diretrizes estratégicas para ciência e tecnologia em ... · ciência e tecnologia até a década...

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RESUMO: Um dos principais componentes da gestão dos recursos hídricos são os investimentos em Ciência e Tecnologia. O desenvolvimento do conhecimento é a base do desenvolvimento sus- tentável e responsável. Recursos Hídricos. Esta é uma área com características interdisciplinares e interface com as diferentes áreas do conhecimen- to que procuram entender os processos naturais e antrópicos. A construção dos focos ou prioridades é um exercício que engloba ciência básica e apli- cada interdisciplinares, o uso integrado dos recur- sos hídricos e o desenvolvimento sustentável. Neste artigo são apresentadas as bases das di- retrizes estratégicas utilizadas no Brasil em Ciên- cia e Tecnologia em Recursos Hídricos que vem apoiando o investimento do Fundo Setorial de Recursos Hídricos CTHidro tornado operacional setembro de 2001 e gerenciado pelo MCT Minis- tério de Ciência e Tecnologia do Brasil. O fundamento principal das diretrizes estra- tégicas foi o de investir em pesquisa dentro uma visão orientada ao problema em contraposição ao tradicional investimento na demanda espontâ- nea de pesquisadores que pulverizam os recur- sos em conteúdos que muitas vezes retratam mais os interesses da literatura internacional. PALAVRAS-CHAVE: Estratégia, recursos hídri- cos, pesquisa. ABSTRACT: One of the main aspects of water resources management is the investment in Science and Technology. Development of knowledge is important for sustainable water resource management. It is an interdiscipli- nary area of knowledge and has many interfa- ces with other areas of natural resources. Iden- tification of the main issues for research is an exercise that requires basic and applied resear- ch, interdisciplinary and integrated use of water resources. This article presents the strategic framework used in Brazil for Science and Technology in Water Resources that supports the Sectorial Water Resource Research Fund which has been operational since September of 2001 and is ma- naged by the Ministry of Science and Technolo- gy of Brasil. The approach established for the Strategic Framework was to develop its investments in the country-oriented problems instead of investing in researcher demand which is more often rela- ted to international research issues. KEY-WORDS: Strategy, water resources, re- search. truir uma nova forma de financiamento de in- vestimento em C&T. Os Fundos financiam des- de “encontros, congressos, publicações, auxílios indi- viduais, infra-estrutura de pesquisa, bolsas de forma- ção e de fomento tecnológico, projetos cooperativos en- tre universidades e empresas, rede cooperativas, entre entidades de pesquisa, até grandes projetos estrutu- Diretrizes estratégicas para ciência e tecnologia em recursos hídricos no brasil Carlos E. M. Tucci Oscar M. Cordeiro INTRODUÇÃO A política de investimento em Ciência e Tec- nologia no Brasil teve impulso em 2000 com a criação de Fundos Setoriais de Pesquisa que retiram recursos de setores da sociedade para investimento em C & T. Estes Fundos foram cri- ados para incentivar o desenvolvimento cientí- fico e tecnológico em áreas estratégicas e cons-

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RESUMO: Um dos principais componentes dagestão dos recursos hídricos são os investimentosem Ciência e Tecnologia. O desenvolvimento doconhecimento é a base do desenvolvimento sus-tentável e responsável. Recursos Hídricos. Esta éuma área com características interdisciplinares einterface com as diferentes áreas do conhecimen-to que procuram entender os processos naturais eantrópicos. A construção dos focos ou prioridadesé um exercício que engloba ciência básica e apli-cada interdisciplinares, o uso integrado dos recur-sos hídricos e o desenvolvimento sustentável.

Neste artigo são apresentadas as bases das di-retrizes estratégicas utilizadas no Brasil em Ciên-cia e Tecnologia em Recursos Hídricos que vemapoiando o investimento do Fundo Setorial deRecursos Hídricos CTHidro tornado operacionalsetembro de 2001 e gerenciado pelo MCT Minis-tério de Ciência e Tecnologia do Brasil.

O fundamento principal das diretrizes estra-tégicas foi o de investir em pesquisa dentro umavisão orientada ao problema em contraposição aotradicional investimento na demanda espontâ-nea de pesquisadores que pulverizam os recur-sos em conteúdos que muitas vezes retratam maisos interesses da literatura internacional.

PALAVRAS-CHAVE: Estratégia, recursos hídri-cos, pesquisa.

ABSTRACT: One of the main aspects ofwater resources management is the investmentin Science and Technology. Development ofknowledge is important for sustainable waterresource management. It is an interdiscipli-nary area of knowledge and has many interfa-ces with other areas of natural resources. Iden-tification of the main issues for research is anexercise that requires basic and applied resear-ch, interdisciplinary and integrated use ofwater resources.

This article presents the strategic frameworkused in Brazil for Science and Technology inWater Resources that supports the SectorialWater Resource Research Fund which has beenoperational since September of 2001 and is ma-naged by the Ministry of Science and Technolo-gy of Brasil.

The approach established for the StrategicFramework was to develop its investments in thecountry-oriented problems instead of investingin researcher demand which is more often rela-ted to international research issues.

KEY-WORDS: Strategy, water resources, re-search.

truir uma nova forma de financiamento de in-vestimento em C&T. Os Fundos financiam des-de “encontros, congressos, publicações, auxílios indi-viduais, infra-estrutura de pesquisa, bolsas de forma-ção e de fomento tecnológico, projetos cooperativos en-tre universidades e empresas, rede cooperativas, entreentidades de pesquisa, até grandes projetos estrutu-

Diretrizes estratégicas para ciência e tecnologiaem recursos hídricos no brasil

Carlos E. M. TucciOscar M. Cordeiro

INTRODUÇÃO

A política de investimento em Ciência e Tec-nologia no Brasil teve impulso em 2000 com acriação de Fundos Setoriais de Pesquisa queretiram recursos de setores da sociedade parainvestimento em C & T. Estes Fundos foram cri-ados para incentivar o desenvolvimento cientí-fico e tecnológico em áreas estratégicas e cons-

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rantes.” (MCT, 2000). O primeiro Fundo criadofoi o de Petróleo, seguido por vários outros fun-dos, que atualmente totalizam 14.

O Fundo de Recursos Hídricos (CTHidro)foi criado por Lei 9993 de 24 de julho de 2000(Brasil, 2000) e regulamentado pelo decreton. 3874 de 19 de julho de 2001 (Brasil, 2001a).Os objetivos do Fundo foram estabelecidos nareferida lei e são os seguintes: “financiamentode projetos científicos e de desenvolvimento tecnoló-gico, destinados a aperfeiçoar os diversos usos daágua, de modo a garantir à atual e às futuras gera-ções alto padrão de qualidade, utilização racional eintegrada com vistas ao desenvolvimento sustentá-vel e à prevenção e defesa contra fenômenos hidroló-gicos críticos ou devido ao uso inadequado de recur-sos naturais.”

Os recursos são obtidos à partir da compen-sação financeira da Usinas Hidrelétricas, quedestina 6% do valor da energia na Usina paracompensar municípios, Estados e União pelainundação de terras produtivas. Do total cobra-do, 4% são destinados para C & T e funciona-mento do Fundo de Pesquisa. Este valor repre-senta da ordem de US $ 10 milhões por ano.

O CTHidro é administrado por um comitêgestor presidido pelo MCT - Ministério de Ci-ência e Tecnologia (Brasil, 2001b) e formadopor representantes das entidades de fomentoa pesquisa: CNPq Conselho Nacional de De-senvolvimento Científico e Tecnológico e FI-NEP Financiadora de Estudos e Projetos; Mi-nistérios e Agências de Governo: Ministério deMeio Ambiente, representado pela Secretariade Recursos Hídricos, Ministério de Energia eANA Agência Nacional de Águas; um repre-sentante da comunidade científica e outro dasempresas. Inicialmente até abril de 2003 oCTHidro tinha um secretário técnico e outroadjunto (autores do artigo) e atualmente umgrupo de técnico de apoio com representan-tes das entidades de C & T. O primeiro comitêgestor foi indicado em 30 de agosto de 2001.

Em janeiro de 2001 iniciaram as discussõespara preparação das bases do CTHidro que sãoo documento de diretrizes estratégicas e o Pla-no Pluri-anual de Aplicação PPA (MCT,2001).Neste artigo são apresentados: os elementosbásicos que levaram a construção das diretri-zes estratégicas, aprimorados pela discussão em

vários workshops com a comunidade científi-ca no período de fevereiro a setembro de 2001;os mecanismos utilizados e as prioridades de-senvolvidas em programas e prospecções e umresumo dos investimentos realizados.

SÍNTESE EVOLUTIVADOS RECURSOS HÍDRICOS

Histórico e tendênciaO século vinte foi palco de importantes

transformações nos processos adotados pelasociedade para aproveitamento dos recursoshídricos. De um uso local e incipiente no iní-cio do século, passou-se a um uso intenso esetorial, até se buscar, ao final do século XX,implementar o conceito de uso múltiplo, inte-grado e sustentável da água.

Logo após a 2a Guerra Mundial, houve umperíodo de grandes investimentos em infra-estrutura, visando recuperar os países que so-freram com o conflito, seguido por um perío-do de crescimento econômico e populacionalsignificativo. Esse período foi caracterizado porforte industrialização e crescimento das áreasurbanas, o que levou ao início da crise ambi-ental do final de século XX, como resultadoda degradação das condições de vida da po-pulação e dos sistemas naturais. No início dadécada de 70 iniciou a mobilização social paracontrole desses impactos através das primeiraslegislações ambientais em países desenvolvidos.Foi uma década de maciços investimentos notratamento de esgoto das cidades e das indús-trias nos referidos países. Nos anos 80, o mun-do deparou-se com um grande divisor na per-cepção dos limites dos impactos ambientais,que foi o acidente da Usina Nuclear de Cher-nobyl, na antiga União Soviética. No meio ci-entífico, já se sabia da interação global de di-versos efeitos da poluição. No entanto, pelaprimeira vez, a opinião pública confrontava-secom uma situação em que o ambiente de cadacidadão não era delimitado pelas fronteiras desua região, mas que havia uma fortíssima inte-ração ambiental global. Observou-se, também,o início de grande pressão sobre os investimen-tos internacionais em hidrelétricas em áreascomo a Amazônia, região identificada pelo seupapel de destaque no processo de equilíbrioclimático. No Brasil, pelas pressões externas,

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foram eliminados os empréstimos internacio-nais para construção de hidrelétricas, comgrande impacto na capacidade de expansão dosistema elétrico no Brasil. Nessa década, tam-bém, foi aprovada a legislação ambiental bra-sileira. Os anos 90 foram marcados pela idéiado desenvolvimento sustentável, fruto do equi-líbrio entre o investimento no crescimento dospaíses e a conservação ambiental. Tornou-seclara a necessidade do aproveitamento dosrecursos hídricos ocorrer de forma integrada,com múltiplos usos. No que se refere à polui-ção das águas, iniciou-se, nos países desenvol-vidos, o controle da poluição difusa de origemurbana e agrícola. Os empréstimos de orga-nismos internacionais no Brasil que, no passa-do, privilegiavam, principalmente, o setor ener-gético, mudaram para a melhoria sanitária eambiental das cidades, iniciando-se com asgrandes metrópoles brasileiras. Esse períodofoi marcado no Brasil pela aprovação da legis-lação nacional de recursos hídricos em 1997,pela implantação do sistema nacional de ge-renciamento de recursos hídricos, o mesmotendo ocorrido em vários Estados brasileirosao longo da década.

O início deste novo século (e milênio) temse caracterizado internacionalmente, pela bus-ca de uma maior eficiência e conservação nouso dos recursos hídricos, tendo como base osprincípios básicos aprovados na Rio 92. No Bra-sil o processo institucional tem avançado com acriação da Agência Nacional de Águas, inícioda cobrança pelo uso da água e pela poluiçãogerada. Esse cenário se mostra promissor, umavez que preconiza a participação de diferentesatores sociais no processo decisório do uso dosrecursos hídricos e sua conservação.

Ciência e TecnologiaAté a década de 70 do século vinte, os as-

pectos técnico–científicos de recursos hídricoseram respondidos, isoladamente, por enge-nheiros civis, quando se tratava de construiruma barragem, um canal, a drenagem de umabacia; por engenheiros sanitários e civis quan-do se tratava de um sistema de água e esgoto;por químicos e biólogos, no caso do desenvol-vimento de processos de tratamento de água eesgoto; por agrônomos, quando se tratava deirrigação ou programas de conservação do

solo; por geólogos quando se tratava de obterágua subterrânea; por meteorologistas paraprever as condições de tempo e clima, etc.

Definiam-se, assim, sistemas de intervençãolimitados pelo espaço e pelas áreas do conhe-cimento e por objetivos específicos. O desen-volvimento em C&T era ditado, até então, tan-to por uma visão setorial de aproveitamentoda água quanto por uma ótica de controle dapoluição e de proteção ambiental. Devido àevolução no desenvolvimento industrial e ur-bano, assim como na exploração dos recursosnaturais, ficou evidente que o ambiente, oraem desequilíbrio, necessitava de uma avalia-ção mais precisa e integral dos processos eimpactos, buscando-se evitar prejuízos quecomprometessem a sustentabilidade da pró-pria sociedade.

Até os anos 70, os resultados da ação do ho-mem sobre o meio ambiente eram vistos sob aótica estrita da escala local, isto é, de uma cida-de, de um trecho de rio ou de uma área irriga-da. Atualmente, os problemas devem ser vistosna escala da bacia hidrográfica. Alguns proble-mas expandem-se até a escala do país e do glo-bo terrestre, em decorrência dos potenciais efei-tos na modificação tanto do uso do solo e quan-to do clima, e de sua variabilidade. A complexi-dade do gerenciamento dos sistemas hídricoscresce devido à diminuição da disponibilidadedos recursos hídricos e ao aumento da deterio-ração da qualidade da água nos diferentes siste-mas hídricos (rios, lagos, açudes, represas, aqü-íferos, estuários e águas costeiras) com maiorocorrência de conflitos no aproveitamento daágua. Além disso, há o aumento do interessepúblico no impacto dos aproveitamentos hídri-cos sobre o meio ambiente. O planejamento daocupação da bacia hidrográfica é uma necessi-dade em uma sociedade com usos crescentesda água, e que tende a ocupar a bacia de formadesordenada, inclusive avançando sobre as áre-as de inundação, danificando ainda mais o seumeio ambiente.

O desenvolvimento em C&T incorpora, as-sim, preocupações de natureza multi-setorialno uso de água e de busca de soluções susten-táveis. A necessidade da integração é, portan-to, um fato. No entanto, a formação técnica eprofissional em Recursos Hídricos ocorre, qua-se que exclusivamente, por meio de progra-

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DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Os principais desafios de C&T relacionam-se à busca de soluções sustentáveis para pro-blemas de: escassez de água, excesso de água,deterioração da qualidade da água, percepçãoinadequada de gestores e do público em geralsobre a gravidade da questão da água, fragmen-tação e dispersão das ações de gerenciamentodos recursos hídricos, fontes de financiamen-to insuficientes para a resolução dos proble-mas relativos aos recursos hídricos, conflitospotenciais em rios compartilhados por mais deum Estado ou país e perspectivas de mudan-ças climáticas na Terra que afetarão a distri-buição e a disponibilidade de água.

Visão ConceitualComo organizar os focos de pesquisa numa

área tão interdisciplinar? É possível escolheras disciplinas do conhecimento como Hidro-logia, Hidráulica, Meteorologia, Qualidade daÁgua, entre outras e suas sub-divisões. De ou-tro lado se o foco é a realidade do país pode-seescolher os principais biomas brasileiros como:Amazônia, Pantanal, Cerrado,Semi-árido, Cos-teiro, Sul e Sudeste. Alternativas de foco po-dem ser os sistemas hídricos como: rios, reser-vatórios, aqüíferos e bacias hidrográficas comomuitos visualizam a gestão dos recursos hídri-cos. Olhando pelo sócio econômico os focospodem ser: energia, agricultura, meio ambi-ente, transporte, entre outros. Como se obser-va, todas estas linhas têm seu atrativo próprio,mas nenhuma delas atende o conjunto daspreocupações de desenvolvimento de C & T.De outro lado, considerando que o CTHidrofoi criado para investir no conhecimento queapóie a melhoria da qualidade de vida da po-pulação e na conservação ambiental, é natu-

ral que os seus investimentos sejam orientadospara a solução de problemas da sociedade (problem-oriented).

O investimento tradicional em pesquisa vi-nha ocorrendo de forma pulverizada e dentrodos focos de interesses dos pesquisadores quenem sempre tinham componentes integrado-res e voltados para problemas críticos da soci-edade. A figura 1 retrata de forma figurativaos vários componentes e caracteriza a gestãodos recursos hídricos e o foco dos investimen-tos para os principais problemas nacionais.

Conceitualmente o fundo busca o seguin-te: (a) criar uma base de investimento perma-nente no qual a pesquisa tenha sustentabilida-de para se desenvolver; (b) desenvolver o focode pesquisa para problemas de sociedade, con-vidando os pesquisadores a buscar solução paraos mesmos; (c) concentrar esforços para a bus-ca de inovação em C & T que alavanque o de-senvolvimento social e econômico e garanta asustentabilidade ambiental.

FIGURA 1.Visão dos focos de pesquisa

em Recursos Hídricos

Ambientesbrasileiros

Sócio-econômico

Sistemashídricos

DisciplinasConhecimento

Gestãodos

RecursosHídricos

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DesafiosOs grandes desafios que necessitam investi-

mento de pesquisa em ciência e tecnologia einovação em recursos hídricos no país envol-vem os vários componentes citados nos itensanteriores e podem ser representados por umatipologia que privilegie a visibilidade social.Para chegar aos referidos temas foi realizada aseguinte pergunta: Quais são os principais pro-blemas de recursos hídricos no país visto pelamaioria das pessoas? Estes aspectos foram elen-cados, discutidos e aprimorados e são relacio-nados a seguir:

Sustentabilidade hídrica de regiões semi-áridas

As regiões semi-áridas geralmente possuemgrande fragilidade quanto à sua sustentabili-dade hídrica. Poucos anos com disponibilida-de hídrica fazem com que a população se esta-beleça para, logo em seguida, quando ocor-rem os longos períodos secos e os prejuízosinevitáveis, haja migração para outras áreascom forte empobrecimento da região e.

As conseqüências desses eventos extremos,sob o ponto de vista físico e climático, dão-sesobre saúde, trabalho e habitação da popula-ção, comprometendo a sustentabilidade da re-gião. Contribuem, também, para isso, proces-sos de degradação do solo e a desertificação.

O desafio do desenvolvimento científico etecnológico é o de dispor de elementos quecriem condições para a permanência da po-pulação na região, melhorando suas condiçõeseconômicas, e também suas condições de edu-cação, saúde, trabalho e habitação. Para isso,é preciso aumentar a disponibilidade hídricapor meio de técnicas inovadoras como novasformas de exploração de água subterrânea nocristalino, coleta e armazenamento da água dachuva em cisternas e açudes, processos de des-salinização, processos integrados de gestão dademanda e de racionalização do uso da água,controle e melhoria da qualidade da água emelhoria da previsão climatológica.

Água e gerenciamento urbano integrado

O crescimento das cidades tem causado im-pactos significativos sobre o meio ambiente e,com isso, a população sofre com o comprome-

timento do abastecimento público, a piora dascondições de qualidade da água, as inundações,a má gestão dos resíduos sólidos, entre outros.

A falta de integração na gestão desses pro-blemas, principalmente devido à setorizaçãodas ações públicas, tem sido uma das grandescausas do agravamento das condições hídri-cas em áreas urbanas. Os principais impactosverificados sobre os sistemas hídricos das ci-dades brasileiras são os seguintes: contamina-ção dos mananciais urbanos, como conse-qüência da poluição dos sistemas hídricos eda ocupação desordenada das áreas de pro-teção de mananciais, levando à redução dadisponibilidade hídrica; falta de tratamentoe de disposição adequada de esgoto sanitá-rio, industrial e de resíduos sólidos; aumentodas inundações e da poluição devido à dre-nagem urbana deficiente; ocupação das áre-as de risco de inundação, com graves conse-qüências para a população; redução da dis-ponibilidade hídrica.

O principal desafio é a busca de soluçõesintegradas e economicamente sustentáveis. Odesenvolvimento tecnológico deve buscar vi-são integrada para proteção de mananciais;racionalização do uso da água, com programasde redução de consumo; reuso da água, equi-pamentos de menor consumo; sistemas efici-entes de tratamento de água, adequados à re-alidade local; sistemas de controle da poluiçãoque melhorem a qualidade da água; controledas inundações e priorizar o planejamento ur-bano que conserve o ambiente e controle adisposição dos resíduos sólidos.

Gerenciamento dos impactos da variabilidadeclimática sobre sistemas hídricos e a sociedade

São significativos os efeitos da modificaçãodo uso do solo e da variabilidade climática decurto e médio prazo sobre a bacia hidrográfi-ca e sobre as atividades humanas. O conheci-mento desses impactos sobre os sistemas hídri-cos é, ainda, limitado. Dessa forma, o gerenci-amento integrado dessa questão praticamen-te não existe.

Existem várias características desse proble-ma que são essencialmente brasileiras como aoperação e a garantia do sistema energético eo comportamento dos grandes ecossistemas

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como o Pantanal e a Amazônia. Além disso,para melhor gerenciar conflitos de uso da águacomo, por exemplo, entre irrigação, energia,navegação fluvial, controle de inundações eproteção ambiental, é essencial o conhecimen-to antecipado do comportamento hídrico des-ses sistemas.

Os desafios para a ciência são a avaliaçãointegrada dos processos meteorológicos, hidro-lógicos e dos ecossistemas sujeitos à variabili-dade climática; desenvolvimento de modela-gem desses processos integrados e a avaliaçãoe mitigação dos cenários de desenvolvimentodas regiões brasileiras.

Uso e conservação do solo e de sistemas hídricos

No desenvolvimento agrosilvopastoril, apartir da ocupação dos espaços naturais emdiferentes partes do país observam-se váriosimpactos, tais como: a erosão do solo e produ-ção de sedimentos que se depositam nos rios,agregados a pesticidas; a própria degradaçãoda superfície do solo com impacto local e ajusante da bacia; a drenagem e o conflito pelaágua em áreas de banhado, que representamecossistemas a serem conservados como o Pan-tanal, Taim, entre outros; o desmatamento deextensas áreas com conseqüências importan-tes sobre o ciclo hidrológico; a redução da pro-teção das áreas marginais de rios, reservatóri-os, lagos, etc.; o uso intensivo da irrigação emcertas regiões agrícolas do país, com ocorrên-cia de uma série de conflitos entre a irrigaçãoe outros usos da água e mesmo conflitos deirrigantes entre si.

O conhecimento quantitativo dos efeitos daação antrópica sobre ecossistemas brasileiros é,ainda, limitado. Necessita-se de monitoramen-to e metodologias robustas que permitam umaadequada avaliação dos processos nas diferen-tes escalas de comportamento dos sistemas hí-dricos, além de práticas adequadas de gestão.

Os desafios dessa linha são o desenvolvimen-to de tecnologias de aumento da produtivida-de dos sistemas agrossilvopastoris que contri-buam para o ordenamento sustentável do es-paço rural e que aumentem a eficiência do usoda água, mantendo a conservação do solo. In-cluem-se, aqui, a avaliação e a mitigação dosimpactos do desmatamento e das queimadas,

particularmente em relação aos impactos so-bre as áreas de proteção de mananciais.

Prevenção e controle de eventos extremos

Tanto as enchentes como as estiagens pro-duzem importantes impactos sócio-econômi-cos. Nesses processos, é importante desenvol-ver mecanismos que permitam minimizar es-ses impactos. A convivência com esses proces-sos naturais geralmente não encontra na so-ciedade um planejamento adequado para en-frentar as situações de emergência e nemmesmo mecanismos de previsão de ocorrên-cia dessas situações.

São considerados eventos extremos a ocor-rência de estiagem, das cheias, de incêndiosflorestais, entre outros. O desafio associado aesse tipo de intervenção envolve o desenvolvi-mento de sistemas de previsão de eventos ex-tremos, de ações de planejamento preventivasnecessárias para a mitigação dos impactos e dogerenciamento dos conflitos resultantes daocorrência desses eventos.

Usos integrados dos sistemas hídricose conservação ambiental

A Agenda 21 e a lei n.º 9433 de 08/01/97que institui a Política Nacional de RecursosHídricos estabelecem como prioridade o usomúltiplo dos recursos hídricos. Entre o objeti-vo e a prática existe uma grande distância emfunção de diferentes condicionantes regionais,econômicos, sociais e culturais. O uso da águatem sido essencialmente setorial e quando exis-te um uso suplementar, esse se dá, geralmen-te, de forma marginal.

O uso integrado não é somente a integra-ção de usos, mas também a integração dos di-ferentes sistemas hídricos dentro da bacia hi-drográfica. Cada sistema não pode ser visto iso-ladamente, mas dentro de um mesmo conjun-to de sistemas que, de alguma forma, intera-gem no funcionamento e podem propiciar ummelhor uso da água. A prática, além de setori-zada em termos de uso, tem a visão essencial-mente local.

O desafio é o de criar tecnologias que per-mitam viabilizar o conjunto de planejamento,projeto e operação de sistemas hídricos que

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compatibilizem de forma sustentável e adequa-da diferentes usos no conjunto da bacia ouregião hidrográfica.

Qualidade da água dos sistemas hídricos

Um dos maiores problemas que o setor derecursos hídricos hoje enfrenta é o da reduçãoda disponibilidade hídrica devido à degradaçãoda qualidade da água dos rios, lagos e aqüífe-ros. Durante muito tempo, o controle da quali-dade da água foi visto apenas de forma setorial,intervindo-se, prioritariamente, no efluente daindústria e nos efluentes domésticos, geralmen-te sem tratamento. A indústria foi fiscalizada eobrigada a melhorar seu efluente. O poderpúblico tem buscado financiamento para osefluentes domésticos, mas, na ótica de gestãode bacias hidrográficas, apenas essa ação não ésuficiente. Juntam-se a essa fonte de poluição,as cargas difusas de origem urbana e rural, alémda poluição oriunda da mineração.

Para a melhoria da qualidade da água dosrios é necessário identificar as cargas das baci-as, identificar os locais críticos e investir naredução dessas cargas. O levantamento de in-formações, a fiscalização e o monitoramentodos rios são essenciais para entender os impac-tos e sobre eles atuar.

Os desafios deste componente são o de de-senvolver metodologias eficientes para levan-tamento das cargas das bacias, para fiscaliza-ção, monitoramento e simulação dos proces-sos que permitam a adequada gestão dos re-cursos hídricos. Nesse processo é essencial odesenvolvimento de infra-estrutura de labora-tórios e equipamentos que permitam a identi-ficação das condições de qualidade da água.

Gerenciamento de bacias hidrográficas

A implantação dos mecanismos e instru-mentos técnicos e institucionais para o geren-ciamento dos recursos hídricos, conforme a Lei9.433/97, requer desenvolvimento de metodo-logia de caráter científico, tecnológico e insti-tucional, que permita ao sistema alcançar ple-namente seus objetivos.

Alguns dos desafios são: o desenvolvimentode sistemas de suporte à decisão dos sistemasde outorga para uso da água, tanto para capta-

ções como para lançamentos; sistemas de co-brança pelo uso da água, com as respectivasavaliações econômicas necessárias; metodolo-gia de enquadramento dos corpos de água,com vistas à integração plena da gestão quan-tidade-qualidade da água e dos mecanismos departicipação pública.

Estudo do comportamento dos sistemas hídricos

O entendimento do comportamento hidro-lógico na bacia hidrográfica, que envolve pro-cessos químicos, físicos e biológicos, é essenci-al para fazer face aos demais desafios aqui apre-sentados.

A diversidade dos ecossistemas brasileirossujeitos às diferentes ações antrópicas se carac-teriza por singularidades que necessitam sercompreendidas para buscar a sustentabilida-de dos ecossistemas. A quantidade de informa-ções existente sobre esses diferentes sistemasé limitada no país, o que tem dificultado o seugerenciamento em bases científicas adequadas.

Os desafios deste componente são de iden-tificar as necessárias características-chave rela-cionadas a esses sistemas e de monitorar naforma de projetos-piloto representativos as va-riáveis explicativas criando uma base concretapara as ações públicas e privadas no uso e con-servação dos sistemas hídricos nos diferentesbiomas brasileiros.

Uso sustentável de recursos hídricos costeiros

No Brasil, as características complexas daZona Costeira são acentuadas pela sua imensaextensão, de cerca de 8.500 km ao longo desua linha de litoral. Numa estreita faixa terres-tre da zona costeira se concentra, aproxima-damente, mais de um quarto da populaçãobrasileira, resultando numa densidade demo-gráfica de cerca de 87 hab./km², índice cincovezes superior à média do território nacional.

Por isso é importante dar especial atençãoao uso sustentável dos recursos costeiros, complanejamento integrado da utilização de taisrecursos, visando o ordenamento da ocupaçãodos espaços litorâneos. A Zona Costeira abri-ga um mosaico de ecossistemas de alta rele-vância ambiental, cuja diversidade é marcadapela transição de ambientes terrestres e mari-

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nhos com interações que lhe conferem umcaráter de fragilidade e que requerem cuida-dos do poder público, conforme demonstrasua inserção na Constituição Brasileira comoárea de patrimônio nacional. Além disso, háuma tendência permanente ao aumento daconcentração demográfica nas Zonas Costei-ras. A saúde, o bem-estar e, em alguns casos, aprópria sobrevivência das populações costei-ras depende dos ecossistemas costeiros, inclu-indo áreas úmidas, regiões estuarinas, baciasde recepção e drenagem e as águas interiorespróximas à costa. É fundamental um maiorconhecimento sobre esses recursos naturais edo uso dos espaços costeiros para subsidiar eotimizar a aplicação dos instrumentos de con-trole e de gestão. Ciência, Tecnologia e Inova-ção podem contribuir para elevar a qualidadede vida da população, e a proteção do patri-mônio natural. O desenvolvimento sistemáti-co do diagnóstico da qualidade ambiental daZona Costeira, identificando suas potenciali-dades, vulnerabilidades e tendências predomi-nantes, é elemento essencial para o processode gestão. Ele permitiria efetivo controle so-bre os agentes causadores de poluição ou de-gradação ambiental sob todas as suas formas,que ameacem a qualidade de vida na ZonaCosteira e a produção e difusão do conheci-mento científico.

Desenvolvimento de Produtos e Processos

Para enfrentar todos os desafios anterior-mente descritos haverá enorme potencial degeração de produtos e processos que, não sócontribuam para a solução de problemas es-pecíficos, mas permitam a expansão das suasaplicações para todo o país de forma bastanteeficiente. Esse item específico de desenvolvi-mento refere-se à criação de novas tecnologi-as que poderão resultar em produtos comerci-alizáveis, quer sob a forma de softwares e paten-tes, quer sob a forma de equipamentos.

Uma das formas de aumento de produtivi-dade e maior utilização das tecnologias é o decriação de softwares que permitam o gerencia-mento hídrico e uma maior transferência detecnologia ao setor produtivo. Além disso, odesenvolvimento desses programas tem umpotencial importante de geração de uma linha

de serviços dentro do país em função da suadiversidade de problemas. Como conseqüêncianatural desse processo é possível criar produ-tos para exportação onde problemas e ambien-tes semelhantes necessitam de ferramentascomo as que potencialmente podem ser desen-volvidas para a realidade brasileira. Modelos deoperação de grandes sistemas, sistemas de pre-visão e alerta, modelos de operação para a áreade saneamento e drenagem, entre outros, po-dem estar nessa linha de produção.

O mesmo ocorre com a área de desenvolvi-mento de equipamentos. A área de recursoshídricos se ressente de uma falta de capacida-de de aprimoramento tecnológico no desen-volvimento de equipamentos que atendamseus vários setores como: monitoramento hi-drológico e de qualidade da água; equipamen-tos para a produção de água, saneamento, equi-pamentos para tornar eficiente o uso e redu-zir o consumo da água nos meios urbano, ru-ral e na indústria e equipamentos de reduçãoe controle da poluição.

Grande parte dos equipamentos hoje utili-zados é importada e, muitas vezes, não atendeà realidade e aos condicionantes naturais dopaís. O investimento atual no setor é pequenoe são grandes os desafios para se criar uma basepermanente de tecnologia para alavancar essetipo de indústria dentro do país.

Capacitação de recursos humanos

O desenvolvimento e a preservação dos re-cursos hídricos dependem de profissionaisqualificados para pesquisa, tomada de decisãoe ações no setor. O foco da capacitação é volta-do para: ampliar a capacidade de pesquisa emregiões carentes como o Norte do país paragrupos de pesquisa voltados para as diferentesrealidades brasileiras e pelo menos nos primei-ros anos de investimento em capacitação, a for-mação deve abranger todos os níveis, desde onível técnico até a pós-graduação, passando porprogramas de especialização e de extensão,atingindo profissionais e também os participan-tes do processo decisório, como os membrosde comitês e conselhos de recursos hídricos.

É imprescindível que essa formação se dêde forma integrada e multidisciplinar e volta-da inicialmente para: (a) capacitação de pro-

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fissionais que atuem nos Estados ou no Gover-no Federal, no gerenciamento dos recursoshídricos de forma mais ampla, denominadocurso de Gerenciamento de Recursos Hídricos; (b)para profissionais que atuem nos municípiose necessitem de um enfoque específico, rela-cionado com o gerenciamento dos recursos hí-dricos municipais, denominado de curso deGerenciamento Hídrico Municipal; (c) capacitaçãode membros dos órgãos colegiados dos siste-mas de recursos hídricos, para que conheçamas particularidades dos sistemas sobre os quaiseles tomam decisões; (d) ao sistema formal deformação de pesquisadores.

O desafio de aumentar e melhor qualificaros quadros profissionais do país é imenso. Oadequado desenvolvimento do setor somentese dará com a formação de equipes integra-das, multidisciplinares e treinadas nas váriasespecificidades de sua região.

Infra-estrutura de apoio à pesquisae ao desenvolvimento

Por muitos anos, a quantidade de recursosfinanceiros não permitiu o aumento da infra-estrutura de pesquisa em recursos hídricos.

Devido à falta de recursos e à sua intermi-tência ao longo do tempo, a infra-estruturapara o setor de recursos hídricos tem ficadodeteriorada e desatualizada, necessitandoapoio significativo para se tornar moderna epoder criar uma base concreta para o desen-volvimento dos projetos das diferentes linhasde pesquisa do Fundo.

Os desafios envolvem a modernização de la-boratórios de qualidade da água, de hidráuli-ca, sedimentos, solos, entre outros; laboratóri-os de aferição de equipamentos utilizados nomonitoramento e no setor produtivo; monito-ramento de áreas-piloto de processos e siste-mas hídricos.

ESTRUTURA DAS ÁREAS PRIORITÁRIAS

As áreas prioritárias para financiamento deações pelo CT-HIDRO são baseadas nos desa-fios citados anteriormente e organizadas segun-do o seguinte:

Pesquisa e Desenvolvimento: visam à cria-ção de conhecimento para solução de proble-mas existentes no gerenciamento dos recursoshídricos para a sociedade;

TABELA 1Áreas Prioritárias para Financiamento de Ações pelo CTHidro (MCT,2001)

(continua)

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Estudos de Base: são pesquisas voltadas parao conhecimento do comportamento dos pro-cessos hídricos nos biomas brasileiros sob con-dições naturais ou sujeitos a impactos antrópi-cos;

Produtos e Processos: criação de novos pro-dutos e processos comercializáveis ou não, quersob a forma de softwares e patentes, quer soba forma de equipamentos;

Recursos Humanos: programas que quali-fiquem profissionais para o desenvolvimentode ciência e tecnologia para receberem a trans-ferência de conhecimento, com ênfase na di-fusão junto ao setor produtivo;

Infra-estrutura: desenvolver infra-estruturaque permita ampliar o conhecimento científi-co e tecnológico, no atendimento dos diferen-tes projetos.

Na tabela 1 apresenta-se um resumo dessasáreas prioritárias, considerando-se a organiza-ção citada, definidas suas principais caracterís-ticas e seus objetivos.

PROSPECÇÃO

As prospecções dentro de recursos hídricosforam realizadas em dois níveis:

Prospectar (MCT, 2002): que é uma açãode prospecção em diferentes áreas de C & Tdesenvolvido dentro do MCT com o objetivode validar os temas identificados e verificar atendência junto aos pesquisadores;

Prospecções aprovadas no comitê gestor:Dentro do CTHidro foram discutidas e aprova-das seis prospecções de temas identificadoscomo relevantes, mas que necessitavam identi-ficar os focos e mecanismos de investimentos.

(Tabela 1 – continuação)

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ProspectarA síntese do projeto PROSPECTAR em Re-

cursos Hídricos desenvolvido pelo MCT (2001)é apresentado a seguir. Na 1ª rodada de con-sultas à comunidade científica e tecnológicado setor, o tema foi subdividido, a partir dalistagem de áreas de pesquisa da PlataformaLattes, do CNPq, em 116 sub-temas, cada umcontendo de um a quatro tópicos, totalizando139 tópicos. Ao final dessa primeira consulta,da qual participaram 1.332 respondentes, fo-ram sugeridos 442 novos tópicos, distribuídosem 97 subtemas. Para a 2ª rodada de consultasà comunidade, as instituições âncoras, auxilia-das por um comitê de triagem, procuraramconsolidar os resultados parciais, eliminandorepetições de tópicos, tópicos que não diziamrespeito diretamente ao tema, etc., além depropor alguns novos temas. Os 218 tópicos depesquisa resultantes desse processo de conso-lidação foram redistribuídos em 11 sub-temas,obtidos das áreas prioritárias de pesquisa des-crita no item anterior. Na 3ª rodada, confor-me a metodologia Delphi, o mesmo conjuntode subtemas e tópicos foram reapresentadospara as pessoas que responderam na rodadaanterior, para que os mesmos revissem suasrespostas, à luz do conjunto de respostas obti-das na 2ª rodada, confirmando-as ou não. Nes-se processo, participaram 228 pessoas, resul-tando daí um conjunto de respostas sobre 213tópicos de pesquisa.

Os 11 subtemas de Recursos Hí-dricos estão representados nas Figu-ras 2 e 3 por suas posições médias emrelação aos índices de Relevância ede Disponibilidade, bem como aoHorizonte de Realização. Estes índi-ces foram obtidos a partir da médiadas respostas ponderadas pelo graude conhecimento das pessoas queresponderam sobre os tópicos espe-cíficos. O índice de Relevância agre-ga os três índices de efeito esperadolevantados nos questionários: aumen-to da eficiência do sistema produti-vo; melhoria da qualidade de vida dapopulação; avanço do conhecimen-to científico e tecnológico. O índicede Disponibilidade agrega os trêsíndices de disponibilidade utilizados

na pesquisa: recursos humanos qualificados;infra-estrutura de pesquisa; capacitação tecno-lógica no setor produtivo. Estes índices agre-gados de Relevância e de Disponibilidade po-dem variar de -1 até +1, representando os valo-res negativos uma condição desfavorável naopinião das pessoas que responderam; os va-lores positivos, uma condição favorável e o zerouma situação intermediária. O horizonte derealização, por sua vez, estabelece o ano emque, segundo estimativa dos que responderama pesquisa, o sub-tema em média, ou cada tó-pico de per si, será concretizado.

Os sub-temas são apresentados na Figura 2como um gráfico da Relevância (ordenada) emrelação à Disponibilidade (abscissa), no qualo tamanho das esferas é proporcional ao nú-mero de tópicos do sub-tema. Pode-se consta-tar que os sub-temas de Recursos Hídricos fo-ram em média avaliados pelos respondentesde modo muito favorável quanto a sua rele-vância.

Dez dos onze sub-temas situam-se entre 0,28e 0,39 e o sub-tema “Uso do Solo e os SistemasHídricos” separa-se dos demais com o valor0,50. Esta avaliação favorável parece refletir odestaque que a importância dos recursos hí-

FIGURA 2.Os sub-temas de Recursos Hídricosem relação ao índice de Relevância

(MCT, 2002)

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dricos como um todo vem recebendo no mun-do e na sociedade brasileira. Quanto ao índi-ce de Disponibilidade, a avaliação dos sub-te-mas foi mais diferenciada, refletindo uma per-cepção de carências em recursos humanos,infra-estrutura e capacitação tecnológica emvárias áreas de pesquisa.

Os índices variam entre -0,08 e +0,12, comseis sub-temas em situação desfavorável (valo-res negativos) e cinco em situação favorável (va-lores positivos). O número de tópicos por sub-temas (tamanho das esferas) revela três sub-te-mas preponderantes (“Produtos e Processospara Uso e Conservação da Água” – 47 tópicos,“Gerenciamento de Bacias Hidrográficas” – 34tópicos e “Água e Gerenciamento Urbano Inte-grado” – 34 tópicos), seguidos de mais dois sub-temas intermediários (“Uso Integrado dos Sis-temas Hídricos” – 22 e “Uso do Solo e os Siste-mas Hídricos” – 20). Estes números elevados detópicos refletem, no caso, a diversidade dos usose dos instrumentos de gestão dos recursos hí-dricos, e de soluções na área dos produtos eprocessos voltados para o uso e gestão. O sub-tema “Variabilidade Climática e os RecursosHídricos” (com apenas quatro tópicos) é avali-ado com alta relevância (0,39), porém com bai-xa disponibilidade (-0,08).

Na Figura 3 estão representados os mesmossub-temas da figura anterior, relacionando osíndices de Disponibilidade (ordenada) com oHorizonte de Realização (abscissa). O tamanhodas esferas, neste caso, é proporcional ao mó-dulo do índice de Necessidade de CooperaçãoInternacional, ou seja, pode crescer entre zeroe +1 (necessidade crescente de cooperação in-ternacional; esferas mais escuras), ou crescerentre zero e -1 (indicando necessidade decres-cente de cooperação; esfera mais clara).

Os sub-temas com maior horizonte de reali-zação são os que têm índice de disponibilidademais desfavorável, e também maior necessida-de de cooperação internacional. Por exemplo,Variabilidade Climática e os Sistemas Hídricos, Pre-venção e Controle de Eventos Críticos e, em menorescala, Recursos Hídricos Costeiros e Qualidade daÁgua dos Sistemas Hídricos. O sub-tema Gerencia-mento de Bacias Hidrográficas, cuja realização foiestimada para concretizar-se em 2010, tem umíndice de disponibilidade relativamente desfa-vorável (-0,066), porém sua necessidade de co-operação é relativamente mais baixa (0,038).Uma possível interpretação para este fato é anatureza local, ou mesmo “interna”, dos pro-blemas relacionados com o assunto. O sub-temacom menor necessidade de cooperação inter-nacional é Uso do Solo e os Sistemas Hídricos, úni-co sub-tema de Recursos Hídricos com valornegativo deste índice. Apesar da baixa avalia-ção do índice de Disponibilidade deste sub-

tema, verifica-se que a maior parte dostópicos são propostos para uso amplo,referindo-se a tecnologias em princí-pio já dominadas no país, o que podeexplicar a baixa necessidade de coo-peração internacional. Dois sub-te-mas, Água na Região do Semi-árido eÁgua e o Gerenciamento urbano Integradochamam a atenção pelo horizonte derealização dilatado em relação ao ele-vado índice de Disponibilidade.

Prospecções aprovadaspelo comitê gestor

O comitê gestor aprovou as seguin-tes prospecções para serem realizadasem 2003 (concluídos no início de2004): Racionalização da água na

FIGURA 3Os sub-temas de Recursos Hídricosem relação ao índicede Disponibilidade (MCT, 2002)

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agricultura; Saneamento; Qualidade da ÁguaSuperficial e Subterrânea, Clima e RecursosHídricos e produtos e Equipamentos. Este pro-cesso se baseia num documento de base pre-parado por um ou dois consultores, consulta aespecialistas através de reuniões específicas,

revisão e discussão em workshop conjunto noqual são definidos os focos, interfaces e meca-nismos de investimentos. O workshop foi rea-lizado em dezembro de 2003 e o documentofinal foi apresentado em fevereiro de 2004(CGEE, 2004).

PROGRAMAS, MECANISMOSE INVESTIMENTOS

Dentro do PPA Plano Plurianual de Investi-mentos foram definidos Programas, que sãoações específicas em setores identificados, pros-pecções onde devem ser investigados os focosde investimentos (ver item anterior). Os pro-gramas definidos foram: Capacitação, Águasurbanas, Gerenciamento dos Recursos Hídri-cos e Semi-Árido. Os mecanismos de investi-mentos utilizados foram desde a seleção deprojetos específicos, investimento em rede de

pesquisa como editais específicos dentro delinhas de pesquisa detalhadas. Na tabela 2 sãoapresentados resumos dos investimentos portema. Deve-se considerar que foi escolhido umtema para cada projeto, mesmo que o mesmoincorpore mais de uma das áreas prioritárias.Por exemplo, no ambiente do semi-árido exis-tem vários investimentos incorporados nasoutras linhas como gerenciamento de recur-sos hídricos e capacitação.

Na figura 4 é apresentada a distribuição dosrecursos por região do país, mostrando a gran-

TABELA 2Projetos aprovados em 2001 e 2002 (CGEE,2002)

(*) total investido de R$ 42,8 milhões, equivalentes a aproximadamente US$ 14,3 milhões; (**) incluídas as bolsas de mestradoe doutorado.

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de lacuna que é a falta de projetos e investi-mentos na região Norte. Em termos legais oCTHidro deve aplicar no mínimo 30% paraNorte, Nordeste e Centro-Oeste. O que se ob-servou é que o investimento se concentroumais no Nordeste, dentro deste grupo.

Pode-se observar nos investimentos reali-zados que ficaram algumas lacunas em fun-ção dos seguintes fatores: (i) O pequeno in-vestimento em algumas linhas se deve princi-palmente as áreas em que estão sendo reali-zadas prospecções como Produtos e Equipa-mentos, (ii) Qualidade da água; (iii) Uma dasáreas que não possui investimento em pros-pecção e os investimentos são aproximada-mente nulos se deve ao ambiente costeiro; (iv)Falta de investimentos na região devido a fal-ta de grupos de pesquisas qualificados na áreade recursos hídricos; (v) Faltam concretizarinvestimentos nos outros ambientes brasilei-ros como: Amazônia, Pantanal, Cerrado e Cos-teiro (mencionado acima); (vi) Os eventos crí-ticos relacionados com inundações e secas fo-ram planejados dentro do programa de cli-ma e recursos hídricos, mas os investimentosrealizados se referem a projetos isolados.

CONCLUSÕES

A promoção de uma forte articulação entreo CTHidro e os Programas do Governo Fede-ral provavelmente deverá pautar as ações doFundo nos próximos anos. As ações do Fundodeverão unir-se ao esforço governamental embusca de soluções que minimizem a pobreza

do país e que apóiem o seu desenvolvimento.Soluções estas que irão passar, muitas vezes,pelo equacionamento de questões ligadas a:ampliação da disponibilidade de água no semi-árido brasileiro, soluções para o saneamentoambiental nas cidades: drenagem urbana, es-gotamento sanitário, abastecimento de água(articulação com o Ministério das Cidades ecom a Fundação Nacional de Saúde); otimiza-ção do uso da água na agricultura (Ministérioda Agricultura, Ministério do Desenvolvimen-to Agrário).

Deverá, ainda, ser fortalecida a articula-ção de ações promovida com a ANA (Agên-cia Nacional de Águas) e a SRH (Secretariade Recursos Hídricos) ligadas à implantaçãodo Sistema Nacional de Gerenciamento deRecursos Hídricos; com a Agência Nacionalde Energia Elétrica (ANEEL) e com o Ope-rador Nacional de Sistemas nos temas volta-dos ao monitoramento hidrológico, plane-jamento de usos múltiplos de reservatórios,dentre outros.

Por fim, a combinação de ações e recursosfinanceiros do CTHidro deverá se estender,também, a usuários dos recursos hídricos, fa-bricantes de equipamentos e empresas de en-genharia, a exemplo da Carta-Convite lança-da em 2002. A aproximação entre a iniciativaprivada e a comunidade empresarial é vanta-josa não apenas no sentido de ampliar o apor-te de recursos destinados ao desenvolvimentocientífico e tecnológico, como também no sen-tido de aproximar pesquisadores e usuários dosresultados das pesquisas.

FIGURA 4Distribuição dosinvestimentos aprovadosaté 2002 (CGEE,2002).

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Tucci, C. E. M.; Cordeiro, O. M. Diretrizes estratégicas para ciência e tecnologia em recursos hídricos no Brasil

Referências

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BRASIL. Ministério de Ciência e Tecnologia. 2002. ProspeCTar: recursos hídricos. Brasília. 120p.

CENTRO DE GESTÃO DE ESTUDOS ESTRATÉGICOS. 2002. Relatório CTHidro 2001-2002. Brasília. 80p.

Carlos E. M. Tucci Instituto de Pesquisas Hidráulicas – UniversidadeFederal do Rio Grande do Sul; GWP – South America – Global WaterPartnership - Porto Alegre, RS, Brasil ([email protected])Oscar M. Cordeiro UNB Universidade de Brasília - Brasília, DF, Bra-sil. ([email protected])