discurso & ensino_35-75

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TEXTO, DISCURSO, ENUNCIADO E ENUNCIAÇÃO TEXTO E DISCURSO Vimos que o discurso é considerado o modo de existência socio- histórico da linguagem: "um conjunto de enunciados que derivam de urna mesma formação discursiva" (FOUCAULT, 1969). Para que se encontrem as regularidades de seu funcionamento, todo discurso deve ser remetido à formação discursíva a que pertence. Formações discursivas são as grandes unidades históricas que os enunciados constituem. Ex.: a medicina, a gramática, a economia-polí- tica etc. São sistemas de dispersão de difícil demarcação. Não são blo- cos fechados, estabilizados. As formações discursivas são constituídas por práticas díscursivas, que determinam os objetos, as modalidades de enunciação dos sujeitos, os conceitos, as teorias, as escolhas temáticas. A formação discursiva não é a "essência" do discurso, não é sua "estru- tura profunda" ou seu "sentido profundo", mas é, ao mesmo tempo, um operador de coesão semântica do discurso e um sistema comum de restrições que pode investir-se nos universos textuais. Tanto o sujeito corno o sentido do discurso não são dados a priori, mas são constituídos no interior dessas formações discursivas. São efeitos das formações discursivas. Devem ser pensados em seus pro- cessos histórico-sociais de constituição. Isso equivale a considerar dois grandes princípios: a) os sentidos mudam de uma formação discur- siva para outra; b) os indivíduos se constituem corno sujeitos na me- dida em que se inscrevem nas formações discursivas. 35

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Page 1: Discurso & Ensino_35-75

TEXTO, DISCURSO,ENUNCIADO E ENUNCIAÇÃO

TEXTO E DISCURSO

Vimos que o discurso é considerado o modo de existência socio-histórico da linguagem: "um conjunto de enunciados que derivamde urna mesma formação discursiva" (FOUCAULT, 1969). Para que seencontrem as regularidades de seu funcionamento, todo discursodeve ser remetido à formação discursíva a que pertence.

Formações discursivas são as grandes unidades históricas que osenunciados constituem. Ex.: a medicina, a gramática, a economia-polí-tica etc. São sistemas de dispersão de difícil demarcação. Não são blo-cos fechados, estabilizados. As formações discursivas são constituídaspor práticas díscursivas, que determinam os objetos, as modalidades deenunciação dos sujeitos, os conceitos, as teorias, as escolhas temáticas.A formação discursiva não é a "essência" do discurso, não é sua "estru-tura profunda" ou seu "sentido profundo", mas é, ao mesmo tempo,um operador de coesão semântica do discurso e um sistema comum derestrições que pode investir-se nos universos textuais.

Tanto o sujeito corno o sentido do discurso não são dados a priori,mas são constituídos no interior dessas formações discursivas. Sãoefeitos das formações discursivas. Devem ser pensados em seus pro-cessos histórico-sociais de constituição. Isso equivale a considerar doisgrandes princípios: a) os sentidos mudam de uma formação discur-siva para outra; b) os indivíduos se constituem corno sujeitos na me-dida em que se inscrevem nas formações discursivas.

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o texto é a manifestação verbal do discurso, o que equivale adizer que os discursos são lidos e ouvidos sob a forma de textos. Umdiscurso é normalmente constituído de uma pluralidade de textos(basta que se observe a pluralidade de textos que constitui o discur-so feminista, ou a pluralidade de textos que constitui o discurso damedicina homeopática, ou ainda a pluralidade ou a diversidade detextos que constitui o discurso das esquerdas no Brasil). Ao mesmotempo, um só texto é normalmente atravessado por vários discur-sos (basta que se observe, por exemplo, que o texto da Bíblia é atra-vessado pelo discurso machista, pelo histórico etc.).

O discurso, nesse sentido, pode ser considerado uma dispersãode textos. De um certo modo, a unidade do texto é um efeito discur-sivo que deriva, segundo Foucault (1971), do princípio do autor quefuncionaria como uma das ordens reguladoras do discurso. Nessecaso, o autor não seria aquele "entendido como o indivíduo que fala,que pronunciou ou escreveu", mas o autor como princípio de agru-pamento do discurso como unidade e origem de suas significações.Neutralizando uma concepção de subjetividade marcada pela dis-persão, o princípio do autor é o elemento que centraliza, que orde-na, que dá unidade ao discurso, sob a forma do texto.

ENUNCIADO E ENUNCIAÇÃO

)

Enunciado é, para Foucault (1969), a materialidade repetível, aunidade elementar do discurso ("discurso é um conjunto de emmcia-.dos que pertencem à mesma formação discursiva"). O enunciado é umacontecimento único, mas aberto à repetição, à transformação, à reati-vação. Um enunciado é sempre um acontecimento que nem a línguanem o sentido podem esgotar inteiramente. Está ligado não apenas asituações que o provocam e a conseqüências por ele ocasionadas, mas,ao mesmo tempo, e segundo uma modalidade inteiramente diferente,a enunciados que o precedem e o seguem. É institucional.

O enunciado de um discurso não se confunde com uma frasegramatical, com um período, com um parágrafo ou com um texto.Não se confunde, também, com a prop sição a anális ló ica, LI

em um ato d fala (urn [uramonto, um I 111'1))1)('14, li, um c ntrz to ,t .).

I,.

O enunciado sempre se refere à sua formação discursiva. "A mulheré um ser inferior" é um enunciado, pertencente à formação discursi-va do discurso machista. O discurso machista constitui um certomodo sócio-histórico da linguagem, o que equivale a afirmar que osentido do enunciado em questão somente é dado na sua relaçãocom a formação discursiva a que pertence.

O enunciado é uma função que cruza um domínio de estrutu-ras e de unidades possíveis e que faz com que apareçam, com con-teúdos concretos, no tempo e no espaço. O sujeito de um enunciadoé um lugar determinado e vazio que pode ser ocupado por indiví-duos diferentes. Desse modo, o lugar de sujeito de "A mulher é umser inferior" tem sido ocupado por indivíduos diferentes, homens emulheres, de diferentes regiões e de classes sociais distintas. Essesindivíduos se constituem como sujeitos desse discurso.

Um enunciado suporta enunciações distintas, dado que tem umaexistência material e sua materialidade é repetível. O enunciadopode, pois, ser repetido (por um mesmo indivíduo ou por indivíduosdiferentes), apesar de sua materialidade. O que caracteriza o enun-iado é sua materialidade repetível, sendo o regime de materiali-

dade a que obedecem os enunciados de ordem institucional.

O enunciado suporta paráfrases. Conforme afirma Foucault, umainformação dada pode ser transmitida com outras palavras, com umaintaxe simplificada, ou em um código convencionado: se o conteúdo

informativo e as possibilidades de utilização são as mesmas, podere-mos dizer que ambos os casos constituem o mesmo enunciado. "Lu-

ar de mulher é na cozinha", na formação discursiva machista,onstitui uma paráfrase de "A mulher é um ser inferior".

Todo enunciado pressupõe outros, já que faz parte de uma sérieLI de um conjunto, desempenhando um papel no meio dos outros.

Entrando em redes, o enunciado se coloca em campos de atualização,I dendo integrar-se em certas operações e estratégias. A identidade:I nunciado pode se manter inalterada, modificar-se ou apagar-se.

i\. enunciação, por sua vez, é o singular, o irrepetível, o aconteci-m into (tem dutu, IlIAm det rminado). As im, cada vez que nosso"Illlllci I 10(' ('llIplo, /I A 1l11111H'r \ 11m A 'r inferior", r p tid (p 10

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mesmo indivíduo ou por indivíduos diferentes), trata-se de uma novaenunciação. Todavia, conforme afirmamos acima, considerando-se acontribuição de Bakhtin, não é mais possível dizer que a enunciação éum ato individual. Ela é, repetimos, eminentemente social. Enuncia-sesempre para alguém de um determinado lugar ou de uma determina-da posição sócio-histórica, valendo dizer que o tu também ocupa umadeterminada posição. Esses lugares são constitutivos da enunciação.

AS CONDiÇÕES DE PRODUÇÃO DO DISCURSO

o que fazemos ao usar a linguagem de maneira significativa éproduzir discursos, que envolve certas condições, ou alguns elemen-tos indispensáveis como:

1. um locutor (aquele que diz, sua posição sócio-histórica);

2. um alocutário (aquele para quem se diz o que se tem a dizer,sua posição sócio-histórica);

3. um referente (o que dizer, sempre determinado pelos sistemassemânticos de coerência e de restrições);

4. uma forma de dizer, numa determinada língua (é preciso quese escolham as estratégias para se dizer);

5. um contexto em sentido estrito: as circunstâncias imediatas; oaqui e o agora do ato de discurso;

6. um contexto em sentido lato: as determinações histórico-sociais,ideológicas, o quadro das instituições em que o discurso éproduzido - a família, a escola, a igreja, o sindicato, a políti-ca, a informação, a língua etc. Inclui-se aqui um sistema de res-trições que determina os objetos, as escolhas temáticas, asmodalidades enunciativas de um determinado discurso, as-sim como a relação entre os discursos, as possibilidades decitar do interior de um discurso etc.

Essas condições nos levam a poder afirmar que as escolhas d 'quem diz não são aleatórias.

A ondi õ s I( produ '1)0 do dI. ('IlI' o n:10 vi '.1111l'IlI'l1 I li) I'H

tudo Ia, f01'1n \ dI' (li')', Il1lz 11, li do ,,1,'1111'11101/1'1' 1'1111I 1111'111n

texto, mas principalmente as formas de instituição de seu sentido.Como diz Maingeneau (1987, p. 14), "não se trata de examinar umcorpus como se tivesse sido produzido por um determinado sujeito,mas de considerar sua enunciação como o correlato de uma certa po-sição sócio-históricana qual os enunciadores se revelam substituíveis".

As "condições de produção do discurso" não devem ser enten-didas apenas como sendo a situação empírica do discurso que estáem jogo, mas como sua representação no imaginário histórico-soci-al. Os protagonistas do discurso (interlocutores) não devem ser con-siderados apenas como seres empíricos, mas também comorepresentação de lugares determinados na estrutura social: o lugarde professor, de aluno, de político, de pai, de sacerdote etc. As rela-ções entre esses lugares acham-se representadas no discurso por umaérie de "formações imaginárias" que designam o lugar que desti-

nador e destinatário atribuem a si mesmo e ao outro, a imagem queles fazem do seu próprio lugar e do lugar do outro, e a imagem que

f zem do referente. O emissor pode antecipar as representações dor ceptor e, de acordo com essa antevisão do "imaginário" do outro,rImdar as estratégias do discurso.

A primeira definição empírica da noção de condições de produ-I.' foi feita por Pêcheux (1969). Partindo do esquema informacio-11,11 de Jakobson (1963), Pêcheux coloca em cena os protagonistas doII ilj urso e seu referente, e procura definir as condições de produção,111cI i curso a partir da ação das regras e normas que os interlocuto-11'1 ustabelecem entre si e dos lugares determinados que ocupam naI' I1'1 1tu ra de uma formação social, marcados por propriedades dife-I i'llI'I,lde s. O que funciona no processo discursivo, segundo o autor,

1111'01s ri de formações imaginárias que designam os lugares queII 11111'1'1utores atribuem a si mesmos e ao outro, isto é, a imagem'1"" 1111',1'1)1d seu próprio lugar e do outro, e a imagem que os inter-111111101'1'feZ im do referente.

1',,'/1,1 IO-Atd quadr proposto por Pêcheux (1969, p. 83) a res-I" 111do jogo 1(' imn~ 11. quc s stab 1 entre os protagonistasItI II • t'lll 11, ll\tI~ IOlllillltlO ,'I' ('H. 'qll<l i1'0 li, lima f rma bastante'"'1 dI! t' Id I, pndl'lIlo '111'1'1'111111''' ('I',lIlnll' pl'. iç( ('1'>, n. id -

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II1

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• 11\(1\): ti im,)/-.; .m 11I(\ /\ tem fL., i I11L\'I1)(I.1 1/111\ 1111 I(II!' Ilh-

jaz ssa poslçã u m u u para lU \ ('111111' 10/1' 1\ slm?"

• lA(B): a imagem que o locutor A tem do s u int 'r/o ut r 8. Aquestão que subjaz essa posição é: "Quem é ele para que eulhe fale assim?"

• 18(B):a imagem que B tem de si mesmo. A questão que subjazessa posição é: "Quem sou eu para que ele me fale assim?"

• 18(A): a imagem que B tem de A. A questão que subjaz a essaposição é: "Quem é ele para que ele me fale assim?"

• lA(R): a imagem que A tem do referente, ou daquilo de quese fala. A questão que subjaz essa posição é: "De que eu lhefalo?"

• 18(R): a imagem que B tem do referente. A questão que subjazessa posição é: "De que ele me fala?"

Podemos sofisticar essas imagens:

• A(B(A)): a imagem que A tem da imagem que B tem de A.Questão: "Quem ele acha que eu sou para que eu lhe faleassim?"

• B(A(B»: a imagem que B tem da imagem que A tem de B.Questão: "Quem ele acha que eu sou para que ele me faleassim?"

• A(B(B»: a imagem queA tem da imagem que B tem de B.Ques-tão: "Quem ele acha que ele é para que eu lhe fale assim?"

• B(A(A»: a imagem que B tem da imagem que A tem de A.Questão: "Quem ele acha que é para que ele me fale assim?"

• A(B(R»: a imagem que A tem da imagem que B tem do refe-rente. Questão: "O que ele acha disso para que eu lhe faleassim ?"

I Seria mais apropriado dizer "a imagem que o lugar do locutor tem para osujeito colocado no lugar do locutor", já que os protagonistas do discurso nãodevem ser considerados apenas como seres empíricos, mas também como re-presentação de lugares determinados na estrutura social.

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11(1\(1'): 11111.11',1\111 (jllt·11 ll'1l1 di 11\11\1'/1\ qll('/\ I '111do I' f 'r .n-11'.()\I(" IdO:"() f/\(I '1(\nchu ti. I o I nra IlI' 'I' m fal assim?"

• 1\(1 (I\(R))): a irn rn qu A t m da imag m que B tem daimng m qu A tem do referente. Questão: "O que ele pensa[u u a ho sobre isso para que eu lhe fale assim?"

• 13(A(B(R»):a imagem que B tem da 'imagem que A tem daimagem que B tem do referente. Questão: "O que ele pensaqu eu acho sobre isso para que ele me fale assim?"

jogo obviamente não pára aí e poderia ser mais sofisticadolinda.

Devemos estar cientes de que o jogo de imagens entre protago-11istas do discurso é um dos elementos das condições de produção dodi curso, mas que essas condições não se reduzem a tal jogo. Delafaz parte todo um sistema de restrições que determina os objetos, osl mas, as modalidades enunciativas, assim como as relações entre

discursos, as possibilidades de citar do interior de um discurso.Aquele que fala o faz de um lugar determinado, que- regula o seudizer. Todo discurso remete à formação discursiva a que pertence,sendo regido por essa prática.

A ENUNClAÇÃO LITERÁRIA

Afirmamos anteriormente que a missão da escola é levar o alu-no, de qualquer classe social, a dominar os diferentes universos se-mânticos que sã? importantes para uma dada sociedade ou cultura.Afirmamos que fica à escola o desafio de oferecer condições paraque os alunos se tornem realmente qualificados para o exercício dediferentes tipos de discurso, o que inclui o literário.

A escola, em todos os seus níveis de ensino, deve ter como obje-to tornar o aluno qualificado para o domínio do discurso literário.

Como nos faz ver Maingeneau (1990, 1993), a enunciação literá-ria não escapa à regra comum da enunciação, mas tem condições deprodução bastante específicas, o que equivale a dizer que ela nãopode ser considerada como um intercâmbio lingüístico ordinário.

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II

I

III

A (/ iurn 10" ruínr", 11 ) dll·I('III' li Illl"'ll'Io,,, (I/llId ••• ' 'l'dl'l';lI'de um 10ut r comum, ao rn srno t rnpo IlI' nrío I () 1(', ('" (U!ll I,.tamente dissociada dele.

Urna das razões dessa diferença é que na enunciação lingüís-tica ordinária existe um caráter imediatista e urna simetria na in-terlocução, se se considerarem os papéis dos interlocutores. Essesdois atributos - simetria e caráter imediatista - não existem naenunciação literária. A pessoa do autor, aquele que escreveu otexto literário, e o leitor da obra não têm um contato a não serpela própria instituição literária e seus rituais. Essa distância, queé urna das especificidades do discurso literário, acaba por afetar,corno nos faz ver Maingeneau, todas as dimensões da situação deenunciação.

Os sujeitos de um texto literário, construídos pelo próprio tex-to, se movem num tempo e em cenas enunciativas construídas pormeio de um jogo de relações também internas ao próprio texto. Issoequivale a dizer que o narrador e as personagens são seres pura-mente textuais. Basta que se diga que o discurso é literário para quenão se possa associar a figura do narrador ou de urna personagemcom o autor do texto, aquele que o escreveu. Tal associação seriadesaconselhada até mesmo num romance dito "autobiográfico". Oeu do narrador deve estar associado com a figura do narrador.

Existe, pois, em se tratando de discurso literário, um corte entrea instância produtora (o ser empírico que escreveu a obra, o autor) ea responsável pela enunciação (o locutor)."

Podemos distinguir duas categorias de sujeito: o autor, produ-tor físico do texto literário, indivíduo empírico; e o locutor, ser dodiscurso, o "eu" que se coloca corno responsável pela enunciação ena origem da referência dos dêiticos.

O locutor se divide ainda em duas instâncias: o narrador (nocaso da narrativa literária, sendo responsável por todo o enunciadoda obra) ou o eu lírico (no caso do poema lírico); e a personagem (nocaso da narrativa literária, sendo responsável pela própria fala).

2 Maingeneau usa o termo escritor para o ser empírico e autor pelo ser do discur-so responsável pelo dizer.

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1'1" IlIHII'.I"I ti" 1111111 01 li' , 111 IIH 1111111' 1/1111" 10 li' V()~' '

111\1 "I OI'I1H'lo do li cur' Odil'l'lo, Nl' (' (' I o, poli '/11 s dIZ r., 1'(" 011"1\1'/11 I'('HI oru • v ,li 01' su« .nun .íaçáo.

( )j, ('/'V 'mOH OH trc h d coronel e o lobisomem, de José Cân-1111,. d(' 'urvs Ih ,transcritos abaixo:

\) P"ao i iquinha, que andava perto na limpeza da sala, na ~erteza de que[uquinha vinha em missão da onça,soltou a língua ..Co~o e qu~el~nave-gava tanto chão de pastos para vir trazer ao Sobradinho InVenCIOIUcedosmatos? Um milho verde, uma partida de farinha, uma caça fre~canuncaque ele trazia. Mas aligeirava a perna em viagem de diz-que-diz:

- Carece de tino, carece de cabeça (p. 29).b) Para vistoriar a cama, que isso era penitência de toda a noit~, chegou

Francisquinha. Queria ver os lençóis, se as fronhas do menino n~da-vam em cheiro de limpeza, se o quarto estava em ordem e a monngaabastecida. Liberei os zelos dela:

- Tudo de conforme, tudo de conforme, minha velha (p. 48).c) O portador da encomenda, todo falante, cabelinho avas:linad.o, agr~-

d De qualquer modo a diretoria do Banco da proVInClaficava aseceu. h ' I'ordens do coronel. E já na porta do Hotel das Famílias, c apeu a em-baixo, o magricela arrematou: .

- Fontainha, às ordens. Artur Fontainha para servir Vossa Senhona(p. 194).

Em todas as ocorrências, podemos dizer que há dois locutores: onarrador Ponciano e uma personagem. As personagens são responsá-veis pela sua própria enunciação, em discurso direto, as~inal.adas emnegrito. Na ocorrência a), o locutor-personagem é Francisquinha: emb) é Ponciano (há na obra o narrador Ponciano e a personagem Pon-ciano); e em c) é Fontainha.

É evidente que num outro nível essas ocorrências em discurso dire-to são de responsabilidade do locutor que as cita; nesse caso, o narrador.

Ducrot (1984), em sua teoria polifônica, chama o produtor f~s~cod . d d "sujeito falante" Ducrot distingue ainda o sujeitoo enuncia o e. ,falante e o locutor de uma outra categoria de sujeito, aquele que e oresponsável pelos atos ilocutórios do discurso (afirmação, promes-sa, ordem etc), que nem sempre coincide com o locutor.

Uma ocorrência literária dessa não-coincidência nos é dada porMaingeneau (1990, p. 86):

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I)()/V\ li1\N'/'!:: , 'O/I/H '1111 VII/li 111'11 1111101, /,1'11 I '/lI 111111'111 fi 111'11111 til 'I ('111

qu tfnh 'i1:l ti' q~I~'pnl'//Hfl' logo; dl'H l' lI1odo 111111 j1ot/('l'r\'1 "111111',

SILVIA: Sou sensível a seu amor] u .rn que VOs di1:loS ' i .so Eu 11. ovos poderia amar! O que é que sabeis a esse resp ito? Tirais on lu' sapressadas demais.

(Marivaux, O jogo do amor e do acaso, III, 8)

Os trechos assinalados em negrito na fala da personagem Silviaconstituem retomadas da fala da personagem Doravante. Silvia nãopode ser considerada responsável pelos atos ilocutórios desses doisenunciados de sua fala; a responsabilidade desses atos é de Doravante.

O alocutário (o leitor), tanto quanto o locutor, é um ser do dis-curso, um sujeito construído pelo texto a serviço de seus fins. O lei-tor não se confunde, pois, com os indivíduos empíricos, exterioresao texto, que compram a obra (ou a tomam emprestado na bibliote-ca, de um amigo etc.) e a lêem efetivamente, assim como o locutornão deve ser confundido com o escritor. Chamando-se o conjuntodesses indivíduos empíricos de público, podemos dizer que o autorestá para o público, assim como o locutor (narrador, eu lírico) estápara o alocutário (leitor). O alocutário da enunciação literária nãoestá presente, é apenas virtual, muito embora o texto o institua, atri-buindo-lhe um conjunto de propriedades.

Pelo que expusemos acima, a dificuldade que nossos alunosmuitas vezes têm com os textos literários não são totalmente decor-rentes do tipo de registro lingüístico que se usa nesses textos, ouseja, não são apenas dificuldades com a língua. Acreditamos serem,antes de tudo, dificuldades decorrentes da especificidade da enun-ciação literária: seus sujeitos como seres de discurso, cenas enuncia-tivas construídas por meio de um jogo de relações internas ao própriotexto, e sobretudo o corte entre a instância produtora (o autor) e aresponsável pela enunciação (o locutor).

DISCURSO E IDEOLOGIA

o discurso é uma das instâncias de materialização das ideolo-gias, o que equivale a afirmar que os discursos são governados por

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/1111/ 11' d('I)lol'.li 11/ 1111111'111' 1'1 til IIJí'I, p. 10 ) 1/ 1111\ Idllwll'l

I"'tl~no Itll '1111 sim:

" . 'act irizar um elemento (deter-1111111' Ill' de (mmoç. () Id 'ologl a pnrn ai < '. • o uma11\111 do n .pc to da luta nos apar lhos) susce~tível de.mterl~l~com acte-

f na conjuntura ideo oglca car,()I'~'n onfrontada com outras orças . f rma ãoideoló-I'Isll , de uma formaçãosoc~alem um momento~~:. cad;e ~e r:sentações1'1 a onstitui assim um conjuntocomplex,od~ a .e;:e s: relacionam) - - em "individuais" nem' uruver'sars mas

qu nao sao n flit mas emmais ou menos diretamente a posições de classe em con 1 ourelação às outras.

d PA h (1969 1975) são as formações discursivas que,egun o ec eux , , I-m uma formação ideológica dada, e levando-se em conta uma :e ;-

\' de classe, determinam "o que pode e ~eve ser dito" a partir e. - dada em uma conjuntura social.lima poslçao _

- -o estao ne-Existem todavia, atitudes e representaçoes que na .cessariamen~e ligadas a situações de classe (class~ ~édia, alta e ,b.al-

) Na-o há por exemplo, nenhuma relação orgamca entre políticaxa . , , d d' r que of . ista étnica ecológica, e classe social. DaI se po er izeerrurusta, , _ ti t m umaconjunto complexo de atitudes e representaçoes que cons I ue id _

bé . ões de grupos. A I eoideologia pode se relacionar tam em a pOSIÇO .logia pressupõe conflitos, - conflito de classe'3de grupo (Idade, sexo,raça, cor etc.) motivados por relações de poder. , .

.. d de' to metafísico deFoi Bakhtin (1929) que, critican o to o cone Iideologia (esta como "falsa consciência") e buscando um novo con-~eito semiótico, colocou a ideologia dentro do processo real d: comu-

. ão verbal. Para melhor entendermos a relação entre dzscurso emcaç .. t ue entende-ideologia, será útil apresentarmos aqUI sucmta~en e o.q 4

mos ser as principais teses de Bakhtin sobre a ideologia. . .

Primeira tese: a materialidade da ideologia. Sendo mater~al,.a ideo-. les "reflexo" da base econorruca, umlogia não se reduz a um sImp

"modo de pensar da sociedade" .

._-- . d dif t já que a cultura não3 Nesse sentido, ideologia e cultura são entida es 1 eren es,pressupõe necessariamente relações de poder. f

4 Devemos a reflexão sobre essas teses às conversas que tivemos com o Pro ,Geraldi sobre o trabalho de Bakhtin.

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, gun 11 lt\ e: 1i /lII/II'/'ÍlllltIl/llt' ilu /tI<'uIIlSIII t' IIIS IIt'lI , () 1'"0 (I umfragment m t ri I de r t lid d , um f 1'1 m 'no tio muncln t' l 'ri r.O signo ideológico não se situa acima dos onflito so iais qu r pr -senta, mas é veículo desses conflitos, sofrendo, ao mesmo tempo, osseus efeitos. Por isso os signos existem como uma entidade viva, empermanente evolução, polissêmica, polivalente, de significaçõesmúltiplas.

Terceira tese: o signo é uma realidade que reflete e refrata outra realida-de. A realidade determina o signo, por isso ele a reflete; mas ao mes-mo tempo, o signo se torna um instrumento de refração e deformaçãoda realidade. Esse movimento dinâmico, de via dupla, da realidadeao signo e deste à realidade, de refletir e refratar, é um elemento dosmais importantes para se compreender a determinação recíproca en-tre a superestrutura ideológica e a base econômica (realidade).

Quarta tese: o signo emetge no terreno inierindioidual, na interaçãosocial. O ideológico se situa entre indivíduos organizados. Ao mesmotempo que a ideologia não pode ser divorciada do signo, este "vive"dentro das formas concretas de intercâmbio social. Isso equivale adizer, mais uma vez, que os atos de fala de toda espécie e as diferentesformas de enunciação, não estão dissociados da base material. É nainfra-estrutura que se deve buscar a materialidade dos discursos, ouseja, nas formas concretas e organizadas da comunicação social, nosmeios e fiéiscondições dos sistemas de comunicação de uma dadasociedade. Não se podem conceber relações de produção, ou estrutu-ra política e social, sem contatos verbais que os constituam.

Quinta tese: a consciência é sígnea. A ideologia não é um fatode consciência, já que a compreensão somente pode manifestar-se por meio de material semiótico. A consciência é um fato sócio-ideológico, porque ela somente adquire forma e existência nossignos criados por um grupo social organizado no interior de suasrelações sociais.

Sexta tese: a realidade da palavra é absorvida por sua junção sígnea.Sem significação, que é a função do signo, não existe palavra. A signi-ficação constitui a expressão da relação do signo, como realidade iso-lada, com uma outra realidade, por ele substituível, representável,

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111111111 'I, ivr-l, 1)1111 1/11 1111 t' i" li· 11I'ovld I dto f',11 j i I li! t'I'.\ um111 ,11111. l'r Idl'nl lIl' I lu (111,\ I" o rom] 1'('('11 lido), lima intidIgll.llIv.\ I' x I1l 'll lc lm tle v I, qu . nr I ti \ su stituir, nem re-

Ii 111',11('11,\ r '(rate r isa alguma, uma entid d que não pertence ao

111I11nio da id elogia., 'lima t se: a palavra é ofenômeno ideológico por excelência. O lugar

prlvllc iado do ideológico é o material social dos signos verb~is cria-do I 10 homem. O domínio ideológico coincide com o ~os ~lgnOS,~qlK' não quer dizer que palavra e ideologia sejam uma so c~isa. POSi-,11l'S ideológicas contendoras podem articular-se na mesma língua na-rlonal, cruzando-se na mesma comunidade lingüística. Puxado de umIndo para outro por interesses sociais competitivos, um signo é inscritolnt riormente por uma multiplicidade de "sotaques" ideológicos.

Oitava tese: a palavra é neutra em relação a qualquer junção ideolô-gica especifica. Podendo preencher qualquer espécie de função ideo-lógica, artística, política, científica, a palavra é capaz de acompanhar

toda criação ideológica.

PRÁTICA DISCURSIVA INTERSEMIÓTICA

Como nos faz ver Maingeneau (1984), a prática discursiva podeser considerada uma prática intersemiótica, na medida em que inte-gra produções não somente lingüísticas, mas de outr~s domí~iossemióticos tais como o musical, o pictórico. Isso eqUivale a dizerque um m~smo sistema de restrições semânticas opera s~bre domí-nios semióticos lingüísticos e não-lingüísticos, e que os diversos su-portes semióticos são interdependentes e sujeitos às mesmasescansões históricas, às mesmas restrições temáticas.

A formação discursiva, nesse sentido, que recai sobre organiza-ções de sentido, não se limita aos domínios dos en~nciados lingüís-ticos. Falantes, escultores, pintores, músicos, arquitetos podem sersujeitos enunciadores de uma mesma forma5ão discurs~va, ist~ é,podem participar da mesma prática discursíva. por meio de dife-rentes materiais significantes. É nesse sentido que se pode falar emRomantismo na literatura, na música, na pintura.

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Ao 111(', lllO l('Ill! o 1111' I', I t' d/fl'n'lIl\', 1'lItllll 11(/1111' 11"'11I11\1'

m c 111 mpaubilldado, das rodur '8 que 1I1111~1"l\ dlll'l't'nl(s

materiaissignificant (a palavra.a or,OS m,aal'gilt,alinh tc.),reconhecem também coincidência nessas produções se ela são r gi-das pelas regras de uma mesma formação discursiva.

Nesse sentido, em ciências humanas estende-se o termo "texto" aproduções não-lingüísticas, falando-se, por exemplo, em "texto mu-sical", "texto pictórico". Estende-se o termo "texto" até mesmo a ritoslitúrgicos, a formas de comportamento. Os textos também aí se inse-rem em situações reais de discurso, sujeitos a condições de produção.

Segundo Maingeneau, a coexistência de "textos" que perten-cem a diferentes domínios semióticos não é livre no interior deuma dada prática discursiva. Existem restrições que são determi-nadas pelo contexto histórico ou pela função social da prática. Asrestrições definem associações preferenciais, exclusões e margína-lizações específicas.

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A NI I ) I PR OU ÃO01 UR O PEDAGÓGICO

A CONSTITUiÇÃO DE SUJEITOS

Com base em algumas das contribuições da Análise do Discur-, gostaríamos de fazer uma breve reflexão sobre o que podemos

.ntender por "constituir-se como sujeito pela linguagem" e, maisspecificamente, o que podemos entender por "constituir-se comoujeito do discurso pedagógico". A expressão "constituir-se comoujeito" tem estado presente nos tra.balhos dos educadores, dos pes-

quisadores, tem sido dita e reafirma.da nos planos e propostas curri-culares, desde que se entendeu que, sem uma visão sócio-históricade linguagem, não se poderia empreender a tão almejada mudançano ensino de língua portuguesa.

o APARELHO IDEOLÓGICO ESCOLAR

Segundo Althusser (1970), a escola é, na sociedade atual, o maisimportante dos aparelhos ideológicos do Estado, superando até mesmoa família, a religião e os órgãos de comunicação. O aparelho ideoló-gico do Estado escolar foi, pois, aquele que assumiu a posição do-minante nas formações capitalistas maduras, após violenta luta declasse política e ideológica contra o antigo aparelho ideológico doEstado dominante.

Para Althusser, o sujeito da escola é, de fato, um sujeito produ-zido pela escola, como importante aparelho ideológico do Estado.Um sujeito assujeitado pela instituição escolar, desprovido de liber-dade, exceto a de aceitar livremente Sua sujeição. De acordo com

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um das prin ipais lCH 'S f(' AflhllH,l'/i "a idcofogitl l/lIl'I'IH'I(I 01' in-divíduos em sujeitos", ist ,o P If da id I aia .onstitutrindivíduos concretos em sujeitos, "O indivíduo int rp lad nsujeito (livre) para que se submeta livremente às ordens do suj it ,logo para que ele aceite (livremente) seu assujeitamento."

Nesse sentido, um discurso do poder se pronuncia sobre a edu-cação, definindo suas metas, seus objetivos e seus conteúdos, ou seja,tomando as decisões. Professores e alunos acabam sendo excluídosdo discurso pedagógico, não tendo outra opção a não ser assujeita-rem-se livremente a esse pronunciamento.

Muitas críticas têm sido feitas a essa tese de Althusser, que nãodeixa nenhuma saída para os sujeitos a não ser aceitarem seu assujeita-mento. A escola, nesse quadro redutor, acaba se transformando numlugar meramente reprodutor da ideologia dominante. Cai-se numa cau-salidade puramente mecânica: não se prevê a possibilidade de os regi-mes de poder se transformarem em conseqüência do realinhamento desuas forças. Não se reconhece a natureza mutante do equilíbrio de po-der e conseqüentemente a natureza dinâmica da estrutura social, assimcomo a heterogeneidade das identidades sociais e das estruturas dodiscurso. Não se reconhece que os diversos elementos que constituemessas estruturas estão em permanente estado de tensão entre si.

O conceito de sujeito, total e irremediavelmente subjugado pe-los poderes invocados por Althusser, anula, pois, toda e qualquerpossibilidade de verdadeiros sujeitos - professores e alunos - agi-rem e eventualmente interferirem no curso da história. Em outraspalavras: anula a possibilidade de sujeitos assumindo posições éticase de se colocar numa relação essencialmente dialética discurso e es-trutura social. Anula, em síntese, a dimensão do desejo, que é pro-pulsora da subversão.

UMA TEORIA NÃO-SUBJETIVISTA DA ENUNClAÇÃO

Procurando refletir as dimensões do assujeitamento propostopor Althusser, mas tendo como alvo o sujeito do discurso, a Análisedo Discurso defende que, afetado por dois tipos de esquecimento(PÊCHEUXEFUCHS,1975),o sujeito cria uma realidade discursiva ilusória.

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I.. 1111'1'111\('1110 ,," I, \'111 flH' (I 11)' 10 I' rolo', '01110 u rig rn1"110 q\I(' diz, 11 011lI' t' clu: Iv" 10 sontldo do. 'U di ur o. O lugar

c qu írn nt idc natur za in 011 lente c ideológica, uma zonac c' Ivc a suj ito, apar cendo precisamente, por essa razão, como

h'/-IM nstítutivo da subjetividade. O sujeito tem a ilusão de queI Il ri. dor absoluto do seu discurso. Pelo esquecimento n° 2, em1" I por meio de determinadas operações, o sujeito tem a ilusão de1" 'o i curso reflete o conhecimento objetivo que tem da realidade.

sentido, da mesma forma que o sujeito, não é concebido comond dado a priori. Segundo Pêcheux (1975), "o sentido de uma

I ilavra, expressão, proposição não existe em si mesmo (isto é, em11,\ r lação com a literalidade do significante), mas é determinado

pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo sócio-histórico em que palavras, expressões, proposições são produzidas(r produzidas)". Palavras, expressões, proposições mudam de sen-tido segundo posições sustentadas por aqueles que as empregam, oque significa que elas tomam seu sentido em referência a essas posi-ções, isto é, em referência às formações ideológicas nas quais essasposições se inscrevem. Tanto o sentido como o sujeito não são dadosa priori, mas constituídos no discurso.

É nesse sentido que a Análise do Discurso propõe uma teorianão-subjetivista da enunciação, que permita fundar uma teoria (ma-terialista) dos processos discursivos.

A instância de subjetividade enunciativa tem duas faces. Emprimeiro lugar, ela constitui o sujeito em sujeito do seu discurso,legitimando-o e atribuindo-lhe a autoridade vinculada institucio-nalmente a esse lugar. Existe um lugar institucional, que é o do pro-fessor, assim como existe um lugar institucional, que é o do aluno. Édesses lugares enunciativos que os sujeitos falam na instituição es-cola. Em segundo lugar, a instância da subjetividade enunciativasubmete o enunciador às suas regras, assujeitando-o, determinando oque pode e deve ser dito por ele.

Pêcheux deixa, no entanto, uma possibilidade de o sujeito se"desidentificar" com a formação discursiva que o determina, que éuma condição da transformação política.

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12a I l n (I I), refl .tlndo e ,0 "U .• i I '11li ri ',,(;ao", irgumcntaa favor de uma d finição mai "p Iíti a" "p itiva" d id 01 gia.Concebe-a ideologia não como um sistema de representações (ima-gens, conceitos), de estruturas que se impõem aos homens sem pas-sar pelas suas consciências, mas como luta de interesses antagônicosem nível do signo. Reconhece que o valor da ideologia consiste, aseu ver, em auxiliar no esclarecimento dos processos pelos quais podeser praticamente efetuada a .libertação da consciência política dosseres humanos diante de crenças letais. A consciência política podeser definitiva e irreversivelmente alterada "quando homens e mu-lheres, engajados em formas locais, aparentemente modestas de re-sistência política, vêem-se trazidos, pelo ímpeto interior de taisconflitos, para o confronto direto com o poder do Estado" (p. 195).

A ESCOLA COMO LUGAR DE CONFLITO

A partir dessas reflexões, podemos já falar em sujeitos / alunos,produtores de discursos e de sentidos, sem termos em mente ummodelo cartesiano de sujeito todo-poderoso, produtor único dos sen-tidos, nem um modelo althusseriano de sujeito totalmente assujei-tado a uma estrutura fechada, sem brechas. Muito embora a escolaseja um importante aparelho ideológico do Estado e como tal pro-duza sujeitos sociais, a escola é também um lugar de conflitos e deluta ideológica, em que as consciências políticas podem ser consti-tuídas, mas também alteradas num processo realmente revolucio-nário. Nesse sentido, não se pode dizer que os sujeitos-alunos, ou ossujeitos-professores, sejam meros portadores da hegemonia discur-siva do seu tempo.

Segundo a posição que defendemos, o sujeito ocupa um espaçotenso, entre a reprodução do instituído e o desejo de subverter. Pro-fessores e alunos podem de fato reagir criticamente ao discurso dopoder que toma as decisões sobre a educação. Podem não só criticarsuas metas, objetivos e conteúdos como também exigir sua partici-pação e inclusão nesse discurso educacional.

Devemos ainda ter em mente o fato de que o discurso não "re-flete" a realidade exterior, nem é o "porta-voz" da realidade, mas

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c'lc' 1ll!'IIIHl (' I H' II d Idc' ('CIlI tltll 10 1('111',110,o di. 'LII"") mal ri-

I I. A "cn enuç In" 011lI' 'd. o J i. urs n I não uma másca-I I do "1' ai", mn: UI11HJ sua' f rmas, stando esse real investidol1('k di' ur . Tida a in tituições escolares são igualmente repro-liut ra ou transformadoras. A sala de aula pode ser um espaço maistransformador do que reprodutor ou vice-versa. Como educadores,I 'mos de nos empenhar para que a transformação exista, mesmoqu ela conviva (como não pode deixar de ser) com a reprodução.

Acreditamos que é por meio de um ensino produtivo (produ-ção de textos e discursos) que a sala de aula pode se constituir numspaço não só reprodutor, mas também transformador de sentidos e

de sujeitos; um verdadeiro espaço de interação, lembrando-se deque a interação pressupõe conflito.

A interação, tal como Bakhtin a concebe, constitui uma catego-ria que nos permite superar uma concepção do sujeito centrada napolaridade do eu e do tu. O centro da relação é o espaço discursivoque fica entre ambos, o que equivale a dizer que o sujeito só constróisua identidade na interação com o outro, numa relação dinâmicaentre alteridade e identidade. A interação se localiza na relação social,que é, antes de tudo, linguagem. Os lugares sociais somente podemexistir por meio de uma rede de lugares discursivos. Daí se poderdizer que os professores e os alunos se constituem pela linguagem.

Assim orientados, podemos entender "ser sujeito" do discursopedagógico de duas maneiras. Primeiro, no sentido de estar sujeitoa tudo aquilo que a instituição num dado momento histórico impõecomo determinante. Falar em locutores situados num contexto é en-fatizar a preeminência e a preexistência da topografia social sobreos falantes que aí vêm se inscrever. O aluno e o professor, como in-terlocutores, são, na verdade, indivíduos inscritos em lugares já es-tabelecidos, por intermédio dos quais alcançam sua identidade.Ocupando, então, tais posições, por meio desse sistema de lugaresque, sendo social, ultrapassa a identidade do indivíduo, o sujeito dodiscurso pedagógico diz aquilo que pode e deve dizer, de acordocom as regras que determinam esse discurso.

Mas podemos entender que "ser sujeito" é, ao mesmo tempoque se ocupa o lugar que a instituição determina, procurar agir para

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a ultrapassagem da fixação de tais regras, que é uma condição datransformação política. Na prática da sala de aula, transformar asaulas de língua materna num momento privilegiado de interação,em que interlocutores verdadeiros (professores e alunos) têm o quedizer e o dizem por meio de sua língua, que é tomada como umaatividade, um processo criativo que se materializa pelas enuncia-ções. Em vez de técnicas de redação, exercícios estruturais e treina-mento de habilidades de leitura, o que se deve privilegiar é aprodução de textos e discursos, o que equivale a dizer privilegiarpráticas escolares que levem à formação de alunos leitores e produ-tores de textos, conscientes do lugar que ocupam e de sua capacida-de de ação (= inter-ação) para subverter o que está estabelecido.

LEITURA, DISCURSO E SUBJETIVIDADE

Considerada aqui uma prática de discurso que envolve umasituação concreta de interlocução, a leitura exige uma certa compre-.ensão do que seja a relação entre discurso e subjetividade. Cumpreindagar que sujeito é esse da leitura, de onde procede a "autoria"das interpretações - se de um sujeito tido como singular ou de umsujeito constituído nas relações institucionais concretas.

A questão da leitura demanda uma certa visão sócio-históricade linguagem, sem a qual poderíamos falar de um lugar demasia-damente ingênuo, que ignora que ligados à subjetividade estão ahistória (o sujeito é determinado por um tempo e um espaço, umlugar social), a ideologia (as relações de poder) e o inconsciente (arelação com o desejo). Cumpre-nos todavia questionar, com base noque afirmamos anteriormente, se "ser sujeito" não demandaria, tam-bém, uma certa ultrapassagem da preeminência e da preexistênciada topografia social em que os leitores se inscrevem, o que equivalea dizer que se deveria considerar uma dimensão política da subjeti-vidade, por meio da qual os sujeitos, ao mesmo tempo que ocupamlugares sociais que ultrapassam sua id ntidad d indivídu no,quai 5 onstitu m, p m igUtlrn nt s "dcsídcntifi ar" m 1-glll I)' chnmndt ,OCi.dl P 11' I •• 111(," 11fi ('011'1'11) ('0111 (11111"01

Três níveis no processo de compreensão

Com relação aos fenômenos lingüísticos em geral e ao ato de lerem particular, consideremos três níveis de terminantes do grau deestabilidade das significações.

Um primeiro nível, mais geral, que se pode dizer pertencente auma comunidade lingüística que fala uma mesma língua. É o nívelmais abstrato das sistematicidades lingüísticas, em que os sentidosse estabilizam de alguma forma por intermédio das gramáticas edos dicionários. Todavia, sendo mais uma sistematização do quepropriamente um sistema, esse conjunto de recursos expressivos quea língua é, pode ser considerado a um só tempo produto históricode um determinado grupo social e um processo de construção per-manente, por meio das enunciações concretas de sujeitos interagin-do entre si e com o conhecimento em situações de discurso.

Isso equivale a dizer que é quase impossível conceber uma lín-gua natural pronta de antemão, porque ela se (re)constrói incessan-temente pelo processo ininterrupto de interação, que envolve falantese contexto.

Considerando-se a questão particular do ato de ler, como nosmostra a literatura voltada para os aspectos cognitivos da leitura, oconhecimento lingüístico desempenha um papel central no proces-samenio do texto (KLEIMAN, 1989, p. 14), constituindo um dos compo-nentes do chamado conhecimento prévio, sem o qual não é possívelqualquer compreensão.

Um segundo nível, sócio-histórico, dos "diferentes modos dedi curso", no qual as significações estão sujeitas a valores contradi-I rios em virtude de fatores como classe social, grupo, idade, profis-" , sexo, o quadro das instituições em que os discursos sãopl' duzidos etc. Seno nível das sistematicidades lingüísticas se pres-upõ uma generalidade e uma relativa estabilidade, o que vigora

I)('/olt gundo nível é a divisão e o conflito. Todavia, esse conflito éII'gr, , dado que as significações se constituem pelos processos,li eur, iv , i temas de relações de substituição, paráfrases, sinoní-111 11, I d ntro da formações discursivas, considerando-se, aqui, asleullllÇ ( jH ursivas no ntido que lh s dá Foucault (1969), ou

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aind como um p irad r 1 o .sao : -rm nücn do li. ('lIl" O('UIlLI. l'ma comum de restriçõ s, que pode inv tir- n univ rs s t lu. is.

Existe uma certa contradição necessária nesse segundo nív I.Apesar de ser o lugar da polifonia, ou das multiplicidades de signi-ficações e interpretações, deve-se considerar que estas não se distri-buem num espaço uniforme, cada qual ocupando uma parcela deigual tamanho. Segundo Foucault (1971, p. 09), em qualquer socie-dade a produção dos discursos é controlada, selecionada, organiza-da e distribuída por um certo número de procedimentos (de exclusão,de classificação, de ordenação e distribuição, de rarefação dos sujeitosfalantes), os quais têm por objeto "conjurar seus poderes e perigos,dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temí-vel ma terialidade".

Significações há que tendem a ser impostas como verdades ab-solutas, acima dos índices sociais de valor contraditórios. Como jános fazia ver Bakhtin (1929), aquilo mesmo que torna o signo vivo edinâmico faz dele um instrumento de refração. e deformação da rea-lidade. Fatores restritivos tendem a conferir ao signo ideológico,polivalente, um caráter de monovalência, procurando apagar osconflitos de toda a espécie.

Em termos de leitura, a implicação mais importante das consi-derações acima é poder-se dizer que em todo texto há uma margemou um intervalo (ORLANDI, 1983), que é um espaço determinado pelosocial, espaço da interlocução leitor-texto/ autor, em que os sujeitosse constituem como tais, como sujeitos leitores, e se completam, ain-da que sempre provisoriamente. Ao mesmo tempo que são atribuí-dos sentidos ao texto, desencadeando-se o processo de significação,o leitor se constitui, se representa, se identifica,

Um texto pode ter sentenças lingüisticamente bem-formadas,ser coeso, ser potencialmente coerente, mas ter sua legibilidade com-prometida na relação de interação entre leitor-texto/autor, Daí sepoder dizer que o sentido não está no texto, porque o processo designificação é desencadeado nesse momento específico da interaçãoentre interlocutores que se constituem como tais, e que a leitura écompreensão de um texto e não simplesmente o reconhecimento de umsentido dado de antemão,

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, \ ,I- f raI nívr IÇ(\(' v\'r)ll n o ~

1111 1\'1'1\1\\10 r (', pu I qw'. '1 qu a sub-I I -l ) ldc I >gi 'o Olals UI1"l ,

111\I'Olll(' 10 do \ I • " inter ã ntre indivíduosd I Il r s nslltul n in l

I tI' I < c , a o de liberdade coexistindo comIlIwnl org nizad ,num p ç , tá longe de ser

ularidades e restrições, a leItura es a ,p.\ d r g , I a dizer que a mterpreta-li o que eqUlva e

11\ to int iramente rvre, , ie d . -tudo em que cada leitor- , ma espeCle e vale ,

I d(' un texto nao e u d t d referências sócio-históricas, - índepen en e asua Jl'\terpretaçao, m , is são produzidas,

I\ instituições em que as interações s~clal, I ' o das. mani-,d um terceIro mve , que e

Pinalmente, consi eremos, , I it mo produtor de textos e, id is d um sujeito ei or co

(. ta ões indlvl uais e _ d ndos embora regrada e de-, I it produçao e sen ,s nhdos, A ei ura, t ímento discursivo e, como

, I' mpre um acon eCIt rminada pelo SOCla, e se tido que Pêcheux

, ' I te o novo, Novo, no sen\1, produz mvanave men t ímento não estrutura, Não

i ao di como acon eci ,(1983) atribUl ao 1SCurSO d pende das redes de me-

, , ' I so" porque eS ndo um "aerohto m1racu o '" mpe o discurso, ao mesmo

, 'ais nos qualS irro ,mória e dos trajetos SOC1 d desestruturação-reestrutura-

'bilidade e umatempo, marca a pOSS1 d d' rso é o índice potencial de uma

d t íetos: to o 1SCU ,ção dessas re es e raj , ," de identificação, na medida

fili - s sócio-h1stoncas e 1agitação nas 1laçoe feito dessas filiações e" mesmo tempo um e

em que ele conshtUl ao , t deliberado, construído ou( , u menos conSClen e, "

um trabalho mais o d Ias determinações mconsCl-_ de todo modo atravessa o penao. mas "

entes) de deslocamento no seu ,es~:~~t~da em primeiro plano peloA possibilidade do novo e g t d enunciado está exposto, de

, d r gua a que o opróprio eqUlvOCO a m '" mente suscetível de tornar-

" d íado é mtnnsecamodo que to o enun~l d locar discursivamente de seu

d'ferente de SImesmo, se es )se outro, I t "(PÊCHEUX1983, P: 53 'sentido para derivar para um ou ro '

A questão da heterogeneidade

nsão como um trabalho queEntendemos a leitura/ compr,ee, 'fundamental de todo

da caractenshca maisdeve estar volta o para I to a nosso ver, constitui

id de Esse e emen ,discurso: a heterogene1 a, " ' ltada para mais de urna "voz"

díçã o da leitura d1aloglCa,vouma con

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Page 13: Discurso & Ensino_35-75

d dis LU' . J od 'lUl11llll1 t'1' ('olH'(·hid.l con O um I1 'llUI'.1do "aVI'H

so" do discurso.

Segundo a liçãode Courtine e Marandin (1981), a h t rog n i-dade é o diferente do discurso, aquilo que subjaz a ele e liga o s LI

mesmo com o seu outro. No seio de uma formação social, numaconjuntura histórica determinada, a heterogeneidade pode ser con-siderada o elemento constitutivo de práticas discursivas que estãonuma relação de aliança, ou de afrontamento, num certo estado deluta ideológica e política.

a discurso-outro deve ser entendido como espaço virtual de lei-tura dos enunciados ou das seqüências discursivas. Esse discurso-outro, segundo Pêcheux (1983, p. 55), "enquanto presença virtual namaterialidade descritível da seqüência, marca, do interior dessa ma-terialidade, a insistência do outro como lei do espaço social e da me-mória histórica, logo como o próprio princípio do real sócio-histórico".

Essa orientação dialógica de leitura não deve ficar restrita aosenunciados marcados pelo desdobramento da figura do locutor,como propõe Ducrot (1984) para os casos de discurso direto, indire-to e indireto livre; ou pela presença de um enunciador, como noscasos da ironia e da negação. Da mesma forma, não deve restringir-se aos casos de heterogeneidade mostrada, marcada ou não, explo-rados por Authier-Revuz (1982), como a conotação autonímica, aantífrase, a alusão, a paráfrase etc.

a outro deve ser concebido independente dessa heterogeneidadeque se mostra no plano enunciativo e também não deve ser confun-dido com a figura de um interlocutor. a outro dessa heterogeneidadeconstitutiva de todo discurso é aquilo que é o seu interdito, que foipreciso ser sacrificado para que o discurso pudesse construir sua iden-tidade (MAINGENEAU,1984, p. 31).

Interdito, ausência, falta, o outro é justamente o que promove aabertura do discurso para outras posições, outras visões de mundo,outras ideologias. Na sua relação com o sentido, o sujeito pode se vol-tar contra "o sujeito universal" por meio de uma tomada de posição,que consiste em uma separação (sob a forma de distanciamento, dúvi-da, questionamento, contestação, revolta etc.) com respeito àquilo queo "sujeito universal" lhe "dá a pensar". Do encontro do mesmo com o

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E

• 'li" til da 1,'ltlll'll 1'(1,111\\('111(' pll, '1\ tOll1ar "1'-11111 "IH'III "'1'" 11 . -

I fi' I" I, r fi posiçoes, 1'(1 1'( t'H I' ti n'CllI\IWç,1 'OI~l() , 'los l 1 n 1 ,

1II "I •. po .• c r alrn 'nl ' assumir. .I d m dos mstrumen-

A I rs ti a da 1 itura, na sala de au a, po .eser u d h bTdadesI 1 dI'.' n ontro, Repetimos: em vez de tremame~tod e a 1\ ) oI. h'ill.lr (ler sem engasgar, ler mais alto, ler mais eva~ar e ~'.'1'1( ) professor deve privilegiar é a leitura produtiva, ou seja: P:~:l~~

tr - de sentidos que sempre se renovam, por mIr a cons uçao ue de fato se forme um leitor produtor

111 'ração com o outro, para q íd de de in-Pa e de sua capaci adI' t xtos, consciente do lugar que ocu

I('rvir na ordem social. . , . .I d de o micio da escolan-

Para tanto, é necessário que o a uno, es .d 'a ex osto a uma grande variedade de textos e ~lsc~rsos, e

sl~a~~:~do aPproduzir sentid~s a partir d~~:ex:~~~~~~~!: ~~:::~ário que se respeitem os sentIdos que se P . - do_ do leitor / aluno com os textos lidos, assim como na 1Oteraçao d

çao t s textos e com seus interlocutores, produtores ealuno com ou rooutros sentidos. t t

não e uivale a dizer que qualquer sentido. dado a u~ ex oIsso q . ' lido Como dissemos acima, a

elo aluno deva ser aceito como va . ,. dp. ' I de ser um ato inteiramente livre, uma espécie eleItura esta onge - . d ndente

da leitor tem sua interpretaçao, 10 epevale-tudo, em que ca . . _ s intera-das referências sócio-históricas e das instItUlçoes ~m que_a

.' _ duzi das As interações verbaIs se dao sempreções sOClals sao pro UZI . . bietivi-num contexto sócio-histórico-ideológico :nalS a~plo, e : i~:i~ídUOd d do aluno/leitor se constitui na sua 1Oteraçao, c~m _

a e . do com outros indivíduos sOClalmente orgasocialmente orgamza , de

o de liberdade coexistindo com um espaçonizados, num espaçregularidades e restrições.

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Page 14: Discurso & Ensino_35-75

INTERTEXTUALI DADE EINTERDISCURSIVIDADE

INTERTEXTUAlIDADE E INTERTEXTO

Os textos, produtos das atividades discursivas, se relacionamcom outros textos. Todo texto é um intertexto, no sentido em queoutros textos estão presentes nele, em níveis variados, podendoser reconhecidos ou não. Chama-se, pois, de intertextualidade, arelação de um texto com outros previamente existentes, efetiva-mente produzidos. A intertextualidade é explícita quando é feita acitação da fonte do intertexto (discurso relatado, citações de refe-rências, resumos, traduções etc.), sendo implícita quando cabe aointerlocutor recuperar a fonte na memória para construir o sentidodo texto (é o caso das alusões, da paródia, certas paráfrases, certoscasos de ironia).

É muito importante considerar o contraste entre as diferentes for-mas de relatar uma mesma enunciação. Entre o discurso citado e oque cita produz-se um distanciamento que constitui um fenômeno degrande interesse para a análise do discurso. Uma questão importanteé a razão de um locutor introduzir uma citação de outro no seu dis-curso. O distanciamento entre o discurso citado e o que cita é normal-mente ambíguo: pode-se dizer que "o que eu digo é verdade porquenão sou eu quem o digo", como também o contrário. Ao mesmo tem-po que o locutor citado é um "não-eu" em relação ao locutor que cita,ele constitui também uma "autoridade" que protege o discurso dolocutor responsável.

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A citação não é um recurso totalmente livre, mas sujeito às de-terminações que a formação discursiva impõe. O locutor cita sem-pre de um lugar determinado, que regula a citação, por isso nemsempre cita quem deseja, como deseja.

Como a citação diz respeito tanto a regras, operações, como aenunciados citados, Maingeneau (1987) considera uma diferençaentre intertexto e intertextualidade de uma formação discursiva.

Como intertexto de uma formação discursiva, o autor considerao conjunto de fragmentos que ela efetivamente cita e, por intertextua-lidade, o tipo de citação que uma formação discursiva considera legí-tima por sua própria prática. As maneiras de citar, as ocasiões emque é permitido citar ou é preciso citar, o grau de exatidão exigido,variam de época para época e de discurso para discurso.

Maingeneau distingue, ainda, intertextualidade interna e intertex-tualidade externa. Temos como exemplo de intertextualidade interna,o discurso religioso jansenista, que praticamente não invoca nenhu-ma autoridade exterior à Igreja Católica. Já o discurso religioso hu-manista devoto recorre à intertextualidade externa, citandoconstantemente os moralistas da Antigüidade e os naturalistas.

Dentre os processos que recorrem à intertextualidade, destacam-se a paráfrase e o discurso direto. Palavras, expressões e proposi-ções literalmente diferentes podem ter o mesmo sentido no interiorde uma formação discursiva dada, o que configura a paráfrase. É in-gênuo pensar que o discurso direto recorre à intertextualidade de umamaneira mais autêntica do que a paráfrase, pelo fato de reproduzirliteralmente o discurso que se cita. O discurso da imprensa nos mos-tra como o discurso citado direto também pode ser usado para deter-minados fins em que o interesse visado não é a similitude absolutaentre os dois discursos.

INTERDISCURSIVIDADE E INTERDISCURSO

O interdiscurso, segundo Main en au (1987),é um proc S dreconfiguração incessant , no qual urna formação di, ur: iv leva-da a in orporar lornt ,,10 I rI" i'ClIIIII'1I dOI, I roduzklo» fOl'iI d('I,\.

"

Com esses elementos, ela provoca sua redefinição e redirecionamen-to, e suscita, igualmente, o chamamento de seus próprios elementospara organizar sua repetição, ao mesmo tempo que provoca, tam-bém eventualmente, o apagamento, o esquecimento ou mesmo adenegação de determinados elementos. A formação discursiva apa-rece como lugar de um trabalho no interdiscurso. Ela é um domínio"inconsistente, aberto e instável, e não uma projeção, a expressãoestabilizada da 'visão de mundo' de um grupo social". Coloca-se oprimado da contradição, que une e divide ao mesmo tempo os dis-cursos, que faz da própria individuação um processo contraditório.

Maingeneau (1984,1987)precisa melhor a noção de interdiscur-so com as noções de universo, campo e espaço discursivos.

Universo discursivo: "o conjunto de formulações discursivas detodos os tipos que coexistem, ou melhor, interagem numa conjuntu-ra. Esse conjunto é necessariamente finito, mas irrepresentável, jamaisconcebível em sua totalidade pela AO" (p.116).Corresponde ao "ar-quivo" de uma época.

Campo discursivo: "definível como um conjunto de formaçõesdiscursivas que se encontram em relação de concorrência, em senti-do amplo, e se delimitam, pois, por uma posição enunciativa emuma dada região. O recorte de tais campos deve decorrer de hipóte-ses explícitas e não de uma partição espontânea do universo discur-sivo" (1984b,p. 117).Conforme faz-nos ver (1984a),a "concorrência"inclui o enfrentamento aberto ou o confronto, a aliança, como tam-b m inclui a neutralidade aparente entre discursos que possuem am sma função social, mas divergem sobre o modo pelo qual ela deve~('I' preenchida. É no interior do campo discursivo que se constituiII m discurso.

Espaço discursivo: "delimita um subconjunto do campo dis-!'lll'l'iv ,li ando pelo menos duas formações discursivas que supõe-\' mnntor m r [ações privilegiadas, cruciais para a compreensão dos

ti fil'II'" 'OHconsiderados. Et-'t é, pois, definido a partir de uma deci-,\()do ,1I1,lIiNloI, 1'111 IIIIH;oIn do.' 01 [ctivos SUe p . qui a" (p. 117).

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Intercâmbios muito diferentes se estabelecem de acordo com os dis-cursos e com as conjunturas a que se visam. Por exemplo: a lingüísti-ca do século XIX apoiava-se na biologia; a lingüística de Saussure,para definir o valor lingüística, se apoiou no discurso da economia;o discurso político contemporâneo se apóia num saber econômico.Essas não são relações evidentes, tornando-se necessário justificá-Ias a cada vez. Em geral, os analistas do discurso não se interessammuito em estudar essas relações entre campos e se mantêm nos li-mites de um espaço determinado, o que é compreensível pelo receiode se cair na especulação.

Privilegiar a interdiscursividade leva à construção de "um siste-ma semântico no qual a definição da rede semântica que circunscrevea especificidade de um discurso coincide com a definição das rela-ções desse discurso com o seu Outro" (MAINGENEAU,1984).Enten~e~-do-se por "Outro" o discurso pelo qual um certo discurso se constitui,numa relação de aliança, de enfrentamento, de neutralidade aparen-te. Isso equivale a dizer que a identidade de um discurso não se cons-titui no interior de uma estrutura fechada, mas numa relação aberta,embora regrada. Pode-se dizer ainda, com Maingeneau, que o Outroé aquilo que sistematicamente faz falta a um discurso, aquela partedo sentido que foi necessário que o discurso sacrificasse para cons-truir sua identidade.

A formação discursiva tira, pois, seu princípio de unidade de umconflito sempre regrado, num espaço de trocas, e não de um caráterde "essência". As articulações de uma formação discursiva se consti-tuem sempre num espaço de dialogismo, se considerarmos o caráteressencialmente dialógico de todo enunciado do discurso, que podeser lido no seu" direito" e no seu" avesso". No seu direito, na medidaem que se relaciona com sua própria formação discursiva, e no s~uavesso, à medida que se relaciona com aquilo que é rejeitado do dIS-curso de seu Outro.

HETEROGENEIDADEDISCURSIVA MOSTRADA

Nas reflexões que fizemos até aqui, temos enfatizado que aspráticas discursivas em sala de aula devem estar voltadas para acaracterística mais fundamental de todo discurso: a heterogeneidade.Esse elemento, conforme dissemos, constitui uma condição da lei-tura dialógica, voltada para mais de uma "voz" do discurso.

A noção do sujeito como um ser que se desdobra em muitos eassume vários lugares ou papéis no discurso nos remete ao conceitode polifonia, elaborado por Bakhtin, que opõe um discurso polifô-nico, tecido pelo discurso do outro, a um discurso que chama demonológico. Todavia, para Bakhtin, não há discursos constitutiva-mente monológicos, mas discursos que se "fingem" monológicos,pois toda palavra é dialógica, todo discurso tem dentro dele outroliscurso.

O discurso relatado (direto, indireto, indireto livre), as aspas,os itálicos, as citações, as alusões, a ironia, o pastiche, o estereóti-p ,a pressuposição, as palavras argumentativas etc. são fenôme-11 que estão ligados à heterogeneidade enunciativa do discurso,pr duzida pela dispersão do sujeito e que é trabalhada pelo locu-lor d forma a fazer com que o texto adquira uma unidade e umal'() -rên ia. Para conseguir essa unidade, o locutor, na forma de uml'nn rt polifônico, tanto harmoniza as diferentes vozes como apa-1',rI os dis rdant s.

Aprcscnt: mo.' n .'II/,llir um stud r a da het rogeneidade1111dlm 111"o, ) I l'I)('l' I n tlllI' ,\('In il rlpn\'{,I1I{ll11o.,.'l leva para

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a pr' li fi I. Haia I, uulu, 11,10dI V('1n 1'1' [Olll.! 10,1H'lull'llll', ,'(lI 1111

pelos alunos como atividad 5 lú i as, d intor ssa I, li ou neulr.:Devem ser tomadas como gestos dirigidos a um d til c l rio, '(lll\

funções específicas,

É necessário, pois, que, além de dominar o funcionamento de,ses processos, os alunos possam dominar seus significados, taicomo assujeitar o alocutário, "desassujeitar" o locutor às norma svigentes (às normas de coerência que toda argumentação impõe, c

regras da racionalidade e da conveniência públicas), livrá-Io locu-tor das sansões que seu enunciado deveria acarretar, fazer com quum posicionamento ideológico tenha a aparência de uma "verda-de" já posta, um "dado inquestionável" ou um "fato" em si mesmo,incontestável etc.

As aspas, por exemplo, têm um valor semântico e uma eficáciaque devem ser conhecidos do produtor do texto,leitor ou autor. Elassomente podem ser interpretadas dentro do contexto e constituemum sinal a ser decifrado pelo interlocutor. Seu caráter imprevisível,bem como sua relação com o implícito são de grande importânciapara a produção de textos, Uma de suas funções mais sutis é servirpara simular que é legítimo manter um termo à distância,

A teoria polifônica de Ducrot (1984)e as abordagens de Authier-Revuz (1982, 1984) e de Maingeneau (1987) privilegiam a complexi-dade do tecido enunciativo do discurso, A diferença é que, enquantoDucrot, não muito comprometido com as determinações histórico-sociais a que todo discurso está sujeito, se prende a uma complexi-dade mostrada na superfície do enunciado, Authier-Revuz eMaingeneau procuram dar conta, também, de um tipo de heteroge-neidade (constitutiva) não-mostrada no nível da superfície do dis-curso, mas determinante das significações,

A TEORIA POllFÔNICA DE DUCROT

Para Ducrot (1984), o sentido de um enunciado consiste numarepresentação (no sentido de teatro) de sua enunciação. Numa cena,movem-se as personagens, que se representam em vários níveis,

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111111111 1'111 11'1,IH' p !ljtlto \'\111\11:

) 11 I lI'pd 11101' 11,i'(1 Ip \'1111111 I.\dp (o .111101', I r) luL r mpírico);

h)llIlllI'k IlI( rl'alií',<1ol'ul silo ut ri '(am aça,pergunta,pro-

nu-te l .):I) (l S 'r signado no enunciado como sendo seu autor, reco-

"h ido pelas marcas de primeira pessoa (locutor),

111 sma pessoa podem ser atribuídas as três propriedades, masIl\ "!Upre. A questão é bastante complexa: Exempl~: "Ah, eu sou

11\ lmb cil; muito bem, você não perde por esperar". A mesma pes-11\ podem ser atribuídos a) e c), ou seja, a mesma pe~soa pode ser o

, lodutor empírico e o locutor, mas não ~), o responsav,el p~lo ~to deIInnação realizado no primeiro enunCIado. Esse ato e atribuído ao

1'11 interlocutor.Os sujeitos podem ser: locutor, sujeito falante e enunciador.

Locutor: um ser que é, no próprio sentido do enunciado, apre-'ntado como seu responsável, ou seja, como al?uém a quem se deve

Imputar a responsabilidade desse enunciado. E a ele que se refere oI ronome eu e as outras marcas de primeira pess~a. O locutor pode~ r diferente do autor empírico do enunCIado (diferente do falantefetivo), seu produtor. O autor real pode ter pouca relação com o

Locutor,que é uma ficção discursiva. Um ser do disc~~so, pertencen-te ao sentido do enunciado e resultante dessa descnçao que o enun-

ciado dá de sua enunciação.Sujeito falante: o ser empírico, o autor, aquele que produziu o

enunciado, um elemento da experiência.Enunciadores: seres que são considerados como se expressan-

do por meio da enunciação, sem que para tanto se lhe atribuam pa-lavras precisas; se eles "falam" é somente no senti.do em que ~

, _ e' vista como expressando seu ponto de VIsta, sua POSI-enunCIaçao_ atitude mas não, no sentido material do termo, suas palavras.çao, sua , " .,

C d ao "centro de perspectiva" de Genette ou ao sujeitoorrespon em _.

d.~ -Órr dos autores americanos. A noçao de enunCIadores

a conSClenCIatem sua pertinência lingüística na ironia, na negação, nos a~os defala, nos enunciados com "mas", na pressuposição. O objetivo deDucrot é mostrar a pertinência da metáfora teatral.

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" Ou r t faz inda urna divi ,eI( no locut r: "locutor 1.'11 ILlant tal"e lo~utor enquanto pessoa do mundo", isto .o 10 utor vi to no uengaJament~ enunciativo e o locutor visto como "pessoa completa".

Analogia com a literatura (GENEITE 1972)' o autor c I,. o oca em cenaa~ persona~ens. O locutor, responsável pelo enunciado, dá existên-CIa,~or mero desse, a enuncia dores, de quem ele organiza os pontosde VIsta e as atitudes.

equivalentes literáriosJ-

locutor narrador e personagem (quem fala)

sujeito falante ( ................................autor quem Inventa, imagina)

enunciadores de nersoecti........................... centros e perspectiva (quem vê)

Ducrot considera o tempo do narrador e do autor Em A'd' . ~roroo=>= o narrador apresenta acontecimentos que relatam

u~~ ~Isao que não pode ser a sua, no momento em que narra suahistória. Os centros de perspectiva nem sempre são do narrador.

o discurso citado

No discurso relatado em estilo direto: "João m d' .Ór •.,,, e tsse: eu VI-rei.. ' temos um enunciado único, dois locutores diferentes, um sósUJelt~ f~lante, ~uas enunciações, LI é responsável pelo emmciadototal: Jo~o rr:e disse: 'eu virei'". L2 é responsável por 'eu virei'. Trata-se de p,ohforua.no nível do locutor. Do ponto de vista empírico, temosuma so enunciação, pois, nesse caso, ela é ação de um único sujeitof~l~nte, mas a imagem que o enunciado dá dela é a de troca, de umdialogo. ou ainda de uma hierarquia de falas.

Os casos de dupla enunciação são o RED (discurso relatado di-~eto): os ecos, os diálogos internos, os monólogos. O estilo diretoimplica fazer falar um outro, atribuindo-lhe a responsabilidade da

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rrespondência[alu, q I na Impllcu quc' sua v .rdad t nha umlit r I, t rmo a t rmo.'

No discurso indireto, a polifonia ocorre com uma fronteira me-nos delimitada, porque o locutor incorpora lingüisticamente na suafala a fala de L2, o que equivale a dizer que há apenas uma situaçãode enunciação, a do discurso que cita, e um único locutor. Podemosdizer que o discurso indireto somente é citado em função do seusentido, porque constitui uma paráfrase da enunciação citada, jáque não se reproduz o significante. Essa falta de autonomia enun-ciativa é responsável pelo desaparecimento das exclamações, dasinterrogações, dos imperativos ete. do discurso citado e, de umamaneira geral, com prejuízo de todos os níveis da subjetividadeenunciativa (pessoas, dêiticos). Muitas vezes é difícil saber no dis-curso indireto a quem exatamente atribuir as palavras, se ao locu-tor que cita, se ao citado. Para que o alocutário identifique umapalavra ou outra como sendo do locutor citado, aquele que citapode marcá-Ias com aspas ou com um (sic), como é muito comum

no discurso da imprensa.No discurso indireto livre, o locutor fala de perspectivas enun-

ciativas diferentes, mas sem demarcá-Ias lingüisticamente. O discur-so indireto livre não se introduz por uma oração subordinada (disseque, falou que, perguntou se ete.) como no discurso indireto, nem poruma ruptura (dissociação de dois atos de enunciação) como no dis-curso direto. Somente o contexto pode dizer se um enunciado é dis-curso indireto livre. Na verdade, esse tipo de discurso misturaelementos do discurso direto com os do indireto. Dessa forma, sema dissociação de dois atos de enunciação e sem a perda total da sub-jetividade (exclamações, interrogações etc.) enuncia-se em discurso

indireto livre.

I Como nos faz ver Maingeneau (1990),nada garante que no estilo direto a obje-tividade seja maior. O discurso citado somente tem existência por meio dodiscurso que o cita. Esse constrói como quer (em estilo direto ou indireto) umsimulacro da enunciação citada (MAINGENEAU,1990,P: 105).Pode-se, por umacontextualização particular, por uma segmentação ou outro recurso, desvir-tuar completamente o sentido das palavras do outro. O discurso direto ape-

nas supostamente repete as palavras do outro.

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É muit muro nao s ' l ,('.'t'/'l1 1',IIlça do lu ',H' c l

ça o discurso indireto livre e ond I t rrnina, porqu muita v 7. s avoz do narrador e a da personagem estão muito misturadas."

A função do discurso indireto livre é restituir a subjetividade dalinguagem e integrar as falas ao fio da narração. Conforme disse-mos, o discurso indireto integra as falas, mas destrói a subjetivida-de, enquanto o discurso direto mantém a subjetividade ao preço dedesintegrar as falas.

Adotando-se o ponto de vista de Ducrot, mesclam-se no discur-so indireto livre as vozes de dois enunciadores (E1 e E2, o que confi-gura um caso de polifonia), sem que se possa distinguir com clarezao ponto de vista (perspectiva) de onde se fala: se é o ponto de vistado narrador ou da personagem.

11'1 -

A ironia

A ironia, fenômeno de grande sutileza, passível de análises di-vergentes, é vista por Ducrot como um caso de polifonia. O locu-tor responsável coloca em cena um enunciador e o faz dizer coisasabsurdas e assumir uma posição cuja responsabilidade o locutornão quer admitir. O discurso irônico sustenta, pois, o insustentávelpor meio de um jogo polifônico. "Vocês vêem, Pedro não veio mever" (de fato, Pedra veio, mas alguém - um enunciador - susten-tava que ele não viria). "Pedra não veio" constitui o ponto de vistaabsurdo, absurdidade de que o locutor não é o responsável. Esteassume as palavras, mas não o ponto de vista que elas apresentam.Há casos em que o enunciador ridículo pode ser assimilado ao pró-prio locutor, tratando-se mais especificamente de casos de auto-ironia: "Vocês vêem bem, está chovendo" (o próprio locutor havia

2 Maingeneau (1990) observa, no entanto, que a discordância entre as vozespode ser uma "pista" para o leitor de que existe mais do que uma instânciaenunciativa. Outra "pista" seria considerarem-se os elementos que são exclui-dos desse discurso: 1. subordinação por um verbo de dizer (disse que, falou queetc.); 2. a presença do par dêitico eu/tu, embora possamos encontrar apenas umelemento desse par.

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• li, I -ntado qu ' dlo q'l li, \' n.iu ch v). distan ic m nt ntre aI osiça d I utor t' do 'I1UI"\ iador pode ser marcado por índiceslin üísticos, gestuais ou situacionais. Muitas vezes, por falta des-HI'S índices, é o contexto que vai determinar a leitura irônica.'

O enunciado irônico não é, pois, da responsabilidade do locutorr sponsável por sua enunciação". Esse locutor, ao mesmo tempo quelisa a expressão, mostra (mesmo sem marcá-Ia explicitamente) que elanão é adequada e que deve ser lida com outro significado. Essa estraté-gia de usar e mostrar configura o que Authier-Revuz (1984)chama deconotação auionimica.

3 Segundo Maingeneau (1984b), a ironia é um gesto dirigido a um destinatário,não uma atividade lúdica e desinteressada. Ele considera a divergência entreos analistas quanto à função da ironia: alguns autores a vêem como um gestoagressivo, outros a vêem como um gesto neutro e até mesmo como uma atitu-de defensiva, que se destina a desmontar certas sanções ligadas às normas dainstituição da linguagem. O interesse estratégico da ironia consiste, no entan-to, segundo Maingeneau, nos valores contraditórios do enunciado irônico, semque este seja submetido às sansões que isso deveria acarretar, o que equivale adizer que a ironia consiste numa armadilha que permite o" desassujeitamentodo locutor", que consegue escapar às normas de coerência que toda argumen-tação impõe, às regras da racionalidade e da conveniência públicas.

4 Gostaríamos de ressaltar que nem sempre a ironia envolve questões deintertextualidade ou interdiscursividade, como no caso em que Helga, espo-sa de Hagar (personagens de Dik Browne), vendo o esposo à mesa bebendo,já bastante "chumbado" pelo álcool, exclama ironicamente: "Vivaaa! voupassar outra noite emocionante com o Sr. Diversão". O amigo, que acompa-nha Hagar, não tendo entendido o sentido irônico, lê o enunciado em seu"direito" e pergunta: "Não quero ser intrometido, Hagar, mas a Helga estásaindo com outro homem?" No exemplo em questão, o companheiro deHagar, não percebendo a indicação de que o enunciado de Helga deveria serlido no seu "avesso", entendeu que Helga realmente estava traindo o mari-

do com outra pessoa (Sr. Diversão).

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A ncg cão

Ducrot distingue dois tipos de negação que podem ser con id '.rados como casos de polifonia: a polêmica e a metalingüís tica.

A negação polêmica. Em "Pedro não é gentil", o locutor põe emcena os seguintes enunciadores: E1, com uma asserção positiva relativaà gentileza de Pedro ("Pedro é gentil"); E2, com uma recusa de El.O enunciador E2 é assimilado ao locutor; E1 é um outro enuncia dor,que não é o locutor. A enunciação é analisável como encenação dochoque entre dois pontos de vista, ou duas atitudes antagônicas,atribuídas a dois enunciadores diferentes: o primeiro assume o pon-to de vista rejeitado, e o segundo, a rejeição do ponto de vista. A

negação polêmica introduz um ato de refutação.

A negação metalingüística. Em "Pedro não parou de fumar; defato, ele nunca fumou em sua vida", o enunciado negativo respon-sabiliza um locutor que enunciou seu positivo correspondente. A

negação metalingüística visa atingir o próprio locutor do enuncia-do oposto, do qual se contradizem os pressupostos: "Pedro não éinteligente, ele é genial".

Os enunciados introduzidos por ao contrário, pelo contrário, tam-bém são casos de polifonia. "Pedro não é gentil, ao contrário, ele é insu-portável". O escopo de' "ao contrário, ele é insuportável" não é "Pedronão é gentil", mas "Pedro é gentil", não-expresso no enunciado.

Moeschler (1982, apud MAINGENEAU,1987), argumentando quea negação é um marcador que incide sobre um elemento delimita-do, propõe que se considere três tipos de refutação (negação polê-mica): a) retificação - um enunciado negativo tem valor de retificaçãose sua estrutura semântica é NEG (p), mas q. Sua estrutura necessitada presença de um conjunto antonímico, que entretém uma relaçãode oposição (contradição ou contraditoriedade), e que pode ser in-troduzido por um conector argumentativo mas (marcador indica ti-vo de retificação): "A vitória de FHC não é certa, mas provável"; b)refutação pressuposicional - visa refutar a pressuposição associadaao elemento rejeitado: "O Presidente não parou de fumar, jamais

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\ '\011 1\ VI'III [1\'11II\polll\"\ \ \111111, /\ \1'11111\\(1 PII' 111° I ." Prcsid nt fumava

" \ LI' r'fulaI I IkolÇolli, No • 'rnll<" . 1 . r use r uma asserção sob a

_ pos'IC'/Onal - VI a q'I \I' "i r) r(U'IIICl tIO pro , NEG (p) uma vez que .

iu tificahva. Sua estrutura eI 11111'\ li irne ) . h' ninguém nele."'I. li' h t 1não é bom: nao a

Os atos de falad para situar.ador fornece um qua ro

A distinção locutor / enunCl d l' agem. No teatro de Mo-I d s atos e mgu . ..

1'I'rI lingüística o prob ema o tenta a tese da defesa da rehglao,;li r , Sganarelle (ser gr~tesco) s~:la indireto, o locutor "representa

1, "Você tem a Folha? I ato de " . ter médio de Sganarelle,.m Mohere por in

a dúvida, no sentido em qu: de def~nder a religião, e, por essa re-"representa" um certo mo o. .0 Ducrot diferencia os atos

tra mtença .presentação, revela u~a o~ '1 ção do locutor ao enunciador, aos

. . que há assnru a 1 ar em cenaPrimitIVOS, em u esse ato por co oc

o locutor rea izaderivadoS, em que rópria atitude.

. dores expressando sua Penuncla

~as .caso de polifoma.

Ducrot como um .É tratado igualmente por tou cansado demais." DOls

Po está bom, mas es . '1 eu alocu-"Certamente o tem imila a E2 e aSSlml a senunciadores: El e E2. O locutor se ~s:om" é um ato de fala derivado

" El "Certamente o tempo es a t de fala primitivo (otano a . demais" é um a o

- "): "Estou cansado D ot o mas (e seuS("concessao , . d ) Segundo ucr r •'1 nunCla or i. lê . pOlSlocuto!' se assínu a ao e mentativo por exce enCla,similares) constitui um opera~or ::~~cutor à de um enunciador.permite contrapor a perspectiva

Pressuposição.f . "Pedro parou decaso de poh orua.

Também é tratada corno um , el pelo pressuposto "Pedro. d . E1 responsav . E2 El

fumar" .Dois enunCla ores. I O locutor se assimüa a ." E2 responsável pelo posto.

fumava e ,73

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dHHiI11i111-,"l'no '/i ( JN" ,°1 1111.10g '/'0/) J!/l li li r

popular", pressupõ -s . "O 'esid ., I I't\ I I('I)/e t'. '1.1 /ll(lno.. pI SJ nt ant . .

parou de bater na Sua mulh "(P ra mais p pul.l,.". "voeer ressupost·" I 'mulher"). O fenômeno d o. e e casad batia nn

, a pressuposição é de í ~.

ravel para o analista d di e Importancla consido rscursoNão devemos confundo .

Ir a pressupOSlção c b .suposição está inscrita n' om o su entendida A pres-

o enunCIado,como um co .parou de fumar _ "f mponente IIngüístico''" - umava antes"; sua filha che" .

fIlha . O pressuposto pertence len go~ = ele tem umabentendido por sua v . P amente ao sentido literal. O su-_ ' ez, eXIge, segundo Ducrot (198) .

çao do componente reto" E 4 , a Interven-nco. xemplo' [ac - dsubentendido para e . . ques nao espreza vinho. Umsse enunCIado' "J '

tendido permite acrescentar I . a~ques e alcoólatra". O suben-a guma COIsa"se di ~ Itempo em que é dita". m ize- a, ao mesmo

Nominalizações

Todas as nominalizações são vistas c . .polifonia: "a degradaça-o da si _ orno casos pnvIlegiados de

a SItuaçao" " Ihorí ,do brasileiro" (me/horia _ ' . a me orra do mvel de vida

- nome substantIVo) J' í aftro lugar, anterior que a sit _ . a esta a Irmado em ou-

, uaçao se degrado 'do brasileiro melhorou. u, que o nívs] de vida

A ABORDAGEM DE AUTHIER-REVUZ

(heterogeneidade mostrada, marcada e não-marcada)

Authier-Revuz (1984)distín ue no .rogeneidade mostrada a f g conjunto das formas de hete-

s ormas marca das (d' .itálicos, incisos de glosa) f IScurso direto, aspas,

e as ormas não- ddado a conhecer sem um ,marca as, em que o outro é

a marca uruvor-, (o di '.ironia, o pastiche, a imit- , tscurso IndIreto livre, a

açao, as metaforas, os jogos de palavras).Formas que acusam a pres d

trada): ença o outro (heterogeneidade mos-

74

I () di ( I111li H'Lilddll dl'<'Iol' o 11M'/II'II\) l'I'I.ILldn indireto.

. jl, rmml1H d(1 (,0I10/IIÇIlIl uuíonínsicn: por m i) da a pa ,do itá-li ,ti ntonaçõ sp cíficas. do comentário, da glosa, doaju tam nto etc., o locutor inscreve o outro no seu discurso,s m que haja interrupção do fio desse discurso.

3. o discurso indireto livre, a ironia, a antífrase, a alusão, a imi-tação, a reminiscência, o estereótipo, cuja estrutura enuncia-tiva pode ser religada à da conotação autonímica.

Authier-Revuz fala ainda em "autonímia simples" (exemplo: odiscurso direto), em que a heterogeneidade constitui um fragmentomencionado entre os elementos lingüísticos do discurso, havendoruptura sintática, caso de dupla enunciação. A autora fala ainda em"conotação autonímica", caso em que se conjuga menção e uso (ele-mentos entre aspas, itálico). Na conotação autonímica, o fragmentodesignado como "outro" é integrado ao fio do discurso sem rupturasintática: de estatuto complexo, o elemento mencionado é inscritona continuidade sintática do discurso ao mesmo tempo que remetea um exterior.

Na palavra entre aspas (ou em itálico) da conotação autoními-ca, não há ruptura sintática: a expressão aspeada é ao mesmo tempousada e mencionada: Sinal dos tempos: a imprensa "feminina" cede nomomento em que a mulher se afirma. A colocação entre aspas equivale auma glosa do tipo "como diz X", em que X pode remeter aos maisvariados enunciadores: opinião pública, certos indivíduos perten-centes a certas classes ou grupos sociais etc. As palavras aspeadassão atribuídas a um outro espaço enunciativo cuja responsabilidadeo locutor não quer assumir, ao espaço enunciativo exterior, isto é, deuma outra formação discursiva. Segundo Authier-Revuz, podem-seatribuir várias funções à operação de distanciamento pelas aspas:aspas de diferenciação, aspas de condescendência, aspas pedagógi-cas (no discurso de vulgarização científica), aspas de proteção (paraindicar que a palavra utilizada é apenas aproximativa, daí o objeti-vo ser proteger-se da crítica de seu interlocutor), aspas de ênfaseetc. As aspas mantêm os termos aspeados à distância e constituem

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