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Direito Legal e Insulto Moral

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Direito legal e insulto moral.

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Direito Legal e Insulto Moral

Conselho editorial

Bertha K. BeckerCandido MendesCristovam Buarque Ignacy SachsJurandir Freire CostaLadislau DowborPierre Salama

Luís R. Cardoso de Oliveira

Direito Legal e Insulto Moral

Dilemas da cidadania no Brasil, Quebec e EUA

© Copyright 2011, Luís R. Cardoso de Oliveira

Direitos cedidos para esta edição àEditora Garamond Ltda.

Rua da Estrela, 79 - 3º andar - Rio CompridoRio de Janeiro - Brasil - 20.251-021

Tel: (21) [email protected]

CopidesqueA. Pessoa

EditoraçãoEstúdio Garamond

CapaEstúdio Garamond

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte.Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

O51d Oliveira, Luís R. Cardoso deDireito legal e insulto moral : dilemas da cidadania no Brasil, Quebec e EUA / Luís R. Cardoso de Oliveira. – Rio de Janeiro : Garamond, 2011. – (Coleção Direitos, conflitos e segurança pública)

Inclui bibliografiaISBN 85-7316-280-5

1. Cidadania – Brasil. 2. Cidadania – Quebec (Canadá). 3. Cidadania – Estados Uni-dos. I. Título. II. Título: Dilemas da cidadania no Brasil, Quebec e EUA. III. Série.

CDD 306CDU 316.7

Todos os direitos reservados. A reprodução não-autorizada desta publicação, por qualquer meio, seja ela total ou parcial, constitui violação da Lei nº 5.988.

Sumário

Prefácio à segunda edição ............................................................ 7

introdução ................................................................................... 17

caPítulo IAção afirmativa e equidade. ......................................................... 35

caPítulo IILegalidade e eticidade nas pequenas causas ................................ 49

caPítulo IIIDemocracia, hierarquia e cultura no Quebec ............................... 69

caPítulo IVComunidade política e cultura pública no Quebec ..................... 89

caPítulo VA retórica do ressentimento e a evocação obrigatória dos sentimentos ....................................................................105

caPítulo VIDireitos republicanos, identidades coletivas e esfera pública no Brasil e no Quebec ................................................................ 129

caPítulo VIIIndividualismo, identidades coletivas e cidadania: os Estados Unidos e o Quebec vistos do Brasil ....................................................... 173

BiBliografia ............................................................................... 197

Prefácio à segunda edição

Sobre Diálogos e Desigualdades

Após quase 10 anos da publicação de sua primeira edição, em 2002, Direito Legal e Insulto Moral (DLIM) ganha nova edição. Embora seja tentador fazer um balanço mais sistemático sobre a recepção do livro, terei que adiar esse empreendimento para outra oportunidade. Entretanto, gostaria de aproveitar este espaço para fazer algumas observações sobre o universo de interlocução do livro e sobre dois desdobramentos de sua publicação.

Em 2005 foi publicada uma tradução para o francês, no Québec, e ao longo de todo o período tive conhecimento de seis resenhas sobre o livro: duas no Brasil, duas no Canadá, uma na França, e outra na Espanha.1 Além disso, o livro aparece como referência bibliográfica em dezenas de teses, dissertações e publicações diversas. Ainda que o peso e a importância dados aos argumentos do livro variem muito nessas publicações, o fato de ter motivado discussões e estimulado novas pesquisas sobre o tema é uma das maiores recompensas que um autor-pesquisador pode desejar. Na mesma direção, embora o diálogo com esses trabalhos tenha enriquecido muito minha própria visão sobre o livro, e contribuído para o desenvolvimento das minhas atividades de pesquisa, limitarei minhas observações a um rápido sobrevoo nas resenhas.

De um modo geral DLIM foi bem recebido pela crítica e, com exceção da resenha publicada na Espanha, que tem um caráter marcadamente descritivo (Zambrana 2011), as outras cinco pro-curam estabelecer um diálogo mais argumentativo com as ideias e interpretações desenvolvidas no livro. A preocupação em articular,

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sistematicamente, questões mais amplas sobre democracia e cida-dania com análises etnográficas, assim como o caráter contrastivo e aberto da comparação, em pé de igualdade (Vidal 2006), entre os três casos abordados, são igualmente valorizados nas resenhas, ao lado do esforço em conjugar as dimensões legal e moral dos direitos. Da mesma forma, as resenhas não deixam de chamar a atenção para aspectos que gostariam de ver melhor enfrentados no livro sem, no entanto, fazer reparos à análise efetivamente desenvolvida.

Assim, Lanoue gostaria de ver maior recuo histórico na análise da noção de cultura pública (capítulo 4), para dialogar com o movi-mento romântico no Québec (2007:177); Crépeau gostaria que o livro desse mais atenção à dimensão de “desconsideração econômica” na demanda por reconhecimento (2006: 248 ou 2006: 185-186); Vidal sugere que seria interessante discutir de forma mais detida em que medida as demandas por direitos morais não contradizem o exercício dos direitos legais (2006: 265 ou 2006: 337); e Bevilaqua chama a atenção para o fato de que a ideia de inversão valorativa que eu proponho no capítulo 3, inspirado nas proposições de Louis Dumont, não deixa de ser uma forma de inversão hierárquica (2004: 415), com o que eu estaria de acordo.

Se todas as resenhas assinalam a relevância da discussão sobre cidadania e democracia, ou sobre a relação entre as dimensões legal e moral dos direitos, para além da análise dos três casos etnográficos, é particularmente gratificante contar com avaliações favoráveis às interpretações etnográficas da crise constitucional entre o Québec e o “resto-do-Canadá” — que ocupam a maior parte do livro (capítulos 3, 4, 5, 6 e 7) — na visão dos dois resenhistas canadenses (Crépeau 2006; Lanoue 2007). Crépeau e Lanoue foram interlocutores frequentes durante a minha estada no Québec, e não deixa de ser relevante o fato de que eles não compartilhavam exatamente a mesma visão sobre o processo referendário que culminou com a votação em 30 de outubro de 1995, assim como sobre suas implicações.

A propósito, é interessante notar que ambos chamam a atenção para a atuação recente do Primeiro Ministro do Canadá e chefe do

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Partido Conservador, Stephen Harper, que em 2006 iniciou um pro-cesso de reaproximação com o Québec, ao praticar um “federalismo de abertura” e reconhecer ao Québec o status de nação, através de uma proposição aceita por unanimidade no parlamento quebequen-se. De fato, há vários sinais de que a crise constitucional canadense vem perdendo ímpeto, o último deles sendo a drástica redução do Bloco Quebequense,2 que teria passado de 47 para apenas quatro assentos no Parlamento Canadense nas últimas eleições federais, em 2 de maio de 2011. Quaisquer que sejam as implicações do atual quadro político para a questão constitucional ou para as demandas de reconhecimento do Québec, meu argumento está ancorado em duas observações: (1) assim como as demandas de reparação por insulto que chegam ao judiciário de uma maneira geral,3 a quali-dade do acordo ou da satisfação das demandas de reconhecimento do Québec dependerá do grau de atenção ou de responsividade às reivindicações e às preocupações das partes (quebequenses e outros canadenses) que terá sido embutida na composição ou acordo que selará a eventual superação da crise;4 e (2) a satisfação das demandas por reconhecimento tem que ser cultivada e renovada com alguma regularidade para evitar futuras crises, pois tais demandas não são eliminadas de forma definitiva do horizonte dos atores.

O fato de o livro não ter sido traduzido para o inglês talvez explique, pelo menos em parte, a ausência de resenhas no resto-do--Canadá. De todo modo, as resenhas mencionadas acima, assim como os comentários que recebi sobre o livro em correspondência com colegas do Québec de posições políticas ou visões diversas sobre a crise constitucional e o futuro do Québec, trazem à tona o tema da qualidade ou do estilo de diálogo entre comunidades de pesquisa-dores. Um aspecto importante do livro que a meu ver marca uma característica mais geral da antropologia brasileira, pelo menos nas etnografias produzidas além-mar ou fora das fronteiras do país, é o interesse em dialogar com grupos intelectuais locais.5 Isto é, DLIM reflete um forte engajamento na troca de perspectivas, e não apenas na troca de dados, com os colegas canadenses.6 Neste sentido, a própria

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definição do objeto de pesquisa trazia a preocupação em estabelecer pontes com problemas e questões que fossem significativos para a comunidade local de cientistas sociais. A reflexão sobre as condições e perspectivas de diálogo entre comunidades de antropólogos seria um primeiro desdobramento da publicação e da recepção do livro.

Diferentemente do padrão dominante nas antropologias centrais, cujas escolas — Americana, Inglesa e Francesa — marcaram o pro-cesso de formação da disciplina e nas quais o estudo de sociedades distantes tinha como principal objetivo esclarecer à sociedade do pesquisador sobre diferentes modos de ser ou formas de vida além--mar,7 o enfoque privilegiado em DLIM visava desvendar outros modos de vida e concepções de mundo em conexão com reflexões sobre a própria sociedade do pesquisador. Assim, o diálogo com grupos intelectuais ou com cientistas sociais locais não priorizava a “simples” troca de dados, mas enfatizava a troca de perspectivas.8

Tal diferença ficou mais clara quando fui convidado a apresentar o livro na França, após o lançamento da tradução para o francês, que coincidiu com minha estada na condição de chercheur invité na Mai-son de Sciences de l’Homme, em Paris, de março a junho de 2006. Ao expor então o esforço interpretativo e a perspectiva comparativa do livro, não pude evitar o contraste com o orientação dominante nas publicações dos chamados brasilianistas, onde prevalece certa unila-teralidade interpretativa, ou uma falta de preocupação em articular a visão do pesquisador com perspectivas ou problemas significativos para os grupos intelectuais locais.

Como assinalo em outro lugar,9 tive várias oportunidades de abordar este tema em exposições para comunidades de pesquisadores diversas, dentro e fora do país (na França, Inglaterra, EUA, México, Argentina, Japão e China), em eventos que procuravam discutir as condições do diálogo entre comunidades de antropólogos e estimular sua ampliação. Nessas ocasiões, inspirado na perspectiva que orientou a elaboração de DLIM, enfatizei o interesse da antropologia brasilei-ra em duas modalidades preferenciais de diálogo: (1) comparações simétricas e (2) parcerias dialógicas.

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Ambas as modalidades realçam a troca de perspectivas ou de visões interpretativas entre pesquisadores e comunidades de antropó-logos. De fato, a preocupação em articular os problemas que orientam a pesquisa com questões que são significativas para pesquisadores das comunidades com as quais se estabelece a interlocução está presente nas duas modalidades. Mas, enquanto no primeiro caso a ideia mestra seria a da comparação como elucidação recíproca,10 no segundo o foco estaria no diálogo entre interpretações de pesquisadores per-tencendo a duas ou mais comunidades nacionais de antropólogos, tendo como objeto de análise apenas uma sociedade. Em qualquer hipótese, essa é uma tentativa de classificação analítico-descritiva que não deve ser reificada. Assim, se a simetria pode ser relativizada num caso, quando a segunda unidade de análise é tomada apenas como contraponto, a parceria dialógica também pode envolver alguma dimensão de comparação. Como tenho argumentado, além do potencial que este estilo de diálogo teria para nossa comunidade de pesquisadores e para nossos interlocutores no que concerne à ampliação do horizonte interpretativo das respectivas etnografias, os resultados de tal orientação também não deixam de constituir uma contribuição para a disciplina de maneira mais geral.

O segundo desdobramento que gostaria de indicar aqui se refere à renovação de minhas pesquisas sobre direitos de cidadania a partir da discussão sobre concepções de igualdade e desigualdades.11 Na introdução de DLIM, chamei atenção para a problemática da igual-dade como um dos temas centrais que perpassam todo o livro. Na ocasião, sublinhei as limitações da concepção de igualdade como uniformidade para dar conta de demandas por reconhecimento como as enunciadas pelo Québec. Por um lado, tal situação sugeria dife-renças interessantes em relação ao igualitarismo vigente nos EUA, e um contraste importante com a dificuldade brasileira em implementar práticas de tratamento uniforme no espaço público, ambos aspectos apontados no livro. Por outro lado, os resultados dessa comparação motivaram um projeto de pesquisa na França, com o objetivo de incorporar o republicanismo francês no quadro comparativo, e o

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aprofundamento da visão sobre o dilema brasileiro, inicialmente caracterizado como produto da desarticulação entre espaço público e esfera pública no país.

Isto é, o princípio da isonomia jurídica ou da igualdade de direitos entre os cidadãos, dominante na esfera pública, perderia terreno para visões mais hierarquizantes sobre a sociedade, as quais teriam precedência na definição de um amplo espectro de interações sociais no espaço público. Embora esta interpretação ainda me pareça adequada, ela não dá conta do impacto das perspectivas críticas ao tratamento uniforme que têm vigência dentro da própria esfera públi-ca. Partindo então da frase de Rui Barbosa, frequentemente acionada na esfera pública, segundo a qual “a regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam”,12 propus a existência de uma tensão entre duas con-cepções de igualdade no Brasil. Enquanto a concepção que identifica a igualdade como tratamento uniforme seria dominante na esfera pública, aquela expressa na formulação de Rui Barbosa, a qual con-ceberia a igualdade como tratamento diferenciado, seria dominante no espaço público e em nossas instituições públicas.13Diferentemente da primeira, a última concepção pensa a igualdade no plano da justiça, relativizando direitos, que não seriam necessariamente os mesmos para todos os cidadãos em todas as circunstâncias. O principal e mais conhecido exemplo de manifestação desta concepção em nosso ordenamento jurídico seria o instituto da prisão especial. Em última análise, pode-se dizer que a tensão entre as duas concepções de igualdade está presente tanto na esfera pública como no espaço público, ainda que de forma invertida.

De todo modo, ao mesmo tempo em que aproximo a primeira concepção à noção de direitos (iguais-universalizáveis) e associo a segunda à noção de privilégios (particularizados), assinalo que esta dicotomia não constitui uma singularidade brasileira frente às demais democracias ocidentais. Tanto a Inglaterra e o Canadá, que são monarquias, como as repúblicas da França e dos Estados Unidos, por exemplo, não teriam eliminado a existência de privilégios, que

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continuariam convivendo com a igualdade de direitos. Contudo, diversamente do caso brasileiro, nestas democracias os privilégios teriam se mantido fora do mundo cívico, definido como o universo onde o status de cidadão teria precedência e no qual o tratamento uniforme seria esperado. Da mesma forma, ainda que em cada uma dessas democracias o mundo cívico tenha conformação distinta e amplitude diversa, os espaços de vigência de direitos e privilégios são definidos com clareza e não se confundem. A propósito, também chamei a atenção que nesta ótica o tamanho ou a extensão do mundo cívico não seria, em si mesmo, um parâmetro adequado para avaliar o desenvolvimento relativo das respectivas democracias.

A singularidade brasileira estaria então na inexistência de um mundo cívico bem conformado, inviabilizando definições ou fron-teiras claras entre os campos de vigência de direitos e privilégios e fazendo com que decisões de autoridades do Estado frequentemente soem arbitrárias para os cidadãos. Uma série de consequências advém desta situação, a mais evidente delas sendo o caráter incerto dos direitos, particularmente grave para a população de baixa renda, distante das esferas de poder e mais sujeita às injustiças da desigual-dade. Por um lado, este quadro reforçaria a análise das práticas de discriminação cívica no Brasil, assim como desenvolvidas no livro. Por outro lado, se somarmos ao caráter plural dos mundos cívicos bem conformados o fato de que o tratamento uniforme também não garante respeito a direitos e à cidadania, como demonstra a análise do caso do Québec (neste livro), a compreensão das demandas de tratamento igualitário nas democracias contemporâneas ganha novos contornos. Aliás, não seria supérfluo assinalar que, ao con-trário da concepção de igualdade representada na formulação de Rui Barbosa, que relativiza a igualdade de direitos, as demandas de reconhecimento do caráter singular e diferenciado de coletividades específicas, como no caso do Québec, são motivadas pelo objetivo de que as respectivas coletividades tenham acesso ou que possam gozar os mesmos direitos já disponíveis para os grupos dominantes na sociedade mais ampla.

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Gostaria de sugerir que uma condição necessária para a sa-tisfação dessas demandas seria a implementação de práticas de tratamento digno do ponto de vista do cidadão. Em si mesmas, as práticas de tratamento uniforme ou diferenciado não são intrín-secamente portadoras de cidadania ou de respeito a direitos, mas dependeriam de sua repercussão frente a concepções de igualdade e de dignidade vigentes em cada contexto específico. Por exemplo, em que medida a forma de tratamento empregada — uniforme ou diferenciado — seria efetivamente tomada como um ato de desres-peito ou como um insulto à dignidade do cidadão? Evidentemente, tais concepções deveriam ser capazes de sustentar, argumentativa-mente, suas pretensões de validade ou de sentido à luz das condições sociais vigentes e das críticas a eventuais desigualdades no plano dos direitos. A meu ver, o enfrentamento adequado deste desafio interpretativo demandaria, acima de tudo, mais pesquisas de caráter etnográfico sobre o tema.

Finalmente, não foi feita qualquer alteração no texto desta edição, salvo por pequenas correções em erros de digitação e à incorporação da tradução corrente do conceito de overlapping consensus, desen-volvido por Rawls, que havia sido traduzido por consenso parcial, e que aparece nas traduções brasileiras como consenso sobreposto. Espero que o livro continue suscitando debates e novas questões para o diálogo, o que tem sido uma rica fonte de aprendizado para mim.

Luís R. Cardoso de OliveiraOutubro de 2011

Notas1 A edição brasileira recebeu uma resenha no Anuário Antropológico/2002-2003 (Bevilaqua, 2004: 411-418), e a edição canadense (Droit légal et insulte morale — Dilemmes de la citoyenneté au Brésil, au Québec et aux États-Unis. Québec: Les Presses de l’Université Laval, 172 pp.) ensejou duas resenhas no Canadá, uma na França, uma na Espanha e uma nova resenha no Brasil: R. Crépeau (2006) Anthropologie et Société, volume 30 número 3; G. Lanoue (2007) An-

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thropologica, January; D. Vidal (2006) Cahiers des Amériques Latines (revista do IHEAL/Paris 3), número 48-49, 2005/1 e 2; P. Zambrana Moral (2011) Re-vista Europea de Historia de las Ideas Políticas y de las Instituciones Públicas, número 1 – Marzo 2011. A tradução da resenha de D. Vidal saiu em Horizontes Antropológicos, ano 12, n. 26, em 2006, e a resenha de R. Crépeau ganhou uma versão ampliada no Brasil na revista Campos 7(1), 2006.2 Partido político federal criado no início dos anos 1990 com o principal obje-tivo de defender os interesses do Québec em Ottawa, com ênfase no reconhe-cimento da identidade nacional da província. Veja especialmente o capítulo 5 desta edição.3 Veja a discussão em Cardoso de Oliveira, L. (2004) “Honra, dignidade e reciprocidade”, em Martins, P. H. & Nunes, B. F (orgs.) A nova ordem social: perspectivas da solidariedade contemporânea. Brasília: Editora Paralelo 15, 2004, pp. 122-135.4 Os termos de um acordo ou composição satisfatória sobre demandas de reconhecimento devem refletir respostas consideradas adequadas aos dilemas e questões suscitadas ao longo do processo de negociação, assim como um conteúdo plenamente compartilhado.5 Em duas intervenções públicas ainda inéditas, procuro distinguir esta noção de interesse contextual e socialmente compartilhado numa comunidade de pes-quisadores, das noções de interesse pessoal (individual) e de interesse humano, assim como desenvolvido por Habermas, e que seria constitutivo das diferentes modalidades de produção de conhecimento.6 O mesmo poderia ser dito sobre o meu trabalho de pesquisa nos EUA, cujo produto ocupa uma parte menor no livro e a pesquisa de campo foi realizada há mais tempo, nos anos 1980.7 Na medida em que qualquer interpretação antropológica implica uma fusão de horizontes, as chamadas antropologias centrais não deixam de refletir sobre o sentido do material etnográfico colhido além-mar à luz das perspectivas ou das práticas vigentes na sociedade do pesquisador. Entretanto, as visões dos grupos intelectuais locais não recebem o mesmo peso analítico, dificultando muito a instituição de um diálogo simétrico.8 Cardoso de Oliveira, L. (2009) “Dialogical and Power Differences in World Anthropologies”. Vibrant — Virtual Brazilian Anthropology. Volume 5. Número 2, pp. 73-81. Agosto a Dezembro de 2008.http://www.vibrant.org.br/downloads/v5n2_oliveira.pdf9 Cardoso de Oliveira, L. (2008) “O Material, o Simbólico e o Contra-intuitivo : uma trajetória reflexiva” (Memorial apresentado no concurso para professor titular no Departamento de Antropologia da UnB). Série Antropologia, Vol. 421.

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Brasília: Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília, 2008, pp. 7-81.http://www.unb.br/ics/dan/Serie421empdf.pdf10 Veja a formulação de Roberto Cardoso de Oliveira em “Da comparação: a propósito de Carnavais, malandros e heróis”, em L. G. Gomes, L. Barbosa e J. A. Drumond (2000) O Brasil não é para principiantes: Carnavais, malandros e heróis, 20 anos depois. Rio de Janeiro: Editora FGV, pp. 29-42.11 Cardoso de Oliveira, L. (2010) “Concepções de Igualdade e (Des)Igualdades no Brasil”, em LIMA, Roberto Kant de; EILBAUM, Lucia; PIRES, Lenin. (Org.) Conflitos, Direitos e Moralidades em Perspectiva Comparada — Volume 1. Rio de Janeiro: Garamond, pp. 19-33.12 BARBOSA, Rui. (1922/1999) Oração aos moços. Rio de Janeiro, Edições Casa Rui Barbosa, p. 26. Veja também MENDES, Regina Lúcia Teixeira. (2005) “Igualdade à brasileira: cidadania como instituto jurídico no Brasil.” In Maria Stella de Amorim,; Roberto Kant de Lima; Regina Lúcia Teixeira Mendes, (Org.) Ensaios sobre a igualdade jurídica: acesso à justiça criminal e direitos de cidadania no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris.13 Cardoso de Oliveira, L. (2011) “Concepções de Igualdade e Cidadania”. Contemporânea – Revista de Sociologia da UFSCar. São Carlos, Departamento e Programa de Pós-Graduação em Sociologia, 2011, n. 1, p. 35-48.

Introdução

Os trabalhos aqui reunidos foram todos escritos para eventos espe-cíficos e independentes, podendo ser classificados como occasional papers. Contudo, referem-se ao mesmo tema e representam o desen-volvimento de minhas reflexões sobre ele. Além do foco na relação entre as dimensões legal e moral dos direitos, os trabalhos que se seguem também se caracterizam por cultivar, sistematicamente, uma perspectiva duplamente comparativa: (1) no sentido da fusão de horizontes, onde o pesquisador coloca suas visões e pressuposi-ções em risco, ao confrontar-se com o ponto de vista nativo ou com situações novas; e, (2) no do contraste ou justaposição de contextos socioculturais diversos. Nesse sentido, se minha compreensão dos contextos etnográficos estadunidense e quebequense nunca deixou de ser mediada por minha origem brasileira, minha percepção do Brasil após longos períodos de trabalho de campo nos Estados Unidos e no Quebec também passou a ser significativamente marcada por estas experiências. Como os trabalhos foram escritos depois de meu período mais longo de pesquisa no Quebec (agosto de 1995 a janeiro de 1997) ou pouco antes de meu retorno ao Brasil, como no caso do primeiro capítulo, todos tiveram como referência um horizonte de preocupações que procurava dialogar constantemente com os três universos etnográficos abordados no livro.1

Meu primeiro esforço de articulação entre as dimensões legal e moral dos direitos foi apresentado nos artigos que publiquei em En-saios antropológicos sobre moral e ética (R. Cardoso de Oliveira & L.R. Cardoso de Oliveira, 1996), especialmente no capítulo intitulado “Entre o Justo e o Solidário: os dilemas dos direitos de cidadania no Brasil e nos EUA”. Como muitos cientistas sociais brasileiros

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que viveram nos EUA, fiquei muito impressionado, durante minha estadia naquele país, com o respeito aos direitos do indivíduo e com o valor atribuído à noção de cidadania na sociedade norte--americana. Não obstante, minha análise de disputas no âmbito do Juizado de Pequenas Causas em Cambridge, Massachusetts, indicava uma dificuldade acentuada dos atores para lidar com direitos cujo respeito (ou observação) demandava manifestações de deferência ou de solidariedade para com o interlocutor (Cardoso de Oliveira, 1989). Isto é, refiro-me às situações nas quais a falta de atenção às demandas ou percepções pessoais do interlocutor é vivida como uma negação de sua identidade de cidadão e, portanto, como um insulto inadmissível, mas de difícil fundamentação como ato ilícito que justifique reparação (capítulos 2 e 7). Ao contrastar o contexto estadunidense com questões sobre direitos de cidadania no Brasil, no artigo supracitado, chamei a atenção para a nossa dificuldade inversa, em respeitar os direitos individuais, parcialmente compensada pelo valor que atribuímos à manifestação de consideração à pessoa do interlocutor. A comparação, então, permitiu-me falar em desequilí-brio entre os princípios de justiça e solidariedade nos dois países, expresso, respectivamente, através da ênfase no respeito aos direitos do indivíduo ou na consideração à pessoa do cidadão. Ainda que este desequilíbrio tivesse se desenvolvido em direções opostas em cada país, com implicações diversas no que concerne ao acesso a direitos, sua repercussão sugeria a existência de déficits de cidadania nos dois casos. Essa comparação é retomada no primeiro capítulo do presente trabalho, através da discussão sobre a perspectiva de implantação de políticas de ação afirmativa para combater a discriminação racial no Brasil, e rearticulada no sexto capítulo, a propósito da relação entre identidades coletivas e esfera pública no Brasil e no Quebec.

O equacionamento da relação entre respeito a direitos e consi-deração à pessoa, no que concerne à cidadania, motivou a realização de pesquisas no Quebec onde, em princípio, estas duas dimensões da cidadania (ou dos direitos) deveriam se articular de maneira diferente. Sendo uma província canadense e, portanto, muito influenciada pelos

introdução 19

valores do individualismo, o Quebec é o principal ator político na crise constitucional canadense, provocada pela percepção dominante na província de que o resto-do-Canadá não reconhece sua singula-ridade cultural, renegando o valor ou mérito da identidade franco--quebequense e a importância de sua contribuição no processo de formação do país. As demandas por reconhecimento, assim como formuladas por Taylor (1994), guardam vários pontos de contato com a problemática da consideração, seja através de sua manifestação como categoria nativa no Brasil (a referência inicial de minhas pre-ocupações nesta área), ou como conceito analítico definidor de um tipo de direitos humanos associado à dignidade do cidadão (Haroche & Vatin, 1998). Nesse contexto, interpretei a falta de reconhecimento da singularidade do Quebec como um ato de desconsideração, que caracterizaria um insulto moral, o qual, apesar de passível ser iden-tificado como uma agressão, não permitiria a fundamentação das demandas por reconhecimento como um direito legal.

A desconsideração, como insulto moral, é caracterizada como um ato ou atitude que agride direitos de natureza ético-moral e perpassa minhas preocupações em todos os capítulos. Diferente-mente das agressões a direitos jurídico-legais, o insulto moral não pode ser traduzido, de imediato, em evidências materiais. Embora se trate de uma agressão à pessoa do ator efetivamente ofendido, e não se confunda com a perda eventualmente sofrida com a quebra de um contrato ou em decorrência de um ilícito civil (capítulos 2 e 7), também se distingue de uma agressão física, de caráter criminal, que sempre deixa marcas palpáveis, facilmente identificáveis e per-cebidas como tais por terceiros. Na mesma direção, quando o insulto ou desconsideração é produto da falta de reconhecimento de uma identidade autêntica, como no caso do Quebec (capítulos de 3 a 7), a agressão também pode se situar mais na atitude ou na intenção do agressor do que nas suas ações em sentido estrito. A propósito, uma das características interessantes do direito ao reconhecimento é que se, por um lado, ele pode ser definido como uma obrigação moral, por outro, não faria muito sentido transformá-lo em um direito legal

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a ser garantido pelo sistema judiciário. Não só devido às dificuldades de legitimação que a legalização de tal direito enfrentaria, em vista da precariedade dos argumentos para a fundamentação do caráter imperativo da aceitação/atribuição do valor ou mérito de uma iden-tidade ou forma de vida particular em sociedades democráticas – aglutinando grupos e tradições culturais diversas –, mas, sobretudo, devido à estrutura dialógica embutida nos atos de reconhecimento, a qual deve refletir uma atitude ou intenção genuína daquele que re-conhece. Qualquer artificialismo aqui pode ser percebido, na melhor das hipóteses, como manifestação insuficiente de reconhecimento e, na pior, como agressão enrustida. A atitude ou ato de reconhecimento perde muito de seu sentido semântico-pragmático se for percebida como o cumprimento de uma mera obrigação, sem repercussão nas convicções ou nos sentimentos do ator.

De forma correlata, como argumento a propósito do debate sobre as condições enunciadas pelo governo do Quebec para a inte-gração dos imigrantes à sociedade quebequense, no quarto capítulo, as dificuldades colocadas por noções como as de cultura pública comum (Rawls) e de patriotismo constitucional (Habermas) para a incorporação de valores substantivos específicos aos símbolos do Estado-Nação ou da unidade política abrangente, sugerem, como implicação, a alienação da consciência cívica dos atores ou cidadãos. Para que estes estabeleçam uma identidade com a nação, país ou unidade política relevante, e criem laços de pertença, é importante que se vejam representados na imagem que são capazes de construir da respectiva unidade. Aqui também, quando se fala em laços com a sociedade é difícil distinguir, do ponto de vista dos atores, entre percepção e sentimento de pertencer.

Aliás, outra característica importante da dimensão moral dos direitos está na articulação entre razão e sentimentos, que aparece em muitas de suas manifestações (capítulo 2), e às vezes parece se constituir em uma condição para a percepção destes direitos enquanto tais (capítulo 5). A relação entre moral e sentimentos nos remete di-retamente a Mauss, principal fonte de inspiração de minha análise no

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quinto capítulo: “A retórica do ressentimento e a evocação obrigatória dos sentimentos”. Procuro argumentar então que a mobilização das emoções e sentimentos dos atores, mediante a retórica do ressenti-mento desenvolvida nos discursos de Lucien Bouchard, teria sido fundamental para viabilizar a percepção das atitudes do resto-do--Canadá para com o Quebec como um insulto moral, merecedor de reparação, ampliando significativamente o número de simpatizantes à opção soberanista no referendum de 1995. Sem deixar de chamar a atenção para os perigos embutidos na mobilização das emoções em direção à ação política, em vista do caráter relativamente ambíguo dos discursos retóricos – nos quais é frequentemente difícil separar a arte de tornar uma ideia inteligível do poder de manipular a percepção dos ouvintes –, retomo a preocupação de Durkheim e Mauss com o aspecto social dos sentimentos morais, para utilizar aqui uma expres-são de Adam Smith (1759/1976). Nesse sentido, vale observar que no século XVIII, quando o livro de Smith foi originalmente publicado, o domínio dos sentimentos ainda não havia sido psicologizado como no século passado, e o autor não se sente obrigado a justificar a pre-cedência da dimensão social em sua Teoria dos Sentimentos Morais. Smith parte do princípio de que os sentimentos morais seriam, por definição, intersubjetivamente compartilhados pelos atores e, por-tanto, sua perspectiva estaria muito distante daquelas que associam os sentimentos a manifestações referidas apenas ao eu interior do sujeito, tratando-os como verdadeiras idiossincrasias.

A preocupação com os sentimentos enquanto expressão de percepções ou de representações socialmente compartilhadas, conectadas com as intuições morais dos atores, abre novas pers-pectivas para a discussão dos direitos e da cidadania. Em primeiro lugar, por permitir um acesso mais denso e amplo ao ponto de vista nativo, através do esforço em articular uma narrativa coerente das elaborações simbólicas dos atores sobre estes sentimentos à luz das experiências que lhes dão sentido. Em segundo lugar, por estimular releituras ou redefinições das próprias noções de direitos e cidadania, frequentemente circunscritas ao olhar frio e formal do jurista, ou

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reificadas em análises de comportamento político, tão ao gosto de uma certa vertente da ciência política que reduz seu objeto a dados brutos, passíveis de verificação, sem questionar as pré-definições que orientam a pesquisa, ou a visão dos atores sobre as noções e motiva-ções que orientam seu comportamento (ver Taylor, 1977: 101-131).

Essa ênfase na etnografia e no aspecto simbólico das relações sociais para repensar o universo da política, dos direitos e da cidada-nia – compartilhada com os outros volumes publicados na Coleção Antropologia da Política –, indica novas possibilidades de reflexão sobre pelo menos três outros temas clássicos abordados aqui: (1) o da igualdade, (2) o do papel ou lugar da esfera pública nas democracias contemporâneas, e (3) o da força comunicativa dos rituais na (re)definição de sentidos e relações sociais.

Sobre a igualdadeSe as demandas do Quebec por reconhecimento colocam li-

mites precisos para a concepção de igualdade como uniformidade, o contexto etnográfico estadunidense sugere que a preocupação com a igualdade no acesso a direitos corresponde a uma atitude de distanciamento ou mesmo de rejeição da diferença (racial, étnica, cultural etc.) no plano da sociabilidade – bem expressa no lema do “separate but equal” característico do período de segregação racial (Dumont, 1992b:302-316) –, enquanto no Brasil a ênfase na consi-deração e o caráter seletivo de sua manifestação estimulam práticas de discriminação cívica em uma escala muito mais ampla do que gostaríamos de acreditar.

Em vista da cristalização do vínculo entre igualdade de direitos e tratamento uniforme como um valor no Ocidente, a situação do Quebec talvez seja aquela que coloque os maiores desafios para a teoria da democracia. A dificuldade canadense em aceitar ideias como a do federalismo assimétrico, ou a demanda de tratamento distinto para a língua e cultura francesas no Quebec, formuladas como ins-trumentos de promoção de relações sociais mais equânimes no Ca-

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nadá, ilustram bem este ponto (capítulos 3, 6 e 7). Como até mesmo os quebequenses, em certas circunstâncias, encontram dificuldades para relativizar o princípio do tratamento uniforme com o objetivo de combater o insulto moral e estimular a equidade (e.g., o debate sobre a partição do Quebec mencionado no capítulo 7), a situação sugere uma dificuldade mais ampla para lidar com a legitimação de assimetrias na sociedade moderna. Mas, será que a rejeição in totum de assimetrias relativas, que resguardam a precedência do princípio de tratamento uniforme no plano dos direitos básicos da cidadania, não provocaria maior desigualdade do que a sua aceitação em contextos específicos, como sugiro no terceiro capítulo? Na mesma direção, se como assinala Berger (1983), em sociedades como a norte-americana não há instrumentos adequados para lidar com insultos à honra, que teriam sido invisibilizados, no Brasil o caráter seletivo das manifes-tações de consideração – negadas àqueles nos quais não conseguimos identificar a substância moral das pessoas dignas – atua como um filtro discricionário que estimula um padrão lastimável de desrespeito a direitos no espaço público (capítulos 1 e 6).

Além do desrespeito a direitos básicos daqueles percebidos como não sendo dignos de consideração, este filtro frequentemente tem o poder de invisibilizar a violência física ou moral perpetrada contra pessoas e grupos portadores de algum tipo de estigma na so-ciedade brasileira. Como exemplos, eu poderia citar, entre outros, (a) algumas práticas de discriminação racial (capítulo 1); (b) a falta de preocupação social com as péssimas condições de vida da população carcerária; (c) a dificuldade de percepção da gravidade dos atos de violência contra homossexuais – no que concerne à quantidade e à intensidade destes atos –, assim como expressa nos debates em torno da redação do Programa Nacional de Direitos Humanos (ver Silva, 2000:84-98); e, (d) a triste constatação de que a violência cometida contra o índio Galdino, queimado vivo por adolescentes em um ban-co de ponto de ônibus em Brasília, só teve repercussão e culminou com a condenação dos culpados porque se tratava de um índio. Se a vítima fosse apenas um mendigo, provavelmente teria sido notícia

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por poucos dias e não teria mobilizado a opinião pública contra o crime. Os vários casos de mendigos que tiveram fogo ateado a seus corpos em diferentes pontos do país, e em condições muito seme-lhantes às de Galdino, noticiados sem alarde pela imprensa e sem qualquer desdobramento nos meses que se seguiram, dão suporte a esta interpretação. Aliás, não me surpreenderia se alguns destes casos não tivessem sequer sido notícia.

O lugar da esfera públicaNa medida em que a problemática do reconhecimento e da

consideração privilegia a articulação entre a discussão sobre direitos e o exercício da cidadania na vida cotidiana, seu equacionamento sugere uma distinção importante entre esfera pública e espaço público nas sociedades modernas. Isto é, se tomarmos a primeira “como o universo discursivo onde normas, projetos e concepções de mundo são publicizadas e estão sujeitas ao exame ou debate público”, e o segundo “como o campo de relações situadas fora do contexto doméstico ou da intimidade onde as interações sociais efetivamente têm lugar” (ver nota 3 do capítulo 6, adiante). Como indiquei acima, tanto o reconhecimento ou a consideração, como o seu inverso, o insulto moral, se expressam com maior nitidez no plano das atitudes ou das intenções do que no plano das ações em sentido estrito. Desse modo, as demandas por reconhecimento não podem ser totalmente contempladas no plano da definição de normas, leis ou regras para a orientação da ação dos atores, as quais são debatidas e eventual-mente sancionadas no âmbito da esfera pública. Há uma dimensão importante do reconhecimento e da consideração cuja efetivação requer uma dramatização, a qual, em princípio, teria lugar no espaço público ou no plano das interações.

Se em toda e qualquer sociedade democrática contemporânea é razoável supor uma certa autonomia ou mesmo dissintonia entre esfera e espaço públicos, correlatas à diferença entre orientação normativa e a ação propriamente dita, aparentemente no Brasil ha-

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veria uma grande desarticulação entre estas duas dimensões da vida social. Ou seja, ao mesmo tempo que se verifica uma grande hege-monia dos valores do liberalismo na esfera pública – pelo menos no que concerne à ideia da igualdade de direitos –, no plano do espaço público ou das interações cotidianas entre os atores a perspectiva hierárquica parece ter precedência. Essa desarticulação foi temati-zada de maneira particularmente feliz por Kant de Lima (1995) em sua importante etnografia sobre práticas policiais no Rio de Janeiro, tendo como referência as contribuições de DaMatta (1979; 1991) sobre a existência de duas lógicas ou eixos classificatórios no Brasil.2 Kant de Lima fala no “paradoxo legal brasileiro”, para equacionar a relação entre princípios constitucionais liberais, igualitários, de um lado, e um sistema judicial hierárquico associado a práticas policiais discricionárias, de outro. Como assinala o autor, este paradoxo é particularmente perverso em relação à população de baixa renda, sempre sujeita à suspeição e interpelação policial (Kant de Lima, 1995: 56-63).

Creio que o paradoxo apontado por Kant de Lima em relação ao sistema legal brasileiro reflete uma desarticulação mais ampla entre esfera e espaço públicos, a qual seria a principal responsável pelo déficit de cidadania no Brasil. Nesse sentido, como sugiro no sexto capítulo, práticas de discriminação cívica fazem parte do cotidiano dos atores em quase todo o espectro de relações que têm lugar no espaço público. Uma característica importante deste tipo de agressão é que ele sempre envolve um insulto moral, que precede o desres-peito ao direito legal da vítima. Isto é, trata-se de uma agressão que supõe a (des)classificação da vítima no plano ético-moral a partir da identidade que lhe atribuímos. Se é verdade que no Brasil há sempre espaço para (re)negociar a identidade e reverter uma situação desfavorável no espaço público – quaisquer que sejam a origem e as características sociais do ator –, o fato de a discriminação cívica se apresentar normalmente de maneira indireta traz dificuldades substanciais para o seu combate: seja porque o agressor esconde o preconceito que motiva a discriminação, disfarçando a agressão e

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tornando-a de difícil apreensão para a própria vítima, seja porque a discriminação acontece como decorrência de um ato que visa favo-recer a um amigo, e o insulto assume um caráter mais difuso, onde aqueles que tiveram seus direitos desrespeitados não constituiriam o alvo do agressor. Em qualquer hipótese, o aspecto mais impressio-nante da discriminação cívica entre nós é que, com frequência, ela é perpetrada por atores que, no plano da esfera pública, defendem genuinamente, e com convicção, a igualdade de direitos entre os cidadãos independentemente de raça ou etnia, renda, credo, gênero e orientação sexual.

A força dos rituaisFinalmente, a dimensão do reconhecimento ou da consideração,

cuja comunicação demanda uma performance ou dramatização, traz à tona a questão da força dos rituais na produção de sentidos e na de-finição de relações sociais. Além de tema clássico da antropologia, os rituais constituem, ao lado das representações e da violência, uma das principais linhas de pesquisa do Núcleo de Antropologia da Política (NuAP), que acaba de publicar uma coletânea a respeito (Peirano, 2002) – à qual remeto o leitor –, onde estes e outros aspectos dos rituais são amplamente discutidos. Desse modo, gostaria apenas de salientar dois aspectos dos rituais mais diretamente associados aos artigos que se seguem.

Em primeiro lugar, no plano das interações face a face, onde as manifestações de consideração e reconhecimento têm lugar na vida cotidiana, os atos rituais que as transmitem envolvem sempre uma performance na qual o desempenho específico dos atores é (quase) automaticamente examinado pelo interlocutor e deve articular forma e conteúdo de maneira adequada para produzir o efeito socialmente esperado. Isto é, a apreciação do valor ou mérito da pessoa que re-cebe a manifestação não pode ser colocada em dúvida, e qualquer descompasso aqui pode inviabilizar os objetivos do ator. Tal quadro aponta para a importância de uma sociologia da etiqueta, como por

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exemplo em Elias (1978; 1982) ou Ribeiro (1983), não apenas para melhor compreender as normas e valores que informam as relações sociais em um determinado contexto etnográfico, mas também para analisar e melhor apreender processos de negociação, renovação, ou de eventual transformação de relações sociais e identidades especí-ficas. Como sugere a interessante etnografia de Lea Tomaz (2001) sobre a precedência nas relações diplomáticas, a correta manipulação da etiqueta é um aspecto central nessas relações, e sua dramatização é rica na produção de sentidos.

O segundo aspecto que eu gostaria de abordar em relação ao caráter produtivo dos rituais diz respeito ao potencial de elaboração simbólica de certos eventos etnográficos (Peirano, 2002). Como indi-quei acima, falando sobre minha análise da retórica do ressentimento no quinto capítulo, nos comícios políticos em que enunciou os dis-cursos selecionados para a análise, Bouchard teria conseguido evocar sentimentos que viabilizaram a percepção dos atos de desconsidera-ção atribuídos ao resto-do-Canadá como um insulto moral. Embora não tenha trazido fatos novos ou interpretações mais sofisticadas à consideração pública, os discursos de Bouchard recontextualizam os atos questionados, possibilitando uma releitura cognitivamente mais fecunda das imagens elencadas à luz da experiência recente dos atores no âmbito do diálogo travado com Ottawa. Ao evocar os sentimentos dos atores em seus comícios, fazendo com que acon-tecimentos críticos do passado sejam (simbolicamente) revividos e reinterpretados em grupo, Bouchard consegue não apenas jogar luz sobre um aspecto importante da relação do Quebec com o resto-do--Canadá, mas faz com que o sentido daí advindo seja internalizado e integrado à experiência dos atores em outro patamar.

Nesse sentido, para citar um exemplo mais próximo, creio que a Marcha Nacional por Reforma Agrária, Emprego e Justiça, protagoni-zada pelos sem-terra, de 17 de fevereiro a 17 de abril de 1997, teve um efeito similar. A Marcha foi analisada com perspicácia e criatividade por Chaves (2000; 2002), que faz um relato instigante do evento. Como assinala a autora, até chegar em Brasília, saindo de três pontos

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do Brasil, a peregrinação dos sem-terra foi angariando suporte por onde passava, culminando com uma enorme demonstração de apoio e solidariedade da sociedade, articulada com as várias manifestações que tiveram lugar na esplanada dos ministérios no dia 17 de abril. Além do suporte para as principais bandeiras do movimento, a Marcha teria provocado a identificação popular com a crítica às desigualdades sociais no país (Chaves, 2002:145), o que me pareceu o principal êxito político do evento. Apesar de as críticas às desigualdades e injustiças sociais no Brasil constituírem um tema recorrente entre políticos, cientistas sociais e intelectuais de uma maneira geral, não trazendo portanto nenhuma novidade enquanto diagnóstico, a intensidade do evento, em grande medida compartilhada pela sociedade mais ampla que acompanhava a chegada triunfal da Marcha com interesse e emo-ção, fez com que o problema da desigualdade fosse, nesse momento, “vivido” e interpretado não apenas como um fato a lamentar, mas como uma situação inaceitável que demandava medidas e atitudes. Aqui também, os sentidos reproduzidos e recriados no evento são percebidos e internalizados em outro patamar.

Essa capacidade de elaboração simbólica embutida em eventos etnográficos como os mencionados acima, sugere possibilidades de comunicação e de redefinição de significados dificilmente con-templadas no plano discursivo ou argumentativo em sentido estrito. Desse modo, será que a valorização, recriação ou instituição de ritos cívicos – de civilidade democrática – que tematizem o valor moral da igualdade no plano dos direitos básicos da cidadania não pode-riam estimular uma melhor articulação entre esfera pública e espaço público no Brasil, diminuindo, e idealmente até mesmo eliminando, as experiências de discriminação cívica que tanto contribuem para o agravamento das desigualdades entre nós?

Interlocução das ideias e contexto institucionalAlém das referências listadas no final do livro, o desenvolvi-

mento das ideias e interpretações reunidas aqui contou com a cola-

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boração de vários colegas, amigos e instituições a quem sou grato. Desde 1987 estou no Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília, onde sempre encontrei boas condições de trabalho e de interlocução com os colegas. Mariza Peirano, Carla Teixeira e Wil-son Trajano foram interlocutores particularmente próximos durante a produção dos trabalhos que se seguem. Compartilho com Mariza e Carla as atividades no grupo de pesquisa Formas Elementares da Política: Rituais, Conflitos e Identidades, que aglutina os pesquisa-dores de Brasília associados ao NuAP. O grupo reúne um número expressivo de alunos – dos três níveis de formação – e a oportuni-dade de discutir versões preliminares da maioria desses trabalhos em nossos seminários contribuiu muito para o aprimoramento de meus argumentos. Na mesma direção, agradeço também nos nomes de Moacir Palmeira, coordenador geral do NuAP, e César Barreira, coordenador do NuAP em Fortaleza, as contribuições dos colegas do Rio de Janeiro e do Ceará.

No início de minhas reflexões sobre o tema deste livro, participei ativamente de um grupo de estudos multidisciplinar que reunia docen-tes de vários departamentos da UnB. O grupo funcionou regularmente entre 1992 e 1995, tendo como foco a relação entre democracia e cidadania, e chegou a promover vários eventos na Universidade. As leituras realizadas então, assim como os seminários e palestras promovidos pelo grupo, foram importantes no direcionamento de minhas indagações. Apesar de o grupo ter-se desfeito, enquanto tal, após este período, nunca deixei de manter um contato relativamente próximo com seu núcleo fundador: Caetano Araújo, Jessé Souza e Marcus Faro de Castro, aos quais se juntaram Maria Francisca P. Coelho e Eurico Santos pouco tempo depois. Caetano foi meu colega durante o curso de graduação, nos anos 70, e tem sido um interlocutor privilegiado desde então. Da mesma forma, comecei a dialogar com Marcus sobre direito e cidadania nos anos 80, quando fomos contemporâneos durante o doutorado em Harvard.

A passagem pela Universidade de Montréal, na qualidade de chercheur invité, teve um papel marcante na construção de minha

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visão sobre o Quebec e a problemática do reconhecimento. Lá encon-trei excelentes condições de trabalho e de diálogo com os colegas. Louise Paradis, diretora do Departamento de Antropologia à época, revelou-se uma grande anfitriã e me emprestou seu escritório durante todo o período. Nesse contexto, acabei aceitando o convite de Gilles Bibeau para dividir com ele o seminário de doutorado, no qual nos reuníamos com os alunos de duas em duas semanas. Embora fosse um seminário sobre teoria antropológica, tive oportunidade de expor meus interesses de pesquisa no Quebec, e o contato com os alunos permitiu uma integração mais abrangente à vida universitária na província. Ao lado de Louise e Gilles, Deirdre Meintel, Guy Lanoue, Mariella Pandolfi, Michel Verdon, Pierre Beaucage, e Robert Crepeau me introduziram à hospitalidade montrealense, e não se furtaram a expor suas visões diversas sobre a crise constitucional canadense, objeto de minha pesquisa. Guy e Robert eram companheiros de dis-cussão diária e é difícil avaliar adequadamente a extensão de suas contribuições para o desenvolvimento do meu trabalho. A partir de 1999 Claude Bariteau, da Université Laval, se tornou um interlocutor importante. Ainda no Quebec, pude retomar o contato com Bruno Zero, que havia sido meu colega no curso de graduação em Brasília, e que está há anos radicado em Montreal. Os diálogos com ele e sua mulher, Lucie Dumais, também iluminaram minha compreensão da perspectiva quebequense sobre a relação com o resto-do-Canadá. De volta ao Brasil, Yves Chaloult, colega do Departamento de Sociologia da UnB, tornou-se uma de minhas principais fontes de interlocução sobre o Quebec.

Durante mais ou menos um ano e meio, entre 1999 e 2001, fiz parte de um grupo de estudos sobre Freud, coordenado pela psicana-lista Patrícia Rabello, e essa experiência contribuiu significativamente para o desenvolvimento de meu interesse sobre a relação entre razão e sentimentos, conforme indicado acima. Além da coordenadora, gostaria de agradecer também aos demais membros do grupo pela disponibilidade para o diálogo: Beatriz Maria de Oliveira, Eliana Cunha Machado, Jô Cardoso de Oliviera, Paulo Mata Machado e

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Vitor Machado. Com Jô, mantenho uma relação de cumplicidade englobadora há mais de 25 anos, e compartilhei com ela todas as etapas das pesquisas que deram origem ao livro. Jô sempre atuou como antropóloga fora da academia, fazendo com que nossa troca de experiências e perspectivas no campo enriquecessem muito minha percepção dos fenômenos estudados.

Luiz Eduardo Soares tem sido um interlocutor importante sobre antropologia, política, e direitos humanos desde o final dos anos 70, e nossos diálogos tiveram uma repercussão significativa nas ideias desenvolvidas aqui. Sou grato também às discussões com os alunos – de graduação e pós-graduação – que tive oportunidade de orientar nos últimos anos, assim como àqueles com os quais debati o tema do livro no âmbito dos cursos e seminários que tenho oferecido na UnB.

Não poderia deixar de fazer um agradecimento especial a Ro-berto Cardoso de Oliveira, meu pai e colega de profissão, que leu e discutiu comigo todos os trabalhos incluídos no livro. Ao longo de toda a minha formação, sua obra e conduta acadêmicas têm sido, para mim, fonte de inspiração permanente. Nos últimos anos, tenho me beneficiado da confluência de interesses e do fato de termos voltado a morar na mesma cidade, para explorar mais a troca de ideias com ele.

Várias instituições têm apoiado financeiramente minhas pesqui-sas. Desde 1991 conto com uma bolsa de produtividade do CNPq, que tem representado um apoio inestimável às minhas atividades de pesquisa. Aliás, o CNPq já havia financiado meu doutorado nos EUA, nos anos 80, quando colhi parte dos dados explorados aqui. A primeira viagem de pesquisa ao Quebec, em julho/agosto de 1994, foi patrocinada pelo “Faculty Enrichment Program” do Internatio-nal Council of Canadian Studies (ICCS), do governo canadense. Em agosto de 1995 voltei a Montreal, onde permaneci até janeiro de 1997 com uma bolsa de pós-doutorado da Capes. Finalmente, o Pronex-CNPq financiou meu último período de pesquisa no Quebec, em fevereiro/março de 1998.

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A origem dos capítulosTodos os trabalhos incluídos no livro foram originalmente

produzidos para eventos específicos e, com exceção dos três últi-mos, foram publicados previamente em revistas acadêmicas ou em coletâneas temáticas. Para esta edição foram feitas apenas pequenas modificações para harmonizar o discurso entre os ensaios. Abaixo, dou a referência do contexto de produção de cada capítulo.

Capítulo I: “Ação afirmativa e equidade”. Trabalho apresentado no seminário internacional Multiculturalismo e Racismo: O Papel da Ação Afirmativa nos Estados Democráticos Contemporâneos, reali-zado em Brasília entre os dias 2 e 4 de julho de 1996, e publicado no volume relativo ao evento (Cardoso de Oliveira, 1997). Agradeço o convite de Jessé Souza para participar do seminário.

Capítulo II: “Legalidade e eticidade nas pequenas causas”. En-saio produzido para um número especial da Revista Tempo Brasileiro, em homenagem aos 70 anos de Jürgen Habermas. A publicação foi organizada por Barbara Freitag, a quem agradeço o convite para participar do empreendimento (Cardoso de Oliveira, 1999d).

Capítulo III: “Democracia, hierarquia e cultura no Quebec”. Uma versão preliminar deste texto foi apresentada no âmbito do seminário temático Liberalismo e Comunitarismo: O Que Este Debate Tem a Ver com o Brasil?, durante o XXI Encontro Anual da Anpocs, realizado entre 21 e 25 de outubro de 1997. Agradeço aqui aos comentários dos dois pareceristas anônimos que apreciaram o texto para a Dados, onde foi originalmente publicado (Cardoso de Oliveira, 1999a).

Capítulo IV: “Comunidade política e cultura pública no Quebec”. Uma versão preliminar deste trabalho foi apresentada no Seminário Internacional Max Weber, realizado entre 22 e 27 de setembro de 1997 na Universidade de Brasília, sob o título: “Comunidades políticas e os limites do racionalismo ocidental”. O texto aqui reproduzido saiu originalmente em Estudos Históricos (Cardoso de Oliviera, 1999b). Gostaria de agradecer os comentários de Roberto Cardoso

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de Oliveira, lembrando que o argumento aqui desenvolvido é de responsabilidade exclusivamente minha.

Capítulo V: “A retórica do ressentimento e a evocação obri-gatória dos sentimentos”. Uma versão preliminar deste artigo foi apresentada no Grupo de Trabalho 17, “Rituais, representações e violência na política”, durante o XXII Encontro Anual da Anpocs, em 1998. Essa versão foi divulgada na Série Antropologia nº 250, com o título “A retórica do ressentimento e as demandas de reco-nhecimento” (Cardoso de Oliveira, 1999c). Agradeço os comentários de Yves Chaloult que, no entanto, não é responsável pelos eventuais problemas interpretativos do texto.

Capítulo VI: “Direitos republicanos, identidades coletivas e esfera pública no Brasil e no Quebec”. Uma versão preliminar e significativamente diferente deste artigo foi apresentada em duas comunicações realizadas durante a Amerikakonferenz, em Erfurt (Alemanha), entre 12 e 16 de dezembro de 1998, no Max-Weber--Kollege für Kultur und Sozialwissenschaftliche Studien. Esta versão foi divulgada em 1999 na Série Antropologia 259, da UnB, com o título “Republican Rights and Nationalism: collective identities and citizenship in Brazil and Quebec”. Uma outra versão da segunda parte encontra-se atualmente no prelo: “Collective identities and ci-tizenship in Quebec”, em L. Roniger & C. Waisman (orgs.) Globality and Multiple Modernities: comparative North American and Latin American perspectives. Sussex: Sussex Academic Press. Gostaria de agradecer a Samuel Eisenstadt, Wolfgang Schluchter e Luis Roniger pelo convite para participar da conferência em Erfurt. Sou grato a Roberto Cardoso de Oliveira, Yves Chaloult, Bruce Grant, Benício Schmidt e a Stephen Baines pelos comentários à versão original do texto. Agradeço também aos colegas do Núcleo de Antropologia da Política, com quem tive oportunidade de discutir uma versão preli-minar deste ensaio em um seminário promovido pelo NuAP/Pronex no Departamento de Antropologia da UnB, em 29 de junho de 1999.

Capítulo VII: “Individualismo, identidades coletivas e cidadania: os Estados Unidos e o Quebec vistos do Brasil”. Uma versão prelimi-

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nar deste trabalho foi apresentada no Primer Congreso Internacional de Especialistas Latinoamericanos en Estudios sobre Estados Unidos y Canadá, realizado nos dias 25 e 26 de novembro de 1999, na Cidade do México. Esta versão deverá ser publicada no México, em uma coletânea relativa ao congresso.

Notas1 Além dos 5 anos e 3 meses (novembro de 1981 a janeiro de 1987) vividos nos EUA durante a realização de meu doutorado, dentre os quais 21 meses foram dedicados à pesquisa de campo, passei todo o ano de 1971 em Cambridge, Massachusetts, onde cursei a última série do High School. Embora tenha vivido menos tempo em Quebec, meus três períodos de trabalho de campo totalizam 19 meses.2 DaMatta fala nas lógicas da casa e da rua, chamando a atenção para a im-portância da relação entre elas na sociedade brasileira (DaMatta, 1991). Esta dicotomia tem vários pontos de intersecção com a proposta de distinção entre esfera e espaço públicos, tendo sido uma das fontes de inspiração para minhas reflexões. Entretanto, enquanto DaMatta enfatiza a relação entre dois eixos classificatórios, estou tematizando a (des)articulação entre o plano das definições normativas e o das interações sociais propriamente ditas.

Capítulo I

Ação afirmativa e equidade

Quando se fala em ação afirmativa como política social coloca-se em questão, imediatamente, a relação entre dois princípios caros aos Estados democráticos contemporâneos, quais sejam, o princípio de equidade e o do respeito aos direitos individuais. Tais direitos estariam sendo relativizados, pois, para garantir a igualdade de acesso aos direitos da cidadania ou um tratamento equânime para todos os cidadãos, o Estado se vê impelido a valorizar, em situações específicas, a pertença dos cidadãos a grupos ou segmentos sociais determinados, normalmente às chamadas minorias sociais. Ao dar prioridade a este pertencer, ainda que apenas em certas circunstâncias, o Estado institucionaliza o reconhecimento de direitos coletivos, os quais são frequentemente vistos pelo liberalismo – enquanto filosofia fundadora das democracias modernas dignas deste nome – como uma ameaça aos direitos do indivíduo/cidadão e à equidade. Assim, a qua-se permanente discussão sobre as questões de equidade relacionadas à execução do programa de affirmative action nos Estados Unidos (Rosenfeld, 1991), ou o debate em torno da legislação linguística no Quebec (Taylor, 1994; Kymlicka, 1995), seriam bons exemplos das dificuldades de articulação entre direitos coletivos e individuais nas democracias modernas.

Nesse sentido, o processo de implantação dos programas de ação afirmativa nos EUA é particularmente interessante na medida em que, ao contrário da situação quebequense, a Suprema Corte do país teve um papel determinante na defesa dos referidos programas,1 isto é, o processo de institucionalização do sistema de “paridade

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estatística” (Glazer, 1975:197) entre os grupos étnicos/raciais no mercado de trabalho e no acesso à educação – o qual prioriza o per-tencer ao grupo em oposição à competência do indivíduo em sentido estrito – foi sistematicamente defendido pela Suprema Corte norte--americana (Glazer, 1975:196-221). Esse percurso é particularmente significativo se levarmos em conta que, além dos Tribunais Superiores terem se transformado nos grandes baluartes de defesa dos direitos individuais em todos os Estados democráticos modernos, os EUA têm sido frequentemente apontados como exemplo paradigmático do tipo de democracia na qual os direitos do indivíduo tendem a ter precedência quase absoluta sobre direitos coletivos ou mesmo sobre a vontade da maioria.2

Segundo Glazer, o suporte da Suprema Corte norte-americana aos programas de ação afirmativa, todas as vezes em que estes tiveram sua legitimidade questionada, foi sempre balizado na identificação de “discriminação inconstitucional” ou de segregação, contra a qual os programas em questão eram sancionados como “remédio apro-priado” (Glazer, 1975:217). Ou seja, como uma maneira de garantir um tratamento mais equânime no presente e como compensação à discriminação sofrida no passado pelos membros dos grupos bene-ficiados. De certa forma, os direitos coletivos assim estabelecidos estariam sendo sancionados para impedir a discriminação contra os indivíduos pertencentes às referidas minorias. Nesse contexto, Rosenfeld (1991:4) assinala que argumentos em defesa da ação afir-mativa que sejam articulados a partir da ideia de direitos de grupo em sentido estrito tornam-se inaceitáveis. De fato, a implantação dos programas de ação afirmativa deve ser entendida como a segunda etapa do embate jurídico-político que desembocou no processo de integração racial nas escolas no sul dos EUA. Assim como este úl-timo teve como foco o questionamento da inconsistência da política de segregação sem discriminação, sob o lema bastante significativo do “separate but equal” (separados mas iguais), a política de ação afirmativa também é apresentada como o instrumento apropriado para garantir, efetivamente, o ideal de proteção igual perante a lei

ação afirmativa e equidade 37

para todos os cidadãos, prevista na 14ª Emenda à Constituição norte--americana.

Tal interpretação parece adequada, ainda que o debate filosó-fico-constitucional sobre a questão da equidade tenha se mantido aceso (Rosenfeld, 1991), e que sua validade seja por vezes questio-nada por argumentos conservadores mal equacionados (Herrnstein & Murray, 1996), ou por análises sociológicas que não deixam de ter algum fundamento, como no caso da crítica de Glazer (1975). De fato, as críticas recentes de Herrnstein & Murray (1996) pecam pela defesa de um princípio estreito e preconceituoso de equidade (fairness), construído a partir da análise comparativa do desempenho de negros, asiáticos e brancos em testes de QI, a qual revelaria uma super-representação dos primeiros em posições de elite – universidades e empregos de colarinho branco – em vista do potencial intelectual relativo do grupo. Por outro lado, se é difícil concordar com a afirmação de Glazer de que o sistema de cotas étnicas/raciais não teve maior significado na melhoria econômica/ocupacional dos negros norte-americanos – pois esta teria ocorrido antes da implantação do referido sistema (Glazer, 1975:219) –, suas críticas à rigidez do sistema, e às distorções que este pode provo-car em relação à atualização do princípio de equidade de direitos, parecem razoáveis.3 Aliás, creio que parte dos exageros cometi-dos pelos defensores da political correctness – quando negam, a priori, a legitimidade de qualquer julgamento de valor –, ou das demandas mais radicais de uma representação mais forte do caráter multicultural da sociedade norte-americana no core curriculum dos cursos de graduação (quando sugerem que obras de todas as etnias devem estar presentes, simplesmente por uma questão de direito das minorias a tratamento igual ou uniforme), podem ser entendi-dos como um reflexo dos problemas apontados por Glazer. Taylor (1994: 65) chega a mencionar o esforço de escolas secundárias que procuram desenvolver um currículo afro-centrado para alunos negros, sem refletir adequadamente sobre o problema da integração destes alunos na sociedade mais ampla.

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De qualquer forma, esta seria, em linhas gerais, uma dimensão importante do debate sobre equidade e ação afirmativa nos EUA, uma sociedade que, como todos sabemos, está profundamente marcada por uma forte ideologia individualista e pela preocupação – culturalmente motivada e socialmente internalizada – com o respeito aos direitos do indivíduo/cidadão. A propósito, Rosenfeld (1991: 2) chama a atenção para o fato de que uma característica marcante do debate nos EUA é que “os mais ardentes advogados da ação afirmativa, assim como seus mais veementes inimigos, proclamam sua lealdade ao ideal de igualdade” entre os indivíduos ou cidadãos. O que, como vimos, também não deixa de ser uma característica dos defensores da polí-tica de segregação, bem expressa no lema do “separate but equal”.

Em outra oportunidade (Cardoso de Oliveira, 1996c), chamei a atenção para os perigos dos excessos da perspectiva norte-americana que, ao absolutizar a legitimidade de certas demandas e atitudes individuais, acabaria tendo dificuldades em reconhecer determina-dos direitos importantes para os atores. Em uma comparação com o Brasil, atribuí o problema a um desequilíbrio entre os princípios de justiça e solidariedade na ideologia/sociedade norte-americana, o qual poderia ser detectado na dificuldade dos norte-americanos em manifestar expressões de consideração à pessoa de seus interlocutores e, portanto, à dignidade de seus concidadãos. Nas interações em que o reconhecimento (mútuo) da dignidade dos atores se constituísse em uma dimensão importante dos direitos envolvidos, estes seriam raramente respeitados, o que caracterizaria um certo déficit de cida-dania. Indiquei então que o reconhecimento da dignidade demanda um mínimo de atenção à identidade substantiva do interlocutor, pois esta se constitui em uma característica inalienável dos atores sociais como sujeitos. O não reconhecimento dessa identidade implicaria uma afirmação – absolutamente insustentável – de inferioridade do interlocutor envolvido na interação, na medida em que aspectos importantes de sua perspectiva ou ponto de vista estariam sendo a priori – e arbitrariamente – excluídos da discussão ou da atenção da outra parte/cidadão.4 Em última instância, seriam exatamente

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estes aspectos que marcariam (de forma radical) a diferença entre “coisas”/”objetos” de um lado, e “pessoas”/”seres humanos” de outro.

Nesse sentido, no Brasil, encontraríamos um déficit em direção oposta, o qual seria muito mais grave que o norte-americano, por representar um universo de situações ou de relações muito mais amplo, no qual os direitos de cidadania não seriam respeitados. Ar-gumentei, então, que a preocupação dos brasileiros com a manifes-tação de consideração à pessoa acabava provocando uma dificuldade inversamente proporcional no que concerne ao respeito dos direitos de seus concidadãos. Isto é, a ênfase na dimensão substantiva da identidade dos atores – portadora da substância moral característica das pessoas dignas – favoreceria a pessoalização das relações face a face com aqueles atores com os quais conseguimos estabelecer um vínculo de empatia e perante os quais somos motivados a mani-festar um sentimento de solidariedade – simbólica –, em oposição aos indivíduos frente aos quais nos situamos de maneira mais dis-tante e com quem estabelecemos relações estritamente formais ou abstratas – quando a relação não é mediada por um contato pessoal ou quando não conseguimos atribuir uma referência substantiva ao nosso interlocutor. No último caso, a dificuldade em reconhecer a dimensão moral da identidade de nosso interlocutor significaria a negação de sua dignidade e, portanto, uma dificuldade em tratá-lo como um igual; em outras palavras, como alguém que seja igualmente merecedor do tratamento pessoalizado dispensado às pessoas morais. Pois, enquanto nos EUA a dificuldade dos atores em atentar para a identidade substantiva de seus interlocutores – ou para a dignidade da pessoa do cidadão – nas interações face a face não impediria a manifestação do respeito aos direitos básicos dos cidadãos – na me-dida em que estes são motivados a se tratar como iguais – no Brasil, o não-reconhecimento da dignidade tem tido, normalmente, como implicação, a negação desses direitos.

É por esta razão que identifiquei, no caso brasileiro, uma con-taminação indesejável da noção de dignidade pela ideia de honra. De acordo com a distinção proposta por Berger (1983), e acionada

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por Taylor (1994) na discussão sobre cidadania e modelos de demo-cracia – que chama a atenção para o caráter universalista da noção de dignidade, que, em princípio, pode ser compartilhada por todos os cidadãos, em oposição ao caráter exclusivista da noção de honra, que só faz sentido quando utilizada para distinguir e singularizar as pessoas –, assinalei que essa contaminação da noção de dignidade no Brasil seria um forte motivador para o estabelecimento de relações iníquas, onde – no plano das práticas sociais cotidianas, e às vezes na formalização legal de condições sociais diferenciadas – haveria uma tendência à discriminação entre dois tipos de cidadão.5 Tais práticas caracterizariam a existência de uma área de interseção excessiva entre os campos semânticos das noções de direito e privilégio, assim como das noções de público e privado, provocando uma valorização cultural da obtenção de privilégios, em detrimento dos direitos, e uma motivação sistemática ao esforço de privatização do espaço público. Por outro lado, ainda de acordo com Berger, em sociedades como os EUA a impossibilidade de processar alguém por insulto – moral –, em vista da dificuldade de caracterizar esse tipo de ação como uma agressão a direitos, teria feito com que os constrangimentos hierar-quizantes da noção de honra só tivessem sido superados às custas do esvaziamento da noção de dignidade (Berger, 1983:172-181). Pois foi exatamente com referência a situações desse tipo que achei apro-priado falar na existência de um certo déficit de cidadania nos EUA.

Nesse sentido, passo a tecer alguns comentários sobre as perspectivas de implantação de um programa de ação afirmativa no Brasil à luz dessa comparação com os EUA, e sobre as relações entre os princípios de justiça e solidariedade, assim como entre as noções de indivíduo, pessoa, direitos, e dignidade.

Em primeiro lugar, gostaria de enfatizar que se, conforme expli-citado anteriormente, um dos principais problemas da preocupação com a manifestação da consideração à pessoa no Brasil está na nossa dificuldade em respeitar os direitos daqueles que não conseguimos situar imediatamente no plano da dignidade, e na nossa facilidade em transformar direitos em privilégios – ao fazermos demandas que

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supõem uma auto-atribuição de distinção não universalizável ou justificável –, creio que os cidadãos afro-brasileiros estariam entre os mais prejudicados pela situação de iniquidade daí advinda. Nes-se sentido, as estatísticas sobre a presença de negros na população carcerária – da qual, segundo reportagem do Jornal do Brasil, estes constituiriam cerca de 95% dos internos –, ou sua baixa representação nas universidades e nos chamados empregos de elite, são dados que falam por si mesmos. Nem mesmo a alta incidência dos negros entre a população de baixa instrução e baixa renda disfarçaria essa incrível desproporção de seus representantes nas prisões, dando a impressão de que se trataria simplesmente de uma questão de classe social. A rigor, essa característica só agravaria a suspeição em relação à desigualdade de oportunidades a que os negros estão sujeitos, assim como ao desrespeito de seus direitos no Brasil.

Embora o mito da integração ou da “democracia” racial no Brasil venha sendo sistematicamente criticado pela literatura sociológica nos últimos quarenta ou cinquenta anos, na qual a insuficiência ou inadequação da ideia do “preconceito de classe” para a compreen-são da condição dos negros no país têm sido apontadas por vários autores, gostaria de chamar atenção aqui para a interpretação de Oracy Nogueira em seu hoje clássico “Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem” (1954/1985). Além de propor algu-mas ideias interessantes para a compreensão das diferenças entre a condição da população de origem africana no Brasil e nos EUA, sua utilização da noção de preconceito de marca se articula bem com a problemática da consideração à pessoa e do reconhecimento da dignidade que esbocei acima.

Segundo Nogueira, enquanto nos EUA a classificação e a con-sequente discriminação dos negros teriam como foco a ancestrali-dade dos atores – na qual alguém com até 1/8 de sangue de origem africana seria considerado negro –, no Brasil, os sinais diacríticos como a cor da pele e o tipo de cabelo é que seriam determinantes. Isto é, enquanto nos EUA uma pessoa de pele branca e traços euro-peus, mas que tivesse um avô negro, seria ainda classificada como

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negra, no Brasil a mesma pessoa seria definitivamente considerada como branca. Da mesma forma, o problema da discriminação aqui seria muito mais sutil e menos grave. Não só porque após a abolição da escravatura no Brasil nunca houve apartheid e a discriminação nunca foi legal, mas também porque o preconceito de marca ou de cor seria mais ambíguo, menos definitivo e, portanto, menos contundente que a discriminação racial em stricto sensu.

De fato, se tal interpretação me parece razoável quando tomamos como ponto de referência a situação do apartheid nos EUA, prevale-cente até o início dos anos 60, tenho minhas dúvidas se o preconceito de cor no Brasil seria menos danoso do que a discriminação racial nos EUA no período posterior à conquista dos direitos civis dos negros americanos. Não só porque a legislação antidiscriminação no Brasil nunca foi muito efetiva na punição dos faltosos – até onde eu saiba, são raríssimos os casos de condenação por discriminação –, mas, sobretudo, porque o que talvez pudéssemos chamar de dis-criminação indireta, dominante no Brasil, constitua um padrão cujo impacto é normalmente subestimado. Enquanto a discriminação direta seria de fácil caracterização, quando, por exemplo, proíbe-se a entrada de uma pessoa em um clube por causa da cor de sua pele, a discriminação indireta pode ser imperceptível mesmo aos olhos de quem está sendo discriminado, como no caso de processos de seleção para empregos centrados no desempenho do candidato em uma entrevista, em que o balizamento da avaliação de competência tem alguma flexibilidade, e o candidato que foi eliminado em vista de sua negritude fica com a impressão de que passou por um processo absolutamente normal e equânime. É bom lembrar que, entre esses dois tipos de discriminação, há uma série de situações intermediárias que contribuem para o desrespeito dos direitos dos negros e para a nebulosidade do sistema no Brasil.6

O problema da discriminação indireta é particularmente comple-xo porque se misturaria com o processo mais amplo de reconhecimen-to, ou não, da dignidade do interlocutor e, portanto, de consideração a sua pessoa. Isto é, o preconceito inviabilizaria este reconhecimento

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ou consideração, provocando o desrespeito aos direitos dos negros, mas em circunstâncias muito parecidas às que motivam a usurpação de direitos de pessoas pertencentes a outros segmentos da popula-ção, até mesmo de “brancos”. Desse ponto de vista, o preconceito deveria ser percebido mais como um agravante do que como um fator determinante de “discriminação” ou desrespeito, ainda que isto não diminua em nada a importância ou dimensão do problema em relação aos afro-brasileiros. Ao contrário, tal quadro apenas acen-tuaria a gravidade do problema, na medida em que apontaria para um universo ainda mais amplo de desrespeito a direitos no Brasil, além de distorcer o caráter do preconceito de cor que apareceria sob a capa do preconceito de “classe”.

Na mesma direção, o fato de o reconhecimento da dignidade deixar algum espaço para negociação traz uma dificuldade suple-mentar para a identificação do preconceito e da discriminação racial no Brasil. Pois, assim como tenho argumentado que, em princípio, qualquer cidadão no Brasil seria capaz de transmitir o que chamei de referência substantiva característica das pessoas dignas ou morais, na medida em que conseguisse estabelecer uma relação de empatia com o interlocutor, o preconceito de cor também pode ser relativizado. Isto é, uma vez que a negociação da identidade de um indivíduo negro, em situações sociais concretas, seja bem-sucedida e sua dignidade pessoal adequadamente transmitida ou percebida, as barreiras do preconceito são frequentemente superadas e ele pode vir a ser plena-mente aceito. O fato de o preconceito de cor e a aceitação plena ou genuína do negro fazerem parte, ao mesmo tempo, da experiência de um grande número de negros e brancos no Brasil torna a percepção da discriminação e do próprio preconceito ainda mais complicada.

Poder-se-ia argumentar, por um lado, que esse quadro carac-terizaria uma situação de discriminação racial menos dramática no Brasil, na medida em que certo tipo de agressão explícita – como os recentes incêndios criminalmente provocados em igrejas frequen-tadas por negros no sul dos EUA7 – seria praticamente impensável por aqui; por outro lado, no que concerne à incidência de eventos de

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desrespeito aos direitos de cidadania da população de origem africana, é provável que a situação no Brasil seja mais grave.

Dentro desse quadro, creio que uma política de ação afirmativa bem conduzida poderia contribuir não só para proteger com mais eficácia os direitos dos afro-brasileiros e melhorar a situação de iniquidade na qual se encontram, mas poderia também fortalecer as possibilidades de universalização do reconhecimento da dignidade do cidadão no Brasil. Além de garantir certos direitos, tal política contribuiria para a conscientização do preconceito de cor que, quando acionado, inviabilizaria a consideração à pessoa ou o reconhecimento da dignidade dos negros brasileiros. Como vimos, esta falta de re-conhecimento tende a estimular a negação dos direitos de cidadania dos atores em um amplo espectro de práticas sociais. Embora não acredite que a simples conscientização do preconceito de cor venha a eliminá-lo, penso que possa provocar um reequacionamento da perspectiva dos atores sobre o problema, facilitando o exercício da manifestação de consideração à pessoa, ou o reconhecimento da dignidade moral dos afro-brasileiros, com o consequente respeito aos seus direitos. Não podemos nos esquecer que, como dizia Florestan Fernandes, uma das características importantes das relações raciais no Brasil seria o sentimento de profunda vergonha dos brasileiros quanto à manifestação do preconceito, o qual procurariam esconder não apenas dos outros, mas de si mesmos. Nesse sentido, a “publi-cização” do problema por meio da implantação dos programas de ação afirmativa poderia estimular o seu enfrentamento de maneira mais produtiva. Idealmente, a eventual ampliação da abertura para o reconhecimento da dignidade dos afro-brasileiros poderia vir a ter uma repercussão positiva no que concerne às práticas de reconheci-mento da identidade (moral) dos atores no âmbito de um universo mais abrangente de interações, contribuindo para a instituição de práticas verdadeiramente mais democráticas em relação ao respeito aos direitos no Brasil.

Por fim, gostaria de concluir esses comentários com uma adver-tência. Se a política de ação afirmativa no Brasil quiser mesmo ter o

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impacto que promete, deverá tomar todos os cuidados possíveis para não se deixar dominar por interesses corporativistas ou clientelistas, cuja força não pode ser subestimada. Um dos grandes problemas do Brasil é que, assim como aquilo que chamei de discriminação indireta é de difícil percepção por parte dos atores, muitas práticas corporativistas e/ou clientelistas são frequentemente não percebi-das como tais por aqueles que as praticam. Estes, muitas vezes, assumem pública e genuinamente uma posição crítica em relação a essas práticas, como procurei mostrar em minha discussão sobre as demandas de cunho corporativista da instituição do voto e da gestão paritária nas universidades (Cardoso de Oliveira, 1996a; 1996c). Além das dificuldades em distinguir direitos de privilégios, às quais já me referi acima, a falta de identidade para com o Estado enquanto representante ou mediador dos interesses da maioria faz com que as demandas frente a este sejam quase sempre dissociadas de qualquer preocupação com o interesse público, tornando a percepção da legi-timidade da demanda normalmente restrita à forma que esta toma. Isto é, a possibilidade de encaixar a demanda na fórmula prescrita seria suficiente para torná-la legítima.

Caso se dissesse que essa é uma característica de todo compor-tamento manipulador, que, enquanto tal, manifesta-se com maior ou menor intensidade em todos os Estados modernos contemporâneos, o caso brasileiro tem ao menos uma peculiaridade importante, qual seja, a sanção positiva dessas práticas no âmbito das organizações formais que fazem a mediação entre o beneficiário da demanda e o Estado. Isto é atestado pelo escândalo das demandas patrocinadas pelo sindicato dos jornalistas do Rio de Janeiro para a obtenção de indenizações espúrias de alguns de seus associados, por meio da lei da anistia,8 fazendo com que uma lei absolutamente legítima e ina-tacável tenha acabado por se transformar em um verdadeiro “trem da alegria” para uma parcela de seus beneficiários.

Em última instância, ao lado do resgate dos direitos legítimos dos negros, a ação afirmativa deveria contribuir para a constituição de uma consciência cívica, voltada para uma prática mais univer-

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salista de respeito a direitos, em oposição às práticas clientelistas ou corporativistas – tão sintonizadas com a nossa cultura do favor e do pessoalismo – que sempre favorecem os interesses de grupos particulares em detrimento da coletividade mais ampla.

Notas1 No Quebec, a atuação da Suprema Corte do Canadá tem sido percebida como uma ameaça à legislação linguística da província, identificada com a defesa dos direitos coletivos dos francófonos. Ver os capítulos 3, 4, 5, 6 e 7 desta edição.2 Taylor opõe esse modelo de democracia, de Direitos, ao que ele chama de modelo Participatório. Embora o autor observe que os dois modelos são comprometidos com a defesa dos direitos individuais que caracterizariam as democracias liberais, sugere diferenças importantes entre eles:

Em um modelo, a dignidade do indivíduo livre reside no fato de ele ter direitos que pode tornar eficazes, se necessário, mesmo contra o processo de tomada de decisão coletiva na sociedade, contra a vontade da maioria, ou do consenso prevalecente. Os direitos que ele usufrui podem ser vistos como “trunfos”, na imagem memorável de Ronald Dworkin… No outro modelo, sua liberdade e eficácia residem na sua habilidade para participar no processo de tomada de decisão da maioria, tendo uma voz reconhecida no estabelecimento da “vontade geral”… (1993a:92)

Segundo Taylor, o primeiro modelo caracterizaria os EUA e o segundo o Canadá.3 Embora concorde com a posição de Rosenfeld ao sustentar a legitimidade da política de ação afirmativa nos EUA, por meio da noção de justiça como “reciprocidade reversível” (1991:283-336), creio que a crítica de Glazer chama a atenção para problemas que a argumentação de Rosenfeld não responde de maneira plena, especialmente no que concerne aos programas dirigidos a outras minorias que não os afro-americanos. Isto é, a necessidade de representação proporcionalmente quase idêntica dos grupos étnicos-raciais nas posições de elite da sociedade norte-americana, e a dificuldade de traçar uma fronteira nítida entre os grupos cujas demandas de tratamento privilegiado devem ser legitimadas e as daqueles que devem ser negadas de acordo com os mesmos princípios (e.g., cotas para hispânicos e não para gregos).4 Os resultados de minha pesquisa sobre Juizados de Pequenas Causas nos EUA dão uma boa ideia do problema. Não só do ponto de vista da análise das causas, mas também da perspectiva dos próprios atores envolvidos nas disputas (Cardoso

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de Oliveira, 1989; 1996b; 1996c; 1999d ou capítulo 2 a seguir).5 As vantagens absolutamente privilegiadas do sistema previdenciário do funcionalismo público e dos funcionários das estatais, em oposição ao dos trabalhadores do setor privado da economia, seria um bom exemplo. Por outro lado, as distorções salariais dentro do funcionalismo público e a formulação das demandas sindicais nesse contexto vão na mesma direção.6 Um bom exemplo de situação intermediária seria a determinação dada a pessoas de cor no sentido de utilizarem a entrada de serviço em prédios residenciais no Rio de Janeiro. Embora o argumento seja social, de que a entrada principal do edifício é só para moradores e visitantes, a determinação do porteiro é motivada pela classificação da pessoa de cor como um serviçal, em vista de sua negritude. Para se ter uma ideia da frequência com que este tipo de situação acontece, já ouvi dois relatos nos EUA de negras norte-americanas que teriam passado por este constrangimento ao visitar amigos em Ipanema.7 Esses incêndios têm sido amplamente veiculados pela imprensa e, segundo reportagem publicada na edição do dia 15 de junho de 1996 no The Gazette, de Montreal, já teriam sido queimadas mais de 30 igrejas de negros nos últimos 18 meses, e oitenta desde 1990. Embora outra reportagem na mesma edição indique que igrejas de brancos também estejam sendo queimadas, o número de incêndios provocados nas igrejas dos negros seria significativamente maior e não parece haver dúvidas quanto à motivação racial da maioria desses crimes.8 Ver reportagem publicada na revista Veja, em sua edição de 24 de maio de 1995 (pp. 98-100), sobre as demandas de indenização mediadas pelo Sindicato dos Jornalistas do Rio de Janeiro. Um dos candidatos à indenização é apresentado como um profissional que começou a trabalhar em 1980, portanto após o fim da censura, mas que se julga no direito de ser indenizado porque o jornal onde trabalhava teria fechado as portas em 1986 devido aos prejuízos sofridos em decorrência da ditadura.

Capítulo II

Legalidade e eticidade nas pequenas causas

Uma das principais características dos Juizados de Pequenas Causas nos EUA é o fato de que em uma parcela significativa das disputas que lhe são encaminhadas o cerne do conflito não é de ordem legal, mas sim do que seria mais adequado definir como questões de natureza ético-moral. Isto é, apesar das causas serem formalizadas em termos estritamente legais, onde a demanda é sempre expressa através de um valor monetário,1 caracterizando uma compensação financeira pela agressão ou perda sofrida, a principal motivação para dar iní-cio ao processo jurídico-legal está frequentemente em outro lugar: seja na percepção de desrespeito a um direito não monetizável, ou ao que eu gostaria de designar como um insulto moral. Inspirando--me na Teoria da Ação Comunicativa (TAC) e na Ética do Discurso (ED) de Habermas (1981/84 e 1983/89), propus uma classificação de decisões judiciais e de acordos mediados no âmbito do Juizado, conforme o grau de satisfação das pretensões de validez normativa das soluções encontradas (Cardoso de Oliveira, 1989). Nesse em-preendimento, argumentei que uma preocupação com questões de equidade (fairness) teria sido não só importante para a realização dessa classificação, mas se constituiria mesmo na condição necessária para uma compreensão adequada das disputas. No presente artigo, em homenagem aos 70 anos de Habermas (Cardoso de Oliveira, 1999d), gostaria de explorar um pouco a fecundidade da TAC e da ED para a compreensão da dimensão ético-moral dos direitos deman-

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dados nos Juizados de Pequenas Causas. Isto é, gostaria de discutir a interface entre legalidade e eticidade, ou entre direitos e valores, e suas implicações para o equacionamento normativo (mas também cognitivo) das disputas em pauta. Assim, (a) vou fazer uma breve exposição dos procedimentos que caracterizam o equacionamento das causas nestes Juizados, chamando atenção para os espaços ou situações que permitem aos atores o engajamento em práticas de ação comunicativa, para concluir o artigo com (b) uma discussão sobre direito, insulto moral e equidade nas pequenas causas.

As pequenas causas (perda e agressão)Em toda causa cível, ou não criminal, a fundamentação da de-

manda de ressarcimento por uma perda está associada ao desrespeito a um direito. Na tradição da Common Law, vigente nos EUA, esse desrespeito a direitos é identificado com a quebra de um contrato ou com a ocorrência de um tort, isto é, um ato de responsabilidade (ou um ilícito) civil.2 Mas em nenhuma das duas situações o desrespeito a direitos é confundido com uma agressão intencional à pessoa do cidadão ou da parte que sofreu as perdas, o que caracterizaria um ato criminal.3 Se, do ponto de vista das partes, a fronteira entre o desres-peito a direitos e a intenção de agressão nem sempre é muito clara nas causas cíveis em geral, a relação entre as ideias de desrespeito e agressão é particularmente significativa no âmbito das pequenas causas. Tal relação será tematizada na próxima seção, através da discussão do insulto moral como uma agressão civil (não criminal). No momento, gostaria de chamar a atenção para a flexibilização das regras de construção/aceitação de evidências nos Juizados de Peque-nas Causas e, consequentemente, a maior articulação entre as intui-ções morais dos atores e a definição jurídico-normativa das causas.

Ainda que os juízes sejam obrigados a seguir os procedimentos formais que caracterizam a adjudicação de disputas em todas as ins-tâncias do sistema judiciário, o fato de as partes poderem apresentar suas causas sem a assistência de um advogado nesses Juizados impõe certa relativização dos procedimentos. Isto é, embora os casos tenham

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que ser caracterizados como contratuais ou de responsabilidade civil (tort) para que os juízes possam se pronunciar sobre os mesmos, a maneira de fazê-lo, assim como o tipo de evidência requerido para a avaliação do mérito da causa é menos rígido do que nas outras instâncias do sistema. Desse modo, acordos verbais são aceitos sem maiores problemas, desde que contem com a anuência da outra parte ou que as evidências apresentadas para caracterizar o comportamento desta fundamentem a existência de um entendimento de natureza contratual entre os litigantes. Da mesma forma, a definição “legal” dos termos do acordo ou das responsabilidades recíprocas, o que frequentemente constitui o cerne da disputa, é feito com menor for-malidade e dentro de uma perspectiva mais ampla no que concerne ao embasamento jurídico das ações dos atores.

De fato, não haveria por que desconfiar da existência de uma relação contratual quando um ator processa uma oficina alegando que seu carro não foi adequadamente consertado, quando um car-pinteiro demanda pagamento por serviços prestados ao proprietário do imóvel onde o trabalho foi realizado, ou quando o comprador de um automóvel – adquirido de outra pessoa física – quer desfa-zer o negócio sob a alegação de que o automóvel estava em piores condições do que o vendedor o teria feito acreditar. Em todos estes casos a dificuldade está na definição dos termos do acordo/contrato e não na sua existência. Aqui, a falta de precisão característica dos acordos verbais se constitui no maior problema, e pode inviabilizar a fundamentação legal da demanda sempre que a alegação do autor da causa não fizer referência a um padrão de relacionamento (ou de obrigações) recorrente e institucionalizado em situações similares, ou sempre que a alegação não puder ser apoiada por evidências concretas: testemunho de terceiros, narração de “fatos” acordados entre as partes etc. Ainda que as audiências judiciais imponham uma articulação entre formulações jurídicas e evidências factuais, a construção/apresentação destas últimas é feita de maneira mais flexível, e as partes têm oportunidade de se engajar em processos de ação comunicativa um pouco mais amplos e mais abertos.

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Assim, além da possibilidade de relativização da forma de apre-sentação de evidências, como indiquei acima, a eventual inabilidade dos litigantes para expor suas causas – explicitando a sequência de acontecimentos ou de ações que motivaram a disputa – com ênfa-se no raciocínio lógico-dedutivo privilegiado pelo Juizado, pode ser superada através das questões levantadas pelo juiz e da maior liberdade de expressão das partes,4 viabilizando a enunciação de esclarecimentos quanto ao mérito da causa. Isto é, mesmo sem co-nhecer os procedimentos legais para a apresentação de evidências, o litigante pode ter sucesso na apresentação de sua causa, relatando os “fatos”5 pertinentes de modo a permitir que o juiz forme uma opinião sobre o mérito jurídico da disputa. Por exemplo, fotografias retratando o conserto realizado na lataria de um automóvel ou o resultado da reforma feita em uma residência podem ser apresenta-dos sem as formalidades normalmente requeridas para a introdução de evidências em um tribunal e, se refletirem a realização de um serviço muito aquém do que seria razoável esperar em situações similares, podem vir a se constituir em provas “definitivas” a favor da demanda encaminhada pelo contratante dos respectivos serviços, independentemente da capacidade discursiva dos litigantes, que têm algum espaço para argumentar seus pontos de vista utilizando uma linguagem não especializada e acionando imagens do cotidiano.

Entretanto, o juiz não pode fugir da preocupação em estabelecer o mérito jurídico da causa, através da avaliação da responsabilidade jurídica do querelado, o que impõe um filtro significativo àquilo que pode ser normativa ou legalmente tematizado no âmbito de uma au-diência judicial. Além deste filtro limitar, como vimos, o universo de causas legítimas àquelas que podem ser expressas na linguagem dos contratos ou dos torts, e nas quais a definição da agência que provocou o problema pode ser fundamentada, no que concerne aos acordos/contratos o juiz só pode considerar aqueles cuja pretensão de serem legalmente sancionados pode ser resgatada. Isto é, aqueles acordos para os quais existe alguma previsão legal, ou para os quais seria juridicamente razoável esperar que houvesse uma, o que significa que

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a demanda do autor da causa tem que encontrar respaldo em algum padrão de relação ou de comportamento legalmente sancionado.

É por esta razão que no caso dos “ex-co-inquilinos”, analisado por mim em outra oportunidade (Cardoso de Oliveira, 1989: 308-313), a causa encaminhada por aquele que havia deixado a residência é caracterizada pelo juiz como uma demanda totalmente sem sentido, não apenas do ponto de vista legal, mas também no que concerne ao seu equacionamento lógico. Além de cobrar uma diferença refe-rente ao pagamento de contas de telefone e de eletricidade no valor de 170 dólares, sobre a qual os litigantes entraram rapidamente em acordo durante a audiência, o autor estava reivindicando de seu ex--co-inquilino o ressarcimento da metade do “depósito de segurança” que ambos haviam pago ao proprietário do imóvel no momento em que assinaram o contrato de locação. De fato, de acordo com a lei o proprietário do imóvel deve devolver o “depósito” ao inquilino, no momento em que termina a locação, desde que o inquilino não tenha provocado estragos além do desgaste esperado pela utilização “normal” da propriedade. Acontece que, como o imóvel não havia sido desocupado, o proprietário não tinha nenhuma obrigação de devolver o “depósito”, e não há fundamento jurídico para sustentar a cobrança ao ex-co-inquilino. Pois este, em princípio, também seria credor do proprietário, juntamente com o autor da causa. Embora o autor não estivesse fazendo nenhuma cobrança ao proprietário, mas ao seu ex-co-inquilino com quem tinha um acordo informal – não reconhecido pelo tribunal –, o juiz fazia questão de interpretar a de-manda como se a cobrança estivesse sendo feita ao proprietário sem que houvesse qualquer motivo objetivo para legitimar tal cobrança, tornando a causa totalmente sem sentido.6

Como o acordo informal com o ex-co-inquilino – segundo o qual aquele que saísse primeiro do imóvel teria sua parcela do depósito de segurança reembolsada pelo que permanecesse no apartamento – não fazia sentido do ponto de vista legal, pois não poderia suplantar o contrato efetivamente existente e previsto em lei com o proprietário, nem refletiria uma relação percebida pelo Juizado como merecedora

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de sancionamento jurídico, a demanda apresentada pelo autor é in-viabilizada, e parece mesmo não ter lógica aos olhos do juiz. Mesmo após a confirmação da existência do acordo informal durante o depoi-mento do querelado, o juiz continuou insistindo na falta de sentido da demanda. A propósito, é interessante notar que o ex-co-inquilino não apenas confirmava o acordo, mas se dispunha a honrá-lo no momento em que conseguisse outra pessoa para substituir o autor da demanda na locação do imóvel. Casos como este me levaram a identificar um padrão de disputas que seriam interpretadas de maneira inapropriada e decididas de forma inadequada, no âmbito das audiências judiciais, na medida em que o problema entre as partes não podia ser diretamente traduzido na (ou sancionado pela) linguagem do direito ou das leis (Cardoso de Oliveira, 1989: 313-339).

Por outro lado, além de apontar esta limitação das audiências judiciais, minha pesquisa indicava também uma dimensão importante das pequenas causas, a qual era sistematicamente excluída da atenção do juiz nas sessões do Juizado. Estou me referindo à percepção das partes de que seus oponentes as haviam tratado de maneira inacei-tável, ou que as haviam insultado em algum momento ao longo do processo que desembocou na formalização da causa no Juizado. Apesar de encontrarem dificuldade para verbalizar ou para articular uma demanda legal que contemplasse uma reparação para a respec-tiva ofensa ou agressão, em muitos casos esta talvez tivesse sido a principal motivação para levar adiante a disputa. Aqui estamos diante da relação entre desrespeito a direito e agressão à pessoa dos litigan-tes a ser retomada na próxima seção. Porém, antes de enfrentar esta questão, seria importante caracterizar as sessões de mediação, que se constituem em um processo alternativo de resolução de disputas, também oferecido pelo Juizado, o qual permite uma discussão mais aberta das disputas, ainda que raramente satisfaça os requisitos para um melhor equacionamento do insulto moral.

Em princípio, as sessões de mediação teriam grande potencial de contemplar as demandas das partes nos dois aspectos críticos para as audiências judiciais salientados até aqui: (1) uma certa rigidez

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na filtragem das demandas em vista do modo judicial de avaliar a responsabilidade jurídica; e, (2) a exclusão do insulto moral como demanda legítima. Pois, nas sessões de mediação, nenhum tema ou assunto deve ser excluído a priori da discussão e, como a solução aqui é sempre produto de um acordo entre as partes, é muito mais provável que na fórmula encontrada para a redação do acordo esteja embutida uma resposta satisfatória para (ou pelo menos uma discussão sobre) as demandas, preocupações e perspectivas das partes em relação à disputa como um todo. Como argumento em minha etnografia das causas, as pretensões de equidade (ou de validez normativa) das decisões judiciais, as quais têm um carácter universalista, dependem do grau de satisfação ou de atenção dada aos problemas trazidos ou apontados pelos litigantes ao longo da audiência, e que estaria em-butido na formulação definida pelo juiz (Cardoso de Oliveira, 1989: 337-339). Isto é, a sustentação da validez normativa de uma decisão judicial não pode ser confundida com um exercício de lógica, nem pode depender das qualidades eventualmente excepcionais de um determinado juiz, mas deve ser produto de um processo dialógico onde as características da disputa devem ser adequadamente com-preendidas, e a decisão encontrada deve refletir compromissos de imparcialidade, assim como uma atenção detida às normas e valores vigentes.7

Entretanto, como veremos, o foco às vezes excessivo das ses-sões de mediação na ideia ou nos mecanismos de reparação das perdas sofridas, e que flexibiliza tanto a definição das disputas como a solução dos problemas tematizados, pode se constituir em um constrangimento significativo para o equacionamento dos direitos, normas e valores envolvidos.

Diferentemente das audiências judiciais, a mediação de dispu-tas é vista como um processo no qual o principal objetivo não seria fazer justiça, mas encontrar uma solução satisfatória para as partes, tendo como foco a reparação do prejuízo eventualmente sofrido. Se é verdade que o processo de mediação procura avalizar acordos que reflitam um certo equilíbrio entre os interesses e as condições das

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partes, revelando um compromisso com ideais de equidade (fairness), não há qualquer pretensão de associar a solução encontrada com a legitimação de um diagnóstico claro sobre as responsabilidades das partes no que concerne ao afloramento e ao desenvolvimento da disputa. É dentro dessa perspectiva que mediadores,8 juízes e funcionários do Juizado procuram fazer uma distinção nítida entre os objetivos das audiências judiciais quanto à determinação da responsabilidade jurídica ou dos direitos (legais) efetivamente desrespeitados e a orientação do serviço de mediação em relação à construção de uma solução equânime e que satisfaça os interesses prospetivos das partes.

A mediação é apresentada aos litigantes, no início da sessão semanal do Juizado, como uma última oportunidade para tentarem entrar em acordo com seus oponentes, sem abrir mão de seus lugares na fila de processos a serem ouvidos pelo juiz no caso das negociações não serem bem-sucedidas. A possibilidade de atendimento imediato – em oposição ao por vezes longo tempo de espera (podendo ultra-passar uma ou duas horas) para ter o caso ouvido pelo juiz –, assim como a maior informalidade do processo e o fato de poder contar com mais alternativas para resolver a disputa são os principais atrativos oferecidos aos litigantes, a quem é assegurado que o acordo eventu-almente celebrado tem o mesmo valor jurídico que uma decisão do juiz. De fato, as sessões de mediação são estruturadas de maneira a facilitar o diálogo entre os litigantes e ampliar o horizonte de alter-nativas viáveis para a concretização de um acordo. Nesse contexto, a abertura para questionamentos quase ilimitados de parte a parte amplia substancialmente as possibilidades de definição da disputa e, consequentemente, as perspectivas para uma compreensão mais rica do conflito entre os litigantes, assim como para uma solução normativamente mais adequada ou equânime da causa.

Contudo, embora as condições para a exploração e elaboração das intuições morais dos atores, dentro dos parâmetros de crítica discursiva reconstruídos pela TAC, sejam indubitavelmente mais generosas e fecundas no âmbito das sessões de mediação, o receio dos mediadores

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em permitir o aprofundamento de discussões sobre as responsabilida-des recíprocas das partes no desenvolvimento da disputa se constitui em um inibidor, muitas vezes eficaz, para uma melhor compreensão das disputas ou para a confecção de acordos mais equânimes. Por um lado, a discussão das responsabilidades de cada um na erupção da disputa é percebida como potencialmente agravadora da tensão ou do conflito entre os litigantes, e, portanto, como contraproducente para a negociação de um acordo, especialmente no que concerne a uma solução que contemple adequadamente os interesses (materiais) das partes. Por outro lado, o fato dessas discussões frequentemente mobilizarem as emoções dos atores é lido como uma ameaça à racio-nalidade e à objetividade da negociação. Desse modo, a orientação dos mediadores promove excessiva distância entre as noções de direitos e interesses que, além das limitações apontadas acima, vai contra as intuições morais dos litigantes. Pois, para estes, é muitas vezes difícil ou inadequado articular um discurso coerente sobre seus interesses sem uma discussão sobre a legitimação dos mesmos.

Na mesma direção, vale a pena lembrar que em muitas causas a “revolta” contra a percepção de agressão que teriam sofrido – como um ato intencional contra a pessoa de um ou de outro – é o principal motivador dos litigantes para a formalização da demanda no Juizado. Na realidade, em expressivo número de disputas, a dimensão estrita-mente legal da causa, ou dos direitos traduzidos no valor monetário reivindicado pelo autor como reparação, não justificaria o tempo e o esforço empregados no processo. Tal situação é particularmente aparente nos casos em que o valor da causa não ultrapassa quarenta ou cinquenta dólares. Em vista dos custos mínimos para dar andamento administrativo à causa no Juizado (entre cinco e dez dólares), soma-dos ao custo de pelo menos dois deslocamentos ao Juizado, mais a perda de três ou mais horas de trabalho sem remuneração, levando-se em conta que o salário mínimo não era inferior a cinco dólares por hora à época e que a maioria dos litigantes tinha rendimentos supe-riores, chega-se à conclusão de que, em causas deste tipo, um autor bem-sucedido tinha grandes chances de, na melhor das hipóteses,

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recuperar apenas os recursos empregados para dar prosseguimento à causa ou perto disto.9

Se a necessidade de articular responsabilidade e reparação, ou direitos e interesses, chama a atenção para a importância atribuída pelos litigantes à definição da correção normativa dos atos de uns para com os outros, no caso das disputas envolvendo valores inferiores a cinquenta dólares o desempenho das partes sugere que a dimen-são normativa, ou dos direitos, tem precedência sobre a satisfação dos interesses expressos no valor monetário da causa. Além disso, se a impossibilidade de tradução direta entre o direito demandado e a indenização requerida é uma característica bastante difundida entre as causas encaminhadas ao Juizado, a dificuldade enfrentada pelos próprios litigantes em articular um discurso coerente sobre a objetividade de certos direitos coloca problemas que transcendem as limitações decorrentes da linguagem jurídica ou legal. Estou me referindo às reclamações verbalizadas emocionalmente pelos litigan-tes e que, como indiquei acima, são evitadas pelos mediadores com receio de inviabilizar a concretização de um acordo potencialmente positivo em relação aos interesses prospectivos de ambas as partes. Aqui, salta aos olhos o fato de que o desrespeito a esses direitos é experimentado como uma agressão, a um só tempo inaceitável e difícil de fundamentar discursivamente como um ato moralmente in-devido. Talvez não seja equivocado dizer que se trata de uma agressão mais sentida do que compreendida, e daí a manifestação sobretudo emocional da parte que se viu agredida, manifestação que aparece mais como expressão de indignação e não chega a desembocar na formulação de uma demanda. Em qualquer hipótese, creio que este quadro impõe uma relativização mais aguda do que aquela esboçada por Habermas – na TAC ou na ED – da separação entre direitos e valores ou da distinção das dimensões normativa e valorativa da eticidade. Como veremos, este me parece um passo necessário para a compreensão e fundamentação do insulto moral como uma agressão a direitos ético-morais, os quais seriam em princípio legitimáveis e, portanto, também precisariam ser protegidos.

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Legalidade, eticidade e o insulto moral (cognição e emoção)

Tanto na TAC como em seu ensaio de fundamentação da ED, Habermas está preocupado em estabelecer uma definição precisa de questões de ordem moral ou normativa, para identificar sua especi-ficidade e resgatar suas respectivas pretensões de validade. Nesse empreendimento, a separação entre normas e valores, que remonta a Kant, tem um papel estratégico e viabiliza uma abordagem que pro-cura equacionar validade e universalidade. Por outro lado, é verdade também que a radicalidade desta separação em Habermas se dá mais no plano analítico, para caracterizar dimensões específicas da vida social ou da experiência humana, do que na discussão de questões sociológicas concretas ou de reflexões filosóficas sobre as relações entre moral, ética e formas de vida. Desse modo, em um trabalho posterior, Habermas identifica na ED a aspiração hegeliana de apro-ximar as dimensões da justiça e da solidariedade, ou dos direitos e dos valores, através da noção de eticidade (Sittlichkeit), chamando a atenção apenas que no caso da ED o resgate desta aspiração seria feito com meios kantianos (1986: 22). Da mesma forma, Habermas (1994:124; 1996:104-118) distingue e discute a relação entre os di-reitos legais vigentes nas democracias constitucionais e as normas morais, assim como procura articular as diferenças entre os usos pragmático, ético e moral da razão prática (Habermas, 1993:1-17), indicando áreas de interseção entre as três modalidades. Isto é, se a separação kantiana entre normas e valores continua tendo um papel central na ED para fundamentar as pretensões de validade normativa, ela é sistematicamente relativizada quando se trata de pesquisar e compreender questões de ordem sociológica.

Entretanto, não me parece que o grau de aproximação ou de articulação entre direitos e valores, proposto por Habermas, seja su-ficientemente desenvolvido por ele, para viabilizar uma compreensão abrangente de situações como a mencionada acima, onde litigantes reclamam de agressões que têm dificuldade de formular como um

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desrespeito a direitos. Gostaria de identificar essas agressões como insultos de ordem moral ou como agressões cívicas, para distingui--las daquelas agressões facilmente definidas na linguagem do direito, ou imediatamente percebidas como um ato socialmente indevido e objetivamente merecedor de punição ou reparo.

A primeira vez que tive minha atenção despertada para o pro-blema, embora não fosse capaz de formulá-lo com nitidez, foi no início da pesquisa sobre pequenas causas, quando trabalhava como voluntário em um Serviço de Aconselhamento Paralegal,10 dirigido a futuros prováveis litigantes que procuravam o serviço para se in-formar sobre o Juizado e conversar sobre o conflito no qual estavam envolvidos: como possíveis autores ou querelados. O atendimento era feito pelo telefone, e talvez a principal característica das chamadas era que normalmente o interlocutor não se satisfazia em obter as informações sobre o funcionamento do processo e/ou em discutir a adequação do seu caso para tramitação no Juizado, mas costumava cobrar a solidariedade do conselheiro em relação às agressões que teria sofrido. Isto é, os futuros litigantes cobravam uma reação de indignação do conselheiro, ante a agressão que lhes teria sido imposta. Embora os clientes do serviço não distinguissem em suas falas o desrespeito ao direito legal – como o não cumprimento de um contrato por exemplo –, da revolta gerada pela percepção de agressão contra a pessoa deles enquanto cidadãos merecedores de respeito e consideração, é interessante notar que a ênfase de suas colocações recaía sobre a percepção de agressão, ainda que esta não pudesse ser formalizada como uma causa no Juizado. Nesse sentido, também não deixa de ser curioso que, apesar de associarem as duas dimensões do problema, quando pressionados a justificar uma demanda que reparasse a agressão alegada, eles revelaram dificuldade de articular o direito à consideração como uma obrigação (ético-moral) a ser mutuamente compartilhada entre os atores.

Essa perspectiva que permeava as colocações dos clientes do Serviço de Aconselhamento se repetia, dentro das limitações de cada contexto, nas audiências judiciais e nas sessões de mediação

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que tinham lugar no Juizado. A rigor, em muitas causas a apreciação das alegações de agressão ou das manifestações de indignação dos litigantes se constituiu na condição para uma compreensão adequada da disputa e foi (ou teria sido) importante para a definição de uma solução mais equânime do conflito.

No que concerne à compreensão das causas, tal procedimento se mostrou relevante mesmo nos casos em que, motivada pela per-cepção de agressão, uma das partes toma atitudes absolutamente injustificáveis, tanto de um ponto de vista estritamente legal, como tendo-se por referência princípios mais amplos de orientação ético--moral. Como, por exemplo, no caso da proprietária de um imóvel que, tendo perdido uma causa que a obrigava a devolver o “depósito de segurança” dos ex-inquilinos que a haviam processado, estava disposta a recorrer a todas as instâncias, sem praticamente qualquer chance de reverter a decisão do juiz que ouviu a causa no Juizado. Como as pequenas causas desfrutam de uma posição singular no sistema, que permite ao litigante insatisfeito com a sentença do juiz apelar para que o caso seja julgado novamente em primeira instân-cia, agora na corte superior do condado e com direito a júri, o caso estava aguardando nova data para o segundo julgamento, já que, na primeira tentativa, o juiz suspendeu a sessão sob a alegação de que a proprietária não tinha condições de apresentar seu pleito sem a assistência de um advogado.11

A utilização do “depósito de segurança” é regulada por leis de responsabilidade estrita, o que significa que não há espaço legal para justificar alternativas de procedimento para as regras estabelecidas. A única circunstância na qual o proprietário pode reter o “depósito de segurança”, como indenização pelos estragos causados pelo inquilino, reza que, no início da locação, proprietário e inquilino devem assinar um documento descrevendo as condições do imóvel, em relação ao qual os eventuais estragos serão avaliados no futuro. Como isto não foi feito no caso em pauta, não há justificativa que sustente a retenção do “depósito”. Mesmo assim, a proprietária alega que seus ex-inquilinos são responsáveis por estragos substanciais no imóvel,

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e não se conforma com os constrangimentos legais para reter o “de-pósito”. Em vista do aumento exponencial dos custos judiciais para ter o caso julgado novamente na corte superior, e das remotas possi-bilidades de reversão da sentença, o comportamento da proprietária só faz sentido à luz das agressões indiretas que ela alega ter sofrido dos ex-inquilinos, que teriam feito vários estragos propositalmente, com a intenção de prejudicá-la e de agredi-la. A revolta da proprie-tária chegou a tal ponto que ela vinha desrespeitando leis e ferindo direitos, sem medir consequências, atitudes com as quais mesmo um observador simpático a sua situação não poderia concordar. Entre outras coisas, a proprietária chegou a gravar ilegalmente conversas telefônicas com advogados envolvidos no processo, a quem ela ameaça nas fitas quando acha que não está sendo levada a sério e, pasmem (!), tomou a iniciativa de anexar as transcrições das fitas (que a incriminam) ao processo. Embora a percepção da corte de que se trata de uma encrenqueira que não sabe bem o que está fazendo não seja de todo inadequada, também não há qualquer esforço para compreender e/ou lidar com as causas de sua indignação, motivadas pela sensação de agressão. Isto é, não para justificar seus atos, mas para compreender a lógica de suas motivações ao longo do processo.

Por outro lado, casos como o do “Congelador Suspeito” (Cardoso de Oliveira, 1989:425-43; 1996:131-138) representariam um bom exemplo de causas onde, nas sessões de mediação, é aberto um espa-ço para discussão das responsabilidades recíprocas na detonação da disputa, assim como para a exposição da percepção do insulto moral, permitindo uma melhor compreensão do conflito e viabilizando uma solução mais equânime do mesmo. O dono de um comércio de com-pra e venda de refrigeradores estava sendo processado pelos compra-dores de um congelador usado que, ao descobrirem um desencontro entre a data de fabricação do equipamento informada pelo vendedor e a que veio a ser confirmada pelo fabricante, tentaram desfazer o negócio diretamente com o vendedor mas não tiveram sucesso. A causa foi formalizada no valor de quarenta dólares, correspondendo aos vinte e cinco dólares pagos ao querelado para fazer a entrega,

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dez dólares cobrados pelo banco para bloquear o cheque através do qual haviam pago o congelador, e cinco dólares que teriam gasto com as várias cartas “registradas” enviadas ao querelado e ao Serviço de Proteção ao Consumidor ao longo da disputa. Além disso, os autores também demandavam que o querelado fosse buscar o refrigerador rejeitado em sua residência.

Depois de longa discussão sobre a discrepância na data de fabricação do congelador, na qual fica clara a ausência de má-fé do vendedor, e de uma série de esclarecimentos sobre as atitudes tomadas e as ações empreendidas de parte a parte ao longo do pro-cesso, os litigantes chegaram a um acordo no valor de vinte dólares, com o compromisso de que o querelado ficaria responsável pelo transporte do congelador rejeitado para sua loja. Um dos aspectos interessantes desse caso é que se a discrepância de datas sobre a idade do congelador sugeria suspeitas imediatas quanto às intenções do vendedor, que teria tentado passar para trás os autores, as várias tentativas destes para negociar um acordo com o querelado antes de prossessá-lo eram percebidas como ofensivas aos olhos dele. Apenas para dar um exemplo, ante a recusa sistemática do querelado em pegar o congelador rejeitado na residência dos autores sem co-brar pelo transporte, os compradores sugeriram, em um telefonema atendido por um empregado da loja, que aceitariam as exigências do querelado desde que este se encarregasse de fazer a entrega do novo congelador que os autores haviam comprado em outro lugar. Da maneira como o recado foi passado, a proposta foi tomada como uma ofensa. Afinal de contas, segundo o querelado, a iniciativa dos autores seria similar a telefonar para um restaurante e pedir que este providenciasse a entrega do “filé” encomendado a outro.

Dois fatos chamam atenção no desenrolar desta sessão de me-diação: (1) em várias oportunidades as partes ameaçaram encerrar as negociações; (2) os termos da proposta que selou o acordo já haviam sido rejeitados antes com veemência. A sessão só não foi encerrada antes da celebração do acordo porque o mediador, em uma atitude pouco usual, resolveu explorar o sentido das alegações de agressão, ao

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invés de inibi-las, conforme o padrão dominante. Sem deixar de tomar cuidado para que o tom emocional destas alegações não ultrapassasse certos limites de civilidade, o mediador criou condições para que as partes manifestassem sua indignação em relação ao comportamento de um e de outro, tentando esclarecer o significado e a motivação dos atos questionados. Da mesma forma, quando a proposta antes rejeitada é aceita pelas partes, seu significado já havia sido alterado num aspecto central para a definição da disputa. Isto é, dado o de-senvolvimento das negociações, quando a proposta é inicialmente recusada pelo querelado, sua aceitação representaria a assunção de responsabilidade por um ato de má-fé, com a qual ele não podia con-cordar. No segundo momento, os termos do acordo já haviam ganho outro sentido, onde a divisão em partes iguais da secção monetária da demanda passou a simbolizar, fortemente, a co-responsabilidade das partes pelo(s) mal-entendido(s). Nesse sentido, as negociações não só permitiram a tematização do insulto moral (expresso nas alegações de agressão e má-fé de parte a parte) como uma prática inadmissível, e que, portanto, deve ser reprimida, mas viabilizaram também o resgate da identidade dos atores como cidadãos que merecem respeito e que devem ser tratados com consideração.

Ao mesmo tempo que o acordo produzido no caso do “Congela-dor Suspeito” representa um processo de resolução de disputa onde prevalecem os princípios orientadores da ação comunicativa, tendo como resultado melhor compreensão do problema entre as partes, e solução mais equânime para o conflito, o caso aponta também certa indissociabilidade entre legalidade e eticidade nas pequenas causas. Não só devido à articulação entre direitos e valores, em certa medida também presente em outros tipos de causa, mas por-que aqui frequentemente a dimensão da atitude ou da intensão das partes parece ganhar precedência sobre as ações dos atores, quando vistas isoladamente. Isto é, embora o centro do equacionamento da disputa esteja na avaliação da relação entre as partes e, portanto, no aspecto normativo, este só ganha inteligibilidade à luz dos valores que orientaram a ação dos litigantes. De certa forma, poder-se-ia

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dizer que mais do que uma preocupação com a intenção das partes para definir o grau de consciência dos atores quanto às implicações de seus atos, para os litigantes é importante compreender a motivação por trás do ato ou da atitude.

Nesse sentido, a relação entre ação e intenção nos remete às reflexões de Strawson (1974: 1-25) sobre a fenomenologia do fato moral, as quais Habermas (1983/89: 63-70) toma como ponto de partida em sua crítica às abordagens empiristas sobre questões de ordem moral. Habermas (idem: 70) enfatiza, em sua discussão das ideias de Strawson, a importância da assunção da perspectiva per-formativa do participante para a elucidação dos fatos morais, assim como a relação entre as reações afetivas dos atores e a avaliação das normas a partir de critérios suprapessoais. Gostaria de ressaltar aqui a associação sugerida por Strawson entre a experiência do ressenti-mento e a percepção da intenção de agressão no comportamento de um interlocutor. Isto é, a identificação do ressentimento como um sentimento que expressa uma reação a uma intenção ou atitude de agressão. Assim, segundo Strawson, uma simples intenção de agres-são ou uma atitude de desprezo ostensivo em relação a outrem podem se constituir, em si mesmas, em uma agressão (1974:5). Pois é exata-mente esta experiência de ressentimento que caracteriza a motivação dos atores nas causas discutidas acima. Experiência esta que, quando conta com a simpatia ou solidariedade de terceiros, provocaria uma reação de indignação moral (Idem:14), correlata ao ressentimento, a qual marcaria o caráter potencialmente intersubjetivo da experiência e indicaria a possibilidade de fundamentação normativa do insulto moral como uma agressão socialmente inaceitável.

De fato, como sugere Strawson, a relação entre emoção, sen-timento e cognição tem um papel importante na elucidação do que estou chamando de insulto moral. Contudo, como essa breve incursão no universo das pequenas causas aponta, as dificuldades em reconhe-cer o insulto moral como um ato moralmente indevido e que deve ser institucionalmente reprovável não devem ser subestimadas. Em um artigo seminal, Berger (1983:172-181) assinala que, na modernidade,

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com a transformação do conceito de honra em dignidade, ao lado do processo de universalização de direitos e do reconhecimento da dignidade de todos os cidadãos, pelo menos em sociedades como a americana, teriam deixado de existir mecanismos institucionais para lidar com insultos ou assaltos à honra (dignidade) dos atores. Aliás, afirma o autor, tais insultos teriam deixado mesmo de ser percebidos como uma agressão ou ofensa real (idem:173). Nesse sentido, creio que só um esforço de articulação mais palpável entre as dimensões normativa e valorativa da eticidade pode nos permitir compreensão mais profunda de disputas como as discutidas aqui, assim como o reconhecimento de direitos que não encontram respaldo na lingua-gem jurídica, mas que, não obstante, têm pretensões de validade resgatáveis e poderiam ser legitimados.

Notas1 A atuação destes Juizados está restrita à área cível e todas as causas têm que ser expressas em um valor monetário que representa a demanda do autor. Quando concluí minha pesquisa em fevereiro de 1986, os Juizados de Massachusetts aceitavam causas de até 1.500 dólares (ver Cardoso de Oliveira, 1989).2 Tais atos ou torts são caracterizados por eventos nos quais uma das partes pode ser legalmente responsabilizada pelos prejuízos causados à outra, inde-pendentemente da preexistência de vínculos ou acordos (contratos) entre elas. Por exemplo, quando durante uma pelada na casa de Fulano uma bola mal direcionada quebra a janela da casa do vizinho, e aquele pode ser processado pelo prejuízo causado a este.3 Quando a perda material pode ser associada a uma intenção de agressão, o autor da causa também pode processar o querelado numa vara criminal, onde este figuraria como réu. O motorista de um carro que perde a direção e destrói a fachada de uma residência pode ser processado, não só pelos danos materiais (causa cível), mas também por tentativa de assassinato (causa criminal) se houver suspeitas de que o incidente tenha ocorrido quando o motorista tentava atropelar o proprietário da residência em questão.4 Quando os procedimentos formais para a apresentação de evidências são se-guidos à risca, como é o caso nos demais tribunais, o desconhecimento destes procedimentos pode inviabilizar totalmente a exposição da causa. Aliás, às vezes não é suficiente conhecer os procedimentos, pois a sua aplicação frequentemente

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demanda a internalização dos mesmos. Nesse sentido, tive oportunidade de presenciar um julgamento em um tribunal mais formal, onde um advogado não acostumado a atuar em julgamentos ficou completamente imobilizado pelo seu oponente, ao não conseguir executar satisfatoriamente estes procedimentos formais para a apresentação de evidências, cuja teoria ele conhecia. Em um ar-tigo interessante sobre narrativas de pequenas causas, O’Barr & Conley (1985) chamam a atenção para a dificuldade que a ênfase no raciocínio lógico-dedutivo, mesmo quando flexibilizado, traz para litigantes leigos.5 O processo jurídico tem sido frequentemente descrito no Ocidente através da articulação entre fato e lei, pensados como duas dimensões conceptualmente distintas do processo. Assim, as partes são responsáveis pela apresentação dos fatos em suporte aos direitos demandados, e quando existe júri é sobre estes fatos que os jurados se pronunciam, enquanto o juiz é responsável pela aplicação da lei ou pela avaliação jurídico-legal da causa. Num artigo instigante, Geertz argumenta que esta separação entre lei e fato é, em si mesma, uma construção e que, ao imaginar o real, o direito não apenas representaria relações, ações e comportamentos, mas seria constitutivo destes (Geertz, 1983:167-234).6 Ao longo da audiência o juiz chega a ridicularizar o autor da causa, ao insistir que este confirme a veracidade de alegações não feitas (e talvez nem imagi-nadas) pelo litigante, por não encontrar qualquer respaldo nos fatos do ponto de vista de todos os envolvidos, mas que, se verdadeiras, dariam substância e fundamentação jurídica à demanda. O juiz acreditava estar desvendando uma clara contradição no comportamento do autor, e seu procedimento era drama-tizado com tanta ênfase que o público na galeria multiplicava as gargalhadas provocadas pela situação constrangedora na qual se encontrava o autor, ante as insistentes perguntas do juiz, cujas únicas respostas possíveis reforçavam a interpretação de contradição artificialmente construída pelo magistrado em relação ao comportamento do autor.7 Com o objetivo de articular fortes pretensões de validade na esfera normati-va – assim como sugerido por Habermas na TAC e na ED – no contexto dos Juizados, e sem abrir mão da compreensão da dimensão local das disputas, proponho uma mudança de foco da moralidade das normas para a equidade das decisões judiciais. Estas últimas, ou as interpretações que as sustentam, é que teriam uma pretensão de universalidade resgatável, sem prejuízo do conteúdo empírico das mesmas. Nesse sentido argumento que se, por um lado, para res-gatar tais pretensões a decisão teria que satisfazer, em princípio, as ponderações de qualquer ator que tivesse tido acesso irrestrito aos meandros da disputa (independentemente de sua origem cultural), por outro lado, chamo a atenção também para o fato de que universalidade aqui não significa exclusividade. Isto

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é, qualquer disputa judicial pode comportar mais de uma solução igualmente equânime desde que satisfaça ou responda argumentativamente às poderações dos atores (Cardoso de Oliveira, 1989:264; 1992:23-45).8 No estado de Massachusetts, onde realizei minha pesquisa, o tipo de mediação oferecido é o denominado mediação comunitária, e que se caracteriza pela utilização de mediadores leigos, que trabalham nos Juizados como voluntários, sem direito a qualquer remuneração. No Juizado pesquisado todos os mediadores eram alunos de direito em faculdades da região, com exceção de um doutorando em ciência política, de uma jovem que trabalhava em Boston, e de mim mesmo, que me engajei nesta atividade no final da pesquisa.9 Em 47,3% das causas encaminhadas por pessoas físicas durante a minha pesquisa (entre setembro de 85 e fevereiro de 86), e nas quais os autores obti-veram decisão favorável, o juiz estabeleceu as perdas (a serem indenizadas pelo querelado) em um valor inferior ao que havia sido demandado pelos litigantes (Cardoso de Oliveira, 1989: 88).10 Small Claims Advisory Service. Todos os voluntários eram universitários, e passavam por um rápido treinamento, que envolvia um período de atendimento supervisionado. Conferir também nota 8.11 Na corte superior, as regras judiciais para apresentação de evidências têm que ser seguidas de maneira estrita, e a falta de intimidade com elas inviabiliza a exposição das demandas das partes, fazendo com que os juízes sejam muito resistentes à participação dos litigantes não representados por advogados. Ver também nota 4.

Capítulo III

Democracia, hierarquia e cultura no Quebec

A relação entre democracia e hierarquia tem sido objeto de reflexões de diversos matizes, seja para tematizar desigualdades sociais em sentido estrito, como aquelas derivadas de diferenças no acesso à renda e à educação, ou para contrastar o ideal igualitário, caracte-rístico das sociedades de ideologia individualista, com o princípio hierárquico, tomado como um valor que prevalece em sociedades de ideologia holista, tal como a Índia (Dumont, 1992a). Por exemplo, nesse contexto, apesar de o Brasil ser frequentemente considerado um país injusto devido às diferenças sociais na medida em que exibe uma das piores distribuições de renda do planeta, vários autores têm chamado a atenção para a importância da hierarquia e/ou do pes-soalismo entre nós (DaMatta, 1979; 1991), o que de certa maneira agravaria a situação de iniquidade vigente. Digo de certa maneira porque, se por um lado o pessoalismo tem tido como implicação a usurpação de direitos dos cidadãos que não têm acesso privilegiado ao poder em sentido amplo (nos mais diversos planos e circunstân-cias),1 por outro, o valor atribuído às relações (pessoais) tem não só motivado manifestações de solidariedade que são raras onde a ideologia individualista se apresenta de forma mais nítida e radical, mas também possibilitado a relativização de diferenças e contribuído para uma maior integração social entre pessoas de diferentes seg-mentos da população (Cardoso de Oliveira, 1996c). Isto é, apesar de ser crítico quanto às implicações dessa ênfase na manifestação

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de consideração à pessoa, em detrimento do respeito aos direitos do indivíduo – a qual costuma ter como consequência o engajamento dos atores em processos de privatização do espaço público –,2 não posso deixar de observar uma dimensão positiva desse quadro em relação à afirmação ou efetivação de reconhecimento da dignidade daqueles que merecem a consideração de seus interlocutores. Como sugeri anteriormente, apesar de obedecer a uma lógica excludente, essa maneira de expressar a solidariedade através da demonstração de consideração permite transposição de fronteiras e abre grande espaço à negociação da inclusão (Cardoso de Oliveira, 1996c; 1997). Ou seja, uma vez que o ator, sujeito à desconsideração e à provável usurpação de seus direitos (ou à discriminação), consiga transmitir a substância moral característica das pessoas dignas, sua identidade é reconhecida e as barreiras à inclusão são transpostas.

Em uma comparação com os Estados Unidos, onde a relação entre o respeito aos direitos do indivíduo e a consideração à pessoa do interlocutor dar-se-ia de maneira inversa, indiquei (Cardoso de Oliveira, 1996c) que a essa situação corresponderiam déficits de ci-dadania que se desenvolveriam em direções opostas nos dois países. Enfatizei, então, que o déficit de cidadania referente ao Brasil seria substancialmente maior e mais grave que o encontrado nos EUA, na medida em que aqui nossa orientação cultural estimularia o desen-volvimento de práticas que ameaçam, com frequência, até mesmo o que se poderia chamar de direitos básicos de cidadania. Embora acredite que essa comparação com os EUA tenha deixado clara a importância da cultura no equacionamento dos direitos, eu gostaria de explorar agora um pouco mais a relação entre democracia e cul-tura mediante a discussão da demanda de soberania do Quebec. Não só porque ali, diferentemente dos dois casos acima (EUA e Brasil), a dimensão cultural do problema assume um lugar de destaque no próprio discurso nativo, mas também porque no Quebec a demanda por reconhecimento da particularidade quebequense traduz, a um só tempo, uma reivindicação identificada com a legitimação de di-reitos coletivos e uma forte preocupação com a defesa dos direitos

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básicos ou universalizáveis (individuais) de cidadania. Além disto, a natureza da demanda quebequense, assim como o debate que ela tem provocado, deixa patente a relevância das questões de ordem simbólica, ou da articulação necessária entre direitos e valores, no equacionamento dos problemas de cidadania.

Como sugere o resultado apertado do último referendum sobre a soberania do Quebec, realizado em 30 de outubro de 1995, assim como as dezenas de pesquisas de opinião publicadas sobre o tema nos últimos anos, o aspecto da demanda quebequense que atinge maior grau de consenso entre os diversos atores ou segmentos sociais envolvidos no embate político refere-se ao tratamento inadequado que o Quebec estaria recebendo de Ottawa (isto é, do resto-do--Canadá),3 pelo menos desde o “patriamento” da Constituição do país, promovido por Trudeau à revelia do Quebec, em 1982.4 Nesse sentido, o caso do Quebec é particularmente interessante porque o cerne da demanda feita ao resto-do-Canadá não é impulsionado por uma percepção de exploração (nos moldes das relações coloniais) ou por uma vontade de maior participação na renda e no poder – ainda que estes dois últimos aspectos não deixem de estar presentes. Na realidade, a demanda quebequense não é determinada por uma cons-ciência de exclusão ou mesmo de usurpação dos direitos básicos de cidadania. Há, a rigor, um sentimento de desconsideração.

Inspirando-me em Charles Taylor, no seu The Politics of Recog-niton (1994), gostaria de propor aqui que a desconsideração seria o reverso do reconhecimento, e reflete uma conjunção entre direitos e valores que representaria bem a articulação entre sociologia e história, na forma como foi abordada recentemente pela profª. Eliza Reis, em sua conferência de abertura do 8º Congresso da Socie-dade Brasileira de Sociologia. Como sugere Reis, ao caracterizar a natureza dos conceitos sociológicos, o caso do Quebec seria um bom exemplo da situação onde a articulação entre “generalização e particularidade” não advém apenas da necessidade de se equacionar a teoria sociológica, em sentido estrito, com a compreensão de um caso específico, mas seria parte constitutiva do processo de formu-

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lação do problema ou do conceito sociológico enquanto tal. Isto é, a demanda por reconhecimento da identidade quebequense enquanto um direito, com pretensões de validade ou de legitimação dentro de um universo mais amplo (que inclui segmentos ou grupos sociais que não compartilham a identidade franco-quebequense), não pode fazer sentido quando dissociada do contexto histórico-cultural no qual é enunciada.

Mas, antes de falar sobre o Quebec, devo dizer uma ou duas palavras a respeito do significado das demandas por reconhecimento na nossa contemporaneidade. Tendo como referência a discussão de Berger sobre o processo de transformação da noção de honra em dignidade, com a passagem do ancien régime para a modernidade, Taylor diz que enquanto o primeiro termo está comprometido com a ideia de exclusividade, o segundo se refere a uma condição uni-versalizável. Este processo teria detonado dois movimentos mais ou menos em sequência. Em um primeiro momento teria se difundido o movimento de universalização de direitos e, como desdobramento, um segundo movimento teria se desenvolvido mediante a afirmação e a demanda por reconhecimento de uma identidade autêntica, tanto no plano individual como no coletivo. No plano coletivo, a demanda por reconhecimento expressar-se-ia especialmente nas reivindicações de minorias culturais, no quadro do multiculturalismo, e/ou no bojo de manifestações de cunho nacionalista, como a demanda de soberania do Quebec. Como sugeri em outro lugar, uma das dificuldades de consolidação do segundo movimento é que, ao contrário da ênfase na implantação de condições uniformemente iguais para todos os cidadãos, que caracterizou o primeiro movimento, a demanda por reconhecimento caracteriza-se pela valorização de diferenças ou singularidades (Cardoso de Oliveira, 1999b).

Ainda segundo Taylor, as demandas de reconhecimento têm pelo menos duas características importantes que se manifestam de maneira acentuada no caso do Quebec: (1) um forte conteúdo simbólico que torna absolutamente indissociável a relação entre direitos e valores; e, (2) a dificuldade de serem satisfeitas fora de condições dialógicas

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mínimas, nas quais o reconhecimento do interlocutor reflita uma aceitação genuína da(s) particularidade(s) do outro. Enquanto a primeira característica indica que a falta de reconhecimento, ainda que essencialmente simbólico, pode ameaçar direitos mediante atos de desconsideração – traduzidos na rejeição ou na desvalorização da identidade do outro –, a segunda sugere que a eventual reparação da desconsideração não pode ser plenamente efetivada por meios exclusivamente legais.5 Como veremos, os constrangimentos para um encaminhamento adequado da demanda “quebequense” são agravados pela dificuldade de compreensão da mesma no Canadá inglês, à luz de visões tradicional e culturalmente distintas, quando não divergentes, sobre a “unidade canadense”, assim como sobre o papel de francófonos e anglófonos na formação do país.

Desconsideração e equidade no QuebecApesar de o Canadá ser justificadamente considerado um país

com sólidas tradições democráticas, distinguindo-se inclusive pela atenção dirigida a questões de equidade e de solidariedade social,6 a percepção de desconsideração demonstrada pelos francófonos é amplamente difundida no Quebec, mesmo entre aqueles que, além de prezarem, sentem orgulho dessas características da democracia canadense. De fato, para entender melhor o problema é necessário voltar os olhos para a história do relacionamento entre anglófonos e francófonos no Canadá, assim como para as diferenças de pers-pectiva entre os grupos no que concerne à situação de cada um na Federação canadense.

A fundação da cidade de Quebec, em 1608, marca o início da co-lonização francesa na América, então chamada de Nova França, que 55 anos mais tarde se tornaria uma colônia real. Depois da rendição do Quebec para os ingleses em 1759, a França cede formalmente o Canadá à Inglaterra em 1763, através do Tratado de Paris. Embora a partir daí o Canadá tenha passado todo o período colonial sob o domínio inglês, o Quebec pôde manter a língua, assim como algumas

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de suas principais instituições culturais, e durante muito tempo ainda o termo “canadense” seria utilizado exclusivamente com relação aos francófonos. Com a celebração do “Ato do Quebec” em 1774, é permitido ao Quebec a manutenção de suas instituições religiosas (o catolicismo), jurídicas (o código civil) e o uso do francês como língua oficial. Há apenas um período de certa repressão às instituições francesas, durante a vigência do chamado Regime do Ato de União (entre 1840 e 1867), quando o Alto (Ontário) e o Baixo (Quebec) Canadá são reunidos sob um mesmo governo pela Coroa britânica, que implementa uma política de assimilação da população de origem francesa, seguindo a orientação do famoso “Lord Durham’s Report”. Somente com a criação do Domínio do Canadá, em 1867, através do Ato da América do Norte Britânica, são restabelecidos os direitos linguístico-culturais do Quebec e é legitimada a união entre o Alto e o Baixo Canadá, aos quais se juntam as províncias da Nova Escócia e do Novo Brunswick.

A Constituição emendada em 1982, após o “patriamento”, foi a que havia sido promulgada em 1867 junto com o Ato da América do Norte Britânica, e que refletia, do ponto de vista francófono, a composição ou o acordo possível e adequado no momento – garantia um mínimo de autonomia às províncias e preservava uma proporcio-nalidade razoavelmente satisfatória quanto à representação política de anglófonos e francófonos no seio da Federação canadense, ainda que já naquela época algumas lideranças receassem que o acordo viesse, ao longo do tempo, a colocar os francófonos em uma condi-ção de minoria. De fato, os francófonos passam por um período de “minorização” que só viria a ser frontalmente questionado a partir dos anos 60, com a Revolução Tranquila. Da perspectiva do Quebec, a autonomia político-administrativa de então, somada a um certo equilíbrio político entre anglófonos e francófonos na Federação, representava ainda uma possibilidade efetiva de viabilizar a legiti-mação política da dualidade canadense, expressa na visão do Canadá como um país formado por dois povos ou nações fundadoras, que deveriam ser tratados enquanto tais e em pé de igualdade. Em outras

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palavras, um país bilíngue e bicultural, ainda que contemplasse o respeito a outras minorias étnico-nacionais e valorizasse uma diver-sidade cultural mais ampla. Nesse contexto, e da perspectiva de um francófono, Guy Laforest (1995) interpreta as mudanças promovidas por Trudeau com o “patriamento” da Constituição como “o fim de um sonho canadense”.7

Por outro lado, os ingleses rejeitam a tese dos dois povos ou nações fundadoras, preferindo sublinhar o caráter multicultural do país e o respeito às diversas etnias que contribuíram para a cons-tituição do Canadá enquanto nação. Aqui, o inglês é visto apenas como língua ou instrumento de comunicação pública, inteiramente dissociado do cultivo das várias culturas ou tradições que convivem no país e que predominariam de forma alternativa na esfera privada de cada cidadão ou segmento da sociedade canadense. Desse ponto de vista, o favorecimento de qualquer língua, cultura ou tradição teria um caráter discricionário e, portanto, ilegítimo. A própria cultura ou tradição anglófona seria apenas uma dentre outras, e não mere-ceria qualquer privilégio ou reconhecimento especial por parte do Estado. Apesar de essa visão retratar bem uma dimensão importante do mosaico anglo-canadense, subestima a importância da cultura anglo-americana que é difundida por intermédio da língua. Já para a população franco-quebequense que teve de conviver com a dualidade canadense tanto no plano linguístico como no cultural – pelo menos desde a derrota para os ingleses em 1759 –, a dissociação radical entre língua e cultura não faz sentido.

Essa diferença de perspectiva está na base da divergência sobre a relação entre direitos individuais e coletivos, ou da crítica quebequen-se à política federal de multiculturalismo. No último caso, enquanto o multiculturalismo é visto no Canadá inglês como um reconheci-mento da igualdade entre os diversos segmentos étnico-culturais no país, é percebido no Quebec como um sinal de desconsideração à especificidade quebequense e de imposição, de fato, da hegemonia anglo-americana em todo o território canadense (ver nota 4). Da mesma forma, a prioridade dada aos direitos individuais na Carta de

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Direitos e Liberdades instituída em 1982, e fortemente apoiada no Canadá inglês, é questionada no Quebec quando diminui a autonomia legislativa da província, pondo em risco a sobrevivência da Lei nº 101 e, consequentemente, a reprodução da cultura ou da forma de vida franco-quebequense.

Aliás, a Lei nº 101, que protege a sobrevivência da língua fran-cesa no Quebec, está no centro dos desentendimentos com o Canadá inglês e representa o aspecto mais visível e importante do processo de afirmação (do valor) da identidade quebequense. Embora não se possa falar de qualquer tipo de repressão às tradições franco-canadenses por parte de Ottawa, é verdade que antes da promulgação da Lei nº 101, em 1977, que limita a utilização do inglês, a língua francesa e a cultura quebequense estiveram fortemente ameaçadas de desaparecerem; primeiro em Montreal e, acreditava-se, posteriormente na província do Quebec como um todo. Desse modo, o período anterior a essa lei é percebido como de repressão indireta ao francês, na medida em que o mercado de trabalho privilegiava o domínio da língua inglesa e os imigrantes eram fortemente estimulados a se integrarem à população anglófona. Além disso, são frequentes as histórias de discriminação informal que teria sido vivida pela população francófona até então,8 quando os principais estabelecimentos comerciais de Montreal se recusavam a servi-la em francês, utilizando a expressão “speak whi-te!”, para obrigar os francófonos a fazerem seus pedidos em inglês.

Na verdade, o crescimento mais recente do nacionalismo que-bequense9 está diretamente ligado à percepção de que as mudanças constitucionais de 1982 podem impor a eventual derrubada da Lei nº 101, e inviabilizar qualquer mecanismo de proteção à língua e/ou à cultura quebequenses. Isto é, o Quebec estaria ameaçado de perder os instrumentos para lutar contra a imposição do inglês e da visão de mundo anglo-americana como padrão ou “forma de vida” únicos na América do Norte. Além disso, a percepção da falta de reconhe-cimento da especificidade e/ou do valor da cultura quebequense é vivida como uma experiência de discriminação: não só ao grupo, mas à pessoa do cidadão quebequense, que ficaria assim impedida

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de resgatar o que tenho chamado de “substância moral” da pessoa, a qual seria constitutiva dos direitos de cidadania associados ao re-conhecimento da dignidade ou à consideração à pessoa do cidadão (ver Cardoso de Oliveira, 1996c). Como assinala Taylor (1994), o resgate da dignidade na nossa contemporaneidade demanda o reco-nhecimento de uma identidade autêntica que, nesse caso, estaria sendo negada ou depreciada. Não seria supérfluo enfatizar aqui que os francófonos têm bons motivos para não pensar a proteção à so-brevivência do francês, instituída pela Lei nº 101, como uma medida essencialmente agressora aos direitos individuais dos cidadãos, que teriam suas opções linguísticas limitadas, mas, pelo contrário, como uma medida de proteção da liberdade de escolha dos francófonos de viver em francês.

Nesse sentido, se é verdade que essa lei impede que os francó-fonos, assim como todos aqueles cujos pais não fizeram o primeiro grau em escolas de língua inglesa no Canadá, matriculem seus filhos em escolas anglófonas no Quebec, também é verdade que ela tornou o francês uma opção viável no mercado de trabalho e fortaleceu os me-canismos de reprodução sociocultural dos francófonos. Dado o grande apoio que a Lei nº 101 encontra no Quebec, especialmente (mas não só) entre a maioria de origem francesa, é difícil deixar de interpretá-la como expressão de uma vontade ou projeto democrático. Em Montreal, onde a ameaça do inglês é mais forte, e onde até a promulgação da Lei nº 101 o mundo do trabalho ou do emprego funcionava quase que exclusivamente em inglês, são muito comuns os relatos de francófonos que hoje estão aposentados, mas que lamentam a perda de oportuni-dades e as dificuldades com as quais se defrontavam no emprego, em vista do domínio inadequado da língua inglesa que lhes era imposta no trabalho. Apenas a partir de 1977, com a aprovação da Lei nº 101, essa situação começou a ser relativizada, devido à exigência de que dentro de um determinado prazo todas as empresas com mais de cinquenta empregados deveriam ser geridas em francês.10

Se deixarmos de lado alguns exageros quanto à limitação do acesso à escola de língua inglesa, como no caso de imigrantes

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anglófonos que são obrigados a mandar os filhos para escolas de língua francesa,11 a lei não é tão severa assim quanto à língua de instrução, na medida em que ela se restringe ao ensino de 1º e 2º graus. Isto é, resguarda direitos de opção plenos para os anglófonos não imigrantes (ou para os filhos de imigrantes), cujo pai e/ou a mãe tenham estudado em uma escola de língua inglesa no país.12 Entretanto, há um aspecto da lei bem mais polêmico que, além de já ter sido contestado pela Suprema Corte do Canadá, tem dado origem a acirrados debates e mobilizações políticas. Estou me referindo à seção da lei que, inicialmente, proibia a utilização de letreiros em qualquer língua que não fosse o francês, mas que atualmente permite a colocação de letreiros ou cartazes bilíngues, desde que o francês ocupe pelo menos o dobro do espaço ocupado pelo outro idioma (normalmente o inglês).13

De fato, o debate sobre a legislação linguística ocupa um lugar especial na delimitação das diferenças de visão sobre a unidade canadense cultivadas por francófonos e anglófonos, assim como na maneira como a relação entre os grupos é percebida pelos atores, ainda que haja diferenças de perspectiva significativas no interior de cada grupo. Além de ser um índice importante na definição da identidade dos grupos, a língua tem se constituído na principal re-ferência para a marcação de posições políticas e para a explicitação de divergências.14

Como não poderia deixar de ser, a receptividade das demandas políticas do Quebec no mundo anglófono também passa por um esforço de articulação entre as categorias língua e direitos. Isto é particularmente verdade no caso da comunidade anglófona do Quebec a qual é, a um só tempo, mais sensível às demandas quebequenses e mais preocupada com as consequências daí advindas. Nesse sentido, vale a pena observar que, para os anglófonos do Quebec, a visão do inglês como língua instrumental dissociada da cultura, que predo-mina no resto-do-Canadá, não encontra o mesmo espaço. Embora a comunidade anglo-quebequense faça coro com o resto-do-Canadá no questionamento de pelo menos parte das demandas franco-que-

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bequenses, mediante a defesa dos direitos individuais dos cidadãos não-francófonos,15 ela não consegue articular adequadamente todas as suas (contra)reivindicações sem fazer uso da noção de comunidade (linguística), sugerindo, portanto, a legitimidade de direitos que não encontrariam respaldo exclusivamente no plano do indivíduo, tendo de se reportar necessariamente a um universo mais amplo.

Nesse sentido, é interessante o sucesso recente do movimento pela aplicação da Lei nº101, no que concerne aos letreiros, com o objetivo de defender direitos da comunidade anglófona do Quebec. O movimento foi liderado por um empresário local, Galganov, e exigia que os letreiros das grandes lojas fossem todos bilíngues, ainda que o francês ocupasse pelo menos o dobro do espaço alocado à outra língua (o inglês), como reza a lei, após as modificações introduzidas pelas Leis nº 178 (em 1988) e nº 86 (em 1993).16 Ao longo do tempo, esses empreendimentos teriam optado por expor letreiros somente em francês, deixando de contemplar a possibilidade prevista em lei em atenção às demandas dos anglófonos. O movimento ganhou grande popularidade entre anglófonos e segmentos dos alófonos que se sentem mais à vontade em inglês, e conseguiu que algumas lojas se comprometessem com a implementação das mudanças reivin-dicadas. Essa vitória subiu à cabeça de Galganov e provocou a ira da militância pequista (do partido quebequense), que começou um contramovimento pela radicalização da Lei nº 101. Por seu turno, Gal-ganov também radicalizou suas demandas e viu com isto uma rápida diminuição de seu recém-conquistado capital político. Sua tentativa de sensibilizar os norte-americanos para os problemas da minoria anglófona não encontrou a receptividade esperada, e sua estratégia de provocar uma reação repressiva do governo quebequense ao abrir uma loja com letreiros ilegais, onde o inglês e o francês ocupavam espaços equivalentes, também não deu resultados.17

Aliás, no Quebec, a tomada de posições políticas mais agressi-vas por parte dos anglófonos, em relação às demandas franco-que-bequenses, data do iníco dos anos 70 quando, ao lado da fundação do Partido Quebequense,18 é promulgada a primeira lei de defesa

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do francês: Lei nº 22 de 1974.19 Mesmo sem ameaçar diretamente quaisquer direitos dos anglófonos, a Lei nº 22 sinalizava claramente a disposição de afirmação da identidade quebequense que, segundo Legault (1992), começava a ser vivida pelos anglófonos como um processo de “minorização” que eles teriam dificuldade de aceitar. É assim que várias associações e grupos de pressão são criados nos anos 70, em defesa dos direitos dos anglófonos. De certa forma es-tes se veem pela primeira vez, no Quebec, em posição similar à dos francófonos no resto-do-Canadá, e a relação com o Quebec passa a ter sinais invertidos. O maior símbolo de rejeição da nova condição é a criação do Equality Party, ou Partido da Igualdade, que exige um tratamento estritamente igual, especialmente no que concerne à utilização das duas línguas oficiais e ao acesso à escola de língua inglesa. Apesar de o Partido da Igualdade só ter sido criado em 1989 e de não representar segmentos expressivos da comunidade anglófona, seu comportamento político ilustra bem a posição predominante no resto-do-Canadá em relação ao Quebec, e representa igualmente bem a dificuldade de o resto-do-Canadá, também presente na perspectiva liberal predominante nas democracias modernas, dissociar as noções de igualdade e de equidade.

Conhecido como um “one issue party”, ou partido de uma só questão, o Partido da Igualdade tem um programa trudeuaniano cal-cado na defesa de três princípios: “1. os direitos ditos fundamentais, 2. o bilinguismo, [e] 3. o federalismo” (idem:54). Ou seja, um fede-ralismo radicalmente “simétrico” em que, não só todas as províncias do Canadá devem ser tratadas de forma absolutamente igual, mas seus cidadãos têm de ser tratados de maneira idêntica para se evitar situações de iniquidade. Aqui não há espaço para noções como a de “Sociedade Distinta”, por intermédio da qual o Quebec ainda vizualiza uma possibilidade satisfatória de renovação do federalismo canadense, desde que a noção tenha precedência constitucional e permita a relativização dos direitos individuais sempre que estes se constituírem em uma ameaça à sobrevivência linguístico-cultural do Quebec. Tampouco haveria espaço para o equacionamento de direitos

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à luz de valores e identidades específicos, mesmo quando a satisfação da demanda não pusesse em risco os direitos básicos de cidadania daqueles que não se identificam com o demandante.

É nesse contexto também que a ideia da partição do Quebec aparece como um desdobramento lógico e natural de uma eventual declaração unilateral de soberania frente ao Canadá. De fato, não creio que esta alternativa tenha que estar necessariamente excluída da discussão. Contudo, chama a atenção a retórica de legitimação das propostas de partição defendidas pelos anglófonos, segundo a qual esta seria uma consequência adequada e previsível do processo de autonomização do Quebec, na medida em que representaria a única alternativa de tratamento igual (ou seja, simétrico e uniforme) em relação aos segmentos da população que gostariam de perma-necer dentro do Canadá. Se o Quebec pode separar-se do Canadá, qualquer municipalidade também deve ter o direito de se separar do Quebec. Aqui não importam as eventuais diferenças socioculturais que caracterizam os dois tipos de situação, nem a especificidade das visões ou interpretações que dão sentido e sustentação às demandas de parte a parte. De acordo com essa perspectiva, para que os direitos das partes sejam respeitados é necessário que estas sejam tratadas de maneira absolutamente igual e uniforme, não sendo relevantes as possíveis diferenças de condição e de identidade. Só para dar um contra-exemplo dentro da própria discussão sobre partição, não me parece que a eventual demanda de permanência dentro da Federação canadense por parte de grupos autóctones como os Cree ou os Inuit, que possuem uma história de relacionamento muito particular com o Canadá e o Quebec, esteja exatamente no mesmo plano de demandas similares de municipalidades com maioria anglófona.20

O problema dessa simetria individualista, ou da dificuldade de se separar conceitualmente as noções de igualdade e de equidade, é que, assim procedendo, só se consegue tratar como igual aquilo que é uniforme.21 Mas, então, o que fazer em situações em que a condição para o desenvolvimento de uma relação reciprocamente respeitosa está na possibilidade de os interlocutores reconhecerem a

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especificidade das identidades de um e de outro? Será que o ideal de equanimidade não estaria melhor contemplado no reconhecimento respeitoso das diferenças, em vez da imposição de uma uniformidade artificial e desconsideradora da identidade ou da dignidade do outro? Em qualquer hipótese, nada indica que a relação entre o Quebec e o Canadá, ou entre anglófonos e francófonos em Montreal, possa ser bem equacionada sem que sejam negociadas formas de reconheci-mento que safisfaçam as partes e superem a sensação de agressão imposta pela negação da particularidade. Apesar das dificuldades colocadas pela supremacia quase absoluta dos direitos individuais nas democracias liberais contemporâneas, a própria experiência canadense/quebequense sugere possiblidades mais felizes para o equacionamento desse tipo de problema. Seja mediante a retomada de acordos como o do Lago Meech (que reconhecia o caráter distinto do Quebec), de propostas como as de Taylor (1992:140-154) para a implementação de um federalismo assimétrico, ou do exemplo de construção de perspectivas convergentes, como a que parece estar embutida na nova redação da parte referente aos letreiros na Lei nº 101, e que limita a utilização de outras línguas nos cartazes à ocupa-ção de um espaço não superior à metade daquele tomado pelo francês.

Inspirando-se em Tocqueville, Handler faz uma crítica interes-sante à política cultural no Quebec, através da qual os soberanistas procurariam reforçar a identidade nacional quebequense. Ao unifor-mizar, administrativamente, a implementação da política cultural na província, o Estado acabaria contribuindo para a fragmentação social, inviabilizando assim a identificação dos atores com a ideia de totalidade que teria motivado a definição da política em pauta (Handler, 1988:192-196). Entretanto, no contexto da relação com o Canadá, constitutiva da identidade nacional quebequense, a de-manda do Quebec se traduz exatamente em uma rejeição à relação de identidade entre igualdade e uniformidade no plano dos direitos, sugerindo uma maior abertura para o tratamento das diferenças, sem abrir mão do valor da igualdade enquanto princípio estruturador das democracias modernas.

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Finalmente, caberia perguntar se, a partir do resgate da noção de equidade, e de sua articulação com as ideias de valor que balizam identidades sociais, não seria viável pensar em assimetrias que pu-dessem ser legitimadas em uma sociedade democrática. Assimetrias que não se referissem aos direitos básicos de cidadania, mas que per-mitissem a relativização dos critérios de universalização de direitos sempre que a possibilidade de tratamento uniforme pudesse ter como implicação a negação ou a depreciação da identidade de uma das par-tes, cujo reconhecimento (importante para o exercício da cidadania) não tivesse como consequência a introdução de desigualdades ou de iniquidades sociais. Será que a valorização de particularidades, em contextos específicos, não estaria mais de acordo com os ideais de equidade onde a avaliação dos direitos demanda um exame das condições que caracterizam a situação das partes em relação ao problema em pauta? Ou ainda, será que não poderíamos falar, com Dumont, em diferentes níveis de significação, onde a passagem do primeiro (mais abrangente) para o segundo (menos abrangente) nível contemplasse a possibilidade de inversão valorativa para atender à especificidade do contexto?22

Assim, no que se refere aos direitos básicos e universais de cidadania, a condição dos cidadãos canadenses seria igualmente uniforme, mas, no segundo nível, no âmbito do Quebec e no con-texto da defesa da identidade ou da cultura franco-quebequense (ameaçada pelo poder de persuasão/imposição da cultura anglo--norte-americana), seria adequado que o caráter distinto da socie-dade quebequense tivesse precedência sobre os direitos individuais sempre que a radicalização dos últimos significasse uma agressão à identidade quebequense sem que o inverso fosse verdadeiro, isto é, sem que o reconhecimento da distinção provocasse a usurpação dos direitos de cidadania dos anglófonos.

Nesse sentido, a chave para a legitimação de eventuais assi-metrias estaria na possibilidade de se articular um equacionamento adequado entre os dois níveis de significação ou de abrangência da cidadania, assim como indicado acima: o nível dos direitos básicos

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(e universais) do indivíduo e aquele do direito ao reconhecimento da identidade (singular) da pessoa do cidadão. Como sugeri na introdu-ção deste capítulo, os problemas de iniquidade no Brasil advêm, em grande medida, de uma má articulação entre os dois níveis na vida cotidiana – mas também no plano institucional, como a discussão de Santos (1987) sobre cidadania regulada aponta –, onde o reconhe-cimento da identidade costuma ter precedência sobre o respeito aos direitos básicos, estimulando o que tenho chamado de discriminação cívica (Cardoso de Oliveira 1997; 2001b). Em outras palavras, o reconhecimento da dignidade do cidadão está subordinado, entre nós, à lógica da honra da qual nos falam Berger e Taylor, a qual seria incompatível com o princípio fundamental da igualdade, característi-co das democracias modernas. Por outro lado, no caso do Quebec, a falta de reconhecimento da identidade cultural da maioria francófona pode ser interpretada como um ato de desconsideração à pessoa do cidadão, ou como um insulto moral àqueles que portam a referida identidade. Ou seja, a desconsideração não deixaria de se constituir em uma agressão a direitos (de cidadania), ainda que estes tenham uma dimensão moral que não pode ser inteiramente contemplada no plano legal. Para além da importância de se resguardar a integridade ético-moral da pessoa do cidadão contra agressões à sua dignidade, a demanda do Quebec por reconhecimento traz à tona os riscos de reificação do princípio da igualdade quando, associado (radicalmente) à ideia de uniformidade, não permite um equacionamento adequado das questões de equidade nas quais o referido princípio estaria na realidade assentado.

Notas1 A usurpação de direitos dar-se-ia sempre que alguém fosse prejudicado no acesso a bens, serviços, posições ou benefícios porque um concorrente teria passado a sua frente mediante a utilização de “pistolão”, ou do acionamento de relações pessoais que lhe garantiriam o tratamento privilegiado.2 Tais processos seriam correlatos à situação de usurpação de direitos indicada na nota 1, e seriam detonados por atos de nepotismo, de clientelismo ou da

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prestação (troca) de favores, sempre que o beneficiado tivesse tido acesso privi-legiado a recursos públicos devido a relações pessoais, em prejuízo dos demais concorrentes (reais ou virtuais). A privatização do espaço público também se dá através da atuação de grupos sociais, quando suas organizações representativas conseguem vantagens particulares para o grupo sob a capa do interesse público. A defesa da paridade nas universidades (Cardoso de Oliveira, 1996c), assim como as vantagens fiscais conseguidas pelos usineiros em Alagoas seriam bons exemplos de movimentos ou de ações “privatistas” que beneficiam grupos organizados (Cardoso de Oliveira, 2001b/capítulo 6 a seguir).3 A expressão “resto-do-Canadá” é corrente no país para se referir ao território canadense majoritariamente anglófono e engloba todas as províncias e territórios com excessão do Quebec.4 Até 1982, a Constituição canadense ficava na Inglaterra sob a guarda do Par-lamento inglês e, segundo alguns, o país não podia se considerar totalmente independente, apesar de a Coroa não interferir desde há muito nos assuntos internos do Canadá. Aliás, como se sabe, o Canadá ainda é uma monarquia e até hoje a rainha (da Inglaterra) tem um representante formal em cada província e outro na capital federal. Mas, com o “patriamento” da Constituição, esta pode ser emendada (autonomamente) possibilitando, inclusive, a anexação de uma Carta de Direitos e Liberdades, garantindo a precedência de direitos básicos individu-ais a todos os cidadãos. Além de a Carta ter sido tomada no Quebec como uma ameaça a sua sobrevivência cultural, na medida em que se confrontava com a legislação linguística da província, a nova Constituição consolidou a situação de centralização administrativa que vinha se agravando desde a Segunda Guerra, e fortaleceu a política de multiculturalismo ao lado do bilinguismo oficial. A opção pelo multiculturalismo, em lugar do biculturalismo defendido pelas principais lideranças do Quebec, foi interpretada por estas como uma agressão, pois negava a dualidade canadense e não reconhecia a especificidade cultural do Quebec. O Quebec jamais concordou com os termos do “patriamento” e nunca assinou a nova Constituição que considera ilegítima, pois seria produto de alterações unilaterais do texto original, tratando-se, portanto, de uma imposição arbitrária e não democrática. Nessa visão o Quebec teria sido traído e esta situação tem sido simbolizada através da imagem “de la nuit des longs couteaux”, que teria marcado a traição dos primeiros-ministros das províncias anglófonas a René Lévesque, então primeiro-ministro do Quebec, às vésperas do acordo político que possibilitou a efetivação do “patriamento” da Constituição.5 Um dos problemas colocados por demandas desse tipo é que elas têm um forte componente moral, cuja satisfação, frequentemente, não encontra me-canismos efetivos nos sistemas jurídicos vigentes nas democracias modernas. A esse respeito, Berger (1983) chama a atenção para a impossibilidade de se

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obter reparação para insultos à honra (morais) em sociedades como a norte--americana, isto é, insultos que não podem ser traduzidos na linguagem de uma agressão a direitos legais, nem podem ser facilmente transformados (sem qualquer mediação) em uma indenização monetária. De certa forma, os atos de desconsideração discutidos aqui constituem insultos de ordem moral (à honra ou à dignidade do ator).6 Um indicador expressivo dessa preocupação com questões de equidade e solidariedade é a agressividade das políticas sociais, especialmente nas áreas de saúde e educação, as quais têm garantido ao Canadá a honra de vir sendo considerado, consecutivamente, pela ONU, nos últimos anos, o país onde a população tem a melhor qualidade de vida no mundo.7 Como o própio Laforest reconhece, após a realização dos debates constitu-cionais que antecederam o acordo de Charlottetown, em 1992, a tese das duas nações ou povos fundadores não se sustenta mais, na medida em que não há mais como legitimar um discurso sobre a formação do país que não inclua o papel formador das populações autóctones (índios, esquimós e mestiços).8 Tal discriminação teria sido vivida com mais vigor até meados dos anos 60, quando os efeitos da Revolução Tranquila ainda não haviam sido sentidos e quase todos os empreendimentos econômicos de Montreal estavam nas mãos de empresários anglófonos.9 Para uma visão geral do nacionalismo quebequense ao longo da história, consulte a obra de G. Gougeon (1993). 10 O governo do Quebec distribui certificados de “afrancesamento” às empresas que concluem o processo de implantação do francês como língua de trabalho, e as empresas que estão atrasadas estão sujeitas a restrições em relação à prestação de serviços ao Estado, à obtenção de linhas de crédito do governo etc.11 Recentemente a imprensa deu grande destaque ao caso de uma menina angló-fona cujo pai acabara de imigrar para o Quebec, e que estava sendo obrigada a frequentar uma escola de língua francesa sem ter conhecimento algum do idioma, em uma região onde havia grande disponibilidade de vagas em escolas de língua inglesa.12 Quando foi criada, a Lei nº 101 era mais radical e facultava o acesso à escola de língua inglesa apenas para as crianças cujos pais tivessem frequentado uma escola inglesa no Quebec.13 Apesar de a proibição atingir também outras línguas, o alvo principal é evidentemente o inglês. Entretanto, há muitas minorias etno-linguísticas em Montreal e, mesmo que o governo não faça qualquer outro tipo de restrição

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ao uso dos outros idiomas, há uma grande preocupação de estimular o francês como língua oficial no mundo público. Só para se ter uma ideia da pluralidade étnico-cultural de Montreal, uma antropóloga da Universidade de Montreal encontrou não menos de 150 grupos linguísticos e culturais diferentes em Côte de Niege (Mentel, 1996:26), um bairro vizinho à universidade, e na edição de 29 de novembro de 1997 do Le Devoir, uma reportagem assinala que chega a 110 o número de línguas faladas cotidianamente neste bairro.14 É interessante notar que nem os imigrantes escapam dos rótulos linguísti-cos enquanto definidores de posições e/ou perspectivas políticas. Assim, os diversos grupos étnico-linguísticos são aglutinados sob a categoria alófonos, que perpassa todos aqueles que não se situam em nenhum dos dois grupos linguísticos principais.15 A rigor, a bandeira da defesa dos direitos individuais contra a legislação linguís-tica abrangeria os direitos dos francófonos, os quais, segundo essa visão, seriam os mais prejudicados enquanto indivíduos/cidadãos, na medida em que seriam aqueles diretamente atingidos pela proibição de frequentar escolas de língua inglesa.16 A aprovação das Leis nº 178 e nº 86 foi motivada por uma decisão da Corte Suprema do Canadá que, em 1988, considerou inconstitucional a proibição prevista na Lei nº 101 quanto à utilização de outras línguas, que não o francês, nos letreiros comerciais. De acordo com a chamada “cláusula derrogatória”, o Quebec poderia deixar de aplicar a decisão da Corte por um prazo máximo de cinco anos, mas teria que fazê-lo em 1993, quando a Lei nº 86 foi aprovada.17 A loja chamava-se “[Presque]Pure Laine/Pure Wool”, o que enfatizava a dimensão de provocação do empreendimento, tendo em vista que pure laine é a expressão quebequense para se referir aos francófonos descendentes dos colonos franceses que se estabeleceram no Canadá antes do domínio britânico, sendo muito valorizada no Quebec. De qualquer forma, a loja não obteve o sucesso esperado e Galganov teve de fechá-la poucos meses após sua inauguração.18 Primeiro partido político da província que tem como objetivo primordial a conquista da soberania do Quebec, criado por René Lévesque.19 A Lei nº 22 era muito mais branda que a nº 101 e não impunha qualquer restrição ao uso do inglês, mas afirmava pela primeira vez que o francês era a única língua oficial do Quebec (Legault, 1992:35).20 A propósito, na semana que antecedeu o referendo de outubro de 1995, duas nações autóctones do Quebec realizaram seus próprios referendos, e a opção pela manutenção do vínculo com o Canadá, em oposição ao Quebec, teve ampla maioria: 96% no caso dos Cree e 95% no caso dos Inuit.

88 direito legal e insulto moral

21 Dessa perspectiva, segundo a edição de 13 de setembro de 1997 do The Gazette, uma pesquisa feita pela firma SOM para a revista l’Actualité revela que 60% da população do Quebec seria favorável ao direito de partição das regiões do Quebec que desejassem continuar ligadas ao Canadá, no caso dos separatistas vencerem o próximo referendum. Estes dados são particularmente significativos se pensarmos que, apesar da grande importância atribuída pela população francófona à manutenção da integridade territorial do Quebec, os atores questionam a legitimidade de tal posição se o preço de sua implementa-ção for o desrespeito aos direitos democráticos/igualitários dos anglófonos, que deveriam ser tratados de maneira igual e uniforme em relação à maioria francófona.22 Dumont fala em níveis hierárquicos e em inversão hierárquica para referir-se ao mesmo fenômeno no caso da Índia, tomada como uma sociedade holista (1992a:369-375). Ao definir a hierarquia como uma relação que se caracterizaria pelo englobamento do contrário, Dumont destaca níveis hierarquizados onde a inversão de valores no nível inferior não se constitui em uma contradição lógica para o sistema, na medida em que a inversão está referida a uma situação particular ou específica que mantém uma relação de dependência ou subordina-ção ante o nível superior na sociedade como um todo. No caso das sociedades modernas e individualistas, em que a categoria indivíduo tem precedência no plano da ideologia, talvez não fosse muito apropriado se falar em inversão hierárquica. Contudo, como nessas sociedades os atores não deixam de valorar sua experiência, assim como as relações ou contextos nos quais se envolvem, a distinção de níveis continua sendo importante para viabilizar a compreensão dos atores sobre a vida social. A diferença aqui é que em vez de hierarquia, devemos falar em níveis de significação e relevância (ou abrangência), onde a relação de assimetria entre os níveis não tem as mesmas implicações da relação hierárquica para a ideologia. É por isso que, em lugar de inversão hierárquica, preferi utilizar aqui a noção de inversão valorativa.

Capítulo IV

Comunidade política e cultura pública no Quebec

Dentre os clássicos da sociologia, Weber foi certamente aquele que mais contribuiu para a temática do racionalismo ocidental, seja no plano dos processos de racionalização da organização ou do sistema social, seja no plano da racionalização das instituições ou das esferas culturais. Pode-se dizer que, se para Weber o desenvolvimento de todas as formas de organização social estava associado a processos de racionalização, isto era verdade também para o que ele chamava de comunidades políticas, as quais, na nossa contemporaneidade, se expressam na forma do Estado-Nação. No Ocidente, a racionali-zação das comunidades políticas veio desembocar nas democracias liberais modernas, as quais se caracterizam pela defesa de princípios de justiça que têm como foco os direitos individuais dos cidadãos, e são críticas de qualquer tentativa de se associar a identidade política da comunidade a valores não universalizáveis.

Como é bem sabido, apesar de identificar os processos de ra-cionalização com as ideias de desenvolvimento, complexificação e autonomização (das esferas culturais), Weber não deixava de ser crítico em relação a estes processos, e seu diagnóstico da modernidade era algo sombrio. De um lado, identificava uma perda de liberdade nos processos de burocratização, que acompanhavam e permitiam o desenvolvimento de níveis cada vez mais complexos de organização social, na medida em que a ação racional deixava de ser dirigida pela avaliação de indivíduos autônomos orientados por princípios e/ou

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valores, para satisfazer aos imperativos das organizações (Habermas, 1984: 352). De outro lado, identificava nos processos de seculariza-ção ou de desencantamento das visões de mundo, e na consequente diferenciação/autonomização das esferas culturais de valor, uma perda de significado que ameaçava a integração social (idem: 350).1

No que se segue, procurar-se-á discutir, mediante a análise das demandas por reconhecimento do Quebec, assim como expressas no modelo de comunidade política que encontra maior respaldo entre a população quebequense, até que ponto essa dissociação entre direitos e valores, ou entre valores universais e locais, permite o desenvolvi-mento de níveis satisfatórios de integração social. Isto, especialmente no contexto das dificuldades que são encontradas pelas democracias liberais modernas para lidar com as demandas por reconhecimento de que fala Charles Taylor (1994) – as quais têm-se constituído em uma das principais reivindicações políticas na atualidade – e que talvez pudéssemos associar a uma tentativa de combater, no âmbito das comunidades políticas, a perda de significado indicada por Weber em seu diagnóstico da modernidade. Assim, apresentarei inicialmente a definição de Weber da noção de comunidade política, chamando a atenção para algumas de suas principais características, para depois fazer uma breve exposição do conceito de cultura pública comum e introduzir a discussão sobre o Quebec.

A noção de comunidade políticaEm Economia e sociedade, obra que reúne suas principais con-

tribuições teórico-conceptuais, Weber apresenta a seguinte definição para a noção de comunidade política:

uma comunidade cuja ação social é dirigida para a subordi-nação de um território e da conduta das pessoas dentro dele à dominação ordeira por parte dos participantes, através da disposição de recorrer à força física, incluindo normalmente a força das armas. (1978:901).

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Além de dominar um território e de manter o controle sobre a conduta de seus habitantes, mesmo que tenha que fazer uso da força física para tal, uma comunidade política se caracterizaria ainda pela capacidade de regulação das interações entre seus membros, em sentido amplo, não se restringindo às ações ou práticas sociais voltadas apenas para a realização de seus interesses econômicos (idem: 902). Na mesma direção, a referência ao caráter ordeiro da dominação chama a atenção para a importância do reconhecimento da autoridade ou da legitimidade das relações de poder constituí-das.2 Em outras palavras, as comunidades políticas distinguir-se--iam também pelo cultivo de valores e peculiaridades culturais partilhados entre seus habitantes (e.g., símbolos nacionais), assim como pelo sentimento de solidariedade e, por que não, por uma identidade compartida.

Contudo, o processo de racionalização das instituições políticas típicas das democracias liberais modernas – em um contexto de grande diferenciação social e de crescente diversidade cultural – pro-vocou um distanciamento de tal ordem entre o arcabouço político--institucional destas democracias, e as formas de vida específicas que lhes dão substância, que se teria tornado difícil concebê-las como comunidades políticas em termos weberianos. Isto é, como unidades políticas que tenham uma identidade cultural definida, ou que compartilhem uma doutrina religiosa, filosófica ou moral deter-minada. De certo modo, é por essa razão que autores como Rawls preferem falar em sociedades políticas (1993:40-43), deixando de lado a noção de comunidade. De toda maneira, como a definição de unidade política, mesmo quando aplicada de forma restrita apenas às democracias constitucionais modernas, continua demandando algum tipo de articulação entre princípios e valores, concepções de organização política estritamente formais ou procedimentais não dão conta do problema. Pois é exatamente nesse contexto que noções como a de cultura pública comum tomam corpo e ganham espaço no debate conceptual.

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A noção de cultura pública comumEm parte para responder às críticas dos comunitaristas quanto

à importância da identidade de grupo ou da percepção de pertencer ao grupo, do ponto de vista do cidadão, e dos laços de solidarieda-de daí advindos, os liberais desenvolveram noções como cultura pública ou cultura política comum para poder incorporar de alguma maneira a dimensão dos valores, tida como importante na articulação da motivação dos atores para participar da vida política e exercer a cidadania característica das democracias deliberativas. As duas noções têm sido utilizadas pelos defensores de um nacionalismo cívico no Quebec e são associadas aos trabalhos de autores como Rawls (razão pública, fórum de princípios, pluralismo razoável) e Habermas (patriotismo constitucional).

Além de representar uma mudança de ênfase da filosofia para a política, como em Rawls (1993), a noção de cultura pública/política comum permite aos liberais uma certa re-contextualização social do sujeito que, assim, deixaria de se constituir no chamado unencum-bered self: a ficção liberal do indivíduo (independente, autônomo, auto-suficiente) totalmente desprovido de laços sociais e que só tem obrigações para consigo mesmo. De qualquer forma, esta noção de cultura pública/política se refere normalmente, e com exclusividade, àqueles valores vinculados aos princípios jurídico-políticos formais que dão fundamento às democracias liberais (igualdade e liberdade, respeito aos direitos do homem e ao estado de direito, ou às “essências constitucionais” e às questões básicas de justiça como em Rawls). Ainda que alguns autores queiram resgatar aspectos substantivos da cultura em pauta, como valores nacionais específicos (Miller, 1993), sua argumentação é considerada incompatível com situações pluriétnicas ou multiculturais (Leydet, 1995:118), fazendo com que a noção de cultura pública/política comum não chegue a responder plenamente às demandas de contextualização dos comunitaristas.

Tanto em Rawls, como em Habermas, é difícil visualizar como os cidadãos das democracias liberais modernas podem se sentir representados nas instituições políticas das sociedades a que per-

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tencem, ou como podem internalizar alguma concepção de dever cívico, exclusivamente através de uma cultura política ou de uma Constituição que se mantêm absolutamente impermeáveis aos va-lores cultivados nos grupos ou comunidades de referência, onde os cidadãos se reconhecem não apenas como indivíduos, mas também enquanto pessoas dignas e merecedoras de consideração, portadoras de uma substância moral e de uma identidade própria.3 Embora a noção de cultura política ou de razão pública em Rawls procure estabelecer limites precisos entre, de um lado, os valores políticos vinculados à estrutura básica da sociedade e com pretensões de legitimidade sustentáveis no plano da cidadania, e de outro lado, os valores situados no background cultural e associados a visões de mundo abrangentes (religiosas, filosóficas, ou morais), ainda que proponha alguma articulação entre eles da perspectiva dos atores, não me parece que esta articulação possa se dar de maneira satis-fatória se os valores políticos ou a cultura política respectiva não permitirem algum tipo de conexão direta com a visão de mundo abrangente, a ponto de esta última se ver representada na primeira. Isto é, a visão de mundo abrangente e a forma de vida substantiva do grupo em pauta têm que se ver reconhecidas como constituindo uma alternativa valorizada e plenamente aceita no âmbito da comunidade política.4 Caso contrário, o grupo pode não se sentir ameaçado mas dificilmente se identificará com a comunidade política mais ampla, e não terá como desenvolver o sentimento de pertença ou os laços de solidariedade que a noção de unidade política demanda.

A noção de patriotismo constitucional em Habermas parece suscitar dificuldades similares. A ideia, definida a partir de uma ob-servação de Sternberger de que os cidadãos teriam uma disposição para se identificar (prioritariamente) com a ordem política e com princípios básicos de direito (Habermas, 1989:256-57), também parece demandar mediações não articuladas na argumentação do autor. Assim como no caso de Rawls, Habermas lista alguns fatores que contribuiriam para a assunção de identidades pós-nacionais e para a identificação dos atores com os princípios constitucionais das

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democracias modernas, mas não discute as dificuldades potenciais que a internalização de uma identidade cívica, dissociada de valores locais, teria que enfrentar na passagem do plano jurídico-constitu-cional para o da sociabilidade existencial.5 Isto é, na passagem para a plano onde o direito ao exercício de práticas ou de identidades culturalmente definidas, e legalmente garantido pela constituição, tem que se transformar em manifestações de reconhecimento. Pois, para que uma identidade se institua como tal, mesmo que tenha um caráter abrangente como aquela associada à noção de patriotismo constitucional, é necessário que aqueles que com ela se identificam tenham a legitimidade de suas identidades locais (culturais, regionais, étnicas etc.) mutuamente reconhecidas. Não é por outra razão que autores como Lamoureux veem no imperativo do “igual respeito” à identidade do outro a maior dificuldade para o “desenvolvimento de um patriotismo constitucional pancanadense” (1995: 138).

Nesse sentido, é difícil imaginar como uma ideia de cultura que não admite a incorporação de valores substantivos, não universali-záveis, nem permite uma articulação mais palpável com formas de vida específicas, possa contemplar as demandas de reconhecimento de que fala Taylor ou o resgate/reposição dos “significados perdidos” de que nos falava Weber, como ilustra bem o caso quebequense discutido adiante.

Como assinala Taylor (1994), com a transformação da noção de honra em dignidade na modernidade, desenvolveu-se um movimento de universalização de direitos, mais ou menos nos termos propostos pelo liberalismo, imediatamente seguido por outro movimento ca-racterizado pela demanda por reconhecimento de uma identidade autêntica que, no plano coletivo, tem se manifestado através de reivindicações por reconhecimento de identidades nacionais ou culturais, no âmbito das sociedades pluri ou multiculturais. Um dos problemas desse processo é que, enquanto o primeiro movimento se caracteriza pela valorização de condições uniformes, e portanto facilmente universalizáveis, o segundo movimento se caracteriza pela valorização de diferenças, cuja legitimação tem encontrado forte

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resistência onde prevalece a ideologia individualista, e onde é difícil distinguir as ideias de equidade, igualdade e uniformidade. Talvez o crítico mais contumaz das limitações da ideologia individualista seja o antropólogo Louis Dumont, que também se inspira em Weber para formular a diferença entre a noção de indivíduo enquanto “agente empírico, presente em todas as sociedades”, e a noção de indivíduo como “sujeito normativo das instituições”, que seria peculiar à nossa sociedade (Dumont, 1992a:57).

Nesse contexto, a discussão do caso quebequense é particular-mente interessante, na medida em que conjuga a afirmação de valores não universalizáveis interculturalmente, com uma preocupação aguda em relação ao respeito de grupos multiculturais, as chamadas comu-nidades culturais, como são conhecidas as minorias étnico-nacionais que migraram para o Quebec.

O caso quebequense

Il ne revient pas, en effet, ni à l’État ni à une théorie de la citoyenneté de prétendre prescrire des sentiments d’allégeance, de solidarité, ou encore de concitoyenneté particuliers. Ceux-ci ne peuvent que naître de la pratique, de l’expérience commune que font les citoyens de leurs institutions. Reconnaître cela, c’est reconnaître simplement la limite de toute théorie vis-à--vis de la pratique qu’il serait présomptueux et futile d’espérer dépasser. (Leydet, 1995:129)6

Embora a epígrafe de Leydet assinale com propriedade que sen-timentos de lealdade ou de solidariedade não podem ser prescritos pelo Estado nem por uma teoria da cidadania, na medida em que sentimentos assim produzidos seriam necessariamente artificiais e não viabilizariam a formação de uma identidade que lhes desse sen-tido, também não me parece razoável exigir que o Estado mantenha uma distância radical dos valores associados a estes sentimentos. Como veremos na discussão do caso quebequense, a dificuldade de articulação entre os símbolos do Estado e os valores de solidariedade

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e de lealdade vigentes também colocam problemas para a cidadania e para a integração social.

Como tem sido apontado por vários autores, as diversas posições políticas em defesa dos interesses do Quebec na Federação canadense têm como ponto comum a preocupação com a sobrevivência do “fato francês” na América do Norte, e os conflitos com anglófonos (dentro e fora do Quebec) e alófonos (os imigrantes não identificados ime-diatamente com nenhum dos dois grupos linguísticos dominantes do Canadá) têm encontrado no chamado debate linguístico seu principal canal de expressão.

São conhecidos os conflitos gerados pela aprovação da Lei nº 101, que (1) impede o acesso à escola de língua inglesa de 1º e 2º graus aos imigrantes e francófonos; (2) institui um processo de “afran-cesamento” das empresas com mais de cinquenta empregados, e (3) impedia que o comércio utilizasse letreiros ou cartazes escritos em outra língua que não o francês. Este último ponto é até hoje o mais polêmico da Lei nº 101 e, depois que a Suprema Corte do Canadá decidiu pela inconstitucionalidade deste aspecto da lei em 1988, a Assembleia Nacional do Quebec adotou o Projeto de Lei nº 178, que relativiza esta proibição, permitindo a colocação de letreiros em outras línguas no interior das lojas, desde que o francês também esteja presente e de maneira claramente predominante.7

Embora o debate sobre a Lei nº 101, e seus desdobramentos, aponte para uma série de questões interessantes em relação aos limi-tes do liberalismo e à problemática das demandas ou da “política do reconhecimento”, gostaria de me deter aqui na análise da discussão proposta por Dominique Leydet sobre a compatibilidade do Enuncia-do da política em matéria de imigração e de integração, publicado pelo Ministério das Comunidades Culturais e da Imigração em 1990, com a noção liberal de cultura pública comum e, portanto, com a instituição de uma ordem política moralmente legítima.

Como assinala Leydet, o Enunciado tinha três pontos que identi-ficavam para os imigrantes as características essenciais da sociedade quebequense e as condições de sua integração a ela:

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1) “uma sociedade na qual o francês é a língua comum da vida pública;2) “uma sociedade democrática onde a participação e a con-tribuição de todos é esperada e favorecida;3) “uma sociedade pluralista aberta aos aportes múltiplos dentro dos limites impostos pelo respeito aos valores democrá-ticos fundamentais e à necessidade de troca intercomunitária” (1995:122).

Segundo Carens, citado por Leydet, a diferença entre o modo de justificação dos dois últimos princípios (democracia e pluralismo) é diferente do primeiro. Pois, enquanto os princípios 2 e 3 podem ser vistos como parte não negociável de uma ordem política moralmen-te legítima, o primeiro se constitui em uma escolha da sociedade, cuja eventual modificação no futuro não teria consequências para a manutenção do caráter legítimo da ordem política quebequense (Leydet, 1995:123).8

Leydet chama a atenção ainda para o fato de que o Enunciado define claramente a posição do governo, para quem “a língua é não só um instrumento essencial que permite a participação, a comunica-ção e a interação com os outros quebequenses, mas ela é igualmente um símbolo de identificação...” (idem:124). Para Leydet este último aspecto é que seria inaceitável, a partir de uma perspectiva liberal e moralmente legítima sobre a ordem política. Pois, ainda que a ideia da língua enquanto instrumento de comunicação seja plenamente resgatável na medida em que uma democracia deliberativa vigorosa depende da existência de uma língua pública comum para se desen-volver, tomá-la como símbolo de identificação seria uma exigência descabida, uma vez que significaria a imposição da assunção de uma fidelidade à língua enquanto expressão de identidade, que não pode fazer sentido para alguém que tem uma origem cultural diferente.9

Nesse sentido, Leydet cita Jeremy Webber para indicar que se deve fazer uma diferença entre condições de entrada e condições de fidelidade a uma sociedade democrática determinada. Enquanto as primeiras

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devem ser constituídas por princípios generalizáveis, legiti-mamente aceitos por todos, qualquer que seja a comunidade de origem, as condições de fidelidade (as razões pelas quais este ou aquele indivíduo reconhece uma obrigação de lealdade à sociedade da qual ele é membro) variam necessariamente de um grupo sociológico a outro, e mesmo de um indivíduo a outro (Leydet:126).

Uma vez que as condições de fidelidade não podem ser ge-neralizadas, também não podem se transformar em exigências de um estado democrático. Mas, poder-se-ia perguntar: seria possível desenvolver um sentimento de pertença e uma identidade cívica sem que se faça uso de valores ou de símbolos substantivos, que sejam generalizáveis no âmbito da unidade política em pauta?

De qualquer forma, Leydet aponta três condições mínimas para a legitimação de princípios ou de valores políticos característicos de qualquer democracia liberal, e de acordo com a noção de cultura pública comum:

1) “estes princípios devem ser generalizáveis, isto é, eles de-vem poder ser legitimamente aceitos por todos os membros da sociedade em questão, qualquer que seja a sua comunidade de origem;2) “estes princípios devem poder se justificar de acordo com os princípios jurídico-políticos que fundamentam a democracia liberal;3) “eles devem ser suscetíveis de uma adesão voluntária, em outros termos, de uma escolha racional.” (1995:127)

Pois são exatamente estas condições que me parecem demasia-damente restritivas para dar conta da experiência de cidadania, onde quer que esta tenha lugar. Isto, na medida em que definem, a priori, a exclusão de valores, tais como a preocupação quebequense com a sobrevivência do “fato francês” na América do Norte, do processo de legitimação dos princípios e valores que constituem a cultura

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pública/política comum nas democracias liberais. Assim, gostaria de concluir meu argumento apontando três dificuldades básicas desta maneira de equacionar o problema no caso do Quebec.

1) A possibilidade de visualizar a inserção plena do cidadão em uma comunidade política determinada, na qual a língua de comu-nicação pública seja vista apenas como um instrumento, sem que haja qualquer identidade da língua com a forma de vida ou com os valores compartilhados entre os demais concidadãos, não me parece factível. Tal visão é particularmente significativa vindo de uma autora francófona. Como já tive a oportunidade de indicar em outro lugar, esta é a visão que prevalece no chamado resto-do-Canadá ou Canadá inglês,10 cuja colonização foi culturalmente muito mais diversificada do que no Quebec (com exceção de Montreal), e onde a língua de comunicação pública (o inglês) é vista como inteiramente dissociada da cultura. De qualquer forma, se esta visão corresponde, em alguma medida, à experiência dos anglófonos das mais diversas origens cul-turais no resto-do-Canadá, não pode fazer sentido no Quebec, onde a influência da cultura anglo-americana é recebida e percebida junto com a exposição ao idioma inglês.

2) Isto não quer dizer que os imigrantes ou os seus descendentes tenham que desenvolver exatamente a mesma relação com o francês que a população quebequense de souche11 cultiva. Por outro lado, é muito difícil falar em integração a uma sociedade na qual se é sem-pre visto como estranho. Ainda que possa haver grande diversidade cultural entre os membros dos vários grupos sociais que compõem uma comunidade política, como de fato há em Montreal, é importante que haja símbolos identitários a serem minimamente compartilha-dos de maneira abrangente para que a ideia de comunidade política continue fazendo sentido.

3) Desse modo, se é verdade que o Estado não pode impor de-mocraticamente uma declaração de lealdade aos símbolos culturais específicos que o representam, de fato, também é verdade que a recusa do cidadão em se identificar com os símbolos da comunidade não é muito diferente da recusa em se integrar. Se a diferença entre

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condições de entrada e condições de fidelidade faz algum sentido em relação ao trabalhador temporário e ao imigrante de primeira geração, especialmente aqueles que tiveram sua educação escolar na sociedade de origem, essa diferença me parece absolutamente artificial no caso dos descendentes de imigrantes ou no caso dos que gostariam de se integrar na comunidade da melhor maneira possível.

Finalmente, creio que as restrições feitas pela noção de cultura pública comum à incorporação de valores substantivos que represen-tem símbolos de identidade de comunidades políticas determinadas é uma distorção da democracia e do processo de racionalização da política na nossa contemporaneidade. Nesse contexto, me parece também que se, por um lado, a ideia de patriotismo constitucional, enquanto símbolo de identidade moralmente legítima para com a comunidade política nas sociedades multiétnicas atuais, seria em princípio interessante na medida em que acentua a importância do respeito aos direitos do homem (ou as liberdades básicas) e à ideia de tolerância, por outro lado, o artificialismo dos vínculos identitários assim construídos sugere a ideia de alienação e de perda de significado mencionada acima. De uma certa maneira, creio que o patriotismo constitucional, quando dissociado de quaisquer outros símbolos de identidade com repercussão em formas de vida específicas, repre-senta uma manifestação do que eu gostaria de chamar, inspirado em Gadamer, de alienação da consciência cívica. Pois, assim como nos casos da alienação das consciências estética e histórica assinalada por Gadamer, a ideia de patriotismo constitucional sugere que a condição de identificação do cidadão com a comunidade política a que pertence está na neutralização da manifestação de sua identidade enquanto ator. Estou me reportando aqui às objeções de Gadamer quanto à pretensão do crítico de arte ou do historiador, que acredita ser possível colocar entre parêntesis a sua subjetividade, alienando sua individualidade enquanto ator, para produzir um julgamento objetivo da qualidade artística de uma obra, ou para compreender objetivamente as testemunhas do passado. Como bem argumenta Gadamer (1980:128-140), tanto em um caso como no outro a con-

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dição para a apreensão do significado da obra ou do passado está na possibilidade de conseguirmos relacionar aquilo que tentamos compreender com a nossa experiência, produzindo assim uma fusão de horizontes. Parece-me que as mesmas objeções seriam válidas em relação à noção de patriotismo constitucional, se esta sugerir que a identidade com a Constituição não depende de mediações bem ar-ticuladas com as formas de vida específicas que dão sentido à vida dos atores-cidadãos. Isto é, a noção de cultura pública comum ou de patriotismo constitucional, assim como proposta no quadro do libe-ralismo, não permite a satisfação das demandas de reconhecimento discutidas por Taylor – que permanecem enquanto problema político –, nem a diminuição do déficit de significado que preocupava Weber.

Notas1 É bastante conhecida a influência desse diagnóstico weberiano entre os frankfurtianos, seja através da noção de reificação desenvolvida por Luckács e acionada pelos membros da primeira geração da Escola de Frankfurt, como Horkheimer e Adorno, seja através da noção de colonização do mundo da vida pelo sistema, articulada por Habermas.2 Não é por mera coincidência que o capítulo que se segue a “Comunidades políticas”, em Economia e sociedade, tem como título “Dominação e legitimi-dade” (Capítulo X).3 Sobre a relação entre indivíduo/pessoa, direito/dignidade e reconhecimento/desconsideração no plano da cidadania, ver Cardoso de Oliveira (1996c), além dos capítulos 3, 6 e 7 desta edição.4 Segundo Rawls, a cultura política representaria o cerne constitucional das democracias liberais e seria produto de um “consenso sobreposto” (overlapping consensus) entre os diversos grupos que fazem parte da sociedade política. Ape-sar de este “consenso parcial” ser apresentado como um acordo no qual todas as partes se sentem minimamente contempladas, e moralmente motivadas a defender os princípios e os valores que dão suporte à cultura política assim com-partilhada (Rawls 1993:133-172), parece-me que a articulação entre os valores políticos e as visões de mundo abrangentes aqui presentes está equacionada num plano excessivamente abstrato. Pois, ainda que as partes possam se identificar com a consistência desta articulação no plano teórico, parece que a motivação para o suporte político deste consenso parcial ou do cerne constitucional vai

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depender do reconhecimento factual que as partes serão capazes de manifestar em relação às pretensões de legitimação de umas e de outras.5 É verdade que Habermas discute a noção de patriotismo constitucional no contexto do debate sobre a rearticulação de uma identidade nacional alemã, onde a crítica ao passado nacional-socialista não pode deixar de estar presente, e onde o desenvolvimento de uma identidade privilegiada com os princípios constitucionais que caracterizam as democracias liberais modernas tem uma história específica e um significado particular. Apesar de este enquadramento do problema não responder adequadamente algumas das questões que argumento aqui, torna mais palpável a fecundidade da noção de patriotismo constitucional para a compreensão de pelo menos algumas unidades políticas contemporâneas. De qualquer forma, Habermas cita quatro fatores que teriam estimulado o de-senvolvimento de identidades pós-nacionais: (1) o caráter paradoxal do dever de defender a nação à luz do potencial de destruição de uma guerra nuclear que se constitui em uma ameaça para todos; (2) a relativização de formas de vida particulares e o desafio de refletir sobre a base universalista da própria tradição, que teria se desenvolvido ao lado dos mecanismos de defesa detonados na confrontação com o outro; (3) os efeitos da comunicação de massa e da massificação do turismo, acostumando o olhar à heterogeneidade das formas de vida e induzindo uma extensão da consciência moral em direção ao univer-salismo; e, (4) a integração internacional das ciências humanas, tornando as tradições nacionais acessíveis umas às outras e que, ao lado da falibilidade do conhecimento e do conflito de interpretações, teria promovido a problematização da consciência histórica (Habermas 1989:257-59).6 “Com efeito, não cabe nem ao Estado nem a uma teoria da cidadania pre-tender prescrever os sentimentos de lealdade, de solidariedade, ou ainda de concidadania particulares. Estes sentimentos só podem nascer da prática e da experiência comuns, que os cidadãos fazem de suas instituições. Reconhecer isto, é simplesmente reconhecer o limite de toda teoria vis-à-vis a prática que seria pretensioso e fútil tentar superar.”7 Em 1993 foi promulgada a Lei nº 86, que também permite a utilização de outras línguas nos letreiros externos, desde que os dizeres estejam reproduzi-dos na língua francesa, a qual deveria ocupar pelo menos o dobro do espaço dedicado ao outro idioma.8 De fato, apesar de Carens (1995:57) fazer a diferença indicada por Leydet entre o modo de justificação do primeiro e dos dois últimos princípios, o autor assinala que, em conjunto, o Enunciado não fere “os padrões mínimos de mo-ralidade que uma sociedade democrática liberal deve seguir”.9 Mais uma vez, Carens (1995:20-81) assinala que a peculiaridade do Quebec

comunidade Política e cultura PúBlica no queBec 103

a este respeito se deve a sua inserção no Canadá, país onde o bilinguismo é institucionalizado. Isto é, se o Quebec fosse uma nação independente, do ponto de vista de Carens o problema não se colocaria.10 “Resto-do-Canadá” é a expressão utilizada com referência ao território majoritariamente anglófono do país, e engloba todas as províncias e territórios com excessão do Quebec. Ver os capítulos 3 e 6 desta edição, onde assinalo algumas diferenças de perspectiva entre francófonos e anglófonos associadas a experiências diversas em relação a aspectos significativos do problema.11 Quebequense “de souche” (de cepa) ou “pure laine” (de lã pura) são expressões quebequenses para fazer referência aos francófonos descendentes dos colonos franceses que se estabeleceram no Canadá antes do domínio britânico.

Capítulo V

A retórica do ressentimento e a evocação obrigatória

dos sentimentos

Desde os gregos, a retórica tem sido caracterizada como um instru-mento de persuasão e convencimento, onde as ideias de esclarecimen-to e de manipulação indicam duas dimensões opostas dos discursos retóricos. Nesse contexto, os discursos políticos estão entre aqueles que despertam mais interesse e que ocupam maior espaço na nossa contemporaneidade. No que se segue, procurarei explorar mediante a análise de discursos políticos enunciados durante a campanha para o referendum sobre a soberania do Quebec, em outubro de 1995, a articulação entre o que eu gostaria de chamar de retórica do ressenti-mento e as demandas por reconhecimento da identidade quebequense. Dado que as demandas por reconhecimento estão frequentemente associadas à afirmação de um direito moral, cuja percepção ou fun-damentação não encontra respaldo adequado na linguagem jurídica, até que ponto a mobilização de sentimentos como o de ressentimento seria um instrumento legítimo e iluminador do insulto moral que se quer reparar? Ao evocar sentimentos e emoções, em que medida a retórica do ressentimento não correria riscos de, além de estimular a sensibilidade dos atores – com o objetivo de facilitar a percepção do insulto moral que teriam sofrido –, contribuir também para provocar atitudes passionais e, portanto, arbitrárias ou inibidoras da compre-ensão que estaria tentando viabilizar?

106 direito legal e insulto moral

O referendum de 1995 sobre a soberania do QuebecNo dia 30 de outubro de 1995 realizou-se, no Quebec, o segundo

referendum sobre a soberania da província, que teve, como resul-tado, uma vitória apertada do NÃO. A proposta de dar ao governo quebequense um mandato para negociar com o Canadá uma nova relação de parceria política e econômica foi rejeitada por 50,6% a 49,4% dos votos.1 A proposta demandava a institucionalização de uma nova relação na qual o Quebec e o resto-do-Canadá teriam um status político equivalente, através da qual assumiriam um compro-misso de atuação conjunta, e contemplava ainda a possibilidade de o Quebec fazer uma declaração unilateral de independência do Canadá, caso não fosse possível celebrar um acordo entre as partes no prazo de um ano. A população se pronunciou sobre a seguinte pergunta:

Acceptez-vous que le Québec devienne souverain, après avoir offert formellement au Canada un nouveau partenariat écono-mique et politique, dans le cadre du projet de loi sur l’avenir du Québec et de l’entente signée le 12 juin 1995?2

O projeto de lei mencionado na pergunta foi firmado por Jacques Parizeau (primeiro-ministro do Quebec à época), Lucien Bouchard (chefe do Bloco Quebequense)3 e Mario Dumont (chefe da Aliança Democrática do Quebec)4, quatro meses antes da realização do refe-rendum. Como indiquei acima, o projeto de lei previa a possibilidade de uma declaração unilateral de independência, e representou uma flexibilização da posição defendida por Parizeau, que gostaria de aprovar uma definição não condicional sobre a soberania do Quebec. Parizeau havia sido eleito primeiro-ministro do Quebec em setembro de 1994, e tinha como principal bandeira a realização de um refe-rendum sobre a soberania da província no ano seguinte. Parizeau é identificado como um soberanista pur et dur e sua proposta original era considerada excessivamente radical para ter penetração em um segmento suficientemente amplo da população, que viabilizasse uma vitória do voto soberanista. A proposta de “uma nova parceria...”

a retórica do ressentimento e a evocação oBrigatória... 107

relativiza a ideia de separação do Canadá, procurando contemplar aqueles segmentos que não gostariam de perder totalmente os víncu-los identitários com o país, ou aqueles que temem as consequências econômicas que uma separação radical poderia trazer, e se articula bem com o projeto do Movimento Soberania-Associação, criado por René Lévesque em 1967, e que viria a se transformar no Partido Que-bequense um ano depois. Aliás, o referendum de 1980 também pedia autorização popular para negociar uma nova relação com o resto-do--Canadá, com a diferença de que o acordo que viesse a ser firmado seria submetido a um novo referendum popular, e a possibilidade de declaração unilateral de independência não era uma alternativa.

Embora o clima político que informava as demandas por re-conhecimento da identidade quebequense, e que caracterizava a relação com o resto-do-Canadá, fosse marcadamente diferente nos dois referenda, a identificação com o Canadá nunca deixou de ter um certo apelo e os riscos econômicos de um Quebec soberano nunca deixaram de ser uma preocupação. Entretanto, ao contrário da situação vigente em 1980, quando o Quebec vivia sob o impacto positivo da Lei nº 101, que regulamenta a utilização da língua fran-cesa na província – e parecia garantir a sobrevivência do francês e da identidade franco-quebequense –, o referendum de 1995 se realiza após repetidos fracassos de negociação constitucional para satisfa-zer as demandas por reconhecimento do Quebec, o qual se nega a subscrever a constituição patriada em 1982.5 Além de considerar a nova Carta de Direitos e Liberdades uma ameaça para sua sobrevi-vência cultural, a população franco-quebequense tende a interpretar a rejeição dos acordos do Lago Meech e de Charlottetown como uma negação de sua identidade e, portanto, como atos de desconsideração ou como um insulto moral.6 É dentro desse quadro que o debate sobre a soberania do Quebec tem lugar e abre espaço para a expressão de posições nacionalistas mais radicais.

De qualquer forma, se a insatisfação com o status quo consti-tucional ou com o status do Quebec na federação é bastante difun-dida na província, a identificação com um projeto de declaração

108 direito legal e insulto moral

de independência já é bem mais restrita. Vários francófonos com quem conversei me disseram ter votado a favor da soberania com o objetivo de provocar mudanças na situação do Quebec dentro da Federação, mas alegavam não ter intenção de apoiar a separação do Canadá. Aliás, em sua edição de 21 de outubro de 1995, o diário The Gazette – principal jornal anglófono do Quebec e totalmente identificado com posições federalistas – menciona pesquisas segundo as quais 1/3 dos eleitores decididos a votar pelo SIM o fariam mais para cobrar mudanças (dentro da Federação), do que para promover a separação. Além disso, pesquisas de opinião realizadas antes e depois do referendum indicavam que um percentual significativo dos que votaram SIM acreditavam estar votando pela nova parceria, mas não pela separação do Canadá, apesar de Parizeau repetir frequentemente que a vitória do SIM representaria a soberania do Quebec, e apenas talvez a efetivação de uma parceria entre dois países soberanos: “Répondre OUI, c’est effectivement se donner un pays. Ça veut dire que les Québécois vont avoir leur pays” (Parizeau, em 8/9/95 no jornal Le Devoir).7 Nesse contexto, os defensores do NÃO criticavam sistematicamente a redação da questão do referendum, que não lhes parecia suficientemente clara, e procuravam convencer os simpati-zantes da proposta de uma nova parceria de que o SIM significaria, de fato, a separação.

O efeito BouchardMesmo com a flexibilização da proposta original de Parizeau,

e com a ampliação do apoio ao SIM provocada pela divulgação da proposta de parceria, no início da campanha oficial o número de simpatizantes do SIM parecia não ter aumentado muito em relação ao referendum de 1980. Quando, no dia 7 de setembro de 1995, foi definida a redação da questão a ser submetida à população do Quebec em 30 de outubro, dando início formal à campanha referendária, a maioria das pesquisas de opinião situava as intenções de voto em 58% NÃO e 42% SIM respectivamente, contra os 59,6% NÃO e

a retórica do ressentimento e a evocação oBrigatória... 109

40,4% SIM depositados nas urnas em 1980.8 De acordo com aná-lises divulgadas na imprensa, apesar de a demanda de uma maior autonomia para o Quebec, com a eventual ampliação de poderes para a província – especialmente na área cultural –, encontrar grande res-paldo na opinião pública local, a perspectiva de separação do Canadá não conta com o mesmo apoio da população, e daí a insistência dos defensores do NÃO em enfatizar a percepção de inviabilidade da proposta de parceria, assinalando que o SIM só poderia desembocar na separação.9

Entretanto, o caráter relativamente ambíguo da questão (re-produzida acima), somado à total falta de propostas do campo do NÃO, que se abstinha de apresentar alternativas às reivindicações do Quebec, mantinha aberto algum espaço para o crescimento do SIM. Nessa direção, se o campo do NÃO se limitava a apontar as prováveis dificuldades econômicas e a perda de status internacional que uma possível vitória do SIM traria, tentando amedrontar o eleitorado, os defensores do SIM investiram a maior parte do tempo dedicado à preparação do referendum tentando mostrar que o Quebec estava não só preparado para enfrentar as eventuais adversidades da separação, mas que a independência tinha tudo para melhorar as condições de vida da população.

O fato é que, se os federalistas pareciam negar a existência do problema que motivou a realização do referendum, na medida em que não apresentavam propostas e afirmavam que a população já estava cansada dos debates constitucionais (depois dos fracassos de Meech e Charlottetown), indicando que o que interessava no momento era a criação de empregos e o crescimento econômico, os soberanistas pareciam dirigir quase todas as suas forças para a necessidade de correção de desequilíbrios econômicos que estariam colocando o Quebec em desvantagem no seio da Federação,10 sem conseguir desenvolver um discurso mais elaborado sobre a questão do reconhecimento da identidade distinta do Quebec e da necessidade de reparação dos atos de desconsideração que os quebequenses teriam sofrido.

110 direito legal e insulto moral

Apenas com a nomeação de Lucien Bouchard como representan-te oficial do Quebec nas negociações da parceria com o Canadá, em caso de vitória do SIM, é que o quadro começa a mudar um pouco. Não só devido a sua credibilidade pessoal como principal defensor da apresentação de uma proposta de parceria ao Canadá, mas so-bretudo devido ao seu carisma e capacidade retórica, através da qual conseguiu expressar um sentimento de indignação que não tinha sido adequadamente articulado até então na campanha.11 A nomeação de Bouchard foi anunciada no dia 7 de outubro, e na mesma época ele decide mudar sua estratégia política quanto à permanência em Ottawa, onde concentrava suas atividades de campanha nas sessões diárias do “período de questões”, quando confrontava Jean Chrétien no parlamento.12 A partir de então, Bouchard passa a dedicar a maior parte de seu tempo a aparições em comícios nos mais diversos locais e regiões do Quebec. Como revelam os números da tabela a seguir, a mudança de estratégia não demorou muito para começar a fazer efeito.

Mas, antes de discutirmos os números da tabela, alguns escla-recimentos se fazem necessários. A primeira coluna identifica os institutos de pesquisa, seguidos das datas em que estas foram reali-zadas e seu significado é mais ou menos óbvio. Entretanto, gostaria de chamar a atenção para a apresentação dos dados em três colunas: Resultados Brutos, Ponderação Proporcional e Ponderação Realista. A experiência com votações similares no passado permitiu que os institutos de pesquisa quebequenses desenvolvessem uma fórmula bastante simples e efetiva para prever a distribuição real dos indecisos no dia da votação. É a este cálculo que se referem as duas últimas colunas, que já representam uma primeira interpretação dos dados brutos colhidos na pesquisa e expostos na coluna anterior. Assim, a chamada ponderação realista atribuiu sistematicamente 75% dos votos dos indecisos para a posição contrária à soberania, e apenas 25% para os partidários do SIM. Para se ter uma ideia do grau de precisão desse tipo de previsão, basta olharmos para os resultados da última sondagem no final da tabela e verificarmos que, enquanto os

a retórica do ressentimento e a evocação oBrigatória... 111

dados brutos davam uma vantagem de 6% para o SIM, que contava com 46% das intensões de voto contra 40% dos federalistas, após a aplicação da ponderação realista a vantagem passa para o campo do NÃO, que venceria por 50,5% a 49,5% dos votos. Isto é, quase exa-tamente os mesmos números apurados nas urnas no dia da votação: 50,6% NÃO contra 49,4% SIM.

Um rápido exame da tabela sugere que, de fato, o efeito Bou-chard não pode ser desprezado. Se deixarmos de lado o resultado da primeira sondagem após o início formal da campanha, realizada em 8 de setembro, e que dava uma pequena vantagem nas intenções de voto para o SIM, verificamos que a opção pelo SIM entre os eleito-res com posição definida só volta a liderar as intenções de voto na pesquisa do dia 9 de outubro, realizada dois dias depois da nomeação de Bouchard como “negociador chefe” do Quebec no caso de uma vitória dos soberanistas. Embora esse dado não signifique ainda a consolidação de uma tendência na progressão das intenções de voto, pois o NÃO voltaria a conquistar a preferência dos eleitores em três das quatro pesquisas seguintes, a partir da sondagem Crop de 16 de outubro, a opção pelo SIM passa a ocupar definitivamente a lide-rança entre os eleitores com voto definido em todas as pesquisas até a realização do referendum. Além disso, deve-se observar que daí em diante a opção pelo SIM não pára de crescer, e é bastante signi-ficativo que essa progressão coincida exatamente com a realização dos principais discursos e declarações pronunciados por Bouchard durante a campanha, entre os dias 14 e 27 de outubro. Uma caracte-rística central desses discursos e declarações era a articulação entre as demandas por reconhecimento do Quebec, expressa na proposta de parceria, e o elenco de “agressões”, de atos de desrespeito ou de desconsideração, que a população quebequense teria sofrido ao longo da história de relacionamento com o resto-do-Canadá. Atos estes que não revelariam apenas esforços muitas vezes bem-sucedidos de tentar levar vantagem política e econômica na relação com o Quebec, mas que se constituiriam em uma verdadeira afronta moral ou em manifestações de desprezo por parte do Canadá inglês.

112 direito legal e insulto moral

Progressão das Intenções de Voto Após a Divulgação da Questão do Referendum Realizado em 30 de Outubro de 1995 no Quebec*

Resultados Ponderação Ponderação Brutos Proporcional Realista SONDAGEM DATA Nº NÃO SIM INDECISOS NÃO SIM NÃO SIM

Léger & Léger (8/9) 959 42,9 43,8 13,3 49,5 50,5 52,9 47,1

SOM (12/9) 1003 45,0 37,0 18,0 54,9 45,1 58,5 41,5

COMPAS (14/9) 500 40,0 36,0 24,0 52,6 47,4 58,0 42,0

CRÉATEC (19/9) 1004 46,2 38,8 15,0 54,4 45,6 57,5 42,6

DECIMA (25/9) 750 41,9 40,3 17,8 51,0 49,0 55,3 44,8

CROP (25/9) 2020 47,0 39,0 14,0 54,7 45,3 57,5 42,5

SOM (25/9) 1820 48,0 39,0 13,0 55,2 44,8 57,8 42,3

ANGUS REID (27/9) 1000 45,0 41,0 14,0 52,3 47,7 55,5 44,5

Léger & Léger (28/9) 1006 45,1 43,8 11,1 50,7 49,3 53,4 46,6

LEPAGE-P.Q. (29/9) 1369 45,7 44,3 10,0 50,8 49,2 53,2 46,8

Léger & Léger (4/10) 1015 43,7 42,9 13,4 50,5 49,5 53,8 46,3

LEPAGE-P.Q. (9/10) 1285 42,0 45,0 13,0 48,3 51,7 51,8 48,3

CRÉATEC-PLQ (11/10) 470 48,8 43,2 8,0 53,0 47,0 54,8 45,2

Léger & Léger (12/10) 1002 42,4 45,0 12,6 48,5 51,5 51,9 48,2

GALLUP (12/10) 1013 43,0 39,0 18,0 52,4 47,6 56,5 43,5

SOM (16/10) 981 43,4 42,9 13,7 50,3 49,7 53,7 46,3

CROP (16/10) 1151 42,6 43,6 13,8 49,4 50,6 53,0 47,1

ANGUS REID (18/10) 1012 43,6 45,4 11,0 49,0 51,0 51,8 48,2

Léger & Léger (20/10) 1005 42,2 45,8 12,0 48,0 52,0 51,2 48,8

CROP (23/10) 1072 42,2 44,5 13,3 48,7 51,3 52,2 47,8

ANGUS REID (25/10) 1029 40,0 44,0 16,0 47,6 52,4 52,0 48,0

SOM (25/10) 1115 40,0 46,0 14,0 46,5 53,5 50,5 49,5

* Tabela retirada de um artigo de Pierre Drouilly (“Et si l’improbable se produisait?”), divulgado na página do Grop, na Internet [http://www.coopcrl.qc.ca/base/politique/drouil5.html].

a retórica do ressentimento e a evocação oBrigatória... 113

Como veremos, essa ideia de afronta moral foi muito bem transmitida por Bouchard que, através da retórica do ressentimento, utilizou corretamente a tradição e a experiência dos quebequenses para incutir um sentimento de indignação, motivando-os a enfrentar o problema votando pelo SIM no referendum. Drouilly chama a atenção para a importância da atuação de Bouchard na campanha ao trazer de volta a dimensão simbólica da questão, que teria sido colocada em segundo plano até então pelos dois lados na disputa. Do meu ponto de vista, a importância da dimensão simbólica não estaria só no fato de a mesma ser constitutiva da problemática do reconhecimento e da percepção do insulto moral, mas por permitir, nos discursos de Bouchard, uma vinculação entre razão e emoção que também me parece constitutiva do problema. É essa relação entre razão e emoção que eu gostaria de explorar um pouco agora.

A evocação obrigatória dos sentimentos (retórica e emoção)

Devemos sobretudo a Mauss a identificação da importância da expressão dos sentimentos como uma obrigação moral (1979: 147-153), especialmente no âmbito das sociedades ditas primitivas, chamando a atenção para o fato de que “toda uma série de expressões orais de sentimentos não são fenômenos exclusivamente psicológicos ou fisiológicos, mas sim fenômenos sociais, marcados por mani-festações não-espontâneas e da mais perfeita obrigação...” (idem: 147).13 Na mesma direção, gostaria de sugerir aqui que a percepção do insulto moral demandaria frequentemente, e de maneira particu-larmente acentuada nas sociedades modernas, a evocação obrigatória dos sentimentos. Não porque tal percepção exigiria que os atores experimentassem diretamente a emoção do insulto, mas porque seria sim, necessária, a identificação com ela. Isto é, a identificação com a emoção ou sentimento de ressentimento, no caso do insulto moral, permitiria a socialização do significado da experiência e, assim, uma compreensão intersubjetivamente compartilhada do fenômeno. Meu argumento é que mesmo quando a socialização da percepção não

114 direito legal e insulto moral

conduz a uma articulação adequada ou elaborada do significado social (moral) desta experiência, ela viabilizaria uma identificação publicamente partilhada do problema e sua classificação como um ato indevido.14

Nesse ponto, seria interessante introduzir as ideias de Strawson sobre o papel do ressentimento na fenomenologia do fato moral, as quais se articulam bem tanto com a visão proposta por Mauss sobre a relação entre expressão de sentimentos e moral, como com a minha caracterização da desconsideração como um insulto moral (Cardoso de Oliveira, 1999a; 2001b), desenvolvida através de um diálogo com Taylor (1994) e Berger (1983) sobre cidadania, identidade e dignidade. Strawson define o ressentimento como uma reação a uma ofensa/agressão ou à indiferença, e que tem como foco as atitudes ou intenções dos outros para conosco, enquanto seres humanos:

Se alguém pisa na minha mão acidentalmente, enquanto tenta me ajudar, a dor pode não ser menos aguda do que se ele pisá-la em um ato de desconsideração ostensiva a minha existência ou com o desejo malévolo de me machucar. Mas, geralmente, devo sentir no segundo caso um tipo e grau de ressentimento que não devo sentir no primeiro (...) (Strawson, 1974:5).

Em outras palavras, o ressentimento seria provocado mais pela atitude ou pelas intenções que motivam e dão sentido ao ato, do que pelo ato em si, se podemos fazer essa distinção no plano analítico. Da mesma forma, o sentimento de gratidão, o oposto do ressentimento segundo Strawson, seria motivado pelo tratamento marcado pelo uso de boas maneiras e gentilezas. Contudo, se o ressentimento, enquanto sentimento, tem um forte componente emocional, não deixa de ter também uma dimensão cognitiva, que toca diretamente à razão, e que permite a compreensão por parte de terceiros da experiência do ressentimento de um sujeito qualquer, como reação pessoal a uma atitude ou intenção indevida de outrem. Pois é exatamente essa capacidade de compreender através da identificação com o ressenti-

a retórica do ressentimento e a evocação oBrigatória... 115

mento do outro, e que Strawson caracteriza como reação simpática ou vicária (impessoal e desinteressada) à atitude que teria provocado o ressentimento, que marcaria a dimensão moral dos sentimentos em pauta. O sentimento equivalente ao de ressentimento no caso da reação vicária seria o de indignação ou de desaprovação moral. Isto é, não se trata de associar a dimensão moral exclusivamente à reação vicária, pois ela também está presente na experiência (pes-soal) do ressentimento, mas de chamar a atenção para o fato de que a dimensão moral se caracterizaria por poder ser socializada e/ou intersubjetivamente compartilhada. Além disso, assim como o sen-timento de ressentimento está associado a demandas que fazemos aos outros em relação a nós mesmos, e o sentimento de indignação moral é vinculado a demandas que fazemos a terceiros em relação a outros, o sentimento de obrigação (moral) estaria articulado com as demandas que fazemos a nós mesmos em nossas relações com os outros, e completaria o conjunto de sentimentos acionados na fenomenologia do fato moral:

Assim como existem atitudes reativas pessoais e vicárias associadas com demandas aos outros da parte do sujeito, e com demandas aos outros com relação a terceiros, também existem atitudes auto-reativas associadas com demandas a si próprio com relação aos outros. E aqui temos que mencionar fenômenos tais como o sentimento de se sentir comprometido ou obrigado (o “sentido da obrigação”); o sentimento da cons-ciência pesada; o sentimento de culpa ou de arrependimento ou ao menos de responsabilidade; e o fenômeno mais complicado da vergonha (Strawson, 1974:15).

Mas, com essa breve exposição das ideias de Strawson, pode-mos voltar a discussão do efeito Bouchard, por meio da articulação, inspirada em Mauss, entre a evocação obrigatória dos sentimentos e a percepção do insulto moral. Do meu ponto de vista, boa parte do chamado “efeito Bouchard” se deve ao sucesso do então futuro primeiro-ministro do Quebec em evocar sentimentos de ressenti-

116 direito legal e insulto moral

mento entre os francófonos da província, através dos discursos ou das declarações políticas que pronunciou entre 14 e 27 de outubro de 1995. Para ilustrar a retórica de Bouchard, reproduzo abaixo seis trechos de seus discursos ou declarações, que foram selecionados por Trudeau na carta aberta dirigida ao líder soberanista em 3 de fevereiro de 1996, divulgada sob o título “J’accuse Lucien Bouchard!”, e onde faz uma série de reparos à atuação de Bouchard durante a campanha para o referendum. O fato de terem sido selecionados por Trudeau nesse contexto dá uma ideia, por si só, da repercussão política destes trechos durante a campanha.15

(1) “Depuis trente ans, il y a eu je ne sais combien de dizaines de négociations entre le Québec et le reste du Canada: dans tous les cas on a échoué... On a profité de notre faiblesse po-litique...” (discurso pronunciado em 14 de outubro de 1995 no Centro Comunitário de Saint-Justin, Rosemont).16

(2) “Durant trente ans, la raison profonde pour laquelle...on n’a jamais réussi à convaincre le Canada anglais (de concéder) la moindre revendication historique du Québec, ce n’est pas parce qu’on a envoyé des gens qui n’étaient pas des bons négociateurs. On avait les meilleurs. On avait René Lévesque” (discurso pronunciado em 18 de outubro de 1995, em Saint-Léonard).17

(3) “Alors qu’il y avait une alliance avec René Lévesque pour faire une entente qui avait du bon sens, ces sept province anglophones... l’ont laissé tomber, une seule nuit [la nuit des longs couteaux]” (discurso pronunciado em 23 de outubro de 1995, no Cégep de Limoilou).18

(4) “[La Constitution de 1982] a réduit les pouvoirs du Que-béc dans le domaine de la langue et de l’éducation... René Lévesque l’a refusée. Claude Ryan l’a refusée. L’Assemblée nationale du Québec l’a refusée” (discurso pronunciado em 25 de outubro de 1995, às 19horas, na Télévision de Radio--Canada).19

a retórica do ressentimento e a evocação oBrigatória... 117

(5) “On a rapatrié la Constitution en 1982 contre notre volon-té... parce que les intérêts du Canada anglais étaient tels qu’il fallait qu’ils fassent cela” (discurso pronunciado em 27 de outubro de 1995, às 19h30, na Télévision de Radio-Canada).20

(6) “Ils (le Canada anglais) on repoussé la main du Québec en 1990... Il n’y a personne qui est venu faire de manifesta-tion à Montréal pour nous dire ‘On vous aime.’ Ils ont tout simplement dit non à Meech” (discurso pronunciado em 27 de outubro de 1995, às 19h30, na Télévision Radio-Canada).21

Os seis trechos de discurso selecionados por Trudeau são re-presentativos da temática e do tom privilegiados por Bouchard em seus pronunciamentos durante o último mês da campanha, os quais têm em comum o fato de serem bastante agressivos em relação ao resto-do-Canadá, que teria se aproveitado sistematicamente da sua condição de maioria política para impor ao Quebec sua visão do país, sem atentar devidamente para as demandas da minoria franco--quebequense. Nos trechos mais duros, como o de número 3 por exemplo, Bouchard chega a acusar o resto-do-Canadá de atos de traição, o que Trudeau – como um dos atores envolvidos no evento tematizado no referido discurso – não pôde aceitar. Além do fato de todos os trechos fazerem referência a experiências que, do ponto de vista simbólico, ocupam um lugar privilegiado na memória dos franco-quebequenses, e que são particularmente apropriadas para dramatizar a relação com o Canadá inglês, eles chamam a atenção para pelo menos três aspectos importantes da perspectiva do Quebec: (a) os riscos de “minorização” dos francófonos dentro do próprio Quebec, sinalizando um provável desaparecimento do “fato francês” na América do Norte; (b) as dificuldades de negociação de suas de-mandas no plano federal, onde a condição de minoria não daria muito espaço para a barganha política; e, (c) a falta de reconhecimento da especificidade do Quebec, percebida como uma negação do valor da cultura ou dos méritos da forma de vida quebequense. Em certa medida este último aspecto representaria a essência do insulto moral,

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ao negar os méritos das características ou traços identitário-culturais a partir dos quais a coletividade ou os sujeitos (cidadãos) que a compõe se situam no mundo. Diferentemente das reivindicações tradicionais da cidadania, normalmente satisfeitas no plano da promulgação de leis e do respeito a direitos, as demandas por reconhecimento supõem a internalização de um valor que signifique a aceitação do mérito cultural (ou da forma de vida) do grupo que apresenta a demanda.

Os dois primeiros trechos fazem alusão ao longo processo de negociação do patriamento da Constituição canadense, que teria começado formalmente em 1962, quando o Quebec assina o acordo Fulton-Favreau (sobre o qual voltaria atrás em 1964), e coincide mais ou menos com o início da chamada Revolução Tranquila, que marcou a modernização do Quebec e a assunção de uma posição política mais afirmativa no âmbito da Federação. Tal posição teve impacto tanto no que concerne à valorização da identidade franco--quebequense, como no tocante à ampliação da autonomia político--administrativa da província. Se o início da Revolução Tranquila tem como marco a chegada do PLQ ao poder, através da eleição de Jean Lesage em 1960, o movimento é reforçado nas eleições provinciais de 1962, quando o PLQ é reconduzido ao poder com a bandeira da “nacionalização da eletricidade”,22 sob o lema bastante significativo de “maîtres chez nous” (“mestres de nós mesmos”). O período se caracteriza por transformações que viabilizam a formação de uma elite político-econômica moderna de origem francófona, com a am-pliação do acesso ao ensino superior, ao lado da intensificação do processo de urbanização do Quebec e, como o lema sugere, trata-se de um movimento de afirmação da identidade (ou da maioridade quebequense) que muda um pouco o caráter do nacionalismo vigente, até então sob a liderança da Igreja católica e mais preocupado com as possibilidades de sobrevivência cultural do grupo enquanto tal.23 A observação dessas mudanças que vieram com a Revolução Tranquila é importante para se entender a intensificação das negociações das relações entre o Quebec e o resto-do-Canadá, assim como dos pontos de estrangulamento entre eles.

a retórica do ressentimento e a evocação oBrigatória... 119

Nesse quadro, a menção a René Lévesque no trecho nº 2, um político absolutamente central na história recente do Quebec e até hoje muito admirado pela população francófona da província,24 cumpre o papel de enfatizar a falta de receptividade das deman-das do Quebec por parte do resto-do-Canadá, não apenas devido a divergências ou diferenças de perspectiva, mas por uma falta de atenção ou de interesse mesmo do Canadá inglês em ouvir a voz do Quebec. Afinal de contas, como seria possível, depois de tantas negociações e com negociadores do calibre de René Lévesque, não se ter tido sucesso nem mesmo na transmissão do ponto de vista da província? Na mesma direção, a menção a Claude Ryan (ex-líder do PLQ e federalista) ao lado da Assembleia Nacional no trecho nº 4, que nunca aceitaram as condições do patriamento, cumpre a função de enfatizar o caráter impositivo e irrazoável através do qual a Constituição de 1982 teria sido imposta.25 Tendo em vista que os próprios federalistas não aceitam a nova Constituição e se sentem ameaçados por ela, só a intransigência e a falta de consideração para com o Quebec explicariam a insistência do resto-do-Canadá em negar o caráter distinto do Quebec.26

De fato, todos esses discursos e declarações são pronunciados em alto grau de dramaticidade, onde os ouvintes são convocados a se situarem enquanto atores nas imagens reconstruídas pelo orador, e se deixam tocar simultaneamente nos planos da razão e da emoção. Pois, já não conseguem distinguir nitidamente entre a compreensão cognitiva dos atos ou situações tematizados nos discursos, e a iden-tificação com os personagens dramatizados na retórica do orador, viabilizada mediante a evocação dos sentimentos dos atores. Essa conexão é especialmente clara no caso do trecho nº 3, onde é feita a acusação de traição.

A referência à famosa “noite das facas longas” no trecho nº 3 é particularmente dramática, contundente e polêmica, na medi-da em que evoca fortes sentimentos dos dois lados. Assim como os francófonos interpretam o ocorrido como um ato de traição, e portanto como uma agressão imoral (ou como um grande insulto

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moral), os anglófonos não aceitam em hipótese alguma a acusação, e se sentem igualmente ofendidos com a insinuação de que tal ato teria de fato transcorrido. De toda maneira, a noite em pauta (com ou sem as “facas longas”) teria acontecido no dia 4 de novembro de 1982, véspera da sessão constitucional que aprovou o patriamento da constituição no parlamento. Segundo decisão da Corte Suprema do Canadá, para que a Constituição fosse legitimamente patriada e emendada era necessário que o governo federal contasse com o apoio de uma maioria significativa,27 e o acordo ou aliança (mencionada no discurso de Bouchard) que o então primeiro-ministro do Quebec (René Lévesque) havia feito cerca de seis meses antes com seus pares de sete das outras nove províncias canadenses, todas anglófonas, poderia inviabilizar os planos de Trudeau quanto à realização do patriamento. Com a decisão da Corte o Grupo dos Oito, como fica-ram conhecidos os participantes do acordo, poderia impedir qualquer fórmula de patriamento que não fosse de seu agrado, o que dava ao grupo um peso político maior do que o de Ottawa nas negociações.28 Para a concretização do acordo, o Quebec havia inclusive aberto mão do direito de veto a futuras mudanças constitucionais, previsto na formulação inicial de Trudeau, o que caracterizaria a sua boa-fé nas negociações e daria fôlego à acusação de traição às províncias anglófonas no desenrolar dos acontecimentos.29

Com o objetivo de encontrar uma solução para o que percebia como um impasse nas negociações, Trudeau teria oferecido a Lé-vesque a possibilidade de realização de um referendum para aprovar as condições do patriamento a serem formalizadas e, segundo ele, a divulgação da manifestação de Lévesque em apoio à proposta teria irritado seus parceiros do Grupo dos Oito, para os quais a referida manifestação já seria uma quebra do acordo. Desse modo, os primei-ros-ministros das sete províncias se sentiram à vontade para se juntar às outras duas e aprovar a proposta de patriamento encaminhada por Ottawa, já sem a cláusula que dava ao Quebec um direito de veto. Contudo, a versão desses mesmos acontecimentos que vigora entre os franco-quebequenses, e que Bouchard retoma no discurso que

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fez à nação no dia 25 de outubro, é de que no meio da noite do dia 4 de novembro, os sete primeiros-ministros teriam ido ao encontro de Jean Chrétien em um hotel de Ottawa para confabular contra o Quebec.30 Versão esta que Trudeau afirma ser uma falsidade histórica. De qualquer forma, a imagem da “noite das facas longas” teve grande repercussão na imprensa (francófona e anglófona) e foi muito efetiva para evocar os sentimentos de ressentimento, viabilizando assim a percepção do insulto moral entre os franco-quebequenses.

Da mesma forma, os trechos de nos 5 e 6 exploram imagens per-cebidas como agressivas ao Quebec, e que confirmariam a percepção de falta de compromisso e/ou de consideração do resto-do-Canadá para com a província. No primeiro deles é retomado o tema da falta de interesse em negociar as demandas do Quebec, caracterizada pela decisão de impor ao Quebec a solução acordada entre as demais províncias no momento em que o Grupo dos Oito se dissolve, e a Belle Province deixa de se constituir num constrangimento “legal” para a aprovação do patriamento: “...os interesses do Canadá inglês eram” de tal ordem que não valia a pena esperar pela anuência do Quebec. O último trecho se refere ao grande comício pela unidade do Canadá, promovido pelo comitê do NÃO no dia 27 de outubro com o apoio de organizações espalhadas por todo o país, e que con-seguiu reunir mais de duzentas mil pessoas no centro de Montreal. O evento trouxe simpatizantes do NÃO de todas as províncias, que invadiram Montreal para declarar amor ao Quebec. Para boa parte dos militantes do SIM a manifestação soou como uma declaração falsa e/ou descompromissada e, portanto, como uma agressão de última hora. O discurso de Bouchard que menciona a manifestação foi pronunciado no mesmo dia, e é ao caráter duvidoso desta decla-ração de amor que Bouchard se refere quando afirma que por ocasião da rejeição do acordo do Lago Meech, por parte de duas províncias anglófonas, nenhuma manifestação desse tipo teria sido feita.

Ainda que polêmicos e/ou exagerados em alguns casos, os trechos anteriormente reproduzidos são bem-sucedidos no sentido de, por meio da evocação do sentimento de ressentimento, conseguir

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tornar inteligível a percepção do insulto moral, expresso na negação do reconhecimento da identidade distinta do Quebec, e que aparece como um ato de desconsideração unilateral, suscitando a reação de indignação ou de reprovação moral de que nos fala Strawson. Des-se modo, talvez pudéssemos dizer que a articulação entre retórica e emoção nestes casos teria evocado sentimentos cognitivamente fecundos na medida em que teriam ampliado o horizonte do ator, permitindo uma melhor compreensão de sua experiência. Pergunto--me agora se esta articulação entre retórica e emoção também não poderia produzir resultados na direção oposta, evocando sentimentos passionais que, ao invés de ampliar, limitariam o horizonte do ator e constrangeriam sua capacidade de compreensão.

No próprio caso do Quebec, consigo pensar em pelo menos dois exemplos de articulação perversa entre retórica e emoção, que sugerem cautela quanto à avaliação do potencial da retórica do ressen-timento para a percepção do insulto moral. Inicialmente, gostaria de mencionar a abertura da fala de Parizeau aos militantes do SIM quando o ex-primeiro-ministro reconheceu a derrota no referendum, com um discurso muito emotivo em que culpava empresários e imigrantes pela vitória do NÃO: “Nous avons été battus pour l’argent et le vote ethnique” (“perdemos para o dinheiro e para o voto étnico”).31 Apesar dos militantes parecerem apoiar a declaração infeliz de Parizeau no momento, a repercussão do discurso foi muito negativa, inclusive para a maioria franco-quebequense, e no dia seguinte havia um forte sen-timento de que Parizeau deveria renunciar ao cargo, o que ele fez nas semanas que se seguiram. A alusão aos interesses “antipatrióticos” do grande capital foi considerada suficientemente forte, mas a recrimina-ção com ar de acusação ao voto étnico foi tomada como uma agressão intolerável. O segundo exemplo, contudo, teve uma repercussão mais ambígua, embora tivesse implicações éticas e cognitivas igualmente criticáveis. Estou me referindo a um dos discursos de Bouchard enun-ciado nas semanas que antecederam o referendum, e no qual recrimina “la faible natalité chez les québécoises blanches...” (“a baixa taxa de natalidade entre as quebequenses brancas”). Além das implicações

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potencialmente racistas ou etnicistas da afirmação, Bouchard enfrentou protestos de líderes feministas que recusavam frontalmente o papel de reprodutoras ou procriadoras a elas atribuído. Embora a taxa de natalidade tenha sido vista tradicionalmente como um problema po-lítico no Quebec, na medida em que foi sempre percebida como um freio importante ao crescimento dos desequilíbrios entre anglófonos e francófonos no Canadá, é inacreditável que o tema tenha sido abordado nesses termos por Bouchard, especialmente no momento em que os soberanistas fazem um esforço para tirar qualquer conotação étnica do nacionalismo quebequense, fazendo mesmo questão de enfatizar a dimensão territorial em oposição à étnica, chamando a atenção para o caráter democrático do nacionalismo quebequense, que seria aberto à inclusão de qualquer cidadão, independentemente de sua origem étnica, racial, linguística e etc.

Nesse contexto, gostaria de sugerir, à guisa de conclusão, que o significado e as implicações da retórica do ressentimento em casos concretos devem ser balizados através da análise do potencial de fecundidade cognitiva dos sentimentos efetivamente evocados. Isto é, enquanto as reações passionais caracterizariam um déficit cogni-tivo importante e a demanda em prol do sancionamento de relações ou de instituições ilegitimáveis, a mobilização de sentimentos que conduzissem o ator a uma melhor compreensão do insulto moral teria um carater elucidador e, por que não, emancipatório.

Notas1 Em 20 de maio de 1980 foi realizado o primeiro referendum sobre a soberania do Quebec, onde os federalistas, defensores do NÃO, tiveram uma vitória fol-gada: 59,6% votaram NÃO, enquanto apenas 40,4% votaram pelo SIM. Para uma visão mais abrangente do contexto dentro do qual o referendum teve lugar, ver os capítulos 3, 6 e 7 desta edição.2 “Você aceita que o Quebec se torne um país soberano, depois de ter oferecido formalmente ao Canadá uma nova parceria econômica e política, no quadro do projeto de lei sobre o futuro do Quebec e do acordo assinado em 12 de junho de 1995?”

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3 O Bloco Quebequense é um partido federal e, apesar de defender a soberania do Quebec, fazia as vezes de “oposição oficial” em Ottawa, quando da realização do referendum em outubro de 1995.4 A Aliança Democrática do Quebec (ADQ) é uma dissidência do Partido Liberal do Quebec (PLQ), de orientação federalista, que tem posições nacionalistas mais fortes, identificadas com o relatório do comitê Allaire, o qual demandava uma transferência massiva de poderes de Ottawa para o Quebec, e que foi instituído pelo PLQ em abril de 1990 para aconselhar o governo após a derrota do Acordo do Lago Meech. A divergência em relação ao entendimento entre o governo do PLQ e Ottawa sobre o referendum para aprovar o acordo de Charlottetown, em 1992, provocou a cisão que deu origem à ADQ.5 A Constituição do Canadá ficou guardada no parlamento inglês até 1982, quando foi patriada e, até então, não podia ser emendada autonomamente pelos canadenses. Em 1982, com a Constituição patriada, Trudeau consegue aprovar e anexar à Constituição a Carta de Direitos e Liberdades, que não reconhece a especificidade quebequense e põe em risco aspectos considerados importantes da Lei nº 101 da língua francesa, na medida em que esses aspectos possam ser percebidos como ameaça a direitos individuais, cuja defesa passa a se constituir em um imperativo absoluto.6 Em outro lugar, procuro caracterizar a desconsideração como o reverso do reconhecimento, cuja prática fere direitos de cidadania que, apesar de não encon-trarem respaldo no plano legal, podem ser fundamentados intersubjetivamente no plano moral, e discuto algumas de suas implicações para a compreensão da afirmação da identidade quebequense (Cardoso de Oliveira, 1999a; 2001b).7 “Responder sim, é efetivamente se dar um país. Isto quer dizer que os quebe-quenses vão ter seu país.”8 Conforme a tabela da pág. 80, com exceção da primeira pesquisa de opinião realizada após a divulgação da questão referendária pela empresa Léger & Lé-ger, no dia 8 de setembro, e que dava uma diferença menor entre os partidários do SIM (47,1%) e do NÃO (52,9), todas as demais indicavam números mais próximos ao resultado do referendum de 1980.9 Um dos aspectos mais enfatizados pelo campo do NÃO se referia à dificuldade, ou mesmo à impossibilidade, de um Quebec soberano conseguir manter o dólar canadense como moeda, o acesso ao passaporte canadense para a população, e ainda compartilhar as forças armadas com o Canadá. Os defensores do SIM insistiam que estes três pontos seriam negociados com o Canadá e, de fato, a viabilização de um acordo de parceria com estas características dava uma certa ambiguidade à ideia de soberania, e tornava mais distante a perspectiva de separação do Canadá.

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10 Ver os 14 números do Boletim publicado pelo Secrétariat à la Restruturation, divulgados entre março e outubro de 1995.11 Além disto, Bouchard é uma figura especial cujo mana, associado ao carisma pessoal e habilidade retórica, foi significativamente aumentado em sua história recente. Depois de ter conseguido um desempenho excepcional para o recém--criado Bloco Quebequense nas eleições federais de 1993, Bouchard passou por uma provação que marcou muito sua vida e a população do Quebec. Em 24 de novembro de 1994, Bouchard é hospitalizado em estado grave, com uma infecção na perna esquerda provocada pela “bactéria carnívora” e é obrigado a amputar a perna. Após um período relativamente curto de convalescença, no dia 22 de fevereiro de 1995 Bouchard entra triunfalmente na Câmara dos Comuns, como se tivesse ressuscitado para defender os interesses do Quebec no Parlamento. Nesse sentido, sua trajetória lembra a de muitos xamãs em so-ciedades tribais, que passam por experiências de provação similares no processo de aquisição de seus poderes especiais (ver, inter alia, Melatti, 1970:65-76).12 Como líder da oposição oficial, Bouchard ocupava a maior parte do tempo alocado para as sessões de “questionamentos” no parlamento, quando a oposição tem o direito de cobrar respostas públicas do governo às críticas que levanta. A grande cobertura que esses debates recebem da imprensa fazia da oportuni-dade de confrontar Chrétien (primeiro-ministro do Canadá) diariamente uma estratégia de campanha razoável.13 Como sabemos, a dimensão moral da expressão dos sentimentos, assim como a troca de dádivas, não se manifesta apenas nas sociedades ditas simples ou primitivas. Contudo, como indicam Godbout e Caillé (1992) para a dádiva, apesar desses atos ou sentimentos continuarem tendo um significado moral na sociedade moderna, entre nós eles só se realizam de maneira plena quando trazem consigo a aparência de um ato gratuito ou espontâneo, relativizando a sua obrigatoriedade (Godbout, 1994:297-302).14 Em meu trabalho sobre pequenas causas nos EUA, procurei mostrar como certo tipo de agressão à pessoa dos atores era usualmente associada ao universo das emoções, e indevidamente reduzida a um problema de ordem psicológica, que não encontraria respaldo legal, ainda que a manifestação de revolta expres-sa pela parte agredida contasse com a simpatia dos mediadores da disputa ou de terceiros. Ou seja, a socialização da percepção não garante, por si só, uma compreensão adequada do fenômeno (Cardoso de Oliveira, 1989:399-451; 1996b:105-142).15 Seguindo orientação do comitê do NÃO no referendum, Trudeau pratica-mente não participou da campanha. A imagem política de Trudeau estava muito desgastada no Quebec, inclusive em relação às alegações de que não

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teria cumprido suas promessas de renovação do federalismo canadense após a vitória do NÃO no primeiro referendum, realizado em 1980. Assim, temia-se que uma participação mais ativa de Trudeau prejudicasse a campanha do NÃO.16 “Nos últimos 30 anos houve dezenas de negociações entre o Quebec e o resto-do-Canadá: em todos os casos nós fracassamos... Outros se aproveitaram de nossa fraqueza política.”17 “Durante trinta anos, a razão profunda pela qual nunca tivemos sucesso em convencer o Canadá inglês (de conceder) mesmo a menor reivindicação histó-rica do Quebec, não é que nós tenhamos enviado pessoas que não fossem bons negociadores. Tínhamos os melhores. Nós tínhamos René Lévesque.”18 “Embora houvesse uma aliança com René Lévesque para se fazer um acordo de bom senso (razoável), estas sete províncias anglófonas o abandonaram em apenas uma noite [a noite das facas longas].”19 “[A Constituição de 1982] reduziu os poderes do Quebec nos domínios da língua e da educação... René Lévesque a recusou. Claude Ryan a recusou. A Assembleia Nacional do Quebec a recusou.”20 “A Constituição foi repatriada em 1982 contra a nossa vontade... porque os interesses do Canadá inglês eram tais que eles tinham que fazer isto.”21 “Eles (o Canadá inglês) rejeitaram a mão estendida do Quebec em 1990... Ninguém veio fazer manifestação em Montreal para nos dizer ‘Nós te amamos’. Eles simplesmente disseram não a Meech.”22 A demanda da “nacionalização da eletricidade” era uma bandeira política de segmentos nacionalistas do Quebec desde os anos 30 (Chaloult, 1969).23 No que concerne à Igreja, a atuação política do padre e historiador Lionel Groulx se constituiu em uma exceção significativa. Apesar de ter posições conservadoras, Groulx sempre defendeu uma perspectiva mais afirmativa da identidade nacional do Quebec, e teve grande influência no nacionalismo Quebequense pelo menos até o final dos anos 50. Além de ter sido fundador da importante revista L’Action Nationale em 1919, Groulx publicou nos anos 20 um dos principais romances nacionalistas do Quebec, L’Appel de la race, que teve grande repercussão na imprensa e na população da província.24 Além de ter criado o Movimento Soberania-Associação e de ter fundado o Partido Quebequense, René Lévesque foi um dos principais colaboradores dos dois governos Lesage, quando teve início a Revolução Tranquila, e foi primeiro--ministro do Quebec durante oito anos, tendo sido responsável pela aprovação da Lei nº 101 da língua francesa. René Lévesque morreu em 1º de novembro de 1987, dois anos depois de deixar a política.

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25 Assembleia Nacional se refere ao poder legislativo do Quebec, única pro-víncia onde o legislativo tem o status de uma instituição nacional. Aqui, vale a pena indicar que, de uma certa perspectiva, a grande maioria da população franco-quebequense (correspondendo a pouco mais de 80% da população da província) é nacionalista. Isto é, mesmo os federalistas têm uma forte identidade nacional e em geral apoiam as bandeiras nacionalistas cuja implementação não implica em separação.26 Aliás, até 1992 o próprio Bouchard era federalista e membro do Partido Conservador-Progressista, tendo mudado de opinião após a inviabilização do acordo do Lago Meech, quando abandona a posição que tinha no governo federal e decide criar o Bloco Quebequense, de orientação soberanista.27 De acordo com a Corte Suprema, embora o patriamento unilateral da Cons-tituição (isto é, sem a anuência das províncias) não fosse de fato ilegal, violaria as convenções não escritas da vida política no Canadá e, portanto, o governo federal deveria obter suporte de uma maioria clara das províncias para que o processo de patriamento se consumasse de maneira adequada.28 De uma maneira geral as províncias viam na anexação da Carta de Direi-tos e Liberdades uma ameaça à autonomia dos legislativos provinciais, e as negociações em pauta versavam sobre fórmulas alternativas para emendar a Constituição. Enquanto a fórmula Vitória, proposta inicialmente por Trudeau, previa um direito de veto a mudanças constitucionais por parte do Quebec, de Ontário, do conjunto de duas províncias do oeste, ou da união de duas províncias do Atlântico, a fórmula Vancouver (ou Alberta) acordada pelo Grupo dos Oito previa que as mudanças constitucionais estariam sujeitas à aprovação de pelo menos sete províncias canadenses e do consentimento de 50% da população do país. Em 1996 o governo federal conseguiu aprovar no parlamento um princí-pio não constitucional similar à fórmula Vitória, com a diferença que agora a Colômbia Britânica também teria um poder de veto.29 Da mesma maneira, o fato de René Lévesque ter assumido a estratégia do beau risque em 1984, abrindo mão do projeto soberanista enquanto se procurava articular um acordo de renovação do federalismo que contemplasse as demandas do Quebec, também reforçaria sua imagem de boa-fé em oposição à percepção de intransigência em relação ao Canadá inglês. Lévesque apostou nos esforços de Brian Mulroney (então primeiro-ministro do Canadá) que desembocaram no acordo do Lago Meech, o qual acabaria sendo derrotado em 1990. Assim como a imagem da “noite das facas longas”, a derrota de Meech também é percebida como um ato de rejeição, isto é, como um insulto moral.30 O atual primiro-ministro do Canadá, Jean Chrétien, era um membro importante do Gabinete de Trudeau na época.

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31 Os imigrantes são significativamente classificados como alófonos, em opo-sição a francófonos e anglófonos, e atualmente constituem um contingente significativo dos eleitores de Montreal. Isto é, enquanto os francófonos corres-pondem a 82% do eleitorado no Quebec, anglófonos e alófonos correspondem a 9% cada. De fato, os dois últimos segmentos têm dificuldades de se identificar com o projeto soberanista, tendo votado quase que exclusivamente (isto é, mais de 90%) pelo NÃO, ao contrário dos francófonos, que se dividem um pouco sobre a questão, e que dirigiram 61% de seus votos para o SIM.

Capítulo VI

Direitos republicanos, identidades coletivas e esfera pública no Brasil e no Quebec

O processo de redemocratização no Brasil, que desembocou na promulgação da nova Constituição em 1988, e as demandas por reconhecimento no Quebec trazem à luz questões interessantes para uma reflexão sobre a relação entre identidades coletivas e a definição de direitos de cidadania na esfera pública. Os dois casos ilustram uma certa tensão na articulação ou intersecção entre direi-tos individuais e coletivos ou direitos diferenciados por grupo, para utilizar uma expressão de Kymlicka (1995). Esses direitos estão intimamente associados a identidades culturais e/ou sociais, o que coloca questões de difícil resposta para as teorias contemporâneas sobre democracia e cidadania, que têm como foco o indivíduo autônomo, sujeito normativo das instituições.

Enquanto no Brasil a relação entre identidades sociais e cidada-nia se desenvolveu através de um processo de expansão de direitos mediado por um certo sindicalismo – cujas lideranças eram cooptadas pelo Estado e mediavam a articulação de suas corporações com ele (o chamado peleguismo) –, tendo como pano de fundo uma perspectiva cultural que estrutura o mundo social como uma hierarquia, já no caso do Quebec o exercício dos direitos de cidadania é percebido pelos franco-quebequenses como sendo significativamente preju-dicado pela falta de reconhecimento de sua identidade nacional ou cultural. Dado que o Quebec, sendo uma província canadense, tem

130 direito legal e insulto moral

grande apreço pelos valores do individualismo e da igualdade, sua comparação com o caso brasileiro produz um cenário contrastante que ajuda a iluminar as dificuldades oriundas da articulação entre direitos individuais e identidades coletivas para a definição da ci-dadania nas democracias contemporâneas. Na mesma direção, a comparação sugere que uma análise dos direitos de cidadania requer não apenas um foco na investigação de como esses direitos são de fato praticados in loco, mas demanda também um exame da relação entre as dimensões legal e moral da cidadania.

O fortalecimento dos sindicatos no cenário político brasileiro, ao lado de um certo fisiologismo cultural de longa data (marcado por práticas clientelistas normalmente associadas a políticos con-servadores ou de direita), provocou recentemente um debate sobre a importância dos direitos republicanos – em defesa do interesse público contra práticas patrimonialistas de corporações e pessoas físicas –, caracterizados como direitos de cidadania de terceira ge-ração.1 Entrementes, no Quebec, a falta de reconhecimento do seu caráter culturalmente distinto dentro do Canadá tem estimulado o crescimento de uma perspectiva nacionalista na província, que levou o Canadá a uma grande crise constitucional. Ainda que as mudanças desejadas para a superação dos respectivos problemas nos dois países demandem algum tipo de inovação no plano jurídico ou de reforma constitucional, os problemas em pauta também requerem desenvolvimentos de outra ordem. Como argumentarei no que se segue, tanto no caso do esforço para estimular uma maior pre-ocupação com o interesse público e com o respeito aos direitos individuais (universalizáveis) no Brasil, como no caso do empenho pela garantia do reconhecimento de fato da identidade distinta dos quebequenses no Canadá, trata-se de mudanças que demandam uma aceitação genuína de certos valores, cuja efetivação implica sua in-ternalização. Ou seja, trata-se de um processo que requer alterações não apenas no campo do comportamento, mas no das atitudes, e que não pode ser implementado por decreto ou a partir de iniciativas exclusivamente legislativas.

direitos rePuBlicanos, identidades coletivas e esfera PúBlica 131

Nesse empreendimento, (a) farei inicialmente um breve retros-pecto do processo de expansão dos direitos de cidadania no Brasil (da Era Vargas, nos anos 30, à nova Constituição de 1988), chaman-do a atenção para o papel dos sindicatos na esfera pública, assim como para a nossa dificuldade cultural em universalizar o respeito aos direitos (básicos) de cidadania na vida cotidiana. Esse quadro deve explicar, por um lado, por que a noção de direitos republicanos motivou um debate recente no Brasil2 e, por outro lado, por que as ações limitadas à esfera jurídico-legal são insuficientes para atacar o problema de maneira adequada. Passarei então para (b) a discussão da crise constitucional canadense, tendo como foco o significado da demanda por reconhecimento do Quebec, e atentando para as difi-culdades que tal demanda suscita no resto-do-Canadá. Desse modo, a crise será contextualizada no âmbito das diferenças de visão que francófonos e anglófonos têm sobre a história do Canadá e sobre o papel desempenhado por cada grupo no processo de formação do país, assim como no que concerne às suas divergências quanto ao lugar das identidades coletivas na esfera pública, sem deixar de lado os conflitos em torno da língua e da cultura ou o significado da Revolução Tranquila como um marco na transformação do nacio-nalismo quebequense. Aqui, também, procurar-se-á mostrar como a luta por mudanças no plano constitucional/legal representa apenas um aspecto do problema.

Finalmente, (c) irei me reportar aos dois casos para argumentar que o exercício da cidadania tem uma dimensão moral que não pode ser satisfatoriamente equacionada apenas no plano estritamente legal ou formal. Esta dimensão moral chama a atenção para o ca-ráter culturalmente contextualizado de todas as interações sociais, e envolve uma relação entre direitos e identidades, permeando as relações sociais no espaço público (englobando a sociedade civil e sua interface com o Estado), onde o simbolismo da ação social tem um papel central. Como tal, essa dimensão moral constitui um aspecto importante da experiência dos atores, situada no cerne do mundo da vida, a qual demanda renovação constante e não admite soluções

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ou arranjos permanentes nem está sujeita a legitimações definitivas. Nesse sentido, a definição de regras de interação normativamente adequadas é um passo importante mas insuficiente para que certos direitos de cidadania sejam contemplados. Uma vez que a ideia de direitos morais tenha sido estabelecida, a importância da cultura e da dimensão simbólica dos direitos vem à tona de maneira evidente, sugerindo a tematização da relação entre esfera pública e espaço público para viabilizar uma discussão mais detida sobre o exercício da cidadania na vida cotidiana.3

A expansão dos direitos e a percepção da cidadania no Brasil

Muitos analistas já chamaram a atenção para o fato de que a expansão dos direitos de cidadania no Brasil não seguiu o processo tradicional descrito por Marshall (1976), no qual os direitos civis, os políticos e os sociais foram institucionalizados nesta ordem (Cardoso, 1991, inter alia). De fato, os três tipos de direitos de cidadania defi-nidos por Marshall não só foram estabelecidos e expandidos mais ou menos ao mesmo tempo no Brasil, mas, em alguma medida, poder--se-ia dizer que os direitos sociais assumiram a liderança do processo, mesmo que seu nível de institucionalização seja ainda insatisfatório nos dias de hoje. Tratando-se de uma sociedade onde a escravidão era uma instituição legal até 1888, e onde as classes médias urbanas, assim como a classe trabalhadora, eram relativamente pequenas e politicamente frágeis até os anos 50, durante muito tempo a maior parte da população estava na realidade excluída do exercício dos direitos civis e políticos, mesmo quando estes já existiam no papel ou já estavam previstos em lei. Seja devido à falta de educação e à ignorância sobre direitos de cidadania, ou devido ao fato de as condições sociais e do senso comum correspondente enfatizar uma visão hierárquica do mundo social – especialmente nas áreas rurais onde a maioria da população vivia antes de 1950 –, a realidade é que de uma maneira geral os direitos de cidadania não estavam ao alcance de uma parcela significativa da população. Tal quadro é

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particularmente interessante porque, de certo modo, de um ponto de vista formal, com exceção dos dois períodos de ditadura (1935-45 e 1964-85) o Brasil se constituiu numa democracia liberal desde a promulgação de sua primeira Constituição em 1824. Mesmo levando--se em conta que nesse momento o voto era censitário, situação que perdurou até 1891, quando as restrições econômicas foram banidas e o voto universal foi estabelecido, deixando fora do sistema apenas os analfabetos, os vagabundos, os soldados e os homens religiosos, além da exclusão significativa das mulheres, que só passaram a gozar do direito de votar em 1933.

Mas se, de um ponto de vista formal, os direitos civis e políticos já estavam em grande medida legalmente sancionados na virada do século, esse não era o caso dos direitos sociais, cuja legislação era muito tímida até os anos 30, marcando o início da Era Vagas, quan-do o ministério do trabalho foi criado (em 1931). Nesse momento também foi aprovada no Congresso uma lei sobre direitos de férias e os direitos de securidade social foram ligeiramente ampliados, para incluir a instituição de um seguro contra acidentes de trabalho, ao lado do estabelecimento de fundos de pensão governamentais e seguro de saúde. Entretanto, o acesso a esses direitos e benefícios era mediado pela carteira de trabalho dada para os trabalhadores cujas ocupações estavam reguladas pelo Estado. A apresentação da carteira de trabalho por parte dos trabalhadores era um requisito para o aces-so aos serviços e/ou para que suas demandas fossem processadas. Essa situação motivou Santos a definir a condição dos trabalhadores através da noção de cidadania regulada:

Por cidadania regulada entendo o conceito de cidadania cujas raízes encontram-se, não em um código de valores políticos, mas em um sistema de estratificação ocupacional, e, ademais, tal sistema de estratificação ocupacional é definido por norma legal. Em outras palavras, são cidadãos todos aqueles membros da comunidade que se encontram localizados em qualquer uma das ocupações reconhecidas e definidas em lei. A extensão da cidadania se faz, pois, via regulamentação de novas profissões

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e/ou ocupações, em primeiro lugar, e mediante ampliação do escopo dos direitos associados a estas profissões, antes que por expansão dos valores inerentes ao conceito de membro da comunidade. A cidadania está embutida na profissão e os direitos do cidadão restringem-se aos direitos do lugar que ocupa no processo produtivo, tal como reconhecido por lei. Tornam-se pré-cidadãos, assim, todos aqueles cuja ocupação a lei desconhece (Santos, 1987:68).

Desse modo, todos os trabalhadores rurais e aqueles que tra-balhavam em áreas urbanas, mas cujas ocupações não estavam legalmente reguladas pelo Estado, eram excluídos dos respectivos direitos e vantagens. Na mesma direção, se a carteira de trabalho foi instituída em 1932, os sindicatos foram legalizados mais ou menos na mesma época e passaram a ter um papel importante na esfera pública, como mediadores oficiais e obrigatórios entre as demandas dos trabalhadores e o Estado. Como apenas os trabalhadores cujas ocupações/profissões haviam sido reguladas poderiam se associar em sindicatos, eles eram os únicos habilitados a apresentar reclamações trabalhistas às Juntas de Conciliação e Julgamento, assim como desfrutar certos benefícios, como tirar férias por exemplo (Santos, 1987:69). A citação anterior indica que a legislação trabalhista que entrou em vigor na década de 1930 não apenas excluía a maioria da população dos direitos sociais implementados no período, mas estabelecia uma hierarquia entre as ocupações/profissões reguladas, instituindo diferenças de acesso aos direitos segundo o status de cada uma.4 Em uma palavra, esse processo de expansão de direitos significou que os direitos sociais não foram estabelecidos segundo princípios universalistas, o que motivou a formação de fortes iden-tidades coletivas associadas à filiação sindical, tornando difícil a articulação de um discurso coerente em defesa de uma perspectiva universalista sobre os direitos de cidadania, dado que tal perspecti-va não encontrava respaldo entre os trabalhadores.5 Como assinala Santos, a carteira de trabalho se tornou uma certidão de nascimento cívico para o cidadão regulado (idem:69).6

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A carteira de trabalho também se tornou um símbolo importante de identidade social, que poderia ser exigido pela polícia em suas rondas, ou em diligências nas favelas urbanas, quando o documento é frequentemente solicitado de maneira arbitrária, ainda que sob o argumento de suspeição (Kant de Lima, 1995:58). Nesse contexto, a carteira de trabalho é tomada como símbolo de correção e de dig-nidade, que identifica os cidadãos respeitadores da lei, fazendo com que aqueles que não têm a carteira possam ser tratados pela polícia como vagabundos ou cidadãos desqualificados, tornando-se ime-diatamente suspeitos, e ficando sujeitos a atos de desconsideração,7 a provocações e arbitrariedades por parte da polícia. Na realidade, isto significa que as pessoas que não têm carteira de trabalho e que são pobres, naturalmente, estão sujeitas a terem seus direitos civis arbitrariamente questionados (quando não violados) pela polícia.8

Além disso, a regulação de ocupações e/ou profissões pode trazer ainda outros benefícios para os trabalhadores nelas registrados. Um desses benefícios mais significativos é a reserva de vagas no mercado de trabalho, às quais os trabalhadores e/ou profissionais registrados passam a ter acesso exclusivo. Isto é, em tais ocupações/profissões só aqueles trabalhadores que foram formalmente registrados podem ser legalmente contratados. Se faz sentido sancionar legalmente esse tipo de constrangimento para contratações ou para o exercício da pro-fissão em áreas como direito e medicina, onde a falta de treinamento adequado do profissional pode prejudicar seriamente as condições de existência ou a saúde do cliente, não se pode dizer o mesmo no caso de profissões como jornalismo, por exemplo, que não expõem aos mesmos riscos aqueles que se utilizam dos seus serviços. Nesse sentido, deve-se observar que a atividade jornalística frequentemente exige treinamento em outras áreas (e.g., economia, ciência política, sociologia etc), cujos especialistas eram até há pouco formalmente recrutados pela imprensa sem que o diploma de jornalismo fosse exigido, e tinham bom desempenho em suas funções.

Ainda que a institucionalização da carteira de trabalho, e da legislação trabalhista que veio com ela, tenha caracterizado um

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processo desigual e injusto de formalização dos direitos sociais, com suas respectivas implicações para o status da cidadania tam-bém em outras áreas, esse processo não deixou de representar, ao mesmo tempo, uma expansão significativa dos direitos de cidadania. Contudo, as identidades coletivas formadas durante esse período, em conexão com a regulamentação de profissões ou ocupações, se articulam bem com a estrutura hierárquica da sociedade brasileira (no que concerne ao ethos da população e a sua visão de mundo), e continuaram tendo um impacto na definição de políticas públicas durante todo o processo de redemocratização que culminou com a promulgação na nova Constituição, possuindo ainda hoje importante papel na esfera pública. Isto é, com a diferença significativa de que parte da legislação recente, cuja elaboração foi motivada por essa perspectiva, com o apoio dos sindicatos, não pode ser vista como um avanço inequívoco no processo de expansão dos direitos de cidada-nia. Basta lembrar alguns aspectos dos direitos sociais sancionados pela nova Constituição de 1988, alguns dos quais são tematizados de maneira reveladora nos debates atuais sobre as propostas de re-forma constitucional encaminhadas pelo governo, ou na polêmica em torno da institucionalização de um sistema de eleição paritário para a escolha do reitor e dos diretores das universidades federais.

No primeiro caso, penso especialmente na aprovação do Re-gime Jurídico Único (RJU) pelo Congresso, mudando a situação funcional ou o caráter do vínculo empregatício dos servidores públicos, os quais ganharam tantos direitos especiais que, sob im-portantes aspectos, é difícil não pensar sobre eles como um grupo de trabalhadores privilegiados. Contudo, o mais impressionante em tudo isso é que, como outras tentativas ou esforços legislativos do mesmo tipo, a aprovação do RJU foi motivada por preocupações que visavam à justiça social. Ou seja, medidas satisfazendo interes-ses privados são formuladas como (se fossem) um benefício para a sociedade mais ampla, e privilégios ilegítimos são apresentados sob a capa dos direitos sociais, como se estivessem apoiados em princípios universalistas. Nesse sentido, devo dizer que, além das

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tradições culturais que impulsionaram o fortalecimento das identi-dades coletivas mencionado acima, há pelo menos dois aspectos que precisam ser considerados para tornar inteligível a distância entre os ideais de justiça social e a promulgação de leis que, na realida-de, sugerem a direção oposta: (a) o fato de a Constituição ter sido votada imediatamente após um longo período de ditadura, dentro do qual foi produzido um grande déficit em relação aos direitos de cidadania (não apenas sociais), e o Congresso estava ansioso para reverter esse quadro; e, (b) o país estava atravessando um longo período de hiperinflação no qual a maioria das pessoas havia per-dido qualquer referência para apoiar suas avaliações econômicas ou financeiras, e o governo havia perdido o controle sobre o real significado de seu orçamento.9

Assim, o RJU estabeleceu um regime de estabilidade para todos os servidores públicos e um sistema previdenciário no qual eles não apenas se aposentavam com o salário integral, mas tinham “direito” a um aumento para tornar o salário equivalente à próxima posição na carreira, ou a uma elevação salarial de 20% para aqueles que já estavam no topo! Se somarmos a isto o fato de que até recentemen-te todo homem podia se aposentar depois de 35 anos de trabalho (30 anos no caso das mulheres), independentemente do período de contribuição previdenciária, ou do valor desta, é fácil imaginar o tamanho do déficit potencial de tal sistema. Especialmente se to-marmos como referência os segmentos de melhor remuneração no funcionalismo público, cujos membros são também aqueles que se aposentam mais cedo, que vivem mais, e que contribuem proporcio-nalmente menos para o sistema antes da aposentadoria. Sem dúvida, esse é um sistema extremamente iníquo, qualquer que seja o ângulo tomado para examiná-lo. Uma consequência imediata do sistema é que os trabalhadores da iniciativa privada pagam duplamente por este privilégio do funcionalismo público: primeiramente, porque os direitos especiais do funcionalismo são pagos com o dinheiro dos impostos pagos por todos e, depois, porque o déficit criado pelo sistema também terá que ser pago com o dinheiro do contribuinte.

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Dinheiro que, de outra maneira, poderia estar sendo investido em políticas públicas de natureza mais universalista.

Direitos republicanos e o interesse públicoDe qualquer forma, este é o tipo de problema que uma ênfase

nos direitos republicanos, assim como proposta por Bresser Perei-ra, pretende evitar. Diferentemente dos direitos civis e políticos, os quais foram historicamente institucionalizados para evitar as arbi-trariedades de um Estado autoritário, ou mesmo dos direitos sociais que protegem os pobres contra os ricos e os poderosos, os direitos republicanos são definidos por Bresser Pereira (1997:106) como uma proteção contra aqueles que privatizam ou se aproveitam da coisa pública, res publica, em benefício próprio. Trata-se dos direitos de acesso aos bens públicos ou ao patrimônio compartilhado por todos os cidadãos, os quais não deveriam ser apropriados por indivíduos ou por grupos de interesse (idem:119). Bresser Pereira distingue três tipos de direitos republicanos: (1) o direito ao meio-ambiente ou ao patrimônio ecológico; (2) o direito ao patrimônio histórico-cultural; e, (3) o direito à economia pública ou ao patrimônio econômico, a coisa pública em sentido estrito (ibidem:120).

Este último está no cerne da análise de Bresser Pereira, em vista das dificuldades especiais para se criar mecanismos efetivos em sua defesa, e constitui um tipo particularmente estimulante para a discussão da complexidade da separação entre interesses públicos e privados em certos contextos. De acordo com Bresser Pereira, en-quanto os direitos republicanos clássicos são de fácil identificação e existem meios relativamente efetivos para protegê-los, não se pode dizer o mesmo sobre os modernos atos de violência contra estes direitos. No primeiro caso o autor menciona o direito de proteção contra atos de corrupção, nepotismo e evasão fiscal, sendo todos claramente definidos e tipificados na lei.10 Entretanto, quando se fala das formas modernas de agressão aos direitos republicanos a coisa muda de figura. Pois, mesmo que não seja difícil identificar onde a violência ocorre, ou caracterizar o tipo de atos através dos quais a

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violência tem lugar, é frequentemente difícil separar entre estes atos aqueles cuja pretensão de legitimidade pode ser fundamentada, e aqueles onde isto não pode ser feito.

Os principais exemplos de agressões à res publica que Bresser Pereira tem em mente são: (a) políticas industriais que dão subsídios ou benefícios fiscais mal justificados (e.g., às usinas de álcool no Nordeste), e a prática de fechar contratos com empresas privadas sem concorrência pública; (b) políticas que se pretendem orientadas por interesses sociais mas que, de fato, trazem benefícios especiais apenas para alguns indivíduos ou grupos, normalmente no âmbito das classes médias que têm poder eleitoral, como no caso das van-tagens dadas às pessoas que deviam dinheiro ao Banco Nacional de Habitação (BNH), referente a financiamentos para a compra da casa própria, no final dos anos 80; e, (c) políticas administrativas que protegem indevidamente os funcionários públicos, tornando difícil fazer com que eles se dediquem ao trabalho ou pagando-lhes um salário desproporcionalmente alto (Bresser Pereira, 1997: 125).

A discussão anterior sobre o RJU e o excepcional sistema de previdência dos funcionários públicos no Brasil se encaixa perfei-tamente neste terceiro exemplo de violência à res publica descrito por Bresser Pereira. Contudo, se esses exemplos representam casos claros e cristalinos de agressão aos direitos republicanos, é frequen-temente difícil separar subsídios mal justificados daqueles que são razoáveis, ou políticas habitacionais socialmente orientadas daquelas que viabilizam interesses privatistas ou exclusivistas, assim como distinguir aumentos de salário ou vantagens merecidas dadas ao fun-cionalismo público, da implementação de privilégios injustificados de todos os tipos. É por isso que, contrariamente às formas clássicas de violência contra os direitos republicanos, Bresser Pereira argumenta que as formas modernas são relativas e dependem de processos de formação de consenso para viabilizar a separação entre interesse público e privado (Idem: 127).

Parece-me que esse ponto é bem fundamentado, e sugere uma dificuldade a mais para a criação de leis ou procedimentos que iden-

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tifiquem de maneira efetiva essas formas modernas de violência, e que garantam a proteção dos direitos republicanos contra elas. Entretanto, a discussão de Bresser Pereira deixa de fora pelo menos um tipo importante de agressão à res publica cuja natureza não é essencialmente econômica, e não atenta para a importância de uma dimensão cultural que tem papel significativo nos esforços para se-parar os interesses públicos dos privados. Do meu ponto de vista, as demandas para a institucionalização de um sistema de gestão paritária nas universidades federais seria um bom exemplo de violência con-tra a res publica, cujo impacto econômico seria uma consequência apenas secundária. O principal objetivo dessa demanda é a alteração das regras para escolha de dirigentes universitários, assim como daquelas que definem a composição dos conselhos e comitês que dirigem a universidade em todos os níveis. O argumento é de que a chamada “comunidade universitária” é composta por três segmentos – docentes, discentes e funcionários técnico-administrativos – que deveriam ter o mesmo peso, enquanto segmentos, na direção da uni-versidade. Dessa maneira, o reitor (além dos diretores de institutos e faculdades, assim como os chefes de departamento) deveria ser eleito pelo sistema paritário: onde os votos são computados de acordo com uma fórmula na qual o voto de cada indivíduo é igual à percentagem que ele ou ela representa no conjunto de seu segmento (ver Cardoso de Oliveira, 1996a; 1996c). Como os docentes constituem o menor segmento, o voto de cada um deles, como indivíduos, tem um peso maior do que aquele dos membros dos outros segmentos.

Quanto à composição dos conselhos e comitês universitários, a ideia é de que seus membros deveriam ser igualmente distribuídos entre os segmentos. Já assinalei, em outro lugar, que o principal problema com essas demandas é que elas abstraem a universidade e sua “co-munidade” da sociedade mais ampla, deixando inteiramente de lado o papel ou função social da instituição, para tentar legitimar a pretensão de igual participação dos segmentos no gerenciamento e na definição da política acadêmica da universidade (Cardoso de Oliveira, 1996a; 1996c). É como se os interesses dos segmentos, enquanto grupos cor-

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porados, devessem ter prioridade sobre os interesses da sociedade como um todo. É bem sabido que a universidade cumpre seu papel social através da produção de conhecimento e do treinamento de técnicos e/ou de especialistas de todos os tipos, e qualquer proposta para alterar seu sistema de gerenciamento ou suas políticas acadêmicas tem que estar subordinada a estes valores e objetivos maiores. Isto significa que tentativas sérias para legitimar a participação eventual dos segmentos, como tais, no gerenciamento da universidade, teriam que argumentar e avaliar a contribuição potencial de cada segmento para a realização dos objetivos e da função social da instituição na sociedade. Mas, isto nunca foi feito. O mero fato de constituírem os usuários imediatos do espaço da universidade é percebido como um argumento suficiente para permitir que os segmentos tenham uma posição privilegiada na determinação dos projetos da instituição e na sua organização. Ao contrário, de acordo com o argumento desenvolvido aqui, a proposta da paridade poderia ser vista como uma tentativa de privatizar o espaço público da universidade.

Gostaria de chamar a atenção para o fato de que, como no caso do RJU e do sistema previdenciário especial do funcionalismo público discutido acima, a demanda pela institucionalização da paridade é formulada como um direito social, e como um passo importante em direção a um gerenciamento mais democrático da universidade. Em outras palavras, uma reivindicação cuja eventual implementação significaria um exemplo de privatização do espaço público – na medida em que se estaria dando precedência aos interesses parti-culares dos segmentos contra o interesse público da sociedade – é apresentada como o seu oposto, ou como um mecanismo para tornar o gerenciamento da universidade mais aberto, mais transparente, e mais orientado para o interesse público. A distância entre os ideais afirmados e as consequências factuais da demanda, leva-me para o último aspecto que gostaria de mencionar sobre cidadania e identida-des coletivas no Brasil, antes de me dirigir para a questão de como a articulação entre direitos de cidadania e identidades coletivas ganha forma no Quebec.

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Tendo como referência o trabalho de DaMatta (1979; 1991), no qual ele caracteriza o Brasil como uma sociedade relacional que arti-cula a lógica moderna do individualismo com uma lógica tradicional que valoriza a hierarquia e dá precedência às relações, argumentei que os brasileiros costumam valorizar muito mais as expressões de consideração à pessoa de seus interlocutores, do que o respeito aos direitos (universalizáveis) do cidadão genérico (Cardoso de Oliveira, 1996c). Na mesma direção, DaMatta afirma que, enquanto a lógica moderna é simbolicamente associada ao mundo da rua, a lógica tra-dicional seria identificada com o mundo da casa, onde a família e as relações pessoalizadas têm prioridade. A articulação das duas lógicas teria engendrado, então, desvios para cima e para baixo na condição da cidadania. Isto é, enquanto o mundo da rua seria vivido como um espaço onde prevalece a percepção de “subcidadania”, no mundo da casa, ou quando os atores se beneficiam das regras aí vigentes para pautar suas relações no espaço público, seria experimentada a condição de “supercidadania” (DaMatta, 1991: 100; Cardoso de Oliveira, 1996c: 71).

Assim, em uma comparação com os EUA, sugeri que os dois países teriam déficits de cidadania em direções opostas, ainda que o déficit brasileiro tenha me parecido muito maior do que aquele en-contrado nos EUA (Cardoso de Oliveira, 1996c). Argumentei, então, que condições satisfatórias para o exercício da cidadania requeriam um equilíbrio entre os princípios de justiça e de solidariedade, os quais, no plano da vida cotidiana, poderiam ser razoavelmente traduzidos, respectivamente, na atitude de respeito aos direitos do indivíduo e na expressão de consideração à pessoa do cidadão. Enquanto uma ênfase excessiva na expressão de consideração difi-cultaria a efetivação do respeito aos direitos do indivíduo (de caráter universalizável) – a causa do déficit brasileiro –, uma preocupação exagerada com a proteção destes direitos reduziria o espaço ou as possibilidades para a expressão de consideração e, desse modo, ex-poria os atores a, inadvertidamente, cometerem insultos morais – a causa do déficit norte-americano. Como os cidadãos também devem

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ter proteção contra insultos morais, assim como deveriam estar aptos a demandar o reconhecimento de suas identidades enquanto pessoas, o déficit norte-americano me levou a contemplar o significado do que gostaria de chamar direitos morais, articulados com problemas de cidadania. Tais direitos, como os entendo, estão fortemente asso-ciados a questões relativas ao reconhecimento da identidade, e uma de suas principais características é o fato de que, via de regra, eles não podem ser imediatamente traduzidos em benefícios ou perdas materiais, nem ser satisfatoriamente protegidos por meios legais.11 De certa maneira, poder-se-ia dizer que agressões a esses direitos emergem e se tornam mais evidentes nas atitudes dos atores, e não tanto nas suas ações em sentido estrito. Retornarei ao assunto adiante, em minha discussão sobre o Quebec.

Mas, retomando o problema da distância entre, por um lado, os ideais explicitados motivando o apoio à institucionalização do RJU ou da “paridade” nas universidades e, por outro, as implicações sociais dessas medidas, penso que a ênfase cultural brasileira nas expressões de consideração e sua relação com a lógica do mundo da casa, revelada por DaMatta, estimula os atores a se identificarem com suas comunidades imediatas (vistas como totalidades autocontidas, mesmo quando percebidas como parte de uma unidade mais ampla que as englobaria), em prejuízo da sociedade a sua volta, vista como uma sociedade de cidadãos sem face ou identidade, em uma palavra, despessoalizados.12 Entretanto, isto não quer dizer que os atores não se preocupem com a sociedade dos cidadãos, ou que não endossem a noção de direitos individuais universalizáveis, segundo uma con-cepção moderna de cidadania. Como indiquei acima, o processo de expansão de direitos de cidadania durante a Era Vargas – dando acesso a benefícios previdenciários (inclusive de assistência médica) e trabalhistas através da regulação das profissões – deu suporte à ideia de que demandas por direitos bem-sucedidas, favorecendo grupos particulares teriam, de fato, significado uma expansão dos direitos de cidadania, ainda que tenham significado também uma estratificação dos cidadãos no acesso aos respectivos direitos, dos quais uma parcela

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importante da população se manteve totalmente excluída. Pois, além de ampliar a comunidade de cidadãos, o sucesso de alguns grupos podia ser visto como um primeiro passo em direção à universalização dos direitos, ou um exemplo a ser seguido por outros grupos que, no tempo devido, seriam bem-sucedidos também.

Outro aspecto da dimensão cultural com impacto direto nos direitos de cidadania é a dificuldade encontrada pelos atores para articular, coerentemente, a dissonância entre a visão abstrata e ampla-mente compartilhada por eles sobre a igualdade de direitos no plano da cidadania e a orientação frequentemente hierárquica de suas ações ou práticas cívicas na vida cotidiana. O que indicaria a existência de uma certa desarticulação entre esfera pública e espaço público no Brasil. Pois, uma coisa é acreditar na igualdade de direitos (entre os indivíduos ou cidadãos), e outra coisa é deixar de fazer um favor a um amigo – normalmente em prejuízo de outros –, mesmo quando isso ocorre em situações corriqueiras, como nas solicitações para ceder um lugar na fila do banco por exemplo. Claro está que o lugar cedido aqui não é (apenas) aquele ocupado pela pessoa que faz a gentileza, mas o dos cidadãos (genéricos, despessoalizados) que se encontram atrás dele na fila, os quais são desconsiderados (ou insultados), ainda que esta não tenha sido a intenção dos “agressores”. Nesse sentido, a importância atribuída à manifestação de consideração, ou ao reconhecimento do valor do interlocutor, se constitui em uma barreira significativa para a universalização do respeito aos direitos do indivíduo na vida cotidiana, e é muitas vezes utilizada de maneira ilegítima como um filtro para negar direitos básicos às pessoas que, à primeira vista, não parecem merecê-los. Apesar de qualquer um poder exigir, com sucesso, um tratamento com consideração, inde-pendentemente de sua classificação em termos de renda, prestígio e status social, o êxito na obtenção do tratamento desejado vai depender da habilidade (e/ou da oportunidade) do ator para transmitir o que tenho chamado de referência substantiva à sua característica de pessoa moral, ou uma identidade valorizável, a qual funcionaria como um índice de dignidade. Entretanto, quando o ator não tem sucesso na

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apresentação da própria identidade, ele está sujeito não apenas ao tratamento com desconsideração mas, sobretudo, ao desrespeito de seus direitos básicos de cidadania.

Na mesma direção, como as pessoas estão sujeitas a ter os mais diversos tipos de preconceitos, sempre que estes atuam na definição das interações sociais, eles minam as chances de identificação da referência ou substância moral característica das pessoas dignas e, portanto, tendem a estimular o desrespeito a direitos ou mesmo atos de agressão entre as partes. Por essa razão argumentei que, em alguma medida, o preconceito racial no Brasil deve ser visto como um agravante, bastante significativo e contundente, de um padrão de discriminação cívica que afeta um segmento muito mais amplo da população (Cardoso de Oliveira, 1997:145-155). O não reconhe-cimento do valor ou da identidade/substância moral do interlocutor estimula a negação de sua dignidade, podendo inviabilizar o seu tratamento como um igual ou como uma pessoa/ser humano respei-tável, igualmente merecedor de atenção, respeito e consideração.

Agora, gostaria de sublinhar dois aspectos para sintetizar minha caracterização da relação entre identidades coletivas e cidadania no Brasil: (1) dado o processo histórico de expansão dos direitos de cidadania através da regulação de profissões, tendo como pano de fundo uma perspectiva cultural que estrutura o mundo como uma hie-rarquia, o fortalecimento dos sindicatos deu lugar ao desenvolvimento de identidades sociais vigorosas, as quais ainda hoje desempenham um papel importante na esfera pública e motivam os atores a ver seus sindicatos ou corporações como totalidades significativas, constituin-do uma referência abrangente ou universalizável, cujos interesses eles têm dificuldade para relativizar e/ou para distinguir da ideia de interesse público, naquilo em que este representaria a perspectiva da sociedade mais ampla;13 (2) o alto valor atribuído às noções de consideração, dignidade e distinção (enquanto qualidade ou mérito singular dissociado da ideia de desempenho) em relação à pessoa do cidadão, as quais frequentemente têm precedência sobre a atitude de respeito aos direitos do indivíduo na vida cotidiana, não constitui

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apenas um poderoso mecanismo de fortalecimento das identidades coletivas, mas também tende a estimular atos de discriminação cívica.

Esclarecendo o argumento, gostaria de enfatizar que, a partir de uma ótica cultural ou interacionista, a superação dos déficits dos direitos de cidadania no Brasil não dependeria tanto do eventual sucesso da repressão às manifestações de consideração, mas das pos-sibilidades de universalizá-las, tornando-as menos seletivas. Nesse sentido, articulando os dois aspectos, a discussão anterior demonstra que o resgate dos direitos republicanos não pode se dar exclusiva-mente na esfera legal, especialmente no que concerne a sua dimensão moral, cuja sustentação requer não apenas a efetivação de processos de formação de consenso (como indicado por Bresser Pereira), mas a internalização de valores que viabilizem uma transformação na orientação das ações ou das atitudes dos atores em suas práticas co-tidianas. Como veremos na discussão que se segue sobre o Quebec, preocupações com a manifestação de reconhecimento da dignidade ou do valor de identidades coletivas podem ter implicações diferentes.

Identidades coletivas e direitos individuais: a crise constitucional no Canadá

Talvez se possa dizer que o Quebec nunca esteve completamente satisfeito com os termos do acordo que deu origem à criação do Do-mínio do Canadá em 1867 e,14 desde então, têm havido momentos de tensão com o resto-do-Canadá.15 Porém, a crise constitucional atual data de um período bem mais recente, tendo assumido um caráter particularmente crítico a partir de 1982, quando Trudeau aprovou no parlamento as condições para o patriamento da Constituição canadense, que contemplavam a anexação de uma Carta de Direitos e Liberdades emendada à Constituição. Até então, a Constituição canadense era mantida no parlamento britânico e não podia ser emendada autonomamente.

A Carta estabelecia uma série de direitos e liberdades individu-ais, com o objetivo de proteger todo e qualquer cidadão canadense contra as arbitrariedades do Estado, e foi percebida no Quebec como

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uma ameaça aos direitos coletivos dos franco-quebequenses, espe-cialmente aqueles relacionados à legislação linguística da província. Desse modo, a despeito de suas reivindicações históricas por maior autonomia política nas áreas relativas à força de trabalho, educação, cultura e imigração, a principal demanda do Quebec frente a Ottawa ou ao resto-do-Canadá foi articulada em termos do reconhecimento de sua especificidade ou distinção cultural. Isto é, o Quebec quer uma garantia constitucional de que, em certos assuntos, como no caso da política da língua, seu poder de legislar não seja limitado pela Carta de Direitos e Liberdades, que toma os direitos individuais como um absoluto e não daria espaço para a afirmação de direitos ou de interesses coletivos. Desde as negociações que acabaram fra-cassando em torno do Acordo do Lago Meech, tal garantia tem sido esboçada como o reconhecimento constitucional do Quebec como uma sociedade distinta e, conforme o tempo passa, parece que esta demanda encontra uma resistência cada vez maior no resto do país.16

Em uma palavra, enquanto os franco-quebequenses deman-dam o reconhecimento do caráter distinto da província como uma condição para a efetivação do princípio de tratamento igualitário, e como um símbolo de igualdade com os anglófonos no âmbito da Federação, os anglófonos no resto-do-Canadá percebem a demanda quebequense como uma reivindicação ilegítima, ou como um pri-vilégio injustificável e, de certa maneira, esta situação lembra um diálogo de surdos, cristalizado através da expressão two solitudes (MacLennan, 1945/1995), ou duas solidões, que tematiza a relação entre o Quebec e o resto-do-Canadá. Enquanto os quebequenses de-fendem a atribuição de um lugar relevante para identidades coletivas singulares na esfera pública, permeando os direitos de cidadania e dando significado ao sentimento de pertencer compartilhado por membros de uma mesma comunidade/sociedade política, no resto--do-Canadá a esfera pública é vista como estando composta por indivíduos cujos direitos estariam inteiramente dissociados de suas identidades coletivas primárias, que não abrangessem a totalidade de cidadãos do país.

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Como argumentarei abaixo, um dos aspectos interessantes da demanda quebequense é que, apesar de ser frequentemente formulada como um direito coletivo, não pode ser inteiramente dissociada dos direitos individuais dos cidadãos, visto que a ausência de reconheci-mento da singularidade afirmada pode ser entendida como um insulto moral aos indivíduos assim afetados. Do mesmo modo, a demanda também sugere que um obstáculo significativo para que o problema seja adequadamente equacionado está na dificuldade em articular a natureza moral da demanda com o caráter legal ou constitucional da solução buscada. Contudo, antes de discutir esta questão, se faz necessária uma melhor caracterização da própria demanda.

Reconhecimento, desconsideração e insultos morais

Se atentarmos para a vitória apertada do voto pelo NÃO no último referendum – em 30 de outubro de 1995 – sobre a soberania do Quebec (50,6% vs. 49,4%), e observarmos as várias pesquisas de opinião que foram publicadas nos jornais mais ou menos de dois em dois dias, é interessante notar que o ângulo a partir do qual a demanda quebequense alcança maior consenso na província é o que enfatiza a inadequação do tratamento que ela tem recebido de Ottawa ou do resto-do-Canadá, especialmente após o patriamento da Constituição, conforme já mencionei. A liderança da campanha pelo NÃO foi a primeira a indicar que seu voto em favor da Fede-ração não significava uma aprovação do status quo constitucional. Na realidade, além das pessoas que votaram NÃO motivadas pelo medo do que poderia acontecer com a situação econômica delas em um Quebec independente, outros votaram NÃO na esperança de que um novo acordo constitucional fosse negociado com o Quebec no futuro próximo. Na mesma direção, minhas entrevistas e conversas informais com os atores sugerem que um sentimento similar também era encontrado entre aqueles que votaram pelo SIM. Isto é, muitos disseram que votaram SIM para fortalecer a demanda por reconheci-mento do Quebec, mas indicaram que não estariam dispostos a apoiar

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uma eventual separação do Canadá. Nesse sentido, embora haja segmentos soberanistas que vejam a inserção do Quebec no Canadá como um fator de limitação para o desenvolvimento socioeconômico da província, e estejam engajados em uma disputa pelo poder, para a maior parte da população a insatisfação com o resto-do-Canadá seria produto de uma percepção de desconsideração, tematizada como uma agressão inaceitável.

Entendo a desconsideração, ou os atos de desconsideração, como o reverso do reconhecimento, assim como definido por Taylor (1994), e prefiro falar em desconsideração ao invés de falta de reco-nhecimento para enfatizar o insulto moral que se faz presente quando a identidade do interlocutor é indisfarçavelmente, e por vezes incisi-vamente, não reconhecida (ver nota 7). Isto é, o reconhecimento de uma identidade autêntica não é apenas uma questão de cordialidade em relação ao interlocutor, mas uma obrigação moral cuja não obser-vância pode ser vista como uma agressão, ainda que não intencional, por parte daquele que nega a demanda por reconhecimento.

Taylor (1994) e Berger (1983) argumentam que, com a trans-formação da noção de honra em dignidade, na passagem do regime antigo para a sociedade moderna, a visão hierárquica do mundo é substituída por uma perspectiva igualitária e universalista, que tem como foco o indivíduo e dá suporte ao processo de implementação dos direitos de cidadania (civis, políticos e sociais). Nas comunidades/sociedades políticas democráticas, esses direitos viriam a ser, em tese, uniformemente compartilhados por todos os cidadãos. Contudo, para Taylor, um desdobramento desse processo teria sido o surgimento de demandas por reconhecimento de identidades autênticas, cujo foco não estaria mais na afirmação daquelas características universalmente compartilhadas pelos atores, mas na valorização da singularidade representada na identidade de cada ator ou grupo social que deman-da reconhecimento. Tal demanda traduziria bem a importância da percepção do que procurei caracterizar como substância moral das pessoas dignas na discussão anterior sobre o Brasil, e traz uma série de dificuldades quando articulada como um direito de cidadania na

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medida em que se trata de um direito que, por definição, não seria universalizável. Além disso, o reconhecimento do valor ou mérito da identidade em pauta não pode ser instituído por decreto, pois supõe uma avaliação genuína daquele que reconhece e, portanto, não pode ser definido como um direito legal, ainda que seja razoável pensá-lo como uma obrigação moral.

O fato de o valor ou mérito aqui tematizado estar dissociado de avaliações de desempenho, nas quais os atores competem em igualdade de condições, torna ainda mais difícil a fundamentação da demanda por reconhecimento à luz da ideologia moderna do individualismo, que nega a legitimação de qualidades intrínsecas ao grupo ou indivíduo no plano da cidadania. O valor ou mérito singu-lar enquanto índice de distinção, nos moldes da honra, está restrito na sociedade moderna a atores cujas realizações constituem e são vistas como contribuições ou feitos excepcionais que, em princípio, estariam ao alcance de todos; como as medalhas olímpicas ou os prêmios acadêmicos, por exemplo. A dificuldade de se atribuir valor ou mérito quando este está dissociado da análise de desempenho é correlata à invisibilização dos insultos à honra, assinalada por Berger (1983) em sociedades como a norte-americana, na medida em que estes insultos não encontrariam respaldo imediato em uma perda ou custo material, objetivo, fazendo com que não sejam percebidos como uma agressão real. Nesse sentido, talvez pudéssemos dizer que a radicalização da ideia de igualdade, entendida como uniformidade, teria não apenas deslegitimado a hierarquia à l’ancien régime, mas teria também descaracterizado o aspecto moral da dignidade, o qual havia sido herdado da noção de honra no primeiro momento de sua transformação em dignidade, marcado pelo processo de universali-zação de direitos.

Em qualquer hipótese, quando a demanda por reconhecimento não é satisfeita, como no caso do Quebec, sua ausência é vivida como uma negação da identidade do grupo minoritário e, portanto, como um ato de desconsideração. Além de contestar a visão dominante sobre democracia e cidadania no Ocidente, segundo a qual apenas

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aquelas leis e direitos que afetam igualmente a totalidade dos cidadãos seriam legitimáveis na esfera pública e mereceriam obediência no espaço público, a demanda do Quebec é particularmente interessante por surgir em uma sociedade que se orgulha de seu caráter pluralista e respeitador dos direitos individuais, sem deixar de ser solidária, como atestam as políticas sociais que têm garantido sucessiva-mente ao Canadá o título das Nações Unidas de país com melhor qualidade de vida no mundo. Como veremos, as dificuldades para um melhor equacionamento da identidade quebequense no Canadá são acentuadas pela distância entre as perspectivas do Quebec e do resto-do-Canadá não apenas no que concerne à unidade canadense, mas também em relação ao processo de formação do país, sobre o qual anglófonos e francófonos guardam memórias substancialmente diversas, as quais revelam concepções diferentes sobre o lugar das identidades coletivas na esfera pública.

Visões diferentes sobre a história, a língua, e a igualdade

Após 151 anos de colonização francesa, o Quebec é tomado pelos ingleses em 1759, dando início às tensões entre francófonos e anglófonos no que viria a ser o Canadá. Entretanto, o Ato do Quebec em 1774 daria tranquilidade aos colonos franceses, ao autorizar a manutenção da Igreja católica, da tradição jurídica francesa (o Código Civil) e do francês como língua oficial. Nesse contexto, quando a colonização inglesa é intensificada no final do século XVIII, o terri-tório é dividido em duas províncias (1791), Alto Canadá (Ontário) e Baixo Canadá (Quebec), ocupadas respectivamente por anglófonos e francófonos, que podiam assim cultivar com autonomia suas tradições culturais. Esta situação de tranquilidade relativa entre as províncias seria fortemente abalada em 1840 quando, depois de reprimir a Re-volta dos Patriotas em 1838-39, a Coroa britânica institui o Regime do Ato da União, quebrando a autonomia das províncias e desenvol-vendo uma política de assimilação da população de origem francesa.

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Tal política teria sido recomendada pelo Relatório do Lorde Durham, e perduraria até 1867 quando é criado o Domínio do Canadá, com o Ato da América do Norte Britânica, restabelecendo os direitos culturais e linguísticos do Quebec, e promovendo a legitimação da união entre as províncias de Ontário e Quebec, às quais se juntariam a Nova Scotia e o Novo Brunswick.

Como mencionei anteriormente, o acordo celebrado em 1867 teria sido “quebrado”, do ponto de vista do Quebec, com a patriamento unilateral (sem o consentimento do Quebec) da Constituição canaden-se em 1982, e com a Carta de Direitos e Liberdades que foi anexada a ela. Ao mesmo tempo, com o advento da Revolução Tranquila no início dos anos 60, o Quebec experimentou um processo de profunda transformação, onde a modernização da província se deu de maneira articulada com mudanças significativas no movimento nacionalista, que colocou de lado sua posição tradicionalmente mais defensiva e assumiu uma perspectiva de afirmação nacional, sob o slogan de “Maîtres chez nous” (“mestres de nós mesmos”). Agora, a percepção de “minoriza-ção” estimula suas lideranças políticas a desafiar sistematicamente o status quo institucional da província na Federação canadense, e a identidade de franco-canadense dá lugar à de quebequense.

O início da Revolução Tranquila, com a eleição de Jean Lesage como primeiro-ministro do Quebec em 1960, marca o final da era Duplessis, que representou 19 anos de um governo muito conser-vador. Duplessis assumiu o governo pela primeira vez em 1936 e, com exceção de um curto período de governo liberal entre 1939 e 1944, se manteve no poder até sua morte em 1959.17 Se é razoável dizer que no Quebec língua, religião e identidade étnica são ideias ou instituições que estiveram sempre interligadas, sendo fortes símbolos do nacionalismo quebequense, durante o governo Duplessis estes símbolos não só representavam uma ênfase na cultura e na tradição como valores a serem cultivados, mas também caracterizaram uma orientação política com alto grau de conservadorismo. De certa ma-neira, essa orientação ampliou a distância do Quebec em relação às províncias anglófonas. Pois, até então, o Quebec era uma província

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basicamente rural (com exceção de Montreal), que não investia em educação – atividade não valorizada por Duplessis – e que estava to-talmente voltada para si mesma.18 Aliás, segundo Bibeau (1995:182), este fechamento para o mundo teria progressivamente se enraizado na sociedade quebequense como um desdobramento da derrota dos Patriotas, no final dos anos 30 do século XIX, e do desenvolvimento da “ideologia estreita da sobrevivência”.

Nesse sentido, a Revolução Tranquila não só fez com que o na-cionalismo quebequense se tornasse mais afirmativo e mais aberto ou inclusivo, dado que com a mudança da identidade franco-canadense para quebequense houve uma mudança de foco da dimensão étnica para a dimensão territorial do nacionalismo, mas também houve uma impressionante reviravolta de perspectivas em direção a uma orientação política mais progressista. A reviravolta ocorreu com a implementação de políticas sociais importantes nas áreas de educa-ção, desenvolvimento urbano, e de equalização étnica do mercado de trabalho. Essas transformações, acompanhadas pelo fortalecimento do nacionalismo quebequense e de suas demandas à Federação, chamou a atenção de muitos analistas canadenses, segundo os quais quanto mais próximo o Quebec ficava do resto-do-Canadá no que concerne às condições de vida de sua população, assim como em relação à identidade com visões de mundo modernas e com os valores da democracia, maior era a distância entre quebequenses e outros canadenses acerca de suas percepções sobre os problemas constitu-cionais do país e as respectivas visões a respeito da Federação, ou sobre o significado da relação entre cidadania e identidades coletivas na esfera pública (e.g., Taylor, 1993:155-186; Dion, 1991:291-311).19

Talvez seja razoável dizer que a demanda do Quebec por re-conhecimento não só constitui um pleito essencialmente moderno, que poderia encontrar suporte em argumentos liberais como Taylor sugere (1994), mas que os valores políticos modernos que motivam os quebequenses e fortalecem suas reivindicações são os mesmos que estimulam os anglófonos no resto-do-Canadá a rejeitar a demanda dos primeiros. Os dois lados valorizam o ideal de igualdade e o respeito

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aos direitos individuais, para não falar de suas preocupações com a questão da identidade, que cresceu muito no resto-do-Canadá com o agravamento da crise constitucional (ou da unidade canadense).20 Naturalmente, além de terem diferentes interpretações sobre a im-plementação de alguns desses valores compartilhados, o Quebec e o resto-do-Canadá mantêm diferenças significativas no campo dos valores em outros contextos. De fato, a Carta Canadense de Direitos e Liberdades que provocou grande insatisfação no Quebec – como uma ameaça à língua e à cultura francesas – se tornou, no resto-do--Canadá, não só um símbolo de liberdade e de igualdade, mas um aspecto importante na identidade da cidadania canadense. Contudo, a despeito de diferenças de perspectiva e de posição política no que concerne aos contornos da esfera pública, as quais tendem a inviabili-zar a construção de consensos e que são de difícil equacionamento em uma argumentação, há sinais claros da existência de mal-entendidos de parte a parte. O que, receio, não dá muita esperança para a efeti-vação de um acordo político a curto prazo.

Desse modo, os conflitos em torno da língua são aqueles onde os problemas de (in)compreensão são mais óbvios, aqueles cuja repercussão é mais ampla, e aqueles que têm o maior impacto na vida cotidiana das pessoas. Não obstante, como o relatório de Lau-rendeau acerca das atividades da Comissão Real sobre Bilinguismo e Biculturalismo dá amplo suporte (Laurendeau, 1990), os conflitos a propósito do idioma tematizam apenas parte do problema. Isto é, mesmo admitindo que o problema do idioma seja o mais sensível e que ele não possa ser inteiramente dissociado de todos os outros aspectos envolvidos na demanda do Quebec por reconhecimento. Através desses conflitos sobre a língua as pessoas não estão, na re-alidade, apenas argumentando com visões diversas sobre a história canadense e concepções divergentes sobre a importância da língua e da cultura, mas elas estão expressando também perspectivas distintas sobre o significado social dessas diferenças.

Um aspecto até certo ponto surpreendente sobre o debate constitucional no Canadá é o grau de divergência entre anglófonos

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e francófonos sobre o significado do acordo/composição celebrado em 1867. Ou seja, a composição que viabilizou a criação formal do país. Como se trata de referência central para interpretar aspectos importantes da Constituição patriada em 1982 e simboliza a funda-ção do país – desempenhando papel especial na visão das pessoas sobre o Canadá, e na maneira através da qual elas se situam aí –, não é surpresa que uma divergência significativa nesta área seja tão problemática.

Enquanto a leitura dominante sobre o acordo/composição de 1867, no Quebec, enfatiza a ideia de um país formado por duas nações e dois povos fundadores, com direitos e status iguais na esfera pública, no resto-do-Canadá a visão predominante é aquela que enfatiza a igualdade das províncias e de seus cidadãos, indepen-dentemente da origem étnica (nacional) dos mesmos.21 Do ponto de vista de muitos quebequenses, a rejeição no resto-do-Canadá de uma política de biculturalismo significou “o fim de um sonho canadense” (Laforest, 1995). Entretanto, à primeira vista, ao mesmo tempo que cada leitura dá sustentação às respectivas posições no debate cons-titucional hoje em dia, a visão predominante no resto-do-Canadá parece ser mais aberta e mais sensível às demandas formais ou às necessidades previsíveis de todo e qualquer cidadão canadense. Isto é, na medida em que ela permite maior liberdade de escolha, sem deixar de se comprometer em garantir proteção aos direitos básicos de todos os cidadãos.

Na realidade, esta visão não se distingue dos princípios afirmados na Carta de Direitos e Liberdades incorporada à Constituição em 1982, e representa a visão dominante sobre democracia e cidadania cultivada não apenas no Canadá, mas nas sociedades modernas oci-dentais de uma maneira geral. Contudo, poder-se-ia articular boas razões no sentido de que tal supremacia argumentativa seria apenas aparente. De fato, se é possível demonstrar que a maior abertura, no plano formal, da visão prevalecente no resto-do-Canadá representa uma restrição substantiva no plano sociológico e estimula atos de des-consideração na vida cotidiana, poder-se-ia argumentar que, mesmo

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que a perspectiva quebequense tenha problemas similares, ela não poderia ser legitimamente (ou moralmente) descartada de imediato.

Apesar de ser predominante em apenas uma das quatro provín-cias que constituíram o Domínio do Canadá em 1867, e de representar só 33% da população nesse momento, os franco-canadenses tomaram o novo acordo ou composição como um compromisso institucional para com a proteção dos direitos linguísticos-culturais iguais de an-glófonos e francófonos, enquanto membros das respectivas comuni-dades no país. Mas, já em 1871 as províncias anglófonas começaram a impor limitações ao uso do francês como língua de ensino nas escolas públicas, e a Colômbia Britânica é incorporada à Federação sem reconhecer o francês como língua oficial.22 Comparando-se a situação dos francófonos fora do Quebec com a dos anglófonos dentro do Quebec, a diferença é impressionante. Enquanto o investimento público em escolas francófonas no resto-do-Canadá é normalmente percebido como estando muito abaixo das expectativas das comu-nidades francófonas, e o ritmo de assimilação à língua e à cultura anglófonas tem sido muito rápido,23 Montreal tem um amplo e bem estruturado sistema público de ensino em inglês, além de oferecer um conjunto de hospitais e de outros serviços com atendimento bilíngue, o que permite aos anglófonos conduzir suas vidas exclusivamente em inglês. A falta de reciprocidade nessa área (importante) é tomada pelo Quebec como uma afronta aos francófonos no resto-do-Canadá. Isto é, ainda que não constitua um exemplo de discriminação direta e ilícita, tal situação traduz, aos olhos do Quebec, uma atitude ina-ceitável de desconsideração.

De fato, a situação linguística em Montreal é uma questão polêmica no Quebec, e foi um dos principais fatores motivando a promulgação da Lei nº 101, em 1977, que regula a utilização do francês na província. Antes da promulgação dessa lei a visão do-minante era de que o inglês estava se tornando a língua dominante e que o francês corria sérios riscos de desaparecer, inicialmente em Montreal, e depois na província como um todo. Nessa época o inglês não era apenas a principal língua no mundo dos negócios

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e do trabalho, mas era de longe a primeira opção dos imigrantes (uma comunidade que cresce rápido em Montreal) como língua de ensino, e até os francófonos pareciam estar sob “pressão” para optar pelas escolas de língua inglesa, dado que a língua de ensino poderia fazer uma grande diferença no mercado de trabalho. Nesse sentido, durante minha pesquisa em Montreal (1995/1996) entrevistei alguns francófonos idosos, já aposentados, que não só se ressentiam do fato de que o domínio precário do inglês teria limitado significativamente suas chances de promoção no emprego, mas que não podiam aceitar o fato de terem passado suas vidas obrigados a se comunicar com (e seguir instruções de) seus chefes ou patrões em uma língua “es-trangeira” que eles não haviam escolhido, porque não havia opor-tunidade de empregos em francês. Ou seja, tiveram que enfrentar este constrangimento mesmo tendo passado suas vidas inteiras na província em que nasceram e sendo falantes nativos da língua utili-zada pela maioria da população. Nos termos do debate linguístico, creio que as reclamações desses francófonos aposentados poderiam ser refraseadas da seguinte forma: não se trata de querer proibir que as pessoas escolham a língua de ensino ou de trabalho, nós apenas gostaríamos de poder continuar optando por viver nossas vidas em francês! Isto é, mesmo que para isto seja necessário impor algumas restrições linguísticas à população do Quebec.

A Lei nº 101 impõe três limitações principais ao uso do inglês (ou de outras línguas) no Quebec: (1) os filhos dos imigrantes, assim como as crianças canadenses cujos pais não estudaram em escolas de língua inglesa no Canadá,24 são obrigados a se matricular em escolas de língua francesa; (2) a lei determina que o francês deve ser a língua de trabalho em empresas com mais de cinquenta empregados, as quais têm um prazo para se adaptar à situação; e, (3) proíbe os letreiros comerciais em outros idiomas. A terceira limitação sempre foi a mais polêmica e, depois de ter sido derrubada pela Suprema Corte em junho de 1988, foi repromulgada pelo Quebec sob a invocação da cláusula derrogatória, que permite ao legislativo evitar as provisões da Carta de Direitos e Liberdades por um período de cinco anos. Ao mesmo

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tempo, o governo apresentou a Lei nº 178, que mantém a proibição para letreiros comerciais externos, mas que permite letreiros bilíngues internos. Em 1993 é criada a Lei nº 86, que amplia e flexibiliza a le-gislação sobre os letreiros, que agora podem ser bilíngues mesmo em área externa, desde que a segunda língua não ocupe mais da metade do espaço ocupado pelo francês no mesmo letreiro.

A promulgação da Lei nº 178 motivou a criação do Partido da Igualdade (PI) em 1989, que ficou conhecido na mídia quebequense como partido-de-uma-só-questão, concentrando todos os seus esfor-ços na demanda para que o bilinguismo oficial seja restabelecido na província. Isto é, o retorno à liberdade de escolha da língua de ensi-no, a exigência de que o governo ofereça serviços nas duas línguas oficiais do país, e a garantia de que qualquer acordo constitucional no futuro não deveria ameaçar as liberdades fundamentais (Legault, 1992:53). Embora estas demandas não recebam mais tanto apoio dentro da comunidade anglófona de Montreal hoje em dia, como recebiam quando o partido foi inicialmente formado,25 elas dão uma boa imagem do sentimento predominante no resto-do-Canadá sobre a lei da língua no Quebec.

Do ponto de vista do Partido da Igualdade, a lei da língua nega a Carta de Direitos e Liberdades e estaria em desacordo com sua definição de uma esfera pública democrática, na medida em que discriminaria “ilicitamente” os cidadãos ao não tratá-los de maneira uniforme. Além da suspeita com relação a objetivos ou direitos co-letivos, é esta dificuldade para legitimar o tratamento não-uniforme dos cidadãos em certas situações, ou em certos aspectos, que Charles Taylor identifica como a essência do “liberalismo de direitos” culti-vado no resto-do-Canadá (Taylor, 1994:60), e que seria incompatível com as aspirações dos quebequenses. Contra essa perspectiva, Taylor propõe um modelo de liberalismo que permite uma definição da vida boa a ser perseguida em comum, e que encontraria suporte em princípios liberais. Este modelo caracterizaria uma sociedade como liberal “através da maneira pela qual esta trata as minorias, inclusive aquelas que não partilham a definição pública da vida boa e, acima de

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tudo, pelos direitos concedidos a todos os seus membros” (idem:59). Mesmo que não seja necessário ou adequado distinguir entre esses dois tipos de liberalismo para legitimar a demanda do Quebec, como Taylor sugere,26 essa demanda não é de fácil compreensão da pers-pectiva de uma democracia liberal moderna.

De acordo com a perspectiva dominante entre os anglófonos no resto-do-Canadá, a necessidade de proteger a língua e a cultura francesas não deveria prevalecer sobre a Carta de Direitos e Liber-dades ou sobre o princípio de tratamento igual/uniforme a todos os cidadãos. Deste ponto de vista, parece que mesmo a alegada neces-sidade de proteção à língua e à cultura francesas no Quebec não seria inteiramente clara. Diferentemente do Quebec, o resto-do-Canadá sempre foi culturalmente mais diverso, com uma experiência muito mais longa e intensa no que concerne à recepção de imigrantes de todas as partes do mundo, e a influência (ou a identidade) britânica nunca foi tão forte e englobadora como a cultura francesa o foi no Quebec. Uma das dificuldades experimentadas por anglófonos fora do Quebec para aceitar a ideia de que o país teria sido formado por dois povos e duas nações é que eles não veem os britânicos, que co-lonizaram o Canadá, como merecedores de reconhecimento especial na comparação com outros que também ajudaram a construir o país. Na mesma direção, eles fazem uma distinção bem definida entre lín-gua e cultura, e consideram o inglês como uma língua instrumental, utilizada para comunicação pública. Isto é, como uma língua comum para ser utilizada na vida pública, enquanto no universo doméstico os canadenses poderiam utilizar a língua falada por seus grupos étnico/nacionais, assim como poderiam cultivar as respectivas práticas ou tradições culturais. Nessa medida, o inglês, como língua pública, não seria identificado com nenhuma cultura ou tradição particular. Essa é a razão pela qual é tão difícil se obter apoio no resto-do-Canadá para uma política de biculturalismo. Pois, tal política seria vista como um privilégio ilegítimo e como uma discriminação injusta contra as pessoas que não se identificam com quaisquer das duas assim chamadas nações fundadoras.

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Mesmo que esta separação radical entre língua e cultura não fosse problemática, ela não poderia fazer sentido no Quebec. Não só devido à grande integração entre língua e cultura na experiência dos franco-quebequenses, mas também porque a penetração do inglês na província é acompanhada pela forte influência da cultura anglo-americana. Nesse sentido poder-se-ia dizer que, do ponto de vista do Quebec, o que se encontra no resto-do-Canadá, sob a roupagem do multiculturalismo, é uma situação onde o inglês não está dissociado da cultura anglo-americana na esfera pública ou no mundo cívico, e onde outras culturas têm de fato apenas o direito formal de se expressar sem serem discriminadas. Da mesma forma, a política de multiculturalismo é percebida como tendo significado a consolidação da primazia da cultura anglo-americana no país, em detrimento da pretensão de status igual da tradição francófona no Canadá, o que seria inaceitável. Além disso, não se deve esquecer que, até o início dos anos 70, havia relatos de francófonos que afir-mam ter sido discriminados de maneira insultante no próprio centro de Montreal. O principal exemplo de tais atos de discriminação, recorrente na literatura (e.g., Laurandeau, 1990), é o abominável speak white! Segundo estes relatos, quando francófonos se dirigiam aos vendedores nas lojas do centro da cidade em francês, ouviam como resposta (uma ordem) speak white (ou fale como branco, fale inglês), se quiserem ser atendidos.

A despeito do caráter excepcionalmente ofensivo do exemplo, ele revela uma conexão importante entre as dimensões coletiva e individual da identidade, permitindo uma melhor articulação da de-manda por reconhecimento do Quebec – como um direito coletivo – com os direitos individuais dos cidadãos francófonos. A falta de reconhecimento é vivida como uma negação da própria identidade do indivíduo, não apenas enquanto membro de uma comunidade linguística/cultural, mas como pessoa. Como indiquei acima, em conexão à minha discussão sobre discriminação cívica no Brasil, aqui também o fracasso em expressar a aceitação do valor/mérito ou da substância moral do ator significa uma rejeição da dignidade

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do cidadão e, portanto, um insulto moral. A maior diferença no caso do Quebec é que, ao contrário da situação no Brasil, os atos de desconsideração não estão normalmente associados a práticas de desrespeito aos direitos básicos de cidadania. O pano de fundo histórico-cultural e o contexto sociológico no Quebec são de tal or-dem que, mesmo quando não há intenção de agressão, o simples fato de não demonstrar reconhecimento pode ser percebido como um ato de desconsideração. Seja no plano constitucional, quando o status de sociedade distinta é negado ao Quebec, ou na vida cotidiana quando perguntas dos francófonos são respondidas em inglês – ainda que com educação e respeito – por vendedores que não falam francês no comércio da West Island, transmitindo a ideia de que aqui também o inglês deveria ser a língua de comunicação pública. Nos dois casos, além da demanda pelo respeito ou pela implementação de direitos legais específicos, há uma demanda geral de tratamento apropriado, com o grau de consideração que seria legítimo qualquer cidadão esperar no espaço público ou na vida civil.

Nesse sentido, uma das dificuldades para definir os atos de desconsideração como instâncias de comportamento ilícito é o fato de esses fenômenos se revelarem melhor na atitude, que transmite uma intenção, do que nas ações dos agentes. Isto é, se pudermos distinguir analiticamente estas duas dimensões das ações sociais, como sugere Strawson:

Se alguém pisa na minha mão acidentalmente, enquanto tenta me ajudar, a dor não deve ser menos aguda do que se ele a pisa em um ato de desconsideração ostensiva a minha existên-cia, ou com um desejo malévolo de me agredir. Mas deverei normalmente sentir, no segundo caso, um tipo e um grau de ressentimento que não deverei sentir no primeiro (Strawson, 1974:5).

Strawson está associando a experiência do insulto moral com sentimentos de ressentimento, na medida em que estes são motivados

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pelas intenções atribuídas ao interlocutor da parte insultada. Como Strawson argumenta convincentemente, o ressentimento da parte insultada se torna um sentimento de indignação moral na perspectiva de terceiros que testemunharam o evento (Strawson, 1974:15), o que significa que a classificação dos respectivos atos como insultos morais pode ser intersubjetivamente compartilhada e, portanto, validada. É nesse sentido que eu gostaria de propor que, apesar de não estar real-mente sujeita à regulação jurídico-legal, a expressão de consideração pode ser interpretada como uma obrigação social (moral). De fato, na medida em que ela pode ser concebida como uma condição para a formação de uma identidade positiva, e como um aspecto importante no reconhecimento da dignidade do ator, a expressão de consideração poderia ser vista como um direito de cidadania que, em princípio, poderia ser esperado e fazer parte da experiência de todos.

Da mesma maneira, além das limitações de uma solução de ordem constitucional ou legal, não me parece que seja necessário caracterizar o ônus da prova de legitimar a demanda do Quebec por reconhecimento – para viabilizar a proteção da língua e da cultura francesas – em termos do valor axiomático da sobrevivência, culti-vado pelos quebequenses, como Taylor sugere (1994:58). Como se esta fosse a única maneira de formular e de fundamentar a especifi-cidade da demanda quebequense. Pois, em primeiro lugar, os cons-trangimentos externos enfrentados pela língua francesa no Quebec demonstram que, sem nenhuma legislação protetora, os quebequenses provavelmente ficariam sem poder optar por uma vida em francês em sua província. Em outras palavras, a liberdade formal para escolher entre o francês e o inglês pode significar, na realidade, uma imposição deste último. Em segundo lugar, se a negação do reconhecimento pode ser fundamentada como um ato de desconsideração, ou como um insulto moral, a demanda para evitá-lo deveria encontrar apoio no valor liberal-democrático moderno do tratamento igual e no caráter ilícito de atos de agressão unilaterais.

Contudo, a distância entre as perspectivas no debate consti-tucional envolvendo o Quebec e o resto-do-Canadá, ou entre as

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respectivas visões sobre a esfera pública, é muito significativa e dificilmente poderia ser superestimada. Não só devido às diferenças em suas experiências históricas e na interpretação do acordo de 1867 que criou o Canadá, conforme indicado anteriormente, mas porque as respectivas visões sobre como a Federação funciona hoje em dia não são menos diferentes. Enquanto o Quebec se ressente da falta de reconhecimento de seu caráter distinto e da interferência de Ottawa em áreas percebidas como de responsabilidade exclusivamente pro-vincial, o sentimento que prevalece no resto-do-Canadá é de que o Quebec já desfruta uma posição especial e as pessoas frequentemente se perguntariam “what will Quebec want next?” (“qual será a próxima demanda do Quebec?”). Além de ter um pouco mais de autonomia que as outras províncias em áreas como imigração, a maioria das lideranças políticas no Canadá vem do Quebec e nos últimos 32 anos os primeiros-ministros originários do Quebec se mantiveram no poder por trinta anos, contra apenas 16 meses distribuídos entre os três primeiros-ministros oriundos das outras províncias durante o período (Gibbins, 1998:402 & 411).

Segundo Gibbins, a principal razão pela qual o federalismo assimétrico não teria encontrado muito apoio no resto-do-Canadá é que, ao mesmo tempo que o Quebec teria maior autonomia, ele ainda continuaria desempenhando um papel importante na política canadense (idem). Em outras palavras, não se tratava apenas de conceder um status distinto ao Quebec no âmbito da Federação mas, dado o papel dos políticos do Quebec na Federação, se tratava também de não agravar uma situação de desequilíbrio de poder que já era percebida como inadequada no resto-do-Canadá. Parece-me que as restrições no resto-do-Canadá também poderiam ser vistas, de certa maneira, como uma reação motivada por uma percepção de desconsideração, na medida em que a demanda do Quebec soava como uma pretensão inaceitável de superioridade. Apesar da per-cepção de desconsideração no resto-do-Canadá não ser formulada como uma demanda por reconhecimento, ela vem à luz através da crítica à demanda do Quebec, a qual é compreendida como uma

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reivindicação de status especial no plano da cidadania. Portanto, ao caracterizar a demanda do Quebec através da lógica da honra, que nega o valor quase “sagrado” da igualdade na modernidade, os anglófonos no resto-do-Canadá se sentem ameaçados em sua digni-dade como cidadãos merecedores de status equivalente. Pois, se os insultos morais são de difícil equacionamento como uma agressão real nas sociedades modernas (Berger, 1983), eles não deixam de ser sentidos como tais pelos atores.

Há autores que vêm buscando soluções potencialmente mais promissoras, como a ideia de uma parceria acompanhada pelo afastamento do Quebec do governo canadense, significando maior autonomia de ambas as partes (Gibbins, 1998:402), e articulada com a proposta de Laforest (1998:51-79), estimulando um diálogo no qual cada parceiro tentaria se colocar no lugar do outro. Não apenas porque ela sinaliza uma perspectiva mais aberta para negociar uma nova relação institucional entre os parceiros, mas também porque ela sugere um processo no qual a aceitação do valor ou mérito de cada um parece ter melhores chances de se realizar. Isto é, na medida em que os parceiros consigam se engajar em negociações menos armadas, e em que a separação formal em domínios importantes no plano político viabilize uma dissociação relativa entre as ideias de igualdade e uniformidade. Se uma proposta nessa linha se mostrar viável, talvez um novo acordo ou composição possa ser alcançada, na qual a igualdade de direitos pudesse se efetivar sem prejuízos para a identidade ou para a dignidade dos cidadãos, e a integridade da vida ética poderia se estruturar em um nível mais alto.

Consideração, reconhecimento e cidadaniaA discussão sobre direitos republicanos no Brasil e a análise

das demandas por reconhecimento no Quebec demonstram que há uma conexão importante entre identidades sociais ou coletivas e os direitos de cidadania, a qual podem ter um impacto importante nas definições de esfera pública, ou na relação entre esta e o espaço

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público. Enquanto no caso do Brasil a associação entre um processo de expansão dos direitos de cidadania centrado nas identidades cole-tivas dos trabalhadores, e uma preocupação com a manifestação de consideração na vida cotidiana, tornou difícil separar os interesses públicos dos privados, ao mesmo tempo que provocou uma distância significativa entre o apoio formalmente dado aos direitos do indivíduo e a sua universalização no âmbito das interações cotidianas, ou no plano do exercício efetivo da cidadania, no caso do Canadá a disso-ciação entre direitos e identidades alimentou uma crise constitucional motivada pela falta de reconhecimento da identidade coletiva dos quebequenses, percebida por estes como um ato de desconsideração da parte do resto-do-Canadá.

Ambos os casos sugerem que a natureza formal dos direitos jurídico-constitucionais coloca dificuldades para o tratamento da dimensão ético-moral da cidadania. Essa dimensão requer uma articulação entre direitos e valores ou identidades, que é de difícil legitimação na esfera pública das sociedades modernas, e ilumina o caráter (desde sempre) culturalmente contextualizado da vida social. Ao mesmo tempo, esta dimensão está em sintonia com o cerne da modernidade na medida em que vem à tona na procura por ou na afirmação de uma identidade autêntica conforme assinalado por Taylor (1994). Na mesma direção, vale perguntar se não seria apropriado identificar a manifestação de consideração e a expressão de reconhecimento – que estão envolvidas na aceitação do valor (ou mérito) do interlocutor –, como direitos de cidadania de natureza ético-moral. Isto é, como direitos que não podem ser satisfatoriamente efetivados por meios legais, mas que, quando não reconhecidos, po-dem implicar em agressões ilícitas e prejudicar a integridade de uma vida ética. Seja por uma recusa contumaz em admitir o significado de tal reconhecimento na esfera pública, como no Canadá, ou por um reconhecimento excessivamente seletivo destes direitos na vida cotidiana e/ou no espaço público, como no Brasil.

Finalmente, a partir dessa comparação do Brasil com o Quebec, representando duas linhas de desenvolvimento no contexto das socie-

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dades modernas, gostaria de propor que: (1) assim como a ausência de uma preocupação clara na vida cotidiana com a aplicação de prin-cípios universais aos direitos de cidadania pode estimular incidentes de discriminação cívica, sugerindo uma certa desarticulação entre a esfera pública e o espaço público; (2) uma conexão radical entre as ideias de igualdade e de uniformidade pode ter, como implicação, a impermeabilização da esfera pública a demandas potencialmente legítimas, com a consequente institucionalização de relações injus-tas (iníquas, inequânimes) e um desrespeito sistemático aos direitos ético-morais associados ao reconhecimento de identidades.

Notas1 Inspirado em discussões recentes nas Nações Unidas sobre uma terceira geração de direitos – tais como os direitos à solidariedade, ao desenvolvimento econômico e à paz –, Bresser Pereira classifica a noção de direitos republicanos sob a mesma categoria. Tendo como pano de fundo a classificação clássica de Marshall dos direitos de cidadania, Bresser Pereira indica que, enquanto os direitos políticos e os civis representariam a primeira geração dos direitos de cidadania, a que se seguiu o desenvolvimento dos direitos sociais na segunda geração, a atual preocupação com os direitos republicanos caracterizaria a definição de uma terceira geração de direitos (Bresser Pereira, 1997:119).2 O artigo de Bresser Pereira marca um segmento interessante do debate, que foi reunido por D. Rosenfield (ed.) em um número especial de Filosofia política, nova série, volume 1, Porto Alegre: LPM, 1997.3 Enquanto a esfera pública pode ser definida como o universo discursivo onde normas, projetos e concepções de mundo são publicizados e estão sujeitos ao exame ou debate público (Habermas, 1991), o espaço público é aqui tomado como o campo de relações situadas fora do contexto doméstico ou da intimidade onde as interações sociais efetivamente têm lugar.4 Quanto melhor a situação econômica da categoria profissional/ocupacional na esfera da produção, melhor seriam seus benefícios previdenciários e de assistência médica (Santos, 1987:71).5 O outro lado deste processo de formação identitária foi o desenvolvimento de um padrão de interação entre os sindicatos e o Estado, através da cooptação das lideranças dos trabalhadores, dentre as quais o Estado distribuía posições de autoridade dentro do diverso e estratificado sistema de previdência/assistência

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médica, em troca da submissão política ao Ministério do Trabalho (Santos, 1987:71).6 Em um artigo interessante, Peirano (1986:49-63) sugere que na área rural ou nas cidades pequenas do interior o título de eleitor teria se tornado um símbolo de identidade cívica similar à carteira de trabalho nos centros urbanos. Ao invés de ser percebido como um símbolo do direito do indivíduo/cidadão para votar, o título de eleitor é tomado como um emblema da relação entre o trabalhador e seu patrão, o qual facilita o acesso do primeiro ao título, e como um sinal de filiação política. Aqui também, antes de tematizar um direito individual, o título de eleitor representaria acima de tudo uma identidade coletiva.7 Como argumentarei adiante, tomo os atos de desconsideração como insultos morais. Eles são o oposto da consideração, do modo em que esta vem sendo discutida ultimamente na França, como um direito humano básico à dignidade (Haroche & Vatin, 1998). Os atos de desconsideração também guardariam grande proximidade semântica à noção alemã de Mißachtung, assim como elaborada por Honneth em seu The Struggle for Recognition (1996). Apesar deste conceito ser normalmente traduzido como desrespeito, prefiro traduzi-lo por desconsideração para enfatizar a ideia de uma falta de atenção indevida, que estaria envolvida nessas situações, e por me parecer mais de acordo com a ideia hegeliana inspirando Honneth, sobre a estrutura interna de reciprocidades características das formas fundamentais de relações éticas (Honneth, 1996:16).8 Infelizmente, mesmo não sendo formalmente obrigatório o uso de documentos de qualquer espécie, vez por outra a população de baixa renda ainda é abordada arbitrariamente pela polícia, que solicita a apresentação de documentos como prova da idoneidade cívica e/ou moral do ator. Tal quadro certamente terá contribuído para a valorização dos documentos como instrumento de acesso a direitos e símbolo de cidadania no Brasil. Em trabalho ainda inédito, Roberto DaMatta (mimeo) faz uma análise interessante da simbologia dos documentos no Brasil: “A Mão Visível do Estado: o significado cultural dos documentos na sociedade brasileira”.9 De certa maneira, durante esse período tudo que fosse relacionado às finanças tinha uma dose de ficção, a qual, não obstante, e apesar do alto custo social, conseguiu se manter devido à correção monetária que, vale a pena lembrar, permitia a indexação de toda a economia, incluindo os salários, periodicamente aumentados para diminuir a perda no poder de compra dos trabalhadores.10 Como argumentei em outro lugar, dada a grande área de intersecção entre os campos semânticos do público e do privado, como categorias sociais na sociedade brasileira, o crime de nepotismo não é assim tão fácil de se perceber e classificar, especialmente se ampliarmos a noção de nepotismo para incluir

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exemplos de contratação de pessoas com base na amizade, nos quais a mesma lógica de reciprocidades envolvida na contratação de parentes prevalece (Car-doso de Oliveira, 1996c: 72-73; Laraia, s/d).11 Em um artigo influente e original, Berger chama a atenção para as dificul-dades no tratamento de insultos à honra em sociedades como os EUA, nas quais, segundo ele, esse tipo de agressão não seria processável em tribunais de justiça por não ser reconhecida como uma ofensa real (1983:172-181). Ver os capítulos 2 e 7 dessa edição. 12 Por definição, o cidadão genérico ou despessoalizado não está exposto a avaliações éticas quanto a sua dignidade, na medida em que não dispõe de uma identidade que lhe dê sentido ou substância moral. Dado que o respeito a direitos (de qualquer tipo) no Brasil é frequentemente mediado pela classificação dos atores de um ponto de vista ético, não é surpresa que os interesses de sindicatos e corporações, cujos membros têm muito mais em comum para compartilhar e têm uma visão mais palpável da identidade de cada um, acabem tendo prece-dência sobre as demandas difusas da sociedade mais ampla.13 A propósito, é interessante observar como, no Brasil, as noções de direitos e/ou de interesses sindicais são frequentemente vistas quase como sinônimas de direitos/interesses sociais, e traduziriam bem, no âmbito da ideologia, a ideia de interesse público.14 Em 1867, o Ato da América do Norte Britânica criou o Domínio do Cana-dá, compreendendo as províncias do Quebec, Ontário, Nova Scotia e Novo Brunswick, pondo um fim à disputa entre anglófonos e fancófonos sobre a estrutura institucional do país. Nesse momento os direitos linguísticos e cul-turais do Quebec foram restabelecidos, após um período de 27 anos sob o Ato do Regime de União, quando esses direitos haviam sido abolidos, seguindo as recomendações do famoso Relatório do Lorde Durham. Bariteau (1996: 112-115) chama a atenção para o fato de que a visão dos francófonos sobre o acordo de 1867 estava marcada pela preocupação com o ideal da “sobrevivência”, sugerindo que os termos do acordo não eram inteiramente satisfatórios para o Quebec já naquela época. Segundo este autor, qualquer alternativa à soberania do Quebec significaria, na atual conjuntura, a assunção de uma condição de subordinação (Bariteau, 1998:19).15 Bons exemplos dessas tensões no século XX foram as discussões em torno da convocação (conscrição) militar imposta aos cidadãos canadenses durante as duas guerras mundiais, quando os franco-canadenses foram obrigados a lutar em uma guerra percebida por eles, à época, como envolvendo interesses exclusivamente ingleses. Outro exemplo foi a declaração de Trudeau do Ato de Medidas de Guerra no Quebec, em 1970, com o objetivo de reprimir as

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atividades terroristas da Frente para a Libertação do Quebec (FLQ), depois do sequestro do ministro do Trabalho quebequense e do attaché commercial da Grã-Bretanha em Montreal.16 Em 30 de abril de 1987, o primeiro-ministro do Canadá e os dez primeiros--ministros das províncias assinaram um acordo no Lago Meech, Ontário, envolvendo cinco princípios com o objetivo de satisfazer as exigências do Quebec para subscrever a Constituição patriada em 1982. O reconhecimento do Quebec como uma sociedade distinta dentro da Federação canadense era um dos princípios e aquele que veio a simbolizar o acordo. Contudo, o acordo tinha que ser ratificado pelo poder legislativo de todas as províncias em um prazo de três anos e, quando os legislativos de Manitoba e Terra Nova recusaram a ratificação em 9 de junho de 1990, o acordo foi definitivamente rejeitado, provocando grandes protestos no Quebec.17 Duplessis foi eleito pelo Partido da União Nacional, que não existe mais enquanto partido. Como o nome sugere, trata-se de um partido extremamente nacionalista. Contudo, deve-se ter em mente que todos os partidos políticos no Quebec compartilham uma certa perspectiva nacionalista e, nesse sentido, diferem entre si apenas em termos do grau. Isto é verdade mesmo no caso do Partido Liberal e do Conservador-Progressista, que defendem uma posição federalista e querem manter o Quebec dentro do Canadá. Dado que o Partido Conservador-Progressista não disputa eleições provinciais e compartilha sím-bolos de identidade com seu predecessor na Inglaterra – os membros dos dois partidos são chamados de Tories –, sua visão nacionalista é particularmente significativa para a compreensão da natureza da demanda do Quebec. A única exceção é o Partido da Igualdade, que conta com o apoio quase exclusivo de anglófonos e de uns poucos alófonos (imigrantes). O Partido da Igualdade é o maior crítico da legislação linguística do Quebec, mas não ocupa nenhuma cadeira na Assembleia Nacional, e não constitui uma força política significativa na província.18 A grosso modo, os serviços públicos nas áreas de saúde e educação estavam nas mãos da Igreja católica, cuja influência política na província era absolutamente impressionante. Além disso, durante os anos 30 o Quebec era a província com o pior histórico de investimentos públicos dentro da Canadá e, no período 1957-1967, seu desempenho melhorou significativamente, passando do penúltimo para o segundo lugar no país (Dion, 1991:298). Para uma boa visão sobre a maneira míope e tradicional através da qual Duplessis fazia política ver Chaloult (1969).19 Na realidade, Dion argumenta que essa situação seria explicada pelo paradoxo de Tocqueville, segundo o qual conforme as condições sociais vão ganhando maior similaridade em todo lugar, maior será a importância que as pessoas

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atribuem a índices de distinção. Assim, conforme as sociedades (ou seus segui-mentos culturalmente diferenciados no passado) vão ficando mais parecidas, maior será o sentimento nacionalista entre elas (Dion, 1991:291-311).20 Supostamente, os canadenses seriam conhecidos por não compartilharem fortes sentimentos de patriotismo, em oposição aos sentimentos manifestados pelos quebequenses em relação a sua província (Kaplan, 1993:3-22; Fulford 1993:104-119). Ao mesmo tempo, também tem sido reiterado na literatura que os canadenses se orgulham de sua cidadania quando se comparam aos norte--americanos, devido às diferenças quanto a seguro de saúde e políticas sociais de maneira geral entre os dois países. Contudo, nos últimos trinta anos foram feitos esforços para fortalecer a identidade nacional através de símbolos como a bandeira canadense, criada no final dos anos 60, cerca de vinte anos depois do Quebec ter instituído sua própria bandeira. Os ensaios editados por Kaplan (1993), sob o título revelador de Belonging (Pertencendo), dá uma ótima ideia sobre a importância da preocupação com a identidade no resto-do-Canadá. 21 Como Laforest (1995:1) indica, depois da visibilidade conquistada pelas nações de origem pré-colombiana na esfera pública durante as negociações do Acordo de Charlottetown, não faz mais muito sentido continuar falando da história do Canadá como um país fundado por duas nações, excluindo-se os autóctones. Contudo, Laforest argumenta que a visão canadense de um país formado por uma nação também deveria ser inaceitável para ambos: quebe-quenses e membros das populações autóctones, ou das primeiras nações, como os povos indígenas, esquimós e mestiços (métis) são conhecidos no Canadá. Para uma visão histórica sobre a relação entre o nacionalismo quebequense e as demandas de autonomia das populações autóctones, veja a interessante contribuição de Beaucage (1997:69-79). 22 Em 1871 o Common School Act abole as escolas católicas e o ensino do francês no Novo Brunswick, onde havia (e ainda há) uma comunidade francó-fona muito significativa, a segunda maior no país. Em 1877 foi a vez da Ilha do Príncipe Eduardo promulgar legislação similar, através do Public School Act, e esta tendência foi seguida por outras províncias até 1968, quando Trudeau promulga a Lei das Línguas Oficiais (Beauchemin, 1995).23 De acordo com dados publicados pela Statistics Canada, e compilados pela Societé Saint-Jean-Batiste, o percentual médio de assimilação dos francófonos em 1991, no resto-do-Canadá, foi de 77,3%. Esse percentual foi calculado atra-vés da comparação do número de pessoas de origem francesa com o número daqueles que ainda falam francês em casa. A província com o menor percentual de assimilação é o Novo Brunswick, com 31%, enquanto Terra Nova tem o mais alto, em torno de 96% (Beauchemin, 1995:31).

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24 A primeira redação da lei exigia que pelo menos um dos pais tivesse estudado em escola de língua inglesa no Quebec. Como em 26 de julho de 1984 a Suprema Corte declarou ilegal esta parte da lei, ela foi alterada para incluir as escolas de língua inglesa em qualquer uma das dez províncias do Canadá.25 É verdade que segmentos significativos das comunidades anglófona e aló-fona em Montreal gostariam de ver aprovada uma lei da língua que fosse mais flexível, e talvez maiores garantias de que não perderão os direitos linguísticos de que gozam agora. Contudo, essas comunidades se tornaram mais sensíveis às demandas dos franco-quebequenses de que, em alguma medida, as restrições linguísticas seriam necessárias e legítimas para evitar o desaparecimento do francês. Poder-se-ia lembrar aqui que quando anglófonos e alófonos foram mobilizados com sucesso por Galganov em 1996, com o objetivo de exigir mais letreiros em inglês nas grandes lojas de departamento de Montreal, eles estavam na realidade exigindo a implementação das Leis nº 178 e nº 86. Mesmo se considerarmos essa mobilização como uma jogada estratégica, com o objetivo de preparar demandas mais radicais no futuro, não se deve esquecer que quando a Lei nº 178 veio à luz, ela encontrou forte oposição de anglófonos e alófonos, que a consideravam absolutamente inaceitável. De fato, quando Galganov tentou radicalizar suas demandas, acabou perdendo apoio e inviabilizou o movimento.26 Habermas faz uma crítica interessante à posição de Taylor, argumentando que não seria necessário distinguir entre dois tipos de liberalismo para acomodar a legitimação de objetivos coletivos dentro da tradição liberal-democrática. Segundo ele, a definição de Taylor do liberalismo de direitos não atentaria para a conexão necessária entre autonomia pública e privada. Tal conexão enfati-zaria o fato de que em uma sociedade liberal os cidadãos devem se perceber como autores das leis às quais estão submetidos (Habermas, 1994:112). Isto estaria de acordo com a discussão de Habermas sobre a relação entre princípios constitucionais, cultura política e o caráter eticamente permeável dos sistemas legais (idem:137-139). Contudo, me parece que Habermas não contempla toda a extensão do argumento de Taylor no que concerne à especificidade das demandas por reconhecimento, no que elas têm de diferente em relação aos casos em que se justificaria uma política de “discriminação reversa” ou de me-didas objetivando a redução da distância entre igualdade legal e igualdade real (ibidem:129). Diferentemente dessas últimas, as demandas por reconhecimento não podem ser formuladas em termos universalistas.

Capítulo VII

Individualismo, identidades coletivas e cidadania: os Estados Unidos e o

Quebec vistos do Brasil

Os Estados Unidos têm sido, recorrentemente, um contraponto ou uma referência comparativa estimulante para cientistas sociais bra-sileiros refletirem sobre a democracia e a cidadania no Brasil. De Sérgio Buarque de Holanda (1936/1963), passando por Oracy No-gueira (1954/1985), até o trabalho mais recente de Roberto da Matta (1979; 1991). Nesse sentido, o individualismo norte-americano tem sido o centro da preocupação destes autores e uma grande fonte de insights em suas análises sobre o Brasil, onde noções como persona-lismo, complementaridade, hierarquia e tradição são enfatizadas na comparação como características do contexto brasileiro, em oposição aos ideais de individualidade, autonomia, igualdade e modernidade encontrados nos EUA. Inspirando-me nesse quadro, gostaria de acrescentar o Quebec a minha investigação e reverter o foco da análise para examinar certos aspectos dos direitos individuais, das identidades coletivas e da cidadania nos EUA e no Quebec a partir do Brasil.

Tendo como foco as demandas por reconhecimento da identidade quebequense no Canadá, e a articulação entre as noções de indivíduo e de direitos legais nos EUA, vou inquirir sobre um determinado tipo de direitos de cidadania que não são adequadamente equacionados nos dois contextos. Enquanto no Quebec a mediação entre identidades coletivas e direitos de cidadania está no âmago da crise constitucional

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canadense, a força da ideologia individualista nos EUA e a ênfase correspondente nos direitos individuais têm sido uma barreira signi-ficativa para o tratamento do que eu gostaria de definir como insultos morais, e uma grande dificuldade para a proteção dos respectivos direitos que são, assim, frequentemente agredidos.

Em outra oportunidade, fazendo uma comparação entre as condições para o exercício da cidadania no Brasil e nos EUA, argumentei que independentemente da amplitude e da diversidade do significado dos direitos de cidadania em diferentes democracias, eles teriam que contemplar um equilíbrio razoável entre os prin-cípios de justiça e de solidariedade. Isto é, um equilíbrio entre o respeito aos direitos (universalizáveis) do indivíduo e a consideração à pessoa ou à identidade do cidadão. Assinalei então que a eventual ausência de tal equilíbrio deveria resultar em déficits de cidadania (Cardoso de Oliveira, 1996c).

Nesse contexto, argumentei que Brasil e EUA têm déficits de cidadania em direções opostas, e enfatizei que o déficit brasileiro seria muito mais sério que o norte-americano, dado que aqui uma preocupação desmedida e seletiva com a dimensão da consideração seria responsável pela grande dificuldade em se respeitar os direitos básicos de cidadania de todos aqueles que (ou quando) não são vis-tos como merecedores de atenção especial. O cenário contrastante nos EUA foi caracterizado pela dificuldade em se manifestar o re-conhecimento à singularidade de identidades pessoais em relações ou interações sociais, mesmo quando tal reconhecimento pode ser interpretado como a condição para um tratamento apropriado e respeitoso do interlocutor. Agora, gostaria de sugerir, inspirado em Berger (1983:172-181), que esse último desequilíbrio teria sido res-ponsável pela invisibilidade dos insultos à honra (ou dignidade) dos indivíduos ou cidadãos em sociedades como os EUA. Tais sociedades não teriam instituições ou mecanismos adequados para reparar os direitos agredidos em situações de insulto à honra/dignidade dos atores. Como veremos, a crise constitucional no Canadá, ou a sua dificuldade em reconhecer a distinção da identidade quebequense,

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tem conexões interessantes com o desequilíbrio nos EUA, as quais são particularmente instigantes quando vistas da perspectiva do Brasil (ou de um brasileiro). Em uma palavra, a ênfase na consideração e na distinção (worthiness) que responde por (ou estimula) atos de discriminação cívica1 no Brasil pode ser interpretada, no caso do Quebec, como uma demanda legítima por reconhecimento, cuja ne-gação é experimentada como um ato de desconsideração ou como um insulto moral.

Farei agora um breve relato sobre a invisibilidade dos insultos morais nos EUA, mediante a discussão do problema no contexto dos Juizados de Pequenas Causas, para me dirigir à demanda por reconhecimento do Quebec no resto deste ensaio. Como veremos, no caso da disputa Canadá/Quebec não se trata tanto de tornar visí-veis insultos que, a despeito de serem sentidos e percebidos como ofensas, são culturalmente dissociados da discussão sobre direitos, mas de lidar com a dificuldade de fundamentar tais insultos como uma agressão ilícita, socialmente inaceitável.

Insultos morais e invisibilidade de direitos nas pequenas causas

Apesar de todas as demandas encaminhadas aos Juizados de Pequenas Causas nos EUA serem expressas através de um valor monetário, o qual traduz na linguagem do direito a compensação pela perda que os litigantes teriam sofrido, em muitas causas a principal motivação para o engajamento na disputa gira em torno da eventual reparação de um direito não monetizável. Ou seja, as partes são mobilizadas para obter reparação por um ato de desconsideração ou insulto moral.

Nas causas cíveis as demandas de reparação são baseadas na definição de uma perda materialmente identificável, a qual é as-sociada a um direito que teria sido desrespeitado. Nos EUA, onde vigora a Common Law, o desrespeito ao direito em pauta é sempre percebido como o resultado de uma quebra de contrato ou de um ato de responsabilidade (ou de um ilícito) civil (tort).2 De todo modo, em

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nenhuma circunstância a perda sofrida é associada a uma intenção de agressão à pessoa do querelante ou autor do processo.3 Entre-tanto, se a distinção entre perda e agressão, ou entre desrespeito a direitos e insulto à pessoa dos litigantes, nem sempre é muito nítida nas causas cíveis, a nebulosidade entre estas duas possibilidades é particularmente significativa nas pequenas causas.

De fato, o valor monetário demandado em muitas disputas não deveria estimular, em si mesmo, a formalização da causa. Nas dispu-tas envolvendo valores inferiores a cinquenta dólares, por exemplo, a soma das taxas cobradas pelo Juizado (entre cinco e dez dólares em 1985/1986) com os custos de transporte para pelo menos duas visitas ao Juizado, além da perda de remuneração pelas horas não trabalhadas no dia da audiência (que pode ultrapassar três horas), faz com que um litigante bem-sucedido consiga normalmente recuperar no máximo os recursos investidos no processamento da causa.4

Parece-me que a motivação das partes em casos deste tipo não estaria apenas em uma questão de princípio – na defesa do direito pelo direito – com o objetivo de exigir um comportamento legal e normativamente correto de seus oponentes, ou em uma compulsão para defender o interesse próprio visto como um direito absoluto, mas em um sentimento de revolta contra um ato ou atitude percebida como uma agressão gratuita ao status ou à identidade dos atores enquanto pessoas morais. Isto é, um ato de desconsideração à dignidade do indivíduo com uma identidade própria, e como alguém merecedor da atenção à qual qualquer cidadão teria direito enquanto pessoa. Esse sentimento de revolta, de ultraje, ou de retaliação era aparente nas chamadas telefônicas que eu estava acostumado a receber no Serviço de Aconselhamento para Pequenas Causas (SAPC),5 onde trabalhei como voluntário. Frequentemente, os usuários do serviço demonstravam sua insatisfação com a forma atenta, mas estritamente impessoal das instruções que nós éramos treinados a dar, e exigiam uma atitude de simpatia ou de solidariedade por parte do conselheiro à luz das agressões que alegavam ter sofrido de seus oponentes. O mesmo tipo de indignação demonstrada pelos usuários do SAPC se

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repetia nas audiências judiciais ou nas sessões de mediação, sempre que os litigantes lembravam ou percebiam no momento tentativas de enganação ou atitudes de desconsideração da parte de seus opo-nentes. Farei adiante uma pequena digressão para ilustrar este ponto.

O caso do “Congelador Suspeito” é um bom exemplo. Os querelantes, dois homens que dividiam um apartamento, estavam processando o proprietário de uma loja especializada na venda de refrigeradores usados, de quem reivindicavam uma reparação no valor de quarenta dólares, por uma transação comercial na qual alegava-se que o querelado teria mentido sobre as características do congelador comprado pelos querelantes. Quando estes instalaram o congelador em casa, suspeitaram do barulho que o aparelho estava fazendo e telefonaram para o fabricante, a General Electric, que lhes informou tratar-se de um aparelho com 13 anos de uso, ao invés dos seis para oito anos de idade que o querelado havia estimado. Após várias tentativas mal sucedidas para devolver o congelador e desfa-zer o negócio, os querelantes formalizaram a causa no Juizado nos seguintes termos: “25 dólares que eles teriam pago inicialmente pela entrega do congelador, 10 dólares gastos para bloquear no banco o cheque com o qual compraram o aparelho [no valor de 250 dólares (LRCO)], e 5 dólares que os querelantes teriam gasto enviando cartas registradas ao Procon”. Além desse valor em dinheiro, os querelantes também estavam demandando que o querelado se responsabilizasse pelo transporte do congelador de volta para a loja. Por seu turno, o querelado negava veementemente a acusação de falsidade ideológica, mas estava disposto a desfazer o negócio, contanto que os querelantes lhe pagassem mais 25 dólares para fazer frente aos seus custos com o transporte do refrigerador de volta para a loja. As partes acabaram fazendo um acordo estabelecendo uma indenização de vinte dólares para os querelantes, e envolvendo o compromisso assumido pelo querelado no sentido de se responsabilizar pelo transporte do con-gelador indesejado.

Não posso entrar em detalhes sobre a disputa aqui,6 mas gostaria de chamar a atenção para três aspectos que sobressaem nas negocia-

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ções. Em primeiro lugar, da perspectiva dos interesses econômicos das partes, saía mais caro para todos os envolvidos passar as três horas e meia no Juizado, que eles acabaram de fato passando, do que abrir mão de suas demandas e contra demandas. Em segundo lugar, como os termos do acordo celebrado haviam sido enfaticamente recusados pelo querelado antes, a convicção e a confiança através das quais ele acaba aceitando-os na segunda oportunidade sugerem que agora os mesmos termos teriam outro significado. Nesse sentido, gostaria de enfatizar que, para se avaliar a equidade ou a adequação normativa do equacionamento das disputas, deve-se observar o grau de satisfação das demandas e preocupações das partes que estaria efetivamente embutido nos acordos mediados ou nas decisões judiciais, e que estes são capazes de expressar. Finalmente, em terceiro lugar, o acordo foi viabilizado porque, quando os seus termos foram rearticulados, os litigantes já haviam reconhecido a ausência de má-fé nas ações do oponente, chegando ao entendimento de que a divisão do valor total da demanda em partes iguais significava que eles haviam sido igualmente responsáveis pelos mal-entendidos durante as negociações. Do ponto de vista do querelado, uma vez que os querelantes haviam reconhecido a sua honestidade e boa-fé ao longo de toda a transação, ele não via problemas em aceitar parte da responsabilidade pela perda dos querelantes, e agora estava disposto a transportar gratuitamente o congelador indesejado. O argumento aqui é de que as partes tiveram oportunidade de discutir e de chegar a um acordo razoável sobre as responsabilidades de cada uma no caso. Mesmo que houvesse sido pro-vada ou reconhecida uma dimensão de má-fé nas ações do querelado, os litigantes ainda poderiam ter chegado a um acordo justo e satisfatório. Isto é, desde que o querelado tivesse assumido a responsabilidade e demonstrado arrependimento pelo insulto imposto aos querelantes.

Em outro lugar, classifiquei esse tipo de encaminhamento ou de solução para o caso como um acordo equânime, em vista do alto grau de satisfação das demandas das partes que estaria embutido nos termos do acordo efetivamente firmado. Contudo, também indiquei que soluções ou desfechos com esse nível de satisfação aconteciam

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com muito menor frequência do que seria desejado (Cardoso de Oli-veira, 1989:399-440). Composições ou acordos barganhados, que têm como foco os interesses econômicos das partes – ao invés de investir na elucidação de suas respectivas responsabilidades na erupção e no desenvolvimento da disputa –, caracterizam o desfecho mais comum das sessões de mediação bem-sucedidas. Por um lado, o modo judicial de avaliar a responsabilidade jurídica/legal impõe um processo de filtragem das disputas, que exclui a consideração de qualquer argu-mento ou informação que não possa ser imediatamente traduzida em evidência aos olhos da lei dos contratos ou dos ilícitos civis (torts). Por outro lado, se os mediadores permitem a incorporação de um universo muito mais amplo de argumentação e conduzem as negociações de maneira muito menos formal, eles dão uma ênfase excessiva a uma ótica prospectiva que costuma distinguir rigidamente direitos e interes-ses, não dando muito espaço para discussões sobre a responsabilidade das partes e evitando que elas inquiram sobre os eventos ou fatores que motivaram a disputa. A orientação é de focar as negociações nos interesses prospectivos das partes para ajudá-las a encontrar formas de reparação mais adequadas. Seja como for, o fato é que os insultos morais são normalmente excluídos dos processos de resolução de disputas que têm lugar nos Juizados. Antes de voltar a atenção para o cenário Canadá/Quebec, gostaria de citar uma passagem de Strawson, cuja descrição fenomenológica do fato moral através do ressentimento define esse sentimento como uma reação provocada pela percepção das intenções dos outros em relação a nós. Tal equacionamento deve nos ajudar a perceber os insultos morais como agressões reais, que podem afetar direitos de cidadania e que, portanto, merecem reparação.

Se alguém pisa na minha mão acidentalmente, enquanto tenta me ajudar, a dor não deve ser menos aguda do que se ele a pisa em um ato de desconsideração ostensiva a minha existência, ou com um desejo malévolo de me agredir. Mas deverei normalmente sentir, no segundo caso, um tipo e um grau de ressentimento que não deverei sentir no primeiro (Strawson, 1974:5).

180 direito legal e insulto moral

Tomando o ressentimento como uma reação a uma atitude ou intenção de agressão a nós, Strawson sugere uma diferença interes-sante entre duas dimensões das ações sociais (o ato propriamente dito, e a atitude que ele transmite), a qual ilumina a dificuldade de dar visibilidade aos insultos morais. Isto é, ele assinala a experiência de uma agressão concreta que não se traduz em evidência material. Passarei, agora, para as demandas por reconhecimento no Quebec.

Cidadania, desconsideração e insultos morais no Quebec

Tendo como referência o argumento de Strawson sobre a cone-xão entre a percepção de uma intenção malévola e o sentimento de ressentimento, poder-se-ia dizer que a grande dificuldade para dar uma resposta satisfatória às demandas por reconhecimento é que estas não podem ser inteiramente contempladas quando se fica exclusi-vamente no plano formal ou da linguagem dos direitos legais. Tais demandas requerem, além disso, uma aceitação substantiva do valor ou mérito da identidade em pauta. Isto é, um ato de reconhecimento não pode se sustentar como tal apenas no nível do comportamento ou da aplicação da lei, mas deve ser capaz de transmitir ou expressar uma atitude de consideração. Na mesma direção, se é difícil exigir tal atitude como um direito legal, não é tão difícil concebê-la como uma obrigação moral. É nesse sentido que entendo a observação de Taylor de que as demandas por reconhecimento requerem a existência de relações dialógicas entre as partes (Taylor, 1994), as quais se levam a sério e manifestam reciprocamente a aceitação da posição ou status de igualdade como uma condição merecida e mutuamente compartilhada. Como as práticas de troca de presentes (dádivas) analisadas por Godbout e Caillé em sociedades modernas (1992:135-142), atos legítimos de reconhecimento têm que ser vis-tos como obrigatórios e gratuitos (livres ou espontâneos) ao mesmo tempo (Godbout, 1994:297-302).7 Aqui, dar a impressão de que se está apenas obedecendo a uma regra, cumprindo um dever, ou

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simplesmente aceitando uma norma legítima nega a mensagem do ato. Os atores devem ver nas manifestações de reconhecimento de seus interlocutores uma atribuição ou aceitação genuína de mérito.

De fato, Taylor chama a atenção para a especificidade da de-manda por reconhecimento a despeito de situá-la como uma segunda onda no bojo de um movimento mais amplo, que teria começado com a transformação da honra em dignidade na passagem do ancien régime para a sociedade moderna. Enquanto a primeira onda teria detonado o processo de universalização de direitos que deveriam ser uniformemente aplicados a todos os cidadãos, compartilhando direitos iguais perante o Estado (e entre si), a segunda onda – em si mesma um produto do desenvolvimento da ideologia individualista – enfatizava uma preocupação com o reconhecimento de identida-des autênticas nos planos individual e coletivo. Em outras palavras, enquanto a primeira onda sancionou uniformidades, a segunda onda enfatizou singularidades e especificidades que são vistas como mere-cedoras de reconhecimento social: tanto no plano legal/formal como no moral/substantivo.

Uma das dificuldades para sancionar demandas por reconhe-cimento no plano legal é a conexão entre tais demandas e a ideia de direitos coletivos, os quais são vistos como uma ameaça para o indivíduo nas democracias modernas. Isto é, quando uma identidade coletiva, não compartilhada por todos os membros da sociedade, se torna fonte de direitos específicos que não podem ser aplicados uniformemente a todos, esses direitos tendem a ser vistos como pri-vilégios ilegítimos para os membros do grupo portador da respectiva identidade, pois não seriam fundamentáveis através de uma ótica universalista. Esses “direitos” também tendem a ser vistos como uma negação do “sagrado” princípio do tratamento igual (leia-se uniforme) para todos e, portanto, como uma discriminação contra os cidadãos que são portadores de identidades diferentes. Dado que o gozo dos direitos de cidadania é exercido (e formalmente circunscrito) dentro de Estados-Nações, sendo intrinsecamente articulados com uma identidade coletiva – a qual é frequentemente (mas nem sempre)

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uma nacionalidade –, apenas identidades coletivas englobadoras, abrangendo todos os cidadãos de uma sociedade ou comunidade política, podem ser legitimadas como uma referência para os direitos de cidadania.

Nesse sentido, Kymlicka (1995:34-78) faz uma observação interessante, sugerindo que a noção de direitos coletivos deveria ser colocada de lado, na medida em que reuniria sob a mesma categoria demandas e situações que seriam significativamente diferentes em si mesmas, e que teriam diferentes implicações no plano moral. Entre outras coisas, a noção de direitos coletivos dá a impressão que demandas implementadas por grupos ou coletividades seriam sempre feitas em oposição aos direitos individuais, o que não é verdade. Kymlicka argumenta que é melhor falar em direitos (ou em cidadania) diferenciados por grupo, pois esta noção permitiria distinguir entre os direitos que ameaçam o indivíduo e aqueles que não o fazem. Sendo esses últimos inteiramente compatíveis com pers-pectivas liberais. Segundo o autor, existem dois tipos de demandas por direitos diferenciados por grupos: (1) demandas por restrições internas, e (2) demandas por proteções externas. Enquanto o segundo tipo poderia ser legitimado de um ponto de vista liberal, o primeiro não o poderia. Pois, enquanto as proteções externas objetivam evitar decisões impositivas da maioria, a qual desconsidera os interesses legítimos das minorias, as restrições internas são feitas para proibir a dissensão interna e são vistas pelos liberais como um ataque à liberdade e à autonomia do indivíduo.

Apesar da perspectiva de Kymlicka dar algum suporte para a defesa dos direitos da minoria, ela não aborda adequadamente a dimensão interna da percepção de agressão que indiquei anterior-mente. Em outras palavras, sem dar atenção plena à justificativa do grupo em suporte de suas demandas, fica difícil separar os dois tipos de demanda por direitos diferenciados por grupo, assim como fica difícil entender o significado político-moral das mesmas. Isto parece ser particularmente verdade em casos complexos como o do Quebec, onde, segundo Kymlicka, os dois tipos de demanda estão

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inevitavelmente misturados (1995:44 & 205). A observação é de que, dentro do quadro analítico proposto por Kymlicka, é difícil exami-nar a extensão do significado ou das implicações das demandas por reconhecimento, especialmente no que concerne à importância do impacto do ressentimento assim como definido por Strawson. Tal importância, que estou atribuindo ao ressentimento, não se apoia tanto no que este nos diz sobre a reação emocional das pessoas quando se sentem ofendidas pelas ações, atitudes ou intenções dos outros, mas se deve ao que este sentimento de ressentimento revela em relação a agressões que de fato aconteceram, ou sobre insultos efetivamente perpetrados independentemente das intenções dos agressores.

O que estou argumentando é que se, por um lado, a classificação proposta por Kymlicka para as demandas por direitos encaminhadas pelas minorias pode ser efetivada da perspectiva de um observador externo – contanto que se possa distinguir claramente se o alvo das demandas é constituído pelos membros do grupo minoritário ou pelo que pode vir da sociedade mais ampla –, por outro lado, a compreen-são dos insultos morais ou dos atos de desconsideração, assim como o ressentimento que eles provocam, requer a atitude do participante virtual (Habermas, 1984:introdução), que está disposto a mergulhar nas visões de mundo dos atores e fazer uma conexão com o conjunto de ideias e valores que dão suporte às demandas encaminhadas pelos respectivos grupos. Como veremos, essa abordagem permitirá, a um só tempo, a percepção de uma dimensão importante das demandas do Quebec, e uma boa visão das dificuldades encontradas no resto-do--Canadá para a compreensão da justificativa em suporte das demandas quebequenses. Isto é, poder-se-á dar um sentido mais abrangente e fecundo à má vontade demonstrada pela maioria dos anglófonos para aceitar a razoabilidade das demandas do Quebec como um direito.

Talvez seja adequado dizer que os problemas entre o Quebec e o que se tornaria mais tarde o resto-do-Canadá datam da conquista britânica da Nova França em 1759. Contudo, depois que os britânicos permitiram formalmente que o Quebec mantivesse suas principais instituições e tradições culturais (a língua francesa, a religião católica,

184 direito legal e insulto moral

e o Código Civil francês), através da promulgação do Ato do Que-bec em 1774, a demanda do Quebec começou a tomar os contornos que tem hoje, quando a província teve que lidar com as restrições do Regime do Ato da União, que lhe foi imposto em 1840. Nesse momento as tradições culturais do Quebec mencionadas acima foram proibidas por lei, em acordo com as recomendações do Relatório do Lorde Durham. O Regime da União durou até 1867, e durante esse período a Coroa britânica desenvolveu uma política de assimilação voltada para a população de origem francesa. Essa situação significou não apenas a perda de direitos que os franco-canadenses haviam se habituado a cultivar, e os quais haviam sido formalmente respeitados pelos britânicos por quase setenta anos, mas também se constituiu em um ato de negação do seu valor como um povo. Parece-me que, desde então, direitos e identidades, interesses e valores, assim como respeito e reconhecimento estão indissociavelmente articulados no cerne das tensões entre o Quebec e o resto-do-Canadá.

As negociações que deram um fim ao Regime da União e que desembocaram na celebração do Ato da América do Norte Britânica, criando o Domínio do Canadá em 1867 e restabelecendo os direitos culturais que os quebequenses gozavam antes do Regime da União, envolveram também um acordo geral sobre a natureza da relação entre as partes e o status respectivo que elas teriam na Federação.8 Em outras palavras, o acordo não apenas foi traduzido em termos de direitos explicitados na Constituição de 1867, mas ele também supunha um certo reconhecimento do status das partes na Federação, o qual encontrou interpretações significativamente diferentes entre anglófonos e francófonos. Essas interpretações persistiram através do tempo e constituem o pano de fundo da atual crise constitucional. Em uma palavra, enquanto os quebequenses leram no acordo de 1867 o retrato de um país concebido como tendo sido formado por dois povos e duas nações com status igual,9 no resto-do-Cadandá prevaleceu a interpretação de que se tratava de um país formado por várias províncias cuja composição étnico-nacional não poderia dar suporte ou fundamentação a direitos especiais de qualquer espécie, e

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que seus cidadãos compartilhariam os mesmos direitos na sociedade civil ou na esfera pública.

Isto explica, por um lado, o suporte encontrado no resto-do--Canadá à política de multiculturalismo implementada durante o governo Trudeau, assim como à Carta de Direitos e Liberdades que foi emendada à Constituição em 1982 e se tornou um símbolo da cidadania canadense, como uma garantia de tratamento igual perante o Estado, independentemente da origem cultural, étnica ou religio-sa dos cidadãos. Por outro lado, a interpretação dada pelo Quebec ao acordo torna inteligível o antagonismo da província à referida política de multiculturalismo, a qual não reconhece a contribuição específica dos francófonos na história do país e, portanto, é tomada como uma negação do seu valor: isto é, como um insulto moral. Os quebequenses argumentam que uma política de biculturalismo estaria mais de acordo com a sua compreensão do status igual que deveria ser compartilhado pelas culturas ou tradições inglesa e fran-cesa, as quais teriam dado uma contribuição especial no processo de construção do país (ver Laurendeau, 1990). Nessa ótica, a falta de reconhecimento do papel especial das duas culturas ou tradições significaria, de fato, a hegemonia da língua e da cultura inglesas no Canadá. A visão que apregoa a separação entre língua e cultura, dominante no resto-do-Canadá, não faz sentido no Quebec, onde a influência da cultura anglo-americana não pode ser dissociada da penetração crescente da língua inglesa. Aqui não se difunde a ideia de que o inglês seria meramente uma língua ou instrumento utilizado para a comunicação pública.

Essa é a razão por que, a despeito do fato de o debate constitu-cional tomar a forma de uma disputa sobre a legitimidade de certos direitos (legais) demandados pelo Quebec, os quais são importantes em si mesmos, a motivação dos quebequenses se situa em um pata-mar mais profundo e poderia ser definida como uma afirmação da dignidade cujo reconhecimento é percebido por eles como sendo sistematicamente negado pelo resto-do-Canadá. A percepção de desconsideração pode ser vista recorrentemente em slogans políticos

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como “maîtres chez nous” (“mestres de nós mesmos”) ou “on est capable” (“nós somos capazes”), os quais enfatizam a necessidade de os quebequenses assumirem responsabilidade pelo seu destino. Por um lado, os dois slogans assinalam a recusa em aceitar uma situação de subordinação política, assim como percebida pelos quebequen-ses. Por outro lado, eles demandam igualdade de tratamento como cidadãos plenos, capazes de assumir responsabilidade por si mesmos e que podem contribuir em condições iguais para o bem-estar da sociedade, dentro ou fora do Canadá.10

Entretanto, minha menção anterior à Carta Canadense de Direitos e Liberdades nos traz ao debate atual, iniciado com a repatriação da Constituição em 1982. Até então, a Constituição canadense era man-tida no parlamento britânico, de onde ela foi repatriada por Trudeau, que anexou a Carta de Direitos e Liberdades a ela. A Carta era vista no Quebec como uma grande ameaça a sua autonomia para promulgar leis em defesa de suas tradições culturais, e foi de fato utilizada contra certas provisões da lei da língua da província (que limita a utilização do inglês no espaço público), a qual é cultuada pelos quebequenses, para quem ela se tornaria um símbolo da identidade nacional do Que-bec. A Constituição repatriada e a Carta a ela anexada nunca foram subscritas pelo Quebec, e as duas principais tentativas para satisfazer as demandas da província falharam flagrantemente. A primeira, que reunia melhores possibilidades e que ficou conhecida como o Acordo do Lago Meech, reconhecia o Quebec como uma sociedade distinta dentro da Federação e encontrou amplo suporte na província – dando a ela garantias constitucionais para a proteção de sua língua e de sua cultura –, mas foi inviabilizada por duas províncias às vésperas da data marcada para a sua promulgação, provocando grande desaponta-mento no Quebec.11 A segunda tentativa, o Acordo de Charlottetown, que ganhou o nome da cidade onde as negociações tiveram lugar, não dava ao Quebec as mesmas garantias constitucionais e tinha muito menos apelo para os quebequenses, que se juntaram à maioria dos canadenses nas outras províncias para rejeitá-lo no referendum realizado em 1992. Apenas em Ontário o Acordo foi aprovado pela

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população, e é interessante observar que no resto do país ele foi re-cusado por significar ou muito pouco reconhecimento à luz do que estava sendo demandado, percebido como claramente insuficiente do ponto de vista do Quebec, ou como uma concessão de privilégios excessivos ao Quebec, na perspectiva das outras províncias. Isto dá uma ideia da amplitude das diferenças entre as visões do Quebec e das outras províncias, assim como das dificuldades para superar os impasses nas negociações.

Como indiquei há pouco, no plano estritamente legal ou consti-tucional, a Carta já impôs alguns limites à lei da língua no Quebec, e pode vir a infligir novos constrangimentos à legislação similar no futuro. A lei da língua, ou Lei nº 101 como é conhecida, foi promul-gada em 1977 durante o primeiro governo do Partido Quebequense – de orientação soberanista –, e tem sido o principal instrumento político-institucional na revitalização da língua e da cultura francesas no Quebec. Contudo, ela restringe a utilização do inglês dentro da província, e algumas de suas provisões têm sido questionadas por anglófonos como limitações ilegítimas e infundadas aos seus direitos de cidadania enquanto indivíduos que habitam um país oficialmente bilíngue. São três as principais restrições da Lei nº 101 à utilização do inglês: (1) os filhos de imigrantes, ou de pais que não estudaram em escolas de língua inglesa no Canadá, devem ser matriculados em escolas francesas;12 (2) todas as empresas com mais de cinquenta empregados foram compelidas a funcionar em francês, e tiveram algum tempo para se adaptar às novas condições; e, (3) todos os letreiros comerciais em outras línguas foram inicialmente proibidos, e posteriormente limitados a ocupar, no máximo, a metade do espaço destinado à informação em francês no mesmo letreiro.

De fato, essas provisões da Lei nº 101 podem soar um pouco excessivas à primeira vista. Especialmente quando observamos que mesmo os francófonos são obrigados a mandar seus filhos para es-colas francesas, não lhes sendo permitida uma escolha “livre” nessa matéria. Aqui temos um bom exemplo da mistura entre as dimensões das proteções externas e das restrições internas, que caracterizaria

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certas demandas de direitos diferenciados por grupo de acordo com Kymlicka. Ou seja, para proteger os quebequenses da influência/imposição (externa) da língua inglesa, os próprios francófonos são proibidos de enviar seus filhos para escolas inglesas. Entretanto, antes da instituição da Lei nº 101, os imigrantes não eram os únicos estimulados a mandar seus filhos para escolas inglesas, mas mesmo os francófonos eram tentados a fazê-lo. Normalmente, a tentação não se devia a uma escolha de valores ou modo de vida, mas era uma opção tomada com pesar devido à inexistência de oportunidades de trabalho em francês, fazendo com que, em princípio, uma educação em inglês fosse a condição de acesso a empregos de classe média ou a posições melhor remuneradas em todo tipo de empresa. Antes da promulgação da lei da língua, trabalhadores francófonos com pouca fluência em inglês costumavam reclamar contra o fato de terem que trabalhar numa língua “estrangeira” na sua província natal, o que limitava significativamente suas chances de promoção no emprego.

É verdade que, dados os constrangimentos sociológicos e as contingências empíricas da situação, poder-se-ia encontrar boas razões a partir de uma perspectiva liberal, como sugerido por Kymlicka, para dar suporte à lei da língua no Quebec. Isto é, mesmo que para proteger a língua e a cultura do Quebec haja necessidade de se impor restrições internas à escolha dos quebequenses nessa matéria. Em alguma medida, é como se as provisões da Lei nº 101 estivessem lá para permitir que os quebequenses continuassem po-dendo optar por uma vida em francês, sem ser impedidos de cultivar sua cultura distinta se eles assim o desejassem. Não obstante, esse equacionamento do problema não explica o forte sentimento que os quebequenses ainda demonstram ao reagir à questão da língua nos dias de hoje, quando a situação da língua francesa teve uma melhora substancial – mesmo em Montreal onde ela teria estado realmente ameaçada e está sempre mais exposta – e a flexibiliza-ção imposta pela Suprema Corte, depois que a Carta foi anexada à Constituição, não deve alterar a atual condição do francês como língua dominante no Quebec.

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Eu gostaria de propor que, além das preocupações legítimas com os direitos linguísticos dos francófonos, os quebequenses são mobilizados para manifestações sobre o problema da língua para expressar sua insatisfação com a insultante falta de consideração que eles percebem nas posições tomadas pelo resto-do-Canadá no que concerne às demandas por reconhecimento do Quebec. Assinalei anteriormente como as diferentes interpretações de anglófonos e francófonos sobre o significado do acordo que viabilizou a criação do domínio do Canadá, em 1867, são percebidas pelos quebequenses como uma negação da contribuição especial que eles teriam dado (ao lado dos anglófonos) à formação do país. Ademais, vários eventos na história recente do Canadá foram experimentados pelos quebequenses como uma negação ostensiva do seu valor enquanto povo: dos debates sobre a conscrição durante as duas guerras mundiais (quando não se deu a atenção devida ao posicionamento crítico do Quebec) à repa-triação unilateral (sem o consentimento do Quebec) da Constituição em 1982. Na mesma direção, os quebequenses se ressentem da falta de reciprocidade no resto-do-Canadá às facilidades oferecidas aos anglófonos em Montreal, onde estes têm acesso a bons serviços em inglês nas áreas da saúde e da educação, enquanto os francófonos no resto-do-Canadá têm que se virar em inglês e são pressionados para a assimilação. Contudo, talvez o exemplo mais ofensivo e contundente dessa falta de reconhecimento experimentada pelos quebequenses na vida cotidiana seja a ultrajante expressão speak white! (isto é, fale como branco! fale inglês!) – que não faz muito tempo era dirigida a francófonos por vendedores nas lojas de departamento de Montreal.

Essa percepção de desconsideração não pode ser totalmente dissociada do debate sobre a língua por pelo menos duas razões: (1) a falta de sensibilidade no resto-do-Canadá em relação à preocupação do Quebec com a proteção da língua e da cultura francesas é percebida como uma negação da pretendida igualdade de status frente ao inglês e, dada a história do país, é interpretada como uma desqualificação da contribuição original dos francófonos e soa ofensiva; (2) especial-mente para os francófonos a língua é um índice de identidade social

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muito importante e, portanto, estreitamente ligada a concepções de cidadania. Como tentei mostrar, a situação é ainda mais dramática porque as diferenças de perspectiva entre anglófonos e francófonos também não podem ser dissociadas de grandes mal-entendidos entre eles. A dimensão de mal-entendido e de incompreensão de parte a parte tem sido frequentemente expressa pelos próprios canadenses através da ideia das duas solidões (MacLennan, 1945/1995), as quais eles ainda não teriam conseguido articular. A distância tematizada aqui é particularmente significativa quando comparamos o ponto de vista do Quebec com aquele compartilhado pelas províncias do oeste. Enquanto o Quebec vê suas reivindicações como uma demanda por direitos legítimos, estas são percebidas no oeste como uma tentativa de obter ou de aumentar privilégios inaceitáveis, que a Belle Pro-vince já gozaria em alguma medida na atualidade. O resultado das urnas na votação do referendum sobre o Acordo de Charlottetown, já mencionado, constitui um bom exemplo dessa incompreensão.

Se, por um lado, me parece que as demandas do Quebec por reconhecimento – ou o seu ressentimento em consequência dos atos de desconsideração alegadamente sofridos – podem ser argumentati-vamente fundamentadas, por outro lado, a percepção das províncias do oeste faz algum sentido quando examinadas a partir de sua expe-riência imediata ou através de seu horizonte histórico autocontido. O fato é que, para além do conflito de interesses presente no debate, os dois lados têm dificuldade de colocar-se na posição do outro ou de ouvir o ponto de vista do interlocutor e assim tentar aparar suas dife-renças. Não necessariamente para eliminar as divergências, mas para melhor entendê-las. Ou, não para exterminar o dissenso, mas para construir um overlapping consensus, mesmo que a melhor maneira de realizá-lo seja através de uma parceria negociada como Gibbins e Laforest sugeriram (1998).13 O acordo ou composição eventualmente negociada em torno dos novos termos da relação deveria não apenas encontrar respaldo lógico, e ser adequadamente articulada com as perspectivas das duas partes, mas deveria também deixar espaço para a construção de vínculos no plano emocional, para permitir algum

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senso de pertença para quebequenses e (outros) canadenses. Isto é, se as partes pretendem manter um relacionamento próximo – seja no modelo federalista ou no modelo da parceria – não é suficiente estar de acordo sobre direitos específicos e procedimentos gerais, mas é importante cultivar o reconhecimento mútuo do valor ou mérito de cada parte. O que parece ser particularmente complicado em contex-tos sociais onde predomina a ideologia moderna do individualismo, na qual os atores encontram muita dificuldade para dissociar mérito de desempenho. Pois aqui não se admite qualquer reconhecimento especial ou singular, nos moldes da honra, que esteja calcado em ca-racterísticas intrínsecas de indivíduos ou grupos sociais. A legitimação da atribuição de valor ou mérito a atores ou grupos sociais particulares supõe uma avaliação de desempenho singular que não teria sido obtida por outros, mas que, em princípio, poderiam tê-la obtido: como no caso dos prêmios e honras dadas a atletas, ou na concessão de medalhas de mérito científico, por exemplo.

Seja como for, os anglófonos não são os únicos a encontrar dificuldades na articulação de um discurso coerente em apoio às demandas por reconhecimento, ou para fazer conexões adequadas entre tais demandas e o respeito aos direitos individuais, universal-mente compartilhados por todos os cidadãos. Não só é verdade que, na maior parte do tempo, a dimensão moral no cerne da demanda de reconhecimento é deixada de fora do debate político pelos próprios francófonos do Quebec, mas o argumento por reconhecimento é frequentemente formulado dentro da lógica dos direitos individuais (universalizáveis) que requerem um tratamento uniforme. Não me refiro apenas ao foco nos aspectos jurídico-legais da demanda, cujo significado não deve ser subestimado, mas à falta de articulação entre as demandas legais e os valores morais intrinsecamente associados à identidade cujo valor ou mérito se quer reconhecido. Isto se torna aparente quando, por exemplo, os direitos linguísticos são fundamen-tados na definição de um território circunscrito (o Quebec), o qual ganha precedência sobre o grupo étnico-nacional que originalmente o colonizou (os franco-quebequenses), e passa a ser tomado como

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a fonte da identidade englobadora no que concerne à cidadania.14 Isto é, sem uma preocupação em articular essa formulação com a natureza moral do insulto que motiva a demanda legal. Poder-se-ia dizer, quem sabe, que a legitimidade dos direitos linguísticos e sua conexão com a identidade quebequense seja vista como dependente da universalização desta identidade no âmbito da província, tomada aqui como a referência ou sociedade politicamente relevante.15

Na mesma direção, o compromisso dos quebequenses com o apoio aos direitos individuais e a dificuldade para articular esses direitos com demandas por reconhecimento, fundamentadas em identidades coletivas singulares, faz com que seja difícil para os quebequenses recusar demandas de tratamento igual ou uniforme quando essas são formuladas de maneira apropriada, ainda que não encontrem um contexto de aplicação adequado. O debate sobre a chamada partição é um bom exemplo. A possibilidade de uma vitória soberanista no último referendum – realizado em 30 de outubro de 1995 – provocou um debate sobre a eventual partição do Quebec caso a província se separasse do Canadá. O argumento era de que as municipalidades do Quebec que quisessem se manter parte do Canadá deveriam realizar os seus próprios referenda e tomar uma decisão autônoma.

Em primeiro lugar, independentemente dos perigos que uma política de partição poderia ensejar (como as recentes guerras étnicas na Europa Oriental), é importante observar que além da similaridade formal entre o referendum do Quebec e os que teriam lugar no âmbito das municipalidades, nenhum dos argumentos históricos articulados acima em apoio à demanda do Quebec se aplicaria às municipalida-des. Isto é, as demandas dessas últimas se apoiam exclusivamente em termos de uma concepção (meramente) formal de tratamento uniforme: se o Quebec, enquanto subunidade do Canadá, pode optar por separar-se da Federação, as municipalidades, que são subunidades do Quebec, também deveriam ter o direito de optar pela separação da província. Contudo, a despeito do fato de o território do Quebec ser representado pelos quebequenses como uma unidade sagrada

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e indivisível, em 13 de setembro de 1997 a Gazette16 publicou os resultados de uma pesquisa de opinião feita pela empresa SOM para l’Actualité17, na qual 60% da população do Quebec afirmavam ser favoráveis ao direito de partição das municipalidades que assim o desejassem, no caso do Quebec vir a se separar do Canadá. Em outras palavras, apesar de fundamentarem suas demandas por reco-nhecimento na legitimidade do caráter distinto de uma identidade específica, os quebequenses encontram dificuldades até certo ponto surpreendentes para negar direitos que se baseiam numa demanda formal por tratamento igual ou uniforme, mas que não conseguem ser adequadamente traduzidos em um conteúdo substantivo nem encontram conexões significativas no nível empírico.

Assim como o desequilíbrio entre os princípios de justiça e so-lidariedade (ou entre direitos e identidades) nos EUA, o qual torna os insultos morais invisíveis, os atos de desconsideração são de fácil identificação no Quebec e têm grande eficácia para mobilizações políticas, mas não são tão facilmente concebidos como agressões ilícitas. Em ambos os casos, entretanto, a ênfase nos direitos indivi-duais (legais) impõe déficits de cidadania que são de difícil superação dentro de uma perspectiva liberal que evita conexões entre direitos e identidades, normas (ou princípios) e valores, ou entre respeito legal e reconhecimento moral. Do ponto de vista do Brasil, onde o dese-quilíbrio entre os princípios supracitados é invertido, é interessante notar que, por um lado, a falta de consideração (cuja manifestação é tão cultivada entre nós, ainda que de forma excessivamente seletiva) e a não atribuição de valor ou mérito ao interlocutor também podem implicar desrespeito a direitos de cidadania. Por outro lado, como a ampliação dos direitos de cidadania no Brasil ou sua expansão na vida cotidiana não dependem da promulgação de legislação apro-priada, mas de uma mudança de atitude por parte dos atores (tanto no serviço público como na sociedade civil), a eventual satisfação das demandas quebequenses (dentro ou fora do Canadá) não requer apenas mudanças legais ou constitucionais, mas mudanças de atitude também.

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Dois comentários finais à guisa de conclusão:(1) A invisibilidade dos insultos morais nos EUA não evita a

sua ocorrência nem limita a sua incidência. Pelo contrário, esta in-visibilidade só aumenta as chances deles acontecerem e torna a sua experiência mais dramática, dada a ausência de meios institucionais ou discursivos apropriados para lidar com eles.

(2) A dificuldade de fundamentar o caráter ilícito dos insultos morais no contexto do Canadá/Quebec é uma barreira significativa à negociação da crise constitucional canadense. Não só porque ela reduz o universo de alternativas legítimas para o impasse. Mas, so-bretudo, porque a manutenção do status quo com alguns remendos legais, ou uma declaração de separação unilateral, sem negociação, seriam apenas soluções parciais, na medida em que nenhuma das duas alternativas enfrenta o cerne do problema, além de impor custos altos e indesejáveis da perspectiva de ambas as partes.

Notas1 Isto é, a negação dos direitos civis básicos na vida cotidiana ou nos serviços públicos às pessoas que não são vistas como merecedoras de atenção especial ou de consideração.2 Esses atos ou torts caracterizam situações nas quais uma das partes pode ser responsabilizada pelos prejuízos causados à outra, sem que os prejuízos pos-sam ser associados a uma relação de natureza contratual entre as partes. Por exemplo, se coloco um vaso no parapeito de minha janela e este cai no carro de meu vizinho, amassando um dos pára-lamas, sou civilmente responsável pela reparação dos danos daí decorrentes.3 Quando há evidência de ter havido uma tentativa de agressão, ao lado da perda material o agressor também pode ser processado e julgado como réu em uma vara criminal, independentemente do processo civil. Enquanto em um caso o objetivo seria estabelecer uma punição (pena) como resposta à ofensa sofrida, no outro o objetivo seria definir uma indenização como reparação aos danos causados pelo querelado.

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4 Em quase metade (47,3%) das decisões judiciais favoráveis aos querelantes durante minha pesquisa, o juiz determinou o pagamento de indenizações em um valor inferior ao demandado pelos litigantes (Cardoso de Oliveira, 1989: 88).5 O Small Claims Advisory Service é um serviço de atendimento telefônico estruturado para prestar esclarecimentos a litigantes reais ou virtuais sobre as regras para a formalização de uma causa, ou sobre os procedimentos caracte-rísticos das audiências judiciais.6 Para uma análise abrangente do caso, ver Cardoso de Oliveira (1989: 425-440; 1996b: 131-138).7 A relação entre obrigação e gratuidade como uma característica central da dádiva já havia sido assinalada no ensaio clássico de Mauss sobre o tema (1925/1974). Entretanto, Godbout e Caillé exploram aspectos importantes da especificidade e da complexificação dessa relação em sociedades modernas, permitindo articulações interessantes com a problemática do reconhecimento.8 Além das províncias do Quebec e Ontário, o Domínio do Canadá incluiu também as províncias da Nova Escócia e do Novo Brunswick.9 Atualmente, as chamadas primeiras nações ou autóctones (índios, esquimós, e os metis) foram incorporadas no discurso como um terceiro grupo que teria contribuído igualmente para a formação do país.10 Em uma análise da campanha para o último referendum sobre a soberania do Quebec, que teve lugar em 30 de outubro de 1995, indiquei como a retó-rica do ressentimento foi utilizada com sucesso nos discursos políticos que objetivavam ganhar suporte para a opção soberanista. Os discursos utilizavam imagens fortes, destinadas a tocar o orgulho dos quebequenses como um povo que teria sido sempre tratado com desconsideração por Ottawa, a despeito de seus melhores esforços para ouvir o ponto de vista do resto-do-Canadá e negociar um acordo equânime com este último (Cardoso de Oliveira, 1999c/reproduzido no capítulo 5).11 O Acordo do Lago Meech foi subscrito pelo primeiro-ministro do Canadá e pelos dez primeiros-ministros das províncias em 30 de abril de 1987. Contudo, seus termos tinham que ser ratificados em um período de três anos pelas assembleias legislativas das províncias. Faltando apenas alguns dias para o esgotamento do prazo, as províncias de Manitoba e Terra Nova retiraram seu apoio ao acordo.12 Na primeira redação da lei, somente as crianças cujos pais tivessem frequen-tado escolas de língua inglesa no Quebec também poderiam ser matriculadas em escolas inglesas, mas essa limitação foi declarada inconstitucional pela Suprema Corte, em 26 de julho de 1984.

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13 No referendum de outubro de 1995, a proposta dos soberanistas era de obter um mandato para declarar a independência do Quebec, se após um ano de ne-gociações o resto-do-Canadá não aceitasse uma composição satisfatória para a implementação de uma parceria político-econômica com o Quebec. Além das dificuldades inerentes à proposta de parceria, a qual previa a formação de um novo país que compartilharia com o Canadá a moeda, as forças armadas e o passaporte ou a nacionalidade para os cidadãos que assim o desejassem, no plano simbólico a proposta era vista pelos anglófonos como uma agressão.14 Não creio que uma sociedade etnicamente diversificada como o Quebec pudesse legitimar suas demandas em termos étnicos, nem estou criticando o movimento recente de transformação de um nacionalismo de base étnica em direção a um nacionalismo de base territorial. Entretanto, gostaria de enfatizar a dificuldade para fundamentar demandas por reconhecimento como um direito legal, sem transformar a identidade singular que lhes dá sentido em algo uni-versalizável que possa ser uniformemente compartilhado por todos.15 Vale a pena observar que o Quebec é a única província do Canadá cujo le-gislativo é conhecido como Assembleia Nacional.16 Principal jornal anglófono de Montreal.17 Revista francófona de grande circulação no Quebec.

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Esta obra foi produzida no Rio de Janei ro, na primavera de 2011, pela editora Garamond. A tipologia empregada foi Times New Roman. O papel utilizado para o miolo é off-set 75g.

Impresso no Rio de Janeiro pela Singular