discurso competente - marilena chaui

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Resenha – O discurso competente. Ética, Violência e Política Marilena Chaui A definição de ideologia é apresentada como um sistema de normas e representações que nos “ensinam” a agir conforme uma imagem pré-determinada. Tais normas são disseminadas pelo discurso ideológico, que tem como função unificar pensamento, linguagem e realidade, possibilitando aos sujeitos sociais a identificação com a imagem criada pela classe dominante. Ao unificar o ser, o dizer e o pensar, formam-se lacunas no discurso, que garantem a suposta veracidade ao que é afirmado, conferindo ao discurso uma coerência ideológica. As idéias que compõem a ideologia estão por definição “fora do lugar”, isto é, fora do espaço social e político de uma sociedade determinada. Parece que os sujeitos sociais e suas relações são produto das idéias, quando o que ocorre é o contrário: as idéias são criadas pelos sujeitos. A ideologia não tem história. Isso não significa que ela seja um corpo imutável de representações e normas e sim duas outras coisas: que as transformações ocorrem, em um discurso ideológico, conforme os interesses da classe dominante em encobrir outra história e que a função da ideologia é produzir uma imagem do presente como progresso e desenvolvimento para exorcizar o risco de enfrentar efetivamente a história. Afirmar que a ideologia não tem história, é, portanto, afirmar que, além de “fora do lugar”, as idéias estão “fora

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Page 1: Discurso Competente - Marilena Chaui

Resenha – O discurso competente.

Ética, Violência e Política

Marilena Chaui

A definição de ideologia é apresentada como um sistema de normas e

representações que nos “ensinam” a agir conforme uma imagem pré-

determinada. Tais normas são disseminadas pelo discurso ideológico, que tem

como função unificar pensamento, linguagem e realidade, possibilitando aos

sujeitos sociais a identificação com a imagem criada pela classe dominante. Ao

unificar o ser, o dizer e o pensar, formam-se lacunas no discurso, que

garantem a suposta veracidade ao que é afirmado, conferindo ao discurso uma

coerência ideológica.

As idéias que compõem a ideologia estão por definição “fora do lugar”, isto é,

fora do espaço social e político de uma sociedade determinada. Parece que os

sujeitos sociais e suas relações são produto das idéias, quando o que ocorre é

o contrário: as idéias são criadas pelos sujeitos.

A ideologia não tem história. Isso não significa que ela seja um corpo imutável

de representações e normas e sim duas outras coisas: que as transformações

ocorrem, em um discurso ideológico, conforme os interesses da classe

dominante em encobrir outra história e que a função da ideologia é produzir

uma imagem do presente como progresso e desenvolvimento para exorcizar o

risco de enfrentar efetivamente a história.

Afirmar que a ideologia não tem história, é, portanto, afirmar que, além de “fora

do lugar”, as idéias estão “fora do tempo”. Tal afirmação é aparentemente

contraditória, pois, se a ideologia auxilia a dominação de uma classe social

historicamente determinada, as idéias deveriam ser atuais. Mas é aí que se

diferencia o saber da ideologia. 

O saber é o trabalho para elevar a dúvida a conceito, ou seja, é preciso fazer

questionamentos para construir as idéias. Já na ideologia é preciso ignorar as

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lacunas em seu discurso, para não abrir espaço a questionamentos que

possam ameaçar a ideologia estruturada, assumindo a forma de idéias

instituídas.

O discurso competente é aquele que pode ser dito, ouvido e aceito como

verdadeiro ou autorizado porque perdeu os laços com o lugar e o tempo de sua

origem; é instituído e proferido com a seguinte restrição: “não é qualquer um

que pode dizer a qualquer outro qualquer coisa em qualquer lugar em qualquer

circunstância”. É previamente estabelecida a forma, o conteúdo do discurso, a

autoridade e a importância de quem transmite o discurso para quem o escuta.

Esse discurso pode ser melhor observado em um fenômeno histórico preciso: a

burocratização e a idéia de Organização.

Burocratização: sistema de autoridade que se impõe no trabalho criando uma

escala de status socioeconômico baseado na hierarquia de tal modo que subir

um degrau da escala corresponde à conquista de um novo poder e de

responsabilidades que não dependem daquele que ocupa o posto, mas que

pertence ao próprio degrau hierárquico. 

Organização: crença em uma racionalidade em si e para si da sociedade, que

permite a presença e o controle do Estado na sociedade civil, criando uma

realidade que se manifesta da mesma forma em todas as esferas sociais. Esse

poder do Estado é, ao mesmo tempo, negado e afirmado pelo discurso. A

Burocratização e a Organização nega que determinada figura exerça poder

porque este é essência dos cargos e funções que, por acaso, estão ocupados

por homens determinados. 

Essa modalidade do discurso competente é dividida, conforme a autorização

dos indivíduos em transmiti-lo, em três tipos: o discurso competente do

administrador-burocrata, o discurso competente do administrado-burocrata e o

discurso competente e genérico de homens reduzidos à condição de objetos

sócio-econômicos e sócio-políticos, na medida em que aquilo que são, aquilo

que dizem ou fazem, não depende de sua iniciativa como sujeitos, mas do

conhecimento que a Organização julga possuir a respeito deles.

Outra modalidade do discurso da competência é o discurso neutro da

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cientificidade ou do conhecimento, que vem da transformação sofrida pela

ideologia burguesa com o processo da burocratização. Em sua forma clássica,

o discurso burguês era legislador, ético e pedagógico. Nomeava o real, possuía

critérios para o bem e o mal; era o discurso da tradição. Com o fenômeno da

burocratização e da organização, a ideologia deixou de fundar-se em essências

e valores para converter-se em discurso anônimo e impessoal, fundado na pura

racionalidade dos fatos. Não deixou de ser legislador, ético e pedagógico, mas

passou a proferir-se ocultando o lugar de onde é pronunciado. 

O discurso da cientificidade aparece quando um conhecimento da

racionalidade tal que esta já não é considerada como aplicação da ciência no

mundo, mas como ciência em si, inserível em qualquer coisa, confundindo a

ciência com a cientificidade.

O discurso competente enquanto discurso do conhecimento é o discurso do

especialista. Existem tantos discursos competentes quantos lugares

hierárquicos autorizados a falar e a transmitir ordens aos degraus inferiores.

Sabemos também que é um discurso que não se inspira em idéias e valores,

mas na suposta realidade dos fatos e na suposta eficácia dos meios de ação.

Para que esse discurso possa ser proferido e mantido é imprescindível que não

existam sujeitos, mas apenas homens reduzidos à condição de objetos sociais.

Contudo, o discurso competente como discurso do conhecimento é usado para

tentar reaver aos objetos sociais a qualidade de sujeitos que foi tirada,

supostamente valorizando aspectos individuais, já que não poderiam exercer

seus papéis como sujeitos sociais. Para tanto criaram discursos derivados que

pretendem ensinar ao indivíduo como se relacionar com o mundo. O homem

passa a se relacionar com a vida, com seu corpo, com a natureza e com os

demais seres humanos através de modelos científicos nos quais a experiência

própria é descartada. Para tanto, é preciso a interiorização de suas regras, pois

aquele que não as interioriza pode se sentir anormal e incompetente para viver.

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Comentário

No texto O Discurso Competente, a autora explica o uso da ideologia como

método de controle das classes dominantes para a sociedade agir de acordo

com normas pré-determinadas, usando o discurso ideológico, fundamentado

em idéias que estão “fora de lugar” e “fora do tempo” e não são passíveis de

contestação, condições fundamentais para a eficiência do discurso

competente, que delimita condições específicas de onde, quando e quem pode

transmitir o discurso. 

Essa determinação de posições de poder em que o sujeito que as ocupa é

autorizado a falar acaba influenciando a identidade do mesmo. Ele internaliza a

autoridade hierárquica dentro da organização em todos os outros aspectos de

sua vida, conceito também presente no texto Identidade, de Ciampa, que

também cita a importância das posições sociais na construção da identidade

dos indivíduos.