas teorias pelos arquitetos e intelectuais no
Brasil de fins do sculo XIX e incio do sculo XX, antes se faz necessrio um esclarecimento
mais detalhado deste movimento, com origens no continente europeu (com destaque para a
Inglaterra e a Frana), identificando suas concepes e principais pensadores.
As construes neogticas, tanto em suas fachadas quanto em suas estruturas,
possuem elementos arquitetnicos que remetem ao construir gtico do perodo medieval dos
sculos XII-XV. A presena de arcos quebrados, ogivas, nervuras nas naves e altar-mor,
vitrais coloridos, rosceas, verticalidade das formas, pinculos, alm do uso de determinados
ornamentos24
apontam o gosto desses projetistas/encomendadores para a construo gtica
europeia.
Um gtico j ressignificado nos sculos XVIII-XIX como um movimento a ser
adotado para as novas construes, valendo-se de materiais contemporneos para as
edificaes, alm de se demonstrar uma ateno preservao daqueles antigos bens
medievais pertencentes ao apogeu da chamada arte de Frana (ttulo conhecido na poca da
construo da Catedral de S. Denis na Frana em 1144). Era o nascer do movimento
neogtico.
O neogtico e o panorama da arquitetura ocidental nos sculos XVII-XVIII
O interesse pela considerada arte do medievo remonta ao sculo XVII na Inglaterra,
como atesta o escrito de Charles Eastlake, intitulado A history of the gothic revival, publicado
em 187225
. Este sculo seria marcado pelo trabalho dos antiqurios, que mantinham seus
24
Sobre esses aspectos formais ver os livros: RIBEIRO, Carlos Flxa. Idias modernas sobre o gtico- A
controvrsia da ogiva. Rio de Janeiro: Livraria Civilizao Brasileira, 1950; e PEVSNER, Nikolaus. Panorama
da arquitetura ocidental.So Paulo: Martins Fontes, 2002.
25
Considerado pioneiro na historiografia sobre o neogtico, Charles Locke Eastlake (1836-1906) ainda seria
contemporneo das produes neogticas na Inglaterra. Tendo reunido em sua obra a anlise de 343 edifcios neogticos construdos entre 1820 e 1870, apresenta uma narrativa mais jornalstica que historiogrfica, sendo seu livro usado mais como um manual de prticas para o uso do neogtico.
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estudos e levantamentos acerca das construes gticas num perodo em que a produo de
tais edificaes diminua no pas diante das influncias italianas.
Eastlake procurou, ainda sob o calor do movimento neogtico, perceber aquelas que
poderiam ser as causas do que ele considerava one of the most remarkable revolutions in
national art.26 Uma arte, que segundo ele, representava o esprito ingls, e que uma maior
ateno s suas ideias e produes serviriam como uma ligao entre o passado e o futuro da
arquitetura inglesa. Ao longo de sua obra seleciona exemplares construdos no pas que
serviriam como exemplo a uma evoluo da arte medieval na regio.
Para Eastlake, o chamado Renascimento no Ocidente europeu, influenciando a
arquitetura com base no que se produzia, sobretudo na Itlia ainda no sculo XV, comearia a
ser estudado e praticado na Inglaterra apenas em uma centena de anos depois, dando espao
para a fruio e preservao do vocabulrio gtico. Ao declarar, contudo, que no ano de 1633
se lanava a primeira pedra para um prtico romano (aos moldes renascentistas) sobre a
antiga Catedral de So Paulo (Figuras 1 e 2), o autor anunciava uma golpe mortal para a
manuteno do gtico27
.
Figura 1 - Antiga Catedral de St. Paul antes da reforma em 1633
Fonte: http://www.explore-stpauls.net
26
Nota presente no Prefcio da obra de Eastlake (1872). Traduzindo: uma das mais notveis revolues na arte nacional. 27
EASTLAKE (1872) p.5
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Figura 2 - Projeto para a interveno do prtico romano na fachada Oeste da Catedral de St. Paul
Fonte: http://www.explore-stpauls.net
Porm, Eastlake destaca em sua narrativa o trabalho de arquitetos que, entusiasmados
com as novidades do construir vindas da regio mediterrnea, no hesitavam em tambm
adotar as formas do gtico, influenciados pelos trabalhos dos antiqurios. Assim novas
edificaes eram inspiradas por uma variedade de formas, tal como acontecia no prprio
Renascimento. Teve destaque na produo arquitetnica desse perodo o trabalho de
Christopher Wren (1632-1723), famoso arquiteto britnico conhecido na historiografia mais
por suas realizaes de influncias renascentistas.28
Fugindo ideia de alternncia de estilos artsticos, esta como uma inveno do sculo
XIX, que considerava o clssico (aos moldes da antiguidade Greco-romana) oposto ao no
clssico (onde o gtico se enquadraria) como num processo linear de desenvolvimento da arte
e da arquitetura29
, Eastlake aponta que no sculo XVII e tambm ao longo do sculo XVIII
(onde predominaria a influncia classicista na arquitetura), a produo gtica no cederia por
completo na Inglaterra graas atuao desses arquitetos.30
28
EASTLAKE (1872) p.23 29
Esta discusso sobre progresso artstico uma temtica plausvel e ser abordada mais adiante ao se tratar do
chamado ecletismo na arquitetura, sobretudo no Brasil. E.H Gombrich em sua obra Norma e Forma (1990)
apresenta essa viso progressiva e evolutiva da arte, tendo sua origem no renascimento, sobretudo na ideia de Vasari de que a arte parte de um ponto de origem at atingir sua perfeio, num ritmo linear. A crtica romntica
do sculo XVIII e XIX, incluindo a os escritos de Eastlake, ir refutar essa ideia, que se presta a desqualificar
tudo aquilo que foge s regras do clssico Greco-romano se prendendo s convenes de estilo (clssico,
romnico, gtico, renascentista, barroco, rococ, neoclssico e romntico) unicamente para apresentar aquilo que
seria o clssico (ideal) ao no-clssico (como primitivo ou degenerado). 30
Interessante notar que, tal como os arquitetos do chamado Ecletismo no Brasil em fins do sculo XIX e incio
do sculo XX (onde muitos construram obras neogticas junto a outras formas arquitetnicas), alguns arquitetos
da Inglaterra do sculo XVII e XVIII no estariam presos a um purismo das formas clssicas pregados por
adeptos do neoclssico no sculo XIX, adotando, portanto em seus projetos variados vocabulrios arquitetnicos.
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Ao considerar o sculo XVIII como um perodo de retomada das formas clssicas,
sobretudo do construir grego em detrimento do uso extensivo do vocabulrio gtico, firmando
as bases para o chamado movimento neoclssico, Eastlake vai apontar trabalhos de exceo
como o de Horace Walpole31
(1717-1797). Inspirado na literatura do gtico medieval,
Walpole aplicou em seus projetos para residncias, a exemplo de Strawberry Hill (Figura 3),
formas que remetiam arquitetura domstica medieval.
Figura 3 - Fachada leste de Strawberry Hill
Fonte: Gravura de Johann Heinrich Mntz (1758)
Estes arquitetos do sculo XVIII estariam prximos daquilo que Gombrich chamaria
de nexo social de compra e venda32; onde as preocupaes de demanda e clientela
possibilitavam uma liberdade de um mesmo arquiteto produzir em suas pranchas projetos
bastantes distintos, inclusive partirem do clssico ao no clssico.
A produo arquitetnica de Christopher Wren j prenunciava posturas que
embasariam a difuso do gtico nos sculos XVIII e XIX, pautando-se no princpio de
conformidade das novas construes (prximas quelas que j se configuravam como
gticas), alm de se perceber uma importncia mais ornamental nestas edificaes.
Contemporneo de Wren, o arquiteto John Vanbrugh (1664-1726) atribua ao medievo
uma concepo de virilidade, valendo-se da utilizao de estruturas de torres e ameias a
lembrar verdadeiras fortificaes medievais. (Figura 4). Tambm j indicava uma
31
Tambm escritor, Walpole seria conhecido por seus romances gticos, a exemplo de Castle of Otranto (1764). Seus escritos seriam responsveis pela popularizao do passado medieval, tanto na literatura como nas
construes domsticas na Inglaterra. 32
GOMBRICH (1990). Importante destacar tambm que esta prtica de mecenato j era recorrente durante o
Renascimento Italiano.
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18
preocupao posterior dos romnticos pela preservao de runas, apontando para os
princpios do associativo e do pitoresco. Associativo no sentido moral que um edifcio pode
revelar a partir de um determinado estilo, e pitoresco por se conceber em conjuno com a
natureza circundante.33
Figura 4 Gravura de residncia projetada por Vanbrugh em 1710 em Gloucestershire - Inglaterra (Detalhe das ameias de inspirao medieval no alto da edificao).
Fonte: http://www.architectmagazine.com
Igualmente na Frana do sculo XVIII, arquitetos como Jacques-Germain Soufflot34
(1713-1780), Claude Nicolas Ledoux (1736-1806) e tienne-Louis Boulle apesar de se
valerem de formas greco-romanas, defendiam a adoo de vocabulrios mais prximos ao
gtico, a exemplo da afirmao de Soufflot ao declarar que se deveria combinar as ordens
gregas com a leveza que se pode ser admirada em algumas construes gticas. (Figura 5)
Sobre essa questo, Pevsner35
sinaliza que esses arquitetos no estariam dispostos a uma mera
imitao de formas nos seus projetos, tal como seria mais recorrente no sculo XIX, chamado
por Pevsner de sculo historicista.
33
PEVSNER (2002). p 363 34
Considerado o mais importante arquiteto francs de sua gerao, Soufflot foi responsvel pelo projeto da
Igreja de Sainte Genevive (1755), posteriormente conhecida durante a Revoluo Francesa como Panthon.
Esta construo, sobretudo no que se refere ao seu domo central, apresenta uma proporo de uma massa mnima
(composta por colunas) a suportar uma carga mxima, tal como se configuravam as estruturas de uma igreja
gtica. 35
ibid p. 378
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Figura 5 - Domo no interior do Panthon de Paris
Inspirados nas pranchas de Piranesi36
(Figura 6), este grupo de arquitetos no estava
preocupado com uma preciso nas propores do edifcio. Valorizava-se, sobretudo, uma
arquitetura de formas livres, de projetos monumentais, em verdadeiros sonhos
arquitetnicos que muitas vezes nem saiam do papel. Nestes projetos, portanto, as questes
de funcionalidade das edificaes colocavam-se em segunda ordem.
Ao apresentar em seu estudo figuras como a de Claude Nicolas Ledoux, Pevsner
desconstri a ideia do senso comum de que todos os arquitetos do perodo estariam presos a
uma utilizao cega e emuladora das ordens greco-romanas na arquitetura. O uso de formas
clssicas por este grupo de arquitetos se inclinaria tambm a um princpio de originalidade e
experimentao. Era tambm nesse perodo que o neogtico aos poucos seria associado ao
movimento romntico.
36
Giovanni Battista Piranesi (1720-1778) foi um arquiteto e gravurista italiano conhecido principalmente por
seus desenhos representando a arquitetura romana, inspirados por um interesse arqueolgico destas formas no
sculo XVIII. Suas representaes, sobretudo nas pranchas de um conjunto denominado O Crcere, expressam ideais de monumentalidade e atemporalidade, alm de despertarem a imaginao, o fantstico e a sensao de
espaos infinitos.
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20
Figura 6 - "Parte de um amplo e magnfico porto na maneira dos antigos romanos" - Gravura de Piranesi (ca.
1749-1750)
Para compreender como o neogtico se associaria tambm com o movimento
romntico de fins do sculo XVIII ao incio do XIX, cabe uma maior ateno sobre a ideia de
romantismo que se firmava naquele perodo.37
O romantismo despontou como uma resposta em contraposio ao chamado
classicismo. Este ideal do clssico assumia uma postura esttica que tomava por referncias
histricas a arte greco-romana, sendo teorizado por pensadores iluministas e ressignificado no
neoclassicismo do sculo XVIII.
Contrrio a uma arte academicista prezada pelo classicismo, o romantismo tambm
assumia suas matrizes histricas, porm na esttica e valores da Idade Mdia. O medievo era
ento um perodo depreciado pelos pensadores humanistas e por iluministas que o
denunciavam de idade das trevas, marcada pelo rigor da religio e das supersties que
obscureceram o intelecto humano.
No entanto, esta oposio entre clssico e romntico, como j observado pelas prprias
prticas arquitetnicas do sculo XVIII, pode ser percebida de maneira ambgua, j que a
produo artstica do perodo apresentava interpenetraes em ambos os modelos. A
separao entre eles se daria apenas para melhor situar os modelos de pensamento esttico na
Europa dos sculos XVIII e XIX.
37
BARROS, Jos D'Assuno. O Romantismo e o Revival Gtico no Sculo XIX in ArteFilosofia Revista do Programa de Ps-Graduao em Artes da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). ISSN: 1809-8274.
vol. 6, abr de 2009, p.169-182.
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Com a consolidao do neoclssico, o romantismo assumindo uma postura oposta ia
melhor se firmar em seus ideais, pautados em expresses de sentimento, imaginao
criadora, originalidade, gnio e expresso38. Onde, ao se combinarem, resultariam num
posicionamento esttico.
Delineava-se uma concepo de belo oposta beleza clssica. O belo romntico se
amparava na subjetividade, na mutabilidade das formas, na expresso local contraposta aos
ideais universais do iluminismo, no sentimento de comunidade ento perdido com as
transformaes sociais em curso. Nesta esteira o romantismo apresentaria tambm uma
vertente favorvel ao nacionalismo.
O romantismo tambm ir assumir em seus adeptos um ideal de fuga da ento
realidade social experimentada na Europa, enxergando a Idade Mdia como um perodo
carregado de valores morais que haviam se perdido com a industrializao dos modos de
produo.
Esta reabilitao do medievo ser tomada no apenas na arquitetura gtica, mas
tambm nas letras e artes plsticas. Os romances de inspirao gtica, e o trabalho de pintores
inspirados nas formas anteriores ao considerado perodo ureo do classicismo no
Renascimento (de Rafael, Da Vinci e Michelangelo), sero imbudos pelo ideal de cristandade
da Idade Mdia.39
Segundo Pevsner40: O movimento romntico teve origem na Inglaterra e mais
adiante no texto anuncia esse fato bastante conhecido no que se refere literatura; para as
artes e a arquitetura, em particular, ele ainda precisa ser confirmado. A produo de Horace
Walpole se situaria nessa corrente, tanto na produo de seus romances, como ao projetar
Strawberry Hill inspirado na natureza do medievo, na prevalncia do sentimento sobre a
racionalidade, imbudo pela nostalgia e pelo esprito de uma alma inglesa do passado, ento
ameaada pelos conflitos sociais oriundos da Revoluo Industrial.
Tambm a valorizao do romntico alemo no Setecentos, seguida pelo culto
natureza e ao nacionalismo germnico, servem de impulso para o apelo s formas gticas e
explicaes de suas origens a partir da gnese das prprias florestas.41
Nesta nova percepo dessas paisagens selvagens, os arquitetos e decoradores das
igrejas gticas do Norte se empenhavam em criar uma verso florestal do cu.42 Schama
38
BARROS (2009) 39
ibid 40
PEVSNER (2002) p.361 41
SCHAMA (1996). p. 233-234 42
Ibid. p.234
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aponta um verdadeiro desabrochar das formas vegetais na arquitetura ps-clssica, e que
essa tendncia se estendera mesmo para os preceitos do barroco e rococ alemes. A proposta
era se desligar das formas clssicas greco-latinas, transformar a igreja num jardim
paradisaco, despetrificar as construes.
Vitrvio j abordava das origens da arquitetura, em que a cabana primitiva fora
resultado de usos de madeira e galhos, remetendo s formas de abrigo dos animais selvagens.
Este tipo de habitao era visto como rstico, selvagem, quase animalesco, reproduzido pelos
brbaros situados alm das jurisdies romanas. No perodo latino, seus intelectuais
repudiavam as formas pontiagudas e os arcos quebrados dos godos, onde florestas e
construes se misturavam.
O gtico, no entanto, absorvera as florestas pags, cristianizando-as43
. O bispo alemo
Warburton no sculo XVIII enfatiza a relao entre floresta e arquitetura eclesistica,
declarando seu manifesto contra a ditadura clssica, a partir de um construir mais nobre,
imperfeito, preocupado mais com o espiritual que o laico.
Tambm influenciado pelo romantismo literrio alemo, o neogtico recebe tons do
nacionalismo, nas vozes de pensadores como Goethe, contra a universalidade dos tratados
vitruvianos. O famoso escritor revelava sua paixo pelo esprito gtico na arquitetura ao
declarar sua impresso da catedral de Estrasburgo (Figura 7)
Ela se eleva como uma sublime rvore de Deus que, abrindo-se em arco, com
milhares de ramos, milhes de galhos e folhagens como as areias do mar,
proclama sua volta a glria do Senhor, seu mestre... Tudo forma, at a
minscula fibrila, tudo concorre para o todo. Como se eleva suavemente nos
ares essa construo gigante firmemente plantada no solo!(...) Detm-te
irmo, e decifra o mais profundo sentido da verdade.... que se desprende do
solo forte e rude da Alemanha...No abandones, cara juventude, a grandeza
rstica pela doutrina frgil da balbuciante beldade moderna44
43
Ibid. p. 325 44
PEVSNER (2002) p. 372
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Figura 7 - Gravura de Wenceslas Hollar da Catedral de Strasbourgo (sculo XVII)
Vises como estas seriam, anos mais tarde, retomadas pelos estudiosos e antiqurios
ingleses. Donde o gtico, juntamente com a arte grega, deixaria de ser tomado como extico e
encarado como uma arte sincera e verdadeira.
Enriquecido por esses ideais romnticos do sculo XVIII, os preceitos de um
neogtico se delineavam diante de uma sociedade marcada pelo surto de industrializao na
Europa. Suas premissas fundavam-se nos conceitos do pitoresco45
e do sublime46
, da
aproximao com a natureza e suas irregularidades e do aguamento dos sentidos.47
45
A ideia esttica de pitoresco est relacionada percepo da natureza como um ambiente acolhedor. Est
pautada na apreciao da natureza, das runas arquitetnicas e do passado. Revela uma natureza ao alcance do
ser humano, podendo sofrer pequenas intervenes das atividades humanas. Na arquitetura e tambm no
paisagismo, vale-se da atuao do imprevisto, da irregularidade das formas, tal como a natureza se apresentaria
(um ambiente que no geometricamente calculado) MENEGUELLO (2008) p. 99 -100 46
A natureza no sublime percebida como ambiente hostil, transcendente ao humano. Sustenta-se na preferncia
por emoes fortes, a um ideal esttico que influencia diretamente sobre os sentidos e proporciona uma
dimenso de belo ao terror. Na esttica arquitetnica apresenta-se no uso de grandes dimenses para as
construes, que ultrapassam o alcance humano. Para o neogtico, a juno das noes do pitoresco e do
sublime permite um equilbrio esttico em sua natureza, sobretudo do sublime, em que as emoes fortes e transcendentes so balanceadas pelo imprevisto controlvel do pitoresco. MENEGUELLO (2008) p.99-100 47
RUSKIN (2008)
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O neogtico no sculo XIX e sua historiografia
O sculo XIX seria considerado o auge do movimento neogtico, tanto em sua
produo arquitetnica quanto nas ideias que embasavam seu movimento entre arquitetos e
intelectuais na Europa. Seria tambm a partir desse perodo que as ideias em torno do
movimento se consolidariam e aportariam em terras americanas.
Para uma melhor compreenso desse fenmeno no oitocentos, vlido contrapor a
viso de duas correntes distintas da historiografia sobre a arquitetura do sculo XIX, incluindo
a o fazer e pensar neogtico. A primeira viso representada pelo historiador da arte e da
arquitetura Nikolaus Pevsner (1902-1983). Pevsner estava relacionado ao movimento
modernista na arquitetura, que conferia uma historiografia a perceber a arquitetura tanto como
um aspecto da histria social e cultural (descendendo da linha de pensamento de Jacob
Burckhardt48
), assim como definida por um estilo ou esprito de uma poca (como
preconizava Wlfflin49
) sendo mais importante que analisar os feitos individuais e diversos
dos arquitetos.
A historiografia modernista na arquitetura preconizava um desenvolvimento linear da
arquitetura, a evoluir de acordo com as necessidades e anseios de cada poca em direo
teleolgica para o que seria a ideal arquitetura moderna. Portanto, pensar numa arquitetura
contempornea que se valesse de formas do passado era parecer, no mnimo, anacrnico.
A outra perspectiva historiogrfica se encontra na figura do historiador da arquitetura
David Watkin, um revisionista da arquitetura modernista ps dcada de 1950, quando o
modernismo entraria em decadncia. Diferente de Pevsner, Watkin acreditava que pareceria
improvvel que formas tradicionais recuariam50 no fazer arquitetnico contemporneo.
Para Pevsner, o sculo XIX seria o sculo do historicismo51, quando o neogtico se
apresentaria plasticamente menos livre e ingnuo que o observado em fins do sculo XVII e
ao longo do XVIII na esteira do romantismo. Ele acreditava que o excesso na preocupao
48
Jacob Burckhardt (1818-1897) foi um conhecido historiador da arte e da cultura. Especialista em estudos da
arte renascentista defendia uma histria da arte observada pelo prisma social, tendendo a percepes
culturalistas. 49
Heinrich Wlfflin (1864-1945) foi aluno de Burckhardt e tambm escreveu uma histria da arte pautada numa
perspectiva social. Seguindo os passos de Vasari, desenvolveu um mtodo de anlise centrado no
desenvolvimento de estilos ao longo do tempo, atribuindo-os a determinados espritos de uma poca. 50
Prefcio de WATKIN (1986) 51
O historicismo trata-se de um movimento historiogrfico que tende a valorizar as experincias locais,
nacionais e regionais em oposio ao universalismo histrico proposto pela historiografia positivista. Na
arquitetura do sculo XIX esta postura tenderia a se debruar sobre a histria para extrair vocabulrios
arquitetnicos do passado, centrando-se em preocupaes de passados nacionais e locais, contrapostas s teorias
universais, imutveis e internacionais, como as apresentadas com o advento da arquitetura moderna.
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arqueolgica e nos estudos detalhados de seus vocabulrios, no sculo XIX, possibilitaria um
fazer pautado numa mera imitao acurada das formas.
Aqui, a ideia de retorno ao passado, ou revival torna-se mais aguda, de acordo com
o autor, onde aqueles dotados de sensibilidade visual viram tanta beleza destruda sua volta
pelo crescimento sbito, expansivo e incontrolado das cidades e fbricas, que se divorciaram
de seu sculo e voltaram-se para um passado mais inspirador.52
A postura historicista adotada pelos arquitetos do sculo XIX teria sido, portanto, uma
resposta s transformaes sociais e culturais, alm do sentido de desorientao
experimentado pelas populaes europeias no turbilho da Revoluo Industrial.
Enquanto os chamados gentlemen (intelectuais e connoisseurs) preferiam manter a
uniformidade arquitetnica com receio de se transgredir as regras do bom gosto; os
industriais, considerados sem um conhecimento mais apurado destas normas, se valeriam de
diferentes estilos arquitetnicos ao seu bel prazer, distorcendo os padres em arquitetura.
Para Pevsner, tal infinita possibilidade de escolha de estilos no sculo XIX, possvel a
partir de pesquisas e de interesses arqueolgicos dos intelectuais e poetas romnticos desde o
sculo XVIII, resultaria num pensar arquitetnico que perdeu a leveza de toque do rococ e
o fervor emocional do Romantismo, mas instituiu a variedade de estilos porque os valores
associativos eram os nicos valores em arquitetura acessveis nova classe dirigente.53Era o
sculo europeu que comumente se chamaria de ecltico.
Em relao ao valor associativo, apontado como o nico a ser percebido ento pela
nova clientela, este consistiria num processo de, atravs da arquitetura da edificao, o
indivduo remeter valores e alimentar a imaginao a uma determinada poca da histria. Tais
valores, portanto, se sobreporiam aos da esttica, quando para Pevsner, o sculo XIX
apresentaria um grave sintoma de um sculo doentio cujos arquitetos se satisfizeram em ser
contadores de histrias em vez de artistas.54 Tratava-se, portanto, da arquitetura historicista,
incluindo as formas do gtico.
A posio expressada por Pevsner desdobra-se numa direo a enxergar
negativamente o ecletismo como um movimento que no estaria alinhado ao esprito de seu
tempo (Zeitgeist), moralmente inconforme com aquilo que deveria se adequar s necessidades
52
PEVSNER (2002) p.389 53
ibid 54
PEVSNER (2002). p.390
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reais de uma sociedade, fundadas sobre questes racionais, religiosas, polticas, sociais,
filosficas, tecnolgicas.55
Como historiador ligado ao movimento modernista ao longo do sculo XX, Pevsner
acreditava que a arquitetura se revela como uma resposta a demandas prticas, adquirindo um
sentido de coletividade e inerente s relaes de espao e tempo de um determinado lugar.
Tais questes e posicionamentos dos modernistas sero tratadas mais exaustivamente no
terceiro captulo desta pesquisa.
O autor revela, em sua anlise, uma crise da ordem esttica na arquitetura, passando os
arquitetos a valorizar exclusivamente formas pr-industriais, juntamente com a clientela
burguesa-industrial, presa aos valores associativos das construes. A exatido arqueolgica,
pautada no que ele acreditava ser uma imitao fiel das formas, iria marcar a prtica
arquitetnica do sculo historicista, nas sociedades de antiqurios e nos tratados detalhistas da
arquitetura antiga e medieval.
Uma arquitetura de catlogo, impressa nos lbuns da poca, contendo dentre outros,
formas clssicas, gticas, italianizadas, old english, alm de variantes como os estilos
Tudor, renascena francesa, renascena veneziana, etc. 56
Neste rol de escolhas, havia tambm
aquelas preferncias de uso de acordo com determinadas funes da edificao, como os
teatros pblicos, assembleias, igrejas (estas associadas s formas romnicas e gticas),
mercados, etc.
Pevsner acusa a exatido das formas proporcionadas pelos estudos arqueolgicos
como diferente do uso dessas formas no romantismo do sculo XVIII. O apelo aos estilos
histricos no XIX se distanciavam da fantasia e imaginao, redundando num apuro
arqueolgico dos detalhes da edificao.
Neste sentido, Pevsner afirma uma mxima do valor associativo atribudo a essa forma
do construir, diferente do clssico, onde se buscaria valorizar, sobretudo o valor esttico. Para
o neo gtico, o ideal perpassaria mais sobre questes morais e associativas.
A crtica deste autor para a arquitetura da poca, sobretudo na batalha entre estilos
godos e pagos de uma preocupao superficial, onde interessaria mais aspectos de
valores morais que as questes funcionais da arquitetura, estas to caras perspectiva
moderna. Contudo, destaca a proliferao de construes de uso pblico, antes pouco
significativas na sociedade, revelando novas funes da arquitetura diante de uma nova
estratificao social.
55
WATKIN (1986) 56
PEVSNER (2002)
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Das preocupaes funcionais que j despontavam nestes novos usos da arquitetura no
sculo XIX, o principal apelo dos arquitetos seria ainda ao das decoraes das fachadas,
centrado no carter ornamental. O prprio John Ruskin, um dos principais tericos do
neogtico, se atm a esses aspectos, sendo ento uma constante a crtica de tericos da
arquitetura moderna ao longo do sculo XX a essas posturas dos tericos do XIX.57
A postura de David Watkin em relao arquitetura do sculo XIX assume coloraes
diferentes das observadas em Pevsner. Com estudos da dcada de 1970, a exemplo do
Morality and Architecture e A history of western architecture publicada na dcada de 1980,
Watkin se dispe a uma reviso dos modernistas, apontando uma comparao entre o
movimento modernista e o marxismo na arquitetura.
Para Watkin, os historiadores modernistas da arquitetura acreditavam numa
linearidade do desenvolvimento das formas arquitetnicas conduzida pela mo do progresso,
esta a guiar a produo arquitetnica para um fim determinado, que se assentaria na
arquitetura moderna.58
Revivals, a exemplo do neogtico, seriam denunciados por arquitetos como Le
Corbusier, modernista por excelncia, acusando estes movimentos de escravos do passado.
Porm, para Watkin, a humanidade sempre necessitou remeter s formas antigas, sobretudo s
clssicas, para se redescobrirem no fazer arquitetnico de seu tempo. E a arquitetura do sculo
XIX se revelaria como mais um desses perodos de experimentaes.
interessante sua anlise ao afirmar que a mesma forma pode ser revivida com
diferentes intenes e pode evocar diferentes sentidos e ressonncias em diferentes perodos.
Nesta mesma esteira estaria a anlise da autora Christina Meneguello para o neogtico na
Inglaterra industrial do sculo XIX.59
Meneguello discute as crticas do movimento moderno ao neogtico desenvolvido no
sculo XIX, este tomado como empobrecido, a preferir a segurana de um passado pseudo-
medieval em seus ingnuos sonhos de vida em comunidade, religiosidade e expresso
artstica.60 Sua pesquisa busca compreender as contradies de um movimento
romntico/medievalista em pleno auge da revoluo industrial, onde apesar de ser
considerado incongruente pela historiografia modernista da arquitetura, pode revelar uma
intrincada rede de construo do passado e da memria.
57
PEVSNER (2002) 58
WATKIN (1986) 59
MENEGUELLO (2008) 60
ibid, p. 17
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Para a autora o revival gtico aborrece o movimento moderno j que estaria ainda
preso s formas e respostas contidas num passado. Aborreceria tambm a histria, que
enxergaria o revival como tradicionalista e conservador. No entanto, esta viso da
historiografia modernista confere uma histria da arquitetura ainda presa ao rano
evolucionista da histria, este j criticado pelo novo fazer e pensar historiogrfico.
Uma reabilitao do neogtico pela historiografia revelada na pesquisa desta
historiadora, longe de tambm passear nas ideias evolucionistas da historiografia da
arquitetura no sculo XX, procura evidenciar que as ideias de pensadores ligados ao
movimento do neogtico como John Ruskin (1819-1900), Augustus Pugin (1812-1852) e
William Morris (1834-1896), indicariam caminhos e perspectivas para se pensar a ento arte
moderna.
Ao vislumbrarem a necessidade da construo de um nacionalismo carregado de
nostalgia e romantismo, alm da valorizao do trabalho manual do homem medieval (em
contraposio produo em srie industrial), estes pensadores defendem o gtico como a
escola ideal para a arquitetura na Inglaterra vitoriana, e se engajam inclusive na
conservao das antigas edificaes desse porte61
. Tal conservao no se colocaria apenas
como uma mera atitude de antiqurios acometidos pela febre histrica, mas sim um
posicionamento crtico diante do desenvolvimento do capitalismo.62
Como bem afirma Watkin, o sculo XIX seria marcado por discusses relacionadas s
contradies da revoluo industrial, sobretudo com relao s condies sociais dos
trabalhadores das fbricas, alm das relaes do cristianismo com a ordem social tradicional.
O neogtico neste sculo (diferente do que acreditavam os modernistas, a exemplo de
Pevsner, em acusar o movimento de mera imitao do passado) ir se posicionar diante das
condies sociais e da necessidade de reafirmao do cristianismo.
O gtico da Idade Mdia despontaria como o ideal da civilizao crist. Pensadores
como Friedrich Schlegel63
(1772-1829), Franois-Ren de Chateaubriand64
e Augustus Pugin
(1812-1852) j sinalizam no comeo do sculo XIX, a importncia do gtico para a
61
importante perceber o processo de preservao das antigas edificaes gticas na Europa no sentido de
vislumbrar as posturas nacionalistas e romnticas, sobretudo na Inglaterra, numa linha diferente do que se
apresentava a prpria ideia do termo gtico, atribudo ao arquiteto renascentista Leon Battista Alberti (1404-1472), ento defensor de uma arquitetura pura, austera, contrria ao resplandecer do gtico de Suger, considerado arte de brbaros, dos godos. 62
MENEGUELLO (2008), p.20 63
De acordo com Pevsner, Schlegel seria um dos mais brilhantes escritores romnticos e um dos mais inspirados adeptos do gtico PEVSNER (2002) p. 395. 64
Suas principais ideias sobre o posicionamento do mundo Cristo durante o perodo da Revoluo Industrial se
encontram em sua obra Gnie du christianisme em 1802.
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29
solidificao do cristianismo. Entrava em questo o papel moral do construir gtico, centrado
na figura do arquiteto medieval, reconhecido, tal como nas palavras de Ruskin, como
indivduo honesto e cristo, exigindo-se tais premissas para a formao de um bom
construtor.
Tomando por base o vocabulrio formal da arquitetura religiosa presente nas catedrais
medievais da Frana e Inglaterra, o neogtico do sculo XIX despontaria como a busca por
uma reafirmao dos valores cristos, personificados nas formas ogivais, nas abbadas em
nervura e nos vitrais.
Para alm de uma percepo na arquitetura, o neogtico estaria relacionado com o
movimento medievalista na Inglaterra, que buscava atingir uma religiosidade genuna,
ento deturpada pelas transformaes sociais e morais com a Revoluo Industrial.65
A Inglaterra do sculo XIX ir vivenciar a formao de sociedades crists com o
intuito de fortalecer a identidade de suas igrejas, reafirmar a moral crist e seus rituais e
legitimar o uso das formas neogticas em suas construes fsicas. O Oxford Movement e a
Cambridge Camdem Society, iro se inclinar a tais princpios, ao considerarem a igreja
medieval como mais pura e ritualizada.
A Camdem Society ter destaque a partir de seu peridico, o The Ecclesiologist, como
propagador dos valores e formas medievais para o cristianismo contemporneo, tendo
Augustus Pugin como um de seus principais membros. A arte, para esta sociedade, assumia
um papel fundamental para a propagao da f, indo alm de seus meros valores estticos66
.
As sociedades crists na Inglaterra tambm iro assumir um papel nas aes de
restaurao de inmeros templos gticos medievais no pas, a contragosto de muitos
intelectuais da poca, a exemplo do prprio Pugin e de John Ruskin, que iro denunciar a
busca desenfreada destes restauradores pelas formas consideradas originais das construes,
descaracterizando assim todas as intervenes conferidas s igrejas.
Pugin seria um dos principais entusiastas do gtico ainda nas primeiras dcadas do
sculo XIX na Inglaterra. Apresentou em seus trabalhos a superioridade do medievo e da
65
MENEGUELLO (2008) p.117 66
No Brasil interessante destacar o papel da Revista A Ordem, fundada em 1921, tendo em suas pginas
inmeras discusses em torno da arte e seu significado para o sentido da f, com destaque ao artigo
A significao da arte medieval para a vida artstica moderna" do Padre Eckhardt em A ORDEM no v.12 n.8 de jul/dez de 1932. Ver tambm o livro de SILVEIRA, Marcus Marciano. Templos Modernos, templos ao cho: a
trajetria da arquitetura religiosa modernista e a demolio de antigos templos catlicos no Brasil. Belo
Horizonte: Autntica Editora, 2011.
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autoridade do gtico no catolicismo em detrimento dos outros estilos, sobretudo as formas
clssicas, denunciadas como uma arquitetura pag.67
Seus escritos, junto s pesquisas arqueolgicas desenvolvidas na poca, trariam um
fortalecimento para a prtica do gtico ainda em meados de 1830, revelando valores no s
artsticos, mas principalmente morais de suas formas. Destaca em suas anlises a figura do
arteso cristo, moralmente essencial para a prtica e construo das edificaes gticas,
como trabalhadores sinceros e verdadeiros em sua arte do construir.68
Entendendo o gtico mais como um princpio que mero estilo, defendia um uso
sincero dos materiais, bem como a manuteno da espiritualidade de seus construtores. Pugin
seria tambm um profcuo construtor de inmeras igrejas catlicas num pas de maioria
protestante, cuja adoo do gtico, como arquitetura legtima crist, seria abraada pelos
anglicanos.69
Em seus principais trabalhos Contrasts (1836), True principles of pointed or christian
architecture (1841) e An apology for the revival of Christian architecture (1843), Pugin
apresenta um gtico para alm do esttico, mas tambm tomado por seu esprito religioso e
moral oposto aos males trazidos pela mquina e pela Revoluo Industrial.
Ao tomar o gtico como referncia Igreja catlica, Pugin seria contestado pelos
protestantes do pas, que buscavam afirmar tambm o seu carter nacionalista. Com
argumentos de que o gtico no teria sido experimentado em Roma, por exemplo, este no
deveria ser associado apenas ao catolicismo mas toda comunidade crist. Tal postura
possibilitaria a adoo das formas gticas nas construes catlicas, anglicanas e
presbiterianas (com destaque a esta ltima para igrejas construdas no Brasil).70
Pugin denunciava os problemas sociais trazidos com a consolidao das indstrias,
remodelando o tecido urbano das grandes cidades inglesas. A substituio das torres gticas
pelas chamins das fbricas representava uma nova ordem moral, onde a mquina seria a nova
religio da sociedade.
Na sua obra "True principles... defende o gtico no apenas como moralmente
cristo, mas como a nica arquitetura a representar o sentimento nacional ingls, rejeitando o
clssico grego como forma pag e mediterrnea. Para Pugin, o gtico seria um construir
67
WATKIN (1986) p.395 e MENEGUELLO (2008) 68
Essas ideias seriam posteriormente tambm partilhadas por John Ruskin em seu captulo A Natureza do Gtico, componente de sua obra As Pedras de Veneza 69
WATKIN (1986) p.404
70
MENEGUELLO (2008)
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adaptvel a qualquer material, dimenso ou localizao. Tais pressupostos facilitariam a sua
expanso inclusive para regies em outros continentes, incluindo a Amrica.71
Para John Ruskin, o neogtico tambm simbolizava uma arquitetura alinhada moral
crist no esplendor de sua virtude, apontando os trabalhos medievais como os mais nobres,
ingnuos e sinceros na figura do arteso livre e cristo.72
A preferncia por elementos
decorativos/estruturais de carter gtico nas novas construes representava a tentativa de
restabelecer um passado cristo austero, alm de fortalecer a identidade nacional de pases
como a Frana e Inglaterra, onde os defensores desse pensamento desejavam se desvincular
dos modos de construir do Mediterrneo latino.
O gosto pelo neogtico na arquitetura eclesistica no significa afirmar que o gtico
medieval tenha sido aplicado apenas nas igrejas. Ruskin chama ateno para esse assunto em
sua obra As Pedras de Veneza, no captulo sobre a Igreja de So Marcos. Veneradas hoje
como obras monumentais e destacadas da malha urbana em relao a suas formas, as catedrais
gticas representavam uma atitude do construir de sua poca, aplicvel tambm arquitetura
menor. Como atesta o prprio Ruskin: cada casa de moradia, na Idade Mdia, era
enriquecida pelas mesmas figuras grotescas que decoravam os portais e animavam as grgulas
das catedrais.73, no se tratava de uma proposta artstica para o eclesiastes mas sim a
continuao natural de um estilo arquitetnico familiar aos olhos, que o encontravam em cada
rua, em cada vereda.74
Dotado de tons irnicos, o crtico afirma essa associao entre gtico e eclesistico
(carregado de todo o sentido mstico e litrgico catlico) como uma apropriao da Igreja,
para justificar seu carter de arquitetura sagrada, nos mesmos moldes da apropriao do latim,
alm de adotar para si o pioneirismo no desenvolvimento das mais belas artes a reafirmar o
poder intelectual do clero.
71
MENEGUELLO (2008) p. 155 72
ibid p.94-96
73
RUSKIN, John. As pedras de Veneza. So Paulo: Martins Fontes, 1992 p.67
74
Ibid.
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Reforando a discusso, continua nas palavras:
No h nada de sagrado nem num arco, nem numa ogiva, nem num
arcobotante, nem num pilar. As igrejas foram mais vastas do que as outras
construes porque precisavam conter mais gente, foram mais ornadas,
porque estavam mais abrigadas dos ataques violentos e porque atraam
generosas oferendas, mas nunca foram construdas num estilo particular,
religioso, mstico elas foram construdas no estilo corrente da poca, familiar a todos. (...) A nica diferena entre a igreja e a casa de moradia
que havia, nas construes destinadas ao culto, uma distribuio
simblica e que os escultores e pintores se inspiravam com frequncia em
temas menos profanos.
As igrejas gticas se destacavam nas cidades do sculo XIX pelo fato de no terem
sofrido o mesmo fim que a maioria das construes civis medievais. Logo, preservadas, caiu-
se no senso comum que este tipo de arquitetura era prerrogativa dessas instituies. Esse tipo
de discurso, inclusive, ainda bastante perceptvel no senso comum e mesmo em publicaes
de cunho catlico a exaltarem o valor sagrado desse estilo.
Na verdade, a sacralizao atribuda aos elementos do gtico aparece diante de uma
arquitetura contempornea (para Ruskin) despida de ornamentos e detalhes, plana e
geomtrica; onde a arte de Frana e seus desdobramentos, na perspectiva ruskiniana,
representava o esplendor de uma arte que aproximava a criao dos homens aos prprios
elementos da natureza (esta como obra divina).75
Nascido como sinnimo de barbrie e rudeza, o termo gtico ganha posies de
privilgios no pensamento ruskiniano justamente por sua imperfeio. Ainda no seu
captulo sobre a natureza desse estado do construir, o jovem Ruskin discorre magistralmente:
gtico, um termo de reprovao, quando corretamente entendido, um dos
mais nobres caracteres da arquitetura crist, e no apenas nobre mas
essencial. Parece ser um fantstico paradoxo, no entanto uma
importantssima verdade que nenhuma arquitetura possa ser
verdadeiramente nobre se no for imperfeita.76
Imperfeio essa presente no trabalho manual do arteso, que no est sujeito s regras
e tratados de construo vindas de altas hierarquias, quando o operrio assume apenas a
funo de mero reprodutor a buscar uma perfeio formal, quase de uma mquina. No gtico,
75
Sobre este carter de reverncia ao gtico, Ruskin ir apresentar em seu captulo A Natureza do Gtico presente nos originais de As Pedras de Veneza, uma arte baseada na rusticidade e imperfeio das formas, mas que esta, enquanto tal, no deve ser condenada, posto que se assemelha prpria dinmica da natureza (esta entendida como resultado da criao de Deus). Portanto, ela nobre, e carrega em si um princpio religioso. 76
RUSKIN (2006)
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o mestre de obras tem a liberdade do experimento, se aperfeioa naturalmente atravs dos
erros, e trabalha no como um apndice da obra, mas como sujeito pensante de sua
constituio. a que se revela o carter nobre desta arquitetura, uma nobreza carregada de
moralismo cristo e perfeitamente aceita em construes de qualquer uso.
Tambm o movimento racionalista na arquitetura, desenvolvido a partir do sculo
XVIII, pautado na estrutura e geometria formal, ser apreciado por entusiastas do gtico,
sobretudo na Frana. Trata-se de pensadores que iro se desvencilhar do ideal romntico da
runa e do monumento percebido pelo gtico em direo a um fazer arquitetnico que
buscasse refletir as aspiraes sociais do momento.77
Arquitetos como Henri Labrouste (1801-1875) ligado cole des Beaux Arts, apesar
de sua inclinao s formas clssicas, j ir pensar na construo como um resultado das
atividades humanas, muito mais que uma demonstrao ideal de beleza proporcionado pelos
cnones da ordem clssica. Tambm o famoso escritor Victor Hugo ir enxergar a arquitetura
como uma espcie de escrita, um meio de comunicao, tal como expressara a literatura, onde
o gtico se prostraria como um partido.
Eugne Emmanuel Viollet-le-Duc (1814-1879) seria o arquiteto que melhor daria
destaque s formas gticas dentro dos princpios racionalistas, alm de tambm enxergar sua
importncia nacionalista diante de uma arte desenvolvida na regio da le-de-France78
.
Lanando-se ao racionalismo79
, Le-Duc percebe que este gtico pode ser reformulado e
melhorado pelas tcnicas e materiais contemporneos, como o uso do ferro, alm de defender
a restaurao como mecanismo a se buscar para um edifcio em restabelec-lo em um estado
completo que pode no ter existido nunca em um dado momento. 80Seria a chance de se
reapropriar de uma edificao a partir do desenvolvimento do ato de construir, conferindo-lhe
melhorias estticas e funcionais.
Para Le Duc, o gtico apresenta seus elementos de maneira racionalmente conectados,
num princpio de ordem aplicado s suas estruturas81
. Trabalhos mais recentes como o de Otto
77
WATKIN (1996) p.389
78
VIOLETT-LE-DUC, Eugne Emmanuel. Du style gothique au diz-neuvime sicle. Librairie Archologique
de Victor Didron, jun. 1846
79
RIBEIRO (1950)
80
VIOLETT-LE-DUC (1993)
81
WATKIN (1986) p.386
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von Simsom82
e Carlos Flexa Ribeiro tambm iro reconsiderar o gtico para alm de suas
implicaes estticas e morais, como tambm racionalistas, conferindo-lhe certa legitimidade
perante academia.
Diferente das ideias de Pugin, Le Duc defende o gtico como uma prtica
arquitetnica a solucionar problemas materiais de ordem funcional, e no meramente como
manifestao do cristianismo. Acreditava que o gtico estava inserido ao sistema racional de
estrutura e organizao, incluindo a adoo de novos materiais proporcionados pela revoluo
industrial. Sua viso entendia que este posicionamento se inclinaria ao resultado de uma nova
linguagem arquitetnica para o sculo XIX, contrariando as anlises de modernistas como
Pevsner.83
A diferena primordial, portanto, entre a valorizao do gtico na Inglaterra e Frana
seria a de que enquanto no primeiro caso, o construir se baseava mais em questes morais e
evocativas, no segundo tratou-se de uma preocupao, sobretudo estrutural nesta arquitetura.84
Alm dos debates e contradies em torno dos prprios entusiastas do neogtico, seus
manifestos por vezes eram construdos a partir de crticas feitas s formas de construir dos
moldes clssicos, tanto no renascimento quanto s formas de inspirao grega experimentadas
no neoclssico dos sculos XVIII e XIX.
No sculo XIX, as formas clssicas do renascimento so acusadas por Ruskin em As
pedras de Veneza nas seguintes palavras: Arrojaram-se contra o gtico degradado os
exrcitos da Renascena, que desde seu primeiro ataque reivindicaram a perfeio
universal.85
As crticas de Ruskin recaem sobre uma possvel obsesso na perfeio das formas
greco-romanas no neoclssico de sua poca, no sculo XIX. Para ele, este tipo de pensamento
desvalorizava a concepo do arteso, que deveria imprimir na obra suas imperfeies e
subjetividades. Acusa o abandono da espontaneidade e experimentao em prol de uma busca
desesperada pela mxima do perfeito, da geometria, das curvas e propores
milimetricamente calculadas, que, para Ruskin, desvalorizavam o trabalho artstico.86
82
VON SIMSOM, Otto. The Gothic Cathedral: Origins of Gothic Architecture and The Medieval Concept of
Order. Rev. ed. New York, 1962.
83
WATKIN (1986)
84
PEVSNER (2002). 85
RUSKIN (1992) p.111
86
RUSKIN (2006)
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A chamada batalha de estilos encontrar terreno frtil na Inglaterra ao longo do
sculo XIX entre arquitetos e intelectuais, divididos entre os defensores do clssico
(principalmente das formas gregas) e do gtico para a produo de novas edificaes. Os
debates se distribuem entre a simetria (cnones clssicos) e assimetria (a liberdade do arteso
gtico), entre a arquitetura nacional e crist (gtico) e a estrangeira e pag (clssica).87
Alm das crticas de Pugin e do prprio John Ruskin s formas clssicas, cabe
destacar tambm a atuao do arquiteto neogtico Gilbert Scott (1811-1878), que considerava
o gtico como a ltima arquitetura a ser considerada verdadeira e sincera na histria da
humanidade. E que a partir do Renascimento at ento, as produes no seria nada mais que
meras imitaes das formas do passado. Scott tambm defendia o gtico, a ser revisitado em
sua poca, como um estilo utilitrio e econmico, servindo no apenas a motivos
eclesisticos, mas tambm arquitetura civil e, sobretudo domstica.
Esta batalha acabaria tambm por legitimar as afirmativas dos adeptos da
historiografia modernista que denunciavam o sculo XIX como um perodo de incertezas,
onde as disputas pela adoo de um estilo em detrimento de outro no apresentariam uma
capacidade para o surgimento de novidades no fazer arquitetnico.
Com relao a essa questo Meneguello, a partir de sua pesquisa acurada sobre os
peridicos e tratados de arquitetura ingleses de meados do sculo XIX, revela uma
preocupao contempornea dos adeptos do neogtico para com o que se passava socialmente
na poca. Jornais como o The Builder e sociedades de preservao do patrimnio procuravam
debater e estimular a pesquisa do gtico na busca de formas e fazeres adaptveis s exigncias
modernas.88
Destaca em sua pesquisa a atuao de Samuel Huggins (1811-1885), arquiteto que
buscaria conciliar tanto as formas gregas quanto gticas, no sentido de proporcionar uma
arquitetura inventiva e no meramente reprodutora de edifcios do passado. Cabe a citao:
Para Huggins, o arquiteto era comparvel a um poeta que no pode,
sozinho, inverter uma linguagem s sua, mas que pode criar metforas e
figuras de linguagem antes no utilizadas.89
J o arquiteto Robert Kerr propunha estudar os dois estilos, (o que no seria atividade
dificultosa, posto que muitos arquitetos e mesmo a clientela, dividia seus gostos, pranchas e
produes entre o gtico e o clssico), e que a partir de ento, buscar um estilo novo, que
87
MENEGUELLO (2008) p.132 88
MENEGUELLO (2008) 89
Ibid p. 145
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atendesse s demandas da sociedade. Pensava-se em dominar as formas do passado
advogando em favor de um estilo nacional, tal como aconteceu com o movimento neocolonial
no Brasil.90
Revival ou survival?
O neogtico no iria se apresentar como uma massa formal uniforme, j que suas
variaes apresentadas possuam uma relao direta com as diferentes posturas dos arquitetos
e tericos para o seu uso ao longo do sculo XIX. Pevnser91
apresenta um panorama do uso
das formas medievais no sculo em questo, ao apontar que at a gerao de Augustus Pugin,
preferia-se o uso do gtico perpendicular. Da em diante, em torno da dcada de 1830, o early
english seria a regra, remetendo-se s formas do sculo XIII e XIV, proporcionados pelos
trabalhos de arqueologia. J nos anos de 1850 e 1860, o sucesso de As Pedras de Veneza
garantiram uma preferncia efmera pelo gtico veneziano aclamado por Ruskin.
Os defensores do gtico nos Oitocentos empreenderam uma srie de projetos e
concluses de obras revestidas desta tendncia de construo nos mais diferentes tipos de
edificaes, desde catedrais a prdios pblicos.92
A noo de revival na Inglaterra fora tema de
vrios debates controversos, chegando autores a afirmar que o gtico nunca deixou de ser
praticado no pas. 93
Dentre seus prprios defensores na Inglaterra, o neo gtico se deparava com estila
dilema em ser considerado como um revival ou survival. Este teria ressurgido a partir de
estudos arqueolgicos e movimentos historicistas ou como um sobrevivente em
desdobramentos para uma arquitetura mais pitoresca (criativa), ou mesmo residual do antigo
90
O neocolonial foi um movimento de arquitetos e intelectuais no Brasil, ocorrido durante meados da dcada de
1920, no intuito de se buscar uma identidade arquitetnica que sintetizasse um esprito nacional, na esteira das
ideias romnticas e nacionalistas de pensadores como John Ruskin. Como referncia foram tomadas as formas
arquitetnicas das edificaes de tempos coloniais, contrapostas s produes arquitetnicas eclticas e/ou
historicistas do perodo imperial e das primeiras dcadas do sculo XX, acusadas de estrangeiras e no alinhadas
ao esprito do tempo. Cabe destacar que muitos adeptos do neocolonial, inclusive em projetos e edificaes, seriam posteriores manifestos do movimento moderno, a exemplo de Lcio Costa. Para uma leitura mais apurada
sobre esse movimento no Brasil ver o trabalho de: PINHEIRO, Maria Lucia Bressan. Neocolonial , Modernismo
e Preservao do Patrimnio no Debate Cultural dos Anos 1920 no Brasil. So Paulo: Edusp, 2011. 91
PEVSNER (2002) 92
MENEGUELLO (2008) p. 99
93
PEVSNER (2002)
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gtico? Esta discusso tambm aberta pela autora Cristina Meneguello em sua obra Da
runa ao edifcio.94
Na historiografia do neogtico em autores como Charles Eastlake e Kenneth Clark95
, o
gtico aparece com o tom de survival, considerando o neogtico como uma sobrevivncia
residual do ento gtico medieval, nunca tendo desaparecido por completo dos fazeres
arquitetnicos na Inglaterra. Este estilo seria ento reabilitado por intermdio dos trabalhos
de antiqurios e literrios com destaque ao sculo XVIII, consolidando-se enquanto
movimento no sculo posterior.
Porm, como j observado, o gtico vem sendo analisado sob diferentes perspectivas
de acordo com o passar dos sculos na j era hodierna. Seja como uma forma livre
relacionada potica do pitoresco ainda no setecentos, seja um gtico estudado, analisado por
connoisseurs e dissecado pela arqueologia do sculo XIX, neste caso podendo ser
considerado como revival, posto que o estilo medieval seria retomado em suas
especificidades.96
Na esteira de Meneguello, procura-se entender o neogtico muito mais como revival
que como survival, posto que o gtico do sculo XIX no se apresentava como uma tradio
de longa data, mas sim como uma reavaliao destas formas medievais diante da sociedade
industrial, necessitando-se reafirmar seus valores nacionais. Evita-se tambm utilizar termos
como historicismo, este j deturpado pelas anlises da historiografia modernista da
arquitetura, a exemplo dos escritos de Pevsner.
Na pesquisa desta autora, a qual tambm se alinha a ideia desta presente pesquisa, o
revival aparece lanado sob diversos prismas, num movimento contrapelo da historiografia
moderna que denunciou esta prtica de historicista e presa unicamente ao passado,
conferindo-lhe, portanto um (in) voluntrio esquecimento durante dcadas.97
O neogtico aparece junto do movimento medievalista, a unir no s questes
arquitetnicas como tambm da literatura romntica, das artes plsticas no trabalho dos pr-
rafaelistas, no trabalho acurado dos antiqurios e na reafirmao do cristianismo diante das
incertezas morais da sociedade industrial.
94
MENEGUELLO (2008) p.101
95
Ibid 96
MOURDANT CROOK APUD MENEGUELLO (2008) p. 101 97
MENEGUELLO (2008), p.108
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Alm dos debates e contradies em torno dos prprios entusiastas do neogtico, seus
manifestos por vezes foram construdos a partir de crticas feitas s formas de construir do
perodo renascentista, naquilo que Gombrich chamaria de ruptura de tradies98, trazendo
novos sentidos para a prtica da arquitetura no ocidente. Eram momentos de por as ordens
vitruvianas clssica em cheque.
Para alm de uma manifestao tradicionalista do medieval, o neogtico despontava
tambm como uma arte genuna, nacional e crist, fortalecida pela liberdade criativa do
arteso que a produzia, alm de suscitar debates estticos e morais num sculo que seria
considerado por muitos modernistas como empobrecido no que tangeu produo
arquitetnica.
Duas questes colocadas pela autora possibilitam uma reflexo a respeito do neogtico
e suas ideias no sculo XIX para a prtica arquitetnica, bem como para as posturas da