direitos humanos no brasil 2010

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    D H B 2010r d rd sc d J D H

    og: Tatiana Merlino e Maria Luisa MendonaF: Joo Roberto RipperDg: Krits Estdioa adv: Marta Soares, Claudia Felippe e Silvana Silva

    Cb F d PAo Educativa

    ActionAid Brasil

    Associao Brasileira de Reforma Agrria (Abra)

    Associao Juzes para a Democracia

    Comisso Pastoral da Terra (CPT)

    Conselho Indigenista Missionrio (Cimi)

    Departamento Intersindical de Estatstica e Estudos Scioeconmicos (Dieese)FIAN Brasil

    Fundao Heinrich Bll

    Fundao Oswaldo Cruz

    Grito dos Excludos Continental

    Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporneo (GPTEC/NEPP-DH/UFRJ)

    Ipas Brasil

    Laboratrio Interdisciplinar de Pesquisa e Interveno Social (Lipis-PUC-Rio)

    Laboratrio de Anlises Econmicas, Histricas, Sociais e Estatsticas das

    Relaes Raciais (Laeser), Instituto de Economia (UFRJ)Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB)

    Ncleo de Estudos da Violncia (NEV-USP)

    Observatrio das Nacionalidades

    Pastoral Carcerria Nacional

    Sindicato dos Advogados de So Paulo (Sasp)

    ap: ActionAid, Fundao Heinrich Bll, Coordenadoria Ecumnica deServio (Cese), Comit Catholique Contre la Faim et pour le Dveloppement

    (CCFD).

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    Ch DbvJoo Roberto Ripper

    Lcia Maria Xavier de CastroRicardo Gebrim

    Ricardo Rezende Figueira

    Sandra Praxedes

    Ch CvAntonio Eleilson Leite

    Guilherme Delgado

    Jelson Oliveira

    Joo XerriJos Juliano de Carvalho Filho

    Kenarik Boujikian Felippe

    Letcia Sabatella

    Luiz Bassegio

    Mnica Dias Martins

    Sueli Bellato

    Suzana Anglica Paim Figueiredo

    Thomaz Jensen

    Ch FcGuilherme Amorim

    Rubens Naves

    Srgio Haddad

    rd sc d J D HRua Castro Alves, 945, Aclimao, So Paulo, SP, Cep: 01532-001

    Tel (11) 3271-1237 / Fax (11) 3271-4878

    Email: [email protected]

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    ndice

    Prefcio .................................................................................................................................... 11

    Introduo ...............................................................................................................................15

    Organizaes que participam da elaborao do relatrioDireitos Humanos no Brasil, nestes 11 anos ..............................................................19

    Misso cumprida!Aton Fon Filho ...........................................................................................................................25

    Poltica agrria: passado e perspectivasJos Juliano de Carvalho Filho .................................................................................................33

    Amaznia: colnia do Brasil

    Antnio Canuto.........................................................................................................................41

    Na sombra da imaginao O campons e a superao de um destinomedocreHoracio Martins de Carvalho .................................................................................................49

    Monoplio da terra e produo de agrocombustveisMaria Luisa Mendona............................................................................................................57

    Do Cdigo Florestal ao Cdigo das Biodiversidades

    Aziz Ab Saber...........................................................................................................................65

    Aps oito anos: como ficou a erradicao do trabalho escravo?Ricardo Rezende Figueira........................................................................................................73

    Avatar aqui! Povos indgenas, grandes obras e conflitos em 2010Rosane F. Lacerda ....................................................................................................................81

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    A titulao dos territrios quilombolas: uma breve leitura dos oito anos degoverno Lula

    Roberto Rainha e Danilo Serejo Lopes ..................................................................................87

    Modelo energtico brasileiro e as violaes de direitos humanosMAB (Movimento dos Atingidos por Barragens) ...........................................................97

    Dimenso poltica dos direitos humanosAton Fon Filho .........................................................................................................................103

    A defesa pela moralidade na poltica no pode implicar ataque Constituio e cidadania

    Patrick Mariano ......................................................................................................................109

    Mercado de trabalho brasileiro: em busca da proteo socialClemente Ganz Lcio e Patrcia Lino Costa ........................................................................119

    As novas formas de represso a grevesRicardo Gebrim e Thiago Barison.........................................................................................131

    Tortura no Brasil: a persistncia da impunidade

    Maria Gorete Marques de Jesus ..........................................................................................137

    Segurana para alm das OlimpadasIgnacio Cano ........................................................................................................................................143

    Prticas punitivas brasileiras atuaisJos de Jesus Filho ..................................................................................................................145

    A educao no sistema prisionalMaringela Graciano e Srgio Haddad...............................................................................153

    Vidas sem violncia, um direito humano: quatro anos de controle socialpela plena implementao da Lei Maria da Penha

    Ana Paula Lopes Ferreira, Emilia Jomalinis e Luzia de Azevedo Albuquerque ...............157

    Um balano retrospectivo e analtico dos direitos reprodutivos em 2010:desafios persistentesBeatriz Galli ............................................................................................................................167

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    Direitos de gays, lsbicas, bissexuais, travestis e transexuais so direitoshumanos: panorama brasileiro em 2010

    Leonardo Dall Evedove ..........................................................................................................173

    Vinte anos de Estatuto da Criana e do Adolescente e a Lei 12.010/09Lourival Nonato dos Santos ..................................................................................................179

    Um balano das aes afirmativas para afrodescendentes no sistemade ensino brasileiro

    Marcelo Paixo, Irene Rossetto Giaccherino, Luiz M. Carvano,

    Fabiana Montovanele e Sandra R. Ribeiro ..........................................................................187

    Violaes cometidas pela transnacional ValeTatiana Merlino ......................................................................................................................199

    A nova face do Banco MundialMnica Dias Martins ............................................................................................................ 207

    Migraes, crise e direitosLuiz Bassegio e Luciane Udovic............................................................................................ 211

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    Prefcio

    A luta pela efetivao dos direitos humanos no Brasil chega ao ano de 2010 com novasperspectivas e desafios renovados. A dcada de 1970 caracterizou-se pela luta contra o

    autoritarismo. A de 1980, pela luta pr-democratizao e a gama de direitos conquistadadurante o processo constituinte. A de 1990, pela enorme ampliao da pauta de reivin-dicaes sociais em inmeras searas. A dcada dos anos 2000, que se finda neste 2010,ser lembrada pela conquista de novos espaos participativos, pela reduo gradual e sis-temtica porm, cada vez mais acelerada das desigualdades sociais e, sobremaneira,pela percepo cada vez mais clara de que necessrio seguir em frente. Se os direitoshumanos nunca foram to respeitados no Brasil como neste momento, o prprio cenriode liberdade nos facilita ver quantas violaes ainda ocorrem diuturnamente.

    O escopo do relatrio que agora apresentado pela Rede Social de Justia e Direitos

    Humanos d a dimenso deste processo. Algumas pautas, como a luta contra a tortura ea impunidade dos crimes do regime militar, a melhor preparao das foras de seguranapara a democracia, a represso aos movimentos sociais e a luta contra o trabalho escra-vo, so antigas, identificveis na j remota disputa da sociedade livre contra a ditadura.Outras, como o direito gua e ao meio ambiente, a resistncia expanso das mono-culturas no campo, contra a especulao imobiliria que vulnerabiliza os mais pobres e,ainda, os direitos da comunidade LGBT, so pautas novas, vivas h alguns pares de anos.Essas novas pautas dizem respeito a um novo momento do pas, marcado pelo progressoe pelo desenvolvimento econmico e social mas, mais que tudo, representam um novomomento da sociedade civil, mais robustecida e, sobremaneira, ciente da necessidade de

    unir esforos em prol no de uma dessas pautas, mas sim de todas elas, na construo deuma rede que efetivamente conecte esforos pela promoo dos direitos humanos em suaintegralidade.

    A insurgncia das redes de defesa e promoo dos direitos humanos, catalisada pelasnovas mdias, refora o que h de mais importante na disputa travada diariamente peladignidade humana: a necessidade de nos vermos ofendidos enquanto humanidade todaa vez que a dignidade de uma pessoa violada, afastando por completo a ideia de queesta possa ser uma violao singular. por essa razo que hoje o movimento de mulheresapoia a luta quilombola, o movimento sem-terra defende o fim da impunidade em relao

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    aos crimes da ditadura e o movimento LGBT defende os direitos da criana e do adoles-cente. Nesta grande fuso, as lutas sociais se diversificam, ramificam e fortificam.

    Acusa-se esse movimento de ser poltico (com p minsculo), como forma de des-merec-los ou diminu-los. Diz-se que grandes lutas sociais, como as traduzidas na ter-ceira verso do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), so uma tentativade refazer a Constituinte por meios escusos. Pois, veja-se bem: essa eminentemente umaluta Poltica sim (mas Poltica com P maisculo), uma luta que diz respeito ao bem eao interesse da plis, ao nosso bem comum. Faz-la avanar travar uma disputa polticacom todos aqueles que defendem uma sociedade hierrquica com cidados com diferen-tes classes de direitos. lutar contra aquelas concepes que veem no Estado um agentede fomento ao desenvolvimento privado, e no ao desenvolvimento social (que passa peloprivado, mas nele no se esgota). por isso que as muitas lutas, derrotas e conquistas no

    campo dos direitos humanos relatadas neste relatrio no tratam da disputa por umanova Constituio, mas sim pela mais plena efetivao da Constituio Cidad de 1988,construda por meio de um amplo processo participativo e que garante uma pliade dedireitos que nossa sociedade ainda no foi capaz de efetivar. Mais ainda: pelas caracters-ticas histricas do processo constituinte de 1988 que se legitima o meio elegido: a lutasocial e a participao poltica.

    O momento atual , nesse sentido, um dos mais importantes na histria do pas, poiso confronto claro de setores conservadores contra os direitos humanos, tachados de direi-tos dos criminosos ou de benesses do Estado, d dimenso do momento globalmente

    afirmativo de nossa democracia, na qual no apenas esse debate possvel (coisa impens-vel 35 anos atrs), como ainda demonstra quem est na defensiva: justamente aqueles quese beneficiaram historicamente da injustia e da desigualdade e que agora gritam contraa efetivao de novos padres sociais, capazes de mudar mentalidades e realidades, tor-nando o to propalado pluralismo brasileiro uma metfora de nossa diversidade, e nouma imagem encobridora de nossa alienao. Nosso pluralismo pretende a igualdade paraafirmar que podemos ser iguais na diferena, e no a alienao que defende o pluralismoentre pobres e ricos ou entre senhores e escravos. Com a reduo da desigualdade e ofortalecimento da sociedade civil, o Brasil caminha no rumo da afirmao da sua plurali-dade enquanto fator Poltico, e no econmico.

    Isso decorre da combinao entre o fortalecimento dos processos eleitorais com aampliao de outros mecanismos de participao. Hoje, o povo brasileiro um dos quemais influi nas polticas do Estado. Tivemos conferncias nacionais para a sade, segu-rana pblica, educao, meio ambiente, cidades, comunicao, entre tantas outras, sendoos direitos humanos apenas uma dessas tantas. O que incomoda aos que criticam o resul-tado das conferncias, para alm da possibilidade do fim de seu tratamento diferenciadofrente ao Estado, a verificao de que, hoje, cada vez mais, a soberania das decises doEstado passa pelas mos da populao, e que isso no ocorre apenas de dois em dois anos,com as eleies.

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    Prefcio

    Seja como for a prxima dcada, j sabemos de antemo que a nao brasileira entranela melhor preparada para defender os direitos humanos e com uma sociedade civil forte

    e bem organizada para denunciar e lutar contra qualquer poltica que implique em retro-cesso, em especial na seara dos direitos humanos. Se a divergncia existe, ser sanada nolocal onde se origina, que o espao pblico do debate social.

    Acreditamos fortemente que a publicao deste importante relatrio, anualmentereiterada para o bem do nosso processo civilizatrio, sinalizar para o futuro no ape-nas nossos desafios, mas tambm nossas conquistas, nossas dinmicas e nossa forma demudar o mundo, pois, tratar de direitos humanos, em ltima anlise, tratar disso: dever o mundo com alteridade, com os olhos do outro, mudar o seu olhar e o seu mundo e,desde essa nova viso de compreenso ampliada, procurar construir justia para todos.

    Braslia, 14 de outubro de 2010.

    Paulo Abro,

    presidente da Comisso de Anistia do Ministrio da Justia e doutor em Direito eprofessor do Curso de Mestrado em Direito da Universidade Catlica de Braslia (UCB).

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    Introduo

    No ano de 2010, oRelatrio Direitos Humanos no Brasil chega sua dcima primeiraedio. Os 26 artigos que compem a obra do um rico e completo panorama dos direitos

    humanos no pas, ao longo dos ltimos anos, e, sobretudo, em relao situao de 2010.Poltica agrria, violncia urbana, migrao, direito ao trabalho e educao, desigualda-de racial e de gnero, questo GLBT, indgena, quilombola e trabalho escravo esto entreos temas tratados pelos autores.

    Alm da radiografia e balano das violaes, a obra traz, nesta edio, artigo deAton Fon Filho, advogado e diretor da Rede Social de Justia e Direitos Humanos, sobreavitria da mobilizao e da advocacia popular em dois casos emblemticos de violaesde direitos humanos: o assassinato da irm Dorothy Stang, no Par, e a exploso em umafbrica de fogos de artifcio em Santo Antnio de Jesus, na Bahia. Nossa organizao teve

    o privilgio de contribuir com essas lutas e com imensa alegria que dedicamos o relatrioDireitos Humanos no Brasil 2010 a todos que contriburam com esse trabalho.O texto de Jos Juliano de Carvalho Pinto, diretor da Associao Brasileira de Refor-

    ma Agrria (Abra) faz uma avaliao da poltica agrria dos oito anos de governo Lula.Segundo ele, apesar de terem mudado o trato com os movimentos sociais, os dois governosdo presidente Lula evidenciaram a persistente permanncia das velhas e conservadorasestruturas poltico-econmicas do campo brasileiro.

    A Amaznia tema do texto de Antonio Canuto, da Comisso Pastoral da Terra(CPT), que afirma: se a preocupao com a preservao ganha dimenses planetrias,o avano do capital, tanto nacional, quanto internacional, no arrefece. A abundncia

    de gua e de madeiras nobres, as riquezas minerais de seu subsolo, sua estonteantebiodiversidade, fazem da Amaznia um dos lugares mais cobiados do planeta. E apoltica de desenvolvimento que para ela se desenha est assentada sobre os interessesdo capital.

    O monoplio da terra e a produo de agrocombustveis so analisados por MariaLuisa Mendona, jornalista e coordenadora da Rede Social de Justia e Direitos Huma-nos. A autora relata que, h alguns anos, verifica-se um aumento do ritmo de fusese aquisies de usinas no setor sucroalcooleiro, com um crescimento da participao deempresas estrangeiras e da concentrao do poder econmico de determinados grupos.

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    O debate em torno da mudana do Cdigo Florestal feito por Aziz AbSaber, pro-fessor emrito de geografia da Universidade de So Paulo (USP). O gegrafo defende que

    pressionar por uma liberao ampla dos processos de desmatamento significa desconhe-cer a progressividade de cenrios biticos a diferentes espaos de tempo futuro.A erradicao do trabalho escravo foi tratada por Ricardo Rezende, coordenador do

    Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo do NEPP-DH da UFRJ. Num balano dos doismandatos do governo Lula, o autor concluiu que metade das denncias de trabalho escra-vo no produziu fiscalizao, pois faltavam dados nas peas das denncias, uma vez queo Estado no foi capaz de agir com a rapidez necessria. Ainda sobre direitos humanosno meio rural, o relatrio traz anlises sobre a situao dos povos indgenas, quilombolas,atingidos por barragens e sobre o papel do campesinato.

    Um dos temas tratados sobre direitos humanos no meio urbano a situao dos

    presdios. Segundo Jos de Jesus Filho, assessor da Pastoral Carcerria Nacional, o Brasil o quarto pas no mundo em nmero de presos. Os Centros de Deteno Provisria per-manecem superlotados. Com a acelerao no aumento de nmero de presos, as condiesprisionais tendem a piorar, com o baixo nmero de agentes penitencirios para a efetivacustdia e aumento de doenas infecto-contagiosas.

    A permanncia da prtica da tortura tratada por Maria Gorete Marques, pesquisa-dora do Ncleo de Estudos da Violncia da USP, que afirma:A impunidade dos crimesde tortura praticados por agentes do Estado tem sido apontada como um dos principaisfatores responsveis pela continuidade dessa prtica nas foras policiais. Mas, para alm

    da impunidade presente nos casos de hoje, a existente em relao aos torturadores queatuaram durante a ditadura militar ainda persiste. Desse modo, no de se estranhar que,justamente durante a vigncia do Estado Democrtico de Direito, a tortura ainda exista eos torturadores permaneam impunes. A violncia urbana e, em particular, o papel daschamadas Unidades de Polcia Pacificadora (UPPs) no Rio de Janeiro o tema abordadopelo professor Ignacio Cano, do Laboratrio de Anlise da Violncia da UniversidadeEstadual do Rio de Janeiro (UERJ).

    Outro tema polmico diz respeito aos direitos reprodutivos, abordado pela advogadaBeatriz Galli, que analisa uma pesquisa recente sobre o aborto no Brasil. De acordo comos resultados, uma em cada sete brasileiras, entre dezoito e 39 anos, j realizou ao menos

    um aborto na vida, o equivalente a uma multido de cinco milhes de mulheres. De acor-do com o estudo, na faixa etria entre 35 e 39 anos, a proporo ainda maior: uma emcada cinco mulheres j fez um aborto. A pesquisa mostra que h um problema de sadepblica a enfrentar, explica a autora.

    Ainda sobre os direitos das mulheres, o livro traz uma avaliao da Lei Maria daPenha. Segundo as autoras, Ana Paula Ferreira, Emilia Jomalinis e Luzia Albuquer-que, uma mulher assassinada a cada duas horas, o que coloca o Brasil em 12 lugar noranking mundial de homicdios de mulheres. A maioria das vtimas morta por parentes,maridos e ex-companheiros.

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    introDuo

    Em relao ao direito ao trabalho, os advogados Ricardo Gebrim e Thiago Barisonanalisam novas formas de represso a greves, principalmente a reabilitao dos artigos

    522 e 543 da CLT. Por tais dispositivos, coerentes com um regime jurdico de atrelamen-to dos sindicatos ao Estado, somente um mximo de sete diretores e mais trs membros doconselho fiscal so protegidos contra a dispensa sem justa causa. Alm de ser um nmeroque no guarda relao alguma com o tamanho da categoria e sua disperso espacial, res-taram excludos dessa proteo os delegados de base, dizem os autores. Outro artigo queanalisa o trabalho no Brasil de autoria de Clemente Ganz Lcioe Patrcia Lino Costa,do Dieese.

    O tema da educao nos presdios abordado por Maringela Graciano e SrgioHaddad, da Ao Educativa. Eles trazem um panorama sobre a precariedade das condi-es da educao ofertada populao carcerria, que pode ser mensurada pela quantida-

    de de profissionais do campo que atuam no sistema prisional brasileiro. De acordo comeles, em junho de 2009, eram 111 pedagogos e 329 professores, para um total de 75.873servidores penitencirios, funcionrios pblicos na ativa. Veja-se que a funo de controle supervalorizada frente quela de educar e preparar para retornar ao convvio social.Outra questo tratada no livro, pelo jornalista Lourival Nonato, diz respeito ao balanodos vinte anos de Estatuto da Criana e do Adolescente.

    A professora Mnica Dias Martins, da Universidade Estadual do Cear (UECE), fazuma avaliao das polticas do Banco Mundial, afirmando que as concepes de desen-volvimento desta instituio financeira internacional esto intimamente relacionadas aos

    conflitos blicos mundiais e s tendncias da poltica externa estadunidense. Outro artigoque avalia o Brasil no mbito internacional, da jornalista Tatiana Merlino, trata das viola-es cometidas pela mineradora transnacional Vale.

    A Rede Social agradece todas as colaboraes que tornaram possvel a realizaodeste relatrio. Esperamos que o livro contribua com a construo de um pas mais justoe igualitrio.

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    Organizaes que participaram da elaborao do relatrio

    Direitos Humanos no Brasil, nestes 11 anos:

    Ao dos Cristos para a Abolio da TorturaAo EducativaActionAid BrasilAliana Estratgica Latino-Americana e Caribenha de AfrodescendentesAssessoria do gabinete da vereadora Flvia Pereira (PT/SP)Assessoria e Servios a Projetos em Agricultura Alternativa (AS-PTA)Associao Brasileira de Gays, Lsbicas e Transgneros (ABGLT)Associao Brasileira de ONGs (Abong)

    Associao Brasileira de Reforma Agrria (Abra)Associao Juzes para a DemocraciaAssociao Movimento Paulo Jackson tica, Justia, CidadaniaArticulao das Comunidades Negras Rurais QuilombolasArticulao de ONGs de Mulheres Negras BrasileirasAssociao da Parada do Orgulho GLBT de So PauloAssociao em reas de Assentamento no Estado do Maranho (Assema)Campanha Por Um Brasil Livre de TransgnicosCritas Brasileira

    Central de Movimentos Populares de So PauloCentral nica dos Trabalhadores (CUT)Centro de Articulao da Populao Marginalizada (Ceap)Centro de Cultura Lus FreireCentro de Cultura Negra do MaranhoCentro de Defesa dos Direitos da Criana do Adolescente Pe.Marcos PasseriniCentro de Direitos Humanos Evandro Lins e SilvaCentro de Estudos de Segurana e Cidadania (Cesec) da Universidade Cndido MendesCentro de Estudos e Ao da Mulher (SER MULHER)Centro de Estudos e Aes Solidrias da Mar (CEASM)

    Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual deCampinas

    Centro de Estudos Sociais da Universidade de CoimbraCentro e Atendimento s Vtimas da Violncia (CEA/ES)Centro Pela Justia e o Direito Internacional (Cejil)Centro pelo Direito Moradia contra Despejos COHRE AmricasCentro Santo Dias de Direitos Humanos da Arquidiocese de So PauloComisso de Anistia/Ministrio da JustiaComisso de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de So Paulo

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    Direitos Humanosno Brasil 2010

    Comisso de Direitos Humanos da Cmara dos DeputadosComisso de Direitos Humanos da OAB

    Comisso de Direitos Humanos da Seccional Paulista da Ordem dos Advogados doBrasil (OAB)Comisso de Direitos Humanos de Passo FundoComisso de Familiares de Mortos e Desaparecidos PolticosComisso de Relaes tnicas e Raciais da Associao Brasileira de AntropologiaComisso Organizadora de Acompanhamento para os Julgamentos do Caso do

    CarandiruComisso Pastoral da Terra (CPT)Conselho Estadual de Direitos Humanos do Esprito SantoConselho Federal de Psicologia

    Conselho Indigenista Missionrio (Cimi)Coordenao Nacional de Articulao das Comunidades Negras Rurais Quilombolas

    (Conaq)Criola, Organizao de Mulheres NegrasDepartamento Intersindical de Estatstica e Estudos Socioeconmicos (Dieese)Educao e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes (Educafro)Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio Fundao Oswaldo Cruz

    (EPSJV/Fiocruz)Escritrio Nacional Zumbi dos Palmares

    Falapreta! Organizao de Mulheres NegrasFederao de rgos para Assistncia Social e Educacional (Fase)Federao dos Trabalhadores da Agricultura (Fetagri)-ParFIAN BrasilFIAN InternacionalFundao Abrinq pelos Direitos da CrianaFundao Heinrich BllFundao Oswaldo CruzFundao Perseu AbramoGabinete de Assessoria Jurdica s Organizaes Populares (Gajop)

    Geleds-Instituto da Mulher NegraGrito dos Excludos ContinentalGrupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporneo (GPTEC/NEPP-DH/UFRJ)Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporneo (GPTEC/NEPP-DH/UFRJ)Grupo de Trabalho Cidadania e Territorializao tnicaGrupo de Trabalho Hegemonias e Emancipaes da ClacsoGrupo de Trabalho Interministerial Mulheres EncarceradasGrupo Solidrio So DomingosGrupo Tortura Nunca Mais

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    Direitos Humanosno Brasil 2010

    Instituto Carioca de CriminologiaInstituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas

    Instituto de Estudos Socioeconmicos (Inesc)Instituto de Polticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs)Instituto Latino-Americano das Naes Unidas para a Preveno do Delito e

    Tratamento do Delinquente (Ilanud)Instituto PolisInstituto Superior de Estudos da Religio (Iser)International Rivers Network (IRN)Intervozes Coletivo Brasil de Comunicao SocialIpas BrasilJornal Brasil de Fato

    Laboratrio Interdisciplinar de Pesquisa e Interveno Social (Lipis PUC-Rio)Laboratrio de Anlises Econmicas, Histricas, Sociais e Estatsticas das Relaes

    Raciais (Laeser), Instituto de Economia (UFRJ)Movimento das Mulheres CamponesasMovimento dos Atingidos por Barragens (MAB)Movimento dos Pequenos AgricultoresMovimento Humanos Direitos (MHuD)Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babau (MIQCB)Movimento Nacional de Direitos Humanos

    Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)Movimento Sem Teto do Centro (MSTC)Ncleo de Estudos da Violncia (NEV-USP)Observatrio das NacionalidadesObservatrio de Favelas do Rio de JaneiroODH - Projeto LegalOrganizao Civil de Ao Social (Ocas)Ouvidoria da Polcia do Estado de So PauloPastoral Carcerria NacionalPastoral Operria Metropolitana SP

    Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econmicos, Sociais e Culturais(Plataforma DhESC Brasil)

    Procuradoria Federal dos Direitos do CidadoPrograma Justia Econmica Dvida e Direitos SociaisProjeto Brasil Sustentvel e Democrtico/FaseRede Brasil sobre IFMsRede de Ao e Pesquisa sobre a TerraRede Jubileu SulRevista Caros Amigos

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    Revista Democracia Viva IbaseRevista Sem Fronteiras

    Secretaria de Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade da Prefeitura do Municpiode So PauloSempreviva Organizao Feminista SOFServio Pastoral dos MigrantesSindicato de Trabalhadores Rurais de AlcntaraSindicato dos Advogados de So PauloSindicato dos Professores do Ensino Pblico Estadual de So Paulo (Apeoesp)Sociedade Maranhense de Direitos HumanosThemis - Assessoria Jurdica e Estudos de GneroUnafisco Sindical - Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal

    Universidade Estadual do Cear (UECE)Universidade Estadual Paulista (Unesp)Usina Assessoria Tcnica de Movimentos Populares em Polticas Urbanas e

    HabitacionaisVia Campesina Brasil

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    A Rede Social comemora a vitria da mobilizao e da advocacia popular em dois casosemblemticos de violaes de direitos humanos: o assassinato da irm Dorothy Stang,no Par, e a exploso em uma fbrica de fogos de artifcio em Santo Antnio de Jesus,na Bahia. Nossa organizao teve o privilgio de contribuir com essas lutas e comimensa alegria que dedicamos o relatrio Direitos Humanos no Brasil 2010 a todos quecontriburam com esse trabalho.

    Misso cumprida!

    Aton Fon Filho*

    Condenao dos matadores de irm Dorothy StangJ se havia ingressado no Dia dos Trabalhadores quando, aos 20 minutos do 1 demaio de 2010, o juiz Raimundo Moiss Alves Flexa, da 2 Vara do Tribunal do Jri deBelm, leu a sentena com que condenou Regivaldo Pereira Galvo a uma pena de trintaanos de recluso pela morte da irm Dorothy Mae Stang.

    Religiosa da Congregao das Irms de Notre Dame de Namour, irm Dorothyintegrava a Comisso Pastoral da Terra (CPT) no estado do Par, tendo atuao espe-cfica na regio de Anap-Pacaj, na rea de Altamira. Esteve vinculada, nos ltimosmomentos de vida, luta em defesa dos trabalhadores pobres da regio e da preservaoambiental, o que logrou unificar sob a bandeira da construo dos Projetos de Desen-

    volvimento Sustentvel PDSs, que implicam o assentamento de lavradores pobres emreas de preservao ambiental, para desenvolvimento de projetos de agricultura fami-liar e sustentvel, sem desmatamento.

    As atividades desenvolvidas pela CPT e pela irm Dorothy chocaram-se com a exis-tncia de grileiros que, naquela regio, apossaram-se de imensas reas a partir de conces-ses de terras promovidas pelos rgos estatais no tempo da ditadura militar, como partede seu programa de conduzir homens sem-terra terra sem homens da Amaznia.

    * Aton Fon Filho advogado e diretor da Rede Social de Justia e Direitos Humanos.

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    Pelos Contratos de Alienao de Terras Pblicas celebrados com a Unio Federal(representada pelo Instituto de Colonizao e Reforma Agrria - Incra), aqueles que rece-

    biam a terra se obrigavam a executar projetos econmicos na rea e construir benfeitorias,como abertura de estradas e construo de prdios, escolas, postos de sade etc., no prazode cinco anos. As concesses de reas foram feitas na dcada de 1970, mas, na quase tota-lidade dos casos, no foram obedecidas as clusulas de contrapartida, que tinham carterde resolutivas, isto , se no fossem obedecidas, o contrato seria rescindido. Tal foi o casodaqueles lotes em torno dos quais posseiros e grileiros travaram disputas em busca deconstituio de PDSs.

    Em 2002, decreto do presidente Fernando Henrique Cardoso criou o PDS na glebaBacaj, incluindo diversos lotes que j haviam sido recuperados, e nas proximidades dolote 55, em vias de recuperao. O referido lote havia sido concedido originalmente a

    Pedro Fenelon, que posteriormente o repassou.

    O crimeRegivaldo Pereira Galvo o personagem por trs do crime, que girou em torno do

    lote 55, por ele adquirido. Regivaldo dado a negcios obscuros. Nada tem em seu pr-prio nome, valendo-se sempre de terceiros, quase sempre empregados seus, na condiode testas de ferro.

    O lote 55 da gleba Bacaj, por ele adquirido, foi posto sucessivamente em nome dediversas pessoas, at chegar, finalmente, a um empregado seu de nome Valdivino.

    Quando o Incra ameaou a adoo de medidas para retomar a posse da rea e inclu-la no Projeto de Desenvolvimento Sustentvel, como queria irm Dorothy, Regivaldoordenou uma srie de medidas violentas contra os trabalhadores, visando a afast-los darea.

    A religiosa passou a fazer denncias sobre o que ocorria, nominando Regivaldo espe-cificamente e indicando uma srie de atividades ilegais por ele realizadas. Como decor-rncia disso, foram lavradas duas multas de R$ 1,5 milho, num total de R$ 3 milhes,pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis (Ibama) epelo Ministrio do Trabalho; a primeira, por desmatamento de rea protegida, e a segun-da, por reduo de trabalhadores condio de escravos.

    Visando a estabelecer o biombo que ocultasse sua violncia, Regivaldo transferiu area para o nome de Vitalmiro Bastos de Moura, o Bida, com data retroativa, e contratouum pistoleiro goiano de nome Saint Clair para matar irm Dorothy. Saint Clair chegou ase deslocar para Anapu e l permaneceu durante uma semana esperando a religiosa, masesta se manteve distante, porque havia ido a Braslia para se encontrar com autoridadesdo Incra, de quem buscava a transferncia do lote 55 para o PDS. Depois de uma semana,Saint Clair abandonou a empreitada e foi embora de Anapu.

    Frustrado pela desistncia de Saint Clair, mas ainda perseverante em seu intentode morte, Regivaldo ordenou a Vitalmiro que, atravs de Amail Feijoli da Cunha a

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    quem Bida vendera 300 hectares da rea oferecesse a Rayfran das Neves Sales e Clo-doaldo Carlos Batista o valor de R$ 50 mil para que matassem irm Dorothy. Feita e

    aceita a oferta, Rayfran e Clodoaldo mataram-na depois dela lhes ter lido versculos daBblia Sagrada.

    O processoCumprida a empreitada, Vitalmiro, Amail, Rayfran e Clodoaldo fugiram. Regivaldo

    tinha viajado antes para o Rio de Janeiro para estabelecer seu libi. l que recebe a liga-o telefnica de Bida dando conta do cumprimento da tarefa.

    Amail, Rayfran e Clodoaldo foram presos dias depois. Os dois ltimos confessaram erevelaram que Amail lhes havia contratado para o crime em troca de uma recompensa deR$ 50 mil. Amail debateu-se algum tempo com sua responsabilidade, mas, feitas as con-

    tas, considerou vantajoso aceitar a proposta de delao premiada. Confessou sua partici-pao no episdio e indicou as de Vitalmiro e Regivaldo, que citado pela primeira vez.

    A referncia s ordens de Regivaldo para que irm Dorothy fosse executada pe-no nas articulaes do crime e no processo. Regivaldo convenceu Vitalmiro a se entre-gar, para contradizer Amail e afastar a acusao por ele feita contra ambos. Proteo edinheiro foram oferecidos a Rayfran, Clodoaldo e Amail. Os dois primeiros aceitaram epassaram a dizer que haviam matado por pura deciso pessoal, sem que houvesse nenhu-ma promessa de pagamento, mas a verso foi repudiada pelos jurados que os julgaram econdenaram o primeiro a 27 e o segundo a dezessete anos de recluso , em dezembro

    de 2005.Amail manteve a acusao contra Vitalmiro e Regivaldo, at porque ela havia sidogravada em vdeo pelo Ministrio Pblico do estado do Par. Ele foi julgado e conde-nado, mas, como havia colaborado com a acusao, teve a pena reduzida para dezesseteanos de recluso.

    Vigente naquela oportunidade, a regra que estabelecia o direito ao protesto por novojri, pelo qual o ru que fosse condenado a pena superior a vinte anos tinha o direito anovo julgamento, Rayfran a invocou e foi julgado mais duas vezes, mas os julgamentosforam anulados. Por fim, ele desistiu de recorrer, para poder, de imediato, ter progressode pena para o regime semiaberto.

    Vitalmiro foi julgado uma primeira vez e condenado, com Amail, na sesso de julga-mento, reiterando a acusao feita a ele. Como a pena que lhe foi imposta superou os vinteanos, teve direito a novo julgamento pelo jri e, nessa ocasio, foi absolvido, contando,ento, com a presena de Amail, que lhe veio em socorro afirmando que a revelao quehavia feito referente participao de Vitalmiro fora mentirosa. Foi a vez de a acusaorecorrer, e esse segundo julgamento foi, tambm, anulado.

    No dia 31 de maro de 2010, Vitalmiro compareceu perante o Tribunal do Jri emBelm pela terceira vez, mas o julgamento no ocorreu porque seus advogados valeram-seda artimanha de no comparecer, obrigando a que fosse designada nova data e nomeado,

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    por cautela, defensor pblico para a hiptese de novamente eles se esquivarem do cumpri-mento de sua responsabilidade. Motivava os advogados de Vitalmiro, mais que o interesse

    de seu prprio constitudo, permitir que o julgamento de Regivaldo, que deveria aconte-cer em seguida, fosse realizado antes, de modo que este pudesse afirmar ante os juradosque a absolvio anterior de Vitalmiro demonstrava que o crime no havia sido cometidomediante promessa de recompensa, o que indicava a impossibilidade de Regivaldo ser seumandante.

    No dia 12 de abril, data designada para o jri, um novo advogado compareceu ante oTribunal do Jri, afirmando ter sido substabelecido pelos anteriores advogados de Vital-miro e pleiteando adiamento por supostamente no ter tido tempo para conhecer os autosdo processo. Como, porm, havia anteriormente designado defensor pblico para se desin-cumbir da tarefa, o magistrado que presidia o evento manteve a programao.

    Ocorreu, ento, um erro do advogado de Vitalmiro que, em lugar de se retirar ime-diatamente do tribunal, permaneceu ao lado do defensor pblico na tribuna de defesa,somente se retirando quando j uma srie de atos processuais havia sido realizada, mar-cando sua implcita aceitao da deciso judicial.

    Vitalmiro foi condenado a trinta anos de recluso naquela oportunidade. Seus advo-gados no recorreram contra essa deciso, preferindo ajuizar pedido dehabeas corpus plei-teando a nulidade do julgamento em face de suposta nulidade decorrente do no adia-mento do jri. Mas ohabeas corpus foi denegado e a deciso condenatria mantida.

    E se chegou, assim, ao julgamento do ltimo e maior responsvel pelo crime que

    vitimou irm Dorothy.A Rede Social de Justia e Direitos Humanos apoiou o trabalho da Comisso Pasto-ral da Terra de Anapu j desde o mesmo dia do homicdio, quando se disps a deslocar oadvogado Roberto Rainha regio para auxiliar no acompanhamento das investigaes.Posteriormente, tambm a assessora de comunicao Evanize Sydow para l se dirigiu,para organizar o trabalho de divulgao, sociedade brasileira, dos fatos que ocorriam.

    Lies do processoNa busca da celeridade no trmite do processo, a CPT formulou pedido ao procu-

    rador geral da Repblica para que este requeresse a federalizao do crime, nos termos

    da emenda constitucional que autorizava a medida nos casos de crimes contra os direitoshumanos, sendo este o primeiro pedido feito com tal fundamento. A federalizao foinegada pelo Superior Tribunal de Justia (STJ), que entendeu que o Poder Judicirio doestado do Par estava sendo diligente e clere, o que, por outro lado, obrigou as autorida-des judicirias paraenses a manterem aquela atitude, motivo pelo qual se logrou, em cincoanos, realizar sete jris para julgamento dos cinco acusados, apesar das tentativas da defe-sa no sentido de protelar o encontro final dos rus com a Justia. Em duas oportunidades,julgamentos agendados foram suspensos em virtude dessas aes.

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    Temos buscado divulgar esses elementos para a sociedade brasileira em relatriosanteriores, acrescendo-lhes o papel educativo no sentido de desvendar algumas das estra-

    tgias dos advogados defensores dos criminosos do latifndio, como a utilizao de meiospara cindir o julgamento dos executores diretos daquele dos mandantes do crime, e parapostergar o julgamento destes. Por essa via, procuram aqueles profissionais, em primeirolugar, concentrar-se na luta pela absolvio dos pistoleiros, uma vez que, logrado isso,no se poderia mais falar em responsabilidade de seus contratadores, j que, no havendocontratados, no haveria contratantes.

    Depois, busca-se, por essa estratgia, gerar uma situao em que os pistoleiros, mesmoquando condenados, atuem como testemunhas no julgamento dos fazendeiros, negandohaverem recebido promessas de pagamento para executar o crime. Tal foi o papel que,no caso do homicdio que vitimou a religiosa, desempenharam Rayfran, Clodoaldo e

    Amail. Na verdade, esses pistoleiros acabaram sendo beneficiados com a realizao devrios jris, eis que a cada oportunidade se valeram do momento para extorquir novasimportncias de seus patres.

    A ciso dos processos e a demora no julgamento dos mandantes tm, tambm, oobjetivo de fazer com que a sociedade perca a memria factual e sentimental do caso,amortecendo sua indignao, o que vem a beneficiar os fazendeiros quando, afinal, sojulgados. Por esse motivo, os advogados de Vitalmiro fugiram da audincia de julgamentoagendada para o dia 31 de maro ltimo, e daquela designada para o dia 12 de abril.

    Por esse motivo, os advogados de Regivaldo Galvo buscaram adiar o julgamento

    realizado no dia 30 de abril, eis que iria acontecer escassos dezoito dias depois da conde-nao imposta a Vitalmiro, com o que se manteria a memria factual e sentimental nosentido da extenso da condenao a Regivaldo.

    Alm da atuao no perodo das investigaes e no mbito de comunicao e educa-o, a Rede Social teve permanente e vigorosa atuao no curso do processo judicial, sejanas audincias, seja nas sesses de julgamento.

    O advogado Aton Fon Filho esteve presente e participou de todas as sesses do Tri-bunal do Jri de Belm, com atuao na ouvida de testemunhas e dos rus e nos debatesentre a acusao e a defesa, na condio de assistente da acusao, prevista na legislaoprocessual penal brasileira.

    AgradecimentosAo tempo, portanto, em que depois de cinco anos de acompanhamento de um pro-

    cesso-crime podemos relatar que logramos xito em todas as medidas empreendidas,alcanando, pela primeira vez, a condenao de todos os envolvidos em um crime demando, em um crime contra uma militante social, em um crime contra uma religiosa, emum crime no espao violento da Amaznia, em um crime contra defensores dos direitoshumanos, a Rede Social de Justia e Direitos Humanos se sente orgulhosa de ter podidoparticipar desse esforo que realizaram a CPT, a Congregao das Irms de Notre Dame

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    de Namour, os familiares de irm Dorothy Stang, e imensamente grata pelo apoio queobteve de seus parceiros, sem os quais certamente as dificuldades teriam sido incontor-

    nveis.

    Exploso em uma fbrica de fogos de artifcio em SantoAntnio de Jesus

    No dia 11 de dezembro de 1998, exploso em uma fbrica clandestina de fogos deartifcio em Santo Antnio de Jesus, na Bahia, causou a morte de 64 pessoas, e gravesferimentos em outras cinco, quase todas mulheres, adultas e menores, entre as quais vriascom idades entre nove e catorze anos, mas tambm duas ancis de 76 e 91 anos de idade.Desde ento, os familiares das vtimas esperavam por uma deciso judicial sobre a respon-sabilidade pelas mortes e pelas leses corporais dos sobreviventes da exploso. Dezenas de

    crianas ficaram rfs e algumas famlias perderam vrias integrantes.A tragdia fez com que a populao local se organizasse em torno do Movimento 11

    de Dezembro para lutar por justia e evitar que a impunidade levasse continuidade daatividade clandestina na regio. O municpio de Santo Antnio de Jesus est localizadono Recncavo Baiano, a 184 km de Salvador, e conhecido pela produo ilegal de fogosde artifcio, realizada sem as mnimas condies de segurana.

    Acreditando na impunidade, o dono da fbrica, Osvaldo Bastos Prazeres, continuoua manter a produo clandestina, sem que houvesse fiscalizao eficaz por parte das auto-ridades locais, estaduais e mesmo do Exrcito Brasileiro, a quem cabe a responsabilida-

    de pela fiscalizao de empresas que trabalham com explosivos. Durante esse perodo, aRede Social documentou, atravs do trabalho do fotgrafo Joo Ripper e da cineasta AlineSasahara, a existncia de pelo menos quatro fbricas ilegais de fogos de artifcio na regio.As fbricas foram encontradas nos bairros de Juerana e Cajazeiros, sendo que uma delasfuncionava dentro da fazenda de Osvaldo Bastos Prazeres.

    Essas fbricas utilizam, preferencialmente, o trabalho de mulheres e crianas, bur-lando a fiscalizao da Secretaria Regional do Trabalho e do Ministrio do Exrcito,que deveria monitorar atividades ligadas produo de material explosivo. A situaode pobreza obriga a populao a se submeter ao trabalho extremamente perigoso. Almda situao de risco, esses trabalhadores recebem salrios miserveis. Eles contam, por

    exemplo, que recebem R$ 0,5 pela produo de mil traques (pequenos pedaos de plvoraembrulhados em papel).

    O caso da exploso resultou em trs processos jurdicos, nas reas cvel, criminal etrabalhista, tendo os advogados da Rede Social ficado encarregados das duas primeiras.Houve tambm uma denncia perante a Comisso Interamericana de Direitos Humanos,ainda em tramitao, em virtude da demora para julgar a ao penal.

    A partir de 2007, uma deciso judicial na ao indenizatria que os advogados da RedeSocial ajuizaram na Justica Federal, determinou que as crianas que perderam suas mes naexploso comeassem a receber penses no valor de um salrio mnimo, como antecipao

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    do que lhes devido em virtude da inoperncia do Estado para evitar a exploso. Os entespblicos recorreram da deciso mas ela foi mantida pelo Tribunal Regional Federal em

    Braslia, e os valores comearam a ser efetivamente depositados nas contas das famlias.Quanto ao processo criminal, teve ele o andamento ainda mais retardado. Em 27 dejunho de 2007, seriam levados a julgamentos seis integrantes da famlia do proprietrioda fbrica, Osvaldo dos Prazeres Bastos, e dois funcionrios, denunciados e pronunciadoscomo responsveis por homicdio doloso (dolo eventual), j que embora tivessem conhe-cimento da possibilidade de ocorrncia da tragdia, assumiram o risco de provoc-la aodescumprir todas as regras de segurana mais elementares para o trabalho com explosivose produo de fogos, de tal modo que nos locais de trabalho no se dispunha de extintoresde incndio ou de gua corrente, nem eram dadas s trabalhadoras quaisquer noes desegurana no trabalho nem se organizaram as CIPAs Comisses Internas de Prevenes

    de Acidentes.Considerado o pior acidente com fogos de artifcio da histria brasileira, o evento

    demorou a ser julgado na instncia criminal, eis que, a pedido da defesa, o jri foi adiadopara 31 de julho de 2007, primeiro, e, posteriormente, suspenso em decorrncia de pedi-do de transferncia do julgamento para a cidade de Salvador, formulado pelo MinistrioPblico Estadual, com o apoio da Rede Social. A transferncia ocorreu devido forteinfluncia poltica dos acusados no municpio de Santo Antnio de Jesus.

    No dia 20 de outubro de 2010, Osvaldo Prazeres Bastos e mais seis acusados pelaexploso foram levados a jri popular no processo criminal em Salvador. Durante o jul-

    gamento, o Ministrio Pblico e o advogado assistente da acusao pediram a absolviode trs dos acusados, entre os quais os dois trabalhadores empregados do proprietrio dafbrica de fogos, por no terem poder de gesto para tomar as medidas necessrias paraevitar o acidente. E mantiveram o pedido de condenao contra Osvaldo Prazeres Bastose aqueles de seus filhos que com ele gerenciavam o empreendimento criminoso.

    O pedido de condenao foi aceito pelos jurados, que acolheram a tese de que os rushaviam assumido o risco de produzir as mortes, condenando-os a penas de nove a dezanos e meio de priso. O advogado Aton Fon Filho, da Rede Social, atuou no jri e emtodos os momentos anteriores do processo, como advogado das famlias.

    AgradecimentoA Rede Social agradece a todos que contriburam com esse trabalho e lembra que,sem a organizao local do Movimento 11 de Dezembro, seria impossvel chegar a essavitria.

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    Polticaagrria: PassaDoePersPectivas

    Se este artigo apresentasse um balano minucioso da poltica agrria desde a redemo-cratizao, verificaria a persistncia de situao lastimvel e realaria a contradioexistente frente aos discursos dos governantes. Por um bom tempo, nos documentosgerados por partidos polticos e governos, compromissos eram assumidos por escrito embora raramente honrados, sempre foram objeto de muita cobrana.H j algum tempo, no h o que cobrar. Parece ter ocorrido a sndrome do sumio dos

    compromissos. No h como cobrar promessas e metas, quando muito se escuta frasesgenricas, propsitos indefinidos e gerais, quase abstratos. Como falar de perspectivasfrente a esse desleixo da classe poltica?

    Poltica agrria: passado e perspectivas

    Jos Juliano de Carvalho Filho*

    Antes que as luzes se acendessem nos postes,

    Ians sumiu no meio do povo

    [Jorge Amado, O sumio da santa]

    Dois fatos levam a um balano e s previses quanto poltica agrria: 2010 ano deeleies gerais governo federal e governos estaduais e marca o trmino de dois pero-dos de mandato do presidente Luiz Incio Lula da Silva.

    O presente artigo dividido em trs partes: O passado recente e as persistentes mis-

    rias; O futuro prximo e o sumio dos compromissos; A esperana e a Santa Guerrei-ra, a do trovo.

    A epgrafe frase do romance de Jorge Amado O sumio da santa1; aqui, a referncia para a reforma agrria.

    * Jos Juliano de Carvalho Filho economista, professor da FEA-USP e diretor da Abra (Associao Brasileira deReforma Agrria). membro do Conselho Consultivo da Rede Social de Justia e Direitos Humanos.

    1 Jorge Amado, O sumio da santa (So Paulo, Companhia das Letras, 2010), p. 25.

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    O passado recente e suas persistentes misriasO acompanhamento da poltica agrria dos dois governos do presidente Lula2 trouxe

    a evidncia da no mudana, ou seja, da persistente permanncia das velhas e conservado-ras estruturas poltico-econmicas do campo brasileiro. As deplorveis caractersticas his-tricas da estrutura agrria brasileira foram mantidas no decorrer do tempo, ano aps anoe governo aps governo. Mantm-se as desigualdades, as injustias e a violncia. Repete-sea concentrao de terra e poder. Essas caractersticas da nossa histria, antes tidas comoconsequentes do latifndio colonial, hoje so decorrentes da opo governamental pelomodelo do agronegcio.

    As aes governamentais chegaram a variar no decorrer do tempo, todavia, permane-ceram fracas, tmidas e impotentes frente fora poltica e aos interesses do agronegcio.Todos reconhecem que o governo Lula mudou o trato com os movimentos sociais. A prtica

    da represso e da criminalizao que caracterizou os tempos de Fernando Henrique Car-doso segundo mandato, principalmente foi substituda pelo dilogo. Tambm justoreconhecer a importncia da implementao de polticas operadas pela Companhia Nacio-nal de Abastecimento (Conab) e eficazes para assentados e produtores familiares lei damerenda escolar, formao de estoques, compra e doao simultnea. Essa modalidade deinstrumentos de poltica pblica garante a compra da produo, reduz o risco dos pequenosagricultores e os induz prtica da produo diversificada voltada para os alimentos.

    Embora se reconhea e elogie os atos acima relatados, os benefcios mais relevantesdecorrentes do apoio decisivo do governo continuaram a ser direcionados aos grandes pro-

    dutores detentores do poder econmico e poltico, sejam latifundirios, grandes grupos docapital internacional ou simbiose de capitais (fundirios, financeiros e industriais nacio-nais e internacionais). As principais aes governamentais privilegiaram os interesses dochamado agronegcio.

    Exemplo evidente desse fato o atual processo de regularizao fundiria na Amaz-nia Legal iniciada pela Medida Provisria (MP) 422 e reforada com a MP 458, convertidana Lei 11.952/2009. O agora chamado Programa Terra Legal, executado pelo Ministriode Desenvolvimento Agrrio (MDA), em nome dos interesses dos pequenos posseiros,regulariza cerca de 58,8 milhes de hectares de terra, favorecendo grandes grileiros. Esseprograma certamente resultar na cristalizao, na Amaznia Legal, de uma estrutura

    fundiria bastante desigual, alm da abertura das portas da regio para as monoculturasdo agronegcio3.

    Os dois perodos de governo Lula foram palco de confirmao e aprofundamentodessas caractersticas. A poltica de reforma agrria no passou de pequena poltica, des-provida de prioridade.

    2 Este item traz as principais inferncias das anlises apresentadas em artigos publicados em Relatrios de DireitosHumanos da Rede Social de Justia e Direitos Humanos (2003 a 2009).

    3 A respeito, ver Brancolina Ferreira Regularizao Fundiria na Amaznia Legal. IPEA 2010 (ainda no publica-do).

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    Polticaagrria: PassaDoePersPectivas

    Como j se afirmou no Relatrio da Rede Social de 2008: h a poltica de fato e a dofaz de conta. Como nos alerta o professor Francisco de Oliveira, inspirado em Gramsci,

    os dominados controlam a pequena poltica (...) desde que ela no afete os grandes inte-resses do capital, ou a grande poltica...4.No mesmo Relatrio da Rede Social, afirmou-se e, neste, reafirma-se que a preva-

    lncia do modelo do agronegcio implicaria no agravamento da questo agrria, definidaa partir do ponto de vista do trabalho, e que se caracterizava pelo forte agravamento dosvelhos efeitos do avano do capital em detrimento dos trabalhadores e dos camponeses.Esse agravamento implicar em: maior concentrao fundiria, perda de biodiversidade,reduo da policultura, agravamento da explorao da mo de obra, trabalho escravo,mortes por exausto, migraes, monoculturas e pecuria na Amaznia, poluio dasguas e da atmosfera, milcias rurais a servio do capital internacional e nacional, reduo

    do emprego agrcola, aumento da morbidade, desnacionalizao das terras, capital espe-culativo, prejuzo para a segurana alimentar, acirramento do conflito agrrio e degrada-o da sade, alm da ineficcia das polticas pblicas.

    Dentre as persistentes misrias do nosso passado, considera-se importante o destaquepara mais um fato que retrata a violncia que acompanha o agronegcio.

    Para tanto, transcreve-se, a seguir, parte da matria ndios guaranis vivem situaode extermnio silencioso, de Gabriel Brito, do Correio da Cidadania (1/4/2010):

    Um recente relatrio da organizao indigenista Survivor International trouxe novamente luz a deplorvel situao humanitria vivida pelos ndios guarani e kaiow no estado do

    Mato Grosso do Sul (MS).Como se sabe, h milhares de indgenas vivendo em condiesabsolutamente degradantes enquanto esperam, beira de estradas, pela demarcao deseus territrios, como ordena nossa Constituio.Em entrevista ao Correio da Cidadania, a professora do Ncleo de Estudos da Populao(Nepo) da Unicamp, Marta Maria Azevedo, que realiza trabalhos com as comunidadesguarani, nos oferece um assustador quadro no estado do Centro-Oeste, definido por elacomo o mais anti-indgena do pas.Com um vasto territrio, no por falta de espao que no se concedem as terras devidas mais populosa etnia indgena no pas. No governo federal, algumas tentativas vm sendofeitas para melhorar a questo territorial, com o envio de grupos de trabalho da Funai paratentar demarcar algumas reas novas. Porm, essas iniciativas carecem de aceitao no

    estado do MS devido ao modelo de desenvolvimento implementado atravs do agroneg-cio, que logicamente tem interesses divergentes com relao aos povos indgenas.(...) O que nos assusta (alm dos suicdios) tambm a enorme violncia que vem sendo prati-cada contra as comunidades que lutam pelas suas reas tradicionais, na forma de assassinatose esquartejamentos. Aps as mortes, os corpos so encontrados dentro de sacos de lixo, emgeral em fundos de rio ou locais de difcil acesso isso quando so encontrados.

    4 Francisco de Oliveira, A razo crtica contra o cinismo dos sem-razo, entrevista concedida aos professores JaldesReis de Meneses (DH-UFPB) e Maria Aparecida Ramos (DSS-UFPB), Grupo de Economistas, 10/9/2008. Extradode Jos Juliano Carvalho Filho, Poltica agrria: brincar (de) ou fazer,Direitos Humanos no Brasil 2008. Relatrio daRede Social de Justia e Direitos Humanos.

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    Trata-se de uma grave denncia aqui includa como mais um exemplo pungente queretrata a questo da terra no Brasil.

    Esse caso pode ser somado a tantos outros: assassinatos, torturas, mortes por exausto,violncia policial sob a proteo da Justia, violncia de milcias privadas, atentado contraindgenas, quilombolas, agricultores pobres e, principalmente, contra as organizaes dostrabalhadores. A dita elite nacional no admite trabalhador organizado.

    As ltimas CPMIsinstaladas no Congresso Nacional contra o MST so evidnciasincontestveis desse fato. A primeira rejeitou relatrio de tima qualidade e aprovou, emseu lugar, documento lamentvel cuja inteno evidente era desorganizar e criminalizaro movimento. A segunda, como informa Frei Betto no artigo Congresso absolve MST,depois de oito meses de investigao, convocao de treze audincias pblicas e exameexaustivo das contas de dezenas de cooperativas a associaes de apoio reforma agrria,

    a Comisso nada conseguiu apurar. Segundo o relator, o deputado federal Jilmar Tatto,foi uma CPMI desnecessria. Os denunciantes buscavam reforar o objetivo principalda CPMI anterior criminalizar os movimentos sociais brasileiros.

    O futuro prximo e o sumio dos compromissosSe este artigo apresentasse um balano minucioso da poltica agrria desde a rede-

    mocratizao, verificaria a persistncia de situao lastimvel e realaria a contradioexistente frente aos discursos dos governantes. Por um bom tempo, nos documentos gera-dos por partidos polticos e governos, compromissos eram assumidos por escrito embora

    raramente honrados, sempre foram objeto de muita cobrana.H j algum tempo, no h o que cobrar. Parece ter ocorrido a sndrome do sumiodos compromissos. No h como cobrar promessas e metas, quando muito se escuta frasesgenricas, propsitos indefinidos e gerais, quase abstratos.

    Como falar de perspectivas frente a esse desleixo da classe poltica?Essa sndrome da falta de compromissos firmados j havia sido registrada anterior-

    mente no relatrio da Rede Social de 2006. Na ocasio, afirmou-se:

    A anlise comparativa dos principais documentos governamentais sobre a reforma agrria,desde o texto da campanha presidencial anterior Vida Digna no Campo , passandopela Proposta de II Plano Nacional de Reforma Agrria e pelo prprio II Plano Nacio-

    nal de Reforma Agrria, at os documentos relativos campanha das eleies de 2006 Programa de Desenvolvimento Rural Sustentvel para Uma Vida Digna no Campo, nasduas verses: preliminar5 e oficial , mostra a mudana do carter da reforma proposta: deestrutural para meramente compensatria, tal qual as reformas dos governos anteriores.Hoje, no mais se fala ou se fala vagamente de vrias questes relevantes que consta-vam de documentos anteriores.

    5 Verso preliminar: Programa de Desenvolvimento Rural Sustentvel e Solidrio para uma Vida Digna no Campo.A verso oficial retirou do ttulo o termo solidrio.

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    No so estabelecidas metas de assentamentos6. No se considera a rea reformada comoestratgia de implantao da reforma7 os assentamentos continuaram a ser implementa-dos de forma fragmentada. No se afirma que a desapropriao para fins de reforma agr-

    ria se constitui no instrumento principal para a implantao da poltica agrria quandomuito, esse instrumento figura como auxiliar da compra e venda8. Permanece a nfasepara os programas de crdito fundirio (aos moldes do Banco da Terra). No h clarezaquanto a obstar a continuidade da escandalosa regularizao da grilagem na regio Norte,funcional ao agronegcio. A nica promessa que estava clara no documento da campa-nha atual, em sua verso preliminar, referia-se to necessria atualizao dos ndices deprodutividade. Na verso oficial, ela simplesmente desapareceu.

    Fatos como esses voltaram a se repetir em 2010.No dia 27 de setembro, portanto, a seis dias do primeiro turno das eleies, os partidos

    ainda no haviam apresentado os programas de governo de seus candidatos. Os principais

    candidatos, aqueles que disputariam o segundo turno das eleies presidenciais, DilmaRousseff (PT) e Jos Serra (PSDB), haviam cumprido apenas as formalidades exigidaspelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) com a entrega, no incio de julho, de documentosprovisrios e inadequados que no configuravam programas de governo. As justificativasforam vrias e no convincentes (programa em construo interativa, enganos na entregados documentos exigidos pela Justia, promessas de entrega posterior). O fato que osprogramas definitivos no foram entregues at o dia 3 de outubro. Os eleitores votaramsem saber dos compromissos firmados pelos candidatos. No lugar destes, apenas palavrase mais palavras, discursos e debates para a imagem de TV.

    Como falar de perspectivas para o prximo perodo presidencial?Eis alguns destaques que podem ajudar a pensar sobre o futuro da poltica agrria.Fatos ocorridos envolvendo o programa da candidatura Dilma Rousseff9 deram con-

    tinuidade ao j relatado sobre os documentos de poltica agrria do governo Lula. Nomesmo dia (5 de julho), foram apresentados dois documentos ao TSE, um pela manh

    6 O programa de governo apresentado pela candidatura Lula em 1994 propunha um plano de reforma para quinze anose uma meta de 800 mil famlias assentadas em quatro anos; o programa para 1998 Vida Digna no Campo noapresenta metas; a proposta de PNRA para o governo Lula fixa a meta de 1 milho de famlias assentadas; o II PNRAcompromete-se com a meta de 400 mil famlias. O documento oficial citado no toca no assunto, mas, em outrodocumento, h o registro da inteno de dar continuidade ao Plano Nacional de Reforma Agrria (Lula Presidente

    Plano de Governo 2007/2010, p.15).7 Como informa o texto Um balano do programa de reforma agrria do governo Lula. Subsdios para o debate internodo PT, p. 5: o objetivo n 1 do VDC (pg. 18) define a realizao da reforma agrria pela via da promoo de zonasreformadas. Em consonncia com esse objetivo, o captulo introdutrio do II PNRA inicia reproduzindo o seguintetrecho do VDC: Para viabilizar um novo modelo de desenvolvimento rural e agrcola, ser fundamental a implemen-tao de um programa de reforma agrria amplo e no atomizado, isto , centrado na definio de reas reformadasque orientem o reordenamento do espao territorial do pas, via o zoneamento econmico e agroecolgico.

    8 O mesmo documento (p. 6), considerando os trs primeiros anos de governo, mostra que o crescimento da dispo-nibilidade de terras para a reforma agrria deveu-se, basicamente, a aes de arrecadao e reconhecimento (76%).Adicionando a modalidade outros, essa participao chega a 85%. O texto conclui que as aes de reforma ocorreramprioritariamente em terras pblicas.

    9 Diretrizes do Programa 2011/2014.

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    e outro quase ao fim do expediente. A justificativa que consta do ofcio de entrega dosegundo documento fala que houve erro quanto ao documento juntado ao registro da

    candidatura. O fato facilmente verificvel que o primeiro trazia de volta os antes desapa-recidos compromissos efetivos quanto poltica de reforma agrria. Esses compromissossumiram novamente na segunda verso de programa entregue Justia. Mesmo assim, odocumento continuou a ter carter provisrio. O programa definitivo, pelo menos at odia 5 de outubro, ainda no havia sido entregue.

    Os sumios ocorridos entre as verses do programa, no que diz respeito polticaagrria, so evidncia da falta de prioridade e de seriedade para com a reforma agrria. Aprimeira verso dizia:

    continuar, intensificar e aprimorar a reforma agrria de modo a dar centralidade ao pro-grama na estratgia de desenvolvimento sustentvel do pas, com a garantia do cumpri-

    mento integral da funo social da propriedade, da atualizao dos ndices de produtivida-de, do controle do acesso terra por estrangeiros, da revogao dos atos do governo FHCque criminalizaram os movimentos sociais e com a eliminao dos juros compensatriosnas desapropriaes e a das polticas complementares de acesso terra.

    Outras propostas: implementao, prevista no 3 Programa Nacional de DireitosHumanos, de realizao de audincia pblica prvia ao julgamento de liminar de inte-grao de posse.

    Na segunda verso, houve o desaparecimento de quase tudo, sobrou apenas: conti-nuar, intensificar e aprimorar a reforma agrria de modo a dar centralidade ao programa

    na estratgia de desenvolvimento sustentvel do pas, com a garantia do cumprimentointegral da funo social da propriedade. E ainda mais, o noticirio (Gazeta do Povo de20/9/2010) informava que o PMDB, principal partido coligado ao PT, exigia aplicar alei nos casos de invases de propriedades rurais comprovadamente produtivas. Sem lei,no h ordem. Obviamente, a referncia no visa os grandes grileiros de terras pblicas,mas, apenas, os trabalhadores que ocupam propriedades que no cumprem com a funosocial.

    A candidatura de Jos Serra, por sua vez, atendeu ao que determina o TSE proto-colando um programa composto por dois de seus discursos10 elaborados para outrasocasies (conveno partidria). Os discursos no contm qualquer compromisso com a

    reforma agrria e apresentam vagas referncias agricultura. Esse candidato, alm defazer lembrar a poltica antirreforma agrria do segundo perodo de governo de FHC,caracteriza-se pelo desprezo para com os movimentos sociais. A respeito, interessante oregistro do depoimento de Gilmar Mauro liderana do MST em entrevista ao Correioda Cidadania (27/9/2010). Perguntado sobre o futuro da reforma na eventualidade de umgoverno Serra, ele respondeu: (...) Com o Serra, ns nunca conseguimos uma reunio. Anica que fizemos aqui foi com o chefe da Casa Civil, o Aloysio Nunes, e boca pequena

    10 Discursos de Jos Serra no Encontro Nacional dos partidos PSDB, DEM e PPS, em 10/4/2010, em Braslia, e na Con-veno Nacional do PSDB, em Salvador.

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    se dizia que ele no queria mesmo falar conosco. Por outro lado, tivemos vrios despejosviolentos (na Cutrale, por exemplo), com articulao entre o governo estadual, Rede Globo

    e os fazendeiros da regio, buscando criminalizar o nosso movimento.Frente aos fatos, na melhor das hipteses para os trabalhadores e para a nao comoum todo, no futuro prximo haver repetio da poltica agrria implantada no governoLula. A outra hiptese implicar em ocorrncia de forte retrocesso.

    A esperana e a Santa Guerreira, a do trovo.Ao leitor, pode parecer estranho o uso de epgrafe que fala de Ians (Santa Brbara),

    a do trovo, guerreira valente que se embrenha no meio do povo. A reforma agrria, naperspectiva dos trabalhadores, como ela. Sobrevive e recupera foras no meio do mesmopovo e voltar pelas mos das organizaes populares. Essa a esperana.

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    Hoje, na Amaznia onde se encontra o maior nmero de grandes propriedades, algu-mas, ultrapassando a marca de 1 milho de hectares. De acordo com o Sistema Nacionalde Cadastro Rural (SNCR) do Incra, apenas 6.846 imveis (2,3% do total) com reasuperior a quinze mdulos fiscais (mais de 1.500 hectares) ocupam 17.762.020 de hec-tares, 42,1% de toda a rea cadastrada.

    Amaznia: colnia do Brasil

    Antnio Canuto*

    A Amaznia est no centro da agenda nacional. Est presente tambm nas preo-cupaes do mundo. cantada e decantada como essencial para o equilbrio da vida no

    planeta, sobretudo, para conter os avanos das mudanas climticas.Mas, se a preocupao com a preservao ganha dimenses planetrias, o avanodo capital, tanto nacional, quanto internacional, no arrefece. A abundncia de gua ede madeiras nobres, as riquezas minerais de seu subsolo, sua estonteante biodiversidade,fazem da Amaznia um dos lugares mais cobiados do planeta. E a poltica de desenvol-vimento que para ela se desenha est assentada sobre os interesses do capital.

    HidreltricasA Amaznia vista como essencial para a gerao de energia em nosso pas. O gran-

    de nmero de hidreltricas planejadas fala dessa importncia. As usinas de Santo Antonio

    e Jirau, no rio Madeira, em Rondnia, e, sobretudo, a de Belo Monte, no rio Xingu, noPar, esto no centro de muitas controvrsias e tm despertado debates acalorados sobre omodelo de desenvolvimento que se quer e os impactos ambientais e sociais que provocaro.Esto em fase adiantada de estudos a construo de outras hidreltricas como a do TelesPires, no Mato Grosso, e uma srie de usinas no rio Tapajs. Os argumentos sobre o desas-tre ecolgico que essas obras podem trazer para a regio simplesmente so descartados,sob o discurso de que, se tais hidreltricas no forem construdas, o pas poder submergir

    * Antnio Canuto secretrio da Coordenao Nacional da Comisso Pastoral da Terra (CPT).

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    em um novo apago e no haver energia suficiente para sustentar o desenvolvimento quese quer. O discurso, porm, esconde que o objetivo principal das mesmas o de fornecer

    energia suficiente e barata para as indstrias eletrointensivas, para que elas possam expor-tar seus produtos com preos mais competitivos, fazendo crescer seus lucros.

    Mineradoras e madeireirasAlm disso, a Amaznia muito cobiada pela riqueza mineral que o seu subsolo

    esconde. E as mineradoras se lanam afoitamente para arrancar do cho toda essa riquezaescondida. Dezenas de comunidades ribeirinhas inclusive, projetos de assentamento jconsolidados so afetadas.

    Outra riqueza intensamente explorada a madeira. Usando artifcios legais e ilegais,as madeireiras extraem da floresta Amaznica milhares e milhares de metros cbicos de

    madeira, que vendida a altos preos no mercado interno e externo. reas protegidas,reservas indgenas e florestais so invadidas, muitas vezes, com a conivncia de autorida-des que deveriam zelar pela preservao do meio ambiente. A manipulao de lideranasde assentamentos e de comunidades de reservas extrativistas e outras comum, e vemacompanhada da corrupo e do semeio da discrdia nas comunidades.

    GrilagemA cobia pelas terras na Amaznia grande. Terras pblicas so ocupadas e explora-

    das ilegalmente, atravs do instrumento conhecido como grilagem. E o governo, em 2009,

    pavimentou o cho dessa grilagem com a MP 458, logo transformada na Lei 11.592. Elapossibilita que terras pblicas griladas, de at 1.500 hectares, possam ser regularizadas, efacilita a aquisio para quem ocupa at 2.500 hectares. Mais de 67 milhes de hectares deterras pblicas, sob a jurisdio do Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria(Incra), que, pela legislao, deveriam ser destinadas para a reforma agrria, esto sendoregularizados sob o argumento de que, com isso, sero beneficiados os pequenos possei-ros e que a medida vai facilitar o controle sobre o desmatamento.

    Conflitos e violnciaAo mesmo tempo, nessa imensa regio brasileira, com baixa densidade demogr-

    fica, que se concentra a maior parte dos conflitos e da violncia no campo, como temregistrado a Comisso Pastoral da Terra (CPT).

    Em 2009, ocorreram, na Amaznia Legal (toda a regio Norte, mais parte do MatoGrosso e do Maranho), 622 dos 1.184 conflitos registrados.

    Foram computados:68% dos assassinatos de trabalhadores;67% das tentativas de assassinato;83% das ameaas de morte;

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    37% das famlias expulsas de suas terras;41% daquelas que foram objeto de ao de despejo;

    65% das que foram ameaadas de despejo;69% das que enfrentaram tentativas de expulso;53% das famlias que tiveram suas casas destrudas;85% das que tiveram suas roas destrudas;68% das que tiveram seus bens destroados; e45% das famlias que sofreram aes da pistolagem.

    Ainda na Amaznia Legal, encontravam-se 51% das famlias envolvidas em confli-tos pela terra (42.373 de 83.058) e se localizavam 96% das terras em disputa (14,5 milhesde hectares).

    O mesmo quadro h 25 anosO ano de 2009 repetiu o que tem acontecido durante os ltimos 25 anos, perodo em

    que a CPT vem registrando e divulgando os conflitos no campo.Ao analisar os dados desses 25 anos1, o professor Carlos Walter Porto-Gonalves, da

    Universidade Federal Fluminense (UFF), constatou o seguinte: de 1985 a 2009, a Ama-znia concentrou 63% do total dos assassinatos no campo; 39% das famlias expulsas pelopoder privado, e 52% do total dos presos do pas.

    Quanto ao nmero de despejos, a regio Centro-Sul assume a dianteira, com 47%

    do total de famlias despejadas, contra 29% no Nordeste. A Amaznia ocupa o lugar demenor destaque, com 24% do total de famlias despejadas.Essa violncia, que poderia parecer uma reao s ocupaes de terra pelos movimen-

    tos, no se confirma. De forma contraditria, a Amaznia apresenta o menor nmero deocupaes de terra. Essas aes politicamente organizadas se concentram na regio Centro-Sul, com 47% do total de ocupaes, contra 38% no Nordeste e somente 15% na Amaznia.Essa aparente contradio se deve ao fato de que a maior parte dos conflitos na regio estrelacionada expulso de famlias de terras j ocupadas, realizada por grileiros e seus jagun-os. Assim, a ocupao das terras, que se deu de forma mansa, como se diz juridicamente, atacada de forma violenta pelo poder privado atravs da grilagem e da pistolagem, tirando a

    paz dos camponeses, dos indgenas e dos quilombolas, diz o professor Porto-Gonalves.O que soa mais contraditrio, porm, que, mesmo a Amaznia apresentando o

    menor ndice de ocupaes de terra, nela que o governo assentou 70% das famlias, noperodo de 2003 a 2006, como analisaram o professor Paulo Roberto Alentejano e TiagoLucas Alves da Silva, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) 2.

    1 Carlos Walter Porto-Gonalves, A violncia do latifndio moderno-colonial e do agronegcio nos ltimos 25 anos,em Conflitos no campo Brasil 2009 (CPT/ Expresso Popular, 2010), p. 109-117.

    2 Paulo Roberto Alentejano; Tiago Lucas Alves da Silva, Ocupaes, acampamentos e assentamentos: o descompassoentre a luta pela terra e a poltica agrria do governo Lula, em Conflitos no campo Brasil 2008 (CPT, 2009), p. 128-134.

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    Segundo os autores, isso configura um descompasso entre as aes dos movimentossociais na luta pela terra e a poltica levada a cabo pelo governo (...) Evidencia-se, assim,

    que a poltica agrria do governo Lula no s protege o latifndio/agronegcio onde estese encontra mais cristalizado, o Centro-Sul, mas, tambm, apoia sua expanso em dire-o Amaznia (...) Apoia atravs da criao de assentamentos fantasmas, legalizao dagrilagem etc..

    O que esses dados nos esclarecemTanto os grandes projetos vinculados ao Programa de Acelerao do Crescimento

    (PAC) quanto o avano veloz do capital sobre a regio evidenciam que na Amaznia sereproduz o mesmo modelo de desenvolvimento adotado em nosso pas desde os tempos dacolnia. Modelo alicerado na depredao dos recursos naturais, na espoliao dos filhos

    da terra, na concentrao da propriedade e na violncia.Como diz o documento 99 de estudos da Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil

    (CNBB),Igreja e questo agrria no incio do sculo XXI,

    problemas agrrios e conflitos sociais envolvendo as populaes rurais, os grandes pro-prietrios de terras e os poderes do Estado so to antigos no Brasil quanto sua histriacolonial. A histria da ocupao de terras no Brasil e da luta pela sobrevivncia dos quenela vm de longa data convivendo e trabalhando testemunha uma batalha desigual. Deum lado, os protagonistas de uma verdadeira idolatria da conquista patrimonial. De outro,a identidade e cultura dos povos e grupos sociais que vivem da terra e com ela convivem imagem e semelhana da me natureza3.

    Modelo predadorNa Amaznia, como aconteceu nas demais regies brasileiras, desde a poca da col-

    nia se busca a explorao das riquezas naturais do pas, com vistas, sobretudo, ao mercadoexterno. Hoje, como ontem, a incorporao de novas e imensas reas pelo grande capitalse d s custas da depredao do rico patrimnio natural e da biodiversidade nacionais.

    No Brasil Colnia, o que se objetivava era a manuteno e o enriquecimento da coroaportuguesa. Aps a Independncia, as novas elites assumiram esse lugar.

    A mesma lgica se repete com o avano das novas fronteiras do capitalismo para a

    Amaznia. O que os investidores buscam no o desenvolvimento local nem o bem-estardas populaes a residentes, mas seu prprio enriquecimento. A explorao das riquezasminerais da Amaznia, da exuberante riqueza florestal pela extrao da madeira , oavano do agronegcio, a construo das grandes hidreltricas etc., no tm por objetivo odesenvolvimento regional, mas sim dar condies para que o capital extraia da Amazniao mximo que pode, no menor espao de tempo possvel. Sob o discurso do desenvolvi-mento econmico da regio, o que se busca, realmente, o enriquecimento das grandes

    3 Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil,Igreja e questo agrria no incio do sculo XXI: estudos da CNBB 99 (Edi-es CNBB, 2010), p. 33.

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    empresas madeireiras e de minerao, dos grandes empresrios do agronegcio, e a pro-duo de energia para as fbricas eletrointensivas, que consomem, sozinhas, mais do que

    toda a populao da Amaznia. E o destino dos bens produzidos , prioritariamente, omercado externo.

    Modelo espoliadorA depredao dos recursos naturais vem acompanhada da espoliao dos povos e

    comunidades camponesas. Na Amaznia, tanto ontem como hoje, os povos indgenas, ascomunidades quilombolas, os ribeirinhos e outras comunidades tradicionais so espolia-dos de suas terras, lngua, cultura, saberes.

    A ocupao territorial se d com a negao e invisibilizao das comunidades e povospr-existentes. Os povos indgenas, comunidades quilombolas e outros povos tradicionais

    no contam. Ocupa-se o territrio como se fossem reas completamente inabitadas. A ocu-pao vista s sob o ponto de vista econmico. Ficou clebre a frase dos governantes milita-res a respeito da ocupao da Amaznia, propondo levar homens sem-terra para uma terrasem homens, como se l no houvesse povos com suas culturas milenares. E, hoje, na fala dopresidente Lula, esses povos e comunidades so fatores de atraso e empecilho ao progresso.

    Mais ainda. O sistema implantado desde a colonizao, e mantido praticamente intactoat hoje, com apenas algumas maquiagens, espolia povos e trabalhadores de sua liberdade.A escravido, primeiro dos povos indgenas, depois, dos negros, no tempo da Colnia e doImprio, perdurou por quase quatrocentos anos. A liberdade concedida aos escravos, porm,

    no veio acompanhada de medidas que lhes garantissem independncia.Em decorrncia disso, a explorao do trabalho escravo se mantm at os dias de hoje.O banco de dados da CPT registrou, de 1985 a 2009, 163.030 trabalhadores no campo emsituao de escravido. De 1995, quando foi criado o Grupo Mvel do Ministrio do Tra-balho, at 2009, foram libertados 31.942 trabalhadores. Na Amaznia, de 1995 a 2002,realizaram-se 67% das operaes de fiscalizao, com a libertao de 93% dos trabalhado-res encontrados em condies de escravido. J no perodo de 2003 a 2009, na Amazniase concentraram 54% das operaes de fiscalizao, com a libertao de 55% dos trabalha-dores. Em 2007, foram registrados 265 casos de trabalho escravo, 208 na Amaznia; em2008, foram registrados 280 casos, 191 na Amaznia. J em 2009, foram registrados 240

    casos, 164 na Amaznia.Convivem, lado a lado, o sistema mais moderno de produo, com incorporao das

    mais avanadas tecnologias, e as mais arcaicas relaes de trabalho. Os trabalhadores sovistos e tratados como peas de uma mquina feita para produzir, ignorando-se comple-tamente sua dignidade de seres humanos.

    Um modelo concentradorOutro elemento essencial ao modelo hegemnico de desenvolvimento adotado pelo

    Brasil seu carter concentrador. Concentra a terra, que leva concentrao da riqueza,

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    e, como decorrncia, concentrao do poder. E isso vem junto com a concentrao dossaberes, da tecnologia e da cincia.

    A concentrao da propriedade, fruto da espoliao, sempre foi amparada pelosvrios regimes jurdicos que se formaram durante a histria de nosso pas.Hoje, na Amaznia onde se encontra o maior nmero de grandes propriedades,

    algumas, ultrapassando a marca de 1 milho de hectares. De acordo com o Sistema Nacio-nal de Cadastro Rural (SNCR) do Incra, apenas 6.846 imveis (2,3% do total) com reasuperior a quinze mdulos fiscais (mais de 1.500 hectares) ocupam 17.762.020 de hectares,42,1% de toda a rea cadastrada.

    Durante os governos militares, no final da dcada de 1960 e durante as dcadasde 1970 e 1980, ficaram muito conhecidas as grandes empresas industriais e os grandesbancos que diziam investir no desenvolvimento da Amaznia, mas que se apropriaram

    dos incentivos fiscais concedidos pelo governo atravs da Superintendncia de Desenvol-vimento da Amaznia (Sudam) para adquirir imensas propriedades. As comunidadessertanejas de posseiros, povos ribeirinhos, comunidades quilombolas e aldeias indgenasforam consideradas intrusas nessas novas propriedades do capital.

    A predominncia da violncia na Amaznia, como est expresso acima, nada mais do que a decorrncia do modelo de desenvolvimento adotado pelo Brasil. O que vale ocapital. A natureza, as comunidades, so mero detalhe, muitas vezes a colocar obstculosao desenvolvimento.

    Como muito bem diz o professor Ariovaldo Umbelino de Oliveira, a Amaz-

    nia Legal o locus privilegiado da barbrie no campo brasileiro. E a razo explicativae fundante dessa violncia sem fim est na disputa que travam o campesinato, os qui-lombolas e os povos indgenas pela conquista de suas terras e seus territrios contra oagrobanditismo.4

    4 Ariovaldo Umbelino de Oliveira, A MP 458 e a contrarreforma agrria na Amaznia, em Conflitos no campo Brasil2009 (CPT/Expresso Popular, 2010), p. 25.

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    O desafio que suponho aconselhvel para as organizaes e movimentos sociais e sindi-cais populares no campo o de buscarem uma compreenso mais abrangente e histri-ca dos camponeses no Brasil, de forma a poderem perceber que o desaparecimento docampesinato nas sociedades contemporneas, devido expanso capitalista, pode e deveser evitado e negado.

    Na sombra da imaginao1 O campons e a superao de um destino medocre

    Horacio Martins de Carvalho*

    1. Um destino medocre numa sociedade em movimento?

    Mantido o pacto de dominao entre o capital e a propriedade fundiria que temsustentado os regimes polticos no Brasil, tudo leva a crer que a diviso social do traba-lho historicamente constituda continuar constrangendo os camponeses a produziremalimentos bsicos e baratos e a permanecerem como reserva de fora de trabalho para asempresas capitalistas. Nesse sentido, se poderia indagar, ainda hoje como o fez Mollat2,referindo-se aos pobres no campo entre os sculos 6 e 11 , se os camponeses estariamcondenados a um destino medocre numa sociedade em movimento?

    Os camponeses no Brasil, desde o seu surgimento, no perodo colonial, sempre esti-veram direta ou indiretamente subordinados a fraes das classes dominantes no campo,

    1 Este o terceiro e ltimo artigo em que utilizo o ttulo Na sombra da imaginao. Os dois primeiros artigos forampublicados nas pginas do Nera (Ncleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrria): Na sombra da imagi-nao (1). Reflexo a favor dos camponeses, em maio de 2010; e Na sombra da imaginao (2). A recamponesao noBrasil, em junho de 2010. Essa expresso, na sombra da imaginao, surgiu quando eu vasculhava ao acaso algunstextos de histria e me deparei com um deles, que comentava sobre o rei romano Syagrius (430-486 d.c.), que se retiroutemporariamente da sociedade aps ser derrotado numa guerra e enfrentar problemas religiosos. Recolheu-se nassombras para se dedicar leitura solitria, um refgio para as situaes adversas ao libertar a imaginao e atingiroutro reino, o reino da imaginao.

    * Horcio Martins de Carvalho engenhei