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Page 1: Direito Político Internacional E Guerras Num Debate Entre Kant E

Vol. 4, nº 1, 2011. www.marilia.unesp.br/filogenese 36

Direito político internacional e guerras: debate entre Kant, Hegel e

Clausewitz

Rodrigo Ismael Francisco Maia

1

Resumo: Buscamos realizar um debate sobre guerras a partir da reflexão desenvolvida por

Kant, discutida por Hegel, tendo as contraposições entre os autores como um norte no estudo, bem como buscamos elencar a discussão sobre direito internacional. A visão de Kant expressada

na Paz Perpétua é de que os países tenham uma mediação internacional e que a partir daí a paz

entre as nações seja estabelecida. Cada país está em relação com os demais da mesma forma que dois indivíduos, tendo os limites dessa relação no direito alheio, como forma de garantia de

uma universalidade cosmopolita. Hegel não vê a possibilidade de paz longe da realização da

guerra, que pode ser além de elemento pacificador, uma agitação social que contribui para a

construção da história humana. A decisão sobre guerras e as próprias relações exteriores são realizadas pelos Estados, em suas atitudes políticas de manutenção de poder e força. Temos com

Clausewitz a concepção de que a guerra é a realização da política, mas por outros meios,

posição que é próxima da teorização de Hegel, mas que difere e é oposta da compreensão de Kant.

Palavras-chave: Kant. Hegel. Estado. Guerras. Clausewitz.

Riassunto: Cerchiamo un dibattito sulla guerra proveniente dalla riflessione sviluppata da Kant,

discussi da Hegel, sfruttando i contrasti tra gli autori di una guida di studio, così come

cerchiamo di elencare la discussione sul diritto internazionale. Il parere espresso in Pace Perpetua di Kant è che i paesi hanno una mediazione internazionale e da lì ad essere la pace tra

le nazioni stabilito. Ogni paese è confrontato con gli altri nello stesso modo che due individui, e

il limite di questo rapporto nei diritti degli altri, a garanzia di una cosmopolita universale. Hegel non vede la possibilità di pace lontano dalla guerra, che può essere al di là elemento

pacificatore, un disagio sociale che contribuisce alla costruzione della storia umana. La

decisione sulla guerra e proprie relazioni estere sono condotte dagli Stati nei loro atteggiamenti

politici mantenimento del potere e della forza. Progettiamo con Clausewitz che la guerra è il raggiungimento della politica, ma con altri mezzi, qualcosa di molto vicino a Hegel, al contrario

di Kant, dunque.

Parole-chiave: Kant. Hegel. Stato. Guerre. Clausewitz.

Introdução

Os episódios de guerras e o debate teórico acerca das relações entre os países,

levaram os filósofos de uma época à reflexão de questões concretas e a formular saídas

para os problemas de ordem social, sendo que no meio dessas elaborações e discussões

vários contrastes surgiram. A formação do Estado como instância que regulamenta e

dirige a vida social, logo após a Revolução Francesa, trouxe mudanças profundas nas

relações entre países, no âmbito do que se pode chamar direito internacional, ao ter a

1 Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus de Marília.

Bolsista FAPESP. Orientador: Marcos Tadeu Del Roio. Email: [email protected].

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formulação de Estados independentes uns dos outros e ao mesmo tempo soberanos entre

si. Nesse sentido, a Filosofia contribuiu com seus elementos, numa tentativa de

organizar o pensamento acerca da liberdade particular e universal, tendo que contornar

um contexto em que as próprias palavras não faziam sentido em si mesmas, mas

necessitavam de aportes significativos na realidade. Assim, temos aqui o interesse de

expor elementos sobre o debate entre Kant e Hegel a respeito das relações

internacionais, passando pela filosofia de guerra de Clausewitz, para verificar como era

pensada a relação entre os países através da filosofia por dentro das estratégias e táticas

de combate. Buscamos ver como Kant entende a organização social, observando sua

ideia de que os países fossem republicanos e adentrando em Hegel e na sua defesa da

monarquia constitucional, para então relacionar as diferenças sobre a defesa da guerra e

a defesa da paz.

A noção kantiana sobre as guerras

Imannuel Kant realiza debates no “olho do furacão”, com a publicação do texto

À Paz Perpétua, em 1795, em pleno período do governo Jacobino na França, com

pretensões já declaradas de expansão do domínio política para toda Europa. O livro

nasce após o período do Terror Jacobino, numa clara defesa de uma nação republicana,

orientada pelos ideais de liberdade e paz do cidadão cosmopolita – embora Kant não

vivesse na França, a influência e a extensão do domínio Frances obrigavam os

pensadores a tomar posição sobre os acontecimentos. Sem dúvida, o trabalho teórico

que Kant realiza é pautado por Hegel – a influência e o debate que Hegel realizou para

combater e complementar o pensamento de Kant é imenso, perpassa suas obras em

vários momentos.

Kant, no prefácio da obra, declara sua defesa quanto ao conteúdo do livro, pois

sabia bem das consequências de defender uma república como forma de governo num

país monárquico, sob o reinado de Frederico Guilherme na Prússia; Kant alega que as

posições de um político teórico estão em complemento com as do prático, mas que as

palavras do primeiro não são efetivas, não pode causar polêmica, pois não adentram o

terreno da experiência. Kant parece tomar algum posicionamento referente as atitudes

de seu país quanto às alianças que estavam se encaminhando em relação as possíveis

lutas a serem travadas contra a França – após a derrubada da monarquia, na formação de

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uma frente entre as monarquias européias com o objetivo de restaurar o poder

monárquico e defender sua própria sobrevivência. Tendo em mente as guerras que estão

ocorrendo e as que virão a ocorrer, sabendo que entre as próprias alianças o jogo pode

mudar, em que nações aliadas podem vir a se combater num futuro próximo, Kant

observa a aliança que a Prússia está realizando com a Rússia para se defender das tropas

francesas, sabendo que entre esses dois países há grandes diferenças culturais e de

interesses, mas que a formação do exército forte é central para a guerra.

Segundo Kant, a conquista dos países é algo que não pode ocorrer pela compra,

troca, herança, etc., num debate semelhante ao realizado por Maquiavel, no O Príncipe.

Ao mesmo tempo em que é uma defesa da paz mundial, é também uma autodefesa

contra as tropas mercenárias e nacionais que estão sendo montadas. Kant defende que os

exércitos permanentes desapareçam, e justamente o exército da Prússia era um dos mais

fortes e um dos exemplos em organização militar para os outros. Sua defesa está no

sentido de manter a autonomia dos Estados, e de seus cidadãos, tendo a garantia de que

não precisaram entrar em conflito para poder sobreviver de forma livre. A constituição

de cada nação, particular ao seu povo, assegura o pertencimento dos cidadãos civis à

uma comunidade reciproca, em que eles têm a consciência de serem influenciáveis e

comuns. A categoria de cidadão está encaixada no ideal de igualdade – elemento comum

ao próprio momento revolucionário e Iluminista, que pregava o direito cosmopolita da

universalidade humana como o mais alto objetivo a ser atingido.

Há uma diferença para Kant entre a constituição republicana e a democrática:

O republicanismo é o princípio de Estado da separação do poder executivo (o governo)

do legislativo Lembrando que sua posição é por uma nação baseada na constituição

republicana:

A democracia é necessariamente um despotismo, porque ela funda um

poder executivo onde todos decidem sobre e, no caso extremo, também contra um, por conseguinte todos que não são contudo todos,

o que é uma contradição da vontade geral consigo mesma e com a

liberdade. (KANT, 2008, p. 27).

Kant defende que a forma de governo seja representativa, e isso está vinculado

a sua concepção da detenção do poder executivo, não aceitando que o povo seja o

senhor de si, mas que o povo tenha seus representantes, e a constituição republicana é a

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única que está de acordo com os direitos dos homens e contribui para a formação de

cidadãos moralmente bons (KANT, 2008, p. 50).

Na democracia, Kant considera que todos querem ser senhor, não havendo

alguém que possa legislar e executar as ações; Kant recorre às palavras de Frederico II

para justificar a representatividade e a execução de suas atividades como as de um

“servidor do Estado” (KANT, 2008, p. 29). A vantagem está em que a constituição pode

ser aperfeiçoada gradualmente num governo republicano, mas somente pela “revolução

violenta” na democracia (KANT, 2008, p. 29), daí a contradição com os interesses de

Kant, justamente por ele ter proposto uma paz perpétua – ao menos idealizado. Além

disso, há um interesse do autor em conformar uma relação de livres fronteiras e

hospitalidades mundiais através de uma norma de direito cosmopolita. Tudo isso se

desenvolvendo como esforço. Kant começa a formular elementos de uma teoria do

direito internacional, direito do Estado e direito cosmopolita; inclusive o contexto que

realiza esse trabalho é muito propício para o desenvolvimento desse pensamento:

Podem as partes distantes do mundo entrar pacificamente em relações umas com as outras, e por fim tornam-se publicamente legais e assim

podem trazer o gênero humano finalmente sempre mais próximo de

uma constituição cosmopolita. (KANT, 2008, p. 38).

O direito internacional e o direito dos Estados, e ainda o cosmopolita, estão

interligados, todos dependem do respeito mútuo entre os Estados, e que estes sejam

independentes entre si. Kant apresenta uma dualidade quanto a sua posição política:

inicia o livro com uma breve defesa sobre suas opiniões, mas no decorrer da exposição

reivindica que as autoridades recorram aos filósofos (àqueles que teorizam mas que não

modificam a realidade) para decidirem sobre questões de guerra, embora isso diminua a

potencia do Estado, é algo necessário: recorrer aos súditos (filósofos) – isto é,

novamente o pensamento teórico pretendendo, através do pensamento acadêmico, se

universalizar, tal como surge em Hegel.

A moralidade é fundamental nesse sentido, Kant, assim como Hegel,

estabelece que a paz, ou a eticidade, só podem se realizar com a totalidade; em Kant

todos os indivíduos independentes da sociedade civil devem querer um estado de

coletividade unificada (KANT, 2008, p. 59). A ideia de direito não deve em nenhum

momento desacompanhar os homens, tanto na esfera privada como na pública, devem

saber que há elementos de honras a serem respeitados, agindo como moralista político.

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“Visai primeiramente ao reino da razão pura prática e à justiça, assim vos será dado por

si mesmo vosso fim (o beneficio da paz perpétua)” (KANT, 2008, p. 70). Não há,

diretamente, conflito entre moral e política para Kant, por isso as pessoas, bem como os

representantes, podem agir de tal modo que a universalidade de seus pensamentos sejam

morais e legais.

A construção do direito e a guerra em Hegel

Nesse sentido, tomando a parcela que cabe à Hegel, o sistema de direito é base

das relações pessoais na sociedade civil, e aqui tomamos um segundo momento

histórico de sua vida, aquele que já superou a servidão na Alemanha após a Revolução

Francesa e com o desenvolvimento das Guerras Napoleônicas. Assim, as relações estão

num patamar mais próprio do capitalismo, das relações burguesas de assalariamento e

doação moral legal. É moral e legal, pois as relações se fundam no direito positivo e em

sua aceitação passiva, portanto, no princípio de uma universalidade também positiva em

que sua máxima é expressa da seguinte forma: “sê uma pessoa e respeita os outros

como pessoas” (HEGEL, 2009, p. 40), isto é, se garantir como totalidade formal e com

isso permitir que sua totalidade seja ponte para a formação de outras, mas isso de

maneira teórica.

A relação entre direito e costume é essencial na compreensão da esfera política

do direito em Hegel, para ele o direito deve funcionar como um espírito geral de uma

sociedade, por válido, legítimo, reconhecido e utilizado. O direito deve possuir um

caráter particular de cada país; isso demonstra que Hegel observa cada território

contendo suas especificidades e contingências, o que implica na transitoriedade das leis.

Assim, o direito se manifesta na forma de leis, e essas são o costume prescrito, por sua

vez. Como a questão se passa em sociedade, então indivíduos reais são tratados, dotados

de particularidades, e uma delas é a vontade, “A vontade é a unidade destes dois

momentos: é a particularidade refletida sobre si e que assim se ergue ao universal, quer

dizer, a individualidade.” (HEGEL, 2009, p.16).

A formação social do indivíduo é possível com a aquisição de posses, de

propriedades, e para Hegel isso é garantia de liberdade (algo que está diretamente ligado

com a satisfação de necessidades objetivamente). Na vida comum em que as pessoas

convivem formalmente, com a presença das leis, uma existe para a outra como

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proprietárias, sendo que diante das suas necessidades a propriedade é apenas um meio

de satisfação, que se realiza através de relações: de troca, de alienação, etc. A existência

de todos como proprietários não é um todo harmônico, mas apresenta na realidade sua

maneira fixa de ser com a confirmação dada pelo contrato e pela limitação das relações

que encontram seu fim na vontade comum de posse; a consequência disso é que um

deixa de ser proprietário e o outro continua a ser. (HEGEL, 2009, p. 71).

Com a propriedade em mãos, a pessoa pode usufruir de suas propriedades, é a

posse que lhe garante isso; como descreve Hegel, esse conceito se refere à consciência

que a pessoa tem de poder usar a coisa pela apropriação, pelo fabrico ou pela retirada de

outrem. Pela posse a pessoa faz a 1) destruição da propriedade; 2) modificação de sua

originalidade; 3) consome a coisa modificada. Aqui, há uma semelhança com o Locke,

pois para Hegel, assim como para Locke no estado de natureza: “Desde que o uso me

pertença, eu sou proprietário da coisa pois, fora da sua integral utilização, nada existe

que possa ser propriedade de outrem.” (HEGEL, 2009, p. 58).

Haviam conflitos pela disputa de posses, dada a limitação das propriedades e

da própria fabricação de mercadorias vivida nos tempos de Hegel, caracterizando o que

ele conceitua como dano civil, que é a esfera de relações em que a disputa deixa o

âmbito formal e cai na autonomia de cada um para ser para si de modo mais imediato –

paralelamente nascem ai os conflitos jurídicos, porque se cada um reconhece o outro

como proprietário, deve existir algo que assegure os indivíduos como tais, que é a força

da lei que se incorpora na ação coercitiva muitas vezes, na polícia.

Hegel vê que o Estado já aparece como potencialidade na própria organização

familiar, na passagem que há para o mundo civil e nele a falta de uma “organização”

acima das pessoas; enfim, há em todos os dois desenvolvimentos a ideia de Estado, a

vontade de racionalidade na organização. “O domínio da sociedade civil conduz, pois,

ao Estado” (HEGEL, 2009, p. 215). Realizado o desenvolvimento do Estado, é preciso

saber que ele existe para aqueles que existem para ele: o cidadão é que tem motivo e

relação no Estado, e não o membro da família.

Hegel assistia as consequências dos planos de liberalização implementados por

Stein e outros governadores do período anterior, quando da escrita desse texto, por isso

em vários momentos sintetiza pensamentos mais abstratos apoiados na teoria, e em

possibilidades de desenvolvimento para a Alemanha. A desigualdade, tanto do indivíduo

como do país, não é fruto da naturalidade, mas produto de relações históricas. É na

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sociedade civil que se manifesta em primeiro lugar os problemas das relações

burguesas, mas isso deve ser visto no processo: a própria sociedade burguesa já nasce

de uma velha sociedade também muito debilitada, que é a própria sociedade feudal,

medieval, em que o indivíduo não existia como pretendido na moderna sociedade, em

que as relações de produção não eram de mesmo nível quantitativo e qualitativo –

assim, de modo resumido, se tratava de lutas entre diferentes classes e grupos sociais,

dada a nova conjuntura internacional.

Diante da conjuntura, Hegel assinala a ocorrência das colonizações - e

podemos inserir a posição de que as colonizações são uma forma exemplar no

tratamento desigual – através do avanço das expedições que as nações realizam no mar.

Novamente aparece o conhecimento atrelado aos interesses do Estado, da dominação. A

colonização num primeiro momento é expressão do interesse econômica das potências

políticas e econômicas do mundo, mas que se realizam pela força e pelo consentimento.

Na história ocidental, a Europa foi o continente que colonizou a América, e não

enfrentou qualquer oposição sobre isso, a não ser quando das disputas internas para a

sustentação das colonizações. As colônias eram tidas, na visão de Hegel, como

sociedades atrasadas, em que o espírito da família podia ser retomado na sociedade por

inteira.

A vida política é o ponto mais alto da universalidade concreta (HEGEL, 2009,

p. 280), e aqui já podemos tocar no elemento que o Estado utiliza para atrair as massas,

tomando as mediações como elementos centrais: a utilização do espírito comum e

universal (próprio da burocracia que se faz Estado), a propriedade privada (mediação

entre o cidadão e a família), a liberdade racional (que para Hegel está no Estado e nas

leis); enfim, todos esses elementos para formar um corpo social que defenda a

sociedade, que expresse abertamente seus sentimentos criados por ela, para ela e para

fora dela. É o caso do patriotismo. O patriotismo só pode se realizar se o Estado, se os

mais altos escalões do Estado, quiser; e isso é uma necessidade que se dá na relação de

um Estado com outro, pois não faz sentido internamente manter o espírito patriótico

ativo, já que as leis devem ser suficientes para garantir a existência política interna.

Assim, é no Direito Político Interno que o Estado de uma nação se remete às

famílias, à sociedade civil. A relação entre eles, idealmente, deve ser a mais livre

possível, e cada instância abaixo dele deve agir em sua primazia, objetivando a

potencialidade do Estado, seu fortalecimento interno, para que possa demonstrar ao

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mundo o quanto é forte. Aqui a sociedade se submete às leis, ao direto privado, e aqui se

manifesta o dever com o país. Dessa forma, o sentimento político de participação de

cada um é fundamental, pois ao invés do indivíduo ser somente mais um qualquer, ele

pode ser idealizado como um componente essencial do todo:

O sentimento político, o patriotismo em geral, é como uma certeza que se funda na verdade (uma certeza apenas subjetiva não se funda

na verdade, não passa de uma opinião) e é o querer transformado em

hábito. Só pode resultar das instituições que existem no Estado, pois

nelas é que a razão é verdadeiramente dada e real, pós no comportamento em conformidade com estas instituições é que a razão

adquire e sua eficácia. (HEGEL, 2009, p. 230).

O sentimento de confiança no todo, no Estado como a própria sociedade é que

faz do patriotismo um instrumento poderoso para as instituições que o propagam na

sociedade. O indivíduo transfere sua certeza ao Estado, como garantia de que está

agindo em conformidade com a totalidade efetivada num grupo, e assim, absorve de

maneira subjetiva essa certeza e objetiva ela doando-se às causas necessárias – este é o

sentido da existência do cidadão, o que têm direitos e deveres – dentro dos deveres está

o de assegurar a existência de seu próprio território, como defesa de seu interesse

particular, mas também o de toda a população; nessa defesa, ele não se sente como um

indivíduo indiferente e distante do Estado, mas se confunde com ele mesmo, sendo ele o

representante de si mesmo e de todos os outros. Como Hegel afirma, a base do

patriotismo é a realidade objetiva (HEGEL, 2009, p. 231), tendo as circunstâncias

externas também seu papel fundamental para averiguação do sentimento cívico.

A partir do momento em que está assegurada a estabilidade interna, pode o

Estado agir para fora, impulsionar expedições, participar de guerras, etc. Aí,

externamente, ele se comporta assim como um indivíduo se remete ao outro na

sociedade civil, ou seja, como duas singularidades indiferentes, mas que precisam ter

alguma relação, seja conflitante, de dependência ou qualquer outra. Logicamente então:

o Estado tem sua formação interna como uma unidade, e a partir desse ponto pode

seguir seus procedimentos em relação a outros.

Cada Estado é autônomo, na política, aos demais - o que é totalmente teórico.

Debate sobre as guerras

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As guerras quebram e derretem o gelo do cotidiano, modificam e testam o

espírito moral objetivo de um povo. Ela “Assegura a „saúde moral dos povos em sua

indiferença perante a fixação das especificações finitas e, tal como os ventos protegem o

mar contra a estagnação em que os mergulharia uma indefinida tranquilidade, assim

uma paz eterna faria estagnar os povos.‟ ” (HEGEL, 2009, p. 298). Certamente isso não

pode ser a justificação da guerra, ao contrário, essa explicação dada é meramente

filosófica, porque no momento da guerra mesmo outras circunstências estão envolvidas,

como a possibilidade de paz, que também deve ser muito cara aos povos. As guerras são

disputas por alguma coisa, pela propriedade alheia, pela paz, pela soberania, etc., e

sempre estão ligadas a elementos transitórios e finitos, o que já deixa em si a marca da

paz não como perpétua, tal como proposta por Kant, mas apenas momentânea. E esse é

mais um elemento, mais dentro da política do que da filosofia, que Hegel discorda de

Kant.

A concepção kantiana de uma paz eterna assegurada por uma liga internacional que afastaria todos os conflitos e regularia todas as

dificuldades como poder reconhecido por cada Estado, assim

impossibilitando a solução que a guerra traz, supõe a adesão dos Estados; teria esta de assentar em motivos morais subjetivos ou

religiosos que dependeriam sempre da vontade soberana particular, e

estaria, portanto, sujeita à contingência. (HEGEL, 2009, p. 304).

Hegel não defende a criação de organismos internacionais para mediar os

conflitos, bem como assistimos nascer no século XX, pois o fundamento de cada Estado

está em sua possibilidade particular de lutar por sua soberania e por sua liberdade. Por

isso diz que os conflitos entre os Estados só podem ser resolvidos pela guerra, quando

não encontram algum acordo mútuo2.

Dentro da composição do Estado é defendida por Hegel que exista uma parcela

da população responsável por sua segurança, que seja mais que os próprios cidadãos que

estão moralmente obrigados a sair em sua defesa. Não são apenas discussões sobre

defesa, mas também de ataque, pois o ato de guerra é a ação dialética entre duas

2 E mesmo com a ação de organismos internacionais, as guerras não são evitadas. Os tempos modernos

confirmam que a hipótese kantiana não se validou por completo, pois o fato desses organismos serem

compostos por indivíduos reais, com nacionalidades e interesses próprios faz toda a diferença. Seria a

criação de um Estado acima dos Estados, o que contradiz o princípio e rompe com a vontade particular

dos indivíduos, como sociedade e como Estados. Da mesma forma como a polícia não controla

inteiramente a conjuntura de crimes, de violação do público, mas apenas fazem mediação paliativa, a

organização internacional acima dos Estados não conseguiria controlar as vontades que se colocam acima

dos contratos – embora a comparação entre Estado e indivíduo seja limitada, pois a vontade do indivíduo

é subjetiva, já a do Estado é concreta.

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individualidades que na luta irão se provar e se reconhecer como dois corpos estranhos,

mas que pela luta mesma poderão se reconhecer. “Se o todo assim se levanta em poder e

se arranca à vida interior para se voltar par ao exterior, então a guerra de defesa

transforma-se nua guerra de conquista” (HEGEL, 2009, p. 299). A sociedade civil, que

enquanto em si mesma era dilacerada pelos interesses particulares, agora, na guerra,

forma um corpo único, o todo em defesa e ataque pelo Estado, pela nação. Essa união é

a força armada do Estado, que se torna um exército permanente.

Há uma modificação na economia social quando o país está em guerra, pois se

tem despesas com a manutenção das tropas, há aumento dos impostos, transposição da

produção para determinados ramos, etc. Essas mudanças acarretam reclamações por

parte da sociedade civil, pois mesmo nesses tempos em que ela é algo de uniforme e

unido, não deixa de ser a própria sociedade com interesses diversos – daí, a guerra pode

virar um simples meio para uma parcela dessa sociedade, que vê em seu fim a conquista

e sua dominação sobre o outro. Mas, com a guerra e sua vitória, não é somente a

sociedade civil, em suas parcelas, que vence, mas o próprio Estado é tornado soberano

sobre o rival: “Arriscar a vida é, sem dúvida, mais do que recear a morte.” (HEGEL,

2009, p. 300).

Essa ação em si só pode ser negativa, mas quando vista do alto, da totalidade,

constitui o princípio da sociedade moderna, a união do pensamento e do universal, pois

são membros de um todo na luta. “Foi este princípio que inventou as armas de fogo e

não é por acaso que a invenção de tais armas transformou a forma puramente pessoal da

coragem nesta forma mais abstrata.” (HEGEL, 2009, p. 301). As guerras devem mais

cedo ou mais tarde se resolverem, com a intervenção dos embaixadores, dos acordos e

tratados.

O Estado está então sempre orientado para sua dupla vida, a interna, sobre a

sociedade civil, e a externa, sobre os demais Estados. No fim das contas, do mesmo

jeito que são os grandes dirigentes que decidem pelas guerras, são os mesmos que

elaboram os tratados, defendem seus interesses particulares e decidem pelo fim da

guerra. O patriotismo serve apenas para a formação de um corpo militar para a defesa e

para o ataque físico, enquanto a direção do conflito está por fora da luta imediata, é a

divisão entre a sociedade civil e a sociedade política.

Então, na Filosofia do Direito existe a reflexão sobre o direito interno e sobre o

direito internacional. Já tratamos do primeiro, que se dirige aos indivíduos confusos e

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separados do mundo burguês. Mas, assim como eles, os Estados querem ser

reconhecidos, como individualidades, e sua legitimação é a primeira tarefa que buscam

externamente3. “Assim como o indivíduo sem a relação com outras pessoas não é uma

pessoa real, assim o Estado sem a relação com outros Estados não é um indivíduo real”

(HEGEL, 2009, p. 302). O reconhecimento é recíproco; embora não seja igualitário:

bem como na relação política de reconhecimento da Fenomenologia, em que o senhor

pode reconhecer o escravo como outro, mas não no mesmo patamar social, mas

enquanto escravo mesmo, assim como o país subordinado pode reconhecer outra nação

como sua colonizadora. Só que o reconhecimento de Estados internacionais não se dá

moralmente, já que seria algo demasiado vulnerável. O reconhecimento das relações

entre as nações é algo jurídico, e cabe ser exposta ao mundo como contrato entre os

países, e ai está a formação de um direito universal (desde a Revolução Francesa se

levantava a necessidade de condições universais para as pessoas, como nos direitos das

mulheres, de liberdade para todos os cidadãos, etc.); então, um Estado tem obrigação

com outros, desde que formulado e estabelecido nos acordos. Todavia, a soberania de

cada um pode ser maior do que o firmado em contrato, o que possibilita a guerra como

saída decisiva para averiguação e disputa de força pela própria soberania; com isso, a

vontade universal dos países é rompida, e surge a vontade individual como a potência

da ação. Assim, a guerra é justificada pela ameaça do bem-estar da particularidade.

A guerra e toda a violência que se gera nela são momentos transitórios, finitos

também. A jurisdição é rompida, mas não a visão no futuro de paz. Assim, os interesses

particulares, o destino casual das relações recíprocas, os atos dialéticos, são todos

composições do espírito universal4. O espírito universal é a própria história.

É em tal dialética que se produz o espírito universal, o espírito do

mundo enquanto ilimitado, e é ele que exerce, ao mesmo tempo, sobre

esses espíritos o seu direito (que é o direito supremo) na história do mundo como tribunal do mundo. (HEGEL, 2009 p. 307).

Então, Hegel mostra seu ponto de vista, segundo nossa interpretação, de que as

3 Apenas como exemplo desse pensamento, basta verificar o processo externo de independência do Brasil,

e toda sua luta política e econômica para o reconhecimento de ser um país livre da colonização

portuguesa. 4 E assim chegamos ao espírito universal, um conceito muito comentado da filosofia de Hegel, mas de

maneira muito diferente da concepção corrente, pois vemos na concretude de suas citações e de seu

pensamento um resultado concreto, embora com elementos idealistas, mas longe da mistificação religiosa

que é dada ao conceito; por exemplo, ao se dizer que o espírito universal coincide com o espírito de Deus.

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relações sociais (entre indivíduos e necessariamente entre sociedades e Estados) é o que

forma o espírito universal, a própria história dos homens. E mais, o caráter dialético, às

vezes instável, dessas relações é o que dá a possibilidade do novo, do ilimitado no

mundo. Ao mesmo tempo em que o espírito forma a história, é somente na história que

ele pode se realizar.

A história é um devir, um aprimoramento da racionalidade. É “o

desenvolvimento necessário dos momentos da razão, da consciência de si e da

liberdade, a interpretação e realização do espírito universal” (HEGEL, 2009, p. 307). Ou

seja, como ele descreve na Fenomenologia, a razão passa por um processo antes de

atingir seu nível mais efetivo, no âmbito da universalidade não é diferente.

A história não termina com a realização do espírito universal, ela continua na

evolução histórica de um povo, de uma sociedade, de um Estado; nos elementos de

justiça, política, artes, paixões, a história não está imediatamente inserida, mas eles

devem ser refletidos em universalidades. Também é dado que a história caminha, ao

lado das guerras e da soberania de certos povos, com diferentes povos à frente do

mundo. Um dado povo que num certo tempo é hegemônico, em outro entra em

decadência, e o domínio passa à outro. “Assim se anuncia o trânsito do espírito para o

novo princípio, o da história universal para um outro povo. Aberto o novo período, o

primeiro povo perde o seu interesse absoluto. (HEGEL, 2009, p. 310). Disso deriva que

existiram, para ele, quatro impérios, ou povos à frente na história: “o oriental, o grego, o

romano e o germânico.” (HEGEL, 2009, p. 313).

Filosofia de guerra com Clausewitz

Clausewitz é considerado o filósofo da guerra, o que com mais propriedade

abordou e refletiu sobre o tema, por ter sido militar e ter se dedicado ao estudo devido

aos grandes fatos que lhe impressionaram. A estrutura de seu pensamento está fundada

na racionalidade, na instrumentalidade e no nacionalismo – elementos necessários para

a preparação e participação de um país na guerra. Certamente entre o que se planeja na

guerra e o que se efetiva nela são duas coisas bem diferentes, mas Clausewitz alerta de

que tal separação ainda que seja muito brusca, é precisa, pois o primeiro momento

estratégico-tático de preparação é o que pode fornecer os elementos da vitória. O

pensamento desse filósofo da guerra era um pensamento que sintetizava o momento de

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transição, entre o século XVIII e XIX, e entre guerras e revoluções.

Clausewitz, inspirado em Napoleão, acredita que a guerra é uma combinação

de arte e ciência, já que seu resultado é sempre uma criação, uma inovação e

modificação humana. Então, a teoria de Clausewitz sobre a conformação dos exércitos é

bem semelhante ao que Hegel propunha – embora não queremos dizer aqui, ou deixar

alguma influência, de que Clausewitz deriva sua teoria de Hegel, mas muito

diferentemente, pensamos que o próprio momento de guerras empreendidas pela França

e Napoleão inspira os teóricos a pensar na formação dos exércitos a partir da própria

população, como uma necessidade e uma saída para os grandes massacres dos

combates. Hegel também pensava na formação das guerras com exércitos de massas,

como aconteceu com a Prússia na vitória sobre Napoleão em 1813-1815

(CLAUSEWITZ, 1979, p. 16). Depois dessa vitória, a Prússia conseguiu afirmar-se

como nacionalidade, já que o combate tinha sido difundido entre o povo.

Clausewitz diz: “Deem a guerra ao povo! O Estado é o Povo!”

(CLAUSEWITZ, 1979, p. 17). Anos mais tarde, após metade do século XIX, as guerras

que a Prússia participou foram determinantes como experiências para outros embates,

como na guerra contra a Dinamarca (1864), Áustria (1866) e França (1870); guerras que

culminaram no processo de unificação da Alemanha em 1871.

Chegamos então numa outra definição sobre a guerra, que não abandona aquela

primeira, mas em conceitos e elementos de filosofia está mais trabalhada:

A guerra é um ato de violência e não há nenhum limite para a

manutenção desta violência. Cada um dos adversários executa a lei do

outro, donde resulta uma ação recíproca, que, enquanto conceito, deve

ir aos extremos. Tal é a primeira ação recíproca e o primeiro extremo que se nos deparam. (CLAUSEWITZ, 1979, p. 75).

Mas, após a guerra, há o derrotado, que pode transformar esse resultado em um

momento de transição e preparação. Dessa feita, estão descartadas por Clausewitz as

propostas de paz perpétua de Kant. Durante a guerra, os objetivos podem ser deixados

como segundo plano, já que os interesses em desarmar e abater o inimigo são mais

evidentes, mas ao lado da conquista física e teórica do outro, estão os objetivos da

guerra; são nos objetivos políticos que residem os interesses e a medida dos esforços

necessários, então, não se entra em guerra por qualquer coisa, mas por reais interesses

que tenham a capacidade de convencer não somente aos militares, mas para o povo em

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geral a sua importância.

Considerações Finais

Kant, talvez abalado pelo Terror jacobino, nega a possibilidade aberta no tempo

das guerras, recusa a defesa militar e o ataque militar, e propõe uma defesa acadêmica

ao Estado. (KANT, 2008, 13). Diferindo um do outro, Hegel vê na guerra, na luta, a

possibilidade de reconhecimento de duas nações, uma pela outra, mas Kant vê na

disputa o sentido da anulação da existência alheia. Mas, Kant não podia fugir à

realidade, por isso tinha que considerar a ocorrência de guerras, e por isso pensava que

deveria ser necessária a garantia de alguma confiança, de modo a ter em seguida um

momento de paz. (KANT, 2008, 19).

Então, a saída de Kant é a construção de um federalismo de Estados: “O direito

internacional deve fundar-se em um federalismo de Estados livres” (KANT, 2008, 31),

onde cada país se comportaria pacificamente em relação aos demais, tolerando uns aos

outros; a garantia da paz estaria na constituição legal, na responsabilidade jurídica que a

sociedade civil teria que assumir para si, tendo em vista a independência dos países

vizinhos, e a própria soberania, pois não se poderia retirar o direito das relações, tanto

pessoais como nas públicas. (KANT, 2008, 67). Hegel difere de Kant, sendo claro e

direto em sua ideia de defesa da guerra como fator que agita a população e possibilita a

paz.

Politicamente respondendo ao que Kant propõe, novamente, citamos o que

Clausewitz diz:

A guerra é apenas uma parte das relações políticas e, por conseguinte

de modo algum qualquer coisa de independente. […] Só as relações

políticas entre governos e nações engendram a guerra […] A guerra nada mais é senão a continuação das relações políticas, com o

complemento de outros meios. (CLAUSEWITZ, 1979, p. 737).

As relações tomam devidas proporções que só podem ser resolvidas com as

guerras, com a imposição física e moral de posições contraditórias, e isso ocorre quando

não há mais possibilidade das notas diplomáticas terem efeito recíproco sobre as partes.

Então, a política usa a guerra como um de seus instrumentos; a guerra não é uma

relação conflituosa separada da política, mas sua expressão física mais aguda, um

momento de resolução e de destruição de posições: a guerra é uma das soluções das

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contradições entre os homens.

Mas, Clausewitz assinala que a guerra não é um jogo de interesses particulares,

mas sim uma vontade da nação:

Que a política possa ser mal orientada, e tornar-se o melhor servidor

das ambições, dos interesses particulares ou da vaidade dos dirigentes,

isso não nos diz agora respeito, porque a arte da guerra não pode, em

nenhum caso, ser considerada como o seu mentor, e só podemos encarar aqui a política na qualidade de representante de todos os

interesses da comunidade inteira. (CLAUSEWITZ, 1979, p. 739).

A partir de Hegel, é possível ver que a sociedade compreende um conjunto de

grupos particulares, que possuem entre si desejos contrários e que influenciam

mutuamente suas condições de vida. Ao contrário do que Clausewitz considera,

pensamos que as guerras eram sim formas de continuidade da política, mas de acordo

com interesses particulares, já que a própria decisão cabe aos governos e Estados, e não

ao conjunto da população, embora a efetividade da guerra seja algo disperso e relegado

à população de conjunto, as decisões não; o próprio Estado é composto por apenas uma

parcela da população, mesmo em Hegel, que mostra a composição dele a partir da classe

media, letrada. E nesse sentido, a guerra é extremamente política, ao retirar do todo a

vontade verdadeira, e transportar ao todo o meio: as finalidades e os objetivos não são

destacados de imediato, mas as finalidades de vitórias táticas, enquanto que o

estratégico fica a cargo do alto comissariado.

Por fim, esses são alguns elementos mais específicos da própria guerra, que

fazem parte indiretamente (através mais do momento histórico do que por afinidade) da

teoria de Hegel. São especificidades que estão presentes na sociedade civil, e que

influenciam a participação dos países na guerra, ou seja, da própria sociedade, pois

assinalar que o país, a nação, etc., entrar em guerra, ou guerrear, não diz muito, é algo

por demasiado abstrato, mas a participação da sociedade, em seus concretos setores,

como as classes, os grupos de interesses, as táticas, o espírito moral que se forja, etc.,

permitem uma compreensão mais qualitativa da guerra e do próprio momento que

criava uma unidade social em torno dessa continuidade da política pelo meio físico;

unidade essa que recebe o nome de patriotismo.

Política e Guerra são dois elementos importantes na teoria de Hegel e no

processo que se inicia o século XIX, temas que não poderiam deixar de serem vistos

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aqui. Se, de um lado a história está se realizando na visão de Hegel com a efetivação das

guerras, por outro, isto é porque os acontecimentos individuais e coletivos estão

contribuindo para a construção dela. Portanto, o espírito se realiza num duplo

movimento: sendo ele próprio como algo capturado pelo conjunto da sociedade, e a

própria sociedade modificando e dando vida a ele através das guerras.

Referências

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HEGEL, G. W. F. A Sociedade Civil Burguesa. Trad. José Saramago. São Paulo: Edições

Mandacaru, 1989.

______. Fenomenologia do Espírito. 2 ed. Trad. Paulo Meneses. Rio de Janeiro: Editora

Vozes, 1992.

______. Princípios da Filosofia do Direito. Trad. Orlando Vitorino. São Paulo: Martins

Fontes, 2009.

HOBSBAWN, E. A Era das Revoluções. 12 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

KANT, I. À Paz Perpétua. Porto Alegre: Editora L&PM Pocket, 2008.

MACHIAVELLI. Il Principe. Roma: Edizione Integrale, 1995.

MARX, K. Crítica da filosofia do Direito de Hegel. São Paulo: Editora Boitempo,

2005.

NOVELLI, P.G.A. O Idealismo de Hegel e o Materialismo de Marx: Demarcações

Questionadas. 1998. 330 f. Tese. Faculdade de Educação, Universidade Estadual de

Campinas, Campinas: 1998.