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DISCIPLINA NA ESCOLA: O PASSADO AINDA SE FAZ PRESENTE BARBOSA, Fernanda Aparecida Loiola – IASBEAS/ UTP [email protected] Eixo Temático: História da Educação Agência Financiadora: Não contou com financiamento Resumo Esta comunicação tem como objetivo promover uma reflexão acerca das práticas disciplinares à luz de aspectos históricos da educação no Brasil. Para embasar a discussão foram utilizados os estudos de autores como Azevedo (1976), Foucault (2000), Luzuriaga (2001), Lemos (2002), Souza (2000, 2002), Dalcin (2005), Bastos (2006), Saviani (2007), Brust (2007), Campos (2008), Parrat-Dyan (2008), dentre outros. O texto está organizado em três seções. Na primeira são apresentados recortes históricos envolvendo a disciplina no cenário educacional brasileiro entre os séculos XVI e XX, bem como inferências sobre o conceito de indisciplina no período delimitado. Inicialmente abordou-se o modelo jesuítico de educação, no qual as ações disciplinares estavam pautadas no controle dos comportamentos discentes e na aplicação de diferentes tipos de punições. Em seguida foram retratados os métodos de ensino individual e mútuo, tocando brevemente na tradicional visão comportamentalista de disciplinamento. Adiante, aborda-se a questão da disciplina no movimento escolanovista, através de um exame dos pressupostos originalmente traçados pelos seus idealizadores e dos equívocos na compreensão destes. Na segunda parte do artigo faz-se uma análise da problemática disciplinar no início do século XXI, com o intuito de elencar permanências do passado que influenciam as ações docentes na atualidade. Através desta pesquisa é possível perceber que, embora já não se apliquem castigos físicos como o uso da palmatória, a escola ainda se utiliza de outros dispositivos para controle dos alunos. Na terceira e última seção são tecidas algumas considerações com vistas a promover a reflexão dos educadores sobre suas práticas disciplinares, alertando-os para a necessidade de transformação da realidade vigente. Palavras-chave: História da Educação. Práticas Pedagógicas. Disciplina. Introdução A indisciplina configura-se um dos principais problemas com que se deparam os educadores na atualidade. Este é um desabafo frequente dos professores dos diferentes níveis de ensino, desde a Educação Básica até o Ensino Superior, conforme verificamos nos estudos empreendidos por, Aquino (1996), Garcia (1999, 2008), Parrat-Dyan (2008), Torres (2008) e Vasconcellos (2009).

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DISCIPLINA NA ESCOLA: O PASSADO AINDA SE FAZ PRESEN TE

BARBOSA, Fernanda Aparecida Loiola – IASBEAS/ UTP

[email protected]

Eixo Temático: História da Educação Agência Financiadora: Não contou com financiamento

Resumo Esta comunicação tem como objetivo promover uma reflexão acerca das práticas disciplinares à luz de aspectos históricos da educação no Brasil. Para embasar a discussão foram utilizados os estudos de autores como Azevedo (1976), Foucault (2000), Luzuriaga (2001), Lemos (2002), Souza (2000, 2002), Dalcin (2005), Bastos (2006), Saviani (2007), Brust (2007), Campos (2008), Parrat-Dyan (2008), dentre outros. O texto está organizado em três seções. Na primeira são apresentados recortes históricos envolvendo a disciplina no cenário educacional brasileiro entre os séculos XVI e XX, bem como inferências sobre o conceito de indisciplina no período delimitado. Inicialmente abordou-se o modelo jesuítico de educação, no qual as ações disciplinares estavam pautadas no controle dos comportamentos discentes e na aplicação de diferentes tipos de punições. Em seguida foram retratados os métodos de ensino individual e mútuo, tocando brevemente na tradicional visão comportamentalista de disciplinamento. Adiante, aborda-se a questão da disciplina no movimento escolanovista, através de um exame dos pressupostos originalmente traçados pelos seus idealizadores e dos equívocos na compreensão destes. Na segunda parte do artigo faz-se uma análise da problemática disciplinar no início do século XXI, com o intuito de elencar permanências do passado que influenciam as ações docentes na atualidade. Através desta pesquisa é possível perceber que, embora já não se apliquem castigos físicos como o uso da palmatória, a escola ainda se utiliza de outros dispositivos para controle dos alunos. Na terceira e última seção são tecidas algumas considerações com vistas a promover a reflexão dos educadores sobre suas práticas disciplinares, alertando-os para a necessidade de transformação da realidade vigente. Palavras-chave: História da Educação. Práticas Pedagógicas. Disciplina.

Introdução

A indisciplina configura-se um dos principais problemas com que se deparam os

educadores na atualidade. Este é um desabafo frequente dos professores dos diferentes níveis

de ensino, desde a Educação Básica até o Ensino Superior, conforme verificamos nos estudos

empreendidos por, Aquino (1996), Garcia (1999, 2008), Parrat-Dyan (2008), Torres (2008) e

Vasconcellos (2009).

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Se analisarmos este panorama, veremos que existe algo comum entre os docentes que

compartilham deste sentimento de impotência: suas atitudes diante das situações de

indisciplina quase sempre estão voltadas ao controle dos comportamentos discentes. O que se

percebe é um grande esforço por esquadrinhar aquilo que está aparente – as condutas

indisciplinadas dos estudantes – sem a devida investigação dos fatores capazes de influenciar

tais ocorrências (AMADO, 2001, p.).

Esta visão acerca da indisciplina está intimamente relacionada às concepções que

alguns educadores têm de disciplina, por vezes compreendida nos sentidos apresentados por

Ferreira (2008): (1) regime de ordem imposta ou mesmo consentida, (2) ordem que convém

ao bom funcionamento de uma organização, (3) relações de subordinação do aluno ao mestre,

(4) submissão a um regulamento, etc. Na busca pelo significado conferido ao verbo

disciplinar, o mesmo autor registra as expressões “sujeitar(-se) ou submeter(-se) à disciplina”

ou “castigar(-se) com disciplinas”. Abbagnano (1999, p, 289) e Caygill (2000, p. 104)

expressam o significado de disciplina como sendo respectivamente “função negativa ou

coercitiva de uma regra ou de um conjunto de regras, que impede a transgressão à regra” e

“coação graças à qual a tendência permanente que nos leva a desviar-nos de certas regras é

limitada e finalmente extirpada”.

Ao analisar as definições acima observa-se uma conotação negativa sendo atribuída ao

disciplinamento. Contudo, esta forma de pensar a disciplina não é obra do acaso.

Provavelmente, se realizarmos uma busca na História da Educação no Brasil, encontraremos

indícios capazes de explicar a visão que muitos cultivam sobre disciplina e indisciplina nos

dias de hoje. O objetivo deste artigo é, portanto, promover uma reflexão acerca da disciplina

no movimento histórico, analisando os mecanismos disciplinadores do passado e suas

influências sobre as práticas disciplinares em nossas escolas nos dias de hoje.

Para embasar a discussão foram utilizados os estudos de autores como Azevedo

(1976), Foucault (2000), Luzuriaga (2001), Lemos (2002), Souza (2000, 2002), Dalcin

(2005), Bastos (2006), Saviani (2007), Brust (2007), Campos (2008), Parrat-Dyan (2008),

dentre outros. O texto está organizado em três seções. Na primeira são apresentados recortes

históricos envolvendo a disciplina no cenário educacional brasileiro entre os séculos XVI e

XX, bem como inferências sobre o conceito de indisciplina no período delimitado.

Inicialmente abordou-se o modelo jesuítico de educação, no qual as ações disciplinares

estavam pautadas no controle dos comportamentos discentes e na aplicação de diferentes tipos

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de punições. Em seguida foram retratados os métodos de ensino individual e mútuo, tocando

brevemente na tradicional visão comportamentalista de disciplinamento. Adiante, aborda-se a

questão da disciplina no movimento escolanovista, através de um exame dos pressupostos

originalmente traçados pelos seus idealizadores e dos equívocos na compreensão destes. Na

segunda parte do artigo faz-se uma análise da problemática disciplinar no início do século

XXI, com o intuito de elencar permanências do passado que influenciam as ações docentes na

atualidade. Através desta pesquisa é possível perceber que, embora já não se apliquem

castigos físicos como o uso da palmatória, a escola ainda se utiliza de outros dispositivos para

controle dos alunos. Na terceira e última seção são tecidas algumas considerações com vistas

a promover a reflexão dos educadores sobre suas práticas disciplinares, alertando-os para a

necessidade de transformação da realidade vigente.

A disciplina na História da Educação no Brasil – Do século XVI ao século XX.

A educação enquanto prática social é também histórica. E para compreendermos os

problemas educacionais é preciso considerar que “[...] o presente se enraíza no passado e se

projeta para o futuro” (SAVIANI, 2010, p. 3). Isto significa que para entendermos as práticas

disciplinares e seus desdobramentos hoje, precisamos de um retorno aos significados e

práticas concernentes ao ontem.

Oficialmente, a História da Educação no Brasil tem o seu início no ano de 1549 com a

chegada do primeiro grupo de jesuítas, sob a liderança de Manuel da Nóbrega (SAVIANI,

2007, p. 26; AZEVEDO, 1976, P. 9). A missão tinha como principal objetivo a conversão

dos gentios à fé católica, o que implicou na criação de escolas, colégios e seminários em todo

o território nacional. Através da educação dos nativos buscava-se a expansão do catolicismo,

em decadência nos países europeus.

Desde esta época, registros apontam a preocupação dos missionários com a questão da

disciplina, pautada na vigilância constante e na utilização de métodos para contenção dos

comportamentos discentes. Dentre as várias estratégias utilizadas, uma em especial nos chama

a atenção: a aplicação de punições físicas, legitimadas e regulamentadas de acordo com a

idade do estudante e a gravidade do ato praticado.

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É interessante observar que havia uma hierarquia, a qual estabelecia uma tipologia dos castigos a serem aplicados aos discentes, conforme a divisão estabelecida pelo Visitador Jerônimo Nadal, em 1561. Este dividiu os estudantes externos em três grupos distintos: menores, médios e grandes. Os estudantes menores podiam ser açoitados; estudantes médios apenas palmateados; os grandes, não podiam ser palmateados, nem açoitados, mas somente repreendidos. [...] A escala simbolizaria o amadurecimento do indivíduo, isto é, a maior capacidade de compreensão do mundo. (LEITE1, 2000, Tomo I, p. 90ss apud BRUST, 2007, p. 18)

Com o passar do tempo, as ações disciplinadoras adquiriram um tom mais sutil, não

significando, porém, o completo abandono dos castigos corporais como estratégia pedagógica

de ensino.

No final do século XVI, mais especificamente no ano de 1599, foi publicado o Ratio

Studiorum - plano que estabelecia em detalhes todo o currículo e o funcionamento dos

colégios, em nível nacional (AZEVEDO, 1976, p. 27). Neste manual

[...] evidenciava-se a seleção severa de conteúdos e textos, buscando isentá-los de elementos contraditórios à fé católica. Além disso, recorria-se às minúcias na organização e à emulação (prêmios, recompensas, competições no interior da classe) e à obediência como virtude fundamental. Sendo assim, a forma de disciplinamento dos corpos, o método, a organização, tornaram-se tão importantes quanto os conteúdos ensinados. (CAMPOS, 2008, p. 47)

Neste contexto é possível notar que os missionários continuavam a incentivar a

docilidade dos corpos e a submissão irrestrita dos alunos. Ainda outros mecanismos de

policiamento foram empregados por estes mestres, vários deles importados do treinamento

militar. Como exemplo, apontamos a “arte da distribuição” dos estudantes no espaço da sala

de aula:

1 LEITE, S. História da Companhia de Jesus no Brasil. 2000. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp.

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[...] o princípio da localização imediata ou do quadriculamento. Cada indivíduo no seu lugar; e em cada lugar um indivíduo. Evitar as distribuições por grupos; decompor as implantações coletivas; analisar as pluralidades confusas, maciças ou fugidias. [...] É preciso anular os efeitos das repartições indecisas, o desaparecimento descontrolado dos indivíduos, sua circulação difusa, sua coagulação inutilizável e perigosa; tática da antideserção, de antivadiagem, de antiaglomeração. Importa estabelecer as presenças e as ausências¸ saber onde e como encontrar os indivíduos, instaurar as comunicações úteis, interromper as outras, poder a cada instante vigiar o comportamento de cada um, apreciá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades ou méritos. Procedimento, portanto, para conhecer, dominar e utilizar. A disciplina organiza um espaço analítico. (FOUCAULT, 2010, p. 22).

A partir destes dados podemos inferir que o ensino estava pautado numa pedagogia da

opressão, visto que estabelecia mecanismos de coerção, o trabalho mecânico, solitário e a

permanente classificação dos estudantes. O esquadrinhamento das condutas dos educandos

constituía a principal tarefa docente.

Em meados do século XVIII, precisamente no ano de 1759, os jesuítas são expulsos do

Brasil pelo Marquês de Pombal e desde então, várias foram as mudanças no cenário

educacional brasileiro (AZEVEDO, 1976, p.46; SAVIANI, 2007, p. 75). Mudanças

comumente relacionadas à estrutura e funcionamento do ensino, mas que não provocaram

alterações substanciais no tratamento das questões disciplinares. Até o final deste século

prevaleceu nas escolas o ensino individual, embora também existissem outros tipos de

organização. O professor ensinava um aluno de cada vez, por pouco tempo, até que todos

fossem contemplados. Enquanto um deles estivesse em atividade junto ao docente, os demais

deveriam permanecer em silêncio, trabalhando sozinhos. Empregavam-se meios coercitivos

para obtenção do silêncio e realização das atividades propostas (BASTOS, 2006, p. 34). Algo

lhe parece familiar?

Agora saltemos para o início do século XIX, aproximadamente entre os anos de 1819

a 1827. Neste período encontram-se referências à adoção de um novo método de ensino,

conhecido como método monitorial ou mútuo, em substituição à instrução individualizada. De

origem europeia, o método também chamado lancasteriano2, surgiu para suprir a necessidade

de se estender a educação a todas as classes sociais, conforme os ideais iluministas, em

evidência naquele tempo. Preconizava a utilização dos melhores alunos como monitores para

ensinar aos demais estudantes os conhecimentos anteriormente adquiridos com o professor.

2 Relativo a Joseph Lancaster, um dos teóricos que reivindicam a autoria do método monitorial ou mútuo.

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Assim, com um único docente, conseguia-se instruir um grande número de crianças

(BASTOS, 2006, p. 36).

Entretanto, mesmo neste novo sistema ainda encontramos resquícios do modelo

inaciano de educação, pautado nas táticas de monitoramento dos comportamentos discentes.

O método monitorial era muito apreciado pela facilidade de manter a disciplina. Baseava-se

na palavra e na padronização das ações: todos os alunos liam o mesmo material, executavam

os mesmos movimentos ou gestos. A disciplinarização, além da regulação comportamental

envolvia a demarcação criteriosa do tempo através de sinais sonoros:

Por outros meios, a escola mútua também foi disposta como um aparelho para intensificar a utilização do tempo; sua organização permitia desviar o caráter linear e sucessivo do ensino do mestre; regulava o contraponto de operações feitas, ao mesmo tempo, por diversos grupos de alunos sob a direção dos monitores e dos adjuntos, de maneira que cada instante que passava era povoado de atividades múltiplas, mas ordenadas; e por outro lado o ritmo imposto por sinais, apitos, comandos impunha a todos normas temporais que deviam ao mesmo tempo acelerar o processo de aprendizagem e ensinar a rapidez como uma virtude. (FOUCALT, 2000, p. 131)

Segundo Gontard3 (s.d., p. 266-277 apud BASTOS, 2006, P. 39) para aqueles que

descumprissem as regras estabelecidas eram conferidas sanções, definidas por um júri

formado pelos próprios estudantes, conforme o grau da infração cometida:

[...] ficar em quarentena num banco particular; em isolamento num gabinete especial, durante a aula; em solitária; permanecer na classe após o final dos exercícios; permanecer em frente a um cartaz, onde estão listadas as faltas cometidas, por fim, a expulsão da escola. As sanções mais graves, que fugiam do controle do monitor, e mesmo do professor, são registradas no livro negro.

Nesta época as práticas disciplinadoras continuaram envolvendo elementos de um

passado não muito distante: a vigilância, o enfileiramento hierarquizado dos alunos, o culto ao

silêncio, a imobilidade dos corpos, a demarcação inflexível do tempo, o trabalho solitário,

destituído de reflexão. Mas alguém poderá perguntar: e os castigos corporais, foram banidos

da escola?

3 GONTARD, M. L’Enseignement Primaire em France de la Rèvolution à la loi Guizot (1789-1833). Paris: Les Belles Lettres, s.d.

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Infelizmente não. Trabalhos relativos a este período apresentam as punições físicas

como práticas aceitáveis ou mesmo incentivadas para o disciplinamento dos educandos.

Como prova disto, podemos citar a investigação de Dalcin (2005) que retratou os castigos

corporais nas escolas domésticas e isoladas do Paraná, ou ainda a pesquisa de Lemos (2002,

p. 2) ao revisitar as práticas disciplinares das escolas da Corte na cidade do Rio de Janeiro,

entre os anos de 1824 a 1890:

Nas variedades de formas e modos com que se pune, busca-se obter o normal. Nas escolas da Corte do século XIX, entre os castigos corporais, encontramos alguns que são comumente praticados: a palmatória, a reguada, os “bolos” e “ajoelhar”, bem como um caso inusitado, em que a professora colocava rolhas na boca das alunas que falavam muito. Encontrei também, dois casos que foram considerados bárbaros pelos próprios professores e delegados de instrução, como o uso de chicotes e pedaços de bambu.

Outro estudo realizado por Castanha (2009) apresenta-nos as legislações e os discursos

de autoridades da época que legitimavam a aplicação dos castigos físicos e morais como

táticas disciplinares nas escolas. Aborda o sadismo pedagógico que imperava entre os

docentes e os mecanismos utilizados a fim de inculcar certos valores e princípios aos

estudantes. Junto com as punições físicas (para os educandos de baixo rendimento ou

indisciplinados) permaneciam também as premiações exclusivas para os alunos com bom

desempenho acadêmico e comportamento exemplar.

Já no final do século XIX e início do século XX, em contraponto ao sistema

tradicional até agora descrito, surge a Escola Nova, com uma nova concepção da infância e do

papel do educador. Este movimento – de raízes europeia e americana - defendia uma escola

mais prática e próxima da realidade dos alunos, na qual todos pudessem se desenvolver

naturalmente. O professor, como mediador da aprendizagem deveria promover um ambiente

no qual o conhecimento seria construído através da participação efetiva dos estudantes. A

escola passa a ser ativa em oposição à passividade outrora desejada.

Dentre os principais teóricos estrangeiros desta linha podemos citar James, Dewey,

Kilpatrick, Bode, Rugg, Kerschensteiner, Gaudig, Bovet, Claparède, Ferrière, Piaget,

Montessori, Decroly, Parkhurst, Washburne, Reddie, Badley, Lietz e Desmolins, dentre

outros (LUZURIAGA, 2001, p. 249). No Brasil, temos Lourenço Filho e Anísio Teixeira

como os principais precurssores do modelo renovado de educação (AZEVEDO, 1976, p. 163-

218).

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Com o movimento da “escola progressista” passou-se a incentivar a atividade discente.

O diálogo entre os colegas e a movimentação nas aulas não somente seriam permitidos, mas

extremamente necessários. Se no ensino jesuítico cultuava-se o silêncio, a proposta renovada

de ensino valorizava a comunicação entre os pares e adultos. No lugar do enfileiramento

hierarquizado dos alunos, a livre organização dos estudantes nos espaços das salas de aula;

em vez da educação solitária a cooperatividade. Se antes o tempo era rigorosamente

controlado, neste novo modelo a aprendizagem aconteceria de acordo com o ritmo dos

estudantes. Da pedagogia da opressão partiu-se para uma pedagogia do aprender a aprender4.

Souza (2000, 2002) apresenta-nos um forte exemplo das influências da Escola Ativa

nas reformas do ensino no estado de Minas Gerais. A autora analisou os conteúdos da Revista

do Ensino, criada no final do século XIX, como importante veículo de comunicação que,

dentre outros propósitos, tinha como objetivo influenciar os professores para a adoção do

pensamento escolanovista:

A Escola Moderna que se pretendia implantar em Minas Gerais tinha na disciplina uma de suas principais diferenças com relação à Escola Tradicional. Nesta se exigia dos alunos uma atitude passiva, assimilando e reproduzindo conteúdos; qualquer manifestação de alegria, brincadeiras, conversas era sinônimo de indisciplina. A Escola Ativa, no entanto, buscava instaurar uma outra concepção de criança, como um sujeito em formação cujas características de expansão corporal, alegria, movimento, curiosidade e intensa manipulação de objetos eram essenciais ao seu desenvolvimento sadio e natural. A escola deveria estar preparada para atender à criança, segundo suas particularidades e não, como era feito na Escola Tradicional, levar a criança a comportar-se de forma oposta às suas tendências naturais. (SOUZA, 2002, p. 9)

Neste contexto, os professores eram orientados a repudiar os castigos físicos, as

humilhações, a privação de refeições e do recreio e a adotarem medidas disciplinares como:

“[...] admoestação; repreensão; privação de no máximo 15 minutos do recreio; reclusão na

escola por meia hora, no máximo; suspensão da frequência de até três dias com a

comunicação aos pais ou responsáveis; cancelamento da matrícula e suspensão de até três

meses” (SOUZA, 2002, p. 4-5). O ideal de disciplina envolvia o autocontrole e a auto direção

do aluno, em completo abandono dos mecanismos da antiga educação:

4 Ideia defendida por John Dewey.

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Com a tentativa de implantação do self-government nas escolas era dada ao aluno a tarefa de se controlar, de vigiar seu comportamento e auto-dirigir-se. O professor deveria deixar as funções de vigia e correção aos próprios alunos, abandonando a vara de marmelo e a palmatória, e desfazendo-se daquela imagem ameaçadora. A disciplina, dessa forma, possibilita a extinção ou pelo menos minimiza o uso das punições ao retirar os castigos e implantar formas de controle distribuídas pela escola e, em última instância, presentes até mesmo nos próprios alunos que deveriam se auto-avaliar e corrigir (id., 2002, p. 6-7).

A autora pontua que os bons mestres jamais necessitariam aplicar castigos corporais.

Sempre que possível deveriam educar os alunos com tranquilidade, serenidade. Certamente,

as atitudes ou comportamentos considerados como manifestações indisciplinares no modelo

tradicional não eram entendidos desta forma no sistema escolanovista. Punições não deveriam

fazer parte do cotidiano da escola, exceto em situações extremas. Ao mesmo tempo, a Revista

do Ensino preocupava-se com o perigo de se estabelecer uma educação sem limites, sem

direcionamento:

Era uma preocupação constante dos editores da Revista que a retirada ou a minimização das punições e a utilização de novos meios disciplinares baseados na liberdade, no movimento, na atividade e autonomia do aluno não fossem entendidas como desordem e falta de autoridade. A ausência das punições não significaria, em momento algum, uma falta de controle sobre o comportamento do aluno (SOUZA, 2002, p. 11).

Aqui vale ressaltar que os organizadores da Revista do Ensino não estavam

preocupados sem motivo. Os ideais da Escola Nova não foram bem compreendidos,

principalmente no que se refere ao papel mediador docente. No afã de transformar a relação

professor-aluno em comparação com o período anterior, muitos educadores se perderam no

caminho. Fez-se a escola de qualquer jeito! Houve um reducionismo nos conteúdos,

provocou-se o empobrecimento do currículo, quando na verdade o objetivo era exatamente o

contrário. Da busca incessante pela ordem do ensino tradicional partiu-se ao outro extremo da

espontaneidade exacerbada; no lugar da liberdade de pensamento e expressão presenciou-se a

ausência de direcionamento. O modelo progressista de educação não obteve sucesso porque

seus pressupostos foram interpretados de forma muito distante daquela imaginada pelos seus

idealizadores. No que tange às questões disciplinares, o antiautoritarismo foi confundido com

o não estabelecimento de regras.

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Até aqui pudemos acompanhar as práticas disciplinares ao longo da história da

educação no Brasil. Como vimos, tradicionalmente, a disciplina baseava-se na fiscalização

ininterrupta das ações discentes e mais tarde, em oposição completa a este modelo de

educação, seu conceito passou para outro extremo - a liberdade perigosa, fruto do

entendimento equivocado do pensamento escolanovista. Neste contexto em especial, a

disciplina passou a ter uma conotação negativa.

A disciplina em nossos dias

Algumas décadas se passaram e surgiram outros olhares que superaram a visão

comportamentalista de disciplinamento. Uma perspectiva mais positiva que entende a ação

disciplinar como promotora da liberdade e da autonomia dos estudantes:

A disciplina consiste em num dispositivo e num conjunto de regras de conduta destinadas a garantir diferentes atividades num lugar de ensino. A disciplina não é um conceito negativo; ela permite, autoriza, facilita, possibilita. A disciplina permite entrar na cultura da responsabilidade e compreender que as nossas ações tem consequências. Quem olha para a disciplina como algo negativo não entende o que é. Ser disciplinado não é obedecer cegamente; é colocar a si próprio regras de conduta em função de valores e objetivos que se quer alcançar (PARRAT-DYAN, 2008, p. 8).

A autora ultrapassa as compreensões proibitivas e punitivas imprimindo um

significado de obediência consciente, na qual o sujeito é agente ativo na construção das

regras, considerando os valores e objetivos que se pretende atingir.

Vasconcellos (2009, p. 49), em conformidade com esta visão otimista da disciplina,

aponta que o principal objetivo dos educadores deve ser

[...] conseguir o autogoverno dos sujeitos participantes do processo educativo, e dessa forma as necessárias condições para o trabalho coletivo em sala de aula (e na escola), onde haja o desenvolvimento da autonomia e da solidariedade, ou seja, as condições para uma aprendizagem significativa, crítica, criativa e duradoura. [...] A disciplina não deve ter um fim em si mesma [...]

Tais citações nos mostram que ocorreram importantes avanços no que tange à

problemática disciplinar. Isto em nível de discussão teórica. Mas, e na prática?

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A experiência tem mostrado que as transformações poderiam ter sido maiores. Após

esta breve retrospectiva englobando os séculos XVI a XX surgem alguns pontos sobre os

quais necessitamos pensar: os tempos mudaram, a sociedade em geral se modernizou, mas

infelizmente a forma de pensar a disciplina parece não ter sofrido alterações em pleno século

XXI.

Ao retomarmos os estudos de Foucault (2000) encontramos vários paralelos entre as

práticas disciplinares do passado e os mecanismos disciplinadores utilizados em muitas de

nossas escolas nos dias de hoje. Embora já não se apliquem castigos físicos como o uso da

palmatória, ainda se cultivam outras estratégias de controle comportamental como o

enfileiramento dos alunos segundo a arte da distribuição, atividades em sua maioria

individuais, a fiscalização inflexível do tempo, um currículo distante da realidade, regras e

sanções estabelecidas sem a participação dos estudantes, a imposição, o autoritarismo.

Mecanismos que aos olhos de muitos parecem inofensivos ou mesmo dotados de boa

intenção.

Entretanto, tais estratégias são realmente inocentes? Ao menos podemos julgá-las

eficazes? Quais as suas influências na formação dos estudantes? Qual é o nosso papel na

construção da verdadeira disciplina?

Responder a estas questões é o primeiro passo para a conscientização e transformação

das práticas disciplinares arcaicas com as quais ainda convivemos e inconscientemente,

reproduzimos.

Considerações Finais

No decorrer deste artigo realizamos uma breve retrospectiva sobre as questões

disciplinares na história da educação no Brasil. Foi possível observar que diversos

mecanismos outrora utilizados para controle dos comportamentos discentes ainda se fazem

presentes em muitas de nossas escolas, embora permeados de sutilezas: a organização

sequencial das carteiras, a fiscalização do tempo, o distanciamento dos conhecimentos

acadêmicos da vida prática dos alunos, as concepções docentes sobre o disciplinamento (ora

tradicionais, ora liberais ao extremo), dentre outros elementos.

Contudo, esta pesquisa não deseja apenas explicar o panorama atual ou mesmo

justificá-lo. Ao contrário, foi realizada com vistas a promover uma reflexão sobre as práticas

disciplinares de modo a influenciar transformações na realidade vigente.

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Nesse sentido, as mudanças almejadas somente poderão ocorrer se empreendidas a

partir da conscientização e participação dos estudantes no estabelecimento das regras que

nortearão a vida na escola e fora dela. Assim, teremos a chance de promover a autonomia dos

educandos e não o seu encarceramento.

REFERÊNCIAS

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