direitos reais - rosenvald

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1 Rio, 05/11/2007. Boa noite à todos. Para quem não me conhece, me chamo Nelson Rosenvald. Sou formado pela UERJ, mestre e doutor pela PUC/SP e atualmente exerço a atividade de Procurador de Justiça do MP/MG. Igualmente, sou autor de alguns livros de direito que os Srs. devem conhecer. Também exerço o cargo professor, coordenador e sócio-proprietário deste curso. Assim caso não gostem do módulo, infelizmente não haverá devolução dos valores pagos. Já gastei tudo. Afinal isto é minha propriedade (sic). Bem, antes de começar achei importante falar sobre meu currículo, não para me gabar, até porque tenho muito a aprender e progredir, mas para afirmar aos Srs. que só o estudo salva, e todos vocês parecem querer a salvação, pois enquanto muitos estão em suas casas vendo suas novelas, entrando em seus perfis de orkut e passando o tempo no messenger, vocês preferiram o caminho mais árduo, porém infinitamente benéfico, que é o conhecimento. Assim, os parabenizo por isso. Há poucos anos atrás também tomei este rumo da mesma forma que os srs. e hoje estou na frente de vocês dando este módulo, mas com o mesmo espírito estudantil dos srs. Somos todos aprendizes desta ciência maravilhosa que é o direito. Cada qual com um nível de aprendizado, afinal o saber é pura e simplesmente a sedimentação decorrente do estudo. Quando resolvi estudar e via os grandes dando aulas achava que nunca iria saber aquilo que me falavam. Gente, sei exatamente como vocês se sentem quando assistem os julgamentos da TV Justiça, principalmente aqueles do STF, onde os ministros parecem alienígenas do planeta direito(sic), falando sua linguagem jurídica extraterrestre (sic). Realmente achamos que representam uma civilização de outro mundo, que vieram destruir o planeta (sic). Dizia caramba, nunca vou saber isso. Mas comecei a estudar, com um passo de cada vez. E um dia após outro de estudo, esse nunca virou talvez e o talvez tornou-se a certeza. Hoje mantenho o hábito de acompanhar este precioso canal. Continuo fã de alguns, como o Marco Aurélio e Carlos Ayres Britto (que simplicidade!) mas já posso dizer que um ministro ou outro disse besteira. O Gilmar Mendes já disse várias (sic). Enfim pra finalizar, digo aos srs. que estudar dá certo. Não tentem saber tudo de uma só vez, procurem saber muito bem uma coisa de cada vez. Volto a repetir, estudo é sedimentação, e isso só se consegue com estudo e regularidade. Dito isso, vamos logo começar para não ficar com cara de palestra de auto-ajuda (sic). Apenas quero ajudar os Srs., porque queria na minha época que alguém me desse essas dicas, que tive que aprender ao longo do estudo. INSTITUTO PRAETORIUM MÓDULO DE DIREITOS REAIS NELSON ROSENVALD

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Rio, 05/11/2007.

Boa noite à todos. Para quem não me conhece, me chamo Nelson Rosenvald. Sou formado pela UERJ, mestre e doutor pela PUC/SP e atualmente exerço a atividade de Procurador de Justiça do MP/MG. Igualmente, sou autor de alguns livros de direito que os Srs. devem conhecer. Também exerço o cargo professor, coordenador e sócio-proprietário deste curso. Assim caso não gostem do módulo, infelizmente não haverá devolução dos valores pagos. Já gastei tudo. Afinal isto é minha propriedade (sic).

Bem, antes de começar achei importante falar sobre meu currículo, não para me gabar, até porque tenho muito a aprender e progredir, mas para afirmar aos Srs. que só o estudo salva, e todos vocês parecem querer a salvação, pois enquanto muitos estão em suas casas vendo suas novelas, entrando em seus perfis de orkut e passando o tempo no messenger, vocês preferiram o caminho mais árduo, porém infinitamente benéfico, que é o conhecimento. Assim, os parabenizo por isso. Há poucos anos atrás também tomei este rumo da mesma forma que os srs. e hoje estou na frente de vocês dando este módulo, mas com o mesmo espírito estudantil dos srs. Somos todos aprendizes desta ciência maravilhosa que é o direito. Cada qual com um nível de aprendizado, afinal o saber é pura e simplesmente a sedimentação decorrente do estudo. Quando resolvi estudar e via os grandes dando aulas achava que nunca iria saber aquilo que me falavam. Gente, sei exatamente como vocês se sentem quando assistem os julgamentos da TV Justiça, principalmente aqueles do STF, onde os ministros parecem alienígenas do planeta direito(sic), falando sua linguagem jurídica extraterrestre (sic). Realmente achamos que representam uma civilização de outro mundo, que vieram destruir o planeta (sic).

Dizia caramba, nunca vou saber isso. Mas comecei a estudar, com um passo de cada vez. E um dia após outro de estudo, esse nunca virou talvez e o talvez tornou-se a certeza. Hoje mantenho o hábito de acompanhar este precioso canal. Continuo fã de alguns, como o Marco Aurélio e Carlos Ayres Britto (que simplicidade!) mas já posso dizer que um ministro ou outro disse besteira. O Gilmar Mendes já disse várias (sic). Enfim pra finalizar, digo aos srs. que estudar dá certo. Não tentem saber tudo de uma só vez, procurem saber muito bem uma coisa de cada vez. Volto a repetir, estudo é sedimentação, e isso só se consegue com estudo e regularidade. Dito isso, vamos logo começar para não ficar com cara de palestra de auto-ajuda (sic). Apenas quero ajudar os Srs., porque queria na minha época que alguém me desse essas dicas, que tive que aprender ao longo do estudo.

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Sem mais delongas, começamos hoje com propriedade, mas como essa aula tem duas horas, primeiro eu quero dar uma visão geral para vocês de direitos reais. E com essa visão geral de direitos reais, facilita demais o restante do trabalho.

Bem no tocante à bibliografia, recomendo:

- Meu livro junto com o Cristiano - Direitos Reais. 3.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007 Cristiano Chaves de Faria e Nelson Rosenvald.

- Direito Civil Brasileiro Vol.V – Direito das Coisas, Carlos Roberto Gonçalves, 1ª Edição, ano 2006, Editora Saraiva. (o mais completo!)

- Curso de Direito Civil Vol.3 – Direito das Coisas, Washington de Barros, 37ª Edição, ano 2003, Editora Saraiva.

Gente, quando vocês estudam direito civil, a raiz do direito civil é o direito patrimonial. O direito civil, na sua essência, é um direito que tem dois alicerces. Quais são esses dois alicerces? Contratos e propriedade.

O direito civil tradicional sempre se preocupou com a proteção dos contratos e com a tutela da propriedade. Então, ele se bifurcou em dois ramos: direitos reais e direitos obrigacionais.

Esses são os dois pilares do direito patrimonial. Direitos reais de um lado e direitos obrigacionais, de outro. Quais são as diferenças sensíveis entre os direitos reais e os direitos obrigacionais?

Isso é só para vocês terem sempre essa idéia inicial. Como é o nome do meu amigo do módulo? Resposta do aluno: Flávio.

Flávio, você me deve R$ 100 mil. Nelson é credor e Flávio é devedor. Isso é uma relação obrigacional, pois tem um credor e um devedor que estão ligados por uma prestação, que no caso, é uma prestação de dar quantia certa.

A outro turno, o Flávio é proprietário de uma cobertura na Delfim Moreira. Se você é proprietário de uma cobertura na Delfim Moreira, você exerce poder sobre uma coisa e esse poder que você tem sobre a coisa é oponível em caráter erga omnes. Isso já é o mundo dos direitos reais.

Quais são as diferenças que vocês conseguem perceber entre o mundo dos direitos reais e o dos direitos obrigacionais? Em primeiro lugar, qual é o objeto de uma relação de direito obrigacional? É uma prestação, é o comportamento do devedor. É uma prestação de dar, fazer ou não fazer. Esse é sempre o objeto de uma relação obrigacional.

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Em contrapartida, qual é o objeto da relação de direitos reais? É a coisa, é o bem da vida. É o apartamento, é um carro, é uma casa, é um direito autoral, é um sócio, ou seja, sempre é um bem da vida.

Então, a primeira diferença se encontra em relação ao objeto. O objeto do direito obrigacional é a prestação e o do direito real é o bem jurídico.

Segunda diferença básica entre os direitos reais e os direitos obrigacionais que, talvez, seja a diferença mais importante: é quanto ao modo de exercer. Querem ver?

Flávio, para que eu cobre de você esses R$ 100 mil, para que o credor obtenha essa prestação do devedor, o credor necessita da colaboração do devedor? Sim. Necessariamente as relações obrigacionais são relações de cooperação.porque o credor só obtém a prestação do devedor se o devedor praticar um a conduta de dar, fazer ou de não fazer. Ou seja, a satisfação do credor exige um comportamento do devedor chamado adimplemento.

Mas se o Flávio é proprietário de um apartamento na Delfim Moreira, para que ele possa exercer poder sobre aquele apartamento ele precisa da colaboração de alguém? Não, pois as relações de direitos reais não são relações jurídicas baseadas na cooperação entre pessoas. O que nós temos, na verdade, são relações materiais de subordinação de coisas a pessoas, em que bens são submetidos ao poder de pessoas.

Qual é a sutileza dessa distinção? Por que que em prova de concurso os direitos reais são chamados de ius in re e os direitos obrigacionais são chamados de ius ad rem? Porque ius in re significa direito sobre a coisa. Quem é titular de direito real exerce poder material evidente sobre o objeto.

Ele pode usar da coisa, fruir da coisa, pode dispor da coisa. Ele tem poder imediato, sem a necessidade de colaboração de quem quer que seja.

No direito obrigacional, o nome é ius ad rem, pois significa direito à uma coisa. E só terá direito a uma coisa se houver a colaboração, a cooperação do devedor.

Então, nunca confundam direitos sobre coisas e direitos à coisa, porque direitos à coisa só são fornecidos se houver uma prestação do devedor, uma colaboração dele em favor do credor. Então, quando alguém perguntar para vocês qual é a diferença de direitos reais para direitos obrigacionais, vocês já sabem: quanto ao objeto e quanto ao modo de exercer.

Os direitos reais possuem quatro características básicas. A primeira característica dos direitos reais, que subliminarmente vocês já viram aqui, é que eles são absolutos. Em que sentido? Flávio, quando você é proprietário dessa cobertura no Leblon, o que você pode exigir de todos nós que somos o povão? O dever de abstenção.

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Sabe por que você pode exigir o dever de abstenção? Porque nós somos os erga omnes, nós somos os não proprietários. Isso significa que os direitos reais são direitos absolutos no sentido da sua oponibilidade contra todos.

No sentido de que esses direitos reais podem exigir de todos um comportamento negativo, qual seja: não interferir no exercício da minha propriedade. É direito subjetivo absoluto que ele tem.

No direito civil existe alguma outra categoria de direito subjetivo absoluto sem ser o direito da propriedade ou direitos reais? Tem, os direitos da personalidade também são absolutos e também impõem esse comportamento negativo, no sentido de que toda sociedade tem que respeitar os meus atributos existenciais. Então, qual é a diferença entre direitos reais e direitos da personalidade se ambos são absolutos? É que os direitos reais são direitos absolutos patrimoniais.e os direitos da personalidade são direitos absolutos extra patrimoniais, pois não são aferíveis pecuniariamente, visto que dizem respeito à nossa essência, à nossa existência. Mas ambos são absolutos.

Como vocês já tiveram obrigações com o Bruno, eu posso pegar bem pesado com você, e devo, porque tudo o que vocês aprendem nesse semestre no Praetorium é uma continuação. Então, vocês não podem cortar o raciocínio. Cada aprendizado em uma matéria serve de início para outra.

Então, eu vou mostrar porque os direitos obrigacionais são estudados antes dos direitos reais. Olha a linha de raciocínio: direitos obrigacionais são absolutos ou relativos? Vocês aprendem que eles são relativos porque essa prestação de R$ 100 mil eu, Nelson, posso exigi-la apenas relativamente contra o devedor Flávio.

Em tese, os direitos obrigacionais não seriam absolutos. Seriam relativos pois eu só posso exigir essa obrigação de dar, fazer ou não fazer relativamente contra a pessoa do devedor.

Agora um esclarecimento: se Nelson é credor de R$100 mil de Flávio, ele pode exigir que todos que estão na sala não interfiram nessa relação obrigacional, que não perturbem essa relação obrigacional? Sim, pois apesar das obrigações serem relativas no que diz respeito a que a prestação só deva ser paga pelas partes, as relações obrigacionais também têm eficácia, oponibilidade erga omnes.

E por que elas te oponibilidade erga omnes? Pois pelo princípio da função social do contrato, mesmo que a relação obrigacional ou contratual seja pelas partes, a sociedade não pode lesar os contratantes, não pode interferir nas relações de crédito, a sociedade, de jeito nenhum, pode prejudicar as relações de crédito que estão em andamento.

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É por isso que vocês viram que lá em São Paulo o juiz condenou a Bhrama a indenizar a Nova Schin porque a Bhrama pegou o Zeca Pagodinho no meio do contrato que ele tinha com a Nova Schin.

A Bhrama, ao invés de ter respeitado o contrato em andamento do Zeca Pagodinho com a Nova Schin, interferiu nessa relação de cooperação e levou esse contrato ao inadimplemento.

Então, o que se deve colocar em prova de concurso: Sr. Examinador, as relações obrigacionais são relativas no sentido de que as prestações são só exigidas à parte, mas elas também geram uma eficácia erga omnes, elas têm oponibilidade erga omnes porque as relações obrigacionais são voltadas para o adimplemento.

A relação obrigacional é um processo que nasce para ser cumprido e se um terceiro interfere nessa relação obrigacional, ela não será cumprida. Ela será conduzida ao inadimplemento.

O ordenamento hoje, cada vez mais, nos ensina que essa dicotomia entre direitos reais e direitos obrigacionais está perdendo o seu significado porque todas as relações patrimoniais exigem uma oponibilidade em face de terceiro.

Então, os direitos reais são absolutos.

O apartamento do Flávio fica na Delfim Moreira. Acontece que o Flávio está precisando de dinheiro e pede R$ 500 mil emprestados ao Nelson que diz que só empresta essa quantia se o Flávio lhe der em hipoteca esse apartamento da Delfim Moreira. O Flávio concorda.

Então, o que acontece? O Flávio dá em hipoteca a cobertura para o Nelson que, em troca, dá os R$ 500 mil para Flávio. A hipoteca vence em 15 de dezembro, quando o Flávio deverá pagar os R$ 500 mil.

Quinze dias antes de vencer a dívida, o Flávio pega a cobertura e vende para a Marcele. Esse negócio jurídico de vender esse imóvel é um negócio jurídico válido? Sim, pois o apartamento é dele. Só porque ele hipotecou, o apartamento não deixou de ser dele.

Só que ele vendeu para a Marcele e não pagou a dívida que vencia no dia 15. Pergunta: Nelson, que é o credor hipotecário, pode ir atrás da Marcele e tirar o apartamento que ela comprou? Pode, pois a segunda característica dos direitos reais é a seqüela.

O que é a seqüela? Seqüela é a faculdade do titular do direito real de seguir a coisa onde quer que ela se encontre.

Por que o direito real tem seqüela? Porque o direito real é absoluto. Se o direito real é absoluto, ou seja, se o direito real é igual para todos, eu posso perseguir a coisa contra todos. Se eu tenho a possibilidade de

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exigir de todos a abstenção, eu posso perseguir a coisa aonde quer que ela se encontre. Então, a seqüela é um atributo derivado do absolutismo, que é evidente e claro em relação aos direitos reais.

Em contrapartida, se eu assinei com o Flávio o seguinte contrato: Nelson é credor de Flávio que irá entregar-lhe uma bicicleta em 15/12. Isso é uma relação obrigacional.

Se no dia 15/12 Nelson cobrar a bicicleta de Flávio e este disser que a vendeu para Beto, poderá o Nelson ir atrás de Beto e tirar a bicicleta dele? Não, pois esta é uma relação obrigacional. Os direitos obrigacionais, em regra, são sem seqüela.

Os direitos obrigacionais são sem seqüela, pois são direitos relativos, ou seja, Nelson só pode exigir a prestação relativamente contra o devedor Flávio. Nelson não pode exigir a prestação relativamente contra Beto porque Beto não é parte nessa relação obrigacional.

Se ele não é parte, ele é um terceiro. E, assim sendo, ele não pode buscar a bicicleta do Beto, resolvendo-se tudo em perdas e danos. Pois quando os direito obrigacionais são objeto de inadimplemento, a regra geral é que o credor, vítima do inadimplemento, vítima da inexecução, só possa buscar perdas e danos decorrentes do descumprimento da prestação.

Qual é o único caso que mesmo eu sendo um mero credor obrigacional, eu tenho seqüela contra o bem? Fraude contra credores.

Mesmo em relações obrigacionais, se acontece o que está no art. 158 do CC (fraude contra credores), surge a seqüela.

Como surge a fraude contra credores? Deve-se provar que o Flávio fez uma liberalidade para o Beto, fez uma doação e, com isso, se reduziu à condição de insolvência.

Provado esses requisitos, Nelson tem uma ação pauliana para anular esse negócio jurídico que foi lesivo aos meus interesses.

Mas se não houver fraude, efetivamente não haverá seqüela no mundo dos direitos obrigacionais. Só terá seqüela no mundo dos direitos reais.

Flávio pegou R$ 500 mil emprestado com o Nelson, dando em troca a hipoteca do apartamento na Delfim Moreira e dia 15/12 é o dia do vencimento dessa obrigação.

No dia 15/12, Nelson vai cobrar os R$ 500 mil. Flávio diz que possui duas más notícias: apesar de não ter vendido o imóvel para ninguém, não irá pagar os R$ 500 mil. Nelson diz que vai pegar o imóvel, levar à venda em hasta pública, pois o bem está hipotecado.

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Mas Flávio diz que Nelson não é seu único credor. Além dele, Flávio possui um enorme número de credores.

Nelson diz que como possui direito real, possui preferência. A terceira característica dos direitos reais é a preferência, que significa que o titular do direito real tem um privilégio, qual seja: obter o pagamento da dívida em primeiro lugar.

Em outros termos, isso significa que os outros credores são credores quirografários. Vale dizer: eles estão no fim da fila. Primeiro recebe Nelson que é credor preferencial.

Nelson recebe primeiro os R$ 500 mil. Mas se o apartamento é vendido por R$ 700 mil, o que se faz com os outros R$ 200 mil? Os outros credores irão disputar essa quantia.

Mas Nelson já recebeu a sua parte em razão da preferência, do privilégio de ser titular de um direito real.

Tudo que eu falei até agora foi fácil. Agora eu vou perguntar o que o examinador perguntaria em uma prova aberta e em uma prova oral. Por que o titular do direto real tem preferência? De onde nasce essa preferência dele?

A preferência nasce da seqüela. A preferência decorre da seqüela. Muita atenção: o que quer dizer que um bem foi seqüelado? O bem que está seqüelado é um bem que está reservado, é um bem que está afetado.

Esse imóvel, quando foi reservado, afetado, não faz mais parte do patrimônio geral do devedor, pois patrimônio geral do devedor é aquele que serve de garantia para todos os credores. Mas como esse bem foi reservado e afetado, ele é um patrimônio em afetação.

Ele está reservado apenas para esse credor Nelson que o separou e isso significa que ele é que terá preferência no produto da sua venda, justamente porque está reservado para satisfazer o seu direito real. A razão da preferência é a seqüela.

Enquanto os quirografários são credores gerais do patrimônio, o credor hipotecário é um credor especializado daqueles bens que foram separados.

Isso é tanto verdade que: R$ 500 mil é o que você me deve, correto? Se eu só consigo apurar R$ 300 mil na venda desse bem, como é que eu faço para obter os outros R$ 200 mil que me faltam? Nesse caso, eu perco a preferência porque a minha preferência está ligada apenas ao valor do bem seqüelado.

Se eu não conseguir na venda do bem seqüelado apurar o valor, no restante eu entro na fila junto com os credores quirografários para apurar o

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excesso. A preferência do titular do direito real se limita ao valor dos bens afetados, seqüelados, reservados.

Hoje em dia eu posso dizer que a preferência do titular do direito real é a mesma de outrora ou sofreu mitigação? A preferência sofreu grande mitigação, pois nos últimos 70 anos no Brasil vem acontecendo um fenômeno pelo qual determinados créditos obrigacionais, que é o crédito quirografário, vem se transformando por exigência de norma de ordem pública nos chamados privilégios legais.

Determinados créditos, que eram créditos quirografários, vem sendo transformados, por exigência de norma de ordem pública, em privilégios legais.

Então, por exemplo: se uma empresa hoje quebra, quem recebe em primeiro lugar são os credores reais? Não, são aqueles que possuem privilégios legais. Basta ir no art. 83 da lei 11.101/05.

O art. 83 da lei 11.101/05 fala que recebem em primeiro lugar os créditos acidentários, previdenciários, trabalhistas até 150 salários mínimos.

Crédito previdenciário, acidentário e trabalhista até 150 salários mínimos são créditos reais? Não. Então, por que é que no art. 83 da lei 11.101/05 eles tomam a frente? Porque não obstante sejam créditos obrigacionais, em razão de normas de ordem pública, eles se tornaram privilégios legais. É por isso que eles vêm em primeiro lugar.

E depois desses créditos privilegiados, vem os créditos reais. Os créditos reais perderam a preferência? Não. Eles ainda têm preferência, mas essa preferência foi mitigada em alguns casos pelos privilégios legais.

Art. 958, CC:”Os títulos legais de preferência são os privilégios e os direitos reais”.

Então, ainda é título de preferência, só que é uma preferência suavizada pela existência dos chamados privilégios legais. Tanto é, que hoje o que vem na frente na lei de falências: créditos tributários ou créditos reais? Os créditos reais. Eles assumiram uma posição anterior aos créditos tributários.

Isso provocou uma reforma no art. 186 do CTN. Hoje o próprio art. 186 do CTN que foi recentemente reformado, diz que os créditos tributários ficam atrás da preferência dos créditos reais em razão da mudança da lei 11.101/05 que é a lei de recuperação.

Isso é só para vocês entenderem que essa preferência existe, mas concorre com os privilégios legais.

Qual é a diferença entre a preferência do direito real e os privilégios legais? É a seguinte: se, por acaso, vocês têm 84 apartamentos e só um deles foi dado em hipoteca, qual que é a preferência do titular de direitos

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reais recai sobre os 84 apartamentos ou só sobre aquele que foi dado em hipoteca?

A preferência recai só sobre o que foi dado em hipoteca, pois só aquele foi seqüelado e afetado. Mas se vocês estão devendo dinheiro para a Fazenda Pública Municipal do Rio de Janeiro e vocês têm 84 apartamentos, o privilégio legal da Fazenda Pública incide sobre qual dos 84 bens? Sobre todos, exceto sobre o bem de família, pois o privilégio legal recai indistintamente sobre todo um patrimônio, enquanto a preferência de direitos reais é específica e recai sobre os bens que foram seqüelados, reservados e afetados.

Então, vocês já viram: direitos reais são absolutos, têm seqüela e têm preferência. Já os direitos obrigacionais são sem preferência. Eles é que são, sem dúvida, os direitos quirografários que estão no final da fila.

Qual é a quarta característica evidente dos direitos reais? É a taxatividade. Os direitos reais são numerus clausus. Se vocês querem conhecer quantos direitos reais vocês têm, basta olhar o art. 1225, CC.

Eu quero que vocês abram o art. 1225 do CC e me digam quantos direitos reais tem na lista de vocês. Eu quero saber se o Código está atualizado ou não. Me digam um número de 1 a 12, de quantos direitos reais existem no art. 1225,CC.

Quem aí tem 10? Está desatualizado. Quem tem 10, vai colocar como número 11 concessão de uso especial de moradia e como número 12 vai colocar concessão de direito real de uso.

Eu estou falando isso porque a lei 11.481 de 01 de junho de 2007 acrescentou esses dois direitos reais ao rol do art. 1225, CC.

O que quer dizer que os direitos reais são taxativos? Os direitos reais têm como fonte única a lei. Eu não reconheço no ordenamento jurídico direitos reais que não tenham como fonte a lei.

Não é possível que Nelson sente num boteco à noite com a Marcele e inventem um direito real. Não é possível inventar direito real por relação contratual. Não é possível criar direito real por relação obrigacional. A fonte dos direitos reais é a lei.

Por que os direitos reais têm a lei como fonte? Porque eles são oponíveis contra todos. Todos na sociedade têm o dever de respeitar os direitos reais. Então, se a sociedade tem o dever de abstenção, a sociedade só pode se abster naquilo que alei tenha dado publicidade prévia. É o princípio da segurança jurídica.

Só pode haver segurança jurídica quando as pessoas respeitam direitos que são previamente determinados pelo legislador. Então, a taxatividade é uma conseqüência do próprio absolutismo dos direitos reais.

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Então, eu coloquei essas 4 características dos direitos reais porque uma se conforma à outra. Elas são numerus clausus. Então, eu vou fazer uma pergunta: se, por acaso, alguém nessa sala de aula é inquilino. Inquilino pode registrar o contrato de locação para amanhã ter direito de preferência caso o proprietário queira vender o bem? Sim.

Quando o locatário registra a locação do art. ??? da lei 8245/91 a locação virou direito real? Não, pois apesar da locação ter sido registrada e ter eficácia contra terceiros, ela não está no rol taxativo do art. 1225, CC. Ela não está dentro do rol numerus clausus. Não tem lei dizendo que aquela locação virou direito real.

Então, o que aquela locação quando foi registrada continua tendo? Continua tendo uma relação obrigacional porque está fora da taxatividade.

Outro exemplo: Paulo, imagina que o seu apartamento é penhorado. Se eu sou o credor que penhoro o seu apartamento, eu ganho alguma coisa registrando a penhora desse apartamento? É bom para o credor registrar a penhora? O que o credor ganha quando ele registra a penhora? Art. 659, §4o, CPC. Sabe o que eu ganho? Se amanhã você vende o seu apartamento penhorado, quem comprou um apartamento cuja penhora já estava registrada fez uma péssima compra, pois essa compra é ineficaz perante o exeqüente. O exeqüente pode tirar o apartamento do cara, pois se ela foi registrada, é oponível erga omnes.

Sabe o que perguntaram no concurso do MP de Minas Gerais? A penhora registrada é um direito real? Não. Apesar de ter sido registrada, não é um direito real porque só seria direito real se estivesse dentro do rol taxativo de direitos reais do art. 1225,CC. Então, nem tudo que se registra é direito real.

Os direitos reais são aqueles previamente dados pelo legislador. Gente, eu peço a vocês: quem está com o Cód. Civil no art. 1225, I, onde está escrito propriedade, coloque do lado “e propriedade fiduciária”, porque a propriedade fiduciária também é um direito real. Está no art. 1361, CC.

Então, na verdade,eu não tenho 12 direitos reais, eu tenho 13 porque a propriedade fiduciária também é um direito real que está explícita no inciso I que quando fala de propriedade, também fala da propriedade fiduciária.

E só uma última observação: os direitos obrigacionais são taxativos ou são numerus apertus? São numerus apertus porque os direitos obrigacionais não se submetem à tipologia do Código. Os direitos obrigacionais podem ser livremente criados pelas partes.

Nada impede que Nelson e Fábio sentem no boteco à noite e criem uma relação contratual. Podem criar contratos atípicos que não estão previamente acertados no código civil.

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Quer dizer que nós dois podemos criar qualquer tipo de contrato? Qualquer coisa a gente pode colocar no contrato? Não. Art. 425, CC. Eu só estou dizendo que os contratos são abertos, mas nem tanto.

Art. 425, CC: ”É lícitos às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste código”.

Quais são as normas gerais? Princípio da boa-fé objetiva e função social do contrato. Ou seja, mesmo nas relações contratuais, a liberdade de criar relações obrigacionais está submetida à boa-fé objetiva e à função social do contrato.

Nós já cumprimos a minha primeira tarefa: mostrar que direitos reais e direitos obrigacionais são duas categorias de direitos patrimoniais, mas com as suas distinções, com as suas peculiaridades.

Qual desses dois grupos de direitos tende a ter uma duração maior? Reais ou obrigacionais? Reais, pois os direitos obrigacionais pela sua própria consideração são transitórios, são efêmeros porque a obrigação nasce para ser cumprida. O objeto da obrigação é o seu adimplemento.

Os direitos reais estão marcados pela permanência porque em matéria de coisas, todo ser humano aspira a dominar um objeto. Então, as relações de direitos reais são relações duradouras, enquanto as relações de direito obrigacional são marcadas pela transitoriedade, pelo efêmero.

Pergunta de aluno: inaudível. Resposta do prof.: Perfeita a sua colocação. Os direitos reais não precisam para serem classificados como direitos reais estarem alinhavados no art. 1225,CC. Basta que exista uma norma incorporando à categoria de direitos reais para que isso possa ser alcançado.

Então, eu vou além para que a gente possa até refletir sobre certas coisas. Podem perguntar em concurso para vocês: qual é a diferença de taxatividade e de tipicidade? Porque os direitos reais são taxativos, mas não são típicos. Eles são taxativos, eles são numerus clausus, mas eles não são típicos.

Isso significa o seguinte: o Marcos Paulo tem um sistema, ao qual ele se filiou chamado time sharing. Tem uma rede de hotéis onde ele pode, uma semana por ano entrar em um desses hotéis pagando uma certa quantia.

O time sharing, que quer dizer em português tempo compartilhado, é um tipo de propriedade? É. Mas qual é a regulamentação no Brasil? Tem alguma lei que está trabalhando no Brasil o time sharing como propriedade? Não tem.

Mas por que mesmo não tendo essa lei eu digo para vocês que é propriedade? Pelo seguinte: qual é a característica do time sharing? X pessoas

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são donas daquele quarto de hotel. Qual é a sutileza dessa propriedade? É que cada proprietário só pode utilizar uma semana por ano, mas todos são condôminos.

Moral da história: é uma espécie de condomínio. E por que essa espécie de condomínio é direito real? Porque taxatividade é diferente de tipicidade. Quando eu digo tipicidade eu sou mais restritivo ainda. Tipicidade quer dizer que os direitos reais só são aqueles do art. 1225, CC, na acepção do termo e só.

Taxatividade quer dizer o seguinte: os direitos reais, em princípio são os do art. 1225, CC. Mas taxatividade significa que nada impede que as partes possam usar a sua autonomia privada para conformar os modelos que estão no artigo 1225, CC.

Trocando em miúdos: no art. 1225, CC tem propriedade? Tem. Nada impede que alguém nessa sala use a sua autonomia privada, use a sua criatividade, a sua liberdade para adaptar a propriedade a um modelo diferente de propriedade chamada time sharing. Isso está dentro da taxatividade.

A taxatividade é mais ampla pois ela admite que os particulares possam exercer a sua autonomia exatamente para dentro desses tipos criarem novas formas de direitos reais adaptadas a outras situações. Gustavo Tepedino é quem defende muito essa distinção entre taxatividade e tipicidade.

Aqui no Rio de Janeiro muitos autores começam também a utilizar essa diferença e eu também a utilizo em meu livro de direitos reais, pois é algo realmente muito mais afeto ao ordenamento democrático a idéia da taxatividade do que a idéia restritiva, presa de tipicidade de direitos reais.

Taxatividade é sinônimo de numerus clausus.

Vamos falar sobre propriedade. Por que falar de propriedade? Porque a propriedade é o mais importante dos direitos reais. É a chave dos direitos reais. Ninguém entende direitos reais sem passar pela idéia primária da propriedade.

Como eu posso conceituar propriedade? Tradicionalmente o conceito de propriedade está no art. 1228, CC. O que diz o art. 1228, CC? O proprietário poderá usar, fruir, dispor e reaver a coisa contra quem injustamente a possua ou detenha.

Então, vem o art. 1228, CC e conceitua a propriedade através dos atributos do uso, da fruição, da disposição e da reivindicação da coisa. Agora pessoal, eu quero dizer que isso é um erro, esse não é o conceito de propriedade.

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Nunca coloquem em uma prova de concurso que ser proprietário é poder usar, fruir ou reivindicar. Nunca digam que a propriedade é a soma desses atributos.

O que o art. 1228 faz é apenas descrever as 4 faculdades da propriedade. Mas não está dizendo efetivamente o que é direito de propriedade. Então eu vou explicar para vocês agora o que é propriedade para valer.

Flávio é proprietário de uma cobertura na Delfim Moreira. Aqui está o erga omnes que é o tal que tem dever de abstenção.

O que é a propriedade? Vocês equivocadamente pensam que a propriedade é a coisa: cobertura na Delfim Moreira. Não é. A propriedade não é a coisa, a propriedade não é o objeto, não é o bem da vida. A propriedade é muito mais interessante. A propriedade é a relação jurídica entre o proprietário e a coletividade. Isso que é o direito subjetivo de propriedade.

O direito subjetivo de propriedade é a relação jurídica entre proprietário e não proprietário. Essa relação jurídica eu chamo de direito de propriedade.

E da onde eu tiro essa conclusão? O que é direito subjetivo? É o direito de uma pessoa de exigir uma prestação de outra, um comportamento. Quando vocês são credores vocês não podem exigir uma prestação de outrem?

Neste caso, Fábio tem o direito subjetivo de exigir da coletividade o dever de abstenção. E a coletividade tem um dever. A todo direito subjetivo se contrapõe um dever.

E qual é o meu direito subjetivo? Exigir de todos o dever de não influir no exercício da minha propriedade. Esta relação jurídica se chama direito de propriedade.

E essa relação jurídica chamada propriedade vai nascer no momento em que Flávio tenha a titularidade da coisa, ou seja, a propriedade é sinônimo de titularidade. No momento em que o imóvel está registrado em seu nome, você passa a ser titular de um direito subjetivo, que é o direito subjetivo de exigir esse dever genérico de abstenção de toda a coletividade.

Então, a propriedade não é o bem. A propriedade é uma representação de bem e essa representação de bem surge do registro. Ou seja, a propriedade não é o corpo em si, é a alma.

A propriedade é a representação que se dá através dessa relação jurídica. Então, essa é a base do direito de propriedade. E ainda digo mais, e talvez seja a parte mais interessante, não só a propriedade é uma relação jurídica, como a propriedade pela Constituição tanto pelo art. 5o caput como pelo art. 5o, inciso XXII, a propriedade é um direito fundamental.

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A propriedade é um direito fundamental pelo seguinte: o que o art. 5o, caput assegura? A vida, a liberdade, a propriedade e a segurança. Por que a propriedade está no mesmo pé que a vida, que a liberdade? Porque propriedade é sinônimo de liberdade.

Propriedade é uma representação básica do direito fundamental à liberdade, que é um direito fundamental de 1a geração. Quando uma pessoa tem acesso à propriedade, quando o ordenamento jurídico de um país facilita essa pessoa a ter essa propriedade, o que está dando a essa pessoa? Liberdade.

Por que liberdade? Porque a propriedade é o local onde a pessoa se realiza como ser humano. Porque é dentro da propriedade que você desenvolve seus direitos da personalidade, desenvolve a sua privacidade. Porque a propriedade é local por excelência em que a sua entidade familiar se desenvolverá.

Então, a propriedade é um direito fundamental do ordenamento jurídico porque significa basicamente a liberdade de toda pessoa de ser feliz, de se desenvolver como ser humano.

E o direito à felicidade se dá em qualquer ordenamento jurídico em que as pessoas tenham liberdade de serem proprietárias. Acima de tudo, lembrem da propriedade como um direito fundamental e não é apenas um direito fundamental não. O art. 5o, XXII diz que é garantido o direito de propriedade.

Nas entrelinhas, isso quer dizer que é garantido o direito subjetivo de propriedade erga omnes, ele quer dizer que a propriedade é uma relação jurídica.

O art. 5o, XXII quer dizer que é garantido o meu direito subjetivo de exercer a minha propriedade com o respeito de todos. Ou seja, a propriedade é um direito fundamental porque o Estado democrático de direito em que nós vivemos considera também o art. 170, II, CRFB/88 que o exercício do direito de propriedade é uma parte fundamental da nossa ordem econômica.

Faz parte exatamente do princípio da livre iniciativa do desenvolvimento da ordem econômica que o direito de propriedade seja resguardado, garantido, protegido e privilegiado.

Eu sempre digo aos meus alunos que eles se preocupam demais com a função social da propriedade e se preocupam de menos com a propriedade em si.

E a grande questão é que todos os países do mundo que se desenvolveram e acumularam riquezas são os países que protegeram os contratos e a propriedade. No país em que existam instituições estáveis que

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protejam o contrato e a propriedade existe crescimento econômico, existe segurança jurídica.

Então, a propriedade é direito fundamental, é sinônimo de liberdade, pois tem que ser preservada ao máximo.

Então, eu expliquei para vocês o que é o direito subjetivo de propriedade. Isso é muito importante. É uma relação jurídica e é direito fundamental que está na CRFB/88 de maneira clara.

Nesse momento muitos de vocês devem estar pensando: se é direito de propriedade por que alguns autores chamam isso de direito à propriedade? Porque o art. 5o, XXII quando fala “é garantido o direito de propriedade”, implicitamente quer falar outra coisa: não é só garantido o direito de propriedade a quem tem. É garantido também o acesso ao direito de propriedade.

E quando eu falo que é garantido o acesso ao direito de propriedade e quando eu digo isso, já não é mais direito de propriedade, é direito à propriedade.É a possibilidade de qualquer cidadão brasileiro ter acesso à propriedade. Isso é o compromisso de um estado democrático de direito.

Qual é a diferença do estado democrático de direito para o estado liberal? O estado liberal é o estado pouco intervencionista. É o estado que deixa as relações de direito privado de uma certa forma, correrem soltas.

No estado democrático de direito, não. Ele tem o compromisso de transformar a sociedade. Ele quer, de uma forma radical, efetivar os direitos fundamentais que estão na Constituição. Então, se é esse o objetivo de um estado democrático de direito, ele tem que buscar acesso à propriedade porque o ser humano só pode ser chamado de ser humano se ele tiver o patrimônio dele, se ele tiver o chamado mínimo existencial.

Vocês estudam que direitos da personalidade não devem pensar que direito da personalidade é apenas dentro das relações extra patrimoniais.

As relações patrimoniais também sofrem o influxo dos direitos da personalidade porque a partir do momento que a dignidade da pessoa humana é o princípio fonte da Constituição Federal, é claro que o ser humano para ser chamado de digno, para ele ter consideração, respeito e auto-estima ele precisa de um mínimo existencial. O que é o mínimo existencial? É um patrimônio mínimo.

E o cara só vai ter patrimônio mínimo, só vai ter mínimo existencial se ele tiver propriedade. Ou seja, se esse cara tiver um conjunto de bens necessários à sua sobrevivência. O mínimo existencial significa o passaporte para a cidadania. O sujeito não é mais marginalizado, ele é um cidadão.

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Então, a garantia do direito à propriedade está implícita também no art. 5o, é o acesso à propriedade.

Isso aqui eu vou falar em 1 minuto para vocês. Ninguém vai perguntar isso em concurso, mas é uma opinião que eu tenho muito clara. Estudar direito para mim hoje em dia não é apenas estudar o direito. Deve-se estudar o direito de forma interdisciplinar.

E estudar direito de forma interdisciplinar não é só conhecer sociologia, filosofia, isso é muito legal, mas é também conhecer economia. E o defeito do jurista é que ele não conhece nada de Economia e aquilo que eles escrevem no mundo real não bate,não tem critério.

Então eu vou dizer uma coisa com pensamento de economista. Sabe como no Brasil você pega e materializa esse direito fundamental ao patrimônio mínimo, direito ao acesso à propriedade? É só você pegar esses milhões de favelas que existem por aí, esses terrenos ilegais, onde essa população toda que mora só tem posse e mais nada, regularizar e dar para eles a propriedade.

Se você pegar e der para eles a propriedade, você pega o capital deles, que é um capital morto, e transforma em um capital vivo, pois o favelado que agora é dono do barraco pode ir ao banco e pegar um empréstimo e com este empréstimo ele já pode realizar uma atividade econômica, ele já faz parte da civilização.

Mas como no Brasil não existe isso, não existe nenhuma iniciativa de dar acesso à propriedade, os favelados ficam à mercê de políticas clientelistas como o bolsa família e ficam submetidos a esmola, a migalhas porque elas são dignas de pena, porque elas não têm acesso à propriedade. Isso não vai cair na prova, mas é só para vocês terem uma idéia de que o compromisso da CRFB/88 não é só garantir o direito de propriedade a quem já tem, é dar acesso à propriedade a quem não tem.

Se tudo isso é propriedade, é uma relação jurídica, o que significa a relação jurídica de Flávio com o imóvel. Em primeiro lugar, existe relação jurídica de Flávio com o imóvel? Não, pois não existe relação jurídica de pessoas com coisas. Só existe relação jurídica entre pessoas.

O que existe entre Flávio e a cobertura na Delfim Moreira é uma relação material de dominação, de subordinação. Se a relação é s]de subordinação, como é que é o nome da relação material de poder que o titular tem sobre a coisa? Domínio.

Então, se alguém perguntar no concurso qual é a diferença de propriedade e domínio você vai responder que a diferença entre propriedade e domínio é a seguinte: propriedade é a relação jurídica do titular com o não proprietário. Se exige dos não proprietários um de ver de abstenção.

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Domínio é a situação matéria de poder do titular sobre a coisa. A coisa está submetida aos poderes do dono. E o domínio se materializa no usar e no fruir da coisa. Usar e fruir são poderes ligados à idéia do domínio. E dispor também, pois o dono pode dispor da coisa amanhã.

Percebam o que eu vou falar. Flávio, ação reinvidicatória. Zé Rainha odeia o dever geral de abstenção e invade a sua cobertura na Delfim Moreira. Você ajuíza contra ele uma ação reinvidicatória. Vou falar dessa ação nas próximas aulas.

A ação reinvidicatória é uma ação real ou é uma ação pessoal? É uma ação pessoal, sabe por quê? Porque você não reinvidica a coisa, você reinvidica contra quem violou o dever de abstenção, você reinvidica contra Zé Rainha, ou seja, é uma ação pessoal porque reinvidicar a coisa não é um atributo do domínio, é um atributo da propriedade.

Olha como vai ficar fácil quando eu explicar para vocês através de outra forma. Qual é o dever do Zé Rainha? É o dever de abstenção. Ele obedeceu o dever de abstenção? Não. Ele violou o seu direito subjetivo.

Quando alguém viola o seu direito subjetivo, o que nasce para você? Nasce para o proprietário uma pretensão. Como é o nome dessa pretensão que o proprietário tem contra os não proprietários? Pretensão reinvidicatória.

A pretensão reinvidicatória é exercida contra coisa ou contra pessoa? Contra a pessoa. É uma pretensão pessoal contra o Zé Rainha, pois ele descumpriu o direito subjetivo de propriedade.

Então, eu reinvidico contra o Zé Rainha, é uma pretensão pessoal. Eu vou usar a coisa, fruir a coisa e dispor da coisa, mas eu reinvidico quando o meu direito subjetivo é violado e nasce essa pretensão, que é a pretensão reinvidicatória.

Isso é para mostrar que propriedade é relação jurídica, se é relação jurídica, ela é direito subjetivo, se ela é direito subjetivo, este pode ser violado e vai nascer uma pretensão e a pretensão se chama pretensão reinvidicatória.

E eu vou exercer a pretensão reinvidicatória contra os erga omnes que entraram no seu apartamento.

Já o domínio diz respeito à situação de submissão da coisa à pessoa. Essa é que é a idéia.

Ninguém pode negar que hoje em dia a propriedade realmente não é mais uma propriedade tão imperial quanto outrora porque hoje toda propriedade tem uma função social.

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Em resumo, eu tenho um dilema para resolver com vocês: o art. 5o, XXII, CRFB/88 garante direito de propriedade e o art. 5o, XXIII, CRFB/88 diz logo em seguida que a propriedade atenderá a sua função social.

Eu posso dizer que o inciso XXII e o inciso XXIII são contraditórios? Como o legislador diz no inciso XXII que garante a propriedade, mas no inciso XXIII diz que a propriedade tem que ter função social. Isso é contraditório? Não.

Os incisos XXII e XXIII estabelecem uma complementaridade. Por que é uma relação de complementaridade? Porque o padrão de exigência da CRFB/88 é o seguinte: a sua propriedade só será um direito fundamental enquanto ela tiver função social.

Quando a sua propriedade não tiver função social, a sua propriedade perde a posição de direito fundamental.

Quando a sua propriedade não tem função social, não só ela deixa de ser um direito fundamental, como ela vira um ato ilícito.

Por que uma propriedade sem função social passa a ser um ato ilícito? Porque se a propriedade não recebe função social ela vira um ato ilícito por abuso do direito do art. 187, CC.

Se, por acaso, alguém tem uma propriedade e a utiliza para plantar maconha, o que acontece com esse cara, como é que ele fica? Rico, né? Não. O que eu quero saber é o seguinte: o cara usa a propriedade dele para plantar maconha. Em tesa a propriedade dele não é garantida? É. Mas ele deu função social? Não.

Então, se essa propriedade não tem função social, ela não tem merecimento, ela não tem legitimidade. Se ela não tem legitimidade, se ela não tem merecimento, ela é o abuso do direito.

O abuso do direito surge quando alguém exerce o seu direito subjetivo de forma desproporcional, de forma contrária ao sistema. O abuso do direito é um direito subjetivo que foi exercido sem legitimidade, sem merecimento, que foi exercido ferindo os limites éticos do ordenamento jurídico.

Então, eu pergunto para vocês: me dêem uma nota de zero a dez para o art. 1228, §2o, CC.

Vou ler com vocês. Art. 1228,§2o, CC: “São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem”.

Nota zero ou dez? Nota zero. Por que não serve para nada? Porque o §2o está falando do abuso do direito numa visão objetiva ou subjetiva? Subjetiva, pois ele diz que só haverá abuso do direito quando o proprietário tem o animus de prejudicar alguém.

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Para que a propriedade seja um abuso de direito, Para que ela seja um ato ilícito, para que ela não tenha função social é necessário para o juiz no caso concreto aferir qual era a intenção do proprietário? Óbvio que não porque o art. 187, CC não adotou o conceito atrasado e retrógrado, que é o conceito subjetivo do abuso de direito. O art. 187, CC adotou o conceito objetivo do abuso de direito.

E qual é a diferença entre o conceito subjetivo do abuso de direito do art. 187 para o conceito objetivo do §2o do art. 1228? No conceito objetivo de abuso de direito para que haja o abuso de direito, basta que a conduta de uma pessoa lese as finalidades dadas pelo ordenamento.

Ou seja, não é uma questão subjetiva de pesquisar o animus do agente. É uma questão objetiva de pesquisar o resultado da sua conduta. Por exemplo: plantou maconha. O resultado da conduta foi contrário ao que o sistema quer? Não. Não interessa o aspecto subjetivo e psicológico. O que interessa é que objetivamente aquele comportamento é sancionado. É por isso que propriedade sem função social é um ato ilícito.

Sabe como a gente junta o inciso XXII com o inciso XXIII? A propriedade hoje é formalmente individual, mas é materialmente social. Ela é formalmente individual, pois a propriedade ainda é um direito privado protegido pela Constituição. A propriedade ainda pertence ao particular.

Só que apesar dela ser formalmente individual, ela é materialmente social. Ou seja, a finalidade dela tem que satisfazer o interesse coletivo. A propriedade hoje, como qualquer direito subjetivo, tem estrutura e função.

Qual é a estrutura da propriedade? A estrutura da propriedade está no art. 1228. São os poderes que o proprietário tem de usar, fruir, dispor e reinvidicar. A estrutura da propriedade é a origem da propriedade.

O que é a propriedade, sua estrutura: usar, fruir, dispor e reinvidicar.

O que significa função? Função quer dizer finalidade, papel social. Qual é a função da propriedade perante a sociedade?

Quando eu pergunto pela estrutura eu pergunto o que é a propriedade? Art. 1228, CC. Quando eu pergunto pela função da propriedade, eu pergunto para quê serve essa propriedade? Para onde ela está orientada? Qual é a sua missão?

Sabe quando uma propriedade tem função social? Quando o proprietário satisfaz o seu interesse econômico e pessoal, que é quando ele usa, frui, dispõe e reinvidica. E ao mesmo tempo em que ele satisfaz o seu interesse individual, ele não ofende o bem comum. E por que ele não ofende o bem comum?

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Porque a propriedade que tem função social é aquela que dá retorno individual para o proprietário e dá retorno social, ou seja, é aquela que satisfaz tanto os interesses econômicos que o proprietário quer para ele, como também dá retorno social. Ela atinge os interesses econômicos do proprietário, mas não lesa a coletividade que está em volta dele. Essa é a propriedade que tem função social.

Então, estou querendo dizer que a propriedade é protegida, mas a fincão social se agrega como legitimação, como merecimento.

Qual é o momento em que você se torna proprietário da sua cobertura, Flávio? No momento em que você a registra. No momento em que você registra, você tem a titularidade e aí você já pode usar, fruir, dispor e reinvidicar.

Mas você também tem que avaliar se além de você se satisfazer como dono, concedeu a ela interesses relevantes, interesses dignos de merecimento.

A função social é o quinto elemento do direito de propriedade. Quais são os quatro primeiros elementos? São os elementos estruturais. E qual é o quinto elemento? É a função social.

Eu vou mostrar concretamente como é que a função social da propriedade se aplica. Ela é o quinto elemento porque a função social entra na própria estrutura da propriedade.

A função social da propriedade entra como quinto elemento, pois ela não quer limitar a propriedade, mas sim ela conforma a propriedade, ou seja, ela dirige a propriedade para suas finalidades constitucionais. O que ela vai fazer é encaminhar a propriedade para a finalidade eleita pelo sistema.

A melhor forma de explicar que a função social não limita, mas sim conforma, é com uma pergunta padrão em concurso público: qual é a diferença entre função social da propriedade e limitações ao direito de propriedade?

Aonde vocês aprendem limitações ao direito de propriedade? Na aula de direito administrativo. Citem limitações ao direito de propriedade do direito administrativo. Tem uma série de limitações administrativas, servidões administrativas, tombamento, tem uma serie de restrições à propriedade.

E aonde mais se aprende limitação ao direito de propriedade dentro do direito civil? Nos direitos de vizinhança.

Sabe o que tem em comum tanto as limitações do direito administrativo quanto as limitações do direito de vizinhança? Porque todas elas são restrições à propriedade. Ou seja, para você atender ao interesse do

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Estado no direito administrativo ou atender ao interesse do vizinho no direito de vizinhança, o que o legislador faz?

O legislador restringe os direitos do proprietário. Por exemplo, Flávio, você tem a cobertura no Leblon e você não pode colocar música alta após as 10 horas da noite. Isso é função social da propriedade ou é limitação ao direito de propriedade? É limitação para prestigiar o seu vizinho, para que haja tolerância nas relações entre vizinhos.

As limitações ao direito de propriedade são sempre obrigações negativas, são sempre obrigações de não fazer. São restrições que o proprietário recebe para homenagear o Estado ou o seu vizinho.

Mas se existe uma determinada norma que diz que você tem que plantar no seu terreno, isso é norma de limitação do direito de propriedade ou de função social? Função social, porque são normas que não querem restringir a propriedade, são normas que querem conformar a propriedade, ou seja, não são limites negativos, são limites positivos da propriedade. São normas de estímulo à propriedade, são normas de promoção da propriedade.

Além de serem limites positivos, nesses exemplos que a gente estuda de direito administrativo e de direito de vizinhança, são limites externos ou internos? Externos; é porque o Estado quer, o vizinho quer.

As normas de função social são normas que não apenas geram limites positivos, mas limites internos porque a função social está dentro da própria estrutura da propriedade.

A função social é a força motriz da propriedade, é como se fosse o motor da propriedade, que direciona para o bem individual do proprietário, conciliado com o bem comum.

Eu posso colocar em uma prova que a propriedade hoje em dia é um poder-dever? Sim. É um poder que o proprietário tem de usar, fruir e dispor, mas ele só pode exercer esse poder desde que ele exerça determinados deveres perante a coletividade.

Então, é um poder-dever ou, como alguns gostam de dizer, é um direito função. É um direito e, ao mesmo tempo, função. Essa é a lógica da função social da propriedade.

E o mais interessante, o que vai nos guiar hoje até o final da aula. Eu tenho dois tipos de função social no Código civil. Eu tenho a função social da propriedade urbana e eu tenho a função social da propriedade rural.

É claro que apesar de existir essa menção no Código civil, qual é o diploma que, de forma mais clara, descreve função social? É a própria Constituição. Quem vai lá no art. 182, CRFB/88 retira que toda cidade que tenha mais de 20 mil habitantes necessariamente tem que ter Plano diretor.

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E esse plano diretor tem qual finalidade? Dar função social à propriedade urbana. A função do plano diretor é exatamente fazer com que a cidade seja um espaço de inclusão, e não um espaço de exclusão, de marginalidade. Para isso, foi editado o Estatuto da Cidade que é a lei 10.257/2001.

Todo mundo nessa sala tem que estudar bastante o estatuto da cidade, pois essa é uma norma bem interessante porque trabalha direito civil, penal, administrativo, ela é transdisciplinar.

Na minha aula de hoje quem está com essa lei na mão pode dar uma colada só nos arts. 5 a 8. O que interessa em matéria de função social da propriedade urbana é vislumbrado nos arts. 5 a 8 do Estatuto da Cidade.

Não precisa estar com o código não. Eu vou dar uma explicação por alto só para mostrar para vocês que a função social é uma realidade. Não está apenas no plano das idéias.

O que acontece Flávio se você tem um terreno baldio na Penha que você não usa para nada há dez anos, em especulação imobiliária. Vem o plano diretor e diz que aquela área na Penha é uma área preferencial para fins residenciais. O que acontece nesse momento? O que o município pode fazer com esse proprietário que está inadimplente em matéria de função social?

Alguém pode me dizer, com base nos arts. 5 a 8 do estatuto da cidade o que o município pode fazer com ele? A primeira sanção é o parcelamento do solo ou a edificação compulsória.

Flávio, parcelar o seu solo não precisa, porque parcelar quer dizer lotear e o seu solo já está loteado, já está urbanizado, está na Penha. Mas o município do Rio de Janeiro também pode te obrigar a construir.

Alguém já imaginou que um proprietário possa ser obrigado a construir para dar função social? Hoje a propriedade não é apenas um direito, a propriedade obriga também.

Vamos dizer que o município te deu três anos para você edificar e nada de você edificar nesses três anos. Qual é a segunda sanção sucessiva que o município do Rio de Janeiro pode promover contra o Flávio? IPTU progressivo.

Vale dizer, se o Flávio não construiu nos 3 anos, durante 5 anos o IPTU vai tendo a sua alíquota majorada, até chegar a uma alíquota de 15%.

IPTU progressivo é constitucional? Não é confisco não? Não, pois a finalidade do IPTU progressivo não é a arrecadação. A finalidade é extrafiscal, que é conceder função social à propriedade urbana. Então, é claro que ele é constitucional.

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Não só ele é constitucional, como a súmula 668 do STF já diz que desde a Constituição de 1988, os estados já podem editar normas atribuindo IPTU progressivo.

Aliás, tem uma séria discussão em concurso público, mas não é quanto ao IPTU progressivo que estamos falando. O IPTU progressivo que estamos falando aqui é quanto ao valor do imóvel ou quanto ao tempo? Isso é uma progressividade no tempo que está no art. 182, §4o, CRFB/88.

É progressivo no tempo, pois cada ano que você deixa de dar função social vai aumentando o IPTU progressivo. Cabe IPTU progressivo também, mesmo para os proprietários que dão função social, com relação ao valor?

Se o seu imóvel que está na Delfim Moreira e custa R$ 2 milhões terá alíquota maior do que o meu porque o meu vale R$ 200 mil? A partir da EC 29, passou a ser assim. Não pelo art. 182, §4o, mas pelo art. 156, CRFB88. Então hoje também tem IPTU progressivo quanto ao valor venal. EC 29 que alterou o art. 156, CRFB/88. O STF hoje não está discutindo a constitucionalidade do IPTU progressivo no tempo, ela é tranqüila. O que o STF está discutindo é a constitucionalidade do IPTU progressivo quanto ao valor venal. Essa é a grande discussão no STF que, em breve, irá decidir.

Alessandra, você que é esposa do Flávio, passaram os 5 anos pagando IPTU progressivo e nada de darem função social ao imóvel. Qual é a terceira e última sanção que o município do Rio de Janeiro pode impor? Desapropriação.

Alessandra e Flávio ficam felizes porque foram desapropriados e vão receber uma grana? Não. Isso é uma desapropriação sanção. Vocês não serão indenizados em grana, mas sim em moeda podre, isto é, títulos da dívida pública resgatáveis em 10 anos.

A desapropriação sanção tem qual finalidade? Retirar o bem do patrimônio do particular justamente porque ele foi inadimplente na sua função social.

Duas boas perguntas para prova de direito civil ou de direito administrativo: o que o município faz quando desapropria o imóvel pertencente ao Flávio? O município vai desapropriar para realizar aquela edificação compulsória que o particular deveria ter realizado.

Ele desapropria para dar aquela função social que o estatuto da cidade tinha planejado, ou seja, ele desapropria para depois esse imóvel voltar para o poder dos particulares. É uma desapropriação específica para a concessão de função social.

E a segunda pergunta é: o que acontece com o município do Rio de Janeiro se o prefeito César Maia no prazo de 5 anos, a contar da data da desapropriação, deixar o imóvel desapropriado largado e não der a ele a

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função social? O prefeito responderá por improbidade administrativa, da lei 8429/92.

O prefeito responde por improbidade administrativa porque essa obrigação de dar função social não é só do particular, é também uma obrigação do estado e do município, a partir do momento em que ele desapropria e ele tem que dar a função social.

Se o município não der função social no prazo de 5 anos após a desapropriação, tem retrocessão, volta o imóvel para o particular ou não volta? A lei silencia. Volta ou não volta? Não volta, pois seria ilegítimo e afrontoso ao ordenamento jurídico esse presente. Qual seria o presente? A propriedade voltar ao proprietário que nunca deu função social a ela.

Por mais que o município seja desidioso para a concessão da função social, não há retrocessão. Essa é a posição de José dos Santos Carvalho Filho, já que silencia a lei nesse particular.

Tudo isso é função social da propriedade urbana. Essa três sanções são progressivas. Não pode pular da primeira para a última.

O município só pode fazer isso com o imóvel de vocês se tiver duas coisas: o plano diretor dizendo que a área em que vocês residem é uma área específica para função social. Em segundo lugar, que vocês tenham sido previamente chamados para o contraditório, para que vocês tenham a oportunidade de se defender, mostrando que o imóvel de vocês tem função social.

Se isso for aplicado de forma desproporcional, está sendo lesado o direito fundamental de propriedade de vocês. A Constituição não pode, apenas em razão de função social, jogar no lixo o direito fundamental de propriedade.

Não existe hierarquia entre função social e o direito de propriedade. Eles estão no mesmo nível de complementariedade.

Se isso é um exemplo claro de função social da propriedade urbana, aonde eu tenho um exemplo claro de função social da propriedade rural? No art. 184, CRFB/88.

Os arts. 184 e seguintes da CRFB/88 trabalham com a função social da propriedade rural. Um exemplo bem simples para iniciar: Pedro, se por acaso você tem um grande latifúndio que é improdutivo, qual é a sanção que o sistema jurídico te dá? Desapropriação para fins de reforma agrária.

Essa desapropriação para reforma agrária é privativa da União. Alguém nessa sala de aula duvida que a desapropriação para fins de reforma agrária não é aplicação da função social da propriedade rural? Claro que é.

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Agora, questão de concurso público: Beto, você é o maior produtor de soja do Brasil. A sua propriedade pode ser desapropriada para fins de função social? Dêem uma olhada no art. 185, II, CRFB/88.

O art. 185, II, CRFB/8 diz que não é possível desapropriar a grande propriedade rural se ela for produtiva. Se ela for produtiva, não cabe desapropriação dessa fazenda do Beto.

Aí o examinador pergunta: e se nessa fazenda dele, que é produtiva, ele não paga salário para os seus mil funcionários ou se ele destrói o meio ambiente e provoca destruição total? Mesmo assim não cabe desapropriação? Para que a palavra “produtiva” seja atendida, não é apenas necessário ter produtividade econômica.

Além da produtividade econômica, ela tem que ter índices de função social ambiental e índices de função social trabalhista. O que é função social ambiental e função social trabalhista? São índices que deixam claro que a propriedade do Beto pode ser muito interessante sob o ponto de vista do retorno individual para ele mesmo. Mas ela tem que ter além de retorno individual, retorno metaindividual.

O que é retorno metaindividual? Ela tem que dar satisfação econômica para o Beto e tem que dar satisfação aos interesses difusos e coletivos. Os interesses trabalhistas são interesses coletivos e os interesses ambientais são interesses difusos.

Então, quando o dono de uma fazenda simplesmente não respeita os direitos sociais de seus trabalhadores, é claro que cabe a desapropriação para fins de reforma agrária. Quando ele ofende o meio ambiente, que é um bem de uso comum a nós todos, pelo art. 225, CRFB/88, também cabe.

Não se contraria o art. 185, II, CRFB/88, pois isso é uma interpretação do art. 186, que fala que a função social não se resume ao aspecto econômico. A função social também tem que atingir proveito de trabalhadores e o resultado ambiental positivo. Essa é a idéia da CRFB/88.

Então, a propriedade rural requer a satisfação desses índices simultaneamente. Se um deles não existir, desapropriação para reforma agrária.

Pessoal, naquele exemplo que eu dei daquele sujeito que planta maconha no terreno rural dele a solução é a desapropriação para reforma agrária? Não. A solução é o confisco. Art. 243, CRFB/88.

Qual é a diferença do confisco para a desapropriação para fins de reforma agrária? O confisco é uma desapropriação sem qualquer indenização. Olha só que interessante. Quanto maior a função social, maior é o merecimento do proprietário.

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Alessandra, você tem uma propriedade que recebe função social e uma estrada vai passar por ela, você é indenizada em dinheiro. Mas se você não consegue cumprir a função social, você vai ser indenizada em quê? Títulos da dívida agrária. Se você planta maconha, você não vai ser indenizada.

Quanto maior é a ofensa à função social, maior será a sanção do ordenamento jurídico. Quanto menos função social você dá, maior é a sanção que você recebe pelo ordenamento jurídico pela quebra desse princípio da função social.

Há 10 anos tramita no Senado uma emenda dizendo que colocar trabalho escravo é caso de confisco. Eles não aprovam pois eles são os maiores empregadores dessa gente.

Então, plantar maconha dá confisco, mas tratar ser humano como coisa e instrumentalizar gente, você vai ter que indenizar o cara por desapropriação por reforma agrária. Percebam que os valores variam conforme os interesses.

Notem que propriedade urbana tem função social, propriedade rural tem função social e, antes de continuar a matéria, qual é a questão de concurso mais importante onde se revela a função social da propriedade no código civil?

É a seguinte: se o Flávio tem um terreno, urbano ou rural, e o abandona, esse terreno pode ser arrecadado pelo poder público? Sim, art. 1276, CC.

O art. 1276, CC diz que o imóvel urbano que o proprietário abandonar será arrecadado com bem vago e passará 3 anos depois para a propriedade do município.

Mas se nesse tempo em que o Flávio abandonou o imóvel, não pagou os tributos relativos a ele, fica ainda mais fácil arrecadar? Fica. Olha o que diz o §2o do art. 1276: presumir-se-á de modo absoluto a intenção de abandono quando cessados os atos de posse, deixar o proprietário de satisfazer os ônus fiscais.

Está dizendo que haverá uma presunção absoluta de abandono quando, além de você se ausentar fisicamente do bem, deixa de pagar os tributos reais que incidem sobre a coisa.

Está-se discutindo se esse §2o do art. 1276, que é uma norma de função social é constitucional ou inconstitucional? Ele, na verdade, não seria um novo caso de confisco?

Você criar uma presunção absoluta de abandono pelo simples fato de uma pessoa deixar de pagar tributo não seria caso de tributação com efeito de confisco, que é proibido pelo art. 150, CRFB/88? Foram feitos 2 enunciados pelo CJF.

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Enunciado do CJF não é súmula, mas é muito importante que vocês conheçam, pois eles exprimem a opinião majoritária da doutrina brasileira sobre determinado assunto. Então, é uma forma de vocês terem segurança sobre pontos controvertidos do direito civil.

Olha o que diz o enunciado 242 do CJF: ”A aplicação do art. 1276 depende de devido processo legal em que seja assegurado ao interessado demonstrar a não afetação de posse”.

O enunciado 242 está dizendo que não pode o Estado simplesmente arrecadar a propriedade sem que antes haja o contraditório, para que o proprietário possa provar que não deixou de possuir, que ele não abandonou o terreno. Deve ter o contraditório em decorrência também do direito fundamental de propriedade.

O enunciado 243 diz o seguinte: “A presunção de que trata o §2o do art. 1276 não pode ser interpretada de modo a contrariar a norma do art. 150, IV da CRFB/88”. O art. 150, IV é o que proíbe que qualquer tributo seja utilizado com efeito confiscatório. Perfeito.

Eu, Nelson, sou defensor da função social da propriedade, mas não defendo a socialização da propriedade. Aqui na~tem nada de Marx. Estou trabalhando com estado democrático de direito.

Aonde a função social da propriedade é mais ampla: no Código civil ou na Constituição? Na Constituição, pois propriedade no CC está dentro do direito das coisas. Coisas são bens corpóreos, bens materiais tangíveis. Coisa é todo bem que tem valor econômico. O CC só cuida da propriedade de coisa móvel ou imóvel.

Mas quando a CRFB/88 garante direito de propriedade, propriedade na Constituição não é coisa, propriedade é bem. Bem é gênero e coisa é espécie. Bem é uma idéia de qualquer objeto que é algo de valor para nós.

Patente é propriedade? Dinheiro é propriedade? Software é propriedade? Tudo isso é propriedade, mas não é propriedade de coisa, mas sim propriedade imaterial, é bem, é propriedade intangível.

A idéia de bem é muito mais ampla do que a idéia de coisa, pois ela considera qualquer espécie de objeto suscetível de avaliação econômica. Propriedade na constituição é crédito, qualquer crédito que eu tenho no patrimônio é chamado de propriedade, tias com dinheiro no banco, ações de uma empresa, direito autoral sobre uma música.

Por isso que o mais correto é falar em função social da propriedade porque cada propriedade tem um regime específico de função social.

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Hoje o grande desafio é: patente tem função social? Direitos autorais têm função social? Claro que têm. Quando o ministro quebrou a patente de dois medicamentos, o que ele fez? Função social da propriedade. O laboratório pode ganhar dinheiro com a patente? Pode, é direito de propriedade. Mas até que ponto a propriedade pode ser exercida pelo laboratório? Até o momento em que sua ganância seja tão grande que lese toda a sociedade brasileira que tem o direito fundamental à saúde.

A propriedade como um todo sofre os influxos da função social.

Flávio, aqui está a sua cobertura na Delfim Moreira e aqui estão os erga omnes. Primeiro você já viu que propriedade é uma relação jurídica entre os proprietários e não proprietários e essa relação jurídica nasce do art. 5o, XXII que garante um direito subjetivo que é um direito de propriedade, exigindo o dever de abstenção de toda a sociedade.

De agora até o final da aula eu vou chamar os erga omnes de não proprietários.

Os não proprietários hoje em dia têm algum direito contra o proprietário? Sim. Possuem o direito metaindividual de exigir função social, que está no art. 5o, XXIII, CRFB/88. A sociedade pode exigir que o proprietário dê função social.

A propriedade hoje é uma relação jurídica complexa porque hoje a propriedade tem duas vias. O proprietário tem direitos e deveres perante a coletividade. Vale dizer, o proprietário pode exigir dever de abstenção, mas ao mesmo tempo, deverá conceder função social.

Quer dizer que se o Flávio não der função social à sua propriedade, ficar 6 meses ausente da sua fazenda, estará autorizando o Zé Rainha a invadir a fazenda? Não, pois quando eu digo que existem deveres do proprietário perante a sociedade, não é anarquia.

O que existe é que a função social da propriedade só pode ser aplicada nas hipóteses que estão na lei. Ou seja, o proprietário só pode ser lesado por quebra de função social nas hipóteses específicas que estão na lei e que tenham razoabilidade.

Uma pessoa só pode ser ameaçada de alguma forma no seu direito de propriedade pela quebra da função social quando essa norma de função social for uma norma que estiver em lei e for uma norma proporcional.

Por exemplo: por decreto, não é possível se criar uma norma de função social da propriedade. Não sei se vocês estão acompanhando. Está na iminência de, por pressão do MST, o governo federal fazer um decreto para mudar os índices de aproveitamento de terrenos rurais no Brasil.

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Se isso acontecer vai ser uma catástrofe, pois eles vão pedir um índice de aproveitamento de praticamente 100%, que é uma coisa que quase nenhum proprietário vai atender. Então, todos os imóveis, de uma hora para outra, perderão sua garantia fundamental de propriedade por pressão política de determinados grupos.

A função social tem que ser aplicada dentro dos limites que estão no ordenamento e limites esses ponderados, sempre com a possibilidade do STF intervir quando haja excesso nas situações.

A segunda conclusão é a seguinte: é mais importante direito de propriedade ou função social? Nenhum dos dois. Ambos são direitos fundamentais e não existe direito fundamental absoluto no ordenamento. Todos os direitos fundamentais são relativos. Significando que só no caso concreto os magistrados, diante da situação que está em lide, dirá o que deve prevalecer: a garantia de propriedade ou a função social da propriedade.

Isso é uma questão que receberá uma conformação da lei ou do juiz em cada caso concreto. Então, não existe a princípio um que seja mais importante. A propriedade é emanação do direito fundamental da liberdade e a função social emana do princípio constitucional da solidariedade. Um não é mais importante do que o outro.

O Estado democrático de direito deve conciliar, tornar possível que as pessoas sejam livres e iguais e fazer com que elas sejam solidárias.

Falar em socialização do direito de propriedade significa que hoje ninguém mais tem direito de propriedade. A propriedade se tornou coletiva. Isso não existe.

O que existe é função social, que é permitir que a propriedade continue privada, que o proprietário possa dela retirar a sua liberdade, mas dentro de certos parâmetros de legitimidade e de merecimento.

Estou terminando a aula agora. Amanhã de 10:15h às 12:15h eu começarei os modos de aquisição da propriedade. Bom descanso para todos vocês.

Rio, 06.11.2007

Bom dia a todos! Vamos lá amigos. Nosso segundo encontro de direitos reais começa nesse instante às 10:15h da manhã. Nós temos vários temas a tratar. Hoje nós temos esse tema: modos de aquisição da propriedade imobiliária.

No Código civil passado os 4 modos de aquisição da propriedade eram sucessão, usucapião, acessão e transcrição. Já no código civil atual os modos de aquisição da propriedade são: registro, usucapião e acessão.

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Vamos ver essas mudanças. Em primeiro lugar, por que a sucessão não é mais modo de aquisição da propriedade? Gente, a sucessão é modo de aquisição da propriedade? É. Então por que saiu do livro do direito das coisas? Porque sucessão é modo de aquisição da propriedade causa mortis e, por esse motivo, não deve estar no livro dos direitos reais. Tem que estar no livro do direito das sucessões.

Usucapião, mudou? Mudou de sexo, porque agora ninguém mais fala o usucapião, mas sim a usucapião. Porém, para mim em provas vocês podem utilizar o masculino ou o feminino. É indiferente.

Acessão continua da mesma forma. Ninguém mais fala transcrição. Agora, fala-se registro. Hoje nós utilizamos registro como modo de aquisição da propriedade.

Qual é o nome do caminho da aula de hoje? É o caminho da RUA (Registro, Usucapião, Acessão). Eu vou começar pelo registro. Registro é um modo de aquisição da propriedade interessante.

Ana Paula, quando eu tenho esse vidro e eu quero transmitir a propriedade desse vidro que é bem móvel, como eu faço? Tradição. A tradição se contenta com a simples entrega da coisa. O registro é uma tradição formal, pois o registro não se dá simplesmente com a entrega da coisa. O registro requer a formalidade de ser levado o título ao registro imobiliário.

Então, o registro é uma tradição solene. Não basta a tradição da coisa, tem que ter a remessa do ato ao registro imobiliário.

Eu, Nelson, tenho um imóvel no Catumbi e quero vender para o Flávio. Então, eu faço uma escritura pública de compra e venda. Eu faço escritura pública de compra e venda porque no Brasil todo bem imóvel cujo valor seja superior a trinta salários mínimos, necessariamente a forma contratual tem que se dar pela via da escritura pública (art. 108, CC).

A escritura pública é requisito de validade do negócio jurídico acima de 30 salários mínimos. A escritura pública é feita em 06/11. Flávio, essa escritura pública que está em suas mãos é o quê? É um título. Formal de partilha e carta de arrematação também são títulos.

Nesse momento, ele já é proprietário? Claro que não. Ele é apenas credor de uma relação de direito obrigacional. Nesse momento em que você tem a escritura pública, a única coisa que eu fiz com você foi um contrato de compra e venda que já é uma prestação de dar coisa certa.

Vejam como o art. 481, CC magistralmente demonstra que Flávio tem apenas em mãos uma relação obrigacional.

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Art. 481, CC: “Pelo contrato de compra e venda, um dos contratantes se obriga a transferir o domínio de certa coisa a outro e esse outro a pagar certo preço em dinheiro”.

O que diz o artigo? Obriga. Todo contrato é uma relação obrigacional. Todo contrato é uma relação de dar, fazer ou não fazer. Então, você é apenas credor de uma relação obrigacional e Nelson está se obrigando a transferir coisa certa, ou seja, o apartamento no Catumbi. Flávio, você agora vai ficar muito triste. Sem você saber, eu amanha, dia 07/11, me dirijo à Rafaela e a vendo o mesmo apartamento que te vendi hoje por escritura pública de compra e venda, só que no dia 07/11.

Rafaela, você também passa a ser credora de um direito obrigacional. É uma nova relação obrigacional. Eu estou me obrigando a te transmitir essa propriedade no dia 07/11.

Mas as pessoas são muito diferentes. Flávio pega a escritura pública dele e deixa em casa, não faz o registro de imediato. Já a Rafaela, no mesmo dia 07/11, leva o titula ao RGI e faz o registro.

Nesse instante em que a Rafaela levou o título ao RGI, ela se tornou proprietária? Sim, pois o modo de aquisição da propriedade no Brasil é o registro. Contrato não tem eficácia translativa no Brasil. Contrato no Brasil não transmite propriedade.

O que transmite a propriedade é o registro. Ele que é o modo, por excelência, de aquisição da propriedade.

Art. 1227, CC:”Os direitos reais sobre imóveis, constituídos ou transmitidos por ato entre vivos, só se adquire com o registro no cartório de registro de imóveis dos referidos títulos”.

O art. 1227, CC deixa claro para vocês que no Brasil o registro é um ato complexo de formação progressiva. O que é um ato complexo de formação progressiva? Isso ocorre porque o registro no Brasil tem duas etapas: a primeira etapa é aquela em que o adquirente tem em mãos o título. A segunda etapa é a que ele leve o título a registro.

Então, é um ato complexo que se dá de forma progressiva porque primeiro o adquirente tem em mãos um título (escritura pública de compra e venda). O título é sinônimo de causa, causa do negócio jurídico.

Posteriormente, você leva esse título a registro. No momento em que você registra, você passa a ser titular de direito real, passa a ser titular de propriedade.

Tudo o que eu disse para vocês sobre o art. 1227 é reiterado no art. 1245, CC, que diz: “Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis”.

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O registro tem duas funções: constitui a propriedade e a publica. O que quer dizer constituir e publicar? Rafaela, você se torna proprietária com o registro e isso gera publicidade para a sociedade que tem o dever de respeitar o novo titular da propriedade que é a Rafaela.

Vamos às 3 perguntas de concurso público sobre tudo que eu contei até agora. Flávio, você ficou chateado, não ficou? Então, diz que vai entrar com uma ação reivindicatória contra a Rafaela porque o seu título é anterior ao dela, vou cancelar a propriedade dela e leva-la para mim. O Flávio ganha essa ação? Não.

Isso se explica pois o Flávio é titular de direito obrigacional, e quem é titular de direito obrigacional tem seqüela? Não. Quem é titular de direito obrigacional que não tem seqüela pode reivindicar? Não. Só pode reivindicar alguma coisa quem tem seqüela. E só quem tem seqüela é o titular de direito real.

Então, se você for titular de direito obrigacional, você não pode buscar a coisa na Rafaela.

O que o Flávio pode fazer se ele foi lesado por Nelson? Perdas e danos contra o Nelson. Tudo se resolve em perdas e danos, de acordo com o art. 389, CC, é a base da teoria do inadimplemento.

Art. 389,CC: “Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos”. Qual foi a obrigação que eu descumpri? A obrigação de dar coisa certa. Em razão desse inadimplemento, perdas e danos.

O Flávio vai ter que procurar perdas e danos, já que a Rafaela já é dona.

Segunda pergunta: Verdadeiro ou falso: No Brasil, os contratos não têm eficácia translativa. Verdadeiro.

Contrato só gera obrigação. Contrato, sozinho, não gera direitos reais. Contrato não transmite propriedade. Contrato só gera a obrigação de dar, fazer ou não fazer, mas não transmite propriedade.

Na França e na Itália é diferente. Nesses países, por força do contrato napoleônico, o contrato já transmite propriedade.

Nelson e Washington, na França, fazem um contrato. No dia em que eu te entrego a escritura de compra e venda na França você já é dono. Não precisa de registro. Na França, os contratos têm força translativa. O registro serve só para dar publicidade.

Então, diante disso, vem a parte que eu julgo mais importante para o entendimento.

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Na teoria geral do direito civil aprende-se os planos da existência, validade e eficácia do negócio jurídico. E esse é um bom momento para se distinguir o que é validade e o que é eficácia de um negócio jurídico.

Flávio, o contrato de compra e venda é um negócio jurídico? É. Todo contrato é um negócio jurídico. É um negócio jurídico bilateral. É um negócio jurídico válido? Sim. Agente capaz, objeto é lícito e a forma está prevista em lei. O negócio jurídico atendeu aos requisitos do art. 104, CC.

Qual é o momento em que se afere se o negócio jurídico é válido ou não? No momento do nascimento do negócio jurídico.

Agora gente, o que quer dizer eficácia? A eficácia é a aptidão do negócio jurídico válido para produzir os efeitos desejados, queridos pela parte. Esse negócio jurídico entre Nelson e Flávio teve eficácia? Teve. Teve eficácia obrigacional. Ele produziu efeitos obrigacionais.

Tanto é verdade que ele produziu eficácia obrigacional que diante do um descumprimento, ele teve direito a perdas e danos. Ele teve direito a perdas e danos porque houve efeitos obrigacionais.

Esse negócio jurídico entre Nelson e Flávio teve efeitos reais? Não, pois a eficácia real está condicionada ao registro. Ou seja, o negócio jurídico só passa a ter eficácia de direito real se houver um segundo ato que é o ato jurídico administrativo do registro.

Qual é a importância que se deve dar ao registro? Por que se estuda direitos reais depois de direito obrigacional? Porque na maioria dos casos direitos reais não passam de efeito de negócio jurídico válido, ou seja, o negócio jurídico entre Nelson e Flávio é válido, tem efeitos obrigacionais entre as partes, mas não pode gerar eficácia erga omnes porque faltou o elemento do registro.

Muitas vezes a propriedade que você tem não passa de uma eficácia real de um negócio jurídico válido.

Olha só o que o bom civilista faz: primeiro ele estuda a parte geral para conhecer a teoria do negócio jurídico. Depois ele entra no livro das obrigações pois obrigações são efeitos de negócios jurídicos válidos. Depois ele estuda o livro de direitos reais.

Rafaela, a proprietária do imóvel, já mora nele há três anos. O que acontece depois de três anos? Aparece Washington e diz para Rafaela que o Nelson vendeu imóvel que não era dele. Ele fez a chamada venda a non domino.

O Washington diz que a propriedade é dele e que o Nelson passou por representante dele, fez uma procuração falsa e vendeu o imóvel. Mas, na verdade, ele que é o dono e quer o imóvel de volta.

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Em defesa, a Rafaela diz que lendo os papéis do Washington, até entende que ele seja dono. Mas ela diz que como ela registrou, ela é a proprietária, ela tem presunção absoluta de propriedade e que ninguém atira do imóvel.

Washington diz que ela está enganada e que não tem presunção absoluta de propriedade, pois não obstante ter registrado, o seu registro fica vinculado ao seu título de origem. E se o seu título é falso, eu posso derrubar o seu registro.

Quem está com razão? Washington, porque o direito brasileiro agasalha dois princípios básicos com relação a esse tema: o modo é vinculado ao título e registro no Brasil só gera presunção relativa de propriedade.

O modo é vinculado ao tipo. O que é o modo? É o registro. O modo é o modo de aquisição. O registro é vinculado ao título de origem. Isso quer dizer o seguinte: por mais que vocês tenham registrado o imóvel no nome de vocês, se amanhã aparecer alguém e provar que o título de origem é viciado. Se esse título for derrubado, o vício desse título contamina o registro.

Então, por que é tão importante a pessoa registrar o imóvel no nome dela se amanha ela pode perder essa propriedade se aparece alguém? O registro te concede uma presunção relativa de propriedade que traz uma inversão do ônus da prova, ou seja, na lide entre Washington e Rafaela, não é a Rafaela que precisa demonstrar que é proprietária. A propriedade dela já é presumida.

A propriedade da Rafaela já é presumida porque ela tem titularidade, porque ela registrou. É o Washington, que é o impugnante, que deverá demonstrar ao juiz que o título dela é viciado. Ele terá que fazer prova de que o título é defeituoso, viciado.

Se o Washington conseguir provar que o título da Rafaela é viciado, consegue cancelar o registro dela, mas se não trouxer prova nenhuma, ela permanece com a propriedade porque ela tem uma presunção relativa de propriedade.

Washington vai ter que ajuizar uma ação de invalidade do título c/c pedido de cancelamento do registro. Primeiramente deve-se anular o título pois primeiro se demonstra nulidade ou anulabilidade. E, invalidado o título, o registro será cancelado, perde sua base de sustentação.

Art. 1245, §2o, CC:”Enquanto não se promover, por meio de ação própria, a decretação de invalidade do registro, e o respectivo cancelamento, o adquirente continua a ser havido como dono do imóvel”.

O próprio Código civil demonstra que a iniciativa da invalidação cumpre a Washington e que o registro só tem presunção relativa de propriedade.

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Pelo o que eu expliquei aqui, o registro é mais forte no Brasil ou na França? No Brasil, já que na França o registro só serve para dar publicidade. Se você assinou o contrato, já é dono. No Brasil tem que haver o registro para que haja aquisição realmente da propriedade.

Na Alemanha o sistema de registro é melhor que o do Brasil. Na Alemanha, Nelson faz um contrato com Rafaela de escritura de compra e venda. Os dois juntos devem fazer um segundo contrato na frente do oficial do registro. Esse segundo contrato se chama Convênio Real. Esse segundo contrato é que vai ser registrado no ofício imobiliário da Alemanha.

No direito alemão a presunção de propriedade é relativa ou absoluta? É absoluta, porque lá se faz abstração da causa. Quando se faz o segundo contrato perante o oficial do registro, o primeiro contrato é abstraído, esquecido. E todos os eventuais vícios que ele pudesse ter são sanados pelo segundo contrato.

E como é abstraída a causa, o sistema alemão te garante presunção absoluta.

No Brasil há o sistema da abstração da causa ou não? Não. No Brasil, a causa, que ´o título, não é abstraído, pois mesmo que você tenha registrado o imóvel no seu nome, se lá na frente alguém provar que esse título é viciado, você vai perder essa propriedade.

Por isso que nós falamos que o nosso sistema é o da presunção relativa. Só se pode falar que o registro tem fé pública na Alemanha, porque só tem fé pública aquilo que tem presunção absoluta. No Brasil, o registro não tem fé pública, o registro tem força probandi.

Quando no Brasil o registro que você faz tem presunção absoluta? Qual é o único caso? Quando é o registro Torrens (art. 276, lei 6015/73).

Gente, o que quer dizer registro Torrens? Torrens era um australiano chamado Sir Richard Robert Torrens e ele criou um sistema de presunção absoluta de propriedade na Austrália.

No Brasil a presunção absoluta do sistema Torrens é só para imóvel rural. O registro Torrens é feito perante o juiz de direito. É um procedimento de natureza administrativa. É um processo de jurisdição voluntária, onde o juiz vai dar uma sentença te concedendo o registro Torrens.

Mas para o juiz te conceder o registro Torrens tem que ter ouvido o MP, os confrontantes, tem que ter o levantamento topográfico do terreno. Tudo isso para gerar uma confiabilidade quanto à origem do seu imóvel. Em Tocantins, Goiás, Mato Grosso é comum o registro Torrens para dar maior garantia para a propriedade rural.

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A Rafaela vendeu o seu imóvel para a Alessandra que, algum tempo depois, vendeu para Marcele. De repente, Washington aparece e pergunta como ela é dona desse imóvel. Marcele conta para ela a cadeia causal da venda do imóvel.

Washington diz para ela que Nelson fez uma venda a non domino e diz que o imóvel é dele. Marcele, em defesa, alega que é terceira de boa-fé e que pelo princípio da aparência, não pode perder a propriedade, pois ela confiou no registro. Mas esse argumento não lhe garante a propriedade.

O código civil entende que por mais que estejam envolvidos terceiros de boa-fé, esse terceiro de boa-fé se submete à perda da propriedade pois os vícios do título são insanáveis.

Isso quer dizer que por mais que a propriedade circule de A para B, de B para C, de C para D, de D para E, esses vícios não são purgados pelo tempo, os vícios continuam. Ou seja, o título que é viciado na origem contamina toda cadeia causal subseqüente.

Art. 1247, parágrafo único, CC: ”Cancelado o registro, poderá o proprietário reivindicar o imóvel, independentemente da boa-fé ou do título do terceiro adquirente”.

Apesar do CC não ter, no parágrafo único do art. 1247, tutelado o terceiro de boa-fé, esse parágrafo único não pode ser interpretado de forma literal, pois eu tenho dois princípios que estão em posição de confronto, em colisão. De um lado eu tenho o direito de propriedade do Washington, mas do outro lado eu tenho a teoria da aparência.

A teoria da aparência visa prestigiar a boa-fé de um terceiro que por um erro escusável, desculpável, acaba praticando um negócio jurídico. A teoria da aparência visa justamente proteger essa pessoa que, com um ato de confiança, acreditou na seriedade do registro imobiliário e acreditou no princípio da segurança jurídica.

E, ao mesmo tempo, eu tenho que proteger o Washington, porque proteger a propriedade também é proteger a segurança jurídica.

A ponderação de valores está aonde? Quem eu devo proteger: o proprietário desidioso que deixou o que é seu escapar das suas mãos até cair nas mãos de terceiro ou devo proteger o proprietário aparente? O que eu estou querendo dizer é que em alguns momentos o CC prestigia o proprietário aparente.

Exemplo em que a propriedade aparente vence: Bill Gates morre e deixa como herdeiro o seu sobrinho Paul. Renata compra um imóvel do Paul, visto que ele é o único herdeiro.

Três anos depois aparece um filho que Bill Gates tinha e ele ajuíza uma ação de petição de herança e ganha. O filho se torna herdeiro no

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lugar do sobrinho. Renata, você vai ter que devolver esse imóvel para o verdadeiro herdeiro?

O filho do Bill Gates é o verdadeiro proprietário e a Renata é a proprietária aparente.

Art. 1827, parágrafo único, CC: “São eficazes as alienações feitas, a título oneroso, pelo herdeiro aparente a terceiro de boa-fé”.

Em alguns casos o código protege a aparência, a confiança e a segurança jurídica.

O Washington ajuizou uma ação de nulidade do título c/c cancelamento do registro. Ele nulificou o título, cancelou o registro, mas o imóvel ainda está com a Marcele que ao quer sair do imóvel. Qual é a ação que ele deve ajuizar contra ela? Ação Reivindicatória.

Ele ajuíza uma ação reivindicatória. Qual é a única chance da Marcele vencer? Se essa soma de posse gerou prazo para a usucapião ordinária. A usucapião ordinária pode ser alegada em defesa.

Houve uma alteração na lei de registros públicos pela lei 10.931/04. Vejam o art. 214, §5o: “A nulidade não será decretada se atingir terceiro de boa-fé que já tiver preenchido as condições de usucapião do imóvel”.

De forma clara, esse artigo não está protegendo qualquer terceiro de boa-fé, mas sim o terceiro de boa-fé que já tenha prazo de usucapião.

Agora vem a melhor parte. A Marcele não tem prazo para a usucapião. Então, se ela não tem prazo, prevalece aquilo que diz o CC, ou seja, ela terá que sair do imóvel em decorrência da ação reivindicatória.

O que a Marcel pode fazer nessa lide já sabendo que ela vai realmente perder a posse da coisa ao final da reivindicatória? Ela promove a denunciação da lide por ser um caso de evicção.

O que é evicção do art. 447, CC? A evicção é a perda de um direito em razão de uma demanda ajuizada por terceiro. Terceiro é o Washington e o direito que a Marcele está perdendo é o direito de propriedade.

Washington é o evictor, é ele que causa a evicção. A Marcele é a evicta porque é ele que vai perder a propriedade.

Toda vez em que se vende propriedade, o alienante tem que resguardar o adquirente dos riscos da evicção. Se amanhã vocês perderem a coisa em razão da evicção, vocês têm indenização contra o alienante.

Então, a Marcele promove a denunciação da lide do art. 70, I, CPC que diz que a denunciação da lide se dá nas hipóteses de evicção. Como

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a Marcele promove a denunciação da lide? Tradicionalmente diz-se que a denunciação é uma denunciação sucessiva: Marcele denuncia Alessandra que denuncia Rafaela que denuncia Nelson.

A Marcele pode promover a denunciação da lide diretamente contra o Nelson já que foi ele que ocasionou tudo isso? Pode, visto que o art. 456, CC inaugurou a denunciação da lide per saltum, que significa que a Marcele ao invés de ficar buscando os antigos proprietários um a um, pode ir diretamente na figura do alienante primitivo. Ela pode escolher diretamente contra quem ela quer litigar.

Qual é o prazo processual para fazer a denunciação da lide? Qual é o momento processual? Se ela esqueceu de promover a denunciação da lide e houve a preclusão, ela ainda pode numa ação de indenização autônoma buscar a evicção contra a Alessandra?

Está escrito no art. 70, I, CPC que a denunciação da lide é obrigatória. Pode ou não pode? Claro que pode. Porque se vocês me falassem que a Marcele não mais pode buscar indenização em ação autônoma contra a Alessandra só porque ela esqueceu o prazo processual, estariam autorizando o enriquecimento sem causa.

Então, esse 70, I, CPC é ridículo quando diz que a denunciação da lide é obrigatória, e não é. É uma faculdade processual, pois se você perder, ainda tem uma ação autônoma de indenização emprazo dado pela lei.

Pergunta de aluna: inaudível. Resposta do prof.: Não. A evicção se dá pelo valor de mercado do bem à época da evicção. Quanto o bem valia na época em que foi perdido? Art. 450, CC. É o valor do bem.

Tudo isso é questão de prova. Ontem eu estava vendo umas questões da PGE para dar aula em uma turma em que eu vou dar isso. 50% das perguntas da PGE são ligadas a propriedade, registro, cancelamento, evicção, promessa de compra e venda, alienação fiduciária.

Marcele, além de você ter possibilidade de ajuizar uma demanda contra a Alessandra, você tem a possibilidade de entrar com ação de responsabilidade civil contra o Estado? E contra o tabelião? Claro que tem. A responsabilidade civil do tabelião é objetiva, art. 37, §6o, CRFB/88.

A responsabilidade civil é objetiva pois o tabelião é prestador de um serviço público e ele registrou um título que ele jamais deveria ter registrado porque era proveniente a non domino. Então, é claro que ele tem responsabilidade objetiva de indenizar por ter te colocado nesta situação.

Eu ainda tenho mais três aspectos do registro para mostrar para vocês. Primeiro: Nelson vende um terreno para Washington hoje, dia 06/11/2007. Mas Washington somente registra essa escritura pública de compra e venda em 2011.

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Quando ele registra, ele se torna dono a partir de 2011 ou retroativamente a 06/11/2007? Claro que ele só é dono de 2011 em diante, pois o registro tem eficácia constitutiva. Ele não tem eficácia declaratória, ele não retroage. Você é dono a partir do registro.

Então, antes dele registrar o alienante continuou sendo o dono. Prestem atenção no que diz o §1o do art. 1245, CC: “Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel”.

Isso é muito importante não somente para demonstrar que o registro tem eficácia constitutiva, mas gera uma série de questões.

Se Nelson continua sendo proprietário nesse período antes dele registrar, quem paga condomínio e IPTU desse imóvel enquanto ele não registra? Nelson. O que é condomínio e IPTU enquanto ele não registra? Como eu chamo essa situação?

Todo mundo tem que se lembrar disso. No momento em que Washington registra o imóvel em 2011, a partir desse dia ele terá que pagar condomínio e IPTU pois são as chamadas obrigações propter rem.

O que são obrigações propter rem? Obrigações propter rem também são chamadas de obrigações mistas. As obrigações propter rem são obrigações que uma pessoa assume pelo fato de ser titular de um direito real. São obrigações que você tem que enfrentar porque você adquiriu essa unidade imobiliária.

Por que se chama obrigação mista? Porque as obrigações propter rem estão no meio do caminho entre os direito obrigacionais e os direito reais. Não são direitos reais propriamente nem são direitos obrigacionais.

São obrigações, pois pagar condomínio e pagar IPTU são obrigações de pagar quantia certa e se aproximam dos direitos reais porque são obrigações que não nascem da autonomia da vontade, não nascem de um contrato. São obrigações que nascem da titularidade de um direito real.

É por isso que o outro nome das obrigações propter rem são obrigações ambulatórias, pois são obrigações que seguem a coisa. Na medida em que muda o titular, muda também a titularidade da obrigação propter rem.

As obrigações propter rem sempre aderem à pessoa do novo proprietário. Então, a partir de 2011, que foi quando o Washington registrou, as obrigações propter rem são dele. Acontece que Nelson deixou dívidas de condomínio de 2008, 2009 e 2010. Washington também terá que pagar essas dívidas? Sim, pois são os ônus reais.

Qual é a diferença das obrigações propter rem para os ônus reais? As obrigações propter rem são aquelas que o proprietário assume da

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data em que se tornou titular em diante. Mas ele também assume as do proprietário anterior, que são os ônus reais.

Olha o que diz o art. 1345, CC: “O adquirente de unidade responde pelos débitos do alienante, em relação ao condomínio, inclusive multa e juros moratórios”.

Isso quer dizer que perante o condomínio, Washington deve responder. Agora, olha que interessante que vocês aprenderam em direito da obrigações. Washington passa a ser responsável por um débito alheio.

Se Washington paga esse condomínio ele tem direito de regresso contra Nelson? Claro que tem, pois o débito é de Nelson, mas o condomínio não quer saber de quem é o débito, ele vai em cima de quem é o proprietário, já que pela lei é ele que assume esses ônus reais.

Se alguém nessa sala resolve comprar uma fazenda e o proprietário anterior praticou danos ambientais, você que é o novo proprietário vai ter que indenizar os danos ambientais que ele causou? Vai. São os ônus reais que hoje informam o chamado passivo ambiental.

Tem até uma decisão recente nesse aspecto que é uma decisão do STJ dizendo que o entendimento consagrado do STJ é o de que ao adquirir área o novo proprietário assume o ônus de manter a preservação, tornando-se responsável pela reposição, mesmo que não tenha contribuído para o desmatamento.

É fundamental que o novo proprietário faça um estudo do passivo ambiental do objeto para se prevenir de eventos futuros.

Apesar do Washington só ter registrado esse imóvel em 2011, ele está morando lá desde 2007. Nesse período, quem arca com o condomínio do apartamento? Washington, pois hoje a jurisprudência entende que mesmo que o possuidor do imóvel não seja proprietário, mas ele seja um promitente comprador, já exista uma compra e venda ou uma promessa de compra e venda, mesmo que não tenha sido registrada, mas se a posse dele já é de conhecimento da comunidade, esse promitente comprador já assume as obrigações propter rem.

Mesmo efetivamente não tendo registrado. É o art. 1334, CC que consolidou isso.

Olha o que diz o art. 1334, I, CC: “I – a quota proporcional e o modo de pagamento das contribuições dos condôminos para atender às despesas ordinárias e extraordinárias do condomínio”. E o §2o do mesmo artigo diz: “São equiparados aos proprietários, para os fins deste artigo, salvo disposição em contrário, os promitentes compradores e os cessionários de direitos relativos às unidades autônomas”.

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Mesmo que efetivamente você não tenha registro, se a sua posse é de ciência dos demais condôminos, você já assume as obrigações propter rem.

É uma questão de função social. Não é você que está dando função social? Então é você quem deverá arcar com as obrigações propter rem.

Só para lembrar vocês: em termos de IPTU, pelo art. 35 do CTN quem é o responsável pelo pagamento do IPTU não é só o proprietário. Também quem tema posse do imóvel se responsabiliza pelo IPTU. As obrigações propter rem se ampliam. Isso é o principal quanto ao registro hoje no direito brasileiro. Tem umas alterações recentes em lei e eu fico com medo que vocês não tenham.

Existe uma coisa muito comum que é a retificação de registro. O cancelamento do registro que vocês estudaram comigo é apenas uma espécie do gênero retificação. Nem toda retificação vai dar em cancelamento.

Houve uma mudança significativa da lei de registros públicos com o advento da lei 10.931/2004. Essa lei alterou profundamente os artigos 213 e 214 da lei 6015/73.

Só para vocês terem uma idéia muito simples: quem pode retificar registro são três pessoas: o oficial do registro, o juiz corregedor ou o juiz dentro do juízo ordinário.

Exemplo: Rafaela, você chega no registro público imobiliário e diz para o oficial que quer mudar o nome do prédio pois fizeram uma convenção resolveram mudar o nome do prédio. Quem muda o nome do prédio é o oficial. Basta fazer uma retificação unilateral. Quem muda é o próprio oficial. Não precisa de juiz.

Outro exemplo: Rafaela chega para o oficial que seu terreno tem 100 m2 pelo que está descrito na escritura, mas ela quer que se faça uma medida, pois o terreno tem 150m2. O que o oficial irá fazer? Ele irá convocar o vizinho para ver se não tem nada de errado. Se o vizinho não se manifestar ou se o vizinho concordar, quem faz essa retificação é o oficial, é uma retificação bilateral.

É bilateral, pois foram ouvidos os vizinhos e eles não se opuseram. Mas se os vizinhos não concordarem, vai para o juiz corregedor essa discussão.

Toda vez que tem impugnação, art. 213, §6o, lei 6015/73, vai para o juiz corregedor. Quando o juiz corregedor perceber que quando a pessoa quer aumentar o terreno de 100 para 150 metros, ela não está querendo apenas retificar, ela está querendo reivindicar uma área, demarcar uma área, ela está querendo a usucapião. Então, sai da retificação e vai para a justiça comum.

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Toda vez que ficar provado que a discussão não é de retificação, mas sim sobre direito de propriedade, vai para a justiça comum.

É o art. 213 §6o que diz o seguinte: “Havendo impugnação e se as partes não tiverem formalizado transação amigável para solucioná-la, o oficial remeterá o processo ao juiz competente, que decidirá de plano ou após instrução sumária, salvo se a controvérsia versar sobre direito de propriedade de alguma das partes, hipótese em que remeterá o interessado para as vias ordinárias”.

O juiz competente é o juiz corregedor permanente.

Vamos para outro modo de aquisição da propriedade que é a acessão. É claro que tem dois tipos de acessão. Uma que não cai em concurso e a outra que cai. A que não cai em concurso é a acessão natural. Pode cair em prova de múltipla escolha.

E a que cai em concurso e que é plausível de discussões é a acessão artificial.

O que é acessão natural? É o aluvião, avulsão, álveo abandonado, formação de ilhas. Eu não vou estudar isso com vocês. Peço que em casa vocês leiam para em uma prova de múltipla escolha vocês tenham noção para saber a definição de cada um.

O que é importante é a acessão artificial, que foi sensivelmente modificada no NCC.

Todos os exemplos partem dessa premissa: Nelson tem esse terreno. Se é feita uma construção nesse terreno, como se chama essa construção? Acessão.

Acessão artificial é tudo que se incorpora permanentemente ao solo pelo trabalho humano. Se o terreno é meu, a presunção é de que essa construção foi feita por quem? Pelo dono do terreno, por mim. Temos aquela regra milenar do direito romano de que o acessório segue o principal.

Se o terreno é meu, a casa é minha e presume-se que foi feita com o meu dinheiro. Art. 1253, CC: “Toda construção ou plantação existente em um terreno presume-se feita pelo proprietário e à sua custa, até que se prove o contrário”.

Essa regra de que o acessório segue o principal é o princípio da gravitação jurídica que está no art. 233, CC. O que é gravitação jurídica? O acessório gravita em torno do principal. Então, se o terreno é meu, tudo o que gravita, que se incorpora a ele, é meu.

Primeiro problema que eu trago para vocês. Flávio, você é do MST, é um sem-terra. Você encontra o terreno do Nelson vazio e decide ficar

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nele. O Flávio entra no terreno e constrói uma casinha modesta. Fica lá por 4 meses.

Depois de 4 meses, Nelson aparece, ajuíza uma ação reivindicatória para te tirar do imóvel. O Flávio tem direito de ser indenizado pela construção que fez? Não, pois o art. 1255, CC diz que você é um possuidor de má-fé.

Olha o que diz o art. 1255, CC: “Aquele que semeia, planta ou edifica em terreno alheio perde, em proveito do proprietário, as sementes, plantas e construções; se procedeu de boa-fé, terá direito a indenização”.

Qual é a sanção que o legislador dá ao possuidor de má-fé? Perde a construção e não terá direito a indenização em razão da má-fé. Ele é possuidor de má-fé porque ele tem a legítima noção de que o terreno não lhe possui.

O Nelson pode pedir indenização pelos prejuízos causados pela ocupação de Flávio? Pode desde que Nelson prove as perdas e danos, poderá exigir indenização pelos danos causados no imóvel.

Muda alguma coisa se o Flávio construiu no meu terreno, pois ele tinha uma escritura que dava a ele a falsa convicção de que era dono da coisa. Ele foi lá e construiu pensando que o terreno era dele. Vamos mudar um pouco o exemplo. Tinha um formal de partilha que você recebeu que te dava noção de que você era dono e construiu lá.

Aí, Nelson aparece e diz que esse formal de partilha é nulo e que ele é o dono. Quando eu entro com ação reivindicatória e o tiro do imóvel, ele será indenizado pela acessão que ele fez? Sim, pois ele é um possuidor de boa-fé (art. 1255, in fine, CC).

Ele terá direito à indenização pelo valor que ele gastou com a casa ou pelo valor atual da construção? Pelo valor atual. O código silencia, mas escrevam ao lada que é pelo valor atual para evitar o enriquecimento sem causa.

Enquanto Nelson não indeniza Flávio, este tem direito de retenção? Ele pode morar lá? Não tem nenhum artigo proibindo, mas a jurisprudência remansosa do STJ é no sentido de que quem faz benfeitoria de boa-fé tem direito de retenção, quanto mais quem fez acessão de boa-fé.

Nesse mesmo sentido está o enunciado 81 do CJF que concede direito de retenção em favor de Flávio que fez acessão de boa-fé enquanto não for indenizado.

Só que Flávio, possuidor de boa-fé, não construiu uma casa, mas sim uma escola privada que tem 1000 alunos nesse terreno. Isso muda alguma coisa? Muda, pois aí entra a função social da propriedade que acarreta a chamada acessão inversa.

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Acessão inversa é o novo modelo jurídico do CC derivado da função social da propriedade.

O que significa acessão inversa? Significa que diante da importância da acessão, diante do fato da acessão ter um vulto econômico e social superior ao valor do terreno, o acessório vira o principal e o principal vira o acessório. A construção passa a ser o principal e o terreno passa a ser o acessório.

Ou seja, Flávio você vai ficar com tudo e vai indenizar Nelson pelo valor do terreno. É o parágrafo único do art. 1255: “Se a construção ou plantação exceder consideravelmente o valor do terreno, aquele que, de boa-fé, plantou ou edificou, adquirirá a propriedade do solo, mediante pagamento da indenização fixada judicialmente, se não houver acordo”.

Essa situação de acessão inversa é uma homenagem a quem deu função social para a propriedade.

Nesse caso, a ponderação que o CC fez foi correta e razoável, pois o direito fundamental da propriedade deve ser preservado em favor do proprietário que é diligente. Se eu sou proprietário de um terreno e deixo construírem nele, eu sou completamente omisso.

O que eu deveria ter feito imediatamente quando ele começou a construir? Uma nunciação de obra nova, uma demolitória.

Veja uma situação que aconteceu em uma novela. Na novela Rainha da Sucata a D. Armênia tinha um terreno em Santos. No primeiro capítulo da novela a Regina Duarte recebe da herança do marido um terreno em Santos. Nesse terreno ela constrói a fábrica chamada Rainha da Sucata. No meio da novela aparece D. Armênia dizendo que aquele terreno em Santos era dela. E que ela iria destruir a fábrica.

Se essa novela fosse reprisada, teria que ter o seu roteiro modificado, porque Regina Duarte construiu de boa-fé, pensava que o imóvel era dela e o valor da fábrica era significativamente superior do que o valor do solo.

Então, é por isso que a acessão inversa tem uma realidade social que impõe dinamismo e demonstra função social da propriedade no plano concreto.

Eu tenho mais 4 questões fundamentais sobre acessão. Flávio e Alessandra casam pois o pai dela tem um terreno no Recreio e deixou que eles construíssem a casa deles nos fundos desse terreno. Eles casaram em comunhão parcial de bens e, depois, construíram a casa.

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Dois anos depois do casamento, eles começam a brigar e Alessandra o coloca para fora de casa. Flávio tem direito a 50% do valor da construção da casa.

Olha o art. 1256, CC: “Se de ambas as partes houver má-fé, adquirirá o proprietário as sementes, plantas e construções, devendo ressarcir o valor das acessões”.

O que quer dizer má-fé de ambas as partes? Constrói de má-fé quem constrói sabendo que o terreno é de outra pessoa.

O pai da Alessandra também agiu de má-fé, pois, segundo o CC, proprietário de má-fé é aquele que sabe que estão construindo em seu terreno e nada faz.

Olha o § único do art. 1256: “Presume-se de má-fé o proprietário, quando o trabalho de construção ou lavoura, se fez em sua presença e sem impugnação sua”.

As questões principais de acessão entram agora. Aqui tem o terreno A e aqui tem o terreno B. Vamos supor que Washington é o proprietário do terreno B e ele constrói em seu terreno. Após a construção, Nelson aparece dizendo que a construção invadiu 5% do seu terreno.

Mas Washington não invadiu porque quis. Ele pensou que fosse dele pelo que constava na escritura. Nelson pode destruir os 5% da casa do Washington porque ocupou o terreno dele? Não. O NCC criou a mini desapropriação por interesse privado.

Olha o art. 1258, CC: “Se a construção, feita parcialmente em solo próprio, invade solo alheio em proporção não superior à vigésima parte deste, adquire o construtor de boa-fé a propriedade da parte do solo invadido, se o valor da construção exceder o dessa parte, e responde por indenização que represente, também, o valor da área perdida e a desvalorização da área remanescente”.

Isso é uma mini desapropriação por interesse privado pois Nelson está sofrendo uma pequena expropriação no seu imóvel. É a primeira vez que o ordenamento jurídico permite que uma desapropriação seja feita não para satisfazer interesse público ou de ordem social, mas para satisfazer o interesse econômico de um vizinho.

Ou seja, é uma mini desapropriação que visa atender interesse privado, na medida evidente da aplicação da função social da propriedade.

Washington vai indenizar Nelson pelo valor do terreno que ele perdeu, mais a desvalorização da área remanescente.

E se esse cara entrou no meu terreno sem estar de boa-fé? Quem gosta muito de ocupar parcialmente solo alheio de má-fé é construtora.

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Apesar de estar de má-fé, a construtora adquire os 5% do imóvel, pois na ponderação entre a função social e a má-fé, a função social ainda vai prevalecer.

Olha o § único do art. 1258, CC: “Pagando em décuplo as perdas e danos previstos neste artigo, o construtor de má-fé adquire a propriedade da parte do solo que invadiu, se em proporção à vigésima parte deste e o valor da construção exceder consideravelmente o dessa parte e não se puder demolir a porção invasora sem grave prejuízo para a construção”.

Por que houve a predileção pela proteção a quem está de má-fé? Para proteger terceiros de boa-fé. Anotem ao lado do § único do art. 1258, CC que essa norma não é para proteger qualquer possuidor de boa-fé. É só quando ficar provado que haverá lesão a terceiros adquirentes de boa-fé.

Tem enunciado 318 do CJF nesse sentido: “O direito à aquisição da propriedade em favor do construtor de má-fé somente será viável quando além dos requisitos do § único, houver necessidade de proteger terceiros de boa-fé”.

Essa é uma das razões pelas quais as pessoas que compraram apartamento da Encol e, por mais que a Encol não tivesse quitado as hipotecas perante o banco, eles como adquirentes de boa-fé, como já tinham pago todo preço do imóvel em vão, não tiveram que pagar o imóvel novamente.

A boa-fé deles e a confiança evitaram que a hipoteca pudesse ser imposta a eles. É exatamente a aplicação do princípio da boa-fé nessa situação.

Mesmo para proteger terceiros de boa-fé, quanto é que se vai ter que pagar para que haja a mini desapropriação por interesse privado? O décuplo, dez vezes mais do que se pagaria se aquela ocupação fosse feita de boa-fé. Por que eu estou dizendo que esse artigo 1258, § único só se aplica a construção? Porque tem uma palavra que tem no § único que não tem no caput que é “se a construção tiver valor consideravelmente superior”.

Na ocupação de boa-fé basta que essa construção tenha valor superior. Se a ocupação for feita de má-fé, não basta que ela tenha valor superior, ela terá que ter valor consideravelmente (só quando for prédio) superior. Se for uma casinha, raramente uma casinha terá valor consideravelmente superior.

Esse valor consideravelmente superior nem sempre é um valor econômico, pode ser um valor social. Às vezes não é um prédio, mas a pessoa construiu um hospital que pode não ter valor consideravelmente superior, mas tem função social.

Quem construiu o hospital terá que realizar o pagamento em décuplo, conforme o § único do art. 1258.

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Vamos voltar ao primeiro exemplo em que o Washington ocupou o meu terreno de boa-fé, mas neste caso, ele ocupou 50% do meu terreno de boa-fé. É possível que você fique com metade do meu imóvel? Sim, pois o CC não apenas criou a mini desapropriação por interesse privado, mas ele também criou a maxi desapropriação por interesse privado. Está no art. 1259, CC.

Quando você ocupa até 5% é a mini desapropriação, mas o CC também percebeu que muitas vezes pessoas ocupam terrenos alheios em áreas muito superiores a 5%.

Então, mesmo nessa ocupação de 50% é possível ter desapropriação. Mas a diferença é que a mini desapropriação tanto se aceita como ato de má-fé como de boa-fé. Já a maxi é só para quem é possuidor de boa-fé.

Ou seja, quem está de má-fé jamais poderá ter essa desapropriação favorável pelo CC. É só para quem está de boa-fé.

E tem uma segunda diferença que ressai da leitura do art. 1259, CC. Se for maxi desapropriação, o Washington terá que pagar para o Nelson o terreno que ele perdeu, a desvalorização do remanescente e o valor da construção que se realizou no meu imóvel.

Se a sua casa vale 800 mil e metade dela está no meu imóvel, você terá que me pagar 400 mil mais o valor da metade do terreno que eu perdi e mais a desvalorização do remanescente. São 3 valores distintos que se deve pagar na maxi desapropriação do direito privado, além de ter que ter boa-fé.

Qual é o limite mínimo de um imóvel urbano? 125 m2. Está na lei de loteamentos, lei 6766. Se ele me tomou 100m2, o cara não me deixou nada. Se vocês fossem meus advogados, o que vocês me aconselhariam fazer?

Qual é o nome do instituto que se dá quando o Estado te desapropria e você fica só com um resto de terreno que não vale nada? Direito de extensão. Você diz que quer a desapropriação do todo.

A pessoa fica com tudo e me indeniza cabalmente. Pois para eu ficar com nada, é melhor receber indenização pela totalidade do terreno e comprar outro do que ficar com um resquício de terreno.

O CC não fala nada, mas ao lado do art. 1259, vocês coloquem a possibilidade de se pleitear direito de extensão toda vez que o seu imóvel fique tão reduzido que ele perca completamente a sua função social.

Se toda construção do Washington é feita no meu terreno, eu aplico a figura da maxi desapropriação do direito privado? Não. Eu aplico a acessão tradicional. Toda vez que a construção for feita totalmente no terreno alheio eu uso a solução normal.

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Se ele fez de boa-fé, ele perde a casa e será indenizado. Mas se ele não fez de boa-fé, e o imóvel dele tem valor consideravelmente superior, ocorrerá a acessão inversa.

Então, sempre saibam a diferença entre edificações que invadem parcialmente terreno alheio aplicam-se os arts. 1258 e 1259. Mas quando a acessão é feita completamente no terreno alheio, é o art. 1255, CC.

Se vocês constroem uma casa e ela é invadida pelo Flávio que faz um muro de arrimo para evitar que a casa caia. Esse muro de arrimo é acessão? Isso é benfeitoria necessária.

Qual é a diferença entre acessão e benfeitoria necessária? Sempre lembrem, benfeitoria é uma obra ou despesa que se incorpora a uma coisa já existente. A base da benfeitoria é que ela é sempre uma coisa acessória.

A benfeitoria sempre se realiza para uma de 3 funções: conservar, melhorar ou embelezar uma coisa já existente. Se ela é feita para conservar, ela é necessária; se ela é feita para melhorar, ela é útil; se ela é feita para embelezar, ela é voluptuária.

A benfeitoria é feita sempre em função de algo já existente. Esse muro de arrimo é feito com a finalidade de conservar a casa que já existe. Mas, se nessa casa que você invadiu você constrói uma garagem, uma garagem é acessório ou é benfeitoria? É uma benfeitoria útil, pois é uma obra feita para melhorar a casa.

Se o invasor coloca piso de granito na casa, é uma benfeitoria voluptuária, pois é feita para embelezar a coisa já existente.

Vocês têm que ter sempre em mente que a acessão inova porque ela dá uma destinação econômica para onde nada existia até então. A construção da casa em um terreno vazio que é o principal é ela que dá função social. Então, essa que é a diferença entre acessão e benfeitoria.

Quando vocês colocam piso de mármore ou um muro de arrimo na casa de vocês tem que averbar no registro de imóveis? Não.

Mas por que quando se constrói a casa deve-se averbar no RGI? Porque a casa é acessão e acessão é modo de aquisição da propriedade. Com isso, toda vez que eu tenho um terreno e construo uma casa, tenho que averbar a construção dessa casa.

Tenho 3 palavras mágicas: matrícula, registro e averbação. Matrícula é a certidão de nascimento do imóvel, é a identidade física do imóvel. Quando é que muda a matrícula do imóvel? Se eu vendo o imóvel para alguém a matrícula muda? Não. A matrícula somente muda quando há desmembramento ou fusão que muda a identidade física do imóvel.

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Se o seu imóvel é ao lado é ao lado do meu e eu o compro, a sua matrícula irá mudar pois mudou a sua identidade. Muda a matrícula pois vou ter que fundir a sua matrícula com a do meu outro imóvel.

Quando se dá o registro? O ato de registrar sempre se dá quando vocês levam para o registro imobiliário qualquer situação em que haja constituição de direito real sobre imóvel.

Quando se usa a averbação? Quando se leva ao registro qualquer ato que não seja de aquisição de direito real. Ou seja, você constrói uma casa, você averba a construção.

Então, acessão é modo de aquisição da propriedade e benfeitoria é simplesmente acessório. Se vocês entram em terreno alheio e colocam uma vaca para arar a área e um trator para fazer a colheita das plantações. A vaca e o trator são acessórios ou benfeitorias? Nenhum dos dois. São pertenças.

Qual é a diferença entre pertença, acessório e benfeitoria? Acessão e benfeitoria se incorporam definitivamente à coisa. Já as pertenças são bens móveis que mantêm a sua autonomia. Ou seja, eles são utilizados na coisa, melhoram a coisa, mas mantêm a sua autonomia. Art. 93, CC.

As pertenças não são partes integrantes da coisa, ao contrário das benfeitorias que se incorporam.

Quando vocês vendem uma fazenda, no silêncio do contrato, as benfeitorias são incluídas ou excluídas? São incluídas porque o acessório segue o principal. No silêncio do contrato as pertenças são incluídas ou não? São excluídas. Tem que colocar a cláusula “porteira fechada” se quiser incluir as pertenças, visto que essas mantêm a sua autonomia.

Aquele abraço e muitas felicidades para vocês. Amanhã veremos usucapião.

Rio, 07.11.2007

Hoje vamos discutir sobre usucapião. Lembrem da aula de ontem, não é isso? Rua! Registro usucapião e a acessão são os modos de aquisição de propriedade e ficou faltando o usucapião, o último, termino com ele agora. Vou dar o conceito. Coisa que eu gosto muito de fazer é ditar conceito, vamos lá.

Usucapião. Modo de aquisição da propriedade e de outros direitos reais pela posse prolongada da coisa, observando os requisitos legais.

Amigos, esse conceito que eu dei é muito importante por dois aspectos. Primeiro: enganam-se os que pensam que usucapião é, apenas, modo de aquisição de propriedade. Não é. A usucapião é modo de aquisição de outros direitos reais.

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Vocês sabiam que vocês, por usucapião, podem adquirir uma servidão? Por usucapião poderiam adquirir um usufruto? Podem, mas na aula de hoje eu resumo, simplesmente, como a usucapião como modo de aquisição da propriedade.

Mas, saibam que usucapião é passível de aquisição de outros direitos reais. Essa é a primeira observação.

A segunda observação que deflui desse conceito é a mais interessante. Aqui tem a posse e aqui tem a propriedade.

O que é posse? É o poder de fato de qualquer coisa. O que é propriedade? É o poder de direito de qualquer coisa. Posse é o poder de fato. Propriedade é o poder de direito.

Digam sem pestanejar, já. Qual é o único viaduto que vocês conhecem que faz a ponte entre a posse e a propriedade? Usucapião.

Gente, usucapião é o viaduto que faz a travessia entre a posse e a propriedade. Por quê? Porque a usucapião pega uma situação eminentemente fática que é a posse e converte ela, no passar do tempo, em direito de propriedade. Essa é a mágica da usucapião.

Agora, por que a aula da usucapião é longa? Porque esse viaduto, essa ponte Rio Niterói, que separa essa posse dessa propriedade está cheia de pedágio. Existem muitos pedágios nesta ponte chamado usucapião.

Por que pedágio? Porque existem vários requisitos de acesso ao outro lado da ponte. E, só quem passar pelos vários pedágios alcança o seu destino. É essa a lógica da usucapião.

A usucapião é modo originário ou modo derivado para aquisição da propriedade? É originário. Ah, originário, isso. 99% da doutrina da jurisprudência realmente entendem que a usucapião é modo originário. Eu também entendo. Só Caio Mário que traz uma posição diferenciada.

Por que todo mundo diz que usucapião é modo originário. Pelo seguinte: por que, quando acontece modo originário de aquisição de propriedade, é quando não há qualquer relação jurídica entre o usucapiente e o antigo proprietário da coisa.

Toda vez que não há qualquer relação jurídica entre o novo proprietário, o que é o novo proprietário? O usucapiente e o antigo proprietário, eu falo de modos originários.

Modos originários de aquisição são todos aqueles em que não existe o fenômeno da transição. Ou seja, o antigo proprietário não transmite nada para o novo proprietário.

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E, de fato, é o que acontece na usucapião. Porque na usucapião, olha o que eu vou falar, o usucapiente não recebe a coisa do antigo proprietário. Ele recebe a coisa contra o antigo proprietário. A despeito do antigo proprietário, o novo proprietário exclui o antigo, não existe relação jurídica entre eles. É por isso que a usucapião é modo originário de aquisição de propriedade.

Quais, então, as duas conseqüências relevantes disso num concurso público? Primeira conseqüência eu vou perguntar para vocês. Quando vocês conseguem êxito numa sentença de usucapião, vocês ao registrarem a sentença de usucapião, têm que pagar ITBI? Não. Por que não tem que pagar ITBI? Porque ITBI é imposto de transmissão de bens imóveis.

Como a usucapião é modo originário, não existe modo transmissão nenhuma, porque o antigo proprietário não transmitiu nada para o novo proprietário. Então, não tem que pagar o fato gerador do ITBI. Modo de aquisição originário. Então, isso é que é importante.

Segunda conseqüência prática. O que vocês acham disso? Washington olha aqui. Você é proprietário de um terreno, certo? E você deu esse terreno em hipoteca para mim, Nelson, em razão de uma dívida. Você tem dívida comigo, você tem hipoteca.

Sabe o que aconteceu com esse terreno que está hipotecado? O Washington e Nelson, não fiscalizaram esse terreno. E o que acontece? O nosso amigo Flávio Gomes entra no terreno, ele é um sem-terra, e você fica aqui, vamos supor 6 anos, Flávio. E você consegue a usucapião.

A pergunta do concurso era: quando Flávio Gomes consegue usucapião desse terreno aqui, a hipoteca que existia contra Washington ela existe contra o usucapiente? Ela subsiste? Não. Claro que não. Por que claro que ela não subsiste? Porque usucapião é modo originário.

E sabe qual é a vantagem de usucapião ser modo originário? Olha que bacana. É que, quando o usucapiente se torna dono, ele recebe a propriedade líquida, imaculada, isenta de visto. Ele recebe a propriedade, como se a propriedade não tivesse restrição anterior. Então, a grande vantagem da usucapião como modo originário é exatamente essa possibilidade do usucapiente não ter que arcar com os ônus reais que haviam contra o antigo proprietário, por ser modo originário.

Agora, ontem vocês estudaram comigo registro. Registro é modo originário ou derivado? É claro que é derivado.

E se registro é modo derivado, eu pergunto: Washington, o seu imóvel está hipotecado. Você vende aqui para o Flávio Gomes. A minha pergunta é a seguinte: você vende para o Flávio Gomes. A hipoteca que existia contra você ainda incidirá para o Flávio? Claro que incidirá, porque se registro é modo derivado, toda aquisição feita através do registro mobiliário transfere

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para o novo proprietário todos os encargos e restrições que haviam contra o antigo.

Então, essas são as discussões concretas em concurso público de saber a diferença entre usucapião como modo originário e os outros modos de aquisição de propriedade que seriam modos derivados. Esse é o primeiro ponto da aula.

Sempre tem aluno falando assim: Nelson, tudo bem que o usucapiente não tem que pagar ITBI, porque usucapião é o modo originário.

Agora, a pergunta que eu faço para vocês é: e quando vocês conseguem usucapião do imóvel, vocês têm que pagar, por exemplo, é um apartamento que vocês conseguem usucapir. Vocês têm que pagar o IPTU dele? Vocês têm que pagar ou não, porque é modo originário. Claro que tem que pagar.

Por quê? Porque é obrigação propter rem e tem que pagar os ônus reais. Por quê? Porque, mesmo sendo modo originário, os ônus reais anteriores que não foram pagos eles incidem sobre a coisa. É por isso que o usucapiente tem que pagar IPTU atrasado, Imposto Rural atrasado, só que nos últimos 5 anos, porque o resto foi comido pela prescrição do crédito tributário.

Então, sempre paga. Nunca confundam ITBI com aquelas tributações reais que são IPTU e aqueles outros. Aí é diferente.

Então, pessoal, agora com o fim desses esclarecimentos eu vou entrar na aula de usucapião propriamente dita, lhes dizendo que a usucapião tem requisitos, que são requisitos pessoais, requisitos reais e requisitos formais.

Usucapião tem requisitos reais, pessoais e formais. Vamos começar pelos pessoais. Olha aqui, por que tem muita gente boa que escreve na prova: usucapião é a mesma coisa que prescrição aquisitiva. E eu detesto essa aproximação.

Usucapião não tem nada a ver com prescrição aquisitiva. Por que não tem nada a ver? Eu não posso, por que prescrição é o quê? É o modo de extinção de pretensões. Não é isso? Usucapião não é modo de extinção de pretensões. É modo de aquisição de propriedades.

Sabe qual é a única semelhança entre prescrição e usucapião? A única semelhança entre elas é o artigo 1244 do Código Civil. Porque o 1244 me diz que todas as causas que impedem, suspendem ou interrompem a prescrição se aplicam à usucapião.

Então, gente, primeiro cuidado que vocês têm que ter em questão aberta que trate de usucapião. Todas aquelas causas que impedem, suspendem ou interrompem a prescrição, elas também impedem, suspendem

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ou interrompem a usucapião. É a única coisa em comum que existe entre prescrição e usucapião.

Então, querem ver um exemplo? Washington, vamos supor que você quer o usucapir o terreno, e o prazo de usucapião é de 10 anos. 10 anos, gente, é o prazo para que o Washington usucapir desse terreno aqui. 10 anos.

Aí o que acontece, pessoal? Ele consegue completar o prazo. Todo feliz, faceiro e fogoso, Washington ajuíza ação de usucapião. Quando é que ele ajuíza ação de usucapião? Quem é o réu principal? Existe litisconsórcio passivo necessário.

Mas, quem é o litisconsorte mesmo? O proprietário, não é? Então, ele vai lá e procura o proprietário. O que ele descobre? Que o proprietário era o seu Francisco. Só que, olha bem Washington, o proprietário, seu Francisco, morreu quando você tinha 8 anos de posse.

E, aí, pergunta-se: e, depois, nos meus dois anos quem ficou? Foram os 4 filhos dele. Ou seja: Huguinho, Zezinho, Luizinho e Pedro. Só que Pedro tem 14 anos de idade. E todos esses herdeiros são maiores. Os três são maiores, e Pedro tem 14 anos de idade.

Pergunta: ele conseguiu ficar aqui? Não. Sabe por que ele não conseguiu ficar aqui? Porque quando deu oito anos um dos herdeiros não era absolutamente incapaz? Cobre a prescrição quando é absolutamente incapaz, contra o menor de 16 anos? Não.

Então se não ocorre a prescrição quando não é absolutamente incapaz, o que não ocorre também? A usucapião. A usucapião pelo art. 1244 não ocorre também.

Então, esse prazo aqui ficou interrompido ou suspenso? Suspenso. Porque sempre sai com as diferenças entre as causas interruptivas e as causas suspensivas.

Todas as causas suspensivas da prescrição e, por conseguinte, da usucapião, são causas subjetivas, são causas personalíssimas. Marido contra mulher, pai contra filho, contra absolutamente incapaz. Então, isso aqui é causa suspensiva. Então parou o tempo.

Só que tem bons alunos concentrados lá atrás que falam: Nelson, mas espere aí, só não usucapiu contra ele. Mas, o usucapiu o resto do terreno. Por quê? Porque os outros são maiores. O usucapiu o resto do terreno? Não. Por que esta causa suspensiva vai se comunicar aos outros? Olha isso é pergunta de tudo quanto é concurso.

Por que isso aqui não é um inventário que está aberto? O inventário é um bem divisível ou indivisível? Indivisível. Então essa cláusula se comunica aqui. Ou seja, sabe o que eu quero dizer Washington? Que o seu

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prazo de oito anos só volta a correr no momento em que esse menino completar 16 anos.

Só quando ele completar 16 anos que volta a correr. Volta a correr de onde? Parou. Por quê? A prescrição não corre contra o absolutamente incapaz. Quando ele tiver 16 anos volta a correr. Esse exemplo foi apenas para vocês botarem na cabeça.

Todo examinador adora colocar uma situação aqui no meio. Tem um caso suspensivo ou interruptivo da usucapião que vocês têm que analisar exatamente, porque isso é muito importante na hora da constatação do prazo.

Então são requisitos pessoais. Por que são requisitos pessoais? Porque não há usucapião de marido contra mulher, não há usucapião de pai contra filho, não há usucapião contra o absolutamente incapaz.

Então, sempre fiquem atentos a essas causas suspensivas ou impeditivas ao curso da prescrição. Bacana, gente? Sempre fiquem ligados com isso.

Agora que eu falei disso aqui, nós vamos entrar na parte dos requisitos reais da usucapião. Requisitos reais é uma parte importante da aula.

O que eu vou perguntar a vocês é qual o tipo de imóvel é passível de usucapião? Qual o bem móvel pode ser usucapido? Qual não pode? Então, vamos começar do fácil.

Há possibilidade de usucapião de bem público? Não. Para vocês não. Ou seja, numa prova múltipla escolha os bens públicos são inusucapíveis, tanto pelo art. 183 como pelo art. 191 da Constituição Federal que impedem a usucapião de bens públicos

E quando eles impedem usucapião de bens públicos, é de qualquer bem público. Quais sejam: bens de uso comum do povo, bens de uso especial e bem dominical.

Os dominicais são chamados também de que? Patrimoniais. Dominicais ou patrimoniais. Ou seja, não tem usucapião bem de uso comum do povo, não tem usucapião de bem de uso especial e não tem usucapião de bem dominical.

Só para relembrar os bens de uso comum do povo são aqueles afetados em favor da coletividade, como rua, praia e praça. Os bens de uso especiais são aqueles que são afetados em favor de uma atividade da administração como, por exemplo, o prédio do fórum.

E os bens dominicais, são afetados? Não, porque eles são utilizados para uma atividade patrimonial do poder público, mas, mesmo assim, eles são inusucapíveis porque os artigos 183 e 191 assim o querem.

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Agora, não é só a Constituição que diz que o bem público é inusucapível, o artigo 102 do Código Civil, na mesma linha reitera e diz que bem público não é passível de usucapião, art. 102 do CC.

Só que vocês são meus alunos, e não vão me decepcionar, eu pergunto o seguinte: O que é que você acha da seguinte situação? Tem um imóvel que pertence ao Estado do Rio de Janeiro que está largado, abandonado, e vem um particular, entra lá dentro e fica por 10 anos nesse bem, que é o bem público mas está abandonado.

O particular deveria usucapir? Deveria. Sabe por que deveria? Porque este bem é formalmente público, mas ele não é materialmente público. Essa distinção é importante e é o que o examinador quer ouvir isso em uma prova dessas. Qual a distinção ente um bem formalmente público e um materialmente público? O bem materialmente público é aquele que pertence a pessoa jurídica de direito público e recebe a função social.

Já o bem formalmente público pertence a pessoa jurídica, está registrado no nome do estado, mas não é dotado de função social, não recebe destinação relevante.

A minha posição e que é a mesma posição de Celso Bastos, que é a mesma posição de alguns outros autores que é a seguinte: claro que haverá usucapião se o bem for formalmente público porque ele não ostenta função social.

Mas Constituição não permite? Opa eu estou interpretando a constituição em um sentido integrativo. E em um sentido integrativo sabe o que eu penso? Que quando o artigo 183 e 191 proíbem a usucapião de bem público, é de bem materialmente público.

E sabe por que a Constituição só proíbe a do materialmente público? Porque Celso Antônio Bandeira de Melo fala o seguinte: “o bem particular tem função social, o bem público é função social.” Ou seja, se é exigida função social do bem particular, quanto mais do bem público.

Então o que eu quero que você bote na cabeça é que existe um mito, qual mito? O mito da imprescritibilidade do bem público. Tirem esses mitos da cabeça, tirem esses dogmas do raciocínio de vocês.

Agora, não venham me bater amanhã se cair em uma prova de múltipla escolha, pois nestas provas não cabem usucapião de nenhum imóvel público. Isso só serve para um prova aberta, pois o examinador quer ver se vocês conseguem sair do raciocínio puramente legislativo, tá bom?

Então, vamos para a segunda questão dos direitos reais. Alunos, a segunda questão dos direitos reais é a seguinte: Cabe usucapião de um bem que pertence a uma sociedade de economia mista ou uma empresa pública?

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Vou perguntar, em tese cabe? Claro que em tese cabe, porque uma sociedade de economia mista e empresa pública são pessoas jurídicas de direito privado e se elas são pessoas jurídicas de direito privado e paraestatais e o que diz o artigo 98 do CC? O art. 98 do CC diz que bens públicos são aqueles que pertencem a pessoa jurídica de direito público.

Então os bens dessas empresas são particulares e, naturalmente, são bens usucapíveis. Só que lá vou eu de novo e agora com apoio do STF. O STF diz que esse critério puramente formal do CC não compensa, porque que não compensa?

Porque imagine vocês a Petrobras, é pessoa jurídica de direito privado, não é? É sociedade de economia mista, não é? Mas alguém admite a possibilidade de usucapião de uma refinaria? Não, ninguém admite. E por que ninguém admite? Porque, apesar deste bem pertencer a uma pessoa jurídica de direito privado, esse bem recebe uma destinação pública, está afetado a uma finalidade pública e, uma vez que tem finalidade pública, ele se torna inusucapível.

Eu quero abrir novamente a noção que vocês têm, e qual que é a noção? A questão do bem se ele é público ou é privado não é pela origem, é pela sua finalidade, pelo seu destino, pela sua efetividade.

Nós vivemos em uma época hoje no Brasil em que não interessa mais o rótulo e o que interessa é a destinação, é a finalidade. Se o bem pertence a uma sociedade de economia mista ou uma empresa pública, mas ele recebe uma finalidade pública esse bem se torna inusucapível, posição do STF.

Agora, digo mais, terceira pergunta que eu faço: Gabriel você entrou nesse terreno aqui e ficou 10 anos e você quer o usucapião deste terreno onde você morou 10 anos e você ajuíza a ação contra o proprietário, só que você descobre que esse terreno não está registrado no nome de ninguém, você acha que isso é raro?

A coisa do terreno sem dono no Brasil é algo comum, acontece toda hora, nosso sistema é muito desorganizado. Pergunta: Cabe o usucapião de imóvel que não esta no nome de ninguém? Então, eu vou dizer as duas posições: tem a posição dos administrativistas e eles entendem que quando o Brasil foi descoberto as terras se tornaram públicas e no que elas se tornaram públicas e ninguém registrou ate hoje continua sendo bem público, portanto, é inusucapível.

Só que como todos os administrativistas são uns derrotados é obvio que a posição deles caiu porque o STJ adora os civilistas. E o que os civilistas mostraram para o STJ e há cinco o STJ acolhe? Que o terreno que não este em nome de ninguém não é bem publico não, é res nullius, é coisa de ninguém.

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E já caiu no MPF, são chamadas terras adéspotas. Terras adéspotas, terras sem dono. E se é adéspota, que é sem dono, não é bem público, é bem privado, e se é bem privado e passível de usucapião.

Agora, o STJ é bem claro e criterioso, sabe o que ele diz: que nada impede, todavia, que o poder público venha em defesa, na contestação, e com base na lei 6383/76, consiga o poder público na contestação demonstrar que este imóvel já sofreu ação discriminatória.

O que é uma ação discriminatória? É uma ação ajuizada pelo poder público para discriminar aquilo que é público do que é privado, ou seja, vou repetir, Gabriel, nada impede que a União, o estado ou o município chegue na contestação e diga seu juiz, alto lá, antes do Gabriel completar 10 anos nós ajuizamos uma ação discriminatória.

E a finalidade desta ação discriminatória é mostrar que aquele imóvel pertence ao poder público. Mas se essa ação não for ajuizada, prevalece a tese de que aquele bem era um bem privado e, portanto, usucapível. Então para perceber que vocês entenderam: essa presunção de que o imóvel é res nullius é uma presunção absoluta ou relativa? É relativa.

Pergunta de aluno: inaudível. Resposta do professor: Não é que ela neste caso se manifestaria, ela pode, mas ela deve ser chamada. Por mais que o imóvel seja sem dono é litisconsórcio necessário. Então vai chegar a União vai ver que esse cara está querendo este imóvel, esse imóvel é sem dono, mas o que eles vão dizer? Mas nós ajuizamos uma ação discriminatória, então necessariamente as Fazendas sempre vão saber dessa demanda? Em qualquer processo, vão tentar uma saída para isso.

Agora, gente, continuando na questão dos requisitos reais. Bem de família é usucapível? Em primeiro lugar, há dois tipos de bens de família. Então, o que acontece, existem dois tipos de bens de família: o bem de família voluntário e o bem de família legal.

O bem de família voluntário é aquele que está no artigo 1711 do CC que é instituído pela própria entidade familiar. O bem de família legal que é a impenhorabilidade do imóvel residencial da lei 8009/90. Impenhorabilidade do imóvel residencial significa o quê? Bem de família legal.

Eu pergunto: Cabe a usucapião sobre o bem de família? É obvio que cabe, tanto na modalidade voluntária quanto na modalidade legal. Sabe por quê?

Gabriel, se você entrou nesse bem de família aqui, ficou 10 anos morando lá, tranqüilo, em paz e ninguém te incomodou. É por quê? É porque aquele só era formalmente um bem de família, mas não era materialmente um bem de família. Ele tinha cara de um bem de família, mas não tinha destinação, legitimação e merecimento de bem de família.

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É por isso que um bem de família é perfeitamente usucapível. Só se torna bem de família se receber a destinação adequada a sua origem. Então, é claro que tem usucapião.

Mais uma última: Olha, vou fazer uma pergunta para quem não pegou. É a ultima dos requisitos reais. Washington, eu doei este imóvel para você, esse terreno, você é meu amigo, doei um terreno em Itaboraí para você.

Só que o Washington é um calhorda e não quis receber esse presente com carinho e você se tornou dono, mas nunca foi lá, beleza? Só que eu sou um cara esperto e doei o bem para ele com uma clausula de inalienabilidade. Você nunca vai lá, mas também nunca poderá vender, nem nunca vai poder doar. Então, eu te doei com clausula de inalienabilidade.

Como o Washington nunca foi lá, o que aconteceu? O Flávio Gomes começou a possuir o terreno vazio e ficou lá 10 anos. Flavio é possível usucapir um terreno com cláusula de inalienabilidade? É? Por quê? Se a cláusula de inalienabilidade não pode nem doar e nem vender. Por que pode usucapir?

Lá no início da aula, porque o usucapião é modo originário de aquisição de propriedade. Como o usucapião é modo originário, quando o usucapiente se torna dono, todas as restrições que existiam contra o antigo proprietário não incidem mais contra o usucapiente, ou seja, a usucapião faz com o usucapiente receba a coisa límpida.

O que a cláusula de inalienabilidade impede, o que a cláusula de inalienabilidade impede são os modos derivados de aquisição, jamais os modos originários de aquisição.

Vamos trabalhar com os requisitos formais do usucapião. Eu quero ouvir de vocês um número de zero a dez, vamos fazer um bingo aqui. Quantas modalidades de usucapião temos no Brasil, de zero a dez? Nós temos sete, são sete modalidades e trabalharemos as sete com vocês. Sabe o que vocês vão ver hoje?

Vocês vão ver que eu tenho duas usucapiões extraordinárias, duas ordinárias, uma urbana, uma rural e uma coletiva. Totalizando sete modalidades de usucapião. Agora, eu atravessarei os requisitos formais delas. Começando pela usucapião extraordinária.

Pessoal quem estiver copiando vai para o artigo 1238 do CC ele versa sobre a usucapião extraordinária. Não vou ficar lendo artigo não, vou fazer logo um bate-bola com vocês sobre quais são os requisitos para fazer usucapião.

O primeiro requisito está estampado na leitura do 1238 é esse aqui: É o PMP, posse mansa e pacífica. Rafaela, você pode botar numa prova que posse mansa e pacífica é a posse daquele possuidor que é amigo dos

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vizinhos, convida eles pro almoço, joga conversa fiada com o vizinho, você pode falar que isso é uma posse mansa e pacífica? É obvio que não.

Posse mansa e pacífica é aquela que não sofreu oposição judicial séria em toda sua trajetória. Reforçando: é aquela que não sofreu oposição judicial séria. Agora, vou explicar através de exemplos para vocês sempre lembrarem: O Washington ele queria usucapir um imóvel em 10 anos, dez anos é o prazo.

O Washington já estava lá há 8 anos, todo feliz e tranqüilo. Estava faltando dois anos e o que é que aparece? O malvado Flávio Gomes, que é o proprietário do terreno. O que você faz Flávio quando vê o Washington no terreno? Qual é a ação que o proprietário ajuíza contra o não proprietário mesmo?

Ajuíza uma ação reivindicatória. Agora olha como no Brasil é como vocês sabem, que a nossa justiça é lenta você Flávio só ganha essa demanda contra Washington quando ele já estava lá há 12 anos.

Com 12 anos vem uma sentença procedente e com trânsito julgado. Ai nessa hora o Flávio falou: eu tenho a sentença julgada e sai do meu terreno. Ai o Washington responde: ganhou, mas não levou, porque eu já tenho 12 anos, já tenho mais que o prazo necessário para a usucapião.

Você leve Washington? Não. Por quê? Porque esse momento da sentença vai retroagir para gerar a interrupção do prazo de usucapião a contar de quando? Do ajuizamento da demanda pelo art. 219, parágrafo primeiro do CPC.

Vou repetir para quem não ficou atento: por mais que a sentença tenha sido proferida quando o prazo da usucapião já foi ultrapassado, essa sentença terá o efeito de interromper a prescrição retroativamente ao momento do ajuizamento da demanda. E qual é o momento do ajuizamento da demanda em uma comarca como o Rio de Janeiro? A distribuição do feito, ou seja, pessoal, ajuizamento da demanda, distribuição, protocolou. Art. 219, parágrafo primeiro do CPC.

O que isso quer dizer? Qual é o momento em que a posse perde a sua mansidão e a sua pacificidade? Quando há uma oposição judicial séria. E quando houve oposição judicial séria? Quando o devido processo legal foi ajuizado.

Nesse momento interrompeu-se o prazo de usucapião. É isso que vocês têm que saber.

Se vocês têm uma trajetória de possuir o bem e durante toda posse ninguém ajuizou contra vocês uma ação possessória ou uma ação reivindicatória, se não houve esse ajuizamento, essa demanda, ótimo. A posse de vocês manteve a mansidão e a pacificidade.

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Mas, se por acaso essa sentença foi julgada improcedente? Muda alguma coisa? Claro que muda, sabe por quê? Porque a oposição judicial não foi séria. Então, se a sentença foi improcedente, Washington conseguiu a usucapião porque essa ação foi ajuizada de maneira irresponsável, leviana e você consegue o usucapião.

Então moral da história, essa sentença só provoca esse efeito interruptivo retroativo se ao final a demanda for julgada procedente. Ai você pergunta assim: Nelson, mas uma notificação extrajudicial não interrompe o prazo de usucapião? Não, claro que não.

Gente, como é que vocês admitem que a usucapião pode ser paralisada por uma medida extrajudicial. Jamais. A usucapião tem uma função social da posse relevante de mais para ser paralisada por notificação extrajudicial, é só o devido processo legal com o contraditório e com ampla defesa que fazem com que a posse perca sua mansidão e sua pacificidade.

Muito bem pessoal, agora olha aqui: número 1 a posse tem que ser mansa e pacífica, e número 2, qual que é o segundo requisito para que se consiga uma usucapião extraordinária? PAD, posse com animus domini.

O que é animus domini? É o desejo do possuidor de ser dono da coisa. É a intenção do possuidor em ser proprietário, ou seja, o possuidor sabe que não é dono, até mesmo sabe quem é o proprietário, até conhece o proprietário, mas qual é o objetivo do possuidor com animus domini? Ele quer dar uma rasteira no proprietário, ele quer substituir o proprietário, ele tem a intenção de ser o novo dono, essa que é a posse com animus domini.

Eu tenho um terreno em Montes claros e aí gente como eu confio demais no Vitor, coloquei o Vitor como capataz no meu terreno. E eu durante 18 anos paguei um salário mínimo para o Vitor para ele ser capataz da minha fazenda. Gente durante esses 18 anos eu nunca fui à fazenda. Deixei o Vitor lá feliz.

Pergunta: Depois de 18 anos o Vitor pode usucapir? Não. Por quê? O que falta à usucapião? Se vocês falarem que o que falta é animus domini na prova é ZERO! O que falta ao Vitor é uma coisa muito pior, é posse. Tomem cuidado. Muito antes de vocês pensarem em animus domini vocês têm que pensar que é carecedor de ação um cara que nem ao menos tenha posse.

Ou seja, é posse com animus domini. Então, primeiro tem que saber se o cara tem posse. O Vítor não tem posse, ele é mero detentor. Detentor não pode ajuizar ação de usucapião.

O Vítor é detentor porque ele não possui a coisa em nome próprio, ele a possui em nome alheio. Ele é um mero subordinado, um mero cumpridor de ordens. O art. 1198, CC traz a lume a hipótese de haver um detentor.

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Como o detentor é apenas um longa manus do possuidor, como ele é apenas um simples instrumento do possuidor, detentor não pode aju8izar ação de usucapião porque detentor não tem posse.

Vamos supor que eu tenho um outro terreno lá em Montes Claros e esse outro terreno eu arrendei para o Gabriel. O Gabriel é arrendatário do Nelson há 15 anos. Depois desses 15 anos ele vai usucapir o terreno? Não, pois falta para ele, nesse caso, animus domini.

Nesse exemplo o Gabriel tem posse. Se ele tem posse porque ele é arrendatário, por que ele não tem animus domini? Esse é um exemplo onde ele tem posse, mas ele tem apenas a posse direta.

Ou seja, todas as vezes que alguém entra no imóvel de vocês em virtude de uma relação jurídica contratual, seja como locatário, arrendatário ou usufrutuário, eu falo que esse cara que entrou tem posse direta. Ele está na coisa por um contrato que o investiu na posse.

Então, sempre lembrem, toda vez que há um possuidor direto, o possuidor direto não tem animus domini, pois todo dia que o arrendatário está no terreno, ele se lembra que enquanto ele exerce a posse direta, o proprietário nunca deixou de exercer a posse indireta do art. 1197, CC.

Então, como é que o cara pode ter animus domini se o tempo inteiro ele reconhece que só está na coisa em virtude de uma relação jurídica com o possuidor indireto?

Quem não tem animus domini? São as pessoas que estão na coisa investidas de uma relação jurídica contratual porque são possuidores diretos. Esses não têm animus domini.

Zé Rainha invadiu o terreno de vocês, tirou vocês de lá e ficou no terreno 10 anos sem ninguém incomodar. Zé Rainha vai usucapir? Vai, pois ele possui animus domini.

Animus domini não é a intenção do possuidor de ser o dono da coisa? Zé Rainha tinha alguma relação jurídica contratual com o proprietário? Não. Zé Rainha entrou na coisa para se tornar o dono. Mesmo ele tendo posse de má-fé e não tendo justo título ele irá usucapir, pois usucapião extraordinária não exige boa-fé e nem justo título. Então, se ele ficar lá durante 10 anos sem ninguém incomodar, houve posse mansa e pacífica? Houve. Ele tem posse com animus domini e posse mansa e pacífica, então ele pode tranqüilamente usucapir.

Vocês têm que ter muito cuidado com os requisitos da usucapião extraordinária.

Pergunta de aluno: inaudível. Resposta do prof.: Essa questão da interversão da posse é muito legal, mas eu só vou discutir com vocês daqui a duas semanas. Se eu entrar na interversão da posse, a gente se perde um

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pouquinho. Mas o que ele está perguntando é um locatário, um capataz nunca vai usucapir? Vão, mas em hipóteses especiais.

Filipe, se você entrou em um terreno largado, que não tinha ninguém, teve posse mansa e pacífica, teve posse com animus domini e a única coisa que você fez nesse tempo todo em que possuiu o terreno foi murar o terreno e um vez por semana ia lá para ver se estava tudo bem.

Você não morou lá, não realizou nenhuma atividade econômica, não teve nenhuma função social a sua posse, mesmo assim, ele vai usucapir? Vai, em 15 anos.

No CC/2002 eu tenho 2 usucapiões extraordinárias. Uma de 15 e outra de 10 anos. No art. 1238, CC o caput é de 15 anos e o § único é de 10 anos.

Quais são essas 2 modalidades de usucapião extraordinária? É o seguinte: quando vocês são possuidores, mas não ostentam qualquer função social, vocês não dão moradia, não edificam e vocês não plantam, vocês vão usucapir em 15 anos.

Mas se você, além de possuir, morar no imóvel ou der qualquer forma de função social, qual é o seu prêmio? O prazo cai para 10 anos. É a usucapião extraordinária com função social do § único do art. 1238.

Miguel Reale usa uma terminologia legal. Ele fala que isso aqui é a posse trabalho e a posse trabalho tem mais mérito do que a posse simples.

Art. 1238, caput é a posse simples e art. 1238, parágrafo único é a posse trabalho. Mas essa posse trabalho não passa de uma interessante expressão que resume a idéia da função social da posse.

Pergunta de aluno: inaudível. Resposta do prof.: Gente, olha que ótima pergunta: Nelson, quer dizer que o Felipe vai usucapir sem ter dado função social nenhuma? Numa ponderação de interesses o legislador ainda acha que é mais importante para o ordenamento jurídico prestigiar um possuidor mesmo que ele não tenha dado função social do que um proprietário desidioso.

Mas se esse possuidor ainda deu função social, essa ponderação tem que ser mais branda, no sentido de que ele deve demorar menos tempo para usucapir.

Então, essa é a idéia. A posse para ser posse em si, não requer uma função social, mas se ela é posse e ainda tem função social, melhor ainda. O ordenamento jurídico torna-a merecedora de uma redução de prazo. Isso sim é a aplicação da proporcionalidade no art. 1238, CC.

Vamos falar sobre usucapião ordinária. A usucapião ordinária tem residência no art. 1242 do CC. Quais são os requisitos que a usucapião

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ordinária exige e que não são exigidos para a extraordinária? Justo título e boa-fé.

Justo título e boa-fé sempre andam juntos.

Justo título é uma das questões mais difíceis do direito civil. Eu vou dar um exemplo para vocês que corresponde a toda e qualquer questão de justo título de concurso público.

Sempre que o examinador vai perguntar de justo título ele vai pensar nesse exemplo.

Washington, eu vendo para você uma fazenda. Você adquiriu a fazenda por escritura pública de compra e venda. Washington, você está morando nessa fazenda há 11 anos. Após 11 anos o Flávio Gomes aparece e diz que Nelson fez uma venda a non domino e que o bem pertencia a ele.

Flávio ajuíza ação reivindicatória para retirar Washington de lá. O que Washington pode alegar em defesa? Usucapião. Ele vai, pela súmula 237 do STF, alegar usucapião em defesa.

E por que ele vai alegar usucapião em defesa? Primeiro, durante 11 anos ele não teve posse mansa e pacífica? Teve. Ele teve uma posse sem sofrer qualquer oposição judicial séria.

Segundo, ele teve animus domini? Teve, tranquilamente que Washington teve a intenção de dono. Terceiro, ele teve justo título? Teve. O que é um justo título? Ele tem um justo título.

Justo título, pessoal, é um documento em tese apto a transferir a propriedade. Simples, não é? Mas o que eu quero dizer, e agora fica fácil para vocês visualizarem. Justo título, pessoal, é qualquer documento que dá ao adquirente, que dá a Washington a falsa suposição de que ele é o dono da coisa.

Ou seja, por que o justo título não é qualquer documento chulé (sem validade)? O justo título é um documento que extrinsecamente, externamente ele é perfeito. Qualquer um de vocês na sala de aula se olhar para um justo título, vão dizer eu vou comprar esse imóvel, porque é idôneo para transmitir propriedade. Ou seja, o justo título é um documento que em tese é perfeito para a aquisição de propriedade.

Então, qual é o problema dele? O problema é que apesar dele ter uma aparência perfeita, ele contém um vício que impede que essa propriedade seja verdadeiramente transmitida.

Em 99% dos casos em concurso público, qual é esse vício? É a aquisição a non domino. É ele ser proveniente de quem não é proprietário. Apesar do título de aparência de legítimo, na verdade, esse título não transferiu a propriedade porque ele é eivado de nulidade.

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Qual é a mágica da usucapião? O tempo nesse meu exemplo foi de 11 anos. O que o tempo fez? O tempo é como se fosse uma vacina que cura o título, é como se fosse uma fórmula milagrosa que elimina o defeito do justo título.

O tempo faz a mágica de converter o justo título em um título justo para transmitir propriedade. Então, aqueles vícios são sanados pelo longo prazo.

E foi isso que aconteceu com Washington. Ele ficou ali mais de 10 anos e conseguiu sanar o vício. Se Washington não era proprietário porque o título era a non domino, ele se tornou proprietário pela usucapião porque o justo título fea esse milagre.

Quem é que deve usucapir em prazo mais curto? O cara que tem usucapião extraordinária ou ordinária? Usucapião ordinária.

Quem tem mais merecimento? Aquele que estava na coisa com base no justo título ou sem? É claro que esse que possuía justo título tem mais merecimento.

É por isso que os prazos de usucapião ordinária são prazos de 10 e 5 anos. São prazos mais curtos do que o prazo de usucapião extraordinária.

Daniele se, por acaso, um cara pega um papel e escreve que está te transmitindo um terreno no Leblon. Esse papel é justo título? É óbvio que não. Justo título é um documento em tese idôneo a enganar pessoas de capacidade de entendimento razoável, ou seja, é um documento que externamente induz alguém a acreditar que está adquirindo propriedade.

Eu só posso falar que você tem um justo título na mão quando esse documento exerce idoneidade. Não é qualquer documento que pode ser chamado de justo título.

Pergunta de aluno: inaudível. Resposta do prof.: Esse é justo título, mas não é justo título para fins de usucapião. É justo título para fins de posse. A sua pergunta foi ótima porque quando eu for dar aula de posse, eu vou falar que o conceito de justo título para fins de usucapião é muito mais fechado do que o conceito de justo título para fins de posse.

Justo título para fins de usucapião não é qualquer título, é só o título idôneo para transmitir propriedade. Esse que você deu o exemplo é justo título apenas para a posse. Eu vou mostrar na aula de posse que ele tem alguns efeitos, mas não gera usucapião.

A questão mais importante do justo título é a seguinte: para que um juiz considere que você tenha justo título, esse justo título tem que ser registrado? Antes da vigência do CC/2002 50% dizia que tinha que ser registrado e 50% dizia que não.

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Os que diziam que só poderia ser considerado justo título o título registrado tinham o seguinte argumento: como é que uma pessoa pode ter a falsa convicção de que é dona da coisa se não levou o título ao registro?

Mas eu não concordava com essa idéia. Eu ficava com Pontes de Miranda que entendia que era óbvio que o cara que tem justo título não precisa registrá-lo para ele ser considerado justo título. Por uma simples razão: se alguém aqui na sala tem o justo título e chegou a registrá-lo, não precisa ajuizar usucapião porque você já é dono. Então, o cara que tem justo título e já registrou, ele é dono, ele não precisa ajuizar ação de usucapião contra ninguém. É por isso que prevalecia essa tese de que justo título não precisava ser registrado.

O NCC/2002 acabou com essa polêmica do justo título. Todo mundo abre o art. 1242, CC. Nós temos 2 usucapiões ordinárias. A do caput que é a usucapião ordinária simples e a do § único que é a de 5 anos que é chamada de usucapião tabular.

O art. 1242 fala que se você tem posse, animus domini, mas se você tem justo título e boa-fé o prazo cai para 10 anos.

O § único do art. 1242 está dividido em 3 partes. Art. 1242, § único: “Será de 5 anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente,....”. Essa é a primeira parte. Eu pergunto: se você tem um formal de partilha, e esse é o seu justo título, você irá usucapir em 10 anos ou em 5 anos? Em 10 anos, pois formal de partilha não é justo título oneroso. É gratuito.

Para cair para 5 anos tem que ser um justo título oneroso, como um contrato de compra e venda, uma promessa de compra e venda e por aí vai.

Agora, uma escritura de doação um formal de partilha deve-se contar 10 anos.

Vou continuar a ler o artigo. Art. 1242, § único: “... se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório...”.

Aí, vocês podem me perguntar: Nelson, esse usucapião xige que o usucapiente tenha registrado. Você não disse que o cara que registrou não precisa usucapir se ele já é dono?

Sublinhem a expressão “com base no registro cancelado posteriormente”. Washington, vamos supor que eu te vendi esse imóvel e você conseguiu registrar essa compra e venda no ofício imobiliário, tornando-se, assim, dono. Ele conseguiu registrar e estava com o imóvel registrado no nome dele há 6 anos.

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Após 6 anos aparece Flávio Gomes, ajuíza uma ação de invalidade do título c/c cancelamento do registro e ajuíza uma ação reivindicatória para te retirar do imóvel. O que ele alega em defesa? Usucapião, pois ele vai dizer em defesa que residiu no imóvel com registro por mais de 5 anos.

Esse usucapião do § único se chama usucapião tabular porque ´uma proteção maior para aquele possuidor que não só tinha justo título, mas que também registrou esse justo título e conseguiu ficar com esse justo título registrado pó, no mínimo, 5 anos antes dele ter sido cancelado. Aí ele pode alegar usucapião em defesa.

O cara que tem justo título, mas que nunca conseguiu registrar vai conseguir o usucapião em 10 anos. O cara que tem justo título, registrou e nunca foi cancelado o registro dele precisa pedir usucapião? Não.

O cara que tem justo título, registrou e após 5 anos foi cancelado o registro, pode alegar usucapião em defesa pela usucapião tabular. Alguns autores chamam isso de convalescença registral.

Por que convalescença registral? Porque aquele vício do título convalesce em 5 anos pelo fato daquele título ter sido registrado. Essa é a vantagem dessa redução.

Eu pedi para vocês dividirem o § único do art. 1242 em 3 etapas, pois não adianta tudo isso se Washington não tiver dado função social à posse. O § único do art. 1242 exige que você tenha dado moradia ou realizado investimentos produtivos nesse imóvel.

Quais são os 3 requisitos simultâneos: aquisição onerosa do justo título, que ele tenha sido cancelado, no mínimo depois de 5 anos do registro e que tenha dado função social à posse. Essa é a usucapião ordinária.

Só mais um detalhe: não basta ter justo título, tem que ter boa-fé. Possuidor de boa-fé é aquele que tem a falsa convicção de que é o dono da coisa. Eu só posso chamar de possuidor de boa-fé o cara que ostente justo título.

Só tem boa-fé a pessoa que fala que o terreno é dela porque tem justo título. A boa-fé é o elemento subjetivo, mas que é amparado pelo aspecto objetivo que é o justo título. O justo título é o elemento objetivo que presume o elemento subjetivo da boa-fé.

Inclusive, isso é a leitura do art. 1201, § único, CC que será analisado nas aulas de posse.

O justo título é o elemento objetivo que ampara o elemento subjetivo da posse de boa-fé. Isso acontece porque a boa-fé que eu estou trabalhando nos direitos reais é a boa-fé subjetiva. Não confundam essa boa-fé

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com a boa-fé objetiva dos direitos das obrigações. E eu só posso falar que o possuidor tem boa-fé se ele tiver justo título.

Qual é a diferença entre animus domini e boa-fé? Quem tem animus domini só tem a intenção de ser dono, mas sabe que não é dono. Mas quem tem boa-fé tem a falsa convicção de que é o dono da coisa.

Quantas modalidades de usucapião faltam? Faltam três.

Vamos falar de usucapião especial. A usucapião especial se distingue em usucapião especial urbana e em usucapião especial rural. Elas estão na CRFB/88. A usucapião urbana está no art. 183, CRFB/88 e a usucapião rural está no art. 191, CRFB/88.

Elas são modalidades de usucapião especial. São especiais pois são modalidades de usucapião que exigem uma intensa função social. A função social da posse aqui ainda é mais exigida do que nas modalidades tradicionais da usucapião. Não é por menos que a usucapião demanda apenas um prazo de 5 anos de posse em qualquer uma de suas modalidades.

O CC também trouxe para o seu corpo essas modalidades de usucapião. A urbana no art. 1240, CC e a rural no art. 1239, CC. Não houve mudança porque isso é matéria constitucional. Jamais o Código civil poderia alterar o sentido dessas usucapiões que estão na CRFB/88.

Vou fazer 14 perguntas de concursos para vocês sobre usucapião urbana.

Pedro, você está sem lugar para morar e encontrou no Grajaú um terreno vago. E você ficou nesse terreno de 200 m2 por três anos. Depois de 3 anos você teve que viajar para ver uma tia doente e pediu para o Flávio ficar tomando conta do imóvel enquanto você viaja.

Flávio ficou 2 anos no imóvel tomando conta. Pedro pode juntar o seu período de posse com a posse do Flávio para pedir a usucapião urbana já que o prazo dele é de 5 anos? Flávio é o detentor do terreno, está tomando conta. Com isso, não pode juntar o tempo para pedir a usucapião.

Não pode juntar o tempo porque o requisito básico da usucapião, seja ela urbana ou rural é a pessoalidade da posse, que quer dizer que na usucapião urbana e rural o possuidor tem que possuir pessoalmente. Ele não pode possuir através de outras pessoas.

Isso ocorre porque a índole da usucapião especial é justamente dar tratamento diferenciado a quem realizou uma ocupação pessoal sobre a coisa.

Qual é a única chance do Pedro conseguir usucapião? Se o Flávio ficar lá mais 12 anos, totalizando 15 anos e conseguindo a usucapião extraordinária.

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Na usucapião extraordinária e na ordinária, você não precisa possuir em pessoa. Se eu começo a possuir, eu posso colocar um arrendatário, alguém tomando conta, que eu é que vou usucapir depois de completado o prazo. Mas esse fenômeno é só na extraordinária e na ordinária.

Esse fenômeno não acontece na usucapião urbana e rural que exige pessoalidade da posse.

Pedro, vamos supor que você ficou nesse imóvel 3 anos e, após esse tempo, Washington aparece perguntando se você não podia vender a sua posse para ele.

Gente, pode vender posse? Juridicamente vender posse é um absurdo porque posse é algo informal. Posse não transita pelo registro. Mas, na prática as pessoas no Brasil fazem contratos de cessão de posse.

Então, Pedro fez um contrato de cessão de posse para Washington que ficou no terreno mais dois anos. É possível juntar o tempo de posse do Pedro com o tempo de posse do Washington para a usucapião especial? Também não, pois não se permite em matéria de usucapião especial a chamada acessio possessionis.

Não se admite a acessão de posse em razão da pessoalidade da posse.

Quanto tempo Washington vai ter que ficar lá se ele quiser usucapir? Vai ter que ficar 5 anos.

Olha o art. 1243, CC: “O possuidor pode, para o fim de contar o tempo exigido pelos artigos antecedentes, acrescentar à sua posse a de seus antecessores (art. 1207), contanto que todas sejam contínuas, pacíficas e, nos casos do art. 1242, com justo título e de boa-fé”.

O art. 1243 está prevendo a acessio possessionis. O CC permite essa acessão de posse. Anotem ao lado do art. 1243 que quando ele permite a acessio possessionis, é só para usucapião extraordinária do art. 1238 e usucapião ordinária do art. 1242.

Se por acaso Pedro quer usucapir um bem em 15 anos (usucapião extraordinária) e fica 7 anos. Pode Washington ficar 8 anos no imóvel e depois juntar? Na usucapião extraordinária tranqüilamente é possível a acessio possessionis, visto que não se exige pessoalidade.

Washington terá que provar ao juiz que ele recebeu a posse do Pedro. Tem que haver documento ou tem que haver testemunhas demonstrando que ele é sucessor do Pedro.

Além de demonstrar que ele sucedeu o Pedro na posse, ele tem que demonstrar efetivamente que Pedro possuiu por sete anos e que ele efetivamente possuiu por 8 anos. Aí ele conseguiria a acessio.

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Mas essa acessio jamais poderia ser aplicada na urbana ou na rural porque exige pessoalidade.

Olha o que diz o enunciado 317 do CJF: “A acessio possessionis de que trata o art. 1243 não encontra aplicação nos arts. 1239 e 1240 em face da normatividade da usucapião constitucional dos arts.183 e 191 da Constituição”.

Pergunta de aluno: inaudível. Resposta do prof.: Mesmo que ele tenha adquirido a posse com instrumento qualquer de cartório de títulos e documentos, desde que ele tenha possuído pessoalmente 5 anos. Mas ele não pode pegar os 2 anos do João e juntar com os 3 anos dele.

Pedro, você estava possuindo um imóvel há 3 anos. Você morre e deixa sua viúva e 8 filhos. Mas quando você morreu só a sua viúva morava contigo. E a sua viúva ainda ficou lá mais dois anos. A sua viúva pode juntar o tempo de 3 anos que você possuía com o prazo de 2 anos após a sua morte e pedir usucapião? Pode.

Mas por que pode se é proibida acessio possessionis? Mas isso não é acessio possessionis. Isso é sucessio possessionis. A sucessão de posses é a sucessão de posse causa mortis.

Por que pode transmitir causa mortis e não pode inter vivos? Pode na causa mortis porque está mantida a pessoalidade. A usucapião é da pessoa ou e sua entidade familiar. É por isso que pode juntar com a viúva.

Art. 226, CRFB/88. Quais são as 3 entidades familiares que vocês conhecem? Casamento, união estável e família monoparental.

Então, se o Pedro morre e sua esposa fica, ela continua. Se você morre e sua companheira fica, ela continua. Se você morre e seu filho fica, ele continua.

Mas os 8 filhos de Pedro terão direito à propriedade? Não, pois para fins de sucessio possessionis, a entidade familiar não é a família. É a entidade familiar que estava no imóvel ao tempo do óbito e continuou até o final.

Não basta ser família, tem que estar no imóvel na época em que ele morreu.

Pergunta de aluna: se for um incapaz, que não corre prescrição contra ele, com é que acontece? Resposta do prof.: Sempre quando você pensa que não corre prescrição contra o incapaz você pensa o seguinte: e se o proprietário desse terreno é um menino de 14 anos? Se o proprietário desse terreno é um menino de 14 anos, esse povo só vai usucapir, só vai começar a contar o prazo da usucapião no momento em que ele completa 16 anos. Isso se dá com relação ao proprietário e não ao possuidor.

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Pedro, você e o Washington têm uma relação homoafetiva. Você morre. O Washington pode continuar os dois anos que faltam? Pode, pois o rol de entidades familiares no direito brasileiro é exemplificativo pelo princípio do afeto, da solidariedade, da dignidade da pessoa humana nós não podemos reduzir o conceito de família a um conceito puramente formal, pois ele é cultural. Então, em qualquer situação, mesmo nas outras famílias que não estão abrangidas pelo art. 226, CRFB/88 nós temos a possibilidade da sucessio possessionis.

Pedro, você conseguiu possuir esse terreno por 5 anos. Esse terreno tem 250 m2 conforme diz a CRFB/88. Durante esse período o Pedro construiu uma mansão nesse terreno. Ele pode usucapir? Claro que pode. A CRFB/88 não fala que há um máximo de 250 m de construção. A CRFB/88 fala que deve ter 250 m de área do terreno.

Dentro dessa área do terreno vocês podem construir o que quiserem. Onde a CRFB/88 não limitou, não cabe ao intérprete limitar. Então, é por isso que ele tranqüilamente pode usucapir.

A finalidade da usucapião especial constitucional não é discriminar rico e pobre. A finalidade é dar propriedade a quem não tem.

Então, se o Pedro não tem imóvel registrado no nome dele e esse é o primeiro, pouco importa para a Constituição se a usucapião é de uma mansão ou de um barracão. O que interessa é que ele está recebendo sua primeira propriedade e ele não tinha nenhuma.

Pergunta de aluno: inaudível. Resposta do prof.: Mas a do rural eu vou falar depois. Daqui a pouco eu chego no imóvel rural.

Pedro, você ficou 5 anos possuindo um imóvel e esse imóvel mede 750 m2. Depois de 5 anos você contrata um advogado e pergunta se pode usucapir esse imóvel em 5 anos. O advogado diz que não pois ele é maior do que 250 m2.

Pedro insiste dizendo que quer usucapir. O advogado fala para ele limitar o seu pedido de usucapião para 250 m2. O advogado está correto? Não, pois isso seria confisco contra o direito de propriedade.

Imagine que eu sou proprietário desse lote de 750 m2 e todo dia eu passo lá de carro e vejo que o Pedro está lá. E penso que, por enquanto, ele pode ficar lá pois só irá usucapir em 10 ou 15 anos.

Depois de 5 anos, ardilosamente vem o possuidor e reduz o seu pedido a uma fraca, a 250 m2. Esse pedido tem que ser julgado improcedente pois ele fere o princípio da segurança jurídica. Seria uma forma de confisco contra o meu direito fundamental de propriedade.

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O que Pedro deveria ter feito desde o primeiro dia da posse se ele quisesse usucapir em 5 anos? Ele deveria ter cercado terreno e restringido a parte dele a 250 m2. Ele deveria ter praticado atos de posse restrito a apenas 250 m2.

Quando a Constituição fala em no máximo 250 m2, não é que o terreno tenha que ter 250 m2 não. O terreno pode ser muito maior. Mas são 250 m2 de posse.

Se ele possuiu 250 m2, cercou e demonstrou que ele só quer essa área, o juiz vai julgar procedente e o restante do terreno continuam com o proprietário.

O juiz irá desmembrar a matrícula. Haverá uma matrícula nova para o usucapiente e a matrícula do proprietário será reduzida a 500 m2. Pedro é casado com Raimunda. Vocês possuem um imóvel de 500 m2. Dá para você pedir 250m e a Raimunda pedir 205m? Não, pois esses 250 m2 são para a entidade familiar.

Pedro, você possuiu um imóvel de 250 m2 e nesse imóvel por 5 anos você fez o seu consultório odontológico. Você consegue usucapião? Não, pois essa usucapião é para fins de moradia. A usucapião urbana não é apenas o requisito da pessoalidade. É pessoalidade mais moradia.

Se for utilização mista, ou seja trabalha e mora lá, não tem problema nenhum. O que não pode é ser um imóvel puramente comercial. Pessoa jurídica consegue usucapião urbana ou rural? Não, pois pessoa jurídica não mora, pessoa jurídica tem sede.

Pessoa jurídica pode possuir um terreno por 15 anos e usucapir? Pode. Pessoa jurídica pode obter usucapião ordinária ou extraordinária.

Pergunta de aluna: aquela hipótese que você falou da entidade familiar. O que seria entidade familiar para a usucapião? Resposta do prof.: A entidade familiar é restritamente o núcleo composto por pai e filhos. Se tiver uma prima morando junto, ela pode ocupar os outros 250 m2.

Pedro, você ficou 4 anos e 10 meses nesse terreno. Que terreno é esse? É um terreno muito valioso de 250 m2. Faltando 2 meses para usucapir você recebe um telegrama dizendo que a tia dele que mora no Ceará morreu e deixou para você e para cada um dos seus 17 irmãos, 1/18 de um casebre avaliado em R$ 300,00.

Ele consegue o usucapião? Teoricamente pela Constituição e pelo CC ele não consegue porque diz a Constituição e o CC que ele não pode ser proprietário de outro imóvel, seja inter vivos ou causa mortis.

Se vocês fossem o Pedro, o que vocês fariam? Vocês renunciariam a herança.

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Se ele não renuncia a herança, mesmo assim vocês como juízes dariam a usucapião para ele? Dariam por quê? Pois quando a Constituição fala que não pode ter outro imóvel ela quer dizer outro imóvel que propicie direito fundamental de moradia.

Quando você tem 1/18 de um imóvel, isso não te propicia mínimo existencial nenhum. É claro que só se torna incompatível o fato de você ser proprietário de outro imóvel capaz de lhe conceder moradia.

Pedro, você completou o prazo de 5 anos sem ter imóvel nenhum. Mas ainda não ajuizou a ação de usucapião. Se, 3 meses após completar o prazo de 5 anos ele compra um imóvel. Quando ele for ajuizar ação de usucapião mais tarde isso vai prejudicar?

Claro que não. Quando a Constituição diz que não pode ter outro imóvel, é do primeiro dia de posse ao último dia do quinto ano de posse.

Se o Pedro já teve um dia na vida um outro imóvel e vendeu antes de começar a posse, não tem problema. Se o Pedro depois de ter completado o lapso aquisitivo compra outro imóvel, também não tem problema. O problema é ele ter outra propriedade nesse espaço de tempo de 5 anos para completar a usucapião.

Se o Pedro conseguiu essa usucapião de 5 anos por sentença, ele pode vender esse imóvel depois da sentença ter transitado em julgado? Claro que pode, não é dele? E se ele vender amanhã ele pode ajuizar uma nova usucapião urbana? Não. Há também proibição constitucional.

Usucapião urbana e rural só pode ser obtida uma única vez. Se vocês conseguiram uma usucapião urbana, vocês podem conseguir depois uma usucapião ordinária ou extraordinária? Pode, sem problema nenhum.

O que não pode é usucapião urbana seguida de outra urbana; uma urbana seguida de uma rural; uma rural seguida de uma rural e uma rural seguida de uma urbana. Nesses casos não pode, pois você está vulnerando o desiderato social, que é dar propriedade a quem não tem.

Isso tudo foi para lhes mostrar a usucapião urbana com todos os seus requisitos.

Amanhã eu vou começar a aula com a usucapião urbana coletiva, vou falar sobre a concessão especial de uso para fins de moradia, depois vou falar sobre a usucapião rural e vou terminar falando das técnicas processuais da usucapião.

Rio, 08.11.2007

Bom dia, vamos continuar usucapião.

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Ontem eu conversei com vocês sobre usucapião. Efetivamente é uma matéria longa. A cada dia que passa fica mais difícil de dar aula sobre usucapião, pois sempre surgem questões novas.

Eu falei que existem 7 formas de usucapião. Eu já estava na usucapião especial urbana e na usucapião especial rural. E eu havia dito 14 coisas sobre a usucapião urbana.

A usucapião urbana que eu tratei está no art. 183 da CRFB/88 e no art. 1240 do CC foi a usucapião urbana individual que possui os seguintes requisitos: imóvel até 250 m, não ter sido proprietário naqueles 5 anos de outro imóvel, o imóvel é para moradia e pessoalidade da posse

Eu vou estudar com vocês agora a usucapião coletiva que está no estatuto da cidade no art. 10. Mas tem uma outra coisa da usucapião individual que está no estatuto da cidade que eu tenho que falar antes.

Santino, você fica 5 anos morando em um apartamento que não é seu. Tem usucapião urbana de apartamento? Claro que tem e está no art. 9o do estatuto da cidade.

O art. 9o do estatuto da cidade vai além do CC na usucapião urbana, pois a usucapião urbana no CC e na CRFB/88 fala em terreno de até 250 m2. Só que a usucapião urbana individual do art. 9o do estatuto da cidade tem uma outra finalidade. Fala em terrenos ou edificações.

Por que edificações? Apartamento é imóvel urbano. Então, o que acontece? Nada impede que qualquer um de vocês entre em um apartamento, tenham posse com animus domini e consigam a suscapião urbana de um apartamento de até 250 m2.

A grande discussão é se é 250 m2 de área interna do apartamento ou se é a área de 250 m2 somando as áreas comuns do prédio. O que vocês acham? É só a área útil interna.

E tanto é verdade que nós temos o enunciado 314 do CJF que fala: “Para os efeitos do art. 1240 não se deve computar para fins de limites de metragem máxima a extensão compreendida pela fração ideal correspondente à área comum”.

Isso quer dizer que o próprio CJF confirma que pode usucapir apartamento. Quem será citado nessa demanda? O síndico representando o prédio e todos aqueles outros posteriormente: estado, União, município e por aí a gente vai. Então, essa era a última coisa que eu queria ter dito a respeito da usucapião urbana individual para que nós possamos começar a usucapião urbana coletiva.

Qual é o prazo da usucapião especial? 5 anos. Tem mais alguma outra usucapião com o prazo de 5 anos sem ser essa? A usucapião ordinária tabular do § único do art. 1242, CC. Qual é a diferença entre elas?

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Qual é a diferença entre a usucapião especial urbana individual ou a rural individual que também é de 5 anos e aquela usucapião do art. 1242, § único que também é de 5 anos? A primeira diferença é que para ter aquela usucapião do art. 1242, § único não há limite de metragem do imóvel. Pode ser qualquer metragem. Já na usucapião rural ou urbana individual tem limite de metragem (250 m2).

A segunda diferença é que nessas modalidades especiais da Constituição o cara não pode ter nenhum outro imóvel. Já no CC, se alguém quer ter usucapião ordinária de 5 anos pode conseguir a usucapião ordinária mesmo ele já tendo 28 imóveis? Pode. Não se exige que aquele seja o primeiro imóvel dele.

A terceira diferença é a seguinte: na usucapião especial exige-se moradia com pessoalidade. Na usucapião de 5 anos do CC não se exige moradia com pessoalidade.

A quarta diferença é que a usucapião do art. 1242 para ser de 5 anos exige justo título e boa-fé. Já a usucapião especial não exige justo título e nem boa-fé. Basta animus domini que já é suficiente.

A única coisa que elas têm em comum são os 5 anos. No resto, elas são completamente diferentes.

Vamos para a usucapião coletiva. Vamos dar um exemplo para vocês entenderem.

Beto imagina que tem um terreno que é uma favela no Rio de Janeiro. Uma favela de 100 mil m2. Nessa favela tem mil famílias. Cada família deve ocupar mais ou menos 100 m2. Beto, você está ocupando uma área de 100 m2.

Primeira pergunta: Beto ficou nessa área de 100 m2 por 5 anos, ele não tem outro imóvel e ele morou lá pessoalmente pelos 5 anos. Ele consegue a usucapião urbana individual? Não, pois para se ajuizar uma ação de usucapião urbana individual é necessário ter a planta do imóvel (art. 942, CPC).

E você, Beto, não tem como trazer a planta do imóvel porque esse lugar em que você vive não existe no registro do Rio de Janeiro. O que existe é essa gleba. A divisão do terreno que os favelados fizeram foi uma situação fática que não está documentada.

Então, ele não consegue a usucapião individual. Isso é injusto pois há uma prevalência da forma sobre o acesso à propriedade. Para corrigir essa injustiça foi criada a usucapião coletiva (art. 10, lei 10.257/2001).

Qual é a finalidade da usucapião coletiva?

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Verdadeiro ou falso? A usucapião coletiva é, na realidade, uma ação ajuizada por um litisconsórcio ativo de mil famílias de possuidores pedindo a coisa toda? Essa afirmação é falsa, pois essa ação não é um mega litisconsórcio ativo. Essa ação visa defender interesses metaindividuais. Existem interesses individuais homogêneos relacionando essas pessoas.

Por isso que quem vai ajuizar essa demanda é a associação de moradores. A associação de moradores pelo art. 12 do estatuto da cidade é substituta processual. Ela tem legitimação extraordinária justamente para ajuizar essa ação em nome próprio na defesa do interesse da coletividade.

É interessante que vocês coloquem em uma prova que isso é uma ação que defende interesses metaindividuais, interesses individuais homogêneos.

A maioria dos moradores faz uma assembléia e autorizam que essa associação de moradores possa ajuizar essa ação de usucapião coletiva. Quando o juiz dá a sentença, não dará a você essa área específica e individualizada. A sentença do juiz não será um título para que você possa matricular essa área fisicamente localizada e diferenciada.

O juiz vai dar para o Beto uma fração ideal. A sentença vai transformar todas essas pessoas em condôminos. Vai formar um condomínio necessário. E cada uma dessas pessoas terá uma fração ideal idêntica a dos outros, mesmo que alguém ocupasse parte do terreno maior que os outros.

Isso não interessa, pois essa não é uma ação que visa satisfazer interesses individuais. Essa é uma ação coletiva e todos terão a mesma área. Mas, na prática, todos vão continuar onde estão.

Mas, a título de propriedade, você vai ter fração ideal, que é muito melhor do que posse, visto que posse é algo provisório.

É por isso que a usucapião coletiva tem o mérito de defender interesses individuais homogêneos e dar acesso ao patrimônio mínimo para as pessoas.

Flávio, você é um desses possuidores. Mas você, ao contrário dos outros, não tem 5 anos de posse. Você só tem 2 anos de posse porque você comprou essa posse do Washington que tinha 3 anos de posse. Juntando os 3 anos de posse anteriores com os dois anos de posse, Flávio consegue a usucapião?

Se eu falei que não cabia acessio possessionis na usucapião urbana. Por que vocês acham que pode? Aqui pode porque o art. 10 do estatuto da cidade admite a acessão de posse na usucapião coletiva, pois o juiz não está preocupado com a situação peculiar de cada um dos possuidores. Ele quer deferir essa usucapião ao todo.

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A única chance desse bem ser individualizado é na inicial a associação dos moradores faz o pedido quanto a área inteira, que corresponde à gleba que estava registrada no ofício imobiliário.

Se por acaso algum dos possuidores só tem 3 anos e não tem tempo nenhum para juntar, mesmo assim ele consegue? Consegue, pois o juiz não está interessado na trajetória de cada um.

Sabe qual é a pergunta que o juiz vai fazer? Os atos possessórios dessa coletividade começaram a 5 anos atrás? 5 anos não é a posse de cada um. 5 anos é o início de ocupação dessa favela. É por isso que o juiz concede essa sentença deferindo essa usucapião e todos eles serão condôminos necessários.

Ou seja, com a usucapião coletiva nós eliminamos a injustiça de questões formais e damos propriedade a essa coletividade.

Só uma pergunta: Gente, vocês se tornam proprietários. Posteriormente esse condomínio pode ser dissolvido? Pode, mas somente com o voto de 2/3 dos moradores no sentido da dissolução. Essa usucapião coletiva é muito boa pois a partir do momento em que essa propriedade é regularizada, o próprio município poderá realizar função social dentro dela podendo fazer a urbanização da favela.

Se o juiz desse na sentença para cada um aquela área específica, o município não poderia urbanizar. Mas a partir do momento em que cada um tem uma fração ideal, o município pode criar todas as condições necessárias para a habitabilidade digna dessa região porque o morador não vai poder se opor para que obras sejam realizadas para que esse local seja melhor para se viver.

Agora, essa usucapião é para a população de baixa renda. Então, não existe usucapião coletiva em favor de ricos que se unem em um condomínio e depois de um tempo descobrem que aquilo que eles compraram foi uma venda a non domino.

Considera-se que tenha baixa renda a pessoa que receba até 3 salários mínimos.

Pergunta de aluna: inaudível. Resposta do prof.: Isso, se um levar o lugar de outro,cabe ação possessória. O esbulho é dentro da área que eles efetivamente ocupam e cabe ação possessória. A dificuldade é que um não pode reivindicar contra o outro. Condômino não pode reivindicar contra condômino, mas reintegração de posse cabe.

Vocês devem estar se perguntando por que eu não trabalhei com vocês o art. 1228, §§ 4o e 5o que trata da desapropriação indireta praticada quando não há função social de determinado bem. Eu vou trabalhar isso com vocês por aproximadamente 1 hora na aula de posse.

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Eu não posso tratar disso com vocês na aula de propriedade porque aquela desapropriação é função social da posse. Não é função social da propriedade.

Uma observação: eu falei que usucapião coletiva é coisa de favelado, não foi? Mas e se essa favela pertencer ao município do Rio de Janeiro, é possível a usucapião coletiva se ela for bem público? Não. Havia previsão de usucapião coletiva de bem público no estatuto da cidade, mas o presidente Fernando Henrique vetou pois a CRFB/88 impede a usucapião de bem público.

A maioria das favelas se consolidou sobre bens públicos. Então, a maioria das favelas não poderia ser beneficiada por esse novo modelo jurídico porque é bem público.

O que o próprio FHC fez para compensar essa proibição da usucapião coletiva? Criou a chamada concessão especial de uso para fins de moradia. MP 2220/2001 tendo sido republicada como MP 2172-32/2001.

O que é essa concessão especial de uso para moradia? Ela se divide em duas: individual e coletiva. Como é a individual? Patrícia, imagina que você ficou 5 anos nesse imóvel. Ele tem menos de 250 m2 e você não é proprietária de nada, a não ser possuidora desse imóvel.

Só que esse bem é público. O que essa MP te concede? Ela te concede direito especial de moradia. Mas qual é a vantagem? Proprietário você não será, pois o bem continua sendo público. Essa concessão de uso não é usucapião, mas é metade do caminho, pois a Patrícia e a sua entidade familiar terão a garantia de que até a sua morte você continua morando lá transmitindo-se esse direito de moradia para os seus herdeiros.

Você tem a posse como um direito real. É o registro de uma posse. Não é mais aquela posse precária, é uma posse que é levada ao registro imobiliário.

Quais são as situação em que a Patrícia pode perder essa concessão especial? Quando ficar provado que existe desvio de finalidade, ou seja, ela utilizar aquilo para fins comerciais ou quando você adquiriu um outro imóvel. Fora isso essa garantia não se perde com o passar do tempo.

Quando se dá a concessão coletiva? Ela se dá naqueles casos em que a favela é favela que pertença ao poder público. Nesse caso, a associação de moradores não terá direito à usucapião. Ela terá direito à concessão especial e todos os favelados terão a perspectiva de estabilidade.

Qual é o prazo de posse para conseguir a concessão especial? 5 anos. São os mesmos requisitos da usucapião. 5 anos, cada terreno não pode ter mais de 250 m2. A única diferença é que ao invés de você ter propriedade, você terá direito real de moradia.

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Está nessa MP que só é possível que o Estado atenda essa concessão especial se esse prazo de 5 anos foi alcançado até a vigência da MP, ou seja, até 2001. Vale dizer, só serve essa concessão de uso para quem começou a possuir em 1996 e terminou em 2001.

Se a pessoa começou a possuir em 2007 e fez 5 anos, ela não vai te adiantar nada porque ela só veio para regularizar situações anteriores.

A Patrícia começou a possuir esse imóvel em 2007. Em 2012 ela completa esse prazo e descobre que esse bem é público. Você pode pleitear a concessão especial em juízo? Pode.

Qual é um princípio implícito da CRFB/88? Proibição do retrocesso. O que é o Estado democrático de direito? O Estado democrático de direto quer implementar direitos fundamentais sociais. Direito fundamental de moradia é direito fundamental social. Art. 6o, CRFB/88.

Se direito social é direito fundamental e isso é dito por Daniel Sarmento e por Ingo Sarlet, qual é a conclusão? Vem uma medida provisória e concede um direito social fundamental, qual seja, concessão especial. E, de repente, essa norma diz que é até só 2001.

Isso é retrocesso social que não se admite no estado democrático de direito. Agora eu não preciso mais da vedação ao retrocesso. Vocês lembram o que eu pedi para vocês incluírem no art. 1225 na primeira aula? Os dois novos direitos reais. E qual era um deles? Concessão de uso para fins de moradia.

Vai ter muita gente falando que ele se incorporou, mas só até 2001. Mas gente, nada se incorpora na legislação até 2001 se tratando de direito social fundamental.

Vamos falar sobre usucapião rural. A usucapião rural começou na CRFB/88 ou já havia antes? A usucapião urbana foi inventada pela CRFB/88. A usucapião rural não. Ela existe desde a Constituição de 1934. E antes da CRFB/88 ela era regida pela lei 6969/81 que foi recepcionada pela CRFB/88 e continua em vigor.

Constituição não revoga lei. Constituição recepciona ou não recepciona e suprime ou mantém a eficácia.

É a lei 6969/81 que rege o aspecto procedimental da usucapião rural. O aspecto procedimental da usucapião coletiva está no estatuto da cidade. Mas é claro que se aplica subsidiariamente o art.941 do CPC que é o procedimento da usucapião em geral.

Vou fazer 3 perguntas de concurso sobre a usucapião rural.

Flávio era funcionário público estadual. Ele se aposentou e foi morar no campo. Lá ele começou a possuir um terreno de 40 hectares e ficou

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morando lá por 5 anos. Durante esses 5 anos ele viveu à dispensa da sua aposentadoria como funcionário público estadual. No final desses 5 anos você consegue a usucapião rural? Não, pois na usucapião rural não basta moradia. Tem que ter moradia mais trabalho.

A intensidade da função social na usucapião rural é maior do que na usucapião urbana. Por isso que a usucapião rural é chamada de usucapião pro labore, pelo trabalho, tendo em vista que morar não basta, tem que morar e produzir. Pode ser qualquer tipo de produtividade. Mas somente com a moradia não caberá usucapião. A usucapião rural é bem de produção, por isso é que não basta moradia.

Alessandra, você e seu marido moram em uma cobertura no Grajaú e vocês possuem vários animais nessa cobertura. Vocês têm 4 vacas na cozinha, 8 bodes na sala, na piscina tem 7 jacarés. Esse imóvel é urbano ou é rural? É urbano. A definição de imóvel é pela localização.

A Constituição no ar. 191 fala em imóvel situado em zona rural. Essa cobertura está localizada na zona urbana. Então, para ser imóvel urbano, ele tem que estar localizado em área urbana, independente da destinação dada a ele.

Como é que eu sei que o imóvel está localizado na zona urbana? No plano diretor vocês conseguem descobrir exatamente qual é o imóvel que se encontra em área urbana ou em área urbanizável.

Tudo aquilo que não estiver um área urbana ou urbanizável no plano diretor, por exclusão será zona rural.

O art. 32 do CTN até diz quais são os requisitos para o imóvel deixar de ser rural e passar a integrar a urbi. Tem uma série de requisitos de saneamento e outros para que ele possa se tornar um imóvel urbano.

A questão não é de destinação. A questão é de localização para estabelecer uma coisa ou outra.

Patrícia começou a possuir um terreno rural em 1983 com todos os requisitos que a lei exigia para a usucapião rural. Você possuiu até 2007. Ou seja, você está há 24 anos possuindo esse imóvel.

Quando você vai pedir usucapião, descobre que esse é um imóvel público, terra devoluta.

Qual é a diferença entre res nullius e terra devoluta? Terra devoluta, apesar de ser chamada desta forma, está registrada em nome do poder público. É um bem público patrimonial que não recebe qualquer destinação. Res nullius seria se não tivesse sofrido processo discriminatório, se não fosse registrado.

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Ela descobriu que é um imóvel público. Ela vai conseguir usucapir ou não? Vai. Mas como irá usucapir se não cabe usucapião de bem público? Como ela começou em 1983 e terminou em 1988, antes da CRFB/88.

Se ela completou o prazo antes da CRFB/88, o que dizia o art. 2o da lei 6969/81? Ela permitia usucapião de terra devoluta. E por que você ganhou a usucapião se o seu pedido é de 2007? Porque na época em que você terminou o período aquisitivo, não existia ainda a CRFB/88. E só com a CRFB/88 é que se passou a vedar a usucapião de qualquer bem público, incluindo terras devolutas.

Patrícia, esse terreno particular você começou a possuir em 1983 até 2007. Só que a área que você possuiu é uma área de 35 hectares. Você consegue usucapião?

Quando é que ela vai começar a contar o tempo? Só a partir da CRFB/88, pois nessa lei no art. 1o antes da CRFB/88 a área máxima era de 25 hectares. Então, a área de terreno que ela usucapiu estava acima do máximo permitido.

Então, só pode contar a partir da CRFB/88, pois ela retirou esse caráter do art. 1o aumentando a área de 25 para 50 hectares. A lei 6969/81 está toda em vigor, exceto os dois primeiros cuja eficácia foi suprimida pela norma constitucional.

Vamos agora falar sobre aspectos relevantes sobre a parte processual da usucapião.

Rafael, você começou a possuir um imóvel em 2007. Ele quer uma usucapião extraordinária, já que ele não tem justo título e nem boa-fé com moradia e vai conseguir em 10 anos. Em 2017 ele consegue a usucapião, mas ele não ajuíza a ação de usucapião e continuou morando lá. Em 2020 aparece o proprietário Flávio que percebendo que Rafael não ajuizou a ação de usucapião, ajuíza a ação reivindicatória para tirar o Rafael do seu imóvel.

Quando ele ajuíza a ação reivindicatória, Rafael alega usucapião em defesa (súm. 237, STF). Por que ele vai alegar usucapião em defesa se ele não tem propriedade, já que a propriedade pertence ao Flávio? Qual será o fundamento da alegação da usucapião em defesa?

Quando o Rafael completou o prazo ele adquiriu domínio, ou seja, a usucapião em defesa é uma exceção de domínio. Ele está alegando domínio em defesa.

Domínio são as faculdades que o proprietário tem de usar, fruir e dispor da coisa. O Rafael vai alegar exceção de domínio.

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Quando o Rafael alega domínio em defesa, o que ele quer demonstrar com isso? Qual é a conseqüência se essa reivindicatória é julgada improcedente?

Se essa reivindicatória é julgada improcedente ele já pode registrar essa sentença de improcedência da reivindicatória e leva-la como título para a usucapião? Não pode porque vocês aprenderam que a pessoa só pode registrar a sentença se for na ação especial de usucapião do art. 941, CPC.

Mas vamos por partes. Primeiro, por que ele perdeu a ação reivindicatória? Porque ele só pode reivindicar, o proprietário, que queira recuperar o domínio. Mas ele não pode recuperar, pois ele já perdeu o domínio. Proprietário que perdeu o domínio não pode reivindicar. Por isso que o juiz vai julgar improcedente a pretensão do Flávio.

Rafael, você ganhou a primeira batalha porque o juiz julgou improcedente. Qual vai ser a segunda batalha? Ele agora vai ajuizar uma ação de usucapião extraordinária desse imóvel. Ele irá ajuizar uma ação de usucapião porque ele se deu bem contra o proprietário, mas agora ele terá que convocar todos em litisconsórcio passivo necessário.

Ele terá que convocar o proprietário, os confinantes, o Estado e eventuais interessados.

Se o juiz julga procedente e você ganha a ação de usucapião, qual é a natureza da sentença de usucapião? Declaratória de domínio e constitutiva de propriedade.

É declaratória de domínio porque ela vai declarar que você já tem aquele domínio há muito tempo, desde quando completou os requisitos reais, formais e legais da usucapião.

Mas ela é constitutiva de propriedade porque aquela sentença vai servir como título para ser levado ao registro. E quando o Rafael registrar ele vai ser constituído como proprietário.

Uma sentença pode ser constitutiva e declaratória. Uma sentença pode ter várias cargas eficaciais.

É claro que a carga eficacial preponderante é a declaratória,visto que ele nunca ganharia a usucapião se o juiz não observasse que lá atrás ele já adquiriu o domínio.

Existem pessoas que já têm o domínio, mas não têm a propriedade? Existe. O usucapiente quando consegue a usucapião, mas não registra tem o domínio, mas não tem a propriedade.

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E existem pessoas que têm a propriedade, mas não têm o domínio. É o caso do proprietário que após a usucapião que continua sendo formalmente proprietário, mas não tem domínio. O domínio está com o possuidor.

Art. 1241, CC: “Poderá o possuidor requerer ao juiz seja declarada adquirida, mediante usucapião, a propriedade imóvel”.

O certo seria falar em domínio. Mas o CC não faz a distinção entre propriedade e domínio. Mas o CPC faz. Se vocês forem no art. 941, CPC vocês verão que está escrito que a ação de usucapião tem a finalidade de declarar o domínio.

Olha o § 1o do art. 1240: “O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil”. Mas não existe título de domínio. Existe título de propriedade. Titularidade é propriedade.

Rafael, quando você completou o prazo de usucapião, você não ajuizou a ação de usucapião. Se ele não ajuizou a ação de usucapião, mas já tem todos os requisitos, pode o Flávio vender a fazenda para Patrícia? Pode.

Dois anos depois o Rafael resolve ajuizar ação de usucapião. Ele vai ajuizar contra o Flávio ou contra a Patrícia que é a atual proprietária? Contra a Patrícia.

A Patrícia pode alegar em defesa que contra ela não tem usucapião, pois na época em que ele completou a usucapião o proprietário era o Flávio. Ela pode alegar isso? Claro que não, pois esse ato de disposição do proprietário é ineficaz perante o usucapiente.

É ineficaz, pois quando o Flávio dispôs do imóvel, já não tinha mais o poder de disposição. O domínio já estava com o Rafael. O Flávio não poderia dispor daquilo que ele já não mais tinha. É um caso de ineficácia relativa.

A Patrícia tinha que ter pesquisado o histórico desse imóvel e ver que tinha uma pessoa que já estava lá há muito tempo e que poderia entrar com ação de usucapião.

Rafael, você já tinha cumprido o prazo de usucapião e nada do Flávio ajuizar ação reivindicatória. Você já estava no imóvel há mais de 13 anos. De repente, Zé Rainha invade o terreno que Rafael possuía.

Qual é a ação que Rafael tem contra Zé Rainha? Reivindicatória ele tem? Não. Reivindicatória é só de quem tem propriedade, pois só quem tem propriedade tem seqüela e poderá reivindicar.

Tem reintegração de posse? Claro que tem. Ele não foi esbulhado? Ele não era possuidor?

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Como eu não dei aula de posse, eu não vou ficar discutindo reintegração de posse, mas ele pode.

O possuidor que está neste terreno também não tem uma ação possessória contra o Zé Rainha? Teria.

Qual é a vantagem do possuidor que tem usucapião contra o Zé Rainha? A ação de que você tem contra ele, além da possessória, é uma ação chamada publiciana.

Essa ação publiciana é a mesma coisa que a ação reivindicatória. É igual, só muda o nome. A ação publiciana é uma espécie de ação petitória só que é ajuizada por aquele que tem domínio, mas não tem propriedade.

O Rafael tem o mesmo remédio que o Flávio teria, mas não se chama reivindicatória porque o nomen iuris reivindicatória é específico para aquele que já registrou o imóvel no seu nome.

A ação publiciana não visa defender uma posse qualquer. A ação publiciana visa defender um domínio. Então, é uma ação muito mais forte contra o Zé Rainha do que uma mera ação possessória.

Lembram que no primeiro exemplo o Flávio ajuizou uma ação reivindicatória contra o Rafael e o Rafael alegou em defesa usucapião com exceção de domínio?

Vocês me falaram que o juiz julga improcedente a reivindicatória e o Rafael tem que ganhar uma segunda batalha que é ajuizar ação de usucapião.

Existe alguma espécie de usucapião que vocês conhecem que se o Rafael consegue derrotar o Flávio na reivindicatória, ele não precisa ajuizar uma ação de usucapião autônoma, ele pode pegar a sentença improcedente da reivindicatória e registrar a propriedade no seu nome imediatamente sem uma segunda demanda? Existe. Na usucapião rural e na usucapião urbana.

Na usucapião rural, pelo art. 7o da lei 6969/81 e na usucapião urbana pelo art. 13 da usucapião urbana.

Isso acontece porque elas são normas especiais que consagram que quando a usucapião rural ou urbana são alegadas em defesa, elas são consideradas como pedidos contrapostos, ou seja, é quando o réu na contestação além de deduzir sua defesa, deduz uma pretensão contra o autor.

Normalmente réu não deduz pretensão. Quem deduz pretensão é o autor. E quando o réu resolve deduzir pretensão de contra ataque, é pela via da reconvenção. Só que a vantagem do pedido contraposto é que ele não necessita das formalidades do art. 315, CPC da reconvenção, pois o contra ataque está nos mesmos autos.

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Flávio ajuíza reivindicatória contra Rafael. Rafael em defesa diz para o juiz que o Flávio não tem direito a ganhar e que ele tem prazo de usucapião e que ele quer que esse prazo seja declarado. Ou seja, ele alega em defesa a usucapião e não precisa de outra ação.

Quando você alega um pedido contraposto em defesa, por que esse pedido faz com que não seja preciso ajuizar outra demanda? Porque quando o juiz for dar a sentença, esta será formalmente uma, mas formalmente dúplice.

Em uma só sentença o juiz vai decidir dois pedidos. O pedido de Flávio contra Rafael e o pedido contraposto de Rafael contra Flávio. É por isso que como essa matéria entra na parte da motivação e da disposição da sentença, o pedido contraposto fará coisa julgada e é por isso que não será necessário você ajuizar outra ação de usucapião.

Isso tudo que eu falei cabe na usucapião ordinária e extraordinária? Não cabe, pois na usucapião ordinária e extraordinária deve-se ajuizar uma outra ação de usucapião.

Quando Flávio ajuíza a reivindicatória contra Rafael, já que Rafael está alegando em defesa usucapião extraordinária, Rafael pode reconvir com usucapião? Cabe reconvenção de usucapião? Alexandre Freitas Câmara entende que cabe e eu concordo com ele.

Cabe a reconvenção por uma simples questão de efetividade processual que é o que se busca.

Por que se vai impor um sacrifício para o Rafael de ter que ajuizar uma outra demanda se ele pode contra atacar utilizando o art. 315, CPC com a reconvenção?

A posição de Alexandre Câmara não é majoritária porque a maioria da doutrina diz que não cabe reconvenção na usucapião sob o argumento de que só pode existir reconvenção quando houver coincidência entre as partes da ação principal e da reconvenção.

Quem é o autor da reivindicatória? Flávio. Quem é o réu da reivindicatória? Rafael. Quem seria o autor da usucapião? Rafael. Quem seria o réu na usucapião? A coletividade. A doutrina majoritária diz que não pode pela via da usucapião haver ampliação do pólo subjetivo passivo da demanda.

Mas eu acho que em prol da efetividade deveria caber reconvenção.

Alguém nessa sala de aula admite que o Rafael possa deduzir pedido contraposto em defesa para não precisar de ação autônoma, mesmo essa usucapião sendo ordinária ou extraordinária? Passa a admitir.

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O art. 1241, CC admite que a usucapião possa ser obtida de forma direta.

Art. 1241, CC: “Poderá o possuidor requere ao juiz seja declarada adquirida, mediante usucapião, a propriedade imóvel”. Está escrito em algum lugar neste artigo que tem que ser pela via de uma ação? Não.

Quando ele diz que vai requerer, nós devemos interpretar tanto em via de ação quanto em via de pedido contraposto.

Quais são as três diretrizes do NCC: socialidade, eticidade e operabilidade. O NCC veio para dar efetividade, veio para dar operabilidade aos direitos, para torná-los reais. E, é claro, que essa norma tem que ser interpretada de acordo com essas diretrizes.

O enunciado 315 do CJF fala: “O art. 1241 permite que o possuidor que figura como réu em ação reivindicatória formule pedido contraposto e postule ao juiz que seja declarada adquirida mediante usucapião a propriedade imóvel, valendo a sentença como instrumento para registro imobiliário”.

Mas o Estado não participou dessa demanda, os confinantes não participaram dessa demanda e os eventuais interessados também não participaram. Qual deve ser o cuidado do juiz toda vez que o pedido contraposto é deduzido em defesa na usucapião?

É convocar para a ação reivindicatória todos esses eventuais interessados e o MP como custus legis.

O MP, em princípio, participa da usucapião quando alegado em defesa? Não. Ele participa na ação direta de usucapião. Mas por que isso ocorre? Porque o MP só intervém nas causas que alteram o registro imobiliário. E só se altera o registro público na ação de usucapião direta.

Quando a usucapião é alegada em defesa, em princípio muda o registro? Não. Mas se a usucapião em defesa é deduzida em pedido contraposto aquela sentença servirá como título para registro? Servirá.

Então, o juiz deverá chamar todos os interessados e o MP e deverá fazer isso porque se depois houve o registro sem ter chamado todos os interessados, o município pode alegar que a decisão foi ineficaz perante não ter trânsito em julgado, visto que ele não foi chamado. Aliás, essa decisão é inexistente perante o município, já que ele é litisconsorte necessário obrigatório.

Vamos falar sobre propriedade fiduciária. Art. 1361 até 1368, CC.

Washington, o seu sonho é ser proprietário de uma Uno Mille. Mas ele está sem dinheiro. Então ele chega ao Banco Alfa e pega um

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empréstimo para comprar esse carro. O Banco Alfa transmite para a Roma Veículos o valor correspondente ao carro. Quando isso acontece, você aliena o seu carro em confiança para o Banco Alfa.

Alienação em fidúcia, alienação em confiança. Washington é o alienante, também chamado de fiduciante. O Banco Alfa é o adquirente do carro, também chamado de credor fiduciário.

Essa relação contratual chamada alienação fiduciária vincula duas pessoas: Washington e Banco Alfa. A Roma Veículos não te nada a ver com a alienação fiduciária.

Em relação a Roma Veículos, se surgir uma lide é em relação a algum defeito do produto.

Vamos descrever quais são as 4 características fundamentais de uma propriedade fiduciária. A primeira é o desdobramento da posse. Washington, o carro era seu e você o alienou para a instituição financeira.

Aconteceu o desdobramento da posse porque ele era o proprietário e tinha a posse. Ele transferiu a propriedade para o Banco Alfa. Apesar de ele ter transferido a propriedade do carro para o Banco ele não continua na posse da coisa? Continua com a posse direta da coisa.

Washington passa a ter posse direta e o Banco passa a ter posse indireta. Como se faz o desdobramento da posse? Quais são as 4 faculdades do proprietário sobre a coisa? Usar, fruir, dispor e reivindicar. Washington irá usar e fruir. Já o Banco tem o poder de dispor e de reivindicar.

Houve o desdobramento da posse onde os poderes de usar e fruir ficaram com o possuidor direto, visto que esse se torna o depositário desse veículo.

Mas a propriedade é do Banco Alfa e é por isso que o Banco continua com as faculdades de dispor e de reivindicar.

Olha o art. 1361, §2o: “Com a constituição da propriedade fiduciária, dá-se o desdobramento da posse, tornando-se o devedor o possuidor direto da coisa”.

Olha o art. 1363: “Antes de vencida a dívida, o devedor, a suas expensas e risco, pode usar a coisa segundo a sua destinação, sendo obrigado como depositário”.

Ele pode usar e fruir a coisa porque ele é possuidor direto e depositário do bem.

A segunda característica é o constituto possessório. Constituto possessório é uma inversão no título da posse pela qual aquele que possuía a coisa em nome próprio, passa a possuir em nome alheio.

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Washington, você transferiu a propriedade do carro para o Banco Alfa e você continuou na posse. Teve a tradição do carro? Claro que houve. Mas como foi que houve se ele não entregou o carro para o Banco? Não houve a tradição real, que é a entrega da coisa. Não houve a tradição simbólica que é a entrega das chaves.

Mas houve a tradição ficta, que é o constituto possessório.

O constituto possessório é uma ficção. Washington não possuía a coisa em nome próprio? Ele vai continuar possuindo a coisa, não mais como dono, mas sim como depositário. Houve uma inversão no título da posse pelo qual aquele que era possuidor a título de dono, como proprietário, virou possuidor em nome alheio. Agora ele virou depositário.

É claro que houve a tradição, pois o Banco Alfa agora é que é o proprietário. Mas essa tradição não necessita da entrega da coisa. Essa tradição se subentende pela cláusula constituti que é uma cláusula no contrato onde há o constituto possessório.

Olha o art. 1267, § único, CC: “Subentende-se a tradição quando o transmitente continua a possuir pelo constituto possessório; quando cede ao adquirente o direito à restituição da coisa, que se encontra em poder de terceiro; ou quando o adquirente já está na posse da coisa, por ocasião do negócio jurídico”.

Houve a tradição pela via de uma ficção que é o constituto possessório.

A terceira característica é a propriedade resolúvel. O Washington combinou com o Banco Alfa que ele vai pagar essa dívida em 36 prestações de R$ 400,00.

Enquanto ele paga essas prestações o Banco tem a propriedade? Tem. E essa propriedade é marcada pela perpetuidade? Não. Essa propriedade é resolúvel.

Propriedade resolúvel é exceção. Em regra, você se torna proprietário até a hora que você queira dispor da coisa. Mas a propriedade resolúvel é uma propriedade que já nasce submetida a uma condição resolutiva, ou seja, nasce submetida a um evento futuro e incerto que, no caso, é a integralização do pagamento das 36 prestações.

No dia em que o Washington integraliza o pagamento das 36 prestações a propriedade do Banco se resolve, acaba e o Washington vai conseguir o chamado resgate ou a remancipação.

O que é resgate ou remancipação? É o fato do devedor, do alienante se converter em proprietário da coisa. Mas isso irá acontecer se o

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Washington cumprir o evento futuro e incerto que é pagar todas as prestações na medida integral.

Quando o Washington está pagando ele apenas tem a posse e não tem a propriedade. Enquanto ele está pagando ele não tem propriedade, mas ele tem o quê? Ele tem um direito eventual.

Direito eventual é muito mais do que uma expectativa de direito. Direito eventual é um direito subjetivo que já está incorporado ao seu patrimônio, mas que será consolidado na medida em que houver um evento futuro. Ele é um direito que já foi concebido, mas ainda não nasceu.

Quando você paga o último dos 36 meses, o direito que era eventual se torna um direito adquirido. Cada prestação que ele paga ele está amortizando uma parcela do débito.

Então, a propriedade do Banco é uma propriedade resolúvel.

Quando o Washington terminar de pagar a última prestação e se tornar dono ele tem que buscar o carro em algum lugar? Não.

No final do pagamento da última prestação ocorre uma tradição? Ocorre, mas é uma tradição ficta chamada tradição brevi manu.

Tradição brevi manu é o contrário do constituto possessório. Toda propriedade fiduciária tem no começo um constituto possessório e no final uma brevi manu.

O conceito de brevi manu é o contrário do de constituto possessório. O constituto é a inversão do título da posse pelo qual aquela coisa que era possuída em nome próprio passa a ser possuída em nome alheio.

Tradição brevi manu é uma inversão do título da posse em que o bem que era possuído em nome alheio passa a ser possuído em nome próprio.

Até o último pagamento o Washington possuía a coisa em nome alheio. Quando você pagou a última, você passou a possuir como proprietário, em nome próprio.

O nome é brevi manu porque o Washington não terá que buscar a coisa em lugar nenhum, ele já está com as mãos sobre a coisa.

Art. 1361: “Considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com o escopo da garantia, transfere ao credor”. (O professor mandou sublinhar “garantia”).

Propriedade fiduciária no CC no Brasil é só de bens móveis. Existe propriedade fiduciária de bem imóvel? Existe, mas em lei especial. Tem a lei 9514/97 que trata da propriedade fiduciária imobiliária. Mas no CC é só bem móvel.

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O código de vocês tem o art. 1368-A? Ele fala que as demais espécies de propriedade fiduciária submetem-se às disciplinas específicas das leis especiais. Esse artigo foi incluído pela lei 10.931/2004.

O mérito desse artigo é dizer que propriedade fiduciária no CC é de coisa móvel e infungível, mas nada impede que exista propriedade fiduciária de bem imóvel e que haja também propriedade fiduciária de bens móveis fungíveis, mas em outras leis.

Por que no CC propriedade fiduciária além de ser em coisa móvel deverá ser infungível? Porque como é que uma pessoa vai dar em garantia algo que seja fungível? Pois não há possibilidade de conservação da coisa.

Isso ocorre para que haja garantia da instituição financeira. Como é que a instituição financeira vai ter garantia que você vai pagar alguma coisa se o bem é fungível e ele pode ser depreciado? Então, a coisa tem que ser infungível.

Tem a lei do mercado financeiro (lei 4278/65) que trata de alienação de títulos, que é muito comum em bolsa de valores.

Washington fez um contrato de alienação fiduciária com o Banco Alfa. Alienação fiduciária em si é direito real ou é direito obrigacional? É uma relação obrigacional. Isso é um contrato.

O contrato de alienação fiduciária é um contrato principal ou acessório? É acessório, pois ele visa sempre garantir o empréstimo. Ele serve como contrato acessório para garantir.

Washington, quando você assinou esse contrato com o Banco Alfa esse contrato já é um negócio jurídico válido, pois atende os requisitos do art. 104 (agente capaz, objeto lícito e forma prescrita em lei).

Esse contrato já tem eficácia? Já, ele já tem eficácia obrigacional, ele já produz efeitos obrigacionais entre as partes. Quando é que a alienação fiduciária passa a ser propriedade fiduciária? Quando registra porque passa a ter eficácia de direito real, vira direito real chamado propriedade fiduciária.

A alienação fiduciária é apenas o contrato, é o negócio jurídico entre as partes. Quando negócio jurídico é registrado no registro de títulos e documentos, deixa de ser apenas uma alienação fiduciária e passa a ter eficácia erga omnes, vira direito real.

É muito interessante para o Banco que haja o registro no cartório de títulos e documentos para que a sociedade saiba que esse veículo está garantido por um contrato anterior de alienação fiduciária. Então, notem, direito real requer o registro.

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Olha o §1o do art. 1361, CC: “Constitui-se a propriedade fiduciária com o registro do contrato, celebrado por instrumento público ou particular, que lhe serve de título, no Registro de Títulos e documentos do domicílio do devedor, ou, em se tratando de veículos, na repartição competente para o licenciamento, fazendo-se a anotação no certificado de registro”.

Esse § 1o está dizendo que se o Washington tem carro, não precisa levar o título ao cartório de títulos e de documentos. Basta fazer a anotação da alienação fiduciária no certificado de registro de veículo.

Vocês concordam com isso? Não. vocês não devem concordar. Onde está escrito “ou” no § 1o, vocês coloquem “e”. É conjunção aditiva.

Pela interpretação literal este artigo está dizendo que basta você levar no Detran que já existe a propriedade fiduciária. Mas Detran é cartório?

Pelo art. 236 da CRFB/88 o Estado não tem o poder cartorial. Este poder de cartório só tem pessoas de direito privado que tenham a permissão para realizar esses serviços públicos por delegação. Então, nunca o Detran poderá fazer papel de cartório. Então, qual é a lógica se for um carro? Primeiro leva no cartório de títulos e documentos e depois também no Detran, pois no Detran não é para fins registrais, mas sim para fins de organização administrativa de circulação de veículos.

O papel do Detran não é ser cartório. O papel dele é de documentar a organização de veículos de uma forma mais simplificada. O papel do Detran é colocar no CRV para fins probatórios, mas não para constituir direito real.

O Banco Alfa esqueceu de anotar esse gravame de alienação fiduciária no certificado de registro de veículo. Washington vendeu esse carro para a Patrícia. Ela foi ao Detran, viu que o carro não possuía gravame e o comprou. Além disso, Washington deixou de pagar as prestações para o Banco Alfa.

Banco Alfa ajuíza busca e apreensão contra você. O que você pode fazer? Opor embargos de terceiro pela súmula 92 do STJ. Por que ela pode opor embargos de terceiro? Porque ela é terceiro de boa-fé. Ela é terceiro de boa-fé porque para fins probatórios, para conhecimento da sociedade, bastaria a Patrícia ir ao Detran.

Não há possibilidade do Banco Alfa retirar o carro pois ela é terceiro de boa-fé. Mas é claro que a conduta do Washington é de estelionato, pois ninguém pode dispor de coisa que não lhe pertence. A coisa pertence ao Banco Alfa, pois está registrado no cartório de títulos e documentos.

A propriedade fiduciária é um direito real de garantia. Alguém pode me dizer outros dois direitos reais de garantia famosos? Penhor e hipoteca.

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Por que a propriedade fiduciária quando registrada como direito de garantia é melhor que o penhor e que a hipoteca para o credor? Bem móvel é objeto de garantia pela via do penhor ou da hipoteca? Penhor, o bem móvel é empenhado.

Por que a alienação fiduciária é melhor do que o penhor? Porque se isso aqui fosse penhor, enquanto o Washington estivesse pagando a dívida, com quem ficaria a posse da coisa? Com o credor Banco Alfa. Sempre quando há o penhor, a coisa empenhada sai das mãos do proprietário e vai para as mãos do credor. Então, o penhor sob o ponto de vista da situação econômica em sociedades como a nossa é extremamente falho, pois retira do Washington a possibilidade de fruir da coisa enquanto ele está pagando.

Existe possibilidade de hipoteca de bem móvel? Navio e aeronave. Vamos supor que pudesse ter hipoteca de carro também. Por que alienação fiduciária é muito melhor do que hipoteca?

Na hipoteca, enquanto você está pagando, a coisa continua com o devedor. Mas a hipoteca não é muito boa para os credores, visto que é direito real de garantia em coisa alheia.

Por que a hipoteca é direito real de garantia em coisa alheia? Enquanto o devedor está pagando a hipoteca, a coisa é dele. O banco é credor da hipoteca, mas a hipoteca se dá sob coisa alheia, que pertence ao devedor.

Por que a alienação fiduciária é muito melhor? Porque quando o banco emprestou dinheiro para o Washington, enquanto ele está pagando, o carro pertence ao banco. O banco tem propriedade. Então, isso é um direito de garantia sobre coisa própria.

Então, se amanhã o Washington não pagar, o banco não tem que tirar nada de você. O carro já é dele.

A Caixa Econômica não faz mais hipoteca. Agora a Caixa só trabalha com propriedade fiduciária. Na medida em que aumenta a segurança jurídica do credor, espande o crédito.

No concurso público, por que é importante saber que é direito real de garantia em coisa própria?

Washington, essa propriedade fiduciária foi registrada. Vamos supor que enquanto ele está pagando as 36 prestações ele faz uma dívida enorme com a Rafaela de R$ 30.000,00 em nota promissória.

Nota promissória é título executivo e a única coisa que ele tem é o carro. Você pode executar o carro dele? Não, pois o carro não é dele. O carro é do banco.

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A vantagem da alienação fiduciária é que o credor tem a segurança de que esse bem é impenhorável por outros credores do fiduciante, pois esse bem não pertence a ele, mas sim ao credor.

Se fosse na hipoteca, o Banco perderia, pois a coisa pertence ao devedor. Qualquer credor privilegiado, como o trabalhista que aparecesse, o Banco perderia a possibilidade de reaver o bem.

Essa é uma grande vantagem de ser direito de garantia em coisa própria.

A alienação fiduciária tem uma segunda vantagem que é boa para o devedor.

Banco Alfa é credor de Washington que está pagando as 36 prestações. De repente, o Banco Alfa faz uma grande dívida com o Banco Real. O Banco Real que é credor do Banco Alfa pode penhorar esse carro que pertence ao Banco Alfa? Não, pois a quarta característica da propriedade fiduciária é que esse patrimônio é um patrimônio em afetação.

Esse assunto é moderno. O melhor cara que escreve sobre patrimônio de afetação no Brasil é o Menin Shaiub (?).

Vamos supor que cada um que está na sala tenha 3 apartamentos. Esses 3 apartamentos servem como garantia para os credores de vocês.

A doutrina moderna vem criando uma coisa bem diferente que é o patrimônio de afetação que são bens que não estão no patrimônio geral do devedor. Eles pertencem ao devedor, estão no nome do devedor, mas formam um patrimônio separado, imune à ação dos credores.

Por que esse carro está imune aos credores do Banco Alfa? Porque ele está afetado, reservado em favor do Washington. Esse bem está reservado ao dia em que Washington acabar de pagar as 36 prestações e fizer o resgate da coisa para ele.

Washington sabe que enquanto ele paga, por mais que a instituição esteja mal das pernas, ele terá a garantia de que aquele bem é intocável, pois é patrimônio de afetação.

Não dá para o Banco Real pegar o bem pois é patrimônio de afetação, mas dá para o Banco Real pegar alguma coisa? O Banco Real pode penhorar os R$ 400,00 que ele paga ao Banco Alfa? Pode, mas é penhora de créditos do art. 671, CPC.

O crédito pode, mas o bem em si não, pois ele é patrimônio de afetação.

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Se a empresa quebra e o carro é levado à falência equivocadamente, como se fosse um bem do falido. O Banco Alfa tem que participar do concurso de credores? Qual é o pedido que ele faz? Ingressa com pedido de restituição. Isso está no art. 85 da lei 11.101/05.

Pergunta de aluno: inaudível. Resposta do prof.: No caso da falência do Banco Alfa, o Washington vai fazer o pedido de restituição pois é patrimônio de afetação.

Eu falo que esse patrimônio de afetação é uma tendência, pois pela lei da construção civil, lei 10.931, qualquer pessoa nessa sala que resolva comprar um apartamento em construção, muitas construtoras já estão colocando que aquele prédio que está sendo construído é um patrimônio em afetação.

Qual é a vantagem para quem compra? É a tranqüilidade, pois se a construtora quebrar nomeio do caminho, o prédio não será atingido pelo credores trabalhistas e tributários, pois o prédio está afetado em favor dos adquirentes da construção.

Eu não vou acabar essa matéria hoje. Eu estou acabando a parte introdutória dessa matéria.

Vocês já v iram que eu tenho como característ icas: desdobramento da posse, constituto possessório, propriedade resolúvel e o patrimônio de afetação.

Amanhã eu vou falar sobre o que acontece quando há o inadimplemento do fiduciante, quais são as conseqüências da mora e do inadimplemento dele, ação de busca e apreensão, vou comparar a alienação fiduciária com o leasing e vou falar sobre a prisão civil do depositário infiel.

Gente, aquele abraço.

Rio, 09.11.2007

Essa é a última aula dessa parte do módulo. Depois, só daqui a duas semanas. Gente, e essa última aula começa de onde eu parei. Eu parei em propriedade fiduciária.

Quais são as quatro características de propriedade fiduciária? Desdobramento da posse, constituto possessório, propriedade resolúvel e patrimônio de afetação. Ou seja, essas são as quatro características. A propriedade fiduciária é um direito real de garantia em coisa própria, pois o bem pertence ao credor.

Então, vocês lembram na aula de ontem qual era o sonho de menino de Washington? Um Uno Mille Fire. E aqui está exatamente o Banco Alfa, onde ele tinha que pagar exatamente 36 prestações de 400 reais, e

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quando você acabasse de pagar, você teria o resgate, a remancipação, você se tornaria proprietário em caráter definitivo.

Começando a aula, oficialmente. O Washington deu o cano no Banco Alfa. O Washington foi inadimplente. Não pagou a prestação para Alfa. Pergunta: o que acontece diante do inadimplemento?

Artigo 1364 do Código Civil. “Vencida a dívida e não paga, fica o credor obrigado a vender, judicial ou extrajudicialmente, a coisa a terceiros, e aplicar o preço no pagamento de seu crédito e das despesas de cobrança e a entregar o saldo, se houver algo, ao devedor”.

Vocês lembram que enquanto o fiduciante está pagando, o que o fiduciante tem? A faculdade de usar e fruir. Mas, o credor fiduciário continua com a faculdade de dispor e reivindicar.

Então, pessoal, se ele continua com as faculdades de dispor e reivindicar, o que acontece quando o fiduciante, que é o Washington, deixa de pagar? Se ele deixa de pagar a instituição financeira pode dispor do bem. O que é dispor do bem? Ela pode pegar este bem, que é a garantia do contrato dele, que a garantia do empréstimo é exatamente o valor da garantia deste bem.

Então ela tem que dispor do valor do bem, para sua satisfação. E é isso que ocorre. Segundo o artigo 1364, ela vai dispor deste bem para se pagar.

Só que eu estou com uma dúvida, gente. Se ela vai dispor deste bem, mas este bem está na posse direta do fiduciante, pois é o fiduciante que está usando e fruindo da coisa, qual é a ação que o fiduciário ajuíza, Flávio Gomes, para pegar o bem, porque o carro está na mão do Washington. Qual é a ação? Busca e apreensão.

Por que a ação é de busca e apreensão, se o nome é reivindicatório? Gente, porque a busca e apreensão é uma ação reivindicatória. Mas ela tem um nomen iuris específico de busca e apreensão.

Mas a busca e apreensão tem a natureza de demanda reivindicatória. É exatamente isto que a instituição financeira faz. Ela ajuíza ação de busca e apreensão pelo procedimento do decreto-lei 911/69, justamente para reaver aquele bem, contra quem injustamente possua.

Eu estou falando em reaver o bem contra quem injustamente o possua. Por que a posse de Washintgon é uma posse injusta? Alguém pode me falar?

Pelo seguinte: porque no momento que ele não pagou, por exemplo, era dia 05, e ele não pagou, ele foi automaticamente constituído em quê? Mora. Em mora ex re.

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O que é mora ex re? É a mora automática, no art. 397 do Código Civil. O cara não pagou, automaticamente ele caiu em mora. Quando ele cai em mora, a posse dele já é considerada injusta, por isso que você vai reaver.

Agora, o que eu peço a todos os meus alunos, peguem os seus Códigos e abram o decreto-lei 911/69. Abram ele, porque ele foi profundamente alterado, com a entrada em vigor da lei 10.931/2004.

Ele foi profundamente alterado, porque o decreto-lei 911/69 era uma aberração, ungida pelo regime autoritário. E, agora, na minha opinião ele ficou muito bom. Abram o decreto 911 aí, ele ficou muito bom agora com as investidas todas provocadas pela lei 10.931/2004.

O que acontece? Primeira coisa, gente. Olha como é bom conhecer obrigações para depois conhecer direitos reais. Por que é se você já foi constituído em mora, Washington, o que diz o artigo 3o do decreto-lei, que só será concedida liminar, a instituição financeira só consegue liminar se você devedor, Washington, for notificado pelo cartório de títulos e documentos, comprovando o protesto cambiário?

Por que ele precisa protestar se já está em mora? Porque essa necessidade do protesto ou da notificação do cartório de títulos e documentos não é para constituir em mora. Já foi constituído desde o dia do vencimento. É para comprovar a mora. Essa é uma de caráter comprobatório. Só para comprovar.

Então, sempre a instituição financeira tem que comprovar a mora. Comprovada a mora, através do protesto cartorário ou da notificação do cartório de títulos e documentos, a instituição financeira consegue a liminar.

E, agora,.começam as grandes mudanças. Por quê? Gente, o regime antigo era péssimo, agora olha o regime atual como ele gera segurança jurídica. Como ele gera incentivo à atividade econômica.

É concedida essa liminar, olha, quem está acompanhando pelo art. 3o. Você, Washington, tem 5 dias para fazer o pagamento integral da dívida. Vamos entender o que é pagamento integral?

Olha só pessoal. Washington, vamos supor que esse carro, de 20 mil reais, você já tinha pago 6 mil reais e estão faltando 14 mil, não é Washington? Só que você não pagou 3 prestações que totalizam 1.800,00 reais.

Então, olha gente, todo mundo presta atenção que é muito importante isso. O saldo devedor em aberto dele é 14 mil. O que falta pagar é 14 mil. Mas, o débito em atraso é de 1.800,00 reais.

O que diz essa lei agora no parágrafo segundo do art. 3o. Diz que a única chance de o devedor fiduciante livrar a cara é fazer o pagamento integral do saldo devedor em aberto.

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Quem paga os 14 mil qual a conseqüência? A conseqüência é que ele vai consolidar a propriedade. Cai a garantia, e a propriedade do Washington se torna plena. A propriedade que era resolúvel termina e ele se torna proprietário pleno.

Vou fazer uma pergunta para vocês. Pode o Washington chegar na instituição financeira e falar assim: instituição eu não quero pagar o saldo devedor em aberto, eu vou só pagar aquilo que está em atraso.

Eu só quero purgar a mora. Ele pode? Claro que pode. Mas a lei foi mané, a lei não diz isso. Então, o que eu quero dizer? Ao lado do parágrafo segundo do art. 3o vocês digam que o devedor tem duas opções para evitar que essa liminar possa gerar a perda do bem.

Quais são essas duas opções? Ele paga integralmente o bem e aí já se torna dono da coisa em definitivo ou então o quê? Ele purga a mora pelo art. 401 do Código Civil. Mas, Nelson, se a lei não disse isso é porque a lei ela não possibilitou. Vamos ver se alguém entende de parte geral.

A possibilidade do devedor purgar a mora é um direito subjetivo do devedor ou um direito potestativo? É um direito potestativo. A possibilidade de purgar a mora é um direito potestativo.

Ou seja, se o devedor na contestação quiser purgar a mora, ele vai submeter o credor, toma aqui está o atraso. E o que acontece quando ele paga o atraso? Normaliza a situação e ele volta a pagar as prestações que faltam. Continua a propriedade fiduciária no estágio anterior. Sempre isso é possível.

Pessoal, se o devedor Washington, se você nesses 5 dias não purgar a mora ou não realizar o pagamento integral, a instituição financeira vai consolidar a propriedade (art. 3o, parágrafo 1o).

Sabe o que significa isso pessoal? Significa que a instituição financeira vai pegar aquele carro e naquele carro não tinha uma anotação no CRV – Certificado de Registro de Veículo, dizendo que ele estava submetido à alienação fiduciária?

Aquela anotação vai cair, vai ser cancelada, e o novo proprietário pleno desse carro passa a ser a Alfa. Ela era a proprietária resolúvel. Agora se tornou a proprietária plena. O carro é dela sem qualquer restrição. Não vai voltar mais para ninguém. Ela fica com o bem.

E se ela fica com o bem, notem, ela ficou com o bem em que momento, na sentença? Não. Cinco dias após a efetivação da liminar, ou seja, a liminar foi efetivada por quê? Porque o carro foi apreendido.

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Efetivou a liminar, ela se torna proprietária. Isso é bom para ela. Isso é ótimo. E como é que era antes? As instituições financeiras só tinham chance de vender o veículo antes quando chegava a sentença.

E quando chegava a sentença, oito anos depois, sabe o que acontecia? O carro já estava um lixo, não valia nada. Estava completamente estragado, ou seja, quem é que queria financiar carro novo no Brasil, com uma legislação tão medíocre?

Agora não, qual que é? Não pagou no dia o teu contrato de alienação fiduciária? Cinco dias depois da busca e apreensão efetivada, já vai lá e consolida. Consolida significa que ela pode ficar com o carro para ela ou transferir para terceiros, vender. Eu não vim aqui para ler lei. Eu vim aqui para falar o que a lei não falou. Primeiro, se ela fica com o carro Washington, o carro não vale R$ 20 mil?

O seu saldo devedor em aberto não é R$ 1.800,00? Se ela vender o carro por R$ 20 mil, o que ela tem que fazer? Restituir para ele tudo aquilo que diz respeito ao que ele pagou. Restituir para o Washington toda a verba anterior, senão haveria enriquecimento sem causa.

Ou seja, repetindo, ela vai e recebe R$ 20 mil, mas se ele já pagou X, ela vai restituir, toma Washington aquilo que você já pagou. Nelson, de onde você tira isso? Eu tiro do art. 53 do CDC.

O art. 53 do CDC torna nula todas as cláusulas contratuais, e o CDC é explícito, nulas todas as cláusulas contratuais encontradas de alienação fiduciária, façam previsão de que haverá, não apenas a perda do bem como a perda de todas as prestações.

Ele não vai perder as prestações. Você vai ter de volta as prestações. É claro que das prestações que você pagou você terá uma multa, mas você terá essas prestações.

Então, o primeiro aspecto, gente, tem que haver restituição. Agora, o segundo aspecto é o mais legal. Vocês estão concordando comigo que a instituição financeira pode ficar com o carro? Pode. Alguém aqui na sala vê algo de errado?

Tem alguma agressão, algum dispositivo do Código Civil, quando tem uma norma e diz que o credor pode ficar com a coisa? Existe uma cláusula que os civilistas sempre consideravam como nula, que é a cláusula comissória.

O que é a cláusula comissória? É uma cláusula inserida no contrato dizendo que, caso o vendedor não pague a dívida, o credor poderia ficar com a coisa.

Nelson, por que essa cláusula comissória normalmente é nula? Tem razão. Essa cláusula comissória normalmente é nula por uma questão muito simples.

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Se, por acaso, você está pagando um apartamento de um milhão, ele está hipotecado, certo, o apartamento vale um milhão, mas a sua dívida é de duzentos mil, mas em garantia você tem um apartamento de um milhão.

Se você não paga a dívida de duzentos mil e o credor tiver um apartamento de um milhão, o que é isso? Isso é enriquecimento sem causa.

Então, a finalidade da nota comissória é evitar o enriquecimento sem cláusula do credor. O que vocês acham, então do art. 1365 do Código Civil. Olha o que ele diz: “É nula, a cláusula que autoriza o proprietário fiduciário a ficar com a coisa alienada em garantia, se a dívida não for paga no vencimento”.

O que esse art. 1365 está proibindo? A cláusula comissória.

Eu pergunto: esse artigo 1365 mantém a eficácia ou perdeu a eficácia? Claro que ele perdeu. Por que ele perdeu a eficácia? Porque o § 1o do art. 3o desse decreto-lei 911, o que ele está dizendo?

Ele está dizendo que a instituição financeira pode ficar com a coisa. O § 1o do art. 3o ele aceita a cláusula comissória. Ele aceita por que a lei está dizendo que o credor pode ficar com o carro para si.

Agora, o único cuidado, Washington, é: pode ficar com o carro, mas tem que restituir as prestações que você já pagou. Só esse cuidado deve ser adotado.

Então eu não vejo ilegalidade nenhuma que a instituição financeira tem que ficar com a coisa à medida que o consumidor receba de volta os valores que forem pagos.

Isso é questão de concurso. A matéria é nova e exatamente a lei não conseguiu fazer a previsão de todas as situações. Agora eu vou continuar.

Olha que interessante. Você Washington não pagou, nem purgou a mora. Não pagou nem purgou a mora e o que aconteceu? A liminar foi efetivada, e a propriedade foi consolidada.

Eu pergunto; Washington ainda pode contestar essa demanda? Pode. Diz no caso o § 3o do decreto-lei 911: qual é o prazo que ele tem para contestar? 15 dias. Ele tem 15 dias para contestar.

Quando ele for contestar, o que aconteceu com o carro? O seu carro já está no setor financeiro e já foi vendido.

Nelson isso não existe. Existe. Vocês não estudam processo civil? É a mesma coisa que acontece agora na nova legislação da execução de quantia certa na fase de cumprimento de sentença do art. 475 do CPC.

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Quando você vai fazer impugnação ao cumprimento de sentença, cara, já dançou. A mesma coisa na nova execução do tipo extrajudicial.

Quando você for exatamente embargar aquela execução extrajudicial, o credor já pegou o seu patrimônio. É isto que está acontecendo. Então isso não é uma inovação só aqui não. Isso é uma tendência do processo civil de efetividade do valor do credor.

Para que eu vou contestar, não é, Washington, se o carro já foi embora? É esse que é o grande barato. O Washington pode contestar, alegando que ele não foi inadimplente por que ele quis. Ele, na verdade, foi conduzido ao inadimplemento por uma série de cláusulas abusivas que estavam inseridas nessa relação de consumo.

Sabe o que o Washington consegue se ficar provado que realmente você é que foi levado agora, em razão dessas cláusulas abusivas? Vocês estão prontos, pessoal?

Diz o § 6o: na sentença que decretar a improcedência da busca e apreensão – então a busca e apreensão serão julgadas improcedentes, por falta da legitimidade da busca e apreensão – o juiz condenará a instituição financeira a pagar uma multa de 50% do valor do financiamento, além das perdas e danos.

Multa é perda e danos? Não, multa é sanção. Perdas e danos é o prejuízo que você provar. A multa é automática, uma sanção. Agora, perdas e danos ele vai ter que provar.

Mas isso é para mostrar o quê? Primeiro eu quero ouvir de vocês. Se Washington chegou na contestação e falou assim: Senhor Juiz eu fui levado ao inadimplemento, por essas causas abusivas aqui, ou seja, ele está usando do dispositivo do § 3o, legal, o que o Washington está fazendo toda vez que ele chega na defesa e diz: Senhor Juiz, eu é que fui levado ao inadimplemento.

O que é isso que ele está fazendo? Isso é um pedido contraposto. Ele está contra atacando para dizer que ela é que é responsável pela sua mora, pelo seu inadimplemento.

É por isso que a sentença que julga improcedente a busca e apreensão, além de evitar o erro da instituição financeira, vai te dar essa multa de 50%, mais as perdas e danos dentro desse caso concreto. Essa é que é a noção do pedido contraposto, o contra ataque nos próprios autos.

Então, o que vocês acharam dessa legislação? O que ela tem de bacana? Ela faz o equilíbrio entre o credor e o devedor. Ao mesmo tempo em que o credor é beneficiado pela efetividade, o que diz a lei?

Se a instituição se precipitar o credor pode depois conseguir a improcedência e obter a multa. E por que você vai ter a multa? A propriedade já consolidou e já vendeu.

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Então, esse é o procedimento novo. Agora, o melhor vem agora. E se a instituição financeira conseguiu uma liminar, mas ela não apreendeu o carro, não encontrou o carro e nem Washington pagou essa dívida. O que a instituição financeira faz? Converte a busca e apreensão em ação de depósito.

Então, a ação de depósito já não está nessa lei, ela já é retida precipuamente pelo CPC, art. 902 e seguintes.

Mas eu só quero que vocês me digam o seguinte: ação de depósito. Qual é a finalidade da ação de depósito? A finalidade da ação de depósito é fazer com que o bem que não foi entregue seja depositado pela instituição financeira ou que a dívida seja paga.

Na ação de depósito o bem não é depositado pelo devedor. Qual é a conseqüência? Prisão civil de até um ano pelo art. 652 do Código Civil.

Afinal, onde está a inconstitucionalidade da prisão do depositário infiel no contrato de alienação fiduciária? Eu não quero 500 argumentos. Eu me contento com dois argumentos.

Primeiro lugar, pessoal. Como é que é a posição hoje do Supremo com relação à prisão civil do depositário infiel nesses contratos? É pela prisão ou é contra? O STF, por oito votos a zero, está em andamento uma ação, todo mundo anota: é o RE 466343, oito votos a zero contra a prisão.

O STF vai mudar seu entendimento, só estão faltando três votos. Está suspenso e daqui a pouco vêm esses três votos e eu vou explicar por que ficou suspenso.

Mas, por hora, quais são os argumentos dizendo que esse art. 652 que trata da prisão civil tem vício de inconstitucionalidade.

Primeiro lugar, pessoal, a prisão civil do depositário infiel está no art. 5o, inciso LXVII, da CRFB/88, que fala que os dois últimos casos de prisão são de alimentos e do depositário infiel.

Então, eu pergunto: se a norma constitucional trata dessas hipóteses de prisão, e elas estão catalogadas no art. 5o, que é o artigo que cuida das garantias fundamentais, essas normas têm que ser interpretadas de modo restritivo.

Certamente, por quê? Elas, na verdade, ofendem o direito de liberdade da pessoa humana. Perfeito. E se ela é interpretada de forma restritiva, onde é qu` e está a inconstitucionalidade dessa prisão?

É o seguinte: qual a natureza de um contrato de depósito típico. Qual é a natureza de um depósito típico? Quando eu, Nelson, entrego para a Cíntia este código para você ser depositária por algum tempo, qual é a sua obrigação no final do contrato? Restituir.

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A obrigação dela é guardar, conservar e restituir ao final do contrato. Então eu pergunto Cíntia: quando o Washington compra um carro da instituição financeira Alfa, e ele está pagando 36 prestações de quatrocentos reais, e ele é chamado de depositário.

Quando ele está pagando as prestações o objetivo dele como depositário é restituir a coisa ao final do contrato? Não. Ao contrário, o objetivo dele é ficar com a coisa para si.

Então, se o objetivo dele é ficar com a coisa para si, este não é o depósito típico. Este é o depósito atípico, porque ele não fica com a coisa para restituir. Ele fica com a coisa para si.

Essa é uma primeira questão. E ainda dentro dela, é mais importante talvez. Que o Ministro Carlos Brito ressaltou para provar que este é um depósito atípico, e é um depósito atípico de verdade, a questão é: no contrato de depósito normal, clássico, enquanto o depositário tem a coisa ele pode usar e fruir da coisa?

Ele não pode usar e fruir. Ele só pode conservar. Agora eu pergunto: Washington, você como depositário pode usar e fruir do carro? Pode.

Que depósito é esse em que o possuidor direto não pode usar e fruir? Isso desnatura a natureza do depósito. Se desnatura a natureza dele, e desnaturar é da natureza, se ele é desnaturado não cabe a prisão.

A prisão só caberia nas hipóteses de depósito típico. Esse é o primeiro argumento.

Agora, o segundo argumento é um argumento ainda mais amplo. Por que quem defende a tese de que não há prisão por que é um depósito atípico, ainda aceita a prisão do depositário quando é depósito típico? Aceita, ainda aceita.

Agora, tem uma segunda posição que não aceita a prisão nem de depósito típico, de nenhuma espécie de depósito. Qual? É aquela posição que vocês já conhecem, que o Brasil aderiu ao pacto de São José da Costa Rica, nós aderimos em 1992 a esse pacto, e por que essa é a questão que eu quero saber exatamente de vocês.

Esse pacto diz que só caberia nos países signatários prisão civil por alimentos. Por depósito nunca caberia. Só por alimentos.

Então, eu pergunto: por que essa convenção é tão poderosa, a ponto de passar por cima do art. 5o, LXVII da CRFB/88? Por uma questão prática. Existem dois tipos de convenções que o Brasil pode realmente realizar: convenções do direito patrimonial e convenções sobre direitos humanos.

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Quando as convenções do direito patrimonial entram no nosso ordenamento e internalizam por força de lei ordinária. Esse é o sistema dualista.

Mas, quando a convenção é relativa aos direitos humanos, ela entra no nosso sistema interno por força de lei fundamental, com força constitucional.

Isso é claro porque o art. 5o, § 2o da Constituição, versa sobre o chamado bloco de constitucionalidade. O que é o bloco de constitucionalidade? É uma cláusula geral no art. 5o, parágrafo único que diz: os direitos fundamentais não são apenas aqueles que estão na Constituição.

Também são aqueles que estão incorporados por tratado ou convenções internacionais. Portanto, esse é um bloco de constitucionalidade.

E se é o tratado que versa sobre os direitos fundamentais, além do art. 5o, § 2o que diz que ele é recepcionado por força de norma fundamental, eu pergunto: há necessidade de um decreto do poder executivo para que esse tratado possa ser aplicado no direito brasileiro ou não?

Por que não há necessidade de um decreto executivo? Porque o art. 5o, § 1o da Constituição fala que as normas dos direitos fundamentais têm eficácia imediata.

Como é o nome dessa eficácia imediata? Eficácia vertical. Por que se trata de eficácia vertical? Porque aqui estão os direitos fundamentais, aqui está exatamente o Juiz e aqui está o legislador.

Eficácia vertical quer dizer quando vem uma norma de direito fundamental, ela se põe de cima para baixo, e o legislador tem que acatá-la. Que legislador? Legislador subalterno, legislador infraconstitucional.

O que é o legislador infraconstitucional? É o cara que fez o artigo 652, que tem que acatá-la. Então, isso aqui já nasce com o vício de inconstitucionalidade.

Mas isso é tão óbvio. Por que o STF parou? Porque o Ministro Celso Mello vai dar os 9 a 0. Ele falou que precisa parar por que essa discussão é muito importante à luz da emenda constitucional 45, que trouxe o art. 5o, § 3o, da Constituição, todo mundo leia comigo neste instante, o que ele traz de diferente:

Art. 5o, parágrafo 3o: “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”.

Ou seja, ele está dizendo que só um estudo maior para, efetivamente, chegar a que conclusão? Há ou não necessidade desse tratado

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ter sido aprovado com esse quorum qualificado. A tendência de se dizer é: esse quorum qualificado é só para as convenções que tenham sido subscritas após a emenda 45.

As anteriores não se submetem a esse quorum qualificado. Elas já entram no ordenamento com essa força de norma fundamental. Então é só vocês entenderem isso. Essa é a discussão que agita o STF hoje em dia, no tocante à prisão civil.

Então, vamos à propriedade superficiária. Olha, quem for trabalhar com o Código Civil, nesta matéria, pode acompanhar comigo pela leitura do arts. 1369 ao 1377.

Primeiro ponto. Imagine que esse terreno é do Flávio. O que acontece, Flávio, você recebeu isso de herança. É um terreno enorme que você tem, na Barra da Tijuca, que você recebeu de herança. Só que, apesar de você ter recebido esse terreno, você não tem muito dinheiro.

Aí chega um incorporador de uma construtora forte do Rio de Janeiro. Vamos fazer o seguinte Flávio: nós queremos fazer um shopping. E nós queremos edificar no seu terreno. Aí o Flávio diz: beleza, vamos fazer um contrato?

E aí o Flávio faz um negócio jurídico, um contrato, com essa construtora, pelo qual ela vai edificar a acessão que é o shopping.

Quando esse shopping ficar pronto e esse negócio jurídico for registrado no ofício imobiliário, essa construção será de propriedade do construtor, enquanto o solo continua a pertencer ao proprietário Flávio.

Notem, o Flávio que é o proprietário do solo, continua sendo proprietário. Mas esse cara que fez a construção passa a se chamar proprietário superficiário. Duas propriedades superpostas, horizontalmente fracionadas. Tem dois proprietários ao mesmo tempo.

Essa possibilidade de fracionamento de uma propriedade em duas, um fica com o terreno e o outro adquire a propriedade das acessões.

Isso quebra ou suspende qual o princípio milenar que vocês conhecem e que estudaram comigo? Suspende o princípio da acessão. Qual é o princípio da cessão? Que esta construção teria que pertencer a quem? Ao dono do solo.

Ou seja, qual o princípio clássico do artigo 1243 que é o acessório segue o principal. Esse princípio é suspenso. Por que esse princípio é suspenso? Porque na vigência da propriedade superficiária, eu não aplico o princípio da acessão.

Haverá um fracionamento das propriedades. Mas isso é bom? É ótimo. É o famoso juntar a fome com a vontade de comer. E por que juntar a

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fome com a vontade de comer, meu amigo Washington? Olha como esse instituto dá função social.

O Flávio é o proprietário. Esse terreno é dele e ele não tem dinheiro. Se esse terreno ficasse largado, abandonado, o que ia agir sobre o seu imóvel? Aquelas sanções do estatuto da cidade, contra o proprietário é desidioso.

Mas, agora não. Agora o cara construiu no seu imóvel e esse imóvel está recebendo função social. Aí o Flávio fala: mas o que eu quero com isso?

Você ganha, por que esse cara aqui vai ter que te pagar, por que está fazendo uso da sua propriedade. Então é ótimo para você? Olha, por que é ótimo para o construtor?

É ótimo para o construtor por que ele não vai ter que desembolsar uma grana enorme comprando o terreno. Então, por isso que eu digo que é juntar a fome com a vontade de comer para os dois.

Portanto, gente, abra o Código Civil no artigo 1369: “O proprietário pode conceder a outrem o direito de construir ou de plantar em seu terreno, por tempo determinado, mediante escritura pública devidamente registrada no Cartório de Registro de Imóveis”.

Notem, aqui novamente, só se pode falar em direito real imobiliário quando o negócio jurídico é objeto de registro. Enquanto não se registra é impossível falar em direito de superfície. É impossível se falar em propriedade superficiária, antes desse registro.

Vai começar o show de perguntas. Perguntas que podem ser respondidas no art. 1369.

É possível na opinião de vocês que o Flávio seja dono de um terreno e ele tem um prédio velho lá. O prédio está caindo aos pedaços. O prédio tem 90 anos, e está pessimamente conservado.

Aí vem uma empresa dessa de publicidade, muito bacana e fala assim: Flávio nós queremos a propriedade superficiária e nós vamos ficar com esse prédio que você já fez e vamos reformar todo ele, e vamos ficar com a nossa propriedade superficiária.

Nós vamos reformar todo ele e ficar com ele. É possível isso? Entenderam gente?

No primeiro exemplo o que aconteceu? Não tinha nada construído e veio essa construtora, ela fez a acessão e ela se tornou proprietária da acessão.

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Nesse segundo o proprietário superficiário não quer construir nada. Ele quer apenas pegar o que já tem e reformar e ser proprietário disso: isso é possível? Pela leitura literal do código não é.

E olha o que diz o art. 1369: “O proprietário pode conceder a outrem o direito de construir”, ou seja, a propriedade superficiária, pela leitura bem pessoal do artigo 1369, esse direito de superfície se daria sobre um bem incorpóreo.

Por que incorpóreo? Porque no momento em que foi feito o contrato, nada existe ainda. O que existe é o projeto de construir. Então, o Código Civil na letra da lei, não aceitaria essa possibilidade.

Mas sabe o que eu quero falar com vocês? Pode sim. Sabe como se chama isso? Superfície por cisão.

O que é superfície por cisão? A quem pertencia antes essa construção e esse prédio? Ao Flávio, não é? No instante em que houver uma superfície, o que haverá? Uma cisão. Que cisão? Só o terreno continua com o Flávio. O prédio já pertence ao proprietário superficiário.

Nelson, de onde você tirou isso, se o Código não fala? Isso é uma interpretação do art. 1369 conforme a Constituição, porque a Constituição não quer dar função social?

A superfície com cisão não é uma excelente forma de dar função social aos prédios destruídos no Rio de Janeiro, que o proprietário não faz nada neles, por que não tem grana, não tem vontade? Não é ótimo alguém pegar e falar: a propriedade é minha e eu vou revitalizar a cara da cidade. Nelson dá para a gente ir atrás de você? Dá para ir atrás no enunciado 250 do CJF. Olha o que diz o enunciado 250: “admite-se a constituição do direito de superfície por cisão”. Ou seja, o pessoal chama de interpretação bem progressista do art. 1369 do Código Civil.

Flávio esse direito de superfície que você concedeu ao construtor, essa propriedade que a construtora adquiriu sobre as acessões é uma propriedade perpétua ou resolúvel? Resolúvel. A propriedade superficiária tem natureza resolúvel.

Vou dar um exemplo: o Flávio em 2007 ele registrou o contrato de superfície. Sabe o que vai acontecer com esse contrato? A construtora será proprietária desse shopping, dada as acessões que nós fizemos por 30 anos.

Em 2037 o que vai acontecer com a propriedade e as acessões que a construtora fez com ela? Para quem voltam as acessões? Para o proprietário do solo. Ele volta a ser proprietário de tudo.

Por quê? Porque a propriedade se resolveu, em virtude do exemplo, que aqui é futuro e certo. Qual? O tempo. O termo aconteceu e, aí, ele passa a ser proprietário de tudo.

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É por isso que eu pedi que vocês anotassem o que no caderno? Que só no momento em que ocorre o termo é que o proprietário do solo vai adquirir as acessões.

Ou seja, houve uma suspensão ao princípio da acessão. Por que uma suspensão? Porque no final do contrato a acessão vai acontecer? Vai. Por quê? Porque o dono do principal vai se tornar dono do acessório.

E olhem se isso não é verdade no art. 1375: “Extinta a concessão, o proprietário do solo passa a ter propriedade plena, independente de indenização se as partes não houverem estipulado o contrário”.

A lei fala em concedente e em concessionário. Mas eu prefiro o termo da doutrina: proprietário do solo e superficiário.

Ou seja, gente. Se por acaso a construção foi criada por esse cara, o proprietário do solo vai adquirir a acessão pela primeira vez. Concordam? Mas, e se for superfície por cisão? Ele vai adquirir a acessão pela primeira vez? Ele vai resgatar a acessão.

Mas, esse artigo que eu li, que é o art. 1375, diz o seguinte: qual é a regra? É que, quando volta para o proprietário no silêncio do contrato, ele tem que pagar pelo valor das acessões ou não? Não.

Gente, alguém nessa sala pode me dizer? Por que é que o Flávio, depois de 30 anos ele vai ficar milionário, tendo um shopping para ele, sem pagar nada? Como é que ele consegue isso?

Pelo seguinte: é porque a construtora, naqueles 30 anos ela ganhou todo o dinheiro que ela precisava, explorando economicamente aquela área.

Ela se beneficiou, por que naqueles 30 anos ela que obteve todos os ganhos econômicos relativos à propriedade superficiária. A única coisa que o Fábio recebe, se for convencionado nesses 30 anos, é o solarium.

O que é um solarium? O solarium é uma espécie de aluguel, que você recebe por essa situação.

Veja se não é isso que diz o art. 1370: “a concessão da superfície será gratuita ou onerosa”. Ou seja, ela também pode ser gratuita.

Se onerosa, estipularão as partes o pagamento. Que pagamento? O solarium. Se ele será feito de uma só vez ou parceladamente. É essa que é a situação.

Agora, notem amigos. Está dizendo no primeiro artigo que vocês leram na aula, que é o artigo 1369, que este contrato feito entre o proprietário e

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o superficiário tem que ser um contrato com prazo ou pode ser contrato sem prazo.

O que vocês acham? Tem que ser com prazo. Aliás, está lá, por tempo determinado, tem o prazo sempre. Ou seja, o Código Civil não admite que se faça direito de superfície sem prazo.

Por que ele não admite? Porque seria muito perigoso. Por que seria muito perigoso? Se houvesse aqui uma relação de superfície sem prazo, o que o Flávio poderia fazer no segundo ano? Interpelar o proprietário superficiário e dizer: eu quero isso de volta. Eu quero isso tudo para mim. Acabou.

As superfícies, gente, normalmente elas são feitas para durar 30 anos, 50 anos, 70 anos. Ela não pode se submeter instabilidade a essas situações.

O que vocês acham do art. 1372: “O direito de superfície pode transferir-se a terceiros e por morte do superficiário, a seus herdeiros”.

Amigos, aqui está a propriedade superficiária. É de 30 anos o meu exemplo. A minha pergunta é: quando deu 14 anos de superfície, pode a construtora vender essa propriedade superficiária? Joãozinho pode comprar? Pode. Por quê? Porque isso é uma propriedade como outra qualquer.

Ela pode ser alienada gratuita ou onerosamente. Mas, sabe qual é a pergunta que vai cair no concurso? Vamos ver se vocês estão bem em matemática. Quantos anos mais Joãozinho poderá ser proprietário? 16 anos. Por quê? Já não tinham passados 14 anos?

Se a propriedade da construtora é resolúvel, a de Joãozinho também é resolúvel, por que eles adquiriram da mesma maneira. Então é possível sim, tranqüilamente.

E mais, vamos supor que fui eu, Nelson, que adquiri a superfície. E quando deu 14 anos eu morri. O que aconteceu com essa propriedade superficiária? Vai para os meus herdeiros. Por quantos anos? 16 anos, também.

Ou seja, o art. 1372 fala claramente que o direito de superfície é plenamente transmissível. Agora, notem, é sempre transmissível dentro do prazo fixado no negócio jurídico, porque essa propriedade é resolúvel. É da essência dela.

Olha o que diz o art. 1359: “Resolvida a propriedade pelo implemento da condição ou pelo advento do termo, entendem-se também resolvidos os direitos reais concedidos na sua pendência, e o proprietário, em cujo favor se opera a resolução, pode reivindicar a coisa do poder de quem a possua ou detenha”.

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Então, o terceiro recebe a propriedade com a característica resolúvel anterior, e mais eu quero ver se vocês são corajosos. Se eu sou o superficiário, eu posso dar essa minha propriedade em garantia, em hipoteca?

Gente, eu posso constituir ônus reais sobre ela? Tranqüilamente, eu posso hipotecá-la. Eu posso fazer uma propriedade fiduciária em cima dela. Eu posso fazer ônus reais sobre ela.

Eu fiz uma hipoteca da propriedade superficiária e você é a credora. Eu não te paguei a dívida dos 300 mil. O que é que você vai penhorar como credora hipotecária? Tudo? Não, ela só vai penhorar a propriedade superficiária.

Ou seja, o que vai ser levado à venda é a propriedade superficiária. Se uma pessoa conseguir arrematar isso em hasta pública, Flávio você continua a ser o dono do terreno e o arrematante passa a ser o novo proprietário superficiário. Por quantos anos? Pelo prazo que faltar exatamente naquela disposição contratual.

Olha o que diz o enunciado 249 do CJF: “a propriedade superficiária pode ser autonomamente objeto de direitos reais de gozo e de garantia, desde que o prazo não exceda a duração da concessão da superfície”.

Amigos, eu quero ver se vocês estão bem na aula de Direito Tributário. O município vai cobrar IPTU de quem? Do Nelson, que é o superficiário ou do Flávio que é o proprietário do solo? Do Flávio. Dêem uma olha no art. 1371: “o superficiário responderá pelos encargos e tributos que incidirem sobre o imóvel”.

Pelo art. 1371 quem vai pagar, então, o IPTU? O superficiário. Vocês concordam com esse artigo? Vocês não concordam. Nem eu. Sabe por quê? Quando está escrito no art. 1371 “responderá” não é como contribuinte, é uma responsabilidade solidária.

O contribuinte obviamente é o proprietário do solo. É ele que é o contribuinte. E mais, lei ordinária não pode criar novo fato gerador para o contribuinte. É só lei complementar, pela Constituição Federal, art. 146. Agora, nada impede que lei ordinária crie hipótese de responsabilidade solidária.

Então, aqui vocês vão colocar no art. 1371 ao lado do superficiário responderá solidariamente, porque o art. 128 do CTN permite que a lei ordinária possa criar responsabilidade solidária. Sabe o que isso quer dizer? Que o município pode ir contra quem? Um ou outro, ou os dois.

Agora, eu quero saber de vocês: pode ter uma cláusula contratual entre eles, dizendo qual vai pagar? Pode, mas isso não é problema do município. Se o município for no Flávio e você tiver repassado esse caso para mim, você tem regresso contra a minha pessoa.

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Então, nesse particular aqui pessoal, olha o enunciado 94 do CJF: “a parte tem plena liberdade para deliberar no contrato, o rateio de encargos e tributos que incidirão sobre a área objeto de concessão de superfície”.

Gente, a mesma coisa quando vocês alugam um apartamento. Quem é que paga realmente o IPTU, não é o proprietário? Quem paga o condomínio, não é o proprietário? Mas o que eles dispõem no contrato? Que o pagamento tem que ser feito por quem? Pelo locatário. Ou seja, se o inquilino não pagar o proprietário paga e, depois, cobra do locatário. Então, existe essa economia privada, que é para facilitar a vida dessa gente toda.

Vamos supor que eu quero vender a superfície. Eu tenho que te dar direito de preferência? Tem.

E se você quiser vender o solo, você pode? Pode. Olha o que diz o art. 1373: “Em caso de alienação do imóvel ou do direito de superfície, o superficiário ou o proprietário tem direito de preferência, em igualdade de condições”.

A única coisa que o Código não diz é: e se esse direito de preferência não for concedido? Qual é a conseqüência? Eu não dei direito de preferência para você Flávio? E vendi minha superfície para o João.

Vocês vão ao lado desse artigo fazer uma remissão ao art. 504. Por que vai se aplicar ao lado do art. 1373. Por que vai se aplicar a mesma norma que se aplica ao condomínio. O condômino, quando vende uma fração do seu condomínio, não tem que dar preferência a outro condômino?

Pois é, e o art. 504 o que ele diz? Ele diz, pessoal, que se essa preferência não for dada, aquele outro que não foi notificado tem o prazo de 180 dias para depositar o dinheiro.

E quando ele deposita o dinheiro o que acontece com aquela venda? Será desconstituída. Aquela venda será desconstituída porque no prazo decadencial de 180 dias ele foi lá e pagou aquele valor. Então, é só para a gente complementar uma coisa com a outra.

Vamos a outro exemplo: está rolando um prazo de superfície de 30 anos. Quando deu 28 anos, vem o Estado do Rio de Janeiro e quer desapropriar essa área. Quem vai ser indenizado? O proprietário do solo ou o superficiário?

Quem está colando no Código Civil vai ler no art. 1376 que tem uma saída meio estranha. Ele diz: “no caso de extinção do direito de superfície em conseqüência de desapropriação, a indenização cabe ao proprietário e ao superficiário, no valor correspondente ao direito real de cada um”.

Então, o que a doutrina mais antenada diz, notem tudo vai depender do tempo em que se desenvolve a desapropriação. Se a

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desapropriação ocorre já chegando ao final da superfície, quem é o mais prejudicado?

O proprietário do solo, porque ele já estava com aquela expectativa de ser proprietário das acessões e o superficiário já tinha fruído de todos os direitos econômicos que eram de seu interesse.

Então qual é a visão doutrinária? Quanto mais próximo do final da superfície, maior é a indenização do proprietário do solo, em detrimento do superficiário.

Agora, se essa desapropriação se der no início da concessão, é claro que a verba maior se dirigirá ao superficiário, pela frustração de todas as expectativas que ele tinha de obter rendimentos daqui.

A outra situação que eu tenho é a seguinte: Flávio, você me deu o direito de superfície para que eu fizesse um shopping nesse seu terreno. Ele me deu a superfície, passou o prazo de dois anos, e eu nada de construir o shopping. O terreno continua vago.

O que o Flávio pode fazer, à medida que ele notifique o superficiário, e o superficiário nada de construir, o que eu posso fazer? Art. 1374: “antes do termo final resolver-se-á a concessão se o superficiário der ao terreno destinação diversa daquela para que foi concedida”.

Onde está “destinação diversa” sabem o que vocês têm que colocar? Não concedeu função social à propriedade. Toda vez que não foi concedida a função social ao bem, é claro que houve o inadimplemento de uma obrigação de fazer por parte do superficiário. O inadimplemento de uma obrigação de fazer.

E esse inadimplemento gera a resolução contratual, à luz do art. 475 do Código Civil. Art. 475, resolução contratual pelo inadimplemento. Ou seja, gente, a colocação que eu faço é: o proprietário não precisa ficar esperando acabar o prazo de 30 anos.

Você já deve agir, à medida que a função social é negligenciada pelo superficiário. Só que, eu tenho uma coisa a lhes contar. É que existe direito de superfície fora do código civil? Existe, gente, no Estatuto da Cidade.

Abra o art. 21 do Estatuto da Cidade. Ele também traz o direito de superfície. E o que tem lá: o Estatuto da Cidade ou o Código Civil? O Estatuto da Cidade já tinha essa previsão antes do Código Civil.

Aí, sabe o que o aluno é acostumado a fazer? O aluno, que um tarado pelo estudo do Direito Civil clássico vai dizer: Nelson, se o Estatuto da Cidade veio antes e o Código Civil depois, então tem a lei anterior, a lei posterior, ocorreu a revogação.

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Não tem nada disso, não existe antítese entre as normas, existe um diálogo de fontes. Há um diálogo de fontes entre o Código Civil e o Estatuto da Cidade. Há uma relação de complementaridade. Um vai ajudar o outro. Então, eu pergunto: quando é que se aplica o Estatuto da Cidade e quando é que se aplica o Código Civil.

Washington, você tem um terreno em Ipanema e aí chega o Luciano Huck e diz assim: eu quero o direito de superfície do seu terreno. Para que Luciano? Ah, por que eu vou construir. Eu tenho direito de superfície e vou construir uma Academia de Ginástica nova.

Código Civil ou Estatuto da Cidade? Código Civil. Por quê? Porque apesar de ser um imóvel urbano, essa acessão de superfície visa a dar de alguma forma função social à cidade? Não. Ela não visa dar função social à cidade. Ela não está ligada a nenhum dos planos de urbanização da cidade do Rio de Janeiro. Ela serve, principalmente, a interesse particular. Então é Código Civil. Agora, você tem um terreno em Ipanema, chega o César Maia e fala assim: Washington, nós estamos precisando desse terreno para fazer garagem no subsolo com mil vagas. Estatuto da Cidade. Por quê?

Porque esse direito de superfície já atende ao plano diretor e à função social da cidade. Mas, você está falando em direito de superfície do subsolo. O direito de superfície não se dá no solo. Ele pode ser embaixo, na superfície ou ele pode ser uma simples construção.

Ou seja, eu pergunto para vocês: Washington tem um terreno em Ipanema de frente para a praia. Pode chegar o morador do prédio de trás que tem um apartamento e falar: eu quero o direito de superfície aéreo do seu imóvel.

Pode? Inclusive já fazem isso aqui na Lagoa Rodrigo de Freitas. Por que o cara quer o direito de superfície aéreo? Por que ele não quer que amanhã você construa e perca a bela vista que ele tem da praia.

Então ele adquire esta superfície, ou seja, aqui você não pode construir, justamente por um interesse privado do vizinho. Isso não é Estatuto da Cidade, isso é Código Civil. Isso é relação contratual. Direito de Superfície aéreo.

Agora, se por acaso, isso aí ninguém vai questionar. Tem uma fazenda do Washington lá no interior do Rio de Janeiro, zona rural, e é feito um grande colégio no direito de superfície pelo município de Vassouras faz lá uma escola rural.

É Estatuto da Cidade ou Código Civil? Código Civil. Por que, apesar de ter função social, o Estatuto da Cidade só é aplicado aonde? Zona urbana. Então por isso é que vocês têm que ter o cuidado. Quando é que é Código Civil, quando é que é Estatuto da Cidade, para a gente fazer a dimensão exata das duas situações.

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Vou fazer uma última observação: no Estatuto da Cidade o direito de superfície pode ser feito sem prazo? Pode. Olha só o art. 21 fala: “por tempo determinado ou por tempo indeterminado”.

Quer dizer então que sendo o plano diretor a meta da cidade, havendo a possibilidade de fazer na superfície para atender uma função social da propriedade, pode ser por tempo indeterminado? Pode.

Mas note, esse contrato é sem prazo. O que a doutrina ensina e eu coloco no meu livro também é que apesar do contrato ser sem prazo, certamente o direito do superficiário deve ser resguardado.

Imagina se o proprietário chega 1 mês depois e fala que como o contrato é sem prazo, está te notificando para você ir embora. Isso geraria muita insegurança jurídica.

Então, para evitar essa insegurança jurídica, eu peço que seja aplicado o § único do art. 473 do Código civil, pois quando uma das partes faz um contrato sem prazo com a outra o que a qualquer tempo um deles pode fazer? Não pode denunciar? Não ode resilir?

Mas o § único do art. 473 traz uma norma de grande função social. Ele diz: “Se, porém, dada a natureza do contrato, uma das partes houver feito investimentos consideráveis para sua execução, a denúncia unilateral só produzirá efeito depois de transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto dos investimentos”.

Então, esse art. 473, § único visa evitar o abuso do direto potestativo do proprietário de tentar denunciar aquele contrato de forma abrupta, retirando as garantias que o proprietário superficiário poderia ter sobre a coisa.

Pergunta de aluna: Pode ter usucapião de direito de superfície? Resposta do prof.: Pode, mas isso é muito raro. Eu vou dar o único exemplo em que se pode admitir usucapião de direito de superfície.

Roberta eu tenho o direito de superfície desse imóvel aqui, que pertence ao Fábio. Você quer comprar? Você compra e adquire o direito de superfície por um negócio jurídico. Aí você está lá, quando você adquire dois anos depois, chega o Fábio e pergunta: minha filha, o que você está fazendo aí nesse imóvel? Eu adquiri direito de superfície do Nelson. Ele diz que você foi enganada. Esse cara fingiu para você que era superficiário do meu imóvel. Então minha filha você foi enganada. Foi uma superfície a non domino.

Mas se porventura você ficou lá 10 anos, no mínimo, o que você vai alegar em defesa? Que você teve justo título não de proprietária, mas justo título de superficiária.

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Então, você vai adquirir usucapião da superfície. O solo vai continuar pertencendo a quem? Ao Flávio. Você vai ter usucapião da superfície. Mas por quanto tempo? Pelo tempo que ele colocou no contrato. Porque senão, poderia ficar lá a vida inteira, pois a propriedade superficiária é ??? mesmo quando adquirida por usucapião.

Mas vocês viram como esse exemplo é raro? Roberta, normalmente se você entra no terreno, você nunca vai usucapir a superfície. Você vai usucapir a propriedade. Por que quem entra no terreno tem animus domini ou animus superficiaris? Tem animus domini.

Ninguém entra em um terreno e fica lá por 20 anos e diz que apenas quer ser o superficiário.

Pergunta de aluno: E se, por exemplo, depois de acabado o prazo, quando resolve a propriedade o proprietário do solo não aparece? Resposta do prof.: Se acabou o prazo e o proprietário do imóvel deixa eu ficar lá, aí eu usucapi tudo.

Vamos começar Promessa de compra e venda. A promessa de compra e venda faz a passagem entre a propriedade e a posse. Ela tem um pouco de propriedade e um pouco de posse e nos remete às aulas que eu venho dando há 2 semanas. Será uma forma de preparar o raciocínio de vocês para semana que vem.

A promessa de compra e venda é um direito obrigacional ou é um direito real? Ela nasce como uma relação obrigacional e pode posteriormente se tornar um direito real.

Nelson e Washington fazem um contrato onde Nelson é o promitente vendedor e o Washington é o promitente comprador. Nelson vai vender esse imóvel em 30 prestações de R$ 1.000,00. Isso é uma promessa de compra e venda.

A promessa de compra e venda é o mais importante de todos os contratos preliminares.

Contrato preliminar é o contrato que é realizado entre as partes cuja finalidade é a futura realização de um contrato definitivo. A finalidade das partes é a futura realização de um contrato definitivo.

Quando Washington acabar de pagar a última das 30 prestações de R$ 1.000,00, o que ele exigirá de Nelson? Ele exigirá a escritura definitiva de compra e venda, que é o contrato definitivo.

Isso é uma relação obrigacional, pois quando eu assinei a promessa de compra e venda e ela se tornou um negócio jurídico válido, passou a produzir obrigações.

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Qual é a obrigação do Washington? Dar quantia certa de R$ 1.000,00 por mês. E qual é a obrigação do Nelson? Fazer, pois quando ele acabar de pagar a última prestação eu terei que outorgar a escritura definitiva de compra e venda.

Em primeiro lugar, essa promessa de compra e venda não foi registrada. Quando o Washington terminou de pagar a última prestação e o Nelson se nega a outorgar a escritura definitiva de compra e venda.

O que o advogado do Washington deve fazer? Ele deve ajuizar uma ação de adjudicação compulsória ou também chamada de ação de outorga de escritura do art. 466-B do CPC. Por que ele vai ajuizar essa ação? Ele vai ajuizar essa ação porque o Nelson tinha a obrigação de fazer e ao se recusar em outorgar a escritura, se tornou inadimplente da obrigação de fazer. Com isso, Washington está pedindo uma tutela específica.

O juiz vai mandar Nelson assinar a escritura, mas se este se mantiver inerte, o juiz irá substituir a sua vontade e irá outorgar aquela escritura que o particular não outorgou.

A obrigação de outorgar a escritura do Nelson é uma obrigação fungível ou infungível? É uma obrigação fungível, pois se o Nelson desaparecer, o juiz o substitui.

Quando Washington consegue essa outorga de escritura, a leva para o RGI tornando-se, desta forma, proprietário em definitivo.

Por que o Washington conseguiu essa outorga de escritura mesmo sem ter registrado perante o RGI? Porque a outorga de escritura não está relacionada ao registro. A outorga da escritura está relacionada ao plano da relação obrigacional.

Súmula 239 do STJ: o direito à adjudicação compulsória não se condiciona ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis.

O segundo ponto é o seguinte: Washington estava pagando a dívida, sem estar com a promessa registrada. Enquanto ele estava pagando, Nelson perguntou a Rafaela se ela queria comprar esse imóvel. Rafaela, então, comprou o imóvel que o Washington estava pagando.

Esse negócio jurídico entre Nelson e Rafaela é válido? Claro que é.Esse negócio jurídico possui agente capaz, objeto lícito e forma prevista em lei.

Quando Washington termina de pagar o imóvel, fica sabendo que Nelson o vendeu para Rafaela. Washington pode ajuizar ação de outorga de escritura onde a adjudicação compulsória se dá em face de Rafaela? Não, pois

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quem prometeu outorgar escritura a ele foi o Nelson. E como essa é uma relação obrigacional, somente faz efeito entre as partes.

A Rafaela é terceira e o Washington não tem seqüela, pois ele é apenas credor de uma relação obrigacional.

Nelson indeniza por perdas e danos Washington, mas Rafaela fica com a propriedade para si.

A outorga de escritura, a adjudicação compulsória é uma ação pessoal que só pode ser exigida contra aquele que prometeu ou pelos sucessores. Mas não contra terceiros.

O terceiro ponto é o seguinte: Washington, o que você fez no dia seguinte da assinatura do contrato antes sequer de ter pago a primeira prestação? Ele registrou a promessa de compra e venda.

O que nasce para Washington? Nasce o direito real à aquisição.

A promessa de compra e venda que era um direito obrigacional, agora também é um direito real à aquisição que nasce do registro.

Qual é a conseqüência? Se há registro, nós podemos falar em seqüela. Se há seqüela, é claro que há oponibilidade erga omnes.

Vocês podem estar pensando que vocês já estudaram essa matéria não como direito real à aquisição, mas sim como direito real de aquisição.

Quando você fala de direito real de aquisição, dá uma falsa idéia de que quando a pessoa registra, a coisa já é dele. Mas a coisa não é dele. Quando ocorre o registro, não se adquire a propriedade.

O nome é direito real à aquisição porque quem registra passa a ter o direito de garantia. Qual é o direito de garantia que passa a ter a pessoa que registra? Ela passa a ter o direito real a adquirir a coisa no futuro se pagar a integralidade das suas prestações.

Ou seja, está dizendo que se você registrou, você terá direito a uma futura aquisição da propriedade se pagar integralmente as suas prestações. Isso é que é direito real à aquisição.

Washington, você registrou e pagou tudo. E foi ao encontro de Nelson pedindo que ele lhe outorgue a escritura. Nelson diz que vendeu o imóvel para Rafaela.

Pode Nelson vender o imóvel para Rafaela se Washington registrou a promessa de compra e venda? Pode, pois não obstante registrada, a propriedade continua sendo do Nelson. A única coisa que ele tem é o direito de garantia.

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Washington tem, nesse caso, ação de adjudicação compulsória contra Rafaela? Tem, pois ele efetuou o registro. E como ele efetuou o registro antes, ele tem a seqüela e ele pode buscar a coisa contra Rafaela.

Por que ele vai tirar a coisa da Rafaela se o negócio jurídico entre Nelson e Rafaela é válido? Não me digam que é porque ele tem seqüela, porque ele registrou ou porque é erga omnes, pois isso eu já sei.

Porque não obstante o negócio jurídico seja válido, ele é ineficaz perante o promitente comprador.

Por que se trata de um caso de ineficácia relativa, também chamada de inoponibilidade? É uma ineficácia relativa porque houve o registro anteriormente. Ou seja, se ele registrou, esse negócio jurídico é ineficaz, não produz efeitos porque ele registrou e pagou integralmente as prestações a posteriori.

Se, por acaso Nelson vendeu para Rafaela quando Washington já tinha registrado, mas Washington no sétimo mês pára de pagar, tornando-se inadimplente, qual é a conseqüência disso?

Nelson irá ajuizar uma ação de resolução da promessa de compra e venda que, sendo julgada procedente, irá desconstituir a promessa de compra e venda.

O que acontece com a venda feita para Rafaela se a promessa de compra e venda feita para Washington foi desconstituída? A venda que já era válida torna-se plenamente eficaz.

Por que a única pessoa que poderia se opor à eficácia relativa ou a inoponibilidade, não poderá mais se opor, por que o negócio jurídico dele foi desconstituído, foi resolvido, retirado do mundo jurídico. É essa que é a noção.

Então, pessoal, o terceiro capítulo da novela, Washington termina bem para você, na medida em que você realize o registro.

Agora, tem uma questão muito maneira, que é a do 4o Capítulo, que é a seguinte: o Código Civil não é o único instrumento legal que trata de promessa de compra e venda.

A promessa de compra e venda já existe em outras normas, no decreto-lei 58/37 que trata de lotes rurais. Na lei 6766/79 com lotes urbanos e, com a atual 10.931/2004 que cuida da incorporação imobiliária, que é quando vocês compram apartamento em construção. Tem promessa de compra e venda nessas três leis.

O decreto-lei 58/37 trata da aquisição de lotes rurais com promessa de compra e venda. Lei 6766/79 promessa de compra e venda de

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lotes urbanos e a lei 10931/2004 que trata, também, da promessa de compra e venda na incorporação imobiliária.

Pois bem, o que essas três leis têm em comum? Essas três dizem que, quando é feita a promessa de compra e venda de compra de lote ou de compra de apartamento em construção, elas são irretratáveis.

Ou seja, essas leis chamam a promessa de compra e venda de compromisso de compra e venda. Por que elas são irretratáveis.

Existem normas de ordem pública que fazem com que em todas essas leis haja irretratabilidade. Aliás, eu vou até dizer quais são os artigos e os fundamentos, também, para ajudar.

Nos lotes rurais a irretratabilidade da promessa de compra e venda é da súmula 166 do STF. Na lei 6766/79 está no art. 25, § 6o, da referida lei e na última, 10.931/2004, está no art. 32, § 2o da lei 4.591/64. Apesar de não ser da lei 10.931/2004, ela alterou o art. 32, parágrafo 2o da lei 4.591/64 as aquisições de incorporações imobiliárias se tornam irretratáveis.

O Código Civil, então, trata da promessa de compra e venda de imóveis não loteados. Então, vamos ver se vocês entenderam. Washington, se você quer me vender um apartamento hoje com promessa de compra e venda é Código Civil.

O que é imóvel loteado? É quando tem um loteador e ele quer te vender um lote urbano ou rural ou quando tem um construtor que quer fazer um prédio e quer te vender um apartamento.

Por que existem nessas normas a exigência da irretratabilidade? Por que gente? Tudo aqui é relação de consumo. Quando a gente compra um lote, vocês são consumidores, quem vai atender vocês é um profissional loteador.

Quando vocês compram apartamento em construção quem está vendendo para vocês é um incorporador, é um fornecedor. Se nesses contratos houvesse cláusula de retratação ou a chamada cláusula de arrependimento, o que o construtor faria?

Ele venderia o apartamento para vocês. Vocês pagariam duas ou três prestações, chegaria o construtor e falaria assim: olha desculpa eu me arrependi, toma o dinheiro de volta que vocês me pagaram.

E sabe o que ele está ganhando? Ele ia especular com o bem. À medida que o bem valorizasse, ele venderia de novo para outra pessoa.

Então, para proteger os adquirentes desses bens, que são vulneráveis diz-se que são irretratáveis.

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E por que se chama de promessa de compra e venda? Compromisso. Gente, para quem está noivo nesta sala. Alessandra, o que é mais forte. Fazer uma promessa de casamento ou um compromisso de casamento? Compromisso não é muito mais forte? Por quê? Por que a promessa nasce para ser descumprida. Compromisso não, compromisso é irretratável.

É por isso que nessas leis a gente fala que é compromisso de compra e venda. Agora, na promessa de compra e venda do Código Civil, nada obsta que seja inserida que cláusula? Cláusula de retratação. A chamada cláusula de arrependimento.

Gente, por que nas relações com o Código Civil pode haver cláusula de arrependimento? Porque as relações entre o Código Civil são de relativa igualdade entre as partes. Ou seja, quando o Washington me vende um apartamento, não é relação de consumo. É uma relação privada, é uma relação entre dois particulares.

Então, há a possibilidade mais ampla do exercício da autonomia privada da fixação de cláusula de arrependimento. Isso é no Código Civil. Não nessas leis. Duas conclusões importantíssimas.

Primeira: Washington, se há uma cláusula de arrependimento. São 35 prestações de mil reais, não são? O que acontece se eu me arrependo e falo já na oitava prestação. Washington eu não quero mais te vender esse imóvel não. Eu quero me arrepender. O que é esse direito que eu, Nelson, tenho. É o direito de pedir denúncia. De resilição unilateral. O que é resilição unilateral? É o potestativo de uma das partes de desconstituir o negócio jurídico. Precisa de alguma motivação? Não precisa de motivação nenhuma.

Eu tenho essa cláusula no Código. Então o que eu tenho que fazer Washington? Devolver tudo aquilo que você me pagou. Mas tem essa possibilidade porque há essa cláusula aqui, de arrependimento.

Normalmente quem aí já viu esse contrato, sempre o direito de arrependimento está ligado a que? Arras. Sempre tem o valor de arras ligado a uma idéia de direito de arrependimento. Arras ou cláusula penal de acordo com o contrato.

Pergunta de concurso: Até quando eu posso exercer esse direito potestativo de arrependimento que está na cláusula? Até o último pagamento.

Porque quando ele paga a última prestação, o vendedor já não pode mais se arrepender. Alguém pode me dizer por que não posso mais me arrepender depois que o Washinton pagou a última prestação? Porque quando o Washington pagou a última prestação ele já adquiriu o domínio.

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Como ele adquiriu o domínio se ele nem ajuizou a outorga de escritura? Ele tem o domínio, ele não tem é a propriedade. Por que ele já tem domínio?

Porque ele pagou todas as prestações. Se ele já pagou tudo, o que sobrou da propriedade? Só a titularidade, só o meu nome. Só a titularidade no Registro de Imóveis.

Agora, para ele todo poder e domínio estão com ele. Ele está usando. Ele está assumindo. Ele tem disposição. Ele já tem o domínio e eu tenho a propriedade.

Moral da história. Só é possível falar em direito real a aquisição no Código Civil. No Código Civil quando? Três coisas tiverem acontecido: você tenha registrado, você tenha integralizado o pagamento e que não haja cláusula de arrependimento.

Se houver cláusula de arrependimento e eu não quiser outorgar a escritura definitiva, você não pode exigir o direito à adjudicação compulsória só é possível se não houver cláusula de arrependimento. Tomem muito cuidado com esta cláusula de arrependimento.

Por que não pode ter esta adjudicação compulsória se tinha cláusula de arrependimento. Como é que o Juiz vai substituir a vontade de uma pessoa que quis se arrepender? O juiz só pode substituir a vontade, se não existir essa cláusula de arrependimento. Isso é fundamental.

Então olha: o direito a outorga de escritura adjudicação compulsória contra terceiros requer registro. Mas o direito à outorga de escritura contra a parte, não precisa de registro. Por quê? Porque é relação obrigacional. Não precisa de registro, mas não pode ter cláusula de arrependimento.

Então pessoal eu vou fazer duas conclusões e vou ler o código civil. Primeira conclusão: quando eu faço um contrato com vocês, eu sendo um loteador, cabe cláusula de retratação? Não.

Quando vocês acabam de pagar, vocês precisam ir atrás de mim que sou o loteador para exigir a outorga de escritura? Vocês fizeram a promessa de compra e venda e pagaram tudo, vocês não têm que ir atrás de mim que sou o vendedor para ter a outorga de escritura? Não, pois isso é o chamado contrato preliminar impróprio. O STJ trabalha muito com isso.

Por que nos compromissos de compra e venda dessas leis há contrato preliminar impróprio?

Se eu faço um contrato com vocês e não há previsão de cláusula de arrependimento, por que o comprador tem que buscar uma escritura definitiva, pedir uma outorga de escritura ao vendedor se o vendedor no dia da promessa de compra e venda já disse que não iria se arrepender?

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Se o vendedor já disse que não iria se arrepender, não há necessidade de lhe pedir uma segunda declaração de vontade.

É por isso que todas essas leis dizem que imediatamente quando você acabou de pagar a última prestação, você pega a prova da quitação e leva imediatamente ao registro imobiliário.

Você não precisa fazer a escritura definitiva. Por isso que é contrato preliminar impróprio. Por que se chama impróprio? Porque não precisa fazer depois escritura definitiva. Não precisa fazer a compra e venda definitiva.

No código civil o contrato preliminar é próprio ou impróprio? É próprio, pois sempre a promessa de compra e venda deve ser seguida da compra e venda definitiva por escritura pública.

Olha o art. 26, § 6o da lei 6766/79: “Os compromissos de compra e venda, as cessões e promessas de cessão valerão como título para o registro da propriedade do lote adquirido, quando acompanhados da respectiva prova de quitação”.

Ou seja, isso é uma demonstração de que o que é melhor na sociedade brasileira: o contrato preliminar próprio ou impróprio? O impróprio, sabe por quê? Pois atende as três diretrizes do código civil brasileiro.

Pr imeiro ele atende a diretr iz da et ic idade, porque necessariamente ele faz com que haja maior confiança da sociedade no cumprimento das relações obrigacionais porque o comprador já sabe que não vai ter o risco de amanhã ter que correr atrás do vendedor e o vendedor vai fazer o quê? Desaparecer, sumir, ou seja, isso gera confiança e amplia a boa fé objetiva.

Segundo: atende o princípio da socialidade, porque O Brasil é um país pobre e o que acontece? Se alguém compra um lote tem que fazer escritura definitiva de compra e venda isso gera custo.

O único cara que fica chateado com isso tudo é o dono do cartório que não vai ganhar dinheiro com uma segunda escritura ridícula e repetitiva de um ato que já foi feito.

Terceiro: atende ao princípio da operabilidade, sabe por quê? Pois evita milhares de ações de adjudicação compulsória.

A justiça não fica abarrotada porque ninguém precisa ajuizar ação de adjudicação compulsória, pois não precisa correr atrás do vendedor que sumiu ou que morreu.

Agora, o CC não, ele trabalha com o contrato preliminar próprio e eu quero ler os artigos 1417 e 1418 com vocês.

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Eu quero uma nota de zero a dez para o artigo 1417: ”Mediante promessa de compra e venda, em que não se pactuou arrependimento, celebrada por instrumento público ou particular e registrada no Cartório de Registro de imóveis, adquire o promitente comprador direito real à aquisição do imóvel”.

Perfeito, nota dez. Está dizendo o que o direito real a aquisição só surge se não houver cláusula de arrependimento.

E se há cláusula de arrependimento eu não posso exigir a aquisição de quem quer que se arrependa. Então, necessariamente, um se liga ao registro e a inexistência da cláusula de arrependimento.

Pergunta de aluno: inaudível. Resposta do professor: Não, nesse caso se exige. Ela perguntou: Nelson, se não houver cláusula de arrependimento não dá para fazer como aqui imediatamente mudar no registro imobiliário.

Vamos ver o artigo 1418: “ O promitente comprador, titular de direito real, pode exigir do promitente vendedor, ou de terceiros, a quem os direitos deste forem cedidos a outorga da escritura definitiva de compra e venda, conforme o disposto no instrumento preliminar; e se houver recusa, requerer ao juiz a adjudicação do imóvel”. Esse artigo tem dois erros.

Esse artigo está dizendo que o promitente comprador quando registra pode exigir do Nelson, que é o devedor, ou do terceiro, que é a Rafaela a outorga da escritura definitiva de compra e venda. Onde está o erro?

Você só precisa ter direito real para exigir da Rafaela. Para exigir do vendedor você não precisa ter registro nenhum. Isso é um retrocesso do art. 1418.

Aonde está escrito que ele tem que ser titular de um direito real para exigir a adjudicação compulsória do vendedor está errado, pois ele precisa apenas ter integralizado as prestações, mesmo que ele não seja titular de direito real nenhum.

Isso é um retrocesso, pois se nós interpretarmos literalmente o art. 1418, a súmula 239 do STJ perde a sua eficácia.

Nós devemos dizer que o Código civil é que foi redigido de uma forma retrógrada, pois o projeto é da década de 70.

Olha o que diz o enunciado 95 do CJF: Para o promitente comprador exigir a adjudicação compulsória do vendedor, é dispensável o registro.

Outro erro foi a parte final do artigo. “e se houver recusa requerer ao juiz a adjudicação”.

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Se não há cláusula de arrependimento, por que o NCC manteve exatamente a velha noção da necessidade da outorga de escritura definitiva quando simplesmente bastava o Código civil ter dito que se acabou de pagar, basta pegar o recibo de quitação e levar para o registro imobiliário. Aliás, essa é a posição da doutrina mais moderna que diz que apesar do atraso, do anacronismo do art. 1418 todos os particulares devem ser incitados a provocar o Judiciário.

Se acabou de pagar e não tem cláusula de arrependimento, vai diretamente no Cartório. Quem tem essa posição é o maior autor do Brasil de promessa de compra e venda que é o José Osório de Azevedo.

A última pergunta da aula de hoje é a seguinte: Washington, você pagou tudo e não registrou. Só que o Nelson, que é o vendedor, sumiu e você não consegue me achar.

Se você pagou tudo, está morando no imóvel e não registrou, ao invés de ajuizar a outorga de escritura, ele pode ajuizar usucapião? Pode, sabe por quê? Porque a promessa de compra e venda mesmo sem ser registrada, quando quitada, é justo título para fins de usucapião.

Eu tirei isso da lição que vocês tiveram na aula de usucapião. Quando vocês terminam de pagar, vocês já possuem o domínio. E se o domínio já é dele, ele já adquiriu a usucapião.

A única coisa que falta é por sentença você constituir a propriedade, pois esta ainda está no nome do promitente devedor.

Então, aquela promessa de compra e venda quitada é título para usucapir.

O registro não tem relação com isso. A única finalidade do registro é dar proteção contra terceiros em caso de venda.

Se ele ficou lá 10 anos pagando, aquilo é justo título.

Se ele chegou a registrar esse justo título, o que acontece com essa promessa de compra e venda? Cai para 5 anos o prazo da usucapião. A promessa de compra e venda é uma interessante via de usucapião.

A última pergunta é agora: Washington terminou de pagar, você não tem a outorga de escritura , não tem a adjudicação compulsória. Quem invade o seu terreno? Zé Rainha. O promitente comprador tem ação reivindicatória?

Lembrem da aula de ontem que eu falei na usucapião do possuidor que já completou o prazo de usucapião mas ainda não é dono.

O possuidor que já completou o prazo de usucapião mas ainda não registrou tem reivindicatória? Não, mas ele tinha a ação publiciana.

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Mas a jurisprudência concede a reivindicatória ao promitente comprador que já integralizou as prestações. Isso é jurisprudência tranqüila do STJ. Por quê? Porque lê já tem o domínio.

A única coisa que o proprietário tem quando você já acabou de pagar é simplesmente o nome no registro.

Qual será o interesse desse proprietário de ajuizar uma ação reivindicatória contra o Zé Rainha se ele já recebeu todo dinheiro e não está morando mais lá.

Já Washington se não tiver uma reivindicatória, como é que você faz? Entra com uma reintegração de posse? Mas essa não é tão efetiva quanto à demonstração de cara de que você é o proprietário.

Então, é por isso que ele tem a reivindicatória por extensão nessa altura do campeonato.

Enunciado 87 do CJF: Considera-se também justo título para fins de usucapião a promessa de compra e venda devidamente quitada. Enunciado 253 do CJF: O promitente comprador titular de direito real tem a faculdade de reivindicar de terceiro o imóvel prometido a venda.

Então, vocês estão vendo que o promitente comprador tem a faculdade de reivindicar mesmo ele não sendo proprietário.

Um grande abraço para vocês. Daqui a duas semanas falaremos sobre posse.

Pergunta de aluna: inaudível. Resposta do prof.: Eu falei errado, mas eu conserto. O que você não terá é o direito real a aquisição se houver a inserção de uma cláusula de arrependimento. Você não terá o direito real a aquisição se houver essa cláusula de arrependimento porque você não pode forçar a ??? a uma pessoa que não teve vontade de transmitir.

Porém, se ele pagou a última prestação, houve a decadência do direito potestativo e ele vai conseguir.

Rio, 21.11.2007

Nosso assunto é posse.

Não posso começar uma aula de posse sem fazer uma homenagem às duas pessoas que mostraram o caminho das pedras que são Savigny e Ihering.

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Savigny era um gênio. O cara tinha 23 anos de idade quando ele disse que posse era igual a corpus mais animus. Savigny dizia que para o cara ser possuidor ele tinha que ter corpus mais animus.

Corpus era o poder físico sobre a coisa. Então, segundo Savigny, possuidor era a pessoa que tinha contato material com o bem, que tinha atuação física sobre a coisa.

O segundo elemento fundamental para a posse segundo Savigny era o animus, que é a intenção do possuidor de ser o dono da coisa, a vontade do possuidor de ser o proprietário. Essa intenção de dono era o animus.

Na concepção de vocês a teoria de Savigny é objetiva ou subjetiva? É uma teoria subjetivista, pois ele dá muito valor ao elemento psicológico do animus, ao elemento intencional da vontade de ser dono. Por isso a teoria dele até hoje é conhecida como teoria subjetiva da posse.

Beto, se por acaso eu te alugo o meu apartamento, você é meu inquilino. Vem o Zé Rainha e quer invadir esse apartamento. O inquilino pode ajuizar ação possessória contra Zé Rainha na teoria de Savigny? Não, pois inquilino não tem animus domini.

Inquilino tem corpus, mas inquilino não tem animus.

Na teoria do Savigny inquilino, comodatário, usufrutuário, todos esses possuidores eram pessoas que não tinham animus domini, não tinham vontade de serem proprietários. Então, se eles não tinham animus domini, eles não eram possuidores.

Como Savigny chamava essa galera que tinha corpus, mas não tinha animus? Detentor. Savigny dizia que o detentor era aquela pessoa que tinha corpus, mas não tinha animus.

Então, possuidor tinha corpus e animus. Detentor só tem corpus e não pode exercer ações possessórias. As ações possessórias seriam privativas de quem tem corpus mais animus.

Ihering fez a teoria dele no final do século XIX e dizia que posse era igual a corpus.

A diferença entre posse e propriedade é que a posse é o poder de fato sobre a coisa e propriedade é o poder de direito sobre a coisa.

Sendo a posse o poder de fato sobre a coisa, segundo Ihering, o possuidor é aquele que dá visibilidade ao domínio, é aquele que exterioriza a propriedade.

Para Ihering o possuidor é quem dá destinação econômica à coisa. Como vocês estão vendo, a noção de corpus do Ihering é muito mais ampla do que a noção de corpus do Savigny.

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Imagina que vocês chegaram em uma fazenda enorme no interior do Rio de Janeiro. Vocês começam a caminhar pela fazenda e acham um maço de cigarros perdido no chão e o pega para vocês, visto que estava perdido.

Vocês continuam caminhando e encontram materiais de construção, mas não tem ninguém lá. Sabe o que vocês pensam? Deve ter alguém aí, deve ter algum dono.

Se vocês não encontraram ninguém naquela hora exercendo poder físico sobre a coisa, alguém está dando visibilidade ao domínio. Alguém está concedendo destinação econômica à coisa. Alguém está exteriorizando a propriedade, mesmo que não esteja lá.

A noção do Ihering é que o possuidor é justamente aquela pessoa que é o aparente proprietário, é aquele que se conduz como o proprietário se conduziria. É aquela pessoa que se comporta como normalmente o proprietário se comportaria perante a coisa.

A rasteira decisiva de Ihering em Savigny foi com relação ao animus. Ihering disse que para o cara ser possuidor tanto faz como tanto fez se ele tem o animus. O elemento psicológico é desprezível.

Ele dizia isso, pois não havia como entrar na cabeça do possuidor para descobrir se ele tinha ou não a intenção de ser dono. Para Ihering o animus é secundário.

Ihering despreza o elemento subjetivo da posse. É por isso que a teoria de Ihering é chamada de teoria objetiva da posse, justamente por desprezar o elemento subjetivo de animus.

Para ele o importante é que querendo ou não ser dono, o cara se conduza como dono, que dê destinação à coisa como o proprietário daria.

Na teoria do Ihering se eu alugo um apartamento para você e Zé Rainha resolve invadir esse apartamento alugado. O locatário tem ação possessória contra o Zé Rainha? Tem. Na teoria do Ihering, aqueles que eram detentores, como locatários, comodatários e usufrutuários se convertem em possuidores.

Visto que todos eles têm corpus, todos eles dão destinação econômica à coisa, dão visibilidade ao domínio, exteriorizam a propriedade.

O fato deles não terem animus não é considerado na teoria de Ihering. Por isso, a teoria de Ihering sob o ponto de vista econômico é superior à de Savigny, pois se os detentores na teoria de Savigny se tornam possuidores na de Ihering, amplia-se a proteção possessória.

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Muitas pessoas que até então não tinham tutela possessória passam a tê-la em virtude da teoria de Ihering ser uma teoria mais abrangente.

Qual é a grande distinção entre a teoria subjetiva de Savigny e a teoria objetiva de Ihering? A grande distinção é na distinção quanto a quem são os detentores.

Para o Savigny a distinção entre detentor e possuidor é uma distinção feita sob o aspecto subjetivo. Se tem animus, é possuidor. Se não tem animus, é detentor.

Já para o Ihering existem detentores também. Só que para o Ihering a diferença entre detenção e posse não é uma diferença subjetiva. É uma diferença objetiva.

Para Ihering a diferença entre a detenção e a posse não está no aspecto psicológico da pessoa. Está objetivamente na lei. É a lei objetivamente que diz quem é possuidor e quem é detentor.

É o ordenamento que separa posse da detenção e não questões psicológicas, subjetivas.

O CC/2002 adotou qual dessas teorias? Adotou a teoria de Ihering. Art. 1196, CC.

Art. 1196, CC: “Considera-se possuidor toda aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de alguns dos poderes inerentes à propriedade”.

Ihering disse que é possuidor quem exerce de fato poderes de proprietário, é quem age como se proprietário fosse, é quem dá destinação econômica à coisa que o dono normalmente concederia.

Esse é o conceito de posse.

O código em algum momento homenageou a teoria do Savigny? Sim, residualmente na usucapião. Visto que para usucapir não basta ter a posse de Ihering. Tem que ter posse mais animus domini.

Mas fora a usucapião, nós não trabalhamos com Savigny. Nós trabalhamos com a teoria possessória de Ihering.

O código começa o estudo do direito das coisas pela posse ou pela propriedade? Pela posse.

Nós começamos nossos estudos pela propriedade porque propriedade é mais fácil do que posse.

Temos vários temas para estudar nessa aula de posse e o primeiro deles é o desdobramento da posse.

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Washington, vamos supor que você é proprietário de um sítio. Se você é proprietário, você tem a titularidade, o bem está registrado no seu nome.

Como proprietário, quais são as propriedades que Washington tem perante a coisa? Usar, fruir, dispor e reivindicar.

Quando o proprietário tem todos esses poderes reunidos com ele, possuirá propriedade plena ou alodial.

Flávia pede a Washington para que ela seja usufrutuária da sua fazenda e ele aceita. Com isso, Washington transfere para Flávia as faculdades de usar e fruir. Nesse instante a Flávia adquire a posse direta da fazenda. E o Washington que deu o bem em usufruto continua com a posse indireta do bem. Ou seja, surgiu o fenômeno do desdobramento da posse.

O desdobramento da posse sempre é emanado de uma relação jurídica do proprietário com um terceiro que se investe na posse direta da coisa.

O proprietário Washington através de uma relação jurídica de direito obrigacional ou de direito real outorga à Flávia a posse direta da coisa. Mas nesse tempo em que Flávia é usufrutuária, Washington não perde a posse indireta.

Um cara que mora no imóvel só pode ser chamado de possuidor direto quando ele está ali em virtude de uma relação jurídica que ele realizou com o proprietário.

Se Washington não tivesse dado o bem em usufruto para Flávia, ele próprio estaria morando na coisa e teria a posse da coisa.

Como se chama a posse quando é o próprio proprietário que a exerce? Posse.

Gente, se ele é proprietário, ele é proprietário e possuidor.

Exemplo de relação jurídica de direito obrigacional onde Flávia tem posse direta: locatária, comodatária, arrendatária.

Exemplo de relação jurídica de direito real onde ela teria posse direta: usufruto, direito de habitação, direito de uso, direito de superfície.

A posse direta sempre tem duas características: toda posse direta é temporária.

Quando acaba a relação jurídica, o que acontece com esses poderes de usar e fruir que estão com a Flávia? Voltam para Washington que volta a ter a propriedade plena da coisa.

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A segunda característica da posse direta é que ela sempre é derivada.

Quando Washington entregou para Flávia os poderes de usar e fruir, ela se tornou usufrutuária. Se fosse um direito real de uso, a Flávia teria mais ou menos poderes do que com o usufruto? Menos poderes, pois quem tem direito real de uso Não pode fruir, só pode usar.

O conteúdo dos poderes do possuidor direto, ou seja, até aonde o possuidor direto terá poderes é derivado da posse indireta.

Quem estabelece a extensão dos poderes do possuidor direto é o possuidor indireto através do contrato. É o proprietário no contrato que vai dizer até aonde será maior ou menor a extensão da posse direta.

É por isso que a posse direta é sempre uma posse derivada da posse indireta. Não derivada da pessoa do possuidor, mas derivada da relação jurídica que lhe deu origem.

Como Washington tem posse se ele não mora no imóvel, se ele o deu em usufruto para Flávia? Isso ocorre pois nós adotamos a teoria de Ihering. Se nós tivéssemos adotado a teoria do Savigny, somente seria possuidor quem morasse na coisa.

Na teoria do Savigny, teria a posse o possuidor direto ou o possuidor indireto? Nenhum deles, pois para ter a posse seria necessário ter o corpus mais o animus. E, no caso, a Flávia tem o corpus e o Washington tem o animus.

Então, nunca poderia haver desdobramento da posse na teoria de Savigny.

O desdobramento da posse só é possível na teoria do Ihering, pois possuidor não é quem mora, mas quem dá destinação econômica para a coisa.

Quem está dando destinação econômica para a coisa? Os dois. O possuidor direto porque está morando lá e o Washington através da pessoa do possuidor direto, através de uma relação jurídica colocou um terceiro na coisa para dar visibilidade ao domínio.

É por isso que a posse indireta é conhecida como posse mediata, visto que o possuidor indireto está possuindo através da pessoa do possuidor direto.

Nós podemos dar destinação econômica à coisa pessoalmente ou através de outra pessoa.

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Quando há o usufruto é interessante porque justamente há esse desdobramento.

Se fosse locação, o inquilino é possuidor? É, ele está morando lá. Mas o inquilino paga todo mês aluguel para o proprietário, que são frutos civis. Um está fruindo em pessoa e o outro está recebendo frutos civis.

Os dois estão fruindo. Um está fruindo a coisa in natura e o outro está fruindo as rendas obtidas da exploração da coisa. Essas posses são chamadas de posses paralelas porque são duas posses que correm ao mesmo tempo paralelamente sem que uma inviabilize a outra.

O possuidor direto e o indireto possuem ao mesmo tempo sem que a posse de um obstrua a do outro. Por isso é que são posses paralelas.

Ihering falava que aqui havia a chamada espiritualização da posse, pois Washington que é o proprietário não está possuindo em corpo, ele está possuindo em espírito, ou seja, a Flávia é a pessoa que está na coisa, mas Washington está possuindo através dela.

Por isso é que se chama espiritualização da posse ou posse mediata ou posses paralelas.

Flávia, Zé Rainha invade esse imóvel em que você é usufrutuária. Quem tem ação possessória contra o Zé Rainha? O proprietário ou o usufrutuário? Os dois. Precisa de litisconsórcio ativo entre os dois na ação possessória? Não, pois são duas ações possessórias autônomas.

Cada um tem uma ação autônoma contra o Zé Rainha porque são dois possuidores distintos, paralelos. Um não tem nada a ver com a vida do outro. Cada um tem proteção possessória completamente diferente da do outro.

O possuidor direto tem ação possessória contra o indireto? Tem, basta pensar o seguinte: Rafaela, eu te dou esse imóvel em comodato por 5 anos. Nesse imóvel em que você é comodatária você tem posse direta. Vamos supor que após três anos de contrato eu chegue e fale para você sair do imóvel e se você não saísse, iria te retirar a força.

Rafaela tem ação possessória contra o proprietário para evitar que ele a tire de lá? Claro que tem. O possuidor direto tem ação possessória contra o possuidor indireto porque na constância da relação jurídica o possuidor direto tem proteção possessória contra erga omnes, contra qualquer agressor, mesmo que eventualmente esse agressor seja o proprietário.

O possuidor indireto também tem ação possessória contra o possuidor direto. Aproveitem o mesmo exemplo.

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Rafaela, você é comodatária por 5 anos. Quando completou 5 anos de contrato eu peço o imóvel de volta e Rafaela se nega de sair do imóvel. Nessa hora o proprietário tem ação possessória contra o comodatário?

Sim, porque como terminou a relação jurídica a obrigação do possuidor direto é restituir a posse para o possuidor indireto. Como isso não ocorreu, a posse da Rafaela que era uma posse justa se tornou uma posse injusta por precariedade. Art. 1197, CC: “A posse direta, de pessoa que tem a coisa em seu poder, temporariamente, em virtude de direito pessoal, ou real, não anula a indireta, de quem aquela foi havida, podendo o possuidor direto defender a sua posse contra o indireto”.

Quem leu entende que a posse direta é temporária, é derivada da indireta e que o possuidor direto tem ação possessória contra o indireto. Só faltou colocar ao final do artigo “e vice-versa”.

Faltou dizer que o possuidor indireto também tem ação possessória contra o indireto.

Olha o que diz o enunciado 76 do CJF: o possuidor indireto tem direito de defender sua posse contra o indireto e este contra aquele.

Tem aluno que chega na prova e fala que isso é bipartição da posse, ou seja, a posse seria bipartida na figura dos possuidores direto e indireto.

Eu não gosto de bipartição, eu gosto de desdobramento. Rafaela, se eu te alugo um apartamento, você é inquilina e possuidora direta e eu sou proprietário e possuidor indireto.

Rafaela pode sublocar esse imóvel? Se não tiver vedação contratual, pode. Nesse caso, teremos três possuidores: o proprietário, o locatário e o sublocatário.

Nessa tripartição quem tem a posse direta é o sublocatário e a posse indireta pertence à locatária e ao proprietário. São dois possuidores indiretos e um possuidor direto.

O desdobramento da posse se verticaliza, ele pode descer em vários graus e não apenas entre duas pessoas.

Apesar do desdobramento da posse ter de dado entre três pessoas nesse exemplo, o que se desdobra é a posse direta ou a indireta? É a indireta, pois a posse direta é sempre de uma pessoa, qual seja, quem está no elo final da cadeia, quem está morando na coisa.

Então, o que se desdobra é a posse indireta.

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Se vocês compreenderam bem desdobramento da posse, que é a mesma coisa que posses paralelas, eu pergunto para vocês: vamos supor que um cara morre e ele deixou uma fazenda de herança e três herdeiros.

Que posse os três herdeiros têm sobre essa fazenda que eles acabaram de herdar? É uma composse.

Composse é uma posse exercida por mais de uma pessoa, simultaneamente, sobre uma coisa em estado de indivisão.

Alguém nessa sala é capaz de dizer aonde está situada a posse de cada um dos herdeiros? Impossível, pois na composse cada um dos compossuidores vai possuir 1/3 do todo. Cada um tem uma fração ideal, uma quota abstrata de 1/3 do todo.

A fração de cada um não se localiza materialmente dentro da propriedade.

A composse é uma posse pro indiviso.

A posse ou comunhão pro indiviso é sempre essa situação em que há no aspecto prático uma posse comum que é exercida por várias pessoas ao mesmo tempo.

Por isso que um não pode excluir o outro do todo. Cada um deles pode usar cada uma das partes pelo simples fato de ter 1/3 da propriedade.

Vamos supor que o inventário está em andamento e os três herdeiros resolvem dividir a área de cada um dentro do terreno. Terminou a composse? Terminou, pois na medida em que eles estabelecem as suas áreas fáticas de atuação, a posse que era pro indiviso virou uma posse pro diviso.

A composse cessou porque agora eu tenho três posses independentes, cada um só pode utilizar sua área específica.

Havendo posse pro indiviso eu tenho composse. Havendo divisão fática, localização material de posse, havendo individualização de posse termina a composse porque a posse se tornou pro diviso.

Eu tenho um apartamento e alugo quartos para estudantes. O quarto 1 eu aluguei para a Rafaela e o quarto 2 para o Washington. Que posse Rafaela tem do quarto dela e que posse Washington tem do dele? Ambos têm posse direta.

Só tem um banheiro nessa casa. Que posse eles têm do banheiro? Composse direta, pois um não pode excluir o outro da atuação. É uma posse comum.

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Art. 1199, CC: “Se duas ou mais pessoas possuírem coisa indivisa, poderá cada uma exercer sobre ela atos possessórios, contanto que não excluam os dos outros compossuidores”.

Na composse nunca existirá atuação exclusiva. Várias pessoas terão acesso à posse da mesma coisa.

Se esse apartamento é meu e da Flávia, nós dois temos composse direta, pois o dinheiro do aluguel pertence aos dois.

A composse não é excludente do desdobramento da posse.

Perguntaram no penúltimo concurso em Goiás qual seria a diferença entre posses paralelas e composse. Posses paralelas são duas posses autônomas sobre a mesma coisa, mas que se dá em níveis distintos, um não interfere no outro.

Já a composse são duas posses que se dão no mesmo grau sobre a mesma coisa.

Os herdeiros no momento da abertura do inventário têm composse e condomínio, pois ao mesmo tempo eles têm co-propriedade e composse. No meio do inventário eles resolvem dividir a sua área de atuação. O que cessou: o condomínio ou a composse? Só a composse. O condomínio continua.

Terminou o inventário e saiu o formal de partilha. Quando sai o formal de partilha fica definida a área de cada um. O que acabou? O condomínio. Cada um passa a ter propriedade autônoma.

Muitas vezes a composse anda junto com o condomínio. Mas não necessariamente existe condomínio onde existe composse.

Se Zé Rainha e Deolinda invadiram o seu terreno eles têm condomínio? Não, pois eles não são donos de nada. Mas eles têm composse? Sim. Eles têm composse, mas não têm condomínio.

Se vocês moram em um prédio de apartamentos, vocês têm propriedade individual sobre o apartamento de vocês. Mas as áreas comuns do prédio são condomínio e composse.

Vamos falar sobre detenção. Iherihg dizia que o detentor era um miserável, pois tinha tudo para ser possuidor, mas no país onde ele nasceu havia um artigo do código civil que dizia que ele nunca poderia ser possuidor.

Detenção é uma posse desqualificada pelo ordenamento jurídico.

Efetivamente existem 4 situações em que o cara tinha tudo para ser possuidor. Por isso que a teoria de Ihering foi adotada pelo código civil. O

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nosso código civil entende que as hipóteses de detenção são hipóteses normativas.

O primeiro caso vocês já estudaram comigo, que é o caso do servidor da posse.

Flávio, se você é caseiro da minha fazenda e está nela há 28 anos como caseiro tomando conta, você usucapiu? Não, pois você teve 28 anos de detenção e não de posse.

O fâmulo da posse é aquela pessoa que não exerce atos de posse em nome próprio. Ele exerce atos de posse em nome alheio. Ele é um mero subordinado. O fâmulo da posse é uma pessoa que apenas pratica atos materiais de conservação da coisa, mas em nome de outrem.

Ele é um longa manus do verdadeiro possuidor. O servidor da posse não é possuidor porque ele não dá destinação econômica à coisa. Ele não exerce o elemento econômico, ele apenas é um subordinado, é um cumpridor de ordens.

Para ser servidor da posse tem que ter contrato de trabalho assinado? Sem ganhar salário? Não.

Em uma questão de prova para você saber se o cara é detentor ou possuidor, basta perguntar se ele está na coisa com autonomia ou se ele está cumprindo ordens.

Se ele está em uma situação de subordinação a alguém, ele não é possuidor, mas sim detentor da posse. Art. 1198, CC.

Art. 1198, CC: “Considera-se detentor aquele que, achando-se em relação de dependência para com outro, conserva a posse em nome deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas”.

Esse artigo fala que o sujeito não é possuidor por uma opção legislativa.

Zé Rainha invade essa fazenda que Flávio é o caseiro. O Flávio tem ação possessória contra Zé Rainha? Não. Detentor não tem legitimidade ativa para ajuizar ação possessória. Para ajuizar ação possessória tem que ser possuidor.

O juiz só admite a possessória quando você prova na inicial que você é o possuidor.

O servidor da posse não pode ajuizar a possessória, mas ele pode se utilizar da autotutela, ele pode utilizar o desforço imediato, desde que com moderação, razoabilidade.

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Se eu paro de pagar o salário do Flávio, paro de ir na minha fazenda e o Flávio vai ficando por lá sem que eu pague salário. Ele pode deixar de ser detentor e passar a ser possuidor? Tranqüilamente. O Flávio só é detentor enquanto é cumpridor de ordem.

Na hora que a situação concreta revela que você tem autonomia e já não mais é cumpridor de ordem, deixou de ser detentor e passou a ser possuidor.

Art. 1198, § único, CC: “Aquele que começou a comportar-se de modo como prescreve este artigo, em relação ao bem e à outra pessoa, presume-se detentor, até que prove o contrário”.

A prova de que não há mais detenção, mas sim posse incube àquele que era detentor e quer se mostrar possuidor.

Olha o que diz o enunciado 301 do CJF: É possível a conversão da detenção em posse, desde que rompida a subordinação na hipótese de exercício em nome próprio do atos possessórios.

O possuidor é quem exerce posse em nome próprio. Olha o art. 1204, CC: “Adquire-se a posse desde o momento em que se torna possível o exercício, em nome próprio, de qualquer dos poderes inerentes à propriedade”.

Essa é a diferença do possuidor do art. 1204 para o detentor do art. 1198.

Vamos ver os outros tipos de detentores.

Eu empresto meu apartamento para o Santino ficar lá por dois meses. Durante esses dois meses ele será possuidor ou detentor? Ele é detentor. Esse é um ótimo exemplo de permissão ou tolerância.

Permissão é uma autorização expressa para o uso da coisa.

O permissionário é o cara que fica na coisa em caráter transitório e revogável a qualquer tempo.

A idéia da permissão é justamente uma situação do exercício de um direito potestativo.

O direito potestativo se dá quando você unilateralmente pode alterar a situação jurídica do outro sem que este outro possa a isso se opor.

A permissão pode ser verbal. Basta que na situação concreta se deduza que houve a autorização expressa para o uso transitório da coisa.

Como diferenciar na prova uma permissão de um comodato verbal? Se vocês estão no imóvel como comodatários, vocês têm detenção ou

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posse direta? Posse direta, pois comodato é a relação jurídica entre o proprietário e o comodatário.

A prova para saber se é um comodato verbal ou uma permissão incumbe a quem está fazendo uso da coisa.

Ele teria que trazer testemunha demonstrando de que apesar de ter sido tudo verbal confirmando tudo o que ocorreu.

É muito melhor ser possuidor direto do que ser detentor.

Qual é a diferença de uma permissão para uma tolerância? Tolerância é a autorização tácita para o uso de um bem.

Há uma outra diferença: sempre quando há uma permissão, primeiro se permite e depois começa-se a fazer uso. A permissão é sempre prévia. Já a tolerância só se dá a posteriori. Só lá na frente que se considera que houve uma tolerância.

Leandro, vamos supor que eu sou seu vizinho, eu moro no 101 e você no 102. Só que eu tenho vaga de garagem e você não tem. Mas Leandro tem um carro e pergunta a Nelson se pode utilizar sua vaga de garagem. Isso é permissão.

Mas vamos supor que ele coloque o carro na vaga do Nelson sem pedir. E como Nelson não tem carro, vai deixando estacionar o carro na sua vaga.

Se ele fica 5 anos com o carro todo dia na minha vaga, ele vai usucapir a minha vaga de garagem? Não, pois não são 5 anos de posse, são 5 anos de detenção ou tolerância.

Foram 5 anos que eu tolerei porque foram 5 anos de consentimento tácito para o uso da coisa, foram 5 anos em que eu fui condescendente.

Como distinguir tolerância de posse? Você tem que entrar na cabeça do usuário e perguntar se ele sabia que estava na esfera de vigilância alheia. Se ele sabia que estava sendo vigiado, fiscalizado, é tolerância.

A pessoa que faz uso da coisa na tolerância sabe muito bem que a qualquer hora a situação dela pode ser rompida. Ele não pediu autorização, mas ele sabe que a situação dele é transitória e que a qualquer hora ele pode ser retirado. Eu tenho um terreno no Recreio e o abandonei. Washington permaneceu nele por 20 anos e ajuizou usucapião.

Eu alego em defesa que Washington não tem direto a usucapir porque durante esse tempo ele não teve posse eu tolerei que lá ele

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permanecesse. Esse argumento cola? Não. Vocês jamais podem confundir o proprietário que tolera com o proprietário que é inerte.

Quando o proprietário tolera que alguém use o que é seu esse proprietário está fiscalizando. Então, você não tem posse. Tem apenas detenção.

Mas quando o proprietário é inerte, ou seja, abandona o que é seu, quem entra lá já é um possuidor que poderá usucapir se tiver todos os requisitos do Código civil. Então, essa é a diferença entre a tolerância e a inércia.

É justamente com base nesses raciocínios que cada vez mais alguns autores, e eu também coloco isso no meu livro de direitos reais, dizem que a tolerância vai ter que sumir do mapa em razão da supressio com o abuso de direito.

Porque nos tempos atuais é muito difícil você acreditar em uma história de um proprietário que tolerou que alguém ficasse no que é seu por 5 ou 10 anos. Não tolerou nada.

Se tolerou por 5 ou 10 anos, houve, na verdade, supressio que é a supressão do seu direito subjetivo pelo não exercício por um tempo determinado.

Se você não exerce o seu direito por um determinado tempo, o seu não exercício faz nascer no outro, que é o possuidor, uma legítima expectativa de confiança de que você abandonou a coisa, fazendo com que ele se tornasse possuidor da coisa.

O STJ tem precedente de supressio em matéria de questões possessórias para que vocês saibam que toda tolerância tem que ser por prazos curtos. Tolerância em prazos longos hoje em dia já indica justamente a questão da supressio que é abuso do direito.

Art. 1208, CC: “Não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância assim como não autorizam a sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a clandestinidade”.

Se não induz posse, esses atos induzem detenção.

Terceira situação em que nós não temos posse, mas sim detenção. Exercício de violência ou clandestinidade.

Leandro, você é possuidor de um terreno. Zé Rainha invade esse terreno e te põe pra fora. O que imediatamente você pode fazer contra o Zé Rainha antes de ajuizar a ação possessória? Pode exercer a autotutela.

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Quantos dias você tentou voltar a esse imóvel usando a autotutela? 10 dias. Por 10 dias Leandro não aceitou a invasão e ficou tentando voltar.

Nesses 10 dias em que o Zé Rainha está no imóvel tomando conta de tudo ele tem posse? Não. Ele tem detenção, pois ele está fazendo exercício da violência.

Enquanto a pessoa exercita a violência, ela não adquiriu posse. Ele é mero detentor. O direito não poderia permitir que uma pessoa que use a força seja privilegiada pelo ordenamento jurídico.

Se o Zé Rainha fosse possuidor pelo simples fato de estar na coisa, o que ele poderia fazer quando o Leandro começasse a reagir? Ele poderia ajuizar uma ação possessória contra o Leandro. Ou seja, o ordenamento jurídico seria obrigado a agir para defender um agressor, um esbulhador.

É por isso que enquanto ele está usando a violência, ele só é detentor. Essa é a segunda parte do art. 1208, CC. Leandro, no 11º dia você foi embora. Nesse dia Zé Rainha virou possuidor? Virou. Ele virou possuidor porque ele parou de exercer a violência.

Mas vocês vão aprender daqui a pouco que ele passa a ter uma posse injusta. Mas já deixou de ser detentor, ou seja, já cessou o exercício da violência.

Quarta e última situação em que nós podemos falar que não existe posse, mas sim detenção. Vamos ao exemplo.

O Flávio estava me contando que ele não tem onde morar e fica perambulando pela rua. Ele, então, pediu para o Carlos, aqui do Praetorium, para morar em uma caixa de papelão na esquina.

Hoje chegaram uns policiais e mandaram ele sair de onde estava dormindo. Ele disse para os policiais que ele tinha posse do cantinho da rua onde ele estava dormindo.

Ele está errado. Ele não tem posse desse canto da rua porque a rua é bem público. Não existe posse de bem público de uso comum do povo e de bem público de uso especial.

Não existe posse desses bens porque os bens de uso comum do povo e os de uso especial são bens inalienáveis, são bens que estão fora do comércio. Por isso, ninguém pode possuí-los, visto que esses bens são afetados à coletividade ou afetados ao exercício de atividades públicas.

O art. 100, CC trata da inalienabilidade, da posição desses bens públicos como bens imunes a qualquer posse de terceiros.

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Então, é claro que o que existe é detenção.

Isso é importante porque se a pessoa está morando na rua a polícia pode usar de meios moderados para retirar essa pessoa de lá, justamente porque é mero detentor. Se ele fosse possuidor daquele canto da rua, só poderia ser retirado de lá com ação possessória.

Washington, você está ocupando um terreno que estava vago há 5 anos. Depois de 5 anos, chega uma pessoa e fala que esse terreno pertence ao município do Rio de Janeiro. Isso é posse ou é detenção? Isso é posse.

Como é posse se é bem público? É bem público, mas não é bem público de uso especial ou de uso comum. É bem público dominical ou patrimonial.

Quando o particular está em bem público patrimonial detém posse, pois o bem público patrimonial é coisa fora do comércio? Não. É bem que está dentro do tráfego jurídico.

Não obstante ele ter posse desse bem, ele consegue usucapir? Não, pois não cabe usucapião de qualquer bem público.

Então, qual foi a vantagem dele ter tido posse se ele não consegue usucapião? Vocês vão aprender a partir de amanhã que a vantagem de ser possuidor ou de ser detentor não é a possibilidade de conseguir a usucapião. É a vantagem de ser possuidor. É muito melhor ser possuidor do que ser detentor.

O possuidor vai ter direito às benfeitorias que ele fez na coisa, vai ter direito aos frutos, ele só pode ser posto para fora por ação possessória.

Não tem posse de bem público de uso comum do povo e de uso especial à luz do art. 100 do CC.

O Teatro municipal do Rio de Janeiro é bem público de uso especial. O município pode arrendar a lanchonete do Washington? Pode. Em razão do contrato de arrendamento ele pode se tornar um concessionário de um bem público.

Como concessionário de um bem público ele é possuidor. Ele tem posse direta porque ele se relaciona com o estado, não como detentor, mas através de uma relação contratual.

Eu queria fazer um resumo do que a gente já viu até agora.

Hoje se eu pudesse falar para vocês qual é a natureza jurídica da posse...

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É um absurdo falar da natureza da posse como uma coisa só. Com relação à natureza da posse eu tenho 3 dimensões.

A primeira é a seguinte: PR = PO. Isso quer dizer que o proprietário é a mesma pessoa que o possuidor.

Quando o proprietário se confunde com a pessoa do possuidor? Quando há propriedade plena, que ocorre quando ele é proprietário e possuidor.

Qual é a natureza jurídica dessa posse? Eu posso dizer que ela é um direito real? É, pois ela emana da propriedade. Ela não passa de uma visualização da propriedade.

Washington, você é proprietário de um apartamento e está morando nele. Essa posse não passa exatamente de um direito real. Ela é uma derivação da propriedade.

Vamos ver a segunda dimensão.

Quando é que o proprietário coloca uma outra pessoa na posição do possuidor? Quando acontece o desdobramento da posse.

No desdobramento da posse acontece um fenômeno interessante que o proprietário transfere parcela do domínio para outra pessoa. E aí esse terceiro passa a se chamar possuidor direto e o proprietário passa a se chamar possuidor indireto.

Essa posse direta é sempre uma relação jurídica entre o proprietário e o não proprietário.

Então, surge a posse quando eu sou proprietário ou surge a posse quando o proprietário através de uma relação jurídica coloca terceiro em posição de exercer poderes dominiais.

A terceira dimensão é a seguinte situação: Leandro, vamos supor que você encontre um terreno abandonado e começa a morar nesse terreno abandonado. Você é possuidor? É.

Ele é o proprietário? Não. Ele tem relação jurídica alguma com o proprietário? Não tem. Então, ele é o possuidor que não tem qualquer vinculação com a pessoa do proprietário.

Sabe como eu chamo essa posse dele? Posse natural. O que é posse natural? A posse natural é uma posse desvinculada de qualquer relação jurídica com o proprietário.

É o contrário da chamada posse civil. A posse civil é obtida através de uma relação jurídica.

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A posse natural é independente de qualquer relação jurídica com o proprietário.

O possuidor natural tem posse direta? Não, pois ele não tem relação jurídica com ninguém. Ele apenas tem posse ou posse natural.

O proprietário que não está morando no imóvel tem posse indireta? Não tem. Ele será chamado de proprietário sem posse.

No primeiro caso ele é possuidor porque tem direito real de propriedade, no segundo caso ele é possuidor porque tem relação jurídica com o proprietário e no terceiro caso ele tem posse porque a posse natural é um ato-fato.

Ato-fato é qualquer conduta humana que produz efeitos jurídicos independente do elemento volitivo.

Então, a posse natural é um ato-fato. Ela não é um negócio jurídico realizado com ninguém. Ela não se trata de um negócio jurídico onde se exige agente capaz, objeto lícito e ato prescrito em lei.

Se o sujeito que vocês estão analisando não está nem no caso 1 ou no caso 2 ou no caso 3, então ele é detentor. O detentor é sempre alguém que por exclusão está fora desses casos.

Sempre verifiquem se o cara é empregado de alguém, se ele está ali em situação de caráter transitório, é permissionário ou por tolerância. Mas se não tiver nessas hipóteses, você já começa a pensar de que forma podemos conciliá-lo a uma hipótese de possuidor.

Art. 1228, CC: “O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”.

O art. 1228 está dizendo que a partir de agora o detentor tem legitimação passiva nas ações reivindicatórias. A constitucionalidade da palavra detentor neste artigo é objeto de discussão.

Alguns autores como Alexandre Câmara dizem que ele é inconstitucional, pois ele entende que o detentor jamais poderia estar no pólo passivo de uma ação reivindicatória.

Se eu sou proprietário de um apartamento e Washington está lá possuindo. Esse proprietário que não é possuidor ajuíza uma ação reivindicatória. Mas vamos supor que no ajuizamento da ação reivindicatória eu não ajuizei contra o Washington, eu ajuizei contra Zezinho que é caseiro dele. Eu confundi.

O art. 1228 está dizendo que o detentor é parte legítima para ser réu nessa demanda reivindicatória. Se fosse isso, o Alexandre Câmara teria

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razão total, pois o detentor não pode ser réu na ação reivindicatória porque se essa ação for julgada procedente contra ele e transitar em julgado contra ele, pode ser executada essa decisão contra Washington?

Claro que não, pois viola o devido processo legal, viola o contraditório, visto que o possuidor não foi parte na demanda. Então, é claro que seria inconstitucional.

Mas eu mostro que o código civil agiu certo ao colocar o detentor no art. 1228. É pelo seguinte, essas duas hipóteses do servidor da posse e da permissão, a doutrina chama isso de detenção dependente.

Detenção dependente porque as pessoas que estão ali são dependentes do possuidor, do proprietário.

Quando o Zé Rainha entra no terreno de alguém exercendo a violência, ele é detentor, mas ele é detentor dependente de alguém? Não. A detenção dele é a chamada detenção autônoma.

Quem detém a coisa porque está fazendo uso da violência é o detentor autônomo.

Se eu sou proprietário de um bem e o Zé Rainha o invade usando a violência, contra quem eu vou ajuizar a reivindicatória? Contra o Zé Rainha que é o detentor. Ele não é possuidor porque ele está fazendo uso da violência.

Na palavra detentor que está no final do art. 1228 é legítima nos casos de detenção autônoma. É contra esse detentor autônomo que eu vou ajuizar a minha ação reivindicatória. Eu terminei essa parte e de agora até 12:30h eu vou começar outra questão que é a questão mais importante da aula.

Vou começar agora a falar sobre a classificação da posse. Toda posse é classificada pelos seus vícios e toda posse pode padecer de um vício objetivo ou de um vício subjetivo.

Toda vez que alguém falar em vício objetivo da posse, essa posse é uma posse injusta.

A posse injusta é uma posse que padece de vícios objetivos.

Quais são as três situações em que a posse pode ser injusta? Pela violência, clandestinidade ou precariedade. Art. 1200, CC.

O código civil não conceitua o que é uma posse justa. Então, vocês vão conceituar por exclusão. Posse justa é aquela que não sofre de nenhum dos 3 vícios do art. 1200, CC. É aquela que não foi adquirida por violência, clandestinidade ou precariedade.

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A posse justa é aquela que foi adquirida de modo regular, conforme o direito.

Posse violenta é aquela adquirida pela força ou pela ameaça. É aquela adquirida pela vis absoluta ou pela vis compulsiva.

Posse clandestina é aquela posse adquirida às ocultas, sem ofensividade. É aquela posse adquirida na calada da noite. A posse clandestina não é marcada pela força ou pela ameaça a ninguém. O que a pessoa usa é a possibilidade de esconder o fato de quem deveria saber.

Imaginem que o Flávio tem uma mansão em Búzios. Mas o Flávio sempre fica no Rio de Janeiro. Em um desse períodos em que ele está no RJ, Zé Tainha, um pescador, entra na sua casa sabendo que você está aqui no Rio de Janeiro.

A posse de Zé Tainha é justa ou injusta? Injusta, pois ele se utilizou da clandestinidade.

Zé Tainha fez uma rave na mansão e chamou todos que moram em Búzios. Só o Flávio não ficou sabendo. Ainda assim é clandestina a posse? A clandestinidade não é erga omnes, a clandestinidade é contra quem deveria saber.

Precariedade é o abuso do direito de quem retém indevidamente o bem além do prazo normal de devolução.

Rafaela, você é minha comodatária por 5 anos. Quando acabou o prazo do comodato você disse que não iria sair do imóvel. Durante os 5 anos do comodato ela tinha uma posse direta e justa. Quando terminou o prazo e ela disse que não iria sair, ela passou a ter posse injusta por precariedade.

O possuidor precário é justamente aquele que se recusa a restituir o bem quando termina a relação jurídica que lhe deu origem. Então, a posse da pessoa que era justa se converte em injusta pela precariedade.

Na precariedade o possuidor que tem a coisa em nome alheio quer se converter em possuidor em nome próprio.

Se isso fosse uma aula de penal eu diria que se aplicariam os artigos 157, 155 e 168 do Código penal.

O art. 157 é o roubo. O cara que usa a violência está roubando o que é de vocês. O cara que se utiliza da clandestinidade, pratica um furto na calada da noite. E a precariedade é a apropriação indébita, é justamente aquela pessoa que já faz uso da coisa em nome alheio, mas indevidamente quer converter esse uso da coisa em nome alheio em uso da coisa em nome próprio.

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Por que é que no exemplo que eu dei do Zé Rainha, a posse dele era violenta e no outro exemplo a posse dele usando a violência era detenção? Nunca esqueçam. Toda vez que vier uma questão de concurso dizendo “Fulano tem posse violenta” ou “Fulano tem posse injusta por violência”.

Se alguém tem posse violenta, é por que essa violência está ainda sendo executada ou um dia já se executou? É porque um dia já se executou porque se por acaso Zé Rainha ainda está usando da violência, ele não tem posse. Ele tem detenção.

Naqueles 10 dias em que o proprietário estava tentando entrar no imóvel o Zé Rainha só tinha detenção. Mas no 11º dia em que você desistiu de brigar com o Zé Rainha, ele deixou de ser detentor e passou a ter posse violenta pelo uso da força ou da violência.

Toda posse que se chama violente é para dizer que um dia aquilo começou com o uso da violência, mas que a violência já cessou. Tanto é que deixou de ser detenção e virou posse.

E o mesmo ocorre com a clandestinidade. Se fala que a posse é clandestina, é porque um dia o Zé Tainha começou aquilo usando da clandestinidade, mas essa clandestinidade já cessou e agora é uma posse clandestina.

Esses vícios da posse querem nomear o modo pelo qual se deu a aquisição da posse. Por isso é que se chama vício objetivo.

A pessoa adquire a posse com base na violência, clandestinidade ou precariedade. É um desses vícios que macula a posse e esta se torna injusta.

Qual é a diferença entre esses três elementos? Tem uma diferença que é captada de forma bem visível. Violência e clandestinidade são vícios que se dão a priori. Já a precariedade é um vício que se dá a posteriori.

Toda pessoa que exerce uma posse violente ou clandestina, qual foi o momento em que se deu a violência ou a clandestinidade? No início da posse. O cara já começou a possuir usando a violência ou a clandestinidade.

Já na precariedade não é isso que acontece. Na precariedade antes de ter uma posse precária, tinha uma posse justa. E essa posse justa no meio do caminho perdeu o caráter de posse justa e se tornou posse injusta. A precariedade sempre envolve uma situação de uma posse que um dia já foi justa e se torna uma posse injusta.

O Zé Rainha que começou a posse violenta e fica no terreno por mais dez anos, ele pode usucapir? Se ninguém incomodá-lo pode? Pode. Ele pode ter usucapião extraordinária que não exige justo título nem boa-fé.

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Os vícios da violência e da clandestinidade são vícios sanáveis pela usucapião. Se há posse mansa e pacífica, será possível a usucapião.

A maioria dos doutrinadores não admite que a precariedade seja sanada. Eles tiram isso de uma interpretação equivocada do art. 1208, CC.

Olha o art. 1208, CC: “Não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância assim como não autorizam a sua aquisição ao atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a clandestinidade”.

Alguns autores dizem que esse art. 1208 apenas diz que cessa violência e clandestinidade. Então, o vício da precariedade seria um vício insanável.

É claro que vocês já perceberam que essa leitura literal não pode vingar.

Por que o art. 1028 só menciona a cessação da clandestinidade e da violência e não menciona a precariedade? É claro que nesse artigo não há que se falar na precariedade porque a violência e a clandestinidade são vícios originários. E se eles são vícios que se dão no início, lá na frente eles podem desaparecer. Apesar da literalidade do art. 1208, mesmo a precariedade pode sanar.

Washington, vamos supor que você foi meu locatário por 30 meses. Nesses 30 meses em que ele foi meu inquilino ele teve posse? Ele teve posse direta. Ele teve animus domini? Não.

Locatário e comodatário não têm animus domini porque eles sabem que eles estão na coisa em decorrência de uma relação jurídica com o proprietário.

Acabou o contrato de locação, Washington parou de pagar o aluguel, mas ele não quer sair do imóvel. Que posse ele passou a ter agora? Injusta por precariedade.

Vamos supor que ele não quer sair e ele fica mais 27 anos no imóvel e eu me desinteressei completamente em pleitear o imóvel. Ele tem a usucapião?

A posse dele nasceu sem animus domini. A doutrina tradicional diz que a posse dele nunca é sanada pela usucapião, pois a posse nunca perde o caráter pelo qual ela foi adquirida.

Ela não foi adquirida com o caráter de posse sem animus domini? Então, por mais que ele tenha ficado lá sem pagar aluguel por 30 anos, ele nunca vai usucapir porque a posse fica presa a sua causa originária que, no caso, não havia animus domini.

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Art. 1203, CC: “Salvo prova em contrário, entende-se manter a posse o mesmo caráter com que foi adquirida”.

E nesse “salvo prova em contrário” não pode entrar a usucapião do Washington? Pode. Esse “salvo prova em contrário” tem sido respondido na jurisprudência justamente para se admitir o fenômeno da interversão da posse.

Interversão da posse significa alteração do caráter da posse. A interversão do caráter da posse se dará nos casos em que com o passar do tempo altera-se a conduta do possuidor perante a coisa.

Washington a sua posse era direta e justa. Como passar do tempo a posse dele que era despida de animus domini passou a ter animus domini porque o cenário concreto demonstra que ele parou de pagar aluguel e o proprietário em nenhum momento reivindicou a coisa. Então, isso gera uma alteração no caráter da posse.

A interversão da posse não passa da emanação do princípio da função social da posse. Quem é que eu tenho que privilegiar depois de 27 anos sem pagar aluguel: o proprietário desidioso ou o possuidor? O possuidor.

Tem até precedente do STJ nesse sentido admitindo a interversão da posse.

Olha o enunciado 237 do CJF: É cabível a interversão da posse na hipótese em que o então possuidor direto demonstrar ato exterior e inequívoco de oposição ao antigo possuidor indireto tendo por efeito a caracterização do animus domini.

O ato inequívoco de oposição que Washington praticou foi parar de pagar aluguel e não devolveu o imóvel. Como o proprietário nada fez, como tempo nota-se a interversão da posse e o nascimento do animus domini.

Vamos ver vício subjetivo da posse. Vício subjetivo não se relaciona com posse justa ou injusta, mas sim com posse de má-fé.

Posse de má-fé é a posse subjetivamente viciada.

Boa-fé para uma aula de usucapião não é o mesmo conceito para uma aula de posse. Para fins de usucapião o possuidor de boa-fé é aquele que tem a falsa convicção de que é o dono da coisa. Possuidor de boa-fé para fins de posse de forma geral é aquele que ignora não culposamente o vício da posse.

Art. 1201, CC: “É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa”.

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Qual é o conceito que está mais determinado? O meu ou o do código? O meu, pois faltou o código dizer que o possuidor ignora não culposamente o vício.

Eu tenho dois conceitos de boa-fé: um psicológico e outro ético. O conceito do Código civil é um conceito psicológico, mas eu não me contento com esse conceito, mas sim como ético.

Então, como eu transformo o conceito do art. 1201 em ético? Basta incluir ao lado de “ignora” a expressão “não culposamente”.

Patrícia, imagina que você vende para o Washington por R$ 100 mil um terreno ao lado do Pão de Açúcar. A posse que ele tem é de boa ou de má-fé? É de má-fé.

O código civil diz que possuidor de boa-fé é aquele que ignora o vício. Se esse conceito fosse suficiente, ele seria um conceito de boa-fé psicológico, ou seja, Washington ignora o vício da posse.

Só que isso iria gerar insegurança jurídica porque esse conceito de boa-fé meramente psicológico protege o cara que é desidioso, que não providenciou a documentação.

Possuidor de boa-fé é o cara que ignora o vício da posse mesmo tendo agido com toda diligência. Ele ignora pois praticou um erro escusável, que qualquer pessoa nessa sala poderia ter caído.

Eu alugo um apartamento para Rafaela. Depois aparece Washington dizendo que ele te alugou um apartamento que não era dele. Nesses 6 anos a sua posse foi de boa ou de má-fé? Foi de boa-fé, pois mesmo ela tendo sido cuidadosa, ela alugou apartamento de quem não era dono.

Isso não é boa-fé objetiva porque a boa-fé objetiva está no direito das obrigações. Essa é uma boa-fé subjetiva.

A boa-fé tem que ser ética. Não basta que o possuidor seja ignorante. Ele pode ser um ignorante que ignorou tendo sido diligente e cuidadoso.

Qual é o momento em que a Rafaela deixa de ser possuidora de boa-fé e passa a ser possuidora de má-fé? Quando você passa a ter ciência dos vícios da posse.

E quando é que o possuidor passa a ter ciência dos vícios da posse? A partir da citação.

Só é possível retirar alguém do estado da boa-fé diante do devido processo legal.

Então, a citação é o momento da conversão da boa-fé em má-fé.

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Art. 1202, CC: “A posse de boa-fé só perde este caráter no caso e desde o momento em que as circunstâncias façam presumir que o possuidor não ignora que possui indevidamente”.

Interpretando o art. 1202 conforme a Constituição, qual é o momento em que uma pessoa não ignora mais que possui indevidamente? A partir da citação.

A posse injusta está ligada a vício objetivo porque a questão incide na forma como se adquiriu a posse. São vícios que se percebe de forma objetiva.

A boa-fé quando se converte em má-fé é um vício subjetivo porque é uma questão de índole interna. Eu tenho que aferir a motivação do possuidor sobre a coisa. Os vícios objetivos e subjetivos da posse são independentes? É possível que uma posse seja justa e de má-fé ou injusta e de boa-fé? Claro que pode. Não há necessária correspondência entre vício objetivo e vício subjetivo.

Às vezes a posse pode ser viciada objetivamente e ser uma posse de boa-fé. Às vezes a posse é justa e é uma posse de má-fé.

É importante saber se a posse é justa ou injusta porque só pode ser réu em ação possessória uma pessoa que tem posse injusta.

É importante saber se a posse é de boa-fé ou de má-fé para fins de direito aos frutos, direito às benfeitorias e direito à usucapião ordinária. Só pode ter usucapião ordinária quem tem posse de boa-fé.

Gente, valeu. Amanhã às 10:15h.

Rio, 22.11.2007

Em matéria de efeitos da posse nós temos 4 efeitos: direito aos frutos, direito às benfeitorias, direito às ações possessórias e direito ao usucapião.

Desses 4 eu não vou tratar com detalhes do direito ao usucapião, pois essa matéria já foi estudada.

Qual é a diferença entre a posse ad interdictae e posse ad usucapionem? Posse ad interdictae é aquela que faculta o possuidor manejar os interditos possessórios.

Interditos possessórios são as ações possessórias.

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Quem tem posse interdictae? Qualquer possuidor. Basta ser possuidor que você pode ajuizar ação possessória, mesmo que aposse seja injusta, de má-fé ou indireta.

Eu não estou dizendo quem vai ganhar a lide. Eu estou dizendo quem tem legitimidade para ajuizar o interdito possessório.

Quem não tem posse ad interdictae é o detentor. O detentor não pode ajuizar ação possessória.

Se todo e qualquer possuidor tem posse ad interdictae, o mesmo não se diga da posse ad usucapionem. Nem todo possuidor tem posse ad usucapionem.

Para ter posse ad usucapionem, além da posse deve-se ter animus domini. Sem animus domini, a pessoa tem apenas posse ad interdictae.

Mas se tiver animus domini, além de ajuizar ação possessória, você também pode pleitear usucapião.

Então, a posse ad interdictae é para todos e a posse ad usucapionem é apara alguns cuja posse é qualificada pelo animus domini.

Vamos falar sobre o direito aos frutos com relação à posse. Essa matéria é própria da parte geral do código civil.

Frutos são ut i l idades da coisa que se reproduzem periodicamente. Frutos são bens imóveis por acessão natural.

Se eu sou dono de um terreno, a maçã que está na árvore é bem imóvel por acessão natural. Deixa de ser imóvel quando eu tiro o fruto e passa a ser bem móvel.

Quais são os 3 tipos de frutos? Naturais, civis e industriais.

Os naturais são aqueles obtidos diretamente da natureza. Temos como exemplo o leite da vaca.

Os industriais decorrem da atuação do homem sobre a natureza.

Se eu tenho uma fazenda e a arrendo, esse aluguel é fruto? É fruto civil. Fruto civil é uma remuneração pela cessão da posse a outrem.

Frutos são bens acessórios, bens imóveis por acessão natural, são utilidades que a coisa produz periodicamente e que se dividem em naturais, industriais e civis.

Qual é a diferença entre frutos e produtos? Poço de petróleo é fruto porque os frutos produzem e reproduzem, já o produto produz, mas ele não reproduz.

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O produto, na medida em que ele vai sendo retirado, ele se exaure, ele não se renova. Ao contrário dos frutos, visto que eles não obstante serem retirados, eles são renovados periodicamente. A quem pertencem os frutos naturais e industriais? Ao proprietário. Art. 1232, CC.

Art. 1232, CC: “Os frutos e mais produtos da coisa pertencem, ainda quando separados, ao seu proprietário, salvo se, por preceito jurídico especial, couberem a outrem”.

Princípio da gravitação jurídica significa que o acessório gravita em torno do principal. Se eu sou proprietário de um terreno e o solo é meu, os frutos também me pertencem.

Por que é que na parte final do art. 1232, CC está escrito “salvo se, por preceito jurídico especial, couberem a outrem”? Quando é que os frutos não pertencem ao proprietário? Qual é o motivo jurídico dos frutos não pertencerem ao proprietário?

Eventualmente o fruto não pertencerá ao proprietário. Pertencerá a quem tem posse de boa-fé.

Beto, você é proprietário de um terreno desde 2000 e você aluga esse imóvel recebendo frutos civis. Até hoje, ou seja, há sete anos você vem recebendo aluguéis.

Em 2007 aparece Washington e diz que você não é o dono da coisa. Washington ajuíza uma ação reivindicatória contra Beto dizendo que ele não é dono. Hoje você foi citado para essa ação reivindicatória

Caso Beto seja derrotado nessa ação reivindicatória terá que restituir todos os aluguéis que recebeu durante esses sete anos? Não, pois nesse período a sua posse foi de boa-fé.

Art. 1214, CC: “O possuidor de boa-fé tem direito, enquanto ela durar, aos frutos percebidos”.

Frutos percebidos são aqueles colhidos na constância da boa-fé.

Se o possuidor estava de boa-fé e deu função social à posse, nada mais natural que a boa-fé dele seja homenageada.

Mas ele foi citado em novembro de 2007 e em 2010 a ação reivindicatória do Washington foi julgada procedente. Esses aluguéis que o Beto recebeu de 2007 a 2010 deverão ser restituídos ao Washington? Tem, pois nesse período ele já estava de má-fé, foi posterior à citação.

Como se chamam os frutos que o possuidor colhe já na constância do processo? Frutos pendentes.

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Frutos pendentes são os frutos fruídos na constância da má-fé. Esses devem ser restituídos ao reivindicante, que é Washington.

Art. 1214, § único: “Os frutos pendentes ao tempo em que cessar a boa-fé devem ser restituídos, depois de deduzidas as despesas da produção e custeio; devem ser também restituídos os frutos colhidos com antecipação”.

Quando o Beto foi citado, ele abandonou o imóvel e após três anos, Washington ganhou a ação.

Washington teria direito de receber tudo o que Beto embolsou durante esses três anos. Só que ele nada recebeu. Pode Washington exigir do Beto tudo aquilo que ele teria recebido nos 3 anos se ele tivesse ficado ali depois da citação? Pode. São os frutos despiciendos.

Frutos despiciendos são aqueles frutos que não são colhidos por negligência do possuidor de má-fé.

Art. 1216, CC: “O possuidor de má-fé responde por todos os frutos colhidos e percebidos, bem como pelos que, por culpa sua, deixou de perceber, desde o momento em que se constituiu de má-fé; tem direito às despesas da produção e custeio”.

O proprietário faz jus a esses frutos despiciendos porque se ele estivesse no terreno teria produzido sobre ele.

Se s sentença for julgada improcedente, o Beto nunca esteve de má-fé.

O Beto tem direito aos frutos percebidos em decorrência da boa-fé. Ele não tem direito aos frutos pendentes que são aqueles colhidos após a citação.

Os frutos despiciendos, que são aqueles que o possuidor ao momento em que foi citado deixou de colher por irresponsabilidade e negligência.

Vamos falar sobre benfeitorias.

Benfeitorias são obras ou despesas efetuadas na coisa para fins de conservação, melhoramento ou embelezamento.

Santino, você tem uma casa e nela você faz uma piscina. Qual é a natureza dessa benfeitoria? Depende.

Nunca, de forma estanque, classifique benfeitoria como necessária, útil ou voluptuária. Tudo vai depender do caso concreto utilizando a regra da essencialidade.

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Quando nós falamos em piscina, estamos acostumados a pensar em piscina para diversão, em benfeitoria voluptuária. Mas vamos supor que nessa casa funcione uma escola para crianças, essa benfeitoria se torna útil.

E se nessa casa onde se construiu a piscina for uma escola de natação, essa piscina é uma benfeitoria necessária. Então, tudo depende da configuração da essencialidade. Isto é, deve-se pensar na relação entre a coisa principal e a benfeitoria. Quanto mais essencial para a exploração da coisa principal for a benfeitoria, mais ela será necessária. À medida que a essencialidade vai sendo reduzida cai para útil e, por fim, cai para voluptuária.

Mariana, se por acaso você possui um terreno há muito tempo e você gastou dinheiro pagando despesa de IPTU, com a demarcação do terreno, com adubo para as plantas e ração para os animais. Essa despesa é benfeitoria necessária, útil ou voluptuária? É benfeitoria necessária.

Benfeitoria é qualquer despesa ou obra que se incorpora permanentemente à coisa.

Se no terreno a Mariana coloca uma vaca para pastar e um trator para puxar o arado. Essa vaca e o trator são benfeitorias? Não, são pertenças.

Qual é a diferença entre uma benfeitoria e uma pertença? A benfeitoria sempre se incorpora permanentemente à coisa. Já as pertenças não se imobilizam. Elas continuam sendo bens móveis com a sua autonomia perante a coisa.

Quando eu vendo a fazenda, a vaca e trator entram no negócio ou não? Não entram. Apenas entram no negócio se tiver cláusula de porteira fechada.

Se não tiver essa cláusula, eles não entram no negócio porque são bens imóveis autônomos.

Se eu tenho um terreno e nesse terreno eu levanto uma casa, que tipo de benfeitoria é essa casa? Isso não é benfeitoria. Isso é acessão.

Qual é a diferença entre benfeitoria e acessão? Acessão é modo de aquisição da propriedade. Quando eu faço uma acessão, a acessão está inovando onde até então nada existia.

A marca da acessão é o efeito da inovação. Eu estou dando destinação econômica à coisa onde até então nada havia. Essa é a característica das construções.

É por isso que quando a casa fica pronta deve-se averbar a sua construção no RGI, pois é modo de aquisição da propriedade.

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Mas se eu tenho uma casa e coloco uma garagem nessa casa, essa garagem é benfeitoria, visto que as benfeitorias são sempre coisas acessórias. A benfeitoria é sempre uma obra feita em função de uma coisa já existente. Eu faço a garagem para dar mais comodidade ao uso da casa.

A benfeitoria é uma coisa acessória e a acessão é o principal.

Quais são as conseqüências da realização de benfeitorias para o possuidor de boa-fé ou para o possuidor de má-fé?

Flávio, imagina que você é um invasor do MST e você entra em um terreno que tem uma casa. Como a casa está caindo, o Flávio gasta seu dinheiro fazendo um muro de arrimo evitando que a casa caia.

Amanhã quando o invasor for posto para fora, o retomante vai ter que indenizar o invasor pela benfeitoria que ele fez?

Ele é um possuidor de má-fé, pois ele não ignora os vícios da posse. Então, por que ele vai ser indenizado? Porque trata-se de uma benfeitoria necessária.

E por que a benfeitoria necessária tem que ser indenizada? Porque essa benfeitoria necessariamente teria que ser realizada pelo proprietário se ele lá estivesse.

Em razão disso, mesmo sendo possuidor de má-fé ele é indenizado para evitar enriquecimento sem causa. Se fosse possuidor de boa-fé também teria indenização? Teria.

Qual é a diferença entre entrar em terreno alheio de boa-fé ou de má-fé se vai ser indenizado do mesmo jeito? Tem. É a novidade do art. 1222, CC.

Se por acaso quem fez a benfeitoria necessária foi o possuidor de boa-fé, ele será indenizado pelo valor atual da obra.

Mas se quem realizou a benfeitoria foi o possuidor de má-fé, o retomante tem o direito potestativo de escolher se vai indenizar pelo valor atual da obra ou se pelo gasto realizado em sua edificação. O retomante passa a ter uma opção a mais. Ele escolhe o que lhe for economicamente mais interessante.

Isso é para demonstrar que a posse de boa-fé tem mais valor do que a posse de má-fé e o código deve reconhecer isso em nível jurídico.

Flávio, além de fazer esse muro de arrimo, você colocou um banheiro a mias nessa casa. Você vai ser indenizado por esse banheiro que você construiu? Não, pois possuidor de má-fé só tem indenização por benfeitoria necessária. Não tem indenização por benfeitoria útil.

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Benfeitoria útil visa dar mais comodidade à coisa.

Mas Flávio, se você estivesse de boa-fé e colocasse esse banheiro você seria indenizado? Seria.

Possuidor de boa-fé é indenizado pelas benfeitorias necessárias e úteis.

Flávio, você que é possuidor de má-fé, ao invadir essa casa fez uma piscina olímpica. Você será indenizado por ela? Não.

E se você tivesse de boa-fé, seria indenizado pela piscina? Também não, pois mesmo o possuidor de boa-fé não tem indenização pela benfeitoria voluptuária.

Por que isso ocorre? Porque as benfeitorias voluptuárias não passam de um capricho do possuidor. E esse capricho não interessa ao retomante. Então, não haverá indenização mesmo se estivesse agindo de boa-fé.

O que o possuidor de boa-fé pode fazer caso o retomante diga que não vai indenizar a benfeitoria voluptuária? Ele poderá usar o seu direito de levantar a benfeitoria voluptuária.

No caso da piscina, o possuidor de boa-fé poderá levantá-la? Não, pois para levantar a benfeitoria voluptuária, o possuidor não poderá acarretar danos à coisa.

Nas hipóteses em que o levantamento trouxer danos à coisa, não há sequer a chance de levantar a benfeitoria voluptuária.

Possuidor de boa-fé recebe indenização pelas benfeitorias necessárias, pelas benfeitorias úteis e poderá levantar as benfeitorias voluptuárias, desde que retire a coisa sem que haja dano.

O possuidor de má-fé recebe indenização apenas pelas benfeitorias necessárias.

O possuidor de boa-fé tem direito a mais o quê com relação às benfeitorias necessárias e úteis? Ao direito de retenção.

Direito de retenção é uma faculdade concedida ao possuidor de boa-fé de manter a coisa consigo para depois do prazo de devolução em caso de recusa de indenização por benfeitorias necessárias e úteis realizadas de boa-fé.

Flávio, você entra no meu terreno e, de boa-fé, você faz o muro de arrimo (benfeitoria necessária) e também faz uma garagem (benfeitoria útil).

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O que eu, que sou o proprietário, posso fazer? Eu tenho duas opções: ou eu ajuízo uma demanda reivindicatória ou eu ajuízo uma demanda possessória.

Independente de qual demanda Nelson irá ajuizar, é fundamental que vocês entendam que Flávio como réu na contestação vai dizer que o Nelson não tem direito a nada e pedir que seja julgada improcedente a sua pretensão.

Além disso, o Flávio diz na contestação que se o juiz entender que a pretensão do Nelson seja procedente, ele pede indenização pelas benfeitorias necessárias e úteis que fez de boa-fé, sob pena de enquanto Nelson não indenizar, ter o direto de retenção sobre as benfeitorias úteis e necessárias.

O direito de retenção é uma exceção substancial argüida pelo réu em defesa.

Quando vocês são réus vocês podem se defender de duas formas: defesa direta de mérito e defesa indireta de mérito.

Defesa direta de mérito ocorre quando o réu nega todas as afirmações do autor, diz que tudo que ele falou é mentira.

Defesa indireta de mérito ocorre quando você não obstaculiza a fundamentação do autor, mas você traz um fato impeditivo, modificativo ou extintivo ao direito do autor.

Qual é o fato impeditivo ao direito do autor que o Flávio trouxe como réu? Direito de retenção. É um fato impeditivo, pois mesmo que o Flávio seja derrotado na ação reivindicatória ou possessória, é o famoso “ganha mas não leva”.

Enquanto Nelson não indenizar Flávio, ele pode continuar na posse da coisa, até que ele seja indenizado pelas benfeitorias necessárias e úteis. Essa exceção substancial é dilatória ou peremptória? É dilatória porque ela apenas está adiando o momento pelo qual o réu vai sair do bem. Isso parece com a exceção de contrato não cumprido.

Exceção substancial peremptória ocorre quando você alega prescrição em defesa, anulabilidade em defesa.

No caso da exceção substancial dilatória, você quer adiar o êxito do seu adversário.

Qual é o prazo preclusivo para alegar retenção? É a contestação, pois com as últimas reformas processuais acabou qualquer possibilidade de uma sentença condenatória receber um processo de execução autônomo.

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Como não há possibilidade de exigir execução autônoma, não mais há embargos de retenção, o último momento processual para o réu se manifestar dizendo que fez benfeitorias necessárias e úteis é na contestação.

Esse é o momento fundamental, seja em uma lide possessória ou reivindicatória.

Qual é a diferença entre o direito de retenção e a posse precária? Eu já disse que quem tem posse precária é quem retém a coisa após o prazo normal para devolução.

A diferença é que a posse precária é uma posse injusta e o direito de retenção é uma posse justa, visto que o direito de retenção é obtido por sentença.

A pessoa que recebe o direito de retenção fica na coisa como depositária do bem.

Quando a sentença diz: julgo procedente a pretensão de Nelson, mas concedo a Flávio indenização pelas benfeitorias necessárias e úteis e enquanto ele não for pago, ele terá retenção. Isso quer dizer que o Flávio enquanto não for pago, fica na coisa como responsável judicial ou depositário.

Nesse período em que ele vai ficar como depositário, ele é possuidor ou detentor? Ele é possuidor.

Se o Zé Rainha invadir o imóvel, você que é o retentor terá ação possessória contra o Zé Rainha? Tem, pois você não é detentor, você é possuidor.

O depósito é uma relação jurídica. O possuidor direto não é aquele que detém a coisa através de uma relação jurídica?

Art. 1219, CC: “O possuidor de boa-fé tem direito à indenização das benfeitorias necessárias e úteis, bem como, quanto às voluptuárias, se não lhe forem pagas, a levantá-las, quando o puder sem detrimento da coisa, e poderá exercer o direito de retenção pelo valor das benfeitorias necessárias e úteis”.

Então, o art. 1219, CC é o artigo que coloca a situação do possuidor de boa-fé perante o direito de retenção.

Possuidor de má-fé tem direito de retenção? Não tem. O direito de retenção é algo específico do possuidor de boa-fé. Possuidor de má-fé apenas pode pedir indenização com relação às benfeitorias necessárias.

Se o possuidor de má-fé realizou benfeitoria necessária, ele poderá ajuizar ação ordinária de indenização, mas ele tem que devolver o bem.

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Já o possuidor de boa-fé tem a chance de opor a exceção substancial de retenção.

O que acontece se o réu esquece de pedir o direito de retenção na contestação? Ele perde o direito de retenção, mas ele ainda pode em uma ação autônoma ser indenizado pelas benfeitorias necessárias e úteis, mas sem a possibilidade de reter a coisa. Direito de retenção é meio de coerção. E é um meio de coerção porque enquanto o proprietário não pagar as benfeitorias necessárias e úteis, o possuidor não devolve a coisa.

É um meio de coerção ofensivo ou defensivo? Defensivo.

A astreinte é meio de coerção ofensivo, pois impõe-se uma multa à pessoa para que a sua conduta cesse.

Quando a relação é uma relação de locação, muda alguma coisa no que se refere às benfeitorias? Muda. Essas regras somente se aplicam quando não existe relação contratual entre o retomante e o possuidor.

Quando não existe relação contratual entre o retomante o possuidor, aplica-se o art. 1219 e o art. 1220 do código civil. Essas normas dos arts. 1219 e 1220 são normas dispositivas, pois se eles tinham um contrato, esse contrato pode ter regras diferenciadas.

No contrato de locação o inquilino quando faz benfeitorias tem direito de indenização por quais? O inquilino tem direto de indenização pelas benfeitorias necessárias. Só terá indenização pela benfeitoria útil quando autorizado pelo proprietário para que a realize. É o art. 35 da lei 8245/91.

Pode o inquilino assinar uma cláusula no contrato dizendo que ele não vai ser indenizado nem pela benfeitoria necessária que ele realizar? Pode. Como não é relação de consumo, isso está dentro da autonomia da vontade dos contratantes.

Súmula 335 do STJ: “Nos contratos de locação é válida a cláusula de renúncia à indenização das benfeitorias e ao direito de retenção”.

Essa cláusula seria válida porque não é uma relação de consuma, é um contrato feito entre particulares.

Existe contrato de adesão fora da relação de consumo? Em regra, os contratos de adesão surgem nas relações de consumo, mas é óbvio que existe contrato de adesão entre particulares.

Contrato de adesão é aquele em que as cláusulas são redigidas unilateralmente por uma das partes.

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Se eu sou proprietário de um apartamento e chego para o Washington com o contrato já pronto para ele assinar, isso não é um contrato de adesão? É.

É válida a cláusula de renúncia à indenização pelas benfeitorias necessárias em contrato de adesão? Não é válida, pois o art. 424 do CC é muito claro: “Nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio”.

Por contrato de adesão, ninguém pode renunciar a direitos decorrentes da relação contratual.

Então, a súmula 335 do STJ somente se aplica quando os contratos entre particulares forem contratos negociados. Quando é contrato de adesão eu não aplico a súmula 335 do STJ e aplico o art. 424, CC.

Vamos começar a falar de ações possessórias. Peço que vocês dividam o caderno de vocês em ius possessionis e ius possidendi.

Esqueci de falar que o enunciado 81 do CJF diz que o direito de retenção também se aplica às acessões. O enunciado 81 está ligado ao art. 1219 do CC.

Esse enunciado diz que tem direito de retenção não somente quem faz benfeitorias necessárias e úteis. Quem faz acessões de boa-fé também tem direito de retenção.

Ius possessionis é o juízo possessório. E o ius possidendi é o juízo petitório.

Ius possessionis é o direito de possuir com fundamento exclusivo nos fatos da posse.

Ius possidendi é o direito à posse, com fundamento exclusivo no direito de propriedade.

Eu sou proprietário de um terreno e o Flávio está há sete anos possuindo este terreno.

Após sete anos, Flávio é posto para fora do terreno por Nelson. O Flávio tem algum tipo de ação para que possa voltar ao terreno? Sim, a ação possessória, visto que nesta ação a causa de pedir é a posse.

Toda ação possessória é aquela que tem como causa de pedir a posse e o pedido é a posse.

A causa de pedir pode ser próxima ou remota. Causa de pedir remota é a história. No caso em tela, a história que o Flávio conta é que ele exerceu a posse deste terreno por sete anos.

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Causa de pedir próxima é a lesão que a pessoa sofreu no seu direito subjetivo. No caso, a lesão que Flávio sofreu foi que ele foi posto para fora do terreno.

Causa de pedir remota: Flávio tinha posse há sete anos. Causa de pedir próxima: Flávio foi agredido na sua posse. Pedido: Flávio quer sua posse de volta.

Quando o Flávio ajuíza a ação possessória, alguém está discutindo propriedade em algum momento? Não. A única coisa que o Flávio está dizendo é que ele exercia o fato da posse e ele sofreu uma agressão a essa posse pré-existente que ele tinha. É só isso que o juiz quer saber em uma ação possessória.

Esses quesitos são suficientes para se exercer a ação possessória.

Flávio, eu comprei o seu apartamento e registrei a escritura de compra e venda no ofício imobiliário. Então, Nelson é o novo dono. Quando Nelson vai para o imóvel, Flávio se recusa a sair de lá.

Qual é a ação que Nelson tem para investir na posse desse bem pela primeira vez? Imissão na posse.

A imissão na posse é uma ação petitória. Na ação petitória a causa de pedir é a propriedade e o pedido é a posse.

A imissão na posse é uma ação petitória, pois nestas ações o fundamento do autor é que ele possa pedir a posse, não por ele tê-la exercido anteriormente, mas sim porque ele é proprietário.

Quando Nelson se tornou proprietário, passou a ter os poderes de usar, fruir, dispor e reivindicar. Se eu sou proprietário eu tenho direito à posse, pois usar e fruir são direitos decorrentes da minha propriedade.

Causa de pedir: Nelson é o novo proprietário e, com isso, eu tenho direito à posse.

Então, a posse nas ações petitórias não decorre de um exercício de fato da posse. Ela decorre do direito de propriedade. Um exemplo de ação petitória é a imissão na posse.

Washington é proprietário e possuidor de um terreno. Zé Rainha invade esse terreno e põe Washington para fora. Qual é a ação que Washington tem contra Zé Rainha? Petitória ou possessória? As duas. Ele pode escolher uma ou outra.

Por que Washington pode ajuizar uma ação petitória chamada reivindicatória? Porque ele está dizendo ao juiz que é o dono do terreno e

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comprovando a sua titularidade. E, com isso, quer reaver a posse, quer reaver os poderes de usar e fruir com base no art. 1228, CC.

Então, ele vai mostrar que é dono e vai pedir a posse.´

Além da reivindicatória ele tem a possessória. Ele tem a possessória não pelo fato dele ser proprietário. Na possessória o juiz não se interessa se a pessoa é proprietária.

O que o juiz quer saber na possessória se você exercia o fato da posse, independente de você ser dono; se a sua posse foi agredida e que você quer a sua posse de volta. Não a posse como decorrência da propriedade, mas a posse como um fato em si mesmo.

Então, quem é proprietário e possuidor pode optar pelo juízo possessório ou pelo juízo petitório.

Se uma ação possessória está em andamento, é completamente proibida a discussão de propriedade na constância das ações possessórias.

No Brasil é proibida a chamada exceção de propriedade. Art. 1210, § 2o, CC: “Não obsta a manutenção ou reintegração da posse a alegação de propriedade”.

A alegação de propriedade não impede o êxito de uma ação de reintegração ou de manutenção de posse. Esse artigo é a base da proibição da exceção de propriedade.

Vamos voltar ao primeiro exemplo. Flávio você é possuidor de um terreno há sete anos. Aparece Nelson, o proprietário, e colocou você para fora. Neste caso, o Flávio tem uma ação possessória.

Se no Brasil a exceção de propriedade fosse permitida, o que aconteceria quando o Flávio ajuizasse ação possessória?

O Flávio conseguiria uma liminar e o juiz determinaria que ele voltasse para o imóvel por uma liminar.

Mas, no momento em que Nelson fosse chamado para contestar a possessória, alegaria que como ele é dono, ele pode fazer o que quiser. O juiz, com isso, julgaria improcedente a demanda possessória pelo fato da propriedade ser mais forte do que a posse.

Qual era a grave injustiça que existia por trás da possibilidade da exceção de propriedade? A grave injustiça estaria na situação anterior no fato da sentença do juiz dizendo que julga improcedente a possessória porque Nelson é o proprietário.

O Poder Judiciário estaria dando força para que o proprietário retirasse à força o terceiro que estivesse ocupando o seu imóvel. E quando

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esse terceiro der entrada na ação possessória, alegue em defesa que você é dono, pois os juízes julgarão improcedente a possessória.

A admissão da exceção de propriedade não só é um estímulo à violência, como conduzia vocês a uma falsa noção de que a propriedade é um direito superior e que a posse é um direito inferior. E que a posse, no máximo, deveria ser protegida em caráter temporário.

Mas isso mudou, pois a partir do momento que vem o novo código civil e diz que o proprietário não pode alegar em defesa que é dono.

O que acontece com Nelson se ele não pode alegar em contestação que é dono? Nelson perde a ação possessória.

O único argumento que o juiz irá ouvir é que como o possuidor foi agredido na sua posse pré-existente, julgo a demanda procedente. A sentença visa justamente proteger a situação de ingerência sócio-econômica que o possuidor tem sobre a coisa.

Além disso, o outro recado do Judiciário é que nenhum particular tem o monopólio da violência. Nenhum particular, mesmo que seja proprietário do bem, não pode usar da força mesmo que seja para reavê-lo.

A ação possessória do Flávio é julgada procedente, você volta para o imóvel e o juiz determina que o Nelson, que é o proprietário, seja posto para fora.

O proprietário Nelson é posto para fora e transita em julgado a possessória. O que o Nelson faz? Ajuíza uma ação reivindicatória. Isso é o mais correto, pois na reivindicatória Nelson estará citando Flávio como réu e dando a ele a oportunidade de ter o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa.

E nessa ação petitória é que efetivamente o juiz vai querer saber se o Nelson é o proprietário e se ele tem condições de ganhar essa demanda.

Hoje há uma separação absoluta entre o plano do possessório e o plano do petitório.

Nelson Nery diz que hoje há uma espécie de condição sucessiva ao exercício da demanda petitória, pois só se pode ajuizar uma petitória após o trânsito em julgado da possessória.

Na pendência da demanda possessória, isto é, da citação até o trânsito em julgado da possessória, fica proibida a discussão de propriedade.

Na pendência da demanda possessória, eu ajuízo uma reivindicatória contra Flávio. O que os juízes fazem ao receberem a inicial dessa reivindicatória? Eles julgam extinto o processo sem resolução do mérito

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(art. 267, IV, CPP), pois está faltando uma condição, qual seja, que houvesse o trânsito em julgado da demanda possessória.

Enquanto não há o trânsito em julgado da demanda possessória, não há possibilidade de se ajuizar uma demanda petitória.

Essa radical separação do plano do possessório para o petitório não foi esquecida pelo CJF. Olha o que diz o enunciado 79 do CJF: a exceção de propriedade como defesa ocorrida nas ações possessórias foi abolida pelo código civil de 2002 que estabeleceu a absoluta separação entre o juízo possessório e o juízo petitório.

Nelson ajuíza uma ação possessória contra Washington, alegando que ele é dono do imóvel e quer retirar Washington de seu imóvel. Nelson ajuizou mal a ação possessória, pois o fundamento da possessória não é a propriedade.

Na contestação Washington diz que o dono é ele. O que os dois estão fazendo de errado? Os dois estão usando a ação possessória para discutir propriedade.

O STF em hipóteses como essa dizia na súmula 487 que nesse caso, quando autor e réu usam de uma possessória para discutir propriedade, o juiz tem que dar a vitória para aquele que demonstrar ser o verdadeiro proprietário.

A súmula 487 ainda tem eficácia? Não, ela perdeu a eficácia porque diante da proibição da exceção de propriedade no direito civil brasileiro, caso o juiz vá dar uma sentença em ação possessória e o juiz não veja que o autor provou a sua posse anterior, sabe o que o juiz vai fazer? Vai julgar improcedente essa ação possessória.

O juiz não vai dar vitória para quem pareça ser proprietário. O juiz vai julgar improcedente, pois na inicial ele não demonstrou que era possuidor.

Quando o código civil diz que não interessa quem seja o proprietário, isso quer dizer que quem deve ganhar a ação possessória não é quem é proprietário, mas sim quem tenha realizado a função social da posse.

Enunciado 78 do CJF: Tendo em vista a não recepção pelo código civil da exceção de propriedade ou de caso de ausência de prova para embasar decisão liminar ou sentença ancorada exclusivamente no ius possessionis, deverá o pedido ser indeferido e julgado improcedente, não obstante eventual demonstração de direito de propriedade no meio litigioso.

A questão seguinte apenas irá acertar o aluno que lembra do que eu ensinei há três semanas atrás.

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Nelson e Washington tem uma discussão. Nelson ajuíza uma ação possessória contra Washington dizendo que Washington invadiu o seu terreno, que o esbulhou.

Pode o Washington dizer que é mentira e que ele não invadiu a posse de ninguém e, além disso, ele diz que já tem prazo para usucapião. Washington pode alegar usucapião em defesa?

Quando eu ensinei usucapião em defesa, falei em ações reivindicatórias. O que eu estou perguntando é se ele pode alegar usucapião em defesa em uma ação possessória.

Quando ele alega a usucapião em defesa ele está trazendo uma exceção à propriedade, ele está alegando em defesa que ele é proprietário. Mas isso é proibido pelo código civil de 2002.

Diante dessas duas observações vocês mantêm o ponto de vista de que ele pode alegar em defesa a usucapião? Mantenham. Então, ele pode alegar a usucapião em defesa.

O que o CC/02 proíbe é a alegação em defesa da exceção da propriedade, mas quando se alega usucapião em defesa não é exceção da propriedade, mas sim exceção de domínio.

Quando você alega usucapião em defesa, você não vem com a história de que você é proprietário. Você alega que a pretensão do Nelson é tão mentirosa e que Washington já estava na posse há tanto tempo que já chegou a gerar domínio.

É por isso, Washington, que você pode usar a súmula 237 do STF e alegar usucapião em defesa.

As ações petitórias são aquelas em que a causa de pedir é a propriedade que não tinha posse.

Usucapião não é petitório. A causa de pedir da usucapião é a posse.

Quando se alega usucapião em defesa não se está embaralhando o petitório com o possessório. Vocês estão apenas mostrando para o juiz como a ação possessória está fundada em argumentos mentirosos porque você já tem até usucapião.

Vamos supor que o juiz se convença que você tem usucapião e julga improcedente a possessória. Você pode pegar essa sentença e registrar? Pode, pois mesmo sendo alegada a usucapião em defesa a nova dicção do art. 1241 do CC diz que o possuidor pode pedir ao juiz que seja declarada a usucapião.

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Mas o art. 1241 em nenhum momento exige que seja pela via da ação de usucapião. Então, pode ser declarada pela via da defesa. Isso é um pedido contraposto.

É uma usucapião argüida em defesa em pedido contraposto.

Vamos agora começar a estudar as ações possessórias. Dividam o caderno de vocês em reintegração de posse, manutenção de posse e interdito proibitório. Essas são as três ações possessórias.

Essas são as únicas ações possessórias que existem no Brasil. Nunciação de obra nova e embargos de terceiros não são ações possessórias, visto que essas são ações que tanto podem ser utilizadas para defender a propriedade ou a posse.

Já essas três ações são para garantir a tutela específica da posse.

Ação possessória é sinônimo de interdito possessório. Mas nunca confundam interdito possessório com interdito proibitório. Interdito possessório é gênero. Interdito proibitório é uma das espécies do gênero interdito ou ações possessórias.

Como saber qual das três ações deve-se ajuizar? Tudo depende do nível de hostilidade e aversão que a posse sofreu.

Se você é possuidor e sofre uma ameaçazinha, você tem o interdito proibitório. Se você sofre uma turbação, você tem a ação de manutenção de posse. Mas se virou um esbulho, você tem a ação de reintegração de posse.

Na medida em que se intensifica o grau de agressão à posse, vocês vão subindo um andar. Na medida em que se intensifica a agressão à posse é inversamente proporcional a reação do sistema.

Quanto mais forte é a agressão, mais forte é também a reação do sistema a essa agressão.

Hoje até o final da aula trabalharei com a reintegração de posse.

A base da reintegração de posse é o esbulho.

Esbulho é a privação física da coisa. O possuidor que é esbulhado é aquele possuidor que perde o contato material com o bem. Ser esbulhado é ser posto para fora do bem.

O problema de vocês é que toda vez que vocês pensam em esbulho vocês lembram do Zé Rainha. E isso em uma prova de concurso é nota 3, pois o Zé Rainha aparece no esbulho que se dá com violência, mas o

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esbulho não se dá apenas por violência, eu posso ter o esbulho por clandestinidade e por precariedade.

Ou seja, eu posso ter o esbulho toda vez que a aquisição da posse se deu com a prática de um dos vícios do art. 1200 do código civil.

Toda vez que a aquisição da posse se deu pela forma injusta, o cara que entrou na posse é um esbulhador ou pela violência ou pela clandestinidade ou pela precariedade.

É óbvio que se o Zé Rainha invade a fazenda de vocês a socos e pontapés e põe vocês para correr, é claro que vocês estão sendo esbulhados e que cabe ação de reintegração de posse.

Zé Tainha entrou na mansão de Flávio em Búzios. Ele está esbulhando? Sim, é esbulho por clandestinidade.

Mesmo que Zé Tainha não tenha usado a força, no momento em que Zé Tainha entrou, o Flávio foi excluído do poder material sobre a coisa.

Em questões de concurso, o mais importante é o esbulho por precariedade.

Rafaela, você é minha comodatária por 5 anos. Durante esse período você tem posse direta e justa. Acabou o prazo do comodato e você não quer sair. Nesse momento a posse dela virou uma posse precária.

Eu que sou o proprietário, que posse que eu tinha na constância do comodato? Posse indireta.

Ela tinha posse direta, mas a posse direta dela virou posse precária e ela está me esbulhando porque se ela não quer me devolver, eu não posso entrar. Então, Nelson é esbulhado porque perdeu a possibilidade de reaver o poder fático sobre a coisa. Qual é a ação que eu tenho? Reintegração de posse. Justamente na precariedade para retirar aquele inquilino e aquele comodatário que não quer devolver.

Em concurso público tem dois complicadores. Primeiro: se esse comodato fosse um comodato sem prazo, como eu faço para retirar a comodatária? Primeiro eu devo interpelar a comodatária.

Vamos supor que eu a interpelo e dou um prazo de 30 dias para ela sair do imóvel. Esse prazo de 30 dias é fundamental para constituir o comodatário em mora.

Rafaela estará me esbulhando a partir do 31o dia caso ela não queira sair.

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Nos contratos sem prazo, eu só posso falar em esbulho quando cessa o prazo dado na interpelação. No dia seguinte que cessou o prazo, a posse já virou uma posse injusta por precariedade e aí existe a possibilidade de se ajuizar uma reintegração de posse.

Durante esses 30 dias a posse dela continua sendo justa.

Nenhuma pessoa pode ser ré em ação possessória enquanto sua posse é justa. Só tem legitimidade passiva para ser réu em ação possessória aquele que tem posse injusta.

Nelson faz um contrato com Washington de promessa de compra e venda. Washington é o promitente comprador e está comprando este imóvel em 36 prestações de R$ 1.000,00. Nelson é o promitente vendedor.

Enquanto ele paga as prestações, ele já está morando no imóvel. Enquanto ele está pagando as prestações, ele tem posse direta e Nelson tem posse indireta.

Na vigésima prestação o promitente comprador parou de pagar. Pode o Nelson ajuizar uma ação de reintegração de posse contra ele? Não, pois a posse dele é justa. É uma posse baseada em um contrato de compra e venda.

Eu tenho primeiro que ajuizar uma ação de resolução do contrato porque eu tenho que provar para o juiz que houve o inadimplemento. Quando o juiz julgar procedente a ação de resolução contratual, a posse dele que era justa se transforma em injusta. Então, eu entro com o pedido sucessivo de cumulação de reintegração de posse.

Pedido principal: resolução contratual. A posse do Washington que era justa se transforma em injusta. Se a posse dele virou injusta por precariedade, o pedido sucessivo deve ser de reintegração de posse porque ele virou esbulhador.

Eu vou cumular o art. 475 do código civil que fala sobre a resolução contratual provando o inadimplemento e o pedido sucessivo de reintegração de posse.

Nunca ajuízem uma ação possessória conta alguém se a posse dessa pessoa tem uma base contratual. A primeira coisa que se deve fazer é tirar a base contratual do possuidor.

Tirando a base contratual a posse vira injusta e aí tem o pedido sucessivo de reintegração de posse.

Violência, clandestinidade e precariedade são as três formas de posse indireta que podem dar margem ao injusto.

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Daniel, você tem um terreno de 20.000 m2. Zé Rainha invadiu 3.000 m2 do seu terreno. E você continua com os outros 17.000 m2. Que ação Daniel ajuíza contra Zé Rainha para retirá-lo de seu terreno? Reintegração ou manutenção?

Reintegração porque houve o esbulho parcial.

Esbulho não é apenas quando te retiram a posse do todo. Esbulho é quando você é privado fisicamente da coisa, no todo ou em parte.

Vamos voltar ao exemplo do promitente comprador. Dessa vez, Washington está pagando tudo direitinho. Enquanto ele está pagando eu continuo como dono.

Nesse período em que Washington está quase terminando de pagar, eu que ainda sou dono do imóvel fiz muitas dívidas com o Santino. Estou devendo R$ 100 mil para o Santino.

Santino me executa e procura no meu patrimônio quais bens podem ser penhorados e penhora o imóvel que eu estava vendendo para Washington.

Santino conseguiu penhorar o imóvel porque a promessa de compra e venda não foi registrada, visto que o imóvel continua em nome do Nelson e não havia registro da promessa no RGI.

O oficial de justiça vai concretizar o mandado de penhora e encontra Washington morando no imóvel.

Washington está sendo agredido em razão de uma dívida que não é dele. A sua posse está sendo agredida em razão de uma dívida que não é dele. Qual é a ação possessória que Washington tem diante dessa agressão que ele está sofrendo? Reintegração de posse ou manutenção de posse? Nenhuma das duas.

O correto é entrar com embargos de terceiro.

Você só pode falar em esbulho quando o esbulho é uma agressão por violência, clandestinidade e precariedade.

Quando vai um oficial na sua casa dizendo que tem uma dívida e que o seu imóvel está sendo penhorado, uma ordem de arresto, de penhora ou de seqüestro não é esbulho. Isso simplesmente é uma constrição judicial. Atos de constrição judicial não geram esbulho.

Então, Washington vai usar os embargos de terceiro do art. 1043, CPC. Através do embargos de terceiro Washington quer excluir o imóvel da penhora porque no instante em que Nelson fez a dívida com Santino esse bem já não estava sob a esfera de responsabilidade patrimonial do devedor. Então, esse bem não pode ser incluído como patrimônio do Nelson.

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É essa a razão pela qual Washington opõe embargos de terceiro excluindo esse bem da penhora.

Nunca confundam um ato emanado pelo Judiciário com uma agressão vinda de uma pessoa.

Washington pode opor embargos de terceiro mesmo sem ter registrado a promessa de compra e venda? Pode. A súmula 84 do STJ diz que o promitente comprador pode opor embargos de terceiro mesmo não tendo registrado a penhora.

O registro da promessa de compra e venda é importante para evitar que amanhã outra pessoa adquira a propriedade.

Só que eu não estou discutindo propriedade, eu estou discutindo posse. Como a posse não se registra no Brasil, é completamente despiciendo, secundário se indagar se a promessa de compra e venda foi registrada ou não.

O registro da promessa de compra e venda só é importante para uma futura discussão sobre essa outra venda desse bem. Mas como eu estou discutindo uma questão de posse, tanto faz se essa promessa de compra e venda foi ou não registrada.

Flávio, o município do Rio de Janeiro invadiu o seu terreno usando de violência. Cabe ação de reintegração de posse contra o Estado? Claro que cabe. O Estado é uma pessoa como outra qualquer.

A única diferença é que se o agressor fosse um particular, eu teria uma liminar inaudita autera pars contra o particular. Mas sendo o agressor o Estado, não pode ser concedida uma liminar possessória contra o Estado sem que antes seja ouvido o representante do Estado à luz do art. 928, § único do CPC.

Se o procurador do município alegar que realmente o município invadiu, mas que já construiu um posto de saúde no local. Muda alguma coisa? Claro que muda.

O juiz vai julgar improcedente a ação possessória e vai ocorrer uma desapropriação indireta.

O juiz vai dizer que diante da questão de ordem pública que se agita, qual seja, a realização de uma obra que atende ao interesse social, julgo improcedente a reintegração de posse e o particular será indenizado.

Se o Estado nesse período em que ocupou a coisa, mesmo que com posse injusta, realizou função social sobre o bem, isso pode ser imprescindível para a quebra do êxito de uma ação possessória sobre a coisa.

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Zé Rainha invadiu o meu terreno e me colocou para fora. Eu tenho ação possessória contra o Zé Rainha? Tenho.

Zé Rainha falsifica o título dessa propriedade como se fosse dele e a vende para Santino que comprou pensando que fosse do Zé Rainha.

Quando Nelson 3 meses depois resolve ajuizar reintegração de posse, contra quem ele ajuíza reintegração de posse? Contra quem o esbulhou ou contra quem está na coisa, ou seja, contra Santino? Contra quem está na coisa. Deve-se ajuizar a possessória contra quem está exercendo a posse agora.

Pode Santino alegar em defesa que ele é terceiro de boa-fé e que ele não tinha noção do ato violento anterior do Zé Rainha para ele conseguir êxito na sua defesa? Pode. Normalmente, o que é fundamental em uma ação possessória? É estudar se a posse é injusta ou se a posse é de má-fé? Se a posse é injusta.

Normalmente a questão da boa-fé ou da má-fé é algo irrelevante. O que interessa é se a posse é justa ou injusta.

Mas tem um caso no código civil em que é fundamental averiguar a natureza da má-fé do ocupante pelo art. 1212.

Art. 1212, CC: “O possuidor pode intentar a ação de esbulho, ou a de indenização, contra o terceiro, que recebeu a coisa esbulhada sabendo que o era”.

Só há êxito em uma ação possessória ajuizada contra um terceiro se ele for um terceiro de má-fé. Terceiro de má-fé é aquele que conhecia os vícios da posse.

Mas no meu exemplo o Santino foi ludibriado. Ele tinha um justo título que dava a ele a falsa noção de que Zé Rainha era o dono.

Então, Nelson perde porque Santino alega em defesa ser um terceiro de boa-fé.

Existe alguma outra ação que eu posso ajuizar onde a boa-fé do Santino não vai lhe ajudar em nada? Ação reivindicatória.

Na reivindicatória a posse do Santino não é importante porque eu digo para o juiz que eu sou dono e que o Santino tem posse injusta, independente de ser de boa-fé ou de má-fé.

Se eu não fosse proprietário e só fosse possuidor, eu não teria chance contra o Santino com base no argumento de que ele é terceiro de boa-fé.

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É fundamental vocês entenderem que a base da reintegração de posse é a existência de um esbulho. Se por acaso o meu inquilino não quer sair do imóvel que eu aluguei para ele, qual é a ação que eu ajuízo contra ele? Ação de despejo. Despejo é a mesmo coisa que reintegração de posse. Só que por uma peculiaridade tem esse nomen iuris distinto chamado despejo.

Se alguém comprou um automóvel e parou de pagar as prestações para o Banco Alfa, qual é a ação que o Banco Alfa ajuíza para retomar esse automóvel? Busca e apreensão. Busca e apreensão é a mesma coisa que reintegração de posse, mas por uma peculiaridade recebeu o nome de busca e apreensão.

Tanto o despejo como a busca e apreensão passam a idéia de um esbulho. Qual é o esbulho do inquilino? Precariedade. Qual é o esbulho do cara que comprou o carro e parou de pagar? Precariedade. Mas eles têm esses nomes específicos.

Amanhã a gente começa com manutenção de posse.

Rio, 23.11.2007

Vocês lembram que ontem eu falei para vocês das ações possessórias. E eu dividi as ações possessórias em 3: reintegração de posse, manutenção de posse e o interdito proibitório. Essas são as três ações possessórias.

A divisão que eu fiz entre essas três ações possessórias tem como base o nível de agressão que a posse sofreu, o grau de hostilidade que a posse sofreu.

Se você sofre esbulho, cabe a reintegração de posse, se você sofre turbação, cabe manutenção de posse e se você sofre uma ameaça, cabe interdito proibitório.

Só há possibilidade de alguém ajuizar uma ação possessória se ficar comprovado que havia antes uma situação fática de posse sendo exercida sobre a coisa.

Ou seja, não basta alguém ser proprietário para ajuizar ação possessória. Ser proprietário isoladamente não significa nada no mundo das ações possessórias.

Uma pessoa só tem chance de ir para frente com a ação possessória se ficar provado que independente dela ser ou não proprietária, ela exercia a posse como uma situação de fato e que essa situação fática existente foi agredida.

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Só é possível ajuizar ação possessória se ficar provado na inicial que houve um ilícito contra a posse. E esse ilícito pode ser esbulho, turbação ou ameaça.

Ontem nós já vimos que a reintegração de posse decorre de um ato ilícito chamado esbulho. Eu contei várias histórias sobre a reintegração de posse.

Então, eu tenho o prazer de começar a aula oficialmente com a manutenção de posse.

A palavra chave da manutenção de posse é turbação. Turbação é perturbação. O possuidor turbado é o possuidor perturbado, incomodado, molestado, chateado, pentelhado.

Ou seja, possuidor turbado é aquele cara que sofre uma agressão, mas essa agressão à posse não chega ao ponto de excluí-lo do poder fático sobre a coisa.

Essa agressão reduz os seus poderes sobre a coisa, mas não exclui a pessoa do poder fático sobre o bem.

Flávio, eu sou seu vizinho. No primeiro eu corto a cerca que divide os dois terrenos e coloco o meu gado para pastar no terreno do Flávio. No segundo dia, eu entro no seu terreno com uma moto-serra e corto 50 árvores. No terceiro dia eu faço um buraco na entrada da sua fazenda para você não poder entrar de carro nela.

O que eu, seu novo vizinho, sou? Juridicamente, eu sou um turbador, pois em 3 dias seguidos eu pratiquei atos de turbação, atos de incômodo, atos de moléstia.

Mas em algum desses dias o Flávio foi excluído do poder fático sobre o bem? Não. Em nenhum momento o Flávio foi esbulhado. Mas a posse dele está sofrendo uma restrição.

Então, é para isso que se ajuíza uma ação de manutenção de posse. Qual é a finalidade da manutenção de posse? É o fim da agressão.

Notem a diferença da reintegração de posse para a manutenção. Qual é a causa de pedir da reintegração? É uma posse que já foi excluída. Aqui não. Aqui há uma posse que ainda é atual, mas que está sendo incomodada.

Ou seja, na reintegração a pessoa recupera uma posse perdida. Aqui você não quer recuperar, pois você ainda não perdeu.

Aqui você quer apenas que cessem as agressões atuais que a posse vem sofrendo. Essa é a diferença entre a reintegração e a manutenção.

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Em uma prova de processo civil, é interessante que vocês lembrem a diferença de intensidade entre o esbulho e a turbação.

Se um examinador perguntar se na classificação quinária das ações de Pontes de Miranda em declaratórias, constitutivas, condenatórias, mandamentais e executivas lato sensu, diferencie as sentenças mandamentais das sentenças executivas.

Para vocês se mostrarem bons na prova sempre lembrem da minha aula. Isto porque a sentença de reintegração é uma sentença executiva e a sentença de manutenção de posse é uma sentença com carga eficacial mandamental.

Por que dá para ver essa distinção? Na reintegração a carga preponderante na sentença é executiva lato sensu porque quando o juiz na sentença diz: determino que Zé Rainha saia do imóvel em 15 dias.

É executiva lato sensu porque o juiz na sentença se subroga na posição do devedor. Ou seja, o juiz nas sentenças executivas não pede que o réu faça alguma coisa, ele não requer ao devedor alguma conduta. Ele se substitui na posição do réu.

Aqui o que existe é uma coerção direta. As sentenças executivas lato sensu são aquelas em que o provimento jurisdicional se executa sem a necessidade de cooperação do réu.

Simplesmente o juiz age com ou sem a colaboração do devedor.

Todavia, a sentença na manutenção de posse é uma sentença mandamental. É uma sentença mandamental porque ela não tem um caráter e subrogação. Ela tem um caráter coercitivo. O que o juiz está expedindo é uma ordem.

Por exemplo: Zé Rainha, não perturba mais o Washington. Ou seja, o que ele está pedindo é um comportamento, é uma conduta. Então não se trata de uma coerção direta. É uma coerção indireta.

Eu estou dissuadindo você a não mais reiterar aqueles atos turbativos que vinham até então sendo praticados.

Se a reintegração de posse e a manutenção de posse são ações possessórias que dizem respeito a uma agressão atual, o mesmo não acontece com o interdito proibitório.

No interdito proibitório já se consumou o ilícito possessório ou ainda não se consumou? Não se consumou ainda o ilícito possessório. O que há é simplesmente uma ameaça.

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Há uma ameaça de que num momento muito próximo, de que num momento iminente, as ameaças que estão sendo praticadas contra o possuidor serão convertidas ou em uma turbação ou em esbulho.

O justo receio do possuidor ao ajuizar o interdito proibitório é que as ameaças que ele já está sofrendo possam amanhã se transformar em uma turbação ou em um esbulho.

Então, uma pessoa só consegue ser feliz em uma ação de interdito proibitório se ela provar que essas ameaças são ameaças sérias, reais, idôneas, ou seja, o autor do interdito proibitório não pode trazer para o juiz uma elocubração, um desvalio, uma idéia simplesmente.

Ele tem que mostrar para o juiz concretamente que essas ameaças são sérias, reais e graves e induzem a que em um futuro próximo haja turbação ou esbulho.

O art. 5o, XXXV, CRFB/88 fala que não será excluída da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direito.

Então, é uma tutela inibitória, pois o autor de uma ação de interdito proibitório quer inibir o ato ilícito porque inibindo o ato ilícito não haverá o dano. Ele quer inibir o ato ilícito para evitar o dano.

Então, o interdito proibitório não passa de uma tutela inibitória que visa resguardar a sua posse para que você não tenha futuro aborrecimento com turbação e esbulho.

Mariana, você tem uma fazenda em Pontal do Paranapanema e está na piscina curtindo o sol. De repente você vê que tem umas nuvens se aproximando. Depois você olha e percebe que as nuvens se aproximaram com muita rapidez e percebe que a chuva é para agora.

Mas quando você olha bem, aquilo não são nuvens. Na verdade, são 84 mil sem terras com foice e martelo que estão se aproximando da sua fazenda capitaneados por Zé Rainha.

Mariana vai ajuizar um interdito proibitório porque isso é uma ameaça evidente e concreta de que Zé Rainha e sua turma em breve vão converter o ato de hostilidade em uma turbação ou esbulho.

Então, em uma ação de interdito proibitório, quando você pede uma liminar ao juiz, essa liminar é decomposta em dois momentos: no primeiro momento o juiz manda o Zé Rainha cessar a ameaça, manda não concretizar a agressão. É um comando judicial.

Como Zé Rainha não tem medo de veto judicial, de comando judicial, vem a segunda parte: caso Zé Rainha desobedeça o veto judicial, haverá imposição de astreintes, haverá a imposição de um preceito cominatório.

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Zé rainha não tem medo de astreintes. Sabe o que acontece? Zé Rainha concretiza a agressão e aquilo que até então era ameaça se converte em esbulho.

Mariana terá que ajuizar uma nova ação de reintegração de posse porque o que antes era ameaça virou esbulho?

Se vocês falarem para o examinador que ela não vai ter que ajuizar uma nova ação ele vai dizer que conhece um princípio no CPP chamado princípio da adstrição ou da congruência ou da correlação que está nos arts. 128 e 460 do CPC.

Esse princípio nos ensina que o juiz na hora de dar uma decisão ele não pode ir além ou aquém do que foi pedido pelo autor porque senão a sentença vai ser ultra, extra ou citra petita.

Então, como é que vocês dizem que não vai ter que entrar com outra ação se mudou a causa de pedir e se mudou o pedido? Nesse caso das ações possessórias não prevalece o princípio da adstrição, da correlação ou da congruência porque aplica-se o princípio da fungibilidade das ações possessórias disciplinado no art. 920 do CPC.

O princípio da fungibilidade nos ensina que uma ação possessória pode ser convertida em outra ação possessória sem a necessidade da propositura de uma nova demanda.

Nos mesmos autos é possível converter o pleito que era de interdito proibitório em um pleito de manutenção de posse ou de reintegração de posse.

A fungibilidade será admitida em duas hipóteses: a primeira é essa que eu vos trago. Mariana, você ajuizou um interdito proibitório. Mas deixou de ser ameaça e virou esbulho. Neste caso, basta que ela atravesse uma petição dentro do interdito proibitório e informe ao juiz que foi esbulhada e peça um mandado de reintegração de posse.

O juiz vai perceber que houve alteração das circunstâncias fáticas e entendendo que o que a Mariana falou é verdade, ele converte a ordem de interdito proibitório em ordem de reintegração de posse nos mesmos autos.

Então, a primeira hipótese de fungibilidade se dá quando dentro da mesma lide possessória se dá a alteração do panorama fático com a evolução da agressão. A ação possessória se adapta às novas circunstâncias.

A segunda situação em que se aplica a fungibilidade se dá quando, por exemplo, Washington sofreu um esbulho. Washington ajuíza uma ação de manutenção de posse porque foi esbulhado.

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Washington mandou muito mal, visto que se ele foi esbulhado, ele não deveria ter ajuizado uma manutenção de posse, mas sim uma reintegração de posse.

O juiz pode indeferir a inicial? Em regra, no processo civil, ele indeferiria, porque ele julgaria inepta pelo art. 295, § único, IV do CPC. Da narração dos fatos não decorreria logicamente a conclusão. Haveria incompatibilidade entre o pedido e a causa de pedir.

Todavia, não se aplica esse raciocínio no mundo das ações possessórias.

No mundo das ações possessórias, pela égide da fungibilidade, o juiz irá receber não como ação de manutenção de posse, mas sim como ação de reintegração de posse. O próprio magistrado vai adequar a causa de pedir ao pedido.

Gente, duas observações finais sobre a fungibilidade das ações possessórias. Primeiro, se por acaso vocês ajuízam uma possessória, mas no fundo vocês queriam uma reivindicatória, o juiz pode converter uma possessória em uma petitória ou uma petitória em possessória? Não.

O âmbito da fungibilidade é restrito às possessórias entre si. Não é possível o magistrado converter uma possessória em uma petitória ou uma petitória em uma possessória.

Eu posso converter interdito em manutenção, manutenção em reintegração, mas jamais possessória em petitória.

Em segundo lugar, se Mariana ajuizou uma reintegração de posse contra o Zé Rainha, a reintegração foi julgada procedente, transitou em julgado e depois do trânsito em julgado da reintegração de posse, Zé Rainha pratica uma nova infração.

Pode nos autos daquela mesma ação que transitou em julgado ser realizado novo pedido? Não. Só se pode aplicar a fungibilidade entre as possessórias antes do trânsito em julgado.

Se transitou em julgado, vai ter que ajuizar uma nova ação possessória. Então, essa possibilidade de intercâmbio entre uma ação possessória pela outra pode se dar em grau recursal, o processo pode estar na mão do relator desembargador, mas não pode ser depois do trânsito em julgado do processo.

Eu tenho duas perguntas para ver se vocês entenderam o interdito proibitório.

Washington eu sou o seu vizinho e te digo que você está colocando a cerca que separa os dois terrenos no lugar errado e que se

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continuar desta forma, vou entrar com uma ação no Judiciário contra você. Washington, diante dessa ameaça você pode entrar com o interdito proibitório?

Não, com base no art. 153 do Código civil, visto que não se considera ameaça o exercício normal de um direito.

Ameaça nunca é ato verbal. Ameaça é ato material. Sempre entender ameaça como sendo ato material de ofensa à posse.

Flávio, você é um grande compositor da música popular brasileira. Mas tem gente que está falsificando o seu CD. Santino, você é advogado do Flávio e você descobre que um lote de 10 mil CD’s do Flávio será exposto a venda nas ruas do centro da cidade do Rio.

Você pode ajuizar uma ação de interdito proibitório diante dessa ameaça à posse dos direitos autorais de Flávio? Essa é uma discussão bizantina do direito civil que só foi eliminada há dois anos atrás com a edição da súmula 228 do STJ.

Essa súmula diz: é inadmissível o exercício dos interdito proibitório para a proteção de direitos autorais.

Essa discussão é muito antiga porque havia uma dúvida se era ou não possível posse sobre bens intangíveis.

Bens intangíveis são marcas, patentes, software, direitos autorais etc.

Concluiu-se no direito brasileiro que só é possível posse sobre coisas que são bens tangíveis, materiais e corpóreos.

Entendeu-se que não é possível a posse de bens intangíveis porque a posse na teoria do Ihering é uma visibilidade do domínio, é a exteriorização da propriedade. Então, como é que se pode ter visibilidade sobre bens que são meras abstrações?

Como é que pode ter visibilidade sobre coisas que são bens imateriais e que não são suscetíveis de serem apropriadas fisicamente? Então, prevaleceu a tese de que não cabe posse de direitos autorais.

Rui Barbosa defendia a tese de que poderia haver ação possessória para manter cargo público. E essa tese foi vencedora até que entrou no lugar o mandado de segurança. Mas antes disso, usava-se a possessória para a defesa de direitos em geral.

Hoje não. Hoje a posse tem como objeto específico coisa.

Mas pode haver propriedade de bens intangíveis. Pode-se ter propriedade imaterial, mas posse só se defere a coisas.

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Art. 1210, CC: “O possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação, restituído no caso de esbulho e segurado de violência iminente se tiver justo receio de ser molestado”.

O art. 1210, CC faz a separação da causa de pedir das três ações possessórias.

Na medida em que vocês já tenham visualizado o aspecto material das ações possessórias, cumpre agora entrar em um ponto novo, que são os aspectos procedimentais das ações possessórias.

Em sede dos aspectos procedimentais das ações possessórias existem as ações possessórias de força nova e as ações possessórias de força velha.

O que determina que uma ação possessória seja de força nova ou de força velha? O prazo decadencial de ano e dia.

Essa divisão é uma divisão de procedimento, de rito.

Se por acaso um de vocês sofre uma agressão na posse e vocês ajuízam uma ação possessória antes de ano e dia contada da data da agressão, essa ação possessória terá qual rito? O rito de força nova que é um rito especial, com a possibilidade da concessão de liminar.

Mas se o Santino foi agredido na sua posse. Mas você é lento e demora mais que ano e dia para ajuizar a ação possessória, você ainda terá ação possessória, mas será sancionado só podendo utilizar o rito de força velha que é o rito ordinário sem a possibilidade de concessão de liminar.

Então, esse prazo de ano e dia é um prazo decadencial porque se passou de ano e dia, você decai de um procedimento mais abreviado e apenas lhe sobra um procedimento mais vagabundo que é o ordinário.

Essa dicotomia força nova e força velha é adequada às três ações possessórias? Não. Ela só é adequada à reintegração e à manutenção de posse.

Não existe interdito proibitório de força nova ou de força velha. O art. 926 do CPC faz a divisão apenas no tocante à reintegração e à manutenção de posse.

Todo interdito proibitório requer uma agressão que seja iminente. se a agressão tem que ser iminente, como é que pode existir um interdito proibitório de força velha? Como é que pode existir uma agressão iminente já depois de ano e dia? É incompatível, é inadequado.

É por isso que só a reintegração e a manutenção de posse se adéquam a essa configuração bipartida da força nova e da força velha.

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Essa liminar que vocês ganham na ação de força nova é uma liminar de natureza satisfativa ou cautelar? Satisfativa.

Qual é a diferença entre as liminares cautelares para as liminares satisfativas?

As liminares cautelares são aquelas que visam garantir, assegurar a utilidade e a eficácia de um outro processo que está em andamento.

Não é o caso. O que nós temos aqui é uma liminar satisfativa. Isso porque quando você pede uma liminar em ação possessória o que você quer é uma antecipação de tutela, o que você quer é o adiantamento da prestação jurisdicional de mérito.

O que você quer é que o magistrado lhe conceda hoje em caráter provisório e revogável aquela decisão que ele só concederia ao tempo da sentença.

É por isso que as liminares de natureza satisfativa são chamadas de liminares de natureza material porque o que se quer verdadeiramente é que a tutela seja atendida já no momento inicial da demanda, que a tutela de mérito seja adiantada já para esse momento inicial.

Se essa é uma liminar satisfativa, é necessário que o possuidor agredido prove fumus boni iuris e periculum in mora? Não. Ele só precisa provar fumus boni iuris do art. 927, CPC.

Qual é exatamente esse juízo de previsibilidade que ele tem que trazer na inicial?

O fumus boni iuris é o seguinte. O autor na ação possessória tem que provar três coisas para o juiz: primeiro, que ele exercia o poder de fato sobre a coisa; segundo, que ele sofreu uma agressão e terceiro, que essa agressão se deu a menos de ano e dia. Isso é o fumus boni iuris.

Não é necessário provar periculum in mora, pois o periculum in mora só é necessário ser provado nas liminares de natureza cautelar. Não nas liminares de natureza satisfastiva.

Se o possuidor trouxer prova documental (fotos mostrando que a fazenda dele foi invadida, recorte de jornal) do art. 927, CPC, ele consegue essa liminar inaudita altera pars, sem a necessidade da oitiva da parte contrária.

Se o autor da ação possessória não tiver prova documental o juiz vai extinguir essa demanda? Não, o juiz vai conceder ao autor uma segunda oportunidade, qual seja, uma audiência de justificação.

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Haverá uma audiência de justificação e nessa audiência de justificação o autor da ação possessória irá trazer prova testemunha, já que ele não havia conseguido prova documental suficiente para demonstrar que a posse dele foi agredida.

O réu vai ser citado para comparecer na audiência de justificação? Claro que o réu vai ser citado para comparecer.

O réu pode trazer as testemunhas dele? Claro que não. Isso não é inconstitucional, isso não é violação ao contraditório.

O que acontece é que nessa audiência de justificação eu estou ainda na fase inicial do processo possessório que é uma fase de cognição sumária. É uma fase de cognição superficial e unilateral que é deferida ao autor para que ele prove os requisitos do art. 927, CPC.

Então, se isso é uma fase unilateral, é claro que o réu não pode trazer as provas dele. O contraditório vai ser diferido em uma fase sucessiva.

E mais, se o réu pudesse trazer a prova haveria uma inversão procedimental porque o réu só pode provar depois de ter postulado. O réu já contestou aqui? Não. Então, se ele não contestou, como é que ele vai provar?

Então, o máximo que o réu, segundo o STJ, pode fazer é contraditar a testemunha do autor. Ele pode questionar a testemunha do autor, mas ele não pode trazer a sua prova nesse momento inicial. Como isso aqui não é aula de processo civil, eu só estou trazendo detalhes óbvios, eu vou fazer só mais uma pergunta:

Pergunta de aluna: inaudível. Resposta do prof.: o réu é citado. Ele vai ser citado porque esse vai ser o comparecimento inicial dele na demanda. Apesar de ser uma citação muito singular. Ele não será citado para a defesa nesse momento.

É como diz na norma de execução: o réu será citado para pagar em 24 horas. Na verdade, ele não é citado para pagar em 24 horas, ele é citado para formar a relação processual.

Se o juiz concede a liminar ou não concede a liminar na audiência de justificação, qual é o recurso cabível contra essa decisão? Agravo porque isso é uma decisão interlocutória. Agravo de instrumento porque apesar da regra agora ser o agravo retido, é de instrumento porque existe a urgência na necessidade de se revogar essa ordem judicial.

Não vou entrar nessa parte processual, mas vocês lembrem que há o agravo de instrumento com efeito suspensivo ou de efeito ativo, conforme a decisão seja positiva ou seja negativa.

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Como a aula é de direito civil, eu só quero perguntar o seguinte para vocês: o juiz pode alterar a decisão dele fora da via da liminar? Sem que a pessoa impetrasse o agravo? A posição do STF hoje é negativa.

O juiz naquele caso se adere aos fundamentos que ele concedeu naquela medida e ele só pode amanhã alterar a sua decisão quando provocado pelo recurso do agravo.

Por que é que concedida ou não a liminar o processo sai do rito especial e vai para o rito ordinário? Por que quando entra na fase de contestação o processo passa para o rito ordinário, mesmo tendo começado pelo rito especial?

Porque a necessidade de pressa, de celeridade judicial só havia no sentido de saber se era caso ou não de concessão de liminar para o autor.

Concedida ou não concedida acabou a pressa. Concedida ou não a liminar, o processo sai do rito especial e a partir da contestação ele vai para o rito ordinário.

Santino, se você ajuíza uma ação possessória, mas você foi lento e ajuizou depois de ano e dia, você tem uma ação de força velha. Pode o Santino, que ajuizou ação de força velha, buscar tutela antecipada do art. 273 do CPC para conseguir a liminar que ele não obteve porque não é demanda de força nova?

A posição hoje majoritária na doutrina é que na demanda de força velha é possível, à luz do art. 273, CPC, a obtenção de tutela antecipada.

Quais são os argumentos dos processualistas? O primeiro argumento é que os requisitos da liminar na ação de força nova não são os mesmos requisitos da tutela antecipada do art. 273, CPC.

A tutela antecipada é independente da liminar da ação de força nova. Essa liminar é uma liminar específica, é uma liminar específica de tutela, enquanto o art. 273 é uma antecipação de tutela genérica. São duas situações que não podem ser comparadas.

O segundo argumento dos processualistas é que qualquer demanda que está no rito ordinário Não tem a possibilidade de receber tutela antecipada? Então, por que a possessória também não teria já que ela caiu para o rito ordinário?

Mas em prova de concurso eu dificilmente consigo imaginar uma antecipação de tutela em uma demanda de força velha. Basta vocês entenderem o seguinte: o que é mais fácil? Conseguir a liminar do art. 927 do CPC ou conseguir a antecipação de tutela?

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Conseguir a liminar do art. 927. Aqui, basta ter o fumus boni iuris. Já no art. 273 eu tenho que ter um juízo de probabilidade, de quase certeza. É muito mais grave do que o juízo de mera possibilidade.

No art. 927 não se exige o periculum in mora. Já no art. 273, CPC exige-se o periculum in mora.

Qual vai ser o periculum in mora da pessoa que demora mais de ano e dia para ajuizar a ação? Se houvesse periculum in mora ele teria ajuizado ação logo depois da agressão.

Na prática, me parece quase que impossível a antecipação de tutela diante de uma força velha.

Se eu ajuízo uma ação possessória contra Flávio dizendo que ele me esbulhou, que ele me agrediu, me colocou para fora. É uma ação possessória.

Flávio pode chegar em defesa e dizer que não agrediu ninguém, além de dizer que foi o Nelson que agrediu a sua posse e ele pedir proteção possessória?

Quais são as três formas de defesa que vocês conhecem? Contestação, reconvenção e exceção.

Quando o réu contesta, o réu deduz pretensão? Não. Quando o réu contesta, ele não deduz pretensão.

A única forma de o réu deduzir pretensão é na reconvenção. Art. 315, CPC.

Vocês podem me perguntar: como é que o réu irá deduzir pretensão contra o autor? As ações possessórias não estão na regra. São ações de natureza dúplice. Art. 922, CPC.

Quando surgem as ações de natureza dúplice no processo civil? As ações de natureza dúplice surgem nos casos em que as posições de autor e réu são imprecisas.

São aquelas ações em que a legitimidade ativa e a legitimidade passiva são variáveis.

Quais são as ações dúplices mais tradicionais que vocês conhecem? Uma ação demarcatória é uma ação dúplice? É, pois qualquer um dos proprietários vizinhos pode demarcar. Qualquer um pode ser autor e qualquer um pode ser réu.

Se dois condôminos querem dividir um terreno, a ação de divisão é dúplice? É. Qualquer um dos condôminos pode ser autor e qualquer um pode ser réu.

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E o mesmo se diga das possessórias. As possessórias são ações dúplices porque os conflitos possessórios são estáveis, ou seja, o autor ou o réu podem se dizer possuidores da coisa. A situação deles é uma situação marcada pela transitoriedade.

Como a posição de autor e réu são posições muito transitórias, indeterminadas e voláteis, admite-se que o réu, que é o Flávio chegue na contestação e deduza um pedido contraposto.

Deduzir pedido contraposto é justamente a possibilidade do réu deduzir uma pretensão contra o autor, ou seja, o réu não se limita a defender. Ele faz o contra-ataque nos próprios autos sem a necessidade de reconvenção.

É uma natureza dúplice porque quando o juiz der a sentença, esta será formalmente uma, mas materialmente dúplice, ou seja, o juiz vai dar uma sentença, mas vai julgar duas pretensões.

Primeiro o juiz vai dizer: julgo improcedente a pretensão de Nelson contra Flávio. Em segundo lugar o juiz vai dizer: julgo procedente o pedido contraposto de Flávio contra Nelson.

O que o réu Flávio ganha quando o juiz julga procedente o pedido contraposto dele contra o Nelson? A sua defesa ganha autoridade de coisa julgada.

Flávio consegue evitar o êxito do autor e a sua defesa consegue autoridade de coisa julgada. A defesa dele agora está coberta pelo manto da definitividade.

É por isso que as ações possessórias (art. 922, CPC) são ações de natureza dúplice.

Mas cuidado, pois elas são ações de natureza dúplice mas têm duplicidade limitada.

Quem estiver com o art. 922 do CPC na mão observará que o tipo de pretensão que o réu pode deduzir em reconvenção é o pedido de proteção possessória cumulado com indenização. São os dois únicos pedidos que ele pode deduzir pela via dúplice.

Se o Flávio, que é o réu, na contestação fala que ele é que quer se proteger do Nelson, ele é que quer pedir a reintegração, quer indenização e desfazimento das construções que Nelson fez.

Se ele pede desfazimento das construções, pode ser pela via dúplice? Não. Tem que ser pela via da reconvenção porque está fora dos estreitos limites do art. 922 do CPC.

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Por isso, lembrem-se: é uma ação dúplice, mas é uma ação dúplice limitada até um determinado ponto previsto pelo art. 922 do CPC.

Todas essas questões que eu acabei de colocar concerne à distinção entre as ações possessórias de força nova e as ações possessórias de força velha.

Já que vocês viram essa parte procedimental das ações possessórias eu pergunto a vocês: vocês lembram daquele quadro que eu fiz da divisão entre o juízo possessório (ius possessionis) e o juízo petitório (ius possidendi).

O juízo possessório visa proteger uma posse como um fato. A finalidade da ação possessória é preservar uma situação fática de posse que era exercida, mas foi agredida.

A idéia do juízo petitório não era proteger a posse como um fato, mas proteger a posse como direito. A causa de pedir era a propriedade e a posse vinha justamente com outra noção, qual seja, era decorrência de um direito de alguém sobre uma propriedade.

Se eu sou proprietário, eu tenho direito à posse, mas não a posse como um fato, mas sim em razão de uma relação jurídica emanada da propriedade.

Quando é que vocês utilizam a ação de imissão de posse e quando é que vocês utilizam a via reivindicatória? Essas são as duas ações petitórias mais relevantes.

Existem duas diferenças significantes. Primeira delas: Nelson vendeu um apartamento para Washington. Washington comprou o apartamento e o registrou no RGI.

Então, Washington é dono e quer entrar pela primeira vez na posse. Mas o alienante Nelson continua no imóvel e diz que não irá sair de lá. Qual é a ação que o novo proprietário tem para se investir na posse pela primeira vez? Imissão da posse.

É a imissão porque essa ação tem duas características: é uma ação ajuizada pelo adquirente para ter a posse pela primeira vez. O sujeito passivo da imissão da posse é o alienante da coisa. Se o Washington virou dono, o que o Nelson transmitiu para ele além da propriedade? A posse. Quando eu vendo uma coisa, eu transfiro a propriedade e a posse.

No caso em tela, eu somente transferi a propriedade. A posse eu quis guardar.

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Então ele ajuíza a imissão de posse para consolidar os poderes dominiais de usar e fruir da coisa. Washington já é proprietário, e como tal tem direito à posse.

Washington, você foi ao imóvel que eu te vendi e quem estava lá era o Jarbas, o meu caseiro, que não queria sair de lá de jeito nenhum. Que ação você tem para retirar o Jarbas de lá? A ação de imissão de posse, já que essa ação é contra o alienante e contra ou um detentor a ele vinculado.

Então, se é contra o Jarbas, também é imissão de posse.

Quando o Washington quis entrar pela primeira vez no imóvel que ele acabou de comprar quem estava lá era Flávio que era um comodatário de Nelson. Qual é a ação que o Washington, o novo proprietário tem para tirar o Flávio do imóvel? Reintegração de posse.

Nelson tinha feito o contrato de comodato com Flávio. Então, Nelson tinha a posse indireta e Flávio a posse direta. Nelson transmitiu a posse indireta para Washington. E se ele é o novo dono e tem a posse indireta, ele já pode ajuizar a ação de reintegração de posse.

Olha o § único do art. 1267, CC: “Subentende-se a tradição quando o transmitente continua a possuir pelo constituto possessório quando cede ao adquirente o direito à restituição da coisa que se encontra em poder de terceiros”.

Eu te cedi a posse indireta e a possibilidade de você ter a reintegração que é a restituição da coisa. Quando Washington foi entrar pela primeira vez no imóvel, Zé Rainha estava lá. Que ação Washington tem contra Zé Rainha? Ação reivindicatória.

É a ação reivindicatória porque a reivindicatória é uma ação que tem no pólo passivo não o alienante, mas o erga omnes. O sujeito passivo na reivindicatória é o erga omnes, ou seja, como o Washington é o novo proprietário e, de acordo com o art. 1228, CC, você pode usar, gozar, dispor e haver a coisa contra quem injustamente a possua.

Santino, você é dono deste imóvel, mas você foi embora e o abandonou por 2 anos. Nesses 2 anos que você abandonou o imóvel a Alessandra entrou no terreno. O Santino tem que ação para retirar a Alessandra de seu imóvel?

Ele tem reintegração de posse? Não, pois somente há ação possessória se você sofreu uma agressão a sua posse, ou seja, se alguém te tirou de lá com violência, clandestinidade ou precariedade. Não há ação possessória porque nenhuma posse foi agredida.

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O Santino pode ajuizar ação reivindicatória porque a palavra mágica da reivindicatória é reaver aposse que um dia você já teve (art. 1228, CC).

Não necessariamente o Santino irá ganhar a reivindicatória, mas tem direito a ela. Mas você é carecedor de ação na reintegração de posse porque você não tem o fumus boni iuris, qual seja, a sua posse ter sido agredida.

Felipe, você tem um apartamento no Grajaú e a Carvalho Hosken (construtora) compra o seu apartamento porque ele trocou esse apartamento por um novo desta construtora.

Como o prédio novo ainda não estava pronto, eles acordaram o seguinte: Felipe iria ficar 6 meses morando no seu apartamento e após esses 6 meses você entregaria para eles e iria morar no novo apartamento.

No final do 6o mês o Felipe se negou a sair do imóvel. Qual é a ação que a construtora tem para tirar o Felipe desse apartamento? Ação de reintegração de posse.

A Carvalho Hosken já está possuindo esse apartamento há 6 meses.

Felipe quando vendeu o apartamento colocou no contrato a cláusula constituti, ou seja, que ele continua como comodatário do imóvel. Isso é uma inversão do título da posse pelo qual aquele que possuía a coisa em nome próprio passa a possuir em nome alheio.

O Felipe que possuía como proprietário passa a possuir como comodatário. Ele passa a ter aposse direta do imóvel e a construtora passa a ter uma posse indireta por uma relação jurídica.

Nesses 6 meses que Felipe tinha a posse direta, a sua posse era justa. Mas se após o sexto mês ele não quer devolver, a sua posse passa a ser injusta por precariedade. E se a sua posse é injusta por precariedade, ele está esbulhando Carvalho Hosken e se ele está esbulhando, cabe uma ação de reintegração de posse.

O constituto possessório é uma aquisição de posse por ficção. Para você ser possuidor não precisa estar na coisa. Simplesmente essa cláusula contratual – cláusula constituti – te colocou na posição de possuidor.

Nem sempre o autor da ação possessória vai ter que demonstrar que a posse dele era uma posse no plano do fato real. Às vezes esse fato da posse foi uma ficção, uma cláusula contratual.

O segundo e último exemplo que eu tenho antes de avançar a aula é o seguinte: Washington, o seu pai, Sr. Paulo, é um cara milionário. Mas

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Washington não gosta de dinheiro. Washington é um monge budista e foi para o Nepal.

Você está há dez anos no Nepal quando recebe a notícia que o seu pai morreu no Brasil.

Após um tempo, você resolve voltar para o Brasil para ver o que o seu pai deixou de herança, para conhecer as fazendas que o seu pai deixou em Goiás.

Quando você chega lá alguns anos após a morte do seu pai, quem estava lá? Zé Rainha.

Washington, que nunca na vida colocou as mãos na fazenda do seu pai, que ação ele tem para tirar o Zé Rainha de lá? Ação de reintegração de posse.

Ele tem reintegração de posse pelo princípio de Saisine, ou seja, quando uma pessoa morre, automaticamente transmite para os herdeiros a propriedade e a posse dos seus bens.

Esse é outro exemplo de posse adquirida por ficção.

Está correto também quem penso em reivindicatória, visto que por sucessão ele não adquiriu somente a posse, mas também a propriedade. E cabe a reivindicatória porque o réu é o erga omnes, o réu é o Zé Rainha.

É isso que as provas da PGE, PGM, Defensoria querem, ou seja, que vocês saibam concatenar a mensagem teórica que eu passei para vocês com o mundo prático.

Vamos estudar agora a chamada função social da posse. Já estudamos a função social da propriedade nas aulas anteriores.

Em primeiro lugar, uma breve lembrança: para eu poder falar de função social da posse eu vou lembrar o que é função social da propriedade para ninguém confundir.

O art. 5o, XXII, CRFB/88 diz que é garantido o direito de propriedade e o inciso XXIII do art. 5o diz que a propriedade tem que gerar a sua função social.

O que é função social da propriedade? A função social da propriedade se materializa naqueles casos em que a pessoa tem titularidade, tem o registro em seu nome, mas ela não concede a este bem a destinação social que o ordenamento jurídico desejava.

Isso é uma propriedade sem função social, pois a pessoa formalmente é proprietária, ela tem o imóvel em seu nome, mas ela não concede a esse imóvel legitimidade e merecimento.

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A pessoa do proprietário não atende às normas urbanísticas, ambientais que dizem respeito a toda ação de função social.

Vale dizer, ele concede utilidade individual ao bem, mas ele frustra as expectativas metaindividuais sobre o exercício da propriedade.

E a função social da posse? A função social da posse é um plus em relação à função social da propriedade.

Vocês não concordam comigo que na função social da propriedade eu estou avaliando se eu devo ou não sancionar um proprietário inadimplente com a função social.

Ou seja, na função social da propriedade eu estou querendo examinar se o proprietário na sua trajetória isolada concedeu destinação social ao bem.

A função social da posse é um plus porque na função social da posse alguém está dando função social à propriedade. Mas esse alguém não é o proprietário, é o possuidor.

É um plus porque agora eu já não estou narrando para vocês a trajetória isolada de um proprietário. Eu estou trazendo uma situação de tensão entre duas pessoas: o proprietário que se esqueceu de dar função social ao que é dele e um possuidor que entrou lá e passou a dar a função social que o proprietário deveria ter concedido.

Essa é a lógica da função social da posse.

A função social da posse é uma propriedade que recebe função social, mas não pelas mãos do proprietário, e sim através de outra pessoa.

O que prevalece? A situação do proprietário pelo só fato dele ser proprietário ou a certeza da situação jurídica do possuidor que não é proprietário, mas que concedeu função social?

É claro que não existem respostas prontas, pois isso é uma tensão entre direitos fundamentais. Isso é uma situação de balanceamento, de colisão.

Então, é claro que não existem respostas a priori. Isso é uma questão de proporcionalidade.

O legislador trouxe três hipóteses claras de ponderação na função social da posse.

Numa questão de concurso eu quero que vocês digam que existem três aplicações legislativas do princípio da função social da posse. Em

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uma delas eu serei mais rápido e nas outras duas serei mais demorado. Serei mais rápido naquelas que vocês já estudaram comigo.

A primeira função social da posse se encontra na chamada usucapião dos arts. 1238 e 1242, CC. A função social da posse está na usucapião ordinária e na usucapião extraordinária.

Quando uma pessoa é possuidora e quer usucapir, o que vai fazer variar o prazo de 15 ou de 10 anos? A função social da posse.

Se um possuidor ficou possuindo o imóvel, mas ele cercou o terreno, vigiou o terreno, tomar conta, ele irá usucapir em 10 ou em 15 anos? Em 15 anos.

Mas se além desses atos de posse ordinária ele der moradia ou realizar investimentos econômicos no bem, ele vai reduzir o prazo de 15 para 10 anos se for usucapião extraordinária ou irá reduzir de 10 para 5 anos se for a usucapião tabular (art. 1242, § único, CC). Isso é uma aplicação normativa do princípio da proporcionalidade.

A lei diz que se você for possuidor, você vai usucapir em 10 anos, mas à medida em que você for dando função social, o prazo vai caindo para 5 anos.

Vocês entenderam porque não é função social da propriedade, por que é da posse? É função social da posse porque eu estou em uma situação de tensão entre o proprietário inerte e o possuidor que concedeu função social. Isso é função social da posse.

A segunda situação de função social da posse é o art. 1210, §2o, CC que trata da vedação à exceção de propriedade.

A aula de ontem é uma excelente demonstração de função social da posse.

O que é que o proprietário poderia fazer antes no novo código civil quando fosse chamado como réu numa ação possessória? O que ele poderia alegar em defesa em uma ação possessória? Ele poderia alegar que ele era dono.

Enquanto o código civil de 1916 admitia a exceção de propriedade, isso era uma demonstração clara de que o legislador entendia que a propriedade era um direito superior à situação do possuidor, que a propriedade sempre triunfava sobre a posse.

A visão de Ihering era a visão de Darwin. Ihering entendia que assim como o homem vinha do macaco, a posse era um ser primitivo e a propriedade era um ser visualizado sob uma ótica contemporânea.

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E se a propriedade era uma evolução sobre a posse, a propriedade sempre tinha que triunfar sobre a posse.

Mas isso não é verdade, pois a posse não é melhor do que a propriedade e a propriedade não é melhor do que a posse. Um não tem nada a ver como o outro. São direitos fundamentais distintos.

A base constitucional da posse e está sendo da função social é o direito fundamental de moradia do art. 6o da CRFB/88. É um direito social fundamental.

Em homenagem a esse direito social fundamental de moradia, o novo código civil fala que se vier uma ação possessória e você Washington é o proprietário, é o réu, hoje em dia a sua alegação em defesa de que você é o dono ajuda? Não.

Essa alegação não ajuda em nada porque no momento em que o código civil veda a alegação de exceção de propriedade, o recado do novo código civil é que quem vence a ação possessória é quem estava dando função social à posse, independente dessa pessoa ser ou não proprietária.

Não interessa quem é o proprietário. O que interessa é manter a posição de quem estava dando ingerência sócio-econômica à coisa.

Quem estava dando ingerência sócio-econômica? Quem estava exercendo a posse como um fato? Quem estava dando utilidade à coisa? Quem estava dando destinação ao bem? Quem estava dando ao bem uma finalidade conforme a Constituição? É o possuidor. Então, mantém-se o possuidor.

Essa é que é a razão que está por trás da vedação à exceção a propriedade. É o prestígio da função social da posse. A terceira situação de função social da posse é a chamada desapropriação indireta judicial. Art. 1228, §4o, CC.

Só por uma curiosidade para quem tem o meu livro de direitos reais, eu não falo da desapropriação indireta no instituto da propriedade, eu falo no estudo da posse, pois isso é função social da posse. Não é função social da propriedade.

Para falar sobre desapropriação indireta judicial eu vou falar sobre um caso real que foi decidido pelo STJ e esse caso dá toda base que vocês têm que ter para o entendimento da matéria.

É o famoso caso da favela Pulman lá de São Paulo. Em 1960, Flávio (vou usar um nome fictício) era dono de um grande loteamento na periferia de São Paulo.

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Mas Flávio abandonou esse loteamento e durante 20 anos trinta famílias entraram no loteamento dele e fizeram uma favelinha conhecida como favela Pulman.

Eles fizeram as suas casas e o município colocou equipamentos urbanos na favela.

Depois de 20 anos Flávio voltou ao seu loteamento e viu que tinha virado uma favela.

Ele resolve, então, ajuizar uma ação reivindicatória, visto que ele é proprietário e ele tem direito à posse. Além do fato do art. 5o, XXII, CRFB/88 garantir o direito de propriedade.

Ele ajuizou a ação reivindicatória, mas não ganhou.

Em casa, vocês peguem o Resp no 65659 de São Paulo. O que o STJ fez foi confirmar o voto do Desembargador José Osório.

Quais foram os dois argumentos para o TJ de São Paulo julgar improcedente a demanda reivindicatória?

Primeiro argumento: quando vocês estudam direito de propriedade na faculdade, qual é o único exemplo que o professor dá sobre perecimento? Ivo Pitangy tem uma ilha em Angra. Vem um tsunami e a ilha é tragada pelo mar. Houve o perecimento da propriedade, visto que perecendo a coisa, perece o direito.

O STJ vem com um exemplo de perecimento muito melhor: o Flávio não pode reivindicar essa propriedade, pois a propriedade dele pereceu visto que o loteamento dele foi tragado pela favela. A realidade jurídica foi possuída pela realidade fática.

Segundo o STJ, esse documento que o Flávio tem, essa escritura, esse registro é apenas uma relíquia histórica porque este documento jamais poderia ter força maior do que a realidade criou.

A fotografia que o cartório tem desse imóvel não corresponde à fotografia que a realidade tratou de criar nos últimos 20 anos.

Aquele loteamento é uma realidade no plano jurídico, mas não é uma realidade no plano social. E que o Direito só pode ser entendido como tal se ao aspecto normativo for agregado o aspecto valorativo.

É por isso que julgou-se improcedente por esse primeiro argumento.

O segundo argumento foi: hoje para o proprietário ajuizar uma ação reivindicatória não basta ele ter titularidade, ele tem que ter legitimidade. E ele só tem legitimidade se ele ostentar função social.

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E esse proprietário não ostentou função social porque ele abandonou esse imóvel por longos anos a ponto de todas essas famílias terem formado o seu meio de vida.

É por isso que a demanda foi julgada improcedente. E olha a foiçada que o Tribunal ainda deu nele: “e peça indenização a quem de direito”.

Vou ler dois extratos da decisão para vocês verem como a coisa é séria.

“No caso dos autos a coisa reivindicada não existe, é uma ficção. Os lotes do terreno reivindicado não passam de abstração jurídica. A realidade urbana é outra. A favela já tem vida própria. Loteamentos são realidades urbanísticas, que só existem dentro de um contexto urbanístico. Se são tragados por uma favela consolidada, por força de uma erosão social deixam de existir como loteamento. A realidade concreta prepondera sobre a pseudo-realidade jurídico cartorária. Esta não pode subsistir em razão da perda do objeto do direito de propriedade”.

Isso não é comunismo, isso não é Karl Marx. Isso é justamente uma aplicação concreta da desapropriação judicial indireta.

Abram o art. 1228, § 4o, CC. Vamos começar.

Por que isso se chama desapropriação e não usucapião? Isso se chama desapropriação porque por mais que o proprietário perca a propriedade, ele será indenizado.

Se fosse usucapião, ele sequer seria indenizado. Então, é uma desapropriação, ele vai perder a propriedade. É um modo de aquisição originário da propriedade.

É judicial porque pela primeira vez no direito brasileiro quem está desapropriando não é o Poder Legislativo e nem o Poder Executivo, mas sim o Poder Judiciário. É o juiz que estará desapropriando dentro do devido processo legal.

Por que indireta? Quando se dá a desapropriação indireta no direito associativo? Primeiro o Poder público ocupa o imóvel de vocês e depois ele te indeniza.

A mesma coisa acontece aqui. Primeiro esse pessoal ocupa o imóvel e depois da ocupação, em um momento posterior, é que o proprietário será indenizado. Então, isso é uma desapropriação judicial indireta.

A desapropriação judicial indireta é constitucional? Claro que é, pois o art. 5o, XXIV, CRFB/88 fala que a desapropriação por interesse social se dará nas hipóteses previstas em lei.

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Isso é uma nova espécie de desapropriação cuja finalidade é satisfazer o interesse social dessas pessoas que se estabilizaram nesse imóvel e a desapropriação por interesse social pode ser reservada à discricionariedade do legislador que a instituiu no art. 1228, §4o, CC.

Então, essa é uma nova espécie de desapropriação criada por lei. Portanto, claro que ela é constitucional.

Hoje eu vou ler 12 enunciados do CJF. Para vocês verem como tem muita coisa no CJF sobre esse particular e o primeiro deles é o enunciado 82 do CJF.

Enunciado 82, CJF: é constitucional a modalidade aquisitiva de propriedade imóvel prevista nos §§ 4o e 5o do art. 1228.

A segunda pergunta é a seguinte: quem é que vai pagar o Flávio? As trinta famílias ou o Poder público? A resposta é depende. Tanto existem casos em que quem vai pagar são os próprios possuidores e em outros casos quem pagará será o Poder público.

É claro que eu concordo com vocês que a regra geral é que quem vai pagar vai ser o poder público. É a regra geral porque se porventura essas famílias pobres fossem obrigadas a indenizar o Flávio pela propriedade, seria melhor jogar essa norma do Código civil no lixo, pois essa norma irá perder toda a sua eficácia social porque essa gente não terá condição econômica de indenizar o Flávio pela propriedade desapropriada. Seria uma impossibilidade jurídica.

Ainda mais que eles já realizaram gastos de investimentos nesse bem. Então, eles não poderiam ser castigados a novamente pagar valores ao proprietário.

Nesse caso de famílias carentes quem vai indenizar será o município, se for imóvel urbano e a União, se for imóvel rural.

Qual é o argumento para que a União indenize em caso de imóvel rural e para que o município indenize em caso de imóvel urbano? O argumento é que isso é uma desapropriação baseada no interesse social e se o que se visa aqui é dar função social, é claro que a iniciativa da regularização fundiária tem que ser do Poder público.

Se é o poder público que está desapropriando, é ele que deve indenizar. Quem desapropria é quem indeniza.

Vocês podem questionar que o poder público não está na lide. Qual é a primeira conduta do juiz em ações como essa? Convoca a União se for imóvel rural ou convoca o município se for imóvel urbano.

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O juiz traz a União e o município justamente para que se faça coisa julgada perante elas para que elas sejam condenadas a indenizar. Esse é o primeiro aspecto.

Quando é que quem vai indenizar são os próprios possuidores? Está escrito no art. 1228, §4o, CC que tem direito a essa desapropriação só quem é pobre? Não. Se não está falando de renda, nem sempre é só o pobre que vai se beneficiar dessa desapropriação indireta judicial.

Em Brasília, por exemplo, que é o local por excelência desses conflitos, existem vários imóveis onde moram pessoas de classe alta e classe média alta que estão fora de regularização e essas famílias vão utilizar a desapropriação judicial e quem vai pagar amanhã são essas pessoas que têm condições econômicas.

Deixa eu dar um exemplo para vocês entenderem bem quando é que os possuidores vão pagar em pessoa.

Imagina que tem um terreno em Caxias e três amigos se unem para fazer uma oficina de automóveis. Eles estão nessa oficina há sete anos ganhando muito dinheiro com essa oficina.

Depois de sete anos o proprietário aparece e ajuíza uma ação reivindicatória para colocar os três para fora da oficina.

Esses três podem alegar na defesa da ação reivindicatória a desapropriação indireta judicial? Podem.

Olha os requisitos do art. 1228, §4o: são três famílias que estão nesse terreno há mais de cinco anos e realizaram obras ou serviços de cunho econômico. Isso já é suficiente para que o juiz julgue improcedente a pretensão reivindicatória. As três famílias vão ficar com a oficina e vão indenizar o proprietário pelo valor do terreno.

Eles é que vão pagar, pois nesse caso a satisfação não é de um interesse social ou urbanístico. É um interesse privado deles. E se é um interesse privado, eles que paguem.

O código não fala que essa desapropriação indireta é para fins de moradia.

Considerável número de pessoas é um conceito jurídico indeterminado. E se esse terreno onde tem essa oficina é de 1000 m2, para um terreno deste tamanho, três famílias tendo sustento aqui já é o suficiente para aplicar essa norma. Então, esses conceitos jurídicos indeterminados “extensa área” e “considerável número de pessoas” têm que ser aferidos em cada caso concreto.

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Não tem como sair com uma solução legislativa redigida a princípio fechada. Varia de caso a caso.

O CJF entendeu o seguinte no enunciado 84: a defesa fundada no direito de aquisição com base no interesse social deve ser argüida pelos réus da ação reivindicatória, sendo eles próprios os responsáveis pelo pagamento da indenização.

O enunciado 84 diz que quem deve pagar a indenização são os próprios possuidores que se tornarão proprietários.

Eu sempre achei essa posição injusta, pois às vezes quem deve pagar é o poder público.

Recentemente o CJF manteve parcialmente o enunciado 84 porque ele editou o enunciado 308.

Enunciado 308, CJF: a justa indenização que será paga ao proprietário em caso de desapropriação judicial somente será suportada pela Administração pública quando estiver no contexto das políticas públicas de reforma agrária ou urbana em se tratando de possuidores de baixa renda e desde que tenha havido a intervenção do Estado nos termos da lei processual. Não sendo possuidores de baixa renda, aplica-se o enunciado 84.

O enunciado 84 fica mantido nos casos em que os possuidores não forem pessoas de baixa renda. Mas se forem pessoas de baixa renda, quem vai pagar vai ser a União se for imóvel rural ou o município se for imóvel urbano nas políticas sociais de reforma agrária para imóvel rural e no estatuto da cidade para o imóvel urbano.

Flávio ajuizou a reivindicatória. Os réus não se manifestaram sobre a desapropriação indireta judicial. Pode o juiz de ofício falar que é caso de desapropriação indireta judicial? Não pode.

A desapropriação indireta judicial tem que ser alegada em defesa pelos possuidores. O juiz não pode nesse caso se manifestar porque é uma questão de simples conveniência dos particulares. Eles que aleguem que há o interesse na aquisição do bem, que há o interesse na desapropriação. Isso é um pedido contraposto.

Os réus têm que deduzir o pedido contraposto dizendo que a demanda deve ser julgada improcedente porque nós estamos aqui há mais de cinco anos, é uma extensa área, nós somos um considerável número de pessoas e realizamos um investimento considerável.

O Flávio vai ser indenizado em dinheiro ou em títulos da dívida pública? Em dinheiro, pois título da dívida pública é só naquelas hipóteses constitucionais restritas de desapropriação sanção dos arts. 182 e 184 da CRFB/88.

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Como neste caso não se trata de desapropriação sanção, ele tem que ser indenizado em dinheiro.

O §5o do art. 1228 fala que ele vai receber justa indenização. O que é justa indenização?

Justa indenização é o valor de mercado desse imóvel? Não, pois se ele fosse receber valor de mercado seria enriquecimento sem causa.

Como é que uma pessoa que abandona o que é seu há mais de cinco anos, que não dá destinação ao seu bem e os outros é que investem no seu terreno, como é que ele vai se locupletar ilicitamente recebendo o valor de mercado se a valorização do bem não se debita à conduta dele, se a valorização se debita à conduta dos que estavam possuindo o terreno?

Ele vai ser indenizado, mas a justa indenização será uma ponderação dos interesses do proprietário com os interesses dos não proprietários.

Podem os possuidores abater da indenização o valor que eles gastaram com benfeitorias na coisa? Podem. Eles vão abater com as benfeitorias que eles realizaram na coisa.

Vocês têm que perceber que o valor de mercado vai ser de alguma forma reduzido em decorrência de gastos que essas pessoas realizaram e que gerou valorização na coisa.

Então, a justa indenização tem que ser entendida não como valor de mercado, mas como uma ponderação de interesses.

Isso aqui é uma desapropriação judicial indireta e ela tem que ser alegada em defesa. Cabe desapropriação judicial indireta se esse povo está possuindo o imóvel e o proprietário é o poder público?

Vamos ver o enunciado 83 do CJF: Nas ações reivindicatórias propostas pelo poder público não é aplicável o §4o do art. 1228 do Código civil.

A posição inicial do CJF no enunciado 83 era que se o imóvel é público não cabe ao réu na defesa alegar desapropriação judicial indireta.

Qual era a razão desse enunciado? Evitar uma usucapião por uma via oblíqua. Ou seja, é possível usucapião de bem público? Não.

Então, se fosse permitida a desapropriação judicial, o que o Poder Judiciário estaria permitindo? Que bens públicos se convertessem em bens particulares driblando a proibição da usucapião.

Essa proibição só cabe se o bem público for de uso comum do povo ou se for bem público de uso especial. Mas se for bem público patrimonial, se for bem público dominical, que é bem público desafetado, que

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não recebe destinação, é claro que os réus podem alegar que o bem público estava abandonado e requerer a desapropriação judicial indireta.

A boa notícia é que veio o enunciado 304 do CJF que diz o seguinte: é aplicável à desapropriação judicial indireta as ações relativas a bens públicos dominicais. Mantido parcialmente o enunciado 83.

O enunciado 83 foi mantido parcialmente porque não cabe desapropriação judicial indireta para os bens de uso comum do povo e os de uso especial.

Esse povo entrou no imóvel e permaneceu cinco anos nele. Quando o proprietário aparece, ao invés de ajuizar uma reivindicatória, pode ajuizar uma reintegração de posse.

Pode-se alegar desapropriação judicial indireta em defesa se a ação ajuizada não foi uma reivindicatória, mas sim uma reintegração de posse? Claro que pode, do mesmo jeito.

O §4o do art. 1228, CC dá a idéia de que a desapropriação judicial indireta só pode ser alegada em defesa em ações reivindicatórias. Coloquem ao lado do artigo que na reintegração de posse também pode.

Porque se não fosse essa possibilidade plausível, o que o proprietário faria para driblar a proibição da lei? Ele ajuizaria uma reintegração de posse apenas para driblar essa impossibilidade.

Mas se os réus completaram cinco anos de posse com todos os requisitos que estão no art. 1228, §4o, CC eles vão alegar isso seja em nível de demanda reivindicatória, seja em nível de reintegração de posse.

Flávio, se o juiz percebe que os réus na contestação deduzem a desapropriação judicial indireta, o juiz tem que convocar o MP? O MP deve obrigatoriamente participar dessas demandas. Pelo art. 82, III do CPC o MP deverá intervir obrigatoriamente nas demandas possessórias que envolvam interesses coletivos.

Olha o que diz o enunciado 305, CJF: tendo em vista a desapropriação indireta judicial o MP tem o poder-dever de atuar sempre que envolva relevante interesse público determinado pela natureza dos bens jurídicos envolvidos.

Quem entra nessa ação é o Estado, o MP e órgãos ambientais. Órgãos ambientais devem entrar nessa ação porque às vezes quem ocupou o imóvel está destruindo o meio ambiente. Então, não é legítimo conceder propriedade a eles se eles estão ofendendo a função social ambiental dos bens.

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Nesse sentido há o enunciado 307 do CJF que diz o seguinte: é obrigatória a intervenção de órgãos públicos competentes para licenciamento ambiental e urbanístico.

Se vocês são juízes e percebem que todos os requisitos do art. 1228, §4o estão presentes, vocês irão julgar improcedente a reivindicatória. Enquanto o proprietário não for pago a propriedade pode passar para o nome dos possuidores? Não pode.

A propriedade só pode passar para a nova titularidade quando o proprietário for indenizado.

Enquanto o proprietário não for indenizado os possuidores ficam com a situação provisória deles mantida, mas a titularidade requer que o proprietário seja indenizado.

Caso contrário, seria confisco. Para que haja segurança jurídica, vamos indenizar o proprietário e posteriormente haverá a mudança da titularidade.

Olha o enunciado 311 do CJF: caso o proprietário não seja pago e ultrapassado o prazo prescricional para se exigir o crédito, estará autorizada a expedição de mandado para registro de propriedade em favor dos possuidores. O enunciado 311 diz que o proprietário tem que ser indenizado, mas tem que ser indenizado dentro do prazo prescricional que é o prazo prescricional de 10 anos.

Se em dez anos ele não for indenizado, prescreveu e os possuidores passam a ter a propriedade independente de qualquer indenização.

Quais são as sete diferenças entre a desapropriação judicial indireta e a usucapião coletiva? Essa pergunta já caiu no MPF, na Magistratura de Minas Gerais e no MP de São Paulo.

A primeira é a seguinte: a desapropriação gera indenização e a usucapião é gratuita.

A segunda diferença é que a usucapião coletiva exige moradia de cinco anos da coletividade. Já na desapropriação indireta não precisa ter moradia, pode ser para trabalho.

A terceira diferença é que a usucapião coletiva é somente para pessoas de baixa renda. Já a desapropriação judicial indireta pode ser para pobre, rico ou classe média. Não tem um favorecimento específico.

A quarta diferença é que a desapropriação judicial indireta não exige um máximo de metragem do terreno. Já a usucapião coletiva exige o máximo de 250 m2 para cada possuidor.

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A quinta diferença é que quando a pessoa quer a usucapião coletiva, ela não pode ter a titularidade de outro imóvel, mas na desapropriação judicial indireta ele pode ter outros imóveis.

A sexta diferença é que na desapropriação judicial indireta a pessoa não precisa ter animus domini. Já na usucapião coletiva a pessoa precisa ter animus domini.

Se por acaso o Washington tem um terreno abandonado e ele arrendou para 20 famílias. Essas 20 famílias durante oito anos cultivaram arroz neste terreno.

Quando você ajuizar a sua reivindicatória de volta, eles poderão pedir a desapropriação judicial indireta desde que eles te indenizem pelo bem. Não tinham animus domini, mas podem pedir a desapropriação.

A sétima diferença é que para ter a usucapião coletiva não precisa ter boa-fé. Basta ter animus domini. Já para ter desapropriação judicial indireta o possuidor tem que ter boa-fé.

Se a desapropriação judicial exige boa-fé, ela nunca vai existir na verdade, pois 99% dos casos de ocupação de imóveis os possuidores sabem que o imóvel não é deles.

Eu sempre entendi que onde está escrito boa-fé no §4o do art. 1228, CC, essa boa-fé não é para ser entendida como boa-fé. É para ser entendida como não sendo posse injusta.

Isso quer dizer que essa boa-fé significa que esses caras que estão na posse da coisa há cinco anos não entraram lá por violência, clandestinidade ou precariedade. Eles entraram lá porque o bem estava abandonado.

Esse entendimento foi adotado pelo CJF no enunciado 309: os conceitos de posse e de boa-fé de que trata o art. 1201 do CC não se aplicam ao §4o do art. 1228, CC. O conceito de boa-fé do art. 1201, que é a ignorância do vício, não é o conceito de boa-fé do art. 1228, §4o. O conceito de boa-fé do art. 1228, §4o é o de alguém que tenha entrado no bem sem que a posse seja injusta.

São três as situações de função social da posse: na usucapião a redução de prazo, a vedação da exceção de propriedade e a desapropriação judicial indireta que é uma tensão entre propriedade e posse e irão prevalecer os possuidores, desde que eles tenham cinco anos, extensa área, boa-fé e desde que tenham dado uma destinação econômica.

Então, essas são as situações ponderáveis de função social da posse.

Muito obrigado.

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