direito e democracia - ulbra

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Volume 1 - Número 1 - 1º Semestre de 2000 ISSN 1518-1685

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DIREITO EDEMOCRACIARevista do Centro de Ciências Jurídicas –ULBRAVol. 1 - Número 1 - 1º semestre de 2000ISSN 1518-1685U58u Revista Direito e democracia / Universidade Luteranado Brasil – Centro de Ciências Jurídicas. – Canoas:Ed. ULBRA, 2000.Semestral1. Direito-periódico. I. Universidade Luterana doBrasil-Centro de Ciências Jurídicas.CDU 34CDD 340Setor de Processamento Técnico da Biblioteca Martinho Lutero- ULBRA/Canoas

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Volume 1 - Número 1 - 1º Semestre de 2000ISSN 1518-1685

2 Direito e Democracia

ReitorRuben Eugen BeckerVice-ReitorLeandro Eugênio BeckerPró-Reitor AcadêmicoNestor Luiz João BeckPró-Reitor Acadêmico AdjuntoOsmar RufattoPró-Reitora Acadêmica Adjunta ILESJussará Gonçalves LummertzPró-Reitor de AdministraçãoPedro Menegat

Diretor do Centro de Ciências JurídicasCarlos Wilson Schröeder

DIREITO E DEMOCRACIARevista do Centro de Ciências Jurídicas – ULBRA

EditorPlauto Faraco de AzevedoEditor AssociadoCésar Augusto Baldi

Conselho EditorialAldacy Rachid Coutinho (UFPR)Altayr Venzon (ULBRA)Etienne Picard (Université de Paris I/França)Gerson Luiz Carlos Branco (ULBRA)Ielbo Marcus Lôbo de Souza (ULBRA)Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (UFPR)Joaquín Herrera Flores (Universidad Pablo Olavide/Espanha)José Maria Rosa Tescheiner (PUC/RS)Luís Afonso Heck (ULBRA)Luís Luisi (ULBRA e UNICRUZ)Luiz Carlos Lopes Moreira (ULBRA)Vladimir Passos de Freitas (UFPR)

EDITORA DA ULBRAE-mail: [email protected]: Valter KuchenbeckerCapa: Juliano Dall’AgnolEditoração: Isabel Kubaski

PROAC/Núcleo de Publicação e Divulgação CientíficaPaulo SeifertAstomiro RomaisCláudio Schubert

CORRESPONDÊNCIARua Miguel Tostes, 101 - Bairro São LuísCEP: 92420-280 - Canoas/RS - BrasilFone: (051) 477.9118 - Fax: (051) 477.9115E-mail: [email protected]: (051) 477.4000 - Ramal: 2700E-mail: [email protected]

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O conteúdo e estilo lingüístico são de responsabilidade exclu-siva dos autores. Direitos autorais reservados.Citação parcial permitida, com referência à fonte.

DIREITO EDEMOCRACIA

Revista do Centro de Ciências Jurídicas –ULBRA

Vol. 1 - Número 1 - 1º semestre de 2000ISSN 1518-1685

Í n d i c eÍ n d i c eÍ n d i c eÍ n d i c eÍ n d i c e

3 Editorial

Artigos

5 Memorial em prol de uma nova mentalidade quanto àproteção dos direitos humanos nos planos internacionale nacionalAntônio Augusto Cançado Trindade

53 Notas introdutórias sobre a fundamentação dos direi-tos humanos - Uma breve análise sobre os direitos hu-manos, a cidadania e as práticas democráticasJoão Ricardo W. Dornelles

81 O Estado do futuro e o futuro do EstadoManoel Gonçalves Ferreira Filho

95 Os princípios reguladores da autonomia privada: auto-nomia da vontade e boa-féGerson Luiz Carlos Branco

113 O modelo das regras e o modelo dos princípios na colisãode direitos fundamentaisLuís Afonso Heck

123 O conflito armado entre a Otan e a Iugoslávia (1999):algumas considerações sobre o uso da força nas relaçõesinternacionaisIelbo Marcus Lobo de Souza

149 A responsabilidade dos prefeitos em juízoVladimir Giacomuzzi

163 Globalização e direito do trabalhoAldacy Rachid Coutinho

Documentos

177 Déclaration des Droits de I’Homme et du Citoyen du26 août 1789

U58u Revista Direito e democracia / Universidade Luteranado Brasil – Centro de Ciências Jurídicas. – Canoas:Ed. ULBRA, 2000.

Semestral

1. Direito-periódico. I. Universidade Luterana doBrasil-Centro de Ciências Jurídicas.

CDU 34CDD 340

Setor de Processamento Técnico da Biblioteca Martinho Lutero- ULBRA/Canoas

Direito e Democracia 3

Editorial

A Revista Direito e democracia, do Centro de Ciências Jurídicas da Uni-versidade Luterana do Brasil - ULBRA segue a estrutura da sua antecessora, aOpinio Jure. Como aquela, busca ser testemunho e estímulo à produção jurídicados Cursos de Graduação e Pós-Graduação desta Universidade, assim como deoutras universidades, na realização do indispensável intercâmbio das idéias pro-duzidas no campo do Direito.

Pretende ser um veículo de divulgação do Direito por inteiro, sem cisõesartificialmente elaboradas. Nela têm lugar os problemas da Dogmática Jurídicatradicional, assim como da Dogmática atual, com vocação crítico-valorativa, demodo a contribuir à atualização da ordem jurídica, mantendo-a e transforman-do-a, redescobrindo o sentido do Direito, de modo a propiciar o efetivo respeitoda Dignidade Humana.

Acolherá, de bom grado, trabalhos de Filosofia, Sociologia e História doDireito, na certeza de que estas também tratam de dimensões relevantes doDireito, auxiliando a encaminhar o pensamento rumo a uma concepçãototalizadora do Jurídico. Desta forma, o fundamento científico do Direito pode-rá ser constantemente repensado, tendo como meta o convívio justo que não serealiza sem o adequado equacionamento do problema da justiça distributiva.

O presente número vem ao encontro destas considerações tratando dosDireitos Humanos; do Estado em sua perspectiva atual e de uma de suas possí-veis configurações futuras; do Direito do Trabalho face à globalização, tão “mo-derna” quanto indiferente às contingências humanas; do conflito armado entrea Otan e a Yugoslávia; dos Direitos Fundamentais segundo o modelo das regrase dos princípios; da responsabilidade dos prefeitos em juízo; e dos princípios daautonomia da vontade e boa-fé, em sua configuração atual no Direito Privado.

Porto Alegre, abril de 2000

Plauto Faraco de AzevedoCesar Augusto Baldi

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Memorial em prol de uma novamentalidade quanto à proteção dos

direitos humanos nos planosinternacional e nacional1

ANTÔNIO AUGUSTO CANÇADO TRINDADE

Vice-Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos; Professor Titular da Universidade de Brasília e doInstituto Rio-Branco; Membro dos Conselhos Diretores do Instituto Internacional de Direitos Humanos

(Estrasburgo) e do Instituto Interamericano de Direitos Humanos (Costa Rica); Associado do Institut de DroitInternational

RESUMO

Este trabalho busca uma nova compreensão da proteção dos direitos humanos nosplanos internacional e nacional, defendendo seu tratamento diferenciado ou especi-al no plano interno. Neste sentido, trata do desenvolvimento nos sistemas de prote-ção europeu e interamericano, pugnando pela possibilidade de acesso direto aostribunais internacionais por parte das vítimas de violações de direitos e por umamaior abrangência interpretativa das obrigações convencionais de proteção.Palavras-chave: Direitos humanos, legislação internacional, acesso direto

ABSTRACT

This article seeks to establish a new understanding of the protection of humanrights at national and international levels, defending a special treatment for thisquestion within the States. In this sense, it deals with the evolution in the Euro-

1. Texto da conferência proferida pelo Autor no painel inaugural da III Conferência Nacional de DireitosHumanos, realizada no Congresso Nacional (Auditório Nereu Ramos) em Brasília, no dia 13 de maio de1998, sob o patrocínio da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados.

Direito e Democracia Canoas vol.1, n.1 1º sem. 2000 p.5-52

Artigos

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pean and Interamerican systems of protection, proposing a direct access to inter-national tribunals by the victims of violations of human rights and a broaderinterpretation of the conventional obligations on protection.Key words: Human rights, international law, direct access

I. INTRODUÇÃO

Há pouco mais de cinco meses, na abertura do Encontro Internacionalpromovido pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputadose realizado neste mesmo Auditório, que marcou o início em nosso país dospreparativos das comemorações do cinqüentenário das Declarações Uni-versal e Americana de Direitos Humanos, tive a ocasião de abordar, emlonga exposição, no dia 03 de dezembro de 1997, o legado da DeclaraçãoUniversal de 1948, desde seus trabalhos preparatórios até sua projeçãonormativa em numerosos e sucessivos tratados de direitos humanos nosplanos global e regional, nas Constituições e legislações nacionais, e naprática dos tribunais internacionais e nacionais também de numerosos pa-íses. Ao voltar a esta Casa, o Congresso Nacional de meu país, para partici-par hoje nesta III Conferência Nacional de Direitos Humanos, o tema e opropósito de minha exposição são claramente distintos.

Permito-me, inicialmente, expressar meus agradecimentos pela dis-tinção do convite e minha satisfação pela realização deste evento. Vejoum valor simbólico no fato de contar esta Conferência com a presença eparticipação de autoridades das instituições públicas e representantes emembros da sociedade civil brasileira, congregados em torno do temacentral que nos une: o da proteção dos direitos humanos nos planos a umtempo internacional e nacional. O fato de estarmos aqui todos reunidos,para uma reflexão coletiva sobre a matéria, atesta o valor que todos atri-buímos à referida temática. Não poderia haver melhor ocasião para umdiálogo franco e respeitoso, sobre um tema que diz respeito ao quotidianode todos os brasileiros e de todas as pessoas que vivem em nosso país.

O tema desta Conferência - a aplicação das normas de proteção dosdireitos humanos nos planos internacional e nacional - poderia consumirdias de debates, dada sua amplitude e complexidade. Em um esforço ex-tremo de síntese, o abordarei no que mais diretamente possa interessar àsconclusões e iniciativas que porventura emanem deste conclave. A ques-tão da interrelação entre o direito internacional e o direito interno na

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proteção dos direitos humanos, cujo exame me tem consumido tantosanos de pesquisa, reflexão, e atuação nos planos nacional e internacio-nal, permeia todas as etapas de operação dos mecanismos de proteção,desde o acesso dos indivíduos às instâncias internacionais de proteçãoaté a execução de sentenças e decisões dos órgãos internacionais de pro-teção no plano do direito interno dos Estados.

Assim sendo, e premido pela pressão impiedosa do tempo, proponho-meanalisar o tema segundo o seguinte plano de exposição: em primeiro lugar,examinarei a questão atinente ao acesso direto dos indivíduos aos tribunaisinternacionais de direitos humanos existentes (ou seja, as Cortes Européiae Interamericana de Direitos Humanos), causa esta à qual tenho pessoal-mente me dedicado, não sem dificuldades, por mais de uma década; emsegundo lugar, abordarei a questão dos meios previstos pelos próprios trata-dos de direitos humanos para a compatibilização entre as jurisdições inter-nacional e nacional em matéria de direitos humanos (prévio esgotamentodos recursos de direito interno, cláusulas de derrogações e de reservas,execução das sentenças internacionais no direito interno); em terceiro lu-gar, examinarei o amplo alcance das obrigações convencionais internacio-nais de proteção no plano do direito interno, identificando as obrigaçõesexecutivas, legislativas e judiciais dos Estados Partes nos tratados de direi-tos humanos; e, enfim, apresentarei minhas conclusões.

A tese que sustento, como o venho fazendo já por mais de vinte anos emmeus escritos2 , é, em resumo, no sentido de que, - primeiro, os tratados dedireitos humanos3 , que se inspiram em valores comuns superiores(consubstanciados na proteção do ser humano) e são dotados de mecanis-mos próprios de supervisão que se aplicam consoante a noção de garantia

2. Cf., inter alia: A.A. Cançado Trindade, “Exhaustion of Remedies in International Law and the Role ofNational Courts”, 17 Archiv des Völkerrechts (1977/1978) pp. 333-370; A.A. Cançado Trindade, Princípiosdo Direito Internacional Contemporâneo, Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1981, pp. 222-264,esp. pp. 247-248; A.A. Cançado Trindade, The Application of the Rule of Exhaustion of Local Remediesin International Law, Cambridge, Cambridge University Press, 1983, pp. 1-440; A.A. Cançado Trindade, AProteção Internacional dos Direitos Humanos - Fundamentos Jurídicos e Instrumentos Básicos, SãoPaulo, Ed. Saraiva, 1991, pp. 1-59, e cf. pp. 520-563 e 573-638; A.A. Cançado Trindade (ed.), A Proteção dosDireitos Humanos nos Planos Nacional e Internacional: Perspetivas Brasileiras, San José da Costa Rica/Brasília, IIDH/FFN, 1992, pp. 43-68; A.A. Cançado Trindade (ed.), A Incorporação das Normas Interna-cionais de Proteção dos Direitos Humanos no Direito Brasileiro, 2a. ed., San José da Costa Rica/Brasília,IIDH/CICV/ACNUR/CUE/ASDI, 1996, pp. 205-236; A.A. Cançado Trindade, Tratado de Direito Interna-cional dos Direitos Humanos, vol. I, Porto Alegre, S.A. Fabris Ed., 1997, pp. 17-447.

3. Tomo aqui a expressão “direitos humanos” lato sensu, de modo a abarcar, a par dos tratados de direitoshumanos, também os tratados de direito internacional humanitário e de direito internacional dos refugiados.

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coletiva, têm caráter especial, que os diferenciam dos demais tratados, queregulamentam interesses recíprocos entre os Estados Partes e são por estespróprios aplicados, - com todas as conseqüências jurídicas que daí advêmnos planos do direito internacional e do direito interno; segundo, o direitointernacional e o direito interno mostram-se em constante interação nopresente contexto de proteção, na realização do propósito convergente ecomum da salvaguarda dos direitos do ser humano; e terceiro, na soluçãode casos concretos, a primazia é da norma que melhor proteja as vítimas deviolações de direitos humanos, seja ela de origem internacional ou interna.

É esta, a meu ver, a tese que melhor reflete e fomenta a evolução con-temporânea convergente sobre a matéria tanto do direito internacionalquanto do direito público interno, e a única que, como assinalarei ao longode minha exposição, logra desvencilhar-se e emancipar-se dos dogmas dopassado, maximizando a proteção dos direitos humanos. Os ordenamentosinternacional e nacional formam um todo harmônico, em benefício dosseres humanos protegidos, das vítimas de violações dos direitos humanos.Esta nova visão que venho sustentando há tantos anos, e cuja aplicaçãorequer uma mudança fundamental de mentalidade, encontra expressão najurisprudência internacional, começa a florescer de forma sistemática tam-bém na jurisprudência nacional de alguns países, - e espero sinceramenteque venha a germinar de igual modo em terras brasileiras.

Assim sendo, o Leitmotiv de minha exposição é precisamente o danecessidade premente de uma mudança fundamental de mentalidadeno tocante à proteção dos direitos humanos nos planos internacional enacional, sem a qual pouco lograremos avançar em nosso país neste domí-nio. Por esta razão, permito-me dar à minha exposição o cunho de ummemorial em prol de uma nova mentalidade quanto à proteção dosdireitos humanos nos planos internacional e nacional. Passo, pois, aoexame de cada um dos pontos de minha exposição.

II. O LOCUS STANDI DOS INDIVÍDUOS NOSPROCEDIMENTOS PERANTE OS TRIBUNAISINTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS

Uma das grandes prioridades da agenda contemporânea dos direitoshumanos reside, a meu modo de ver, na garantia do acesso direto das

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supostas vítimas aos tribunais internacionais de direitos humanos. Ementrevista que tive a satisfação de conceder à Associação Juízes para aDemocracia, em São Paulo em outubro de 19954 , assinalei a importânciadesta questão5 , que até então passava inteiramente despercebida em nossopaís, inclusive dos que atuam no campo dos direitos humanos. Como hámuito venho me empenhando por tal acesso direto no plano internacio-nal, permito-me retomar o tema nesta Conferência, dada a importânciada difusão, em nosso país, dos últimos desenvolvimentos a respeito.

Ao serem concebidos os sistemas de proteção das Convenções Euro-péia e Americana sobre Direitos Humanos, os mecanismos enfim adotadosnão consagraram originalmente a representação direta dos indivíduos nosprocedimentos perante os dois tribunais internacionais de direitos huma-nos criados pelas duas Convenções (as Cortes Européia e Interamericanade Direitos Humanos), - os únicos tribunais do gênero existentes sob tra-tados de direitos humanos até o presente. As resistências, então manifes-tadas, - próprias de outra época e sob o espectro da soberania estatal, - aoestabelecimento de uma nova jurisdição internacional para a salvaguar-da dos direitos humanos, fizeram com que, pela intermediação das Co-missões (Européia e Interamericana de Direitos Humanos), se buscasseevitar o acesso direto dos indivíduos aos dois tribunais regionais de direi-tos humanos (as Cortes Européia e Interamericana de Direitos).

Neste final de século, encontram-se definitivamente superadas asrazões históricas que levaram à denegação - a nosso ver injustificável,desde o inicio, - de tal locus standi das supostas vítimas. Com efeito, nossistemas europeu e interamericano de direitos humanos, como veremos aseguir, a própria prática cuidou de revelar as insuficiências, deficiências edistorsões do mecanismo paternalista da intermediação das ComissõesEuropéia e Interamericana entre os indivíduos e as respectivas Cortes -Européia e Interamericana - de Direitos Humanos.

1. Desenvolvimentos no Sistema Europeu de ProteçãoJá no exame de seus primeiros casos contenciosos, tanto a Corte Eu-

ropéia como a Corte Interamericana de Direitos Humanos se insurgiram

4. Reproduzida no número 1 de sua Revista, Justiça e Democracia (primeiro semestre de 1996), pp. 7-17.

5. Ibid., p. 17.

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contra a artificialidade do esquema da intermediação das respectivas Co-missões (supra). Recorde-se que, bem cedo, já desde o caso Lawlessversus Irlanda (1960), a Corte Européia passou a receber, por meio dosdelegados de la Comissão Européia, argumentos escritos dos própriosdemandantes, que freqüentemente se mostravam bastante críticas notocante à própria Comissão. Encarou-se esta providência com certa natu-ralidade, pois os argumentos das supostas vítimas não tinham que coinci-dir inteiramente com os dos delegados da Comissão. Uma década depois,durante o procedimento nos casos Vagrancy, relativos à Bélgica (1970), aCorte Européia aceitou a solicitação da Comissão de dar a palavra a umadvogado dos três demandantes; ao tomar a palabra, este advogado criti-cou, em um determinado ponto, a opinião expressada pela Comissão emseu relatório.

Os desenvolvimentos seguintes são conhecidos: a concessão de locusstandi aos representantes legais dos indivíduos demandantes perante a Corte(por meio da reforma do Regulamento de 1982, em vigor a partir de01.01.1983) em casos a esta submetidos pela Comissão ou os Estados Partes,seguida da adoção do célebre Protocolo n. 9 (de 1990, já em vigor) à Con-venção Européia. Como bem ressalta o Relatório Explicativo do Conselhoda Europa sobre a matéria, o Protocolo n. 9 concedeu “um tipo de locusstandi” aos indivíduos perante a Corte, indubitavelmente um avanço, masque ainda não lhes assegurava a “equality of arms/égalité des armes” comos Estados demandados e o benefício pleno da utilização do mecanismo daConvenção Européia para a vindicação de seus direitos (cf. infra).

De todo modo, as relações da Corte Européia com os indivíduosdemandantes passaram a ser, pois, diretas, sem contar necessariamentecom a intermediação dos delegados da Comissão. Isto obedece a umacerta lógica, porquanto os papéis ou funções dos demandantes e da Co-missão são distintos; como a Corte Européia assinalou já em seu primeirocaso (Lawless), a Comissão se configura antes como um órgão auxiliar daCorte. Têm sido freqüentes os casos de opiniões divergentes entre osdelegados da Comissão e os representantes das vítimas nas audiênciasperante a Corte, e tem-se considerado isto como normal e, até mesmo,inevitável. Os governos se acomodaram, por assim dizer, à prática dosdelegados da Comissão de recorrer quase sempre à assistência de umrepresentante das vítimas, ou, pelo menos, a ela não objetaram.

Não há que passar despercebido que toda esta evolução tem-se de-sencadeado, no sistema europeu de proteção, gradualmente, mediante a

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reforma do Regulamento da Corte e a adoção do Protocolo n. 9 à Con-venção. A Corte Européia tem determinado o alcance de seus própriospoderes mediante a reforma de seu interna corporis, afetando inclusivea própria condição das partes no procedimento perante ela. Alguns casosjá tem sido resolvidos sob o Protocolo n. 9, com relação aos Estados Partesna Convenção Européia que ratificaram também este último. Daí a atualcoexistência dos Regulamentos A e B da Corte Européia6 .

É certo que, a partir de 01 de novembro de 1998, dia da entrada emvigor do Protocolo n. 11 (de 1994) à Convenção Européia (sobre a refor-ma do mecanismo desta Convenção e o estabelecimento de uma novaCorte Européia como único órgão jurisdicional de supervisão da Con-venção), o Protocolo n. 9 tornar-se-á anacrônico, de interesse somentehistórico no âmbito do sistema europeu de proteção. Ao contrário doque previam os céticos, em relativamente pouco tempo todos os EstadosPartes na Convenção Européia de Direitos Humanos, em inequívocademonstração de maturidade, se tornaram Partes também no Protocolon. 11 à referida Convenção, possibilitando a entrada em vigor desteúltimo ainda em 1998.

O início da vigência deste Protocolo, em 01 de novembro de 1998,representa um passo altamente gratificante para todos os que atuamos emprol do fortalecimento da proteção internacional dos direitos humanos.O indivíduo passa assim a ter, finalmente, acesso direto a um tribunalinternacional (jus standi), como verdadeiro sujeito - e com plena capaci-dade jurídica - do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Isto só foipossível em razão de uma nova mentalidade quanto à proteção dos direi-tos humanos nos planos internacional e nacional.

Superado, desse modo, o Protocolo n. 9 para o sistema europeu deproteção, não obstante retém sua grande utilidade para a atual conside-ração de eventuais aperfeiçoamentos do mecanismo de proteção do siste-ma interamericano de direitos humanos (cf. infra). Os sistemas regionais- situados todos na universalidade dos direitos humanos -vivem momen-tos históricos distintos. No sistema africano de proteção, por exemplo, sórecentemente (setembro de 1995) se concluiu a elaboração do Projeto deProtocolo à Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos sobre o

6. O Regulamento A aplicável a casos relativos a Estados Partes na Convenção Européia que não ratificaramo Protocolo n. 9, e o Regulamento B aplicável a casos referentes a Estados Partes na Convenção queratificaram o Protocolo n. 9.

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Estabelecimento de uma Corte Africana de Direitos Humanos e dos Po-vos7 . E apenas um ano antes, em setembro de 1994, o Conselho da Ligados Estados Árabes, a seu turno, adotou a Carta Árabe de Direitos Hu-manos8 .

2. Desenvolvimentos no Sistema Interamericano deProteção

Os desenvolvimentos que hoje têm lugar no sistema interamericanode proteção são semelhantes aos do sistema europeu de proteção na últi-ma década, no tocante à matéria em exame. Na agenda atual de nossosistema regional de proteção, ocupa hoje posição central a questão dacondição das partes em casos de direitos humanos sob a Convenção Ame-ricana, e, em particular, da representação legal ou locus standi in judiciodas vítimas (ou seus representantes legais) diretamente ante a CorteInteramericana, em casos que a ela já tenham sido enviados pela Comis-são. Também aqui se faz sentir a importância de uma interpretação apro-priada dos termos e do espírito da Convenção Americana.

É certo que a Convenção Americana determina que só os EstadosPartes e a Comissão têm direito a “submeter um caso” à decisão da Corte(artigo 61(1)); mas a Convenção, por exemplo, ao dispor sobre repara-ções, também se refere à “parte lesada” (artigo 63(1)), i.e., as vítimas enão a Comissão. Com efeito, reconhecer o locus standi in judicio dasvítimas (ou seus representantes) ante a Corte (em casos já submetidos aesta pela Comissão) contribui à “jurisdicionalização” do mecanismo deproteção (na qual deve recair toda a ênfase), pondo fim à ambiguidadeda função da Comissão, a qual não é rigorosamente “parte” no processo,mas antes guardiã da aplicação correta da Convenção.

No procedimento perante a Corte Interamericana, por exemplo, osrepresentantes legais das vítimas são integrados à delegação da Comissãocom a designação eufemística de “assistentes” da mesma. Esta solução“pragmática” contou com o aval, com a melhor das intenções, da decisão

7. Cf. texto in: “Government Legal Experts Meeting on the Question of the Establishment of anAfrican Court on Human and Peoples’ Rights” (Cape Town, South Africa, September 1995), 8 AfricanJournal of International and Comparative Law (1996) pp. 493-500.

8. Cf. texto in: 7 Revue universelle des droits de l’homme (1995) pp. 212-214.

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tomada em uma reunião conjunta da Comissão e da Corte Interamericanas,realizada em Miami em janeiro de 1994. Em lugar de resolver o problema,criou, não obstante, ambigüidades que têm persistido até hoje. O mesmoocorria no sistema europeu de proteção até 1982, quando a ficção dos“assistentes” da Comissão Européia foi finalmente superada pela reformanaquele ano do Regulamento da Corte Européia. É chegado o tempo desuperar tais ambigüidades também em nosso sistema interamericano deproteção, dado que os papéis ou funções da Comissão (como guardiã daConvenção assistindo à Corte) e dos indivíduos (como verdadeira partedemandante) são claramente distintos.

A evolução no sentido da consagração final destas funções distintasdeve dar-se pari passu com a gradual jurisdicionalização do mecanismode proteção. Desta forma se afastam definitivamente as tentações depolitização da matéria, que passa a ser tratada exclusivamente à luz deregras do direito. Não há como negar que a proteção jurisdicional é aforma mais evoluída de salvaguarda dos direitos humanos, e a que melhoratende aos imperativos do direito e da justiça.

O Regulamento anterior da Corte Interamericana (de 1991) previa,em termos oblíquos, uma tímida participação das vítimas ou seus repre-sentantes no procedimento ante a Corte, sobretudo na etapa de repara-ções e quando convidados por esta9 . Bem cedo, nos casos Godínez Cruze Velásquez Rodríguez (reparações, 1989), relativos a Honduras, a Cor-te recebeu escritos dos familiares e advogados das vítimas, e tomou notados mesmos10 .

Mas o passo realmente significativo foi dado mais recentemente, nocaso El Amparo (reparações, 1996), relativo à Venezuela, verdadeiro“divisor de águas” nesta matéria. Na audiência pública sobre este casocelebrada pela Corte Interamericana em 27 de janeiro de 1996, um deseus magistrados, ao manifestar expressamente seu entendimento de queao menos naquela etapa do processo não podia haver dúvida de que osrepresentantes das vítimas eram “a verdadeira parte demandante ante aCorte”, em um determinado momento do interrogatório passou a dirigir

9. Cf. Regulamento anterior da Corte Interamericana, de 1991, artigos 44(2) e 22(2), e cf. também artigos34(1) e 43(1) e (2).

10. Corte Interamericana de Derechos Humanos, casos Godínez Cruz e Velásquez Rodríguez (IndemnizaciónCompensatoria), Sentenças de 21.07.1989.

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11. Cf. a intervenção do Juiz A.A. Cançado Trindade, e as respostas do Sr. Walter Márquez e da Sra. LigiaBolívar, como representantes das vítimas, in: Corte Interamericana de Derechos Humanos, Transcripciónde la Audiencia Pública Celebrada en la Sede de La Corte el Día 27 de Enero de 1996 sobre Reparaciones- Caso El Amparo, pp. 72-76 (mimeografado, circulação interna).

12. Cf. as duas resoluções da Corte, de 10.09.1996, sobre os casos Velásquez Rodríguez e Godínez Cruz,respectivamente, in: Corte I.D.H., Informe Anual de la Corte Interamericana de Derechos Humanos1996, pp. 207-213.

13. De cujo projeto original tive a honra de ser o relator, por designação da Corte.

perguntas a eles, aos representantes das vítimas (e não aos delegados daComissão ou aos agentes do governo), que apresentaram suas respostas11 .

Pouco depois desta memorável audiência no caso El Amparo, os repre-sentantes das vítimas apresentaram dois escritos à Corte (datados de 13.05.1996e 29.05.1996). Paralelamente, com relação ao cumprimento da sentença deinterpretação de sentença prévia de indenização compensatória nos casosanteriores Godínez Cruz e Velásquez Rodríguez, os representantes das víti-mas apresentaram igualmente dois escritos à Corte (datados de 29.03.1996 e02.05.1996). A Corte, com sua composição de setembro de 1996, só determi-nou por término ao processo destes dois casos depois de constatado o cumpri-mento, por parte de Honduras, das sentenças de indenização compensatóriae de interpretação desta, e depois de haver tomado nota dos pontos de vistanão só da Comissão e do Estado demandado, mas também dos peticionários edos representantes legais das famílias das vítimas12 .

O campo estava aberto à modificação, neste particular, das disposi-ções pertinentes do Regulamento da Corte, sobretudo a partir dos de-senvolvimentos no procedimento no caso El Amparo. O próximo passo,decisivo, foi dado no novo Regulamento da Corte13 , adotado em16.09.1996 e vigente a partir de 01.01.1997, cujo artigo 23 dispõe que“na etapa de reparações, os representantes das vítimas ou de seus fami-liares poderão apresentar seus próprios argumentos e provas de formaautônoma”. Este passo significativo abre o caminho para desenvolvi-mentos subseqüentes na mesma direção, ou seja, de modo a assegurarque no futuro previsível os indivíduos tenham locus standi no procedi-mento ante a Corte não só na etapa de reparações como também na domérito dos casos a ela submetidos pela Comissão.

Seria irrealista e impraticável pretender que este objetivo se logrepor uma simples emenda a uma disposição da Convenção Americanasobre Direitos Humanos, como o artigo 61. A tarefa é bem mais com-

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plexa14 . Como tal disposição está inexoravelmente ligada a tantasoutras da Convenção (como os artigos 44 a 51 da Convenção), há queir muito mais além, e modificar toda a estrutura do mecanismo daConvenção, - como se acaba de lograr no sistema europeu de prote-ção. É este o caminho a ser seguido, o qual requer uma nova mentali-dade quanto à proteção dos direitos humanos nos planos internacio-nal e nacional.

3. O Direito Individual de Acesso Direto (JusStandi) aos Tribunais Internacionais de DireitosHumanos

São sólidos os argumentos que, em meu entendimento, militam emfavor do pronto reconhecimento do locus standi das supostas vítimas noprocedimento ante a Corte Interamericana em casos já enviados a estapela Comissão. Tais argumentos encontram-se desenvolvidos no curso queministrei na Sessão Externa (para a América Central) da Academia deDireito Internacional da Haia, realizada na Costa Rica em abril-maio de199515 , e que resumimos a seguir.

Em primeiro lugar, ao reconhecimento de direitos, nos planos tantonacional como internacional, corresponde a capacidade processual devindicá-los ou exercê-los. A proteção de direitos deve ser dotada do locusstandi in judicio das supostas vítimas (ou seus representantes legais),que contribui para melhor instruir o processo, e sem o qual estará esteúltimo desprovido em parte do elemento do contraditório (essencial nabusca da verdade e da justiça), ademais de irremediavelmente mitigadoe em flagrante desequilíbrio processual.

14. Como o demonstram os amplos debates correntes a respeito, com a participação de representantes dosórgãos internacionais de proteção, de governos, de organizações não-governamentais e de peritos. Cf., e.g.,IIDH, El Futuro del Sistema Interamericano de Protección de los Derechos Humanos (eds. J.E. Méndeze F. Cox), San José da Costa Rica, IIDH, 1998, pp. 17-603.

15. A.A. Cançado Trindade, “El Sistema Interamericano de Protección de los Derechos Humanos (1948-1995): Evolución, Estado Actual y Perspectivas”, in Derecho Internacional y Derechos Humanos / Droitinternational et droits de l’homme (eds. D. Bardonnet y A.A. Cançado Trindade), La Haye/San José deCosta Rica, Académie de Droit International de La Haye/IIDH, 1996, pp. 47-95, esp. pp. 81-89. Cf. osmesmos argumentos in A.A. Cançado Trindade, “Perfeccionamiento del Sistema Interamericano deProtección: Reflexiones y Recomendaciones De Lege Ferenda”, 4 Journal of Latin American Affairs (1996)pp.31-34.

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É da própria essência do contencioso internacional dos direitos huma-nos o contraditório entre as vítimas de violações e os Estados demanda-dos. Tal locus standi é a conseqüência lógica, no plano processual, de umsistema de proteção que consagra direitos individuais no plano internaci-onal, porquanto não é razoável conceber direitos sem a capacidade pro-cessual de vindicá-los. Ademais, o direito de livre expressão das supostasvítimas é elemento integrante do próprio devido processo legal, nos pla-nos tanto nacional como internacional.

Em segundo lugar, o direito de acesso à justiça internacional devefazer-se acompanhar da garantia da igualdade processual das partes(equality of arms/égalité des armes), essencial em todo sistemajurisdicional de proteção dos direitos humanos. Em terceiro lugar, emcasos de comprovadas violações de direitos humanos, são as próprias víti-mas - a verdadeira parte demandante ante a Corte - que recebem asreparações e indemnizações. Estando as vítimas presentes no início e nofinal do processo, não há sentido em negar-lhes presença durante o mes-mo.

A estas considerações de princípio se agregam outras, de ordem práti-ca, igualmente em favor da representação direta das vítimas ante a Cor-te, em casos já a ela submetidos pela Comissão. Os avanços neste sentidoconvêm não só às supostas vítimas, mas a todos: aos Estados demandados,na medida em que contribui a afastar definitivamente as tentações depolitização e a consolidar a jurisdicionalização do mecanismo de prote-ção16 ; à Corte, para ter melhor instruído o processo; e à Comissão, parapor fim à ambigüidade de seu papel17 , atendo-se à sua função própria deguardiã da aplicação correta e justa da Convenção (e não mais com afunção adicional de “intermediário” entre os indivíduos e a Corte). Osavanços nesta direção, na atual etapa de evolução do sistemainteramericano de proteção, são responsabilidade conjunta da Corte e daComissão.

16. Recorde-se que, sob a Convenção Européia de Direitos Humanos, já há algum tempo todos os EstadosPartes, sem exceção, reconhecem a competência obrigatória da Corte Européia de Direitos Humanos emmatéria contenciosa (sob o artigo 46).

17. Nos casos contenciosos, enquanto que na etapa anterior ante a Comissão as partes são os indivíduos reclaman-tes e os Estados demandados, ante a Corte comparecem a Comissão e os Estados demandados. Vê-se, assim, aComissão no papel ambíguo de ao mesmo tempo defender os interesses das supostas vítimas e defenderigualmente os “interesses públicos” como uma espécie de Ministério Público do sistema interamericano deproteção. Cabe evitar esta ambigüidade.

Direito e Democracia 17

Nos círculos jurídicos especializados em nosso continente ainda seexpressam dúvidas ou preocupações de ordem prática, como, e.g., a possi-bilidade de divergências entre os argumentos dos representantes das víti-mas e os delegados da Comissão no procedimento ante a Corte, e a faltade conhecimento especializado dos advogados em nossa região para assu-mir o papel e a responsabilidade de representantes legais das vítimas di-retamente ante a Corte. O que me parece realmente importante, para aoperação futura do mecanismo da Convenção Americana, é que tanto aComissão como os representantes das vítimas manifestem seus pontos devista, sejam eles coincidentes ou divergentes. A Comissão deve estar pre-parada para expressar sempre sua opinião ante a Corte, ainda que sejadiscordante da dos representantes das vítimas. A Corte deve estar prepa-rada para receber e avaliar os argumentos dos delegados da Comissão edos representantes das vítimas, ainda que sejam divergentes. Tudo istoajudaria a Corte a melhor formular seu próprio entendimento e a formarsua convicção em relação a cada caso concreto.

Para gradualmente superar a outra preocupação, relativa à supostafalta de expertise dos advogados dos países de nosso continente nocontencioso internacional dos direitos humanos, poder-se-iam prepararguias para orientação aos que participam nas audiências públicas ante aCorte Interamericana, divulgadas com a devida antecipação. Ignorantiajuris non curat; como o Direito Internacional dos Direitos Humanos édotado de especificidade própria, e de crescente complexidade, este pro-blema só será superado gradualmente, na medida em que se dê uma maisampla difusão aos procedimentos, e em que os advogados tenham maisoportunidades de familiarizar-se com os mecanismos de proteção. O quenão me parece razoável é tentar obstaculizar toda a evolução correnterumo à representação direta das vítimas em todo o procedimento perantea Corte Interamericana, com base em uma dificuldade que me pareceperfeitamente remediável ou superável.

A isto há que agregar que os avanços neste sentido (da representaçãodireta dos indivíduos), já consolidados no sistema europeu de proteção,hão de se lograr em nossa região mediante critérios e regras prévia e clara-mente definidos, com as necessárias adaptações às realidades da operaçãode nosso sistema interamericano de proteção. Isto requereria, e.g., a previ-são de assistência jurídica ex officio por parte da Comissão Interamericana,sempre que os indivíduos demandantes não estivessem em condições decontar com os serviços profissionais de um representante legal.

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Enfim, e voltando às considerações de princípio, somente mediante olocus standi in judicio das supostas vítimas ante os tribunais internacio-nais de direitos humanos se logrará a consolidação da plena personalida-de e capacidade jurídicas internacionais da pessoa humana (nos sistemasregionais de proteção), para fazer valer seus direitos, quando as instânci-as nacionais se mostrarem incapazes de assegurar a realização da justiça.O aperfeiçoamento do mecanismo de nosso sistema regional de proteçãodeve ser objeto de considerações de ordem essencialmente jurídico-hu-manitária, inclusive como garantia adicional às partes - tanto os indiví-duos demandantes como os Estados demandados - em casos contenciososde direitos humanos. Como adverti já há uma década em curso ministra-do na Academia de Direito Internacional da Haia, na Holanda, todojusinternacionalista, fiel às origens históricas de sua disciplina, saberácontribuir a resgatar a posição do ser humano no direito das gentes (droitdes gens), e a sustentar o reconhecimento e a cristalização de sua perso-nalidade e capacidade jurídicas internacionais18 .

A mesma advertência voltei a formular, recentemente, em Explica-ções de Votos nos casos Castillo Páez e Loayza Tamayo (exceções preli-minares, janeiro de 1996), relativos ao Peru, no sentido da necessidadede superar a capitis diminutio de que padecem os indivíduos peticioná-rios no sistema interamericano de proteção, em razão de consideraçõesdogmáticas próprias de outra época histórica que buscavam evitar seuacesso direto ao órgão judicial internacional. Tais considerações, agre-guei, mostram-se inteiramente sem sentido, ainda mais em se tratandode um tribunal internacional de direitos humanos. Propugnei, nestesmeus Votos, pela superação da concepção paternalista e anacrônica datotal intermediação da Comissão Interamericana de Direitos Humanosentre os indivíduos peticionários (a verdadeira parte demandante) e aCorte, de modo a conceder a estes últimos acesso direto à Corte19 .

18. A.A. Cançado Trindade, “Co-existence and Co-ordination of Mechanisms of International Protection ofHuman Rights (At Global and Regional Levels)”, 202 Recueil des Cours de l’Académie de DroitInternational de La Haye (1987) pp. 410-412.

19. Corte Interamericana de Direitos Humanos, caso Castillo Páez versus Peru (exceções preliminares),Julgamento de 30.01.1996, Explicação de Voto do Juiz A.A. Cançado Trindade, parágrafos 16-17; CorteInteramericana de Direitos Humanos, caso Loayza Tamayo versus Peru (exceções preliminares), Julga-mento de 31.01.1996, Explicação de Voto do Juiz A.A. Cançado Trindade, parágrafos 16-17; textos in:OEA, Informe Anual de la Corte Interamericana de Derechos Humanos 1996, pp. 56-57 e 72-73,respectivamente.

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O necessário reconhecimento do locus standi in judicio das supostasvítimas (ou seus representantes legais) ante a Corte Interamericana cons-titui, nesta linha de pensamento, um avanço dos mais importantes, masnão necessariamente a etapa final do aperfeiçoamento do sistemainteramericano de proteção, pelo menos tal como concebemos tal aper-feiçoamento. Na continuação desta evolução, a partir de tal locus standi,estamos empenhados todos os que, no sistema interamericano, comunga-mos do mesmo ideal, para lograr o reconhecimento futuro do direito deacesso direto dos indivíduos à Corte (jus standi), para submeter um casoconcreto diretamente a ela, prescindindo totalmente da Comissão paraisto. O dia em que o logremos, que sinceramente espero seja o mais rápi-do possível, - a exemplo da entrada em vigor iminente, em 01 de novem-bro de 1998, do Protocolo n. 11 à Convenção Européia de Direitos Huma-nos (supra), - teremos alcançado o ponto culminante, também em nossosistema interamericano de proteção, de um grande movimento de dimen-são universal a lograr o resgate do ser humano como sujeito do DireitoInternacional dos Direitos Humanos, dotado de plena capacidade jurídi-ca internacional.

III. COMPATIBILIZAÇÃO ENTRE ASJURISDIÇÕES INTERNACIONAL E NACIONALEM MATÉRIA DE DIREITOS HUMANOS

Os próprios tratados de direitos humanos têm sempre cuidado de pre-venir ou evitar conflitos entre as jurisdições internacional e interna, e decompatibilizar os dispositivos convencionais e de direito interno. No to-cante à admissibilidade de comunicações ou denúncias de violações dedireitos humanos, prevêem o requisito do prévio esgotamento dos recur-sos de direito interno. Na prática, o critério básico, na aplicação desterequisito, tem sido o da eficácia dos recursos internos. A jurisprudênciainternacional tem, assim, dispensado a regra do esgotamento em casos,e.g., de prática estatal, ou de negligência ou tolerância do poder público,ante violações dos direitos humanos.

O requisito em apreço reveste-se de um rationale próprio no contextoda proteção dos direitos humanos, em que o direito internacional e odireito interno se mostram em constante interação. Os recursos de direi-

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to interno integram, assim, a própria proteção internacional, e a ênfaserecai não em seu esgotamento mecânico pelos peticionários, mas na pre-venção de violações e na pronta reparação dos danos. Ao dever dos peti-cionários de esgotar os recursos de direito interno corresponde o deverdos Estados de prover recursos internos eficazes, como duas faces da mes-ma moeda20 . A correta aplicação deste requisito vincula-se à questãobásica do acesso direto dos indivíduos às instâncias legais internacionaispara perante elas fazer valer os seus direitos, sempre que as instânciasnacionais se mostrarem incapazes de garantir a realização da justiça.

Outra modalidade de prevenção de conflitos entre as jurisdições in-ternacional e nacional prevista pelos tratados de direitos humanos residenas chamadas cláusulas de derrogações. Os termos gerais com que foramestas redigidas têm requerido consideráveis esforços doutrinais, desen-volvidos nos últimos anos, no sentido de dar-lhes maior precisão, estabe-lecendo controles do poder público, de modo a assim evitar abusos (como,e.g., o prolongamento indefinido e patológico dos chamados estados deexceção, ou a suspensão indeterminada ou crônica do ejercício de direi-tos, entre outros). Os princípios afirmados na doutrina contemporâneasão, em resumo, os seguintes: o princípio da notificação (das derrogações)a todos os Estados Partes (nos tratados de direitos humanos, o princípioda proporcionalidade às exigências da situação, a consistência das medi-das tomadas com outras obrigações internacionais do Estado em questão,o princípio da não-discriminação, a não-derrogabilidade dos direitos fun-damentais em estados de emergência, o ônus da prova a recair no Estadoque busca justificar um estado de exceção.

Em quaisquer circunstâncias, subsiste a intangibilidade das garantias ju-diciais, tal como afirmado pela Corte Interamericana de Direitos Humanosem seus oitavo e nono Pareceres, ambos de 1987. Estes princípios já têm tidoaplicação na prática internacional nos últimos anos, o que é alentador. Dessemodo, com base tanto na doutrina como na jurisprudência contemporâneassobre a questão, tem-se buscado um tratamento adequado da matéria, demodo a evitar a repetição, no futuro, de violações de direitos humanos resul-tantes da invocação indevida de cláusulas de derrogações, ocorridas na his-tória recente de muitos países, inclusive de nossa região.

20. Para um estudo, cf. A.A. Cançado Trindade, O Esgotamento de Recursos Internos no Direito Interna-cional, 2a. ed., Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1997, pp. 1-327.

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Outra modalidade de prevenção de conflitos entre as jurisdições in-ternacional e nacional reside na possibilidade de recurso a reservas per-mitidas por alguns tratados de direitos humanos. Este é um dos pontosmais debatidos na doutrina contemporânea. Há mais de dez anos venhoalertando para a inadequação21 do sistema de reservas consagrado nasduas Convenções de Viena sobre Direito dos Tratados (de 1969 e 1986)para a aplicação dos tratados de direitos humanos, dotados de caráterespecial e especificidade própria. Nos últimos anos, os próprios órgãosconvencionais de proteção têm dado mostras de sua disposição de proce-der à determinação da compatibilidade ou não de certas reservas formu-ladas por Estados Partes a disposições dos respectivos tratados de direitoshumanos com o objeto e propósito dos mesmos.

A matéria encontra-se atualmente em exame na Comissão de DireitosHumanos das Nações Unidas. No meu entender, o presente sistema indi-vidualista, contratualista e fragmentador de reservas não se mostra emconformidade com a noção de garantia coletiva subjacente aos tratadosde direitos humanos, que incorporam obrigações de caráter objetivo trans-cendendo os compromissos recíprocos entre as Partes, e se voltam ao inte-resse comum superior da salvaguarda dos direitos do ser humano e nãodos direitos dos Estados. Impõe-se aqui, como sustentei em minhas Expli-cações de Voto no caso Blake versus Guatemala (Sentenças da CorteInteramericana de Direitos humanos sobre exceções preliminares, 1996,e sobre o mérito, 1998), a humanização do direito dos tratados.

Do exposto, vê-se que os próprios tratados de direitos humanos têmcuidado de compatibilizar as jurisdições internacional e nacional paralograr a realização de seu objeto e propósito. Enfim, no tocante àsrelações entre o direito internacional e o direito interno no presentecontexto, uma questão de grande atualidade, mormente em nosso

21. Cf. A.A. Cançado Trindade, “Co-existence and Co-ordination of Mechanisms of International Protectionof Human Rights (At Global and Regional Levels”, 202 Recueil des Cours de l’Académie de DroitInternacional - The Hague (1987) pp. 180-189; A.A. Cançado Trindade, “Direitos e Garantias Individuaisno Plano Internacional”, in Assembléia Nacional Constituinte - Atas das Comissões, vol. I, n. 66 (supl.),Brasília, 27.05.1987, p. 110; A.A. Cançado Trindade, “The Interpretation of the International Law ofHuman Rights by the Two Regional Human Rights Courts”, Contemporary International Law Issues:Conflicts and Convergence (Proceedings of the III Hague Conference, July 1995), The Hague, ASIL/NVIR, 1996, pp. 157-162 e 166-167; A.A. Cançado Trindade, “La Protección de los Derechos Humanos enel Sistema de la Organización de los Estados Americanos y el Derecho Interno de los Estados”, ProtecciónInternacional de los Derechos Humanos de las Mujeres (Actas del I Curso Taller, San José de Costa Rica,Julio de 1996), San José de Costa Rica, IIDH, 1997, pp. 109-124, 129-139 e 140-147.

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continente, diz respeito à execução de sentenças dos tribunais inter-nacionais de direitos humanos. A questão encontra-se diretamenterelacionada à aplicação eficaz das Convenções Européia e Americanasobre Direitos Humanos, - os dois únicos tratados de direitos humanosdotados, até o presente (início de 1998), de tribunais internacionais(as Cortes Européia e Interamericana de Direitos Humanos), - no âmbitodo direito interno dos Estados Partes.

A Convenção Européia conta com o concurso do Comitê de Ministros,que zela pela execução das sentenças da Corte Européia (artigo 54). AConvenção Americana, - que não conta com mecanismo semelhante, -dispõe que a parte das sentenças da Corte Interamericana atinente aindenizações pode ser executada no país respectivo pelo processo internovigente para a execução de sentenças contra o Estado (artigo 68(2)).Acrescenta a Convenção Americana que os Estados Partes se comprome-tem a cumprir a decisão da Corte Interamericana em todo caso contenciosoem que sejam partes (artigo 68(1) da Convenção). Por conseguinte, seum Estado Parte na Convenção Européia ou na Convenção Americanadeixa de executar uma sentença da Corte Européia ou da CorteInteramericana, respectivamente, no âmbito de seu ordenamento jurídi-co interno, está incorrendo em uma violação adicional da Convençãoregional respectiva. Acresce a obrigação geral (do artigo 2 da ConvençãoAmericana) de adequação do direito interno à normativa de proteção daConvenção.

A experiência da Corte Européia registra numerosos casos de execu-ção de suas sentenças pelos Estados Partes na Convenção Européia, aolongo de muitos anos, para o que tem contado com o concurso da super-visão do Comitê de Ministros (artigo 54 da Convenção), um órgão decomposição política. A experiência da Corte Interamericana - que nãoconta com o concurso de órgão congênere - é ainda relativamente recen-te, e também positiva, porquanto suas sentenças têm sido normalmentecumpridas. As dificuldades temporárias surgidas em quatro casos até opresente, que levaram à aplicação pela Corte, em seus Relatórios Anu-ais, da sanção prevista no artigo 65 da Convenção Americana22 , encon-tram-se já todas remediadas e superadas. Não obstante, urge que os Esta-dos Partes na Convenção Americana se equipem devidamente, no âmbi-

22. Casos Velásquez Rodríguez, Godínez Cruz, Gangaram Panday e Neira Alegría.

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to de seu direito interno, para dar fiel e pleno cumprimento às sentençasda Corte Interamericana à luz do artigo 68(1) da Convenção. Não creioque um órgão de composição política - como o Comitê de Ministros nosistema europeu de proteção - seja o mais adequado para zelar pela exe-cução das sentenças da Corte Interamericana. Daí a importância cres-cente, em nosso sistema regional, das medidas que neste propósito ve-nham a adotar os Estados Partes na Convenção Americana.

Entre estes, há os que, como Colômbia e Peru, adotaram instrumentoslegislativos naquele propósito. Assim, e.g., na Colômbia, a Lei 288 de1996 estabelece um mecanismo para as indenizações às vítimas de viola-ções de direitos humanos consoante o disposto por dois órgãos de prote-ção internacional, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e oComitê de Direitos Humanos sob o Pacto de Direitos Civis e Políticos.Inexplicavelmente, a referida lei colombiana se refere expressamente so-mente a estes dois órgãos (que, aliás, não proferem sentenças), e se omiteem relação às sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos.A questão permanece, assim, em aberto. A mencionada lei cria um Co-mitê de Ministros23 , encarregado de determinar o cumprimento das deci-sões dos órgãos supracitados de proteção internacional24 .

O outro exemplo é fornecido pela Lei de Habeas Corpus e Amparodo Peru, de 1982, que atribui ao órgão judiciário supremo do ordenamentointerno (a Corte Suprema de Justiça) a faculdade de dispor sobre a exe-cução e o cumprimento das decisões de órgãos de proteção internacionala cuja jurisdição se tiver submetido o Peru, “de conformidade com asnormas e procedimentos internos vigentes sobre execução de sentenças”(artigo 40). O artigo 39 da referida Lei menciona alguns destes órgãos,mas não se trata de uma cláusula fechada, pois agrega “outros que seconstituam no futuro”; a Corte Interamericana encontra-se, pois, aí in-cluída, ainda que não expressamente mencionada25 . O artigo 40 acres-

23. Composto, segundo o artigo 2, pelos Ministros do Interior, das Relações Exteriores, da Justiça e da DefesaNacional.

24. Cf. texto da Lei 288 de 1996 in: República de Colombia, Diario Oficial, Santa Fé de Bogotá, 09.07.1996, pp.1-2; o Regulamento Interno do Comitê de Ministros foi adotado pelo Acuerdo n. 01, de 09.09.1996.

25. A presente disposição, igual que a colombiana equivalente (supra), menciona expressamente o Comitê deDireitos Humanos e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a título de exemplos. Cf. texto da Leiperuana de Habeas Corpus e Amparo (de 1982), in: Diario Oficial El Peruano - Normas Legales, Lima,08.12.1982, pp. 11889-11893.

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centa significativamente que a Corte Suprema de Justiça recepcionará asdecisões dos órgãos de proteção internacional, sem que se requeira reco-nhecimento, revisão e tampouco exame prévio algum para sua validade eeficácia.

Recentemente, na Argentina, concluiu-se um Projeto de Lei, já submeti-do à consideração do Congresso Nacional, no propósito de “regulamentar aConvenção Americana sobre Direitos Humanos”, como o indica a Exposiçãode Motivos26 . O Projeto de Lei argentino, que se inspira no modelo colombi-ano, também cria um Comitê de Ministros (artigo 2(b)), que determina sobreo cumprimento de uma recomendação da Comissão Interamericana de Di-reitos Humanos. Caso haja alguma divergência na consideração da matéria,esta deve ser submetida à Corte Interamericana de Direitos Humanos, paraa “decisão definitiva da mesma” (artigo 4).

Estes são exemplos de passos legislativos iniciais, tomados por poucosEstados Partes na Convenção Americana até o presente, no propósito deassegurar o seu fiel cumprimento no plano do direito interno. É de seesperar que todos os Estados Partes busquem equipar-se para assegurar afiel execução das sentenças da Corte Interamericana. Por enquanto, oalentador índice de cumprimento - caso por caso - de todas as sentençasda Corte Interamericana até o presente se deve sobretudo à boa fé elealdade processual com que neste particular os Estados demandados têmacatado as referidas sentenças, também contribuindo desse modo à con-solidação do sistema regional de proteção.

Mas não se pode daí inferir que a execução de tais sentenças esteja legal-mente assegurada, no âmbito de seu ordenamento jurídico interno. Exceto asraras iniciativas acima mencionadas, a grande maioria dos Estados Partes naConvenção Americana ainda não tomou qualquer providência, legislativaou de outra natureza, nesse sentido. Por conseguinte, as vítimas de violaçõesde direitos humanos, em cujo favor tenha a Corte Interamericana declaradoum direito - quanto ao mérito do caso, ou reparações lato sensu, - ainda nãotêm inteira e legalmente assegurada a execução das sentenças respectivas noâmbito do direito interno dos Estados demandados. Cumpre remediar pron-tamente esta situação.

26. Reproduzida, juntamente com o Projeto de Lei, in: O.L. Fappiano, “La Ejecución de las Decisiones deTribunales Internacionales por Parte de los Órganos Locales”, in La Aplicación de los Tratados sobreDerechos Humanos por los Tribunales Locales (eds. M. Abregú e Ch. Courtis), Buenos Aires, CELS,1997, pp. 153-157.

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IV. O AMPLO ALCANCE DAS OBRIGAÇÕESCONVENCIONAIS DE PROTEÇÃO: ASOBRIGAÇÕES EXECUTIVAS, LEGISLATIVAS EJUDICIAIS DOS ESTADOS

Apesar de toda a atenção dispensada pelos próprios órgãos de supervisãointernacional de direitos humanos à questão central das relações entre osordenamentos jurídicos internacional e interno na proteção dos direitos hu-manos, persistem aqui curiosamente incertezas e uma falta de clarezaconceitual. Como neste final de século o que se requer mais que tudo é umamudança de mentalidade, cabe, neste propósito, ter sempre presente que asdisposições dos tratados de direitos humanos vinculam não só os governos(como equivocada e comumente se supõe), mas, mais do que isto, os Estados(todos os seus poderes, órgãos e agentes); é chegado o tempo de precisar, porconseguinte, o alcance não só das obrigações executivas, mas também dasobrigações legislativas e judiciais, dos Estados Partes nos tratados de direi-tos humanos.

Há muito venho chamando a atenção para este ponto básico, não sóem minha atuação no plano internacional, como também em conferênci-as recentes que tenho proferido em nosso país (e.g., na Universidade doEstado do Rio de Janeiro (UERJ)27 , no Superior Tribunal de Justiça28 , noConselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)29 , no Insti-tuto Brasileiro de Direitos Humanos30 , na Associação dos Juízes do RioGrande do Sul (AJURIS)31 , e nesta mesma Comissão de Direitos Huma-nos da Câmara dos Deputados32 ). Há que ter sempre presente que a ope-

27. Na abertura do VI Seminário Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI), no Audi-tório da UERJ, no Rio de Janeiro, em 20 de outubro de 1997.

28. Por ocasião do I Encontro Brasília-Lisboa, no Auditório do Superior Tribunal de Justiça, em Brasília, em24 de outubro de 1997.

29. Na abertura da sessão solene do Conselho Federal da OAB, em sua sede em Brasília, em 09 de dezembrode 1997, em comemoração do Dia Mundial dos Direitos Humanos.

30. Na abertura da sessão solene da instalação do Instituto, em Fortaleza, em 11 de agosto de 1997.

31. Por ocasião do I Seminário sobre o Poder Judiciário e os Direitos Humanos no Rio Grande do Sul, noAuditório da UNISINOS, em São Leopoldo (RGS), em 25 de abril de 1997.

32. Na abertura do já mencionado Encontro Internacional preparatório das comemorações do cinqüentenáriodas Declarações Universal e Americana de Direitos Humanos no Brasil, realizado em Brasília, no Audi-tório Nereu Ramos da Câmara dos Deputados, em 03 de dezembro de 1997.

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ração dos mecanismos internacionais de proteção não pode prescindir daadoção e do aperfeiçoamento das medidas nacionais de implementação,porquanto destas últimas - estou convencido - depende em grande partea evolução futura da própria proteção internacional dos direitos huma-nos. A ênfase em tais medidas nacionais se dá, não obstante, sem prejuízoda preservação dos padrões internacionais de proteção.

Seria incorreto, por exemplo, visualizar os órgãos convencionais inter-nacionais de proteção dos direitos humanos como instâncias de revisão,por exemplo, de decisões de tribunais nacionais; disto não se trata. Noentanto, tais órgãos internacionais podem, e devem, no contexto de ca-sos concretos de violações de direitos humanos, determinar a compatibi-lidade ou não com os respectivos tratados de direitos humanos, de qual-quer ato ou omissão por parte de qualquer poder ou órgão ou agente doEstado, - inclusive leis nacionais e sentenças de tribunais nacionais.Trata-se de um princípio básico do direito da responsabilidade internaci-onal do Estado, aplicado no presente domínio de proteção dos direitoshumanos.

A questão se situa em um problema de maior dimensão, no qual mepermito insistir: o da falta de uma clara compreensão, que a meu vercontinua a existir, neste final de século, na maioria dos países, quanto aoalcance das obrigações convencionais de proteção. O recurso a doutrinasou fórmulas que na realidade não servem ao propósito de fortalecer aproteção dos direitos humanos, e que se mostram desprovidas de conteú-do, tem contribuído à perpetuação de uma falta de clareza quanto aoamplo alcance dos deveres convencionais de proteção dos direitos huma-nos. Uma nova mentalidade é o de que mais se necessita. Temos queproteger nosso labor de proteção dos efeitos negativos do recurso a pala-vras ou conceitos vazios.

No dia em que prevalecer uma clara compreensão do amplo alcancedas obrigações internacionais de proteção, haverá uma mudança dementalidade, que, por sua vez, fomentará novos avanços neste domíniode proteção. Enquanto perdurar a atual mentalidade, conceitualmenteconfusa e portanto defensiva e insegura, persistirão as deferênciasindevidas ao direito interno, cujas insuficiências e deficiências ironica-mente requerem a operação dos mecanismos de proteção internacional.A aplicação da normativa internacional tem o propósito de aperfeiçoar,e não de desafiar, a normativa interna, em benefício dos seres humanosprotegidos.

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1. As Obrigações Executivas dos Estados Partes nosTratados de Direitos Humanos

Voltemos nossas reflexões, por alguns momentos, às obrigações execu-tivas, legislativas e judiciais dos Estados Partes nos tratados de direitoshumanos. De início, cabe ter presente que, a par das obrigações específi-cas em relação a cada um dos direitos protegidos, os Estados Partes con-traem a obrigação geral de organizar o poder público para garantir a todasas pessoas sob sua jurisdição o livre e pleno exercício de tais direitos. Aaceitação dos tratados de proteção internacional pelos Estados Partesimplica o reconhecimento da premissa básica, subjacente a estes últimos,de que a tarefa de proteção dos direitos humanos não se esgota - nãopode se esgotar - na ação do Estado.

No tocante a nosso país, no final da década passada o Brasil já setornara Parte em diversos tratados de proteção “setorial” ou particulariza-da dos direitos humanos, mas persistia uma lacuna quanto a três tratadosgerais de proteção, - os dois Pactos de Direitos Humanos das NaçõesUnidas e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, - a despeitoda decisão de adesão a esses instrumentos tomada já em 198533 (supra).Tal decisão veio a ser consumada, sete anos depois, em 1992.

A demora em efetuar a adesão do Brasil àqueles três tratados geraisde proteção levou o então Consultor Jurídico do Ministério das RelaçõesExteriores a emitir um extenso Parecer, de 18 de outubro de 1989, sobre aforma ou modalidade de tal adesão, no qual acrescentou outros dados, -que continuam a revestir-se de atualidade, - a título de providênciasadicionais que recomendava fossem prontamente tomadas pelo Brasil,relativas a instrumentos e cláusulas facultativos, com vistas à plenitudedo alinhamento à causa da proteção internacional dos direitos humanos.

Suas recomendações, fundamentadas no citado Parecer, foram as se-guintes: além da adesão aos três tratados gerais de proteção supracitados,a adesão ao [primeiro] Protocolo Facultativo do Pacto de Direitos Civis ePolíticos das Nações Unidas (reconhecimento do Comitê de Direitos Hu-manos para receber e examinar petições ou comunicações individuais),

33. Com base em extenso Parecer, de 16.08.1985, do então Consultor Jurídico do Itamaraty. Tal como assinaladonaquele Parecer, tal decisão poderia ter sido tomada inclusive anos antes, porquanto não havia, como nuncahouve, impedimentos ou argumentos de cunho verdadeiramente jurídico que pudessem justificar ou expli-car a posição estática e mecânica de não-adesão do Brasil àqueles tratados gerais de direitos humanos.

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aos dois Protocolos Adicionais de 1977 às Convenções de Genebra de1949 sobre Direito Internacional Humanitário, às duas Convenções daNações Unidas contra o Apartheid (de 1973 e l985), à Convenção (n.87) da OIT sobre a Liberdade Sindical de 1948 (a Convenção básica daOIT de garantia de um dos direitos humanos fundamentais, pendente deaprovação parlamentar desde 1949), ao Protocolo Adicional à Conven-ção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econô-micos, Sociais e Culturais de 1988; além disso, as declarações de reco-nhecimento das competências do Comitê de Direitos Humanos para re-ceber e examinar petições ou comunicações interestatais (artigo 41 doPacto de Direitos Civis e Políticos), do Comitê para a Eliminação da Dis-criminação Racial (CERD) para receber e examinar comunicações indi-viduais (artigo 14 da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formasde Discriminação Racial), da Comissão Interamericana de Direitos Hu-manos para receber e examinar petições ou comunicações interestatais(artigo 45 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos), da CorteInteramericana de Direitos Humanos (reconhecimento de sua compe-tência obrigatória em matéria contenciosa, sob o artigo 62 da ConvençãoAmericana), do Comitê contra a Tortura para receber e examinar peti-ções ou comunicações individuais (artigo 22 da Convenção das NaçõesUnidas contra a Tortura) e interestatais (artigo 21 da mesma Conven-ção); e, enfim, o levantamento das reservas a alguns artigos (15(4);16(1)(a),(c), (g) e (h); e 29(1)) da Convenção da Nações Unidas sobre aEliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher de1979; e o levantamento da reserva geográfica sob o artigo 1(B)(1) daConvenção de Genebra de 1951 relativa ao Estatuto dos Refugiados34

(reiterando o recomendado em Parecer anterior, de 19.05.1986) .

Como observou o Parecer supracitado de 18.10.1989, a aceitação peloBrasil de instrumentos e cláusulas facultativos de tratados de direitoshumanos havia que se dar “necessariamente de forma integral”: as provi-dências supracitadas correspondiam ao “reconhecimento da anteriorida-de dos direitos humanos face ao direito estatal, e da confluência e iden-tidade de objetivos do direito internacional e do direito público inter-no quanto à proteção da pessoa humana (...)”35 . À medida em que o

34. Parecer MRE-CJ/185, de 18.10.1989, reproduzido in: A.A. Cançado Trindade, A Proteção Internacionaldos Direitos Humanos - Fundamentos Jurídicos e Instrumentos Básicos, São Paulo, Ed. Saraiva, 1991,pp. 573-638.’

35. Ibid., p. 638 (ênfase acrescentada).

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Brasil tomasse estas providências, estaria dando mostras de que continu-ava se orientando no sentido de buscar a plenitude da proteção interna-cional como garantia adicional dos direitos humanos. Adviriam por certoobrigações que se somariam às já contraídas, particularmente no tocanteà elaboração de relatórios periódicos e de respostas a eventuais denúnci-as sob os instrumentos internacionais de proteção. Haveria certamenteque voltar as atenções às medidas nacionais de implementação dos ins-trumentos internacionais, - preocupação corrente também nos foros in-ternacionais.

Tais medidas passariam a requerer por vezes a adoção, ou a reforma,da legislação nacional, com vistas a compatibilizá-la ou harmonizá-la comas obrigações convencionais. Persistia, neste particular, uma diversidadede situações, ilustrada pelos tratados de proteção recém-ratificados, unsjá regulamentados em nível do direito interno (como a Convenção sobreos Direitos da Criança de 1989), e outros que continuariam a aguardarregulamentação no país (como as duas Convenções - a das Nações Uni-das e a Interamericana -contra a Tortura) até o ano de 1997.

Nos últimos oito anos, algumas das recomendações contidas no men-cionado Parecer de 18.10.1989 foram acatadas, outras ainda não. Tives-sem sido seguidas plenamente todas aquelas recomendações, as adesõesdo Brasil a tratados gerais de proteção como a Convenção Americanasobre Direitos Humanos e o Pacto de Direitos Civis e Políticos teriamabarcado igualmente a aceitação, pelo Brasil, respectivamente, da com-petência obrigatória em matéria contenciosa da Corte Interamericana deDireitos Humanos (artigo 62 da Convenção Americana sobre DireitosHumanos) assim como da competência do Comitê de Direitos Humanosdas Nações Unidas para receber e examinar petições ou comunicaçõesindividuais (sob o [primeiro] Protocolo Facultativo ao Pacto de Direitosde Direitos Civis e Políticos). Além disso, Estado Parte também na Con-venção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial ena Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentosou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, teria o Brasil já aceito, soba primeira (artigo 14) e a segunda (artigo 22) Convenções, as competên-cias do Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial (CERD) e doComitê contra a Tortura (CAT), respectivamente, para receber e exami-nar petições ou comunicações individuais.

Surpreende que, decorrido todo este tempo, não tenha ainda o Brasilaceito tais cláusulas ou instrumentos facultativos. Isto significa que, no

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tocante, por exemplo, aos quatro importantes tratados de direitos huma-nos supracitados, nos planos global e regional, o Brasil aceita as obriga-ções convencionais substantivas contraídas em relação aos direitosprotegidos, mas não se submete integralmente, até o presente, aosmecanismos de supervisão ou controle internacional do cumprimentode tais obrigações.

Urge que o Brasil reconsidere sua atual posição acerca das competên-cias dos órgãos internacionais convencionais de proteção dos direitoshumanos, aceitando-as integralmente, e dando assim outro salto qualita-tivo, no sentido de proporcionar desse modo uma garantia adicional deproteção a todas as pessoas sob sua jurisdição. Não há forma mais concre-ta de o país demonstrar seu compromisso sincero com a causa da proteçãointernacional do que a aceitação das mencionadas competências. Assimagindo, imbuído de nova mentalidade, estará dando mostras do senti-mento de solidariedade humana que a livre aceitação de tais mecanis-mos de proteção requer, e sem o qual pouco se poderá continuar a avan-çar na salvaguarda internacional dos direitos humanos.

Apesar de todos os percalços, e sem prejuízo de iniciativas como as aci-ma propostas, que ainda há que tomar, têm-se registrado avanços na postu-ra do Brasil nos últimos anos, sobretudo em relação aos instrumentos inter-nacionais de proteção particularizada36 . No plano regional, em 27.11.1995,o Brasil ratificou a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicara Violência contra a Mulher (adotada na Assembléia Geral da OEA, rea-lizada em Belém do Pará, em 1994)37 . Em agosto de 1996, tomou o Brasil adecisão positiva de tornar-se Parte nos dois Protocolos à Convenção Ame-ricana sobre Direitos Humanos, o primeiro (de 1988) sobre Direitos Econô-micos, Sociais e Culturais, e o segundo (de 1990) referente à Abolição daPena de Morte. E cabe ressaltar que o Brasil encontra-se hoje vinculadopor todo o corpus juris tanto do Direito Internacional Humanitário como

36. Não é mera casualidade que, às vésperas da Conferência Mundial de Viena, a Exposição de Motivos n.180 do MRE, de 31.05.1993, tomou a iniciativa positiva de propor ao Presidente da República o levanta-mento de reservas formuladas pelo Brasil à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discri-minação contra a Mulher (Quando de sua ratificação, em 01.02.1984; cf. a anterior Exposição de Motivosdo MRE de 09.07.1982, pp. 1-3), em particular, as reservas aos artigos 15(4) e 16(1)(a)(c)(g) e (h) daConvenção (tal como preconizado pelo então Parecer de 18.10.1989 - cit. supra).

37. A outra Convenção adotada na mesma Assembléia Geral da OEA de 1994, a Convenção Interamericanasobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas (assinada pelo Brasil em 10.06.1994), ainda não teve a mesmasorte, no sentido de sua ratificação pelo Brasil: continua em lenta tramitação no Congresso Nacional,aguardando a aprovação deste para a posterior ratificação pelo Executivo.

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do Direito Internacional dos Refugiados, o que é alentador. Há igualmenteque se fazer referência, no plano interno, à ação de coordenação, sem pre-cedentes, hoje empreendida pela Secretaria Nacional de Direitos Huma-nos, e à mobilização e concerto, intensificados nos últimos anos, das organi-zações não-governamentais, muitas das quais hoje aqui presentes, nesta IIIConferência Nacional de Direitos Humanos.

A grande lacuna a ser suprida refere-se, pois, à aceitação pelo Brasil dascompetências em matéria contenciosa dos órgãos convencionais de proteçãoestabelecidos pelos tratados de direitos humanos em que é Parte. No tocanteà Corte Interamericana de Direitos Humanos, em particular, sua posição re-ticente é ainda mais surpreendente, porquanto a criação da Corte foi origi-nalmente proposta na Conferência de Bogotá de 1948, precisamente pelaDelegação do Brasil. Permito-me, a seguir, resumir os argumentos que, emtantas outras ocasiões, tenho avançado, em favor da aceitação incondicionalpelo Brasil da competência obrigatória da Corte Interamericana (sob o artigo62 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos):

• primeiro, o reconhecimento da jurisdição em matéria contenciosa da Cor-te Interamericana de Direitos Humanos constituiria uma garantia adicio-nal pelo Brasil, a todas as pessoas sujeitas a sua jurisdição, da proteção deseus direitos, tais como consagrados na Convenção Americana sobre Di-reitos Humanos, quando as instâncias nacionais não se mostrarem capazesde garanti-los e de assegurar com isto a realização da justiça;

• segundo, tal reconhecimento projetaria no plano internacional o compro-misso sincero do Brasil com a causa da salvaguarda dos direitos humanos,e em muito fortaleceria a posição da própria Corte Interamericana, aopassar a contar esta com o apoio de um país de dimensão continental ecom uma vasta população, necessitada de maior proteção de seus direitos;

• terceiro, a Constituição Brasileira vigente, de 1988, curiosamentepropugna (artigo 7 das disposições transitórias finais) pela formação deum tribunal internacional dos direitos humanos, - tribunal este que,por sinal, já existe e opera regularmente há quase vinte anos: a própriaCorte Interamericana de Direitos Humanos, - cuja criação foi propostana IX Conferência Internacional Americana (em Bogotá, 1948) preci-samente pela Delegação do Brasil;

• quarto, o Brasil participou efetivamente dos trabalhos preparatórios daConvenção Americana sobre Direitos Humanos e apoiou a sua adoção

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- na Conferência de San José de 1969, - de forma integral, inclusivequanto a seus instrumentos e cláusulas facultativos (como a do artigo62, sobre a aceitação pelos Estados Partes da jurisdição obrigatória daCorte Interamericana em matéria contenciosa);

• quinto, o reconhecimento da jurisdição obrigatória da CorteInteramericana estaria de acordo com a mais lúcida doutrina publicistae jusinternacionalista brasileira;

• sexto, tal reconhecimento geraria um interesse bem maior, em particu-lar por parte das novas gerações, pelo estudo e difusão da jurisprudên-cia da Corte Interamericana (e de outros órgãos de proteção internaci-onal dos direitos humanos), que continua virtualmente desconhecidaem nosso país;

• sétimo, ao longo dos anos, o Brasil adquiriu experiência no diálogocom outros órgãos de supervisão internacional dos direitos humanos,de base tanto convencional como extra-convencional, que pode ser-lhe de valia no contencioso de direitos humanos perante a CorteInteramericana;

• oitavo, os órgãos de base convencional, como a Corte Interamericanade Direitos Humanos, têm um mandato concreto, fundamentado nopróprio tratado de direitos humanos em questão, e baseiam suas deci-sões em regras de direito (distintamente dos órgãos de composição po-lítica); a via jurisdicional representa a forma mais evoluída de prote-ção internacional dos direitos humanos;

• nono, não é razoável aceitar tão somente as normas substantivas dostratados de direitos humanos, e deixar de aceitar os mecanismos pro-cessuais para a vindicação e proteção dos direitos consagrados nestesmesmos tratados;

• e décimo, há uma interação entre o direito internacional e o direitointerno no presente contexto de proteção, e as jurisdições internacionale nacional, motivadas pelo propósito convergente e comum de proteçãodo ser humano, são aqui co-partícipes na luta contra as manifestaçõesdo poder arbitrário e contra a impunidade.

Sobre este último ponto me permito acrescentar uma reflexão: podeperfeitamente ocorrer, como na prática tem efetivamente ocorrido, queas instâncias nacionais necessitem a cooperação das instâncias internaci-

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onais para os problemas de direitos humanos que não conseguem resolver.Ilustram-no dois importantes casos decididos pela Corte Interamericanade Direitos Humanos no ano passado. Um mês depois da sentença desta(de 17.09.1997) no caso Loayza Tamayo, o Peru acatou a ordem da CorteInteramericana de libertar a prisioneira María Elena Loayza Tamayo, de-tida sob a legislação anti-terrorista; pouco depois, anunciou sua decisãode extinguir os chamados “tribunais sem rosto” no país. Este é um casosem precedentes, em que uma prisioneira com base na legislação anti-terrorista foi libertada por determinação de um tribunal internacional dedireitos humanos. Igualmente, pouco mais de um mês após a sentença daCorte Interamericana (de 12.11.1997) no caso Suárez Rosero, a CorteSuprema do Equador decidiu declarar a inconstitucionalidade de umadisposição da legislação penal anti-drogas, para tal invocando a referidasentença da Corte Interamericana. Este é outro caso sem precedentes naAmérica Latina, em que a Corte Suprema de um país se respalda nasentença de um tribunal internacional de direitos humanos.

Os julgamentos da Corte Interamericana nos citados casos LoayzaTamayo versus Peru e Suárez Rosero versus Equador prenunciam a che-gada de novos tempos na América Latina, no tocante à proteção dos direi-tos humanos nos planos a um tempo internacional e nacional; pelo imedia-to impacto que tiveram no direito interno dos respectivos países, já fazemparte da história contemporânea da proteção internacional dos direitoshumanos em nosso continente. Com base em minha própria experiência,posso afirmar que as instâncias internacionais de proteção têm se mostradovaliosas na luta contra a impunidade, verdadeira chaga que corrói a cren-ça nas instituições públicas e gera a anomia e apatia sociais. Muitos casosde direitos humanos, na verdade, só têm sido resolvidos graças ao concursodas instâncias internacionais de proteção, e este é um argumento de parti-cular importância e grande peso, que vem ao encontro da realização dospropósitos das p_óprias instituições públicas de todos os países.

Seria auspicioso se, por ocasião deste cinqüentenário das DeclaraçõesUniversal e Americana de Direitos Humanos, e de suas comemoraçõesque já se multiplicam em nosso país, assim como do cinqüentenário daproposta do Brasil na Conferência de Bogotá de 1948 de criação de umaCorte Interamericana de Direitos Humanos, viesse o Brasil, - como já hátempos vivamente espero, - imbuído de nova mentalidade, a dar o saltoqualitativo de reconhecer incondicionalmente a jurisdição obrigatóriada Corte Interamericana em matéria contenciosa (artigo 62 da Conven-

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ção Americana). As gerações presentes e futuras de brasileiros hão deficar reconhecidas por esta decisão.

A par deste reconhecimento, é de se esperar que o Brasil, paralela eadicionalmente, faça o mais amplo uso da via consultiva, sob o artigo 64da Convenção Americana. A base jurisdicional consultiva da CorteInteramericana é particularmente ampla; sua amplitude, na verdade, nãotem precedentes, bastando compará-la com as correspondentes de outrostribunais internacionais. A da Corte Interamericana se encontra aberta,como sempre esteve, a todos os Estados membros assim como aos órgãosprincipais da Organização dos Estados Americanos (OEA).

Tentar mesclar ou confundir as funções contenciosa e consultiva daCorte Interamericana seria revelar pouca familiaridade com a matéria:uma e outra repousam em bases jurisdicionais inteiramente distintas. Tantoé assim que a via consultiva está aberta a todos os Estados membros daOEA, sejam ou não Partes na Convenção Americana, e aos órgãos daOEA enumerados no capítulo X de sua Carta, - sendo pois dotada deuma amplitude sem paralelo. A Corte Interamericana vem de esclarecera diferença básica entre suas funções contenciosa e consultiva em seudécimo-quinto Parecer sobre os Relatórios da Comissão Interamericanade Direitos Humanos, de 14.11.1997, com o sólido respaldo de amplajurisprudência internacional sobre a matéria, como o demonstrei em meulongo Voto Concordante neste recente Parecer da Corte Interamericana.

Pode perfeitamente o Brasil, portanto, a qualquer momento, paralelae adicionalmente à aceitação da jurisdição contenciosa da Corte, formu-lar a esta pedidos de Pareceres sobre a interpretação da Convenção Ame-ricana ou de outros tratados concernentes à proteção dos direitos huma-nos nos Estados americanos. É o que, a meu ver, deveria prontamentefazer, ou inclusive já ter feito, porquanto tais Pareceres podem inclusiveajudar o país nos esforços empreendidos em prol da proteção dos direitoshumanos no âmbito de seu ordenamento jurídico interno.

2. As Obrigações Legislativas dos Estados Partesnos Tratados de Direitos Humanos

Ao ratificar os tratados de direitos humanos, os Estados Partes contra-em, a par das obrigações específicas relativas a cada um dos direitos pro-

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tegidos, a obrigação geral de adequar seu ordenamento jurídico internoàs normas internacionais de proteção. As duas Convenções de Viena so-bre Direito dos Tratados (de 1969 e 1986, respectivamente) proíbem (ar-tigo 27) que uma Parte invoque disposições de seu direito interno paratentar justificar o descumprimento de um tratado. É este um preceito,mais do que do direito dos tratados, do direito da responsabilidade inter-nacional do Estado, firmemente cristalizado na jurisprudência internaci-onal. Segundo esta, as supostas ou alegadas dificuldades de ordem inter-na são um simples fato, e não eximem os Estados Partes em tratados dedireitos humanos da responsabilidade internacional pelo não-cumprimentodas obrigações internacionais contraídas.

A interpretação das leis nacionais de modo a que não entrem em con-flito com a normativa internacional de proteção seria um meio de evitar odescumprimento daquelas obrigações internacionais. Os tratados, umavez ratificados e incorporados ao direito interno, obrigam a todos, inclusi-ve aos legisladores, podendo-se, pois, presumir o propósito de cumpri-mento de tais obrigações de proteção por parte do Poder Legislativo (damesma forma que dos Poderes Executivo e Judiciário). Em matéria dedireitos humanos, isto implica o dever geral de adequação do direito in-terno à normativa internacional de proteção (seja regulamentando ostratados para assegurar-lhes eficácia no direito interno, seja alterando asleis nacionais para harmonizá-las com as disposições convencionais inter-nacionais), - dever este que se encontra expressamente consignado nostratados de direitos humanos (a exemplo do artigo 2 da Convenção Ame-ricana sobre Direitos Humanos). Em virtude do caráter especial dos tra-tados de direitos humanos, impõe-se, com ainda maior força, a adequa-ção do ordenamento jurídico interno às disposições convencionais.

Uma das formas mais concretas de medição da eficácia de um tratadode direitos humanos reside em seu impacto no direito interno dos EstadosPartes, constatado através de reformas legislativas resultantes das deci-sões dos órgãos internacionais de proteção, e conducentes à adequaçãodas leis nacionais às obrigações convencionais internacionais relativas àsalvaguarda dos direitos humanos. A aplicação da Convenção Européiade Direitos Humanos pela Corte Européia de Direitos Humanos ofereceuma pertinente ilustração a esse respeito.

No tocante a leis nacionais, recorde-se, por exemplo, para citar al-guns casos dentre muitos outros, que, no caso Abdulaziz, Cabales eBalkandali (sentença de 28.05.1985), a Corte Européia concluiu que as

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três demandantes - que denunciaram estar privadas ou ameaçadas dever-se privadas da companhia de seus familiares no Reino Unido, emvirtude das normas de imigração (que visavam proteger o mercado naci-onal de trabalho), - eram efetivamente vítimas de discriminação combase no sexo e em violação do artigo 14 em combinação com o artigo 8 daConvenção; ademais, como o Reino Unido não havia incorporado a Con-venção Européia em seu direito interno, as demandantes não dispunhamde um recurso interno eficaz ante uma autoridade nacional para remedi-ar a discriminação sexual de que eram vítimas, o que, no entender daCorte, configurava ademais uma violação do artigo 13 da Convenção. E,no caso Dudgeon (sentença de 22.10.1981), a Corte Européia concluiuque a própria existência da legislação penal na Irlanda do Norte (proibin-do as relações homossexuais masculinas) atentava contra o direito aorespeito da vida privada (que compreende a vida sexual) consagrado noartigo 8 da Convenção.

Em decorrência da sentença da Corte Européia no caso Marckx (1979),uma nova lei belga (de 31.03.1987) modificou a legislação relativa à filiação.Cerca de quatro anos após a sentença da Corte Européia no caso Campbelle Cosans (1982), uma lei britânica (de 07.11.1986) aboliu os castigos cor-porais nas escolas públicas daquele país. E, no mesmo ano da decisão daCorte Européia no caso X e Y versus Holanda (1985), foi adotada uma leiholandesa (de 27.02.1985) emendando o Código Penal, de modo a permitira um portador de deficiência mental interpor una queixa por meio de seurepresentante legal. Várias outras sentenças da Corte Européia tiveramigual impacto no direito interno dos Estados Partes, no sentido de adequaras leis nacionais à normativa da Convenção Européia.

Em nosso continente, tanto a Comissão como a Corte Interamericanastêm dado mostras de sua disposição de embarcar decididamente nestarota. Nos últimos anos, a Comissão Interamericana, nos casos das leis deanistia (1992), relativos ao Uruguai e à Argentina, por exemplo, con-cluiu que as referidas leis eram incompatíveis com os artigos 8, 25 e 1(1)da Convenção Americana, por acarretarem uma denegação de justiça.No caso Verbitsky versus Argentina (1994), a Comissão ressaltou ex-pressamente o alcance do dever geral do artigo 2 da Convenção Ameri-cana para tornar efetivos os direitos por ela garantidos, e expressou suasatisfação pela culminação de um processo de solução amistosa, com aderrogação, pelo Estado demandado, da figura do desacato da legislaçãonacional.

Direito e Democracia 37

A Corte Interamericana, por sua vez, em sua já citada sentença de17.09.1997 no caso Loayza Tamayo versus Peru, determinou a incompa-tibilidade dos decretos-leis de tipificação dos delitos de “traição à pátria”e “terrorismo” - aplicados no caso - com o artigo 8(4) da Convenção Ame-ricana (princípio do non bis in idem). E, na também citada sentença de12.11.1997, no caso Suárez Rosero versus Equador, foi mais além, aodeclarar que o artigo 114 bis do Código Penal equatoriano, que privava atodas as pessoas detidas sob a lei anti-drogas de certas garantias judiciais(quanto à duração da detenção), violava per se o artigo 2, em combina-ção com o artigo 7(5), da Convenção, independentemente de sua apli-cação no caso concreto. Esta conclusão da Corte é, a meu ver, de extra-ordinária importância para a evolução futura da matéria.

Pode inclusive ocorrer que, em um determinado caso, uma lei nacionalconstitua a base ou a origem de uma violação comprovada de direitos hu-manos; assim sendo, não basta, a meu ver - como tenho assinalado em meusreiterados Votos em decisões da Corte Interamericana - que o Estado de-mandado indenize as vítimas, porquanto também deve fazer cessar a vio-lação da obrigação convencional, e só pode lograr isto mediante a revoga-ção daquela lei e a conseqüente adequação de seu direito interno ànormativa internacional de proteção. Para a fundamentação jurídica destatese, permito-me referir-me a meus Votos Dissidentes nos casos El Amparo(1996-1997)38 , relativo à Venezuela, Caballero Delgado e Santana versusColômbia (1997)39 , e Genie Lacayo versus Nicarágua (1997)40 . No seioda Corte Interamericana, minha posição a respeito, - inicialmente solitáriae minoritária, e a partir dos casos Loayza Tamayo e Suárez Rosero (su-pra), majoritária, - tem sido no sentido de que, tais como invocadas emcasos concretos, as leis de exceção - a exemplo das que privilegiam forosmilitares especiais - são incompatíveis com as garantias do devido processolegal consagradas na Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

Entendo que a adequação do direito interno às normas internacionaisde proteção é, ademais, da própria essência do dever de prevenção, paraevitar a repetição de violações de direitos humanos derivadas de umadeterminada lei nacional. Pode também ocorrer que, em algum outro

38. Sentença (de reparações) de 14.09.1996, e Resolução (de interpretação de sentença) de 16.04.1997.

39. Sentença (de reparações) de 29.01.1997.

40. Resolução (de revisão de sentença) de 13.09.1997.

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caso, seja a própria vacatio legis a fonte de uma violação comprovada dedireitos humanos; nesta hipótese, o dever do Estado demandado consistena adoção de uma lei (e.g., estabelecendo garantias de proteção), deconformidade com os preceitos dos tratados de direitos humanos que vin-culam o Estado em questão. O dever de prevenção é um componentebásico das obrigações gerais, consagradas nos tratados de direitos huma-nos (a exemplo das consignadas nos artigos 1(1) e 2 da Convenção Ame-ricana), de assegurar a todos o pleno exercício dos direitos consagrados ede adequar o direito interno às normas internacionais de proteção.

É de se lamentar que dificuldades práticas tenham surgido no cumpri-mento pelos Estados Partes de suas obrigações legislativas impostas pelostratados de direitos humanos, sobretudo em razão da falta de uma com-preensão clara do alcance de tais obrigações, que infelizmente pareceainda prevalecer em muitos países, em particular em nossa região. Nãoobstante, nem por isso deixam estas obrigações de impor-se, sem atrasosindevidos. Não é razoável, por exemplo, que se tenham consumido quaseoito anos, como ocorreu no Brasil, para suprir uma lacuna, com a tipificação- em abril de 1997 - do crime da tortura, e ainda assim guardando umparalelismo apenas imperfeito com as duas Convenções sobre a matériaratificadas pelo Brasil em 1989, - a Convenção das Nações Unidas contraa Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degra-dantes, e a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura.

O problema dos atrasos nas providências legislativas - e.g., adoção oumodificação de uma lei - para compatibilizar o ordenamento jurídico in-terno com a normativa dos tratados de direitos humanos não tem passadodespercebido no sistema europeu de proteção. Ao contrário, tem neletido conseqüências para os Estados Partes na Convenção Européia. Nocaso Vermeire versus Bélgica (1991), por exemplo, advertiu a Corte Eu-ropéia que o atraso de oito anos do Estado belga em proceder à modifica-ção da legislação nacional sancionada por sua sentença no caso Marckx(supra) não estava em conformidade com suas obrigações convencionais(sob o artigo 53 da Convenção Européia); por conseguinte, conclamou oEstado belga a efetuar a adequação legislativa sem maior atraso.

Com efeito, durante os oito anos que se seguiram à sentença da CorteEuropéia no já citado caso Marckx (supra), sem que a Bélgica modificas-se a legislação impugnada, apresentaram-se duas outras denúncias combase no mesmo motivo. A Corte, nestes dois casos, em lugar de ordenarnovamente a reforma da legislação (o que já havia feito no caso Marckx),

Direito e Democracia 39

determinou ao Estado demandado o pagamento de uma indenização pe-los danos ocasionados pela omissão do Estado em questão de reformar alegislação impugnada no contexto do caso concreto.

Os Estados Partes nos tratados de direitos humanos obrigam-se não sóa não violar os direitos protegidos, mas também a tomar todas as medidaspositivas para assegurar a todas as pessoas sob sua jurisdição o exercíciolivre e pleno de todos os direitos protegidos, - o que implica a obrigaçãogeral de adequação de seu direito interno à normativa internacional deproteção. Tais medidas positivas têm importância direta para a aplicaçãodevida dos tratados de direitos humanos em múltiplos aspectos.

Por exemplo, se um Estado cumpriu efetivamente com esta obrigaçãogeral de adequação do direito interno, muito dificilmente, por exemplo,poderia efetuar a denúncia de um tratado de direitos humanos (a exem-plo do que ocorreu no Brasil, em novembro de 1996, com a Convenção n.158 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre o Términoda Relação de Trabalho por Iniciativa do Empregador, e em junho de1971 com a Convenção n. 81 da OIT sobre a Inspeção do Trabalho naIndústria e no Comércio, - esta última re-ratificada pelo Executivo emdezembro de 1987)41 , em razão de controles do próprio direito interno emum Estado democrático. Por que a ratificação de um tratado de direitoshumanos pelo Executivo - como de todos os tratados - está condicionadaà prévia aprovação do mesmo pelo Legislativo e sua denúncia não? Nãoatentaria isto contra o equilíbrio de poderes e a salvaguarda dos direitoshumanos em um Estado de Direito?

Quando não expressamente prevista em um tratado, para se efetuartem a denúncia que poder inferir-se da natureza do tratado em questão(tendo presente o disposto no artigo 56 das duas Convenções de Vienasobre Direito dos Tratados); o Comitê de Direitos Humanos das NaçõesUnidas vem de advertir oportunamente - em outubro de 1997 - que, emrazão de sua própria natureza jurídica, o Pacto de Direitos Civis e Políti-cos, por exemplo, não admite a possibilidade de denúncia. Até mesmo emrelação às condições em que uma violação de um tratado pode acarretarsua terminação ou a suspensão de sua aplicação, as duas referidas Con-venções de Viena excetuam expressa e especificamente “as disposições

41. Cf. A.A. Cançado Trindade, A Proteção Internacional dos Direitos Humanos e o Brasil (1948-1997):As Primeiras Cinco Décadas, Brasília, Editora Universidade de Brasília (Ed. Humanidades), 1998, pp.121-125.

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relativas à proteção da pessoa humana contidas em tratados de caráterhumanitário” (artigo 60(5), - em uma verdadeira cláusula de salvaguar-da em defesa do ser humano. Os controles tanto do direito internacionalcomo do direito interno devem aqui operar conjuntamente em prol dapreservação e continuidade das obrigações convencionais internacionaisde proteção dos direitos humanos.

A adequação das leis nacionais à normativa dos tratados de direitoshumanos constitui uma obrigação - de tomar medidas positivas - a ser pron-tamente cumprida pelos Estados Partes. O fato de ser às vezes consideradauma obrigação “de resultado” (para fazermos uso de uma expressãoreminiscente do linguajar da Comissão de Direito Internacional das Na-ções Unidas) não significa que possa ser seu cumprimento adiado indefini-damente. Toda a construção doutrinária e jurisprudencial das “obrigaçõespositivas” dos Estados representa uma reação contra as omissões legislativas- entre outras - e a inércia dos órgãos do poder público no presente domíniode proteção: contribui ela a explicar e fundamentar as obrigações legislativasdos Estados Partes em tratados de direitos humanos.

Estas últimas correspondem a um dever geral - paralelamente aos de-veres específicos relativos a cada um dos direitos protegidos, - de cujocumprimento cabal depende a cessação de uma violação da Convenção(quando derivada de uma lei nacional). A pronta adequação ouharmonização das legislações nacionais à normativa dos tratados de di-reitos humanos constitui uma obrigação geral que se impõe de modo uni-forme a todos os Estados Partes nos tratados de direitos humanos,complementando suas obrigações específicas atinentes a cada um dos di-reitos garantidos. O que urge, em nossos dias, mais do que tudo, é umanova mentalidade, um melhor entendimento das obrigações convencio-nais de proteção, que abarcam todo e qualquer ato ou omissão do EstadoParte, de quaisquer de seus órgãos ou agentes, seja do Poder Executivo,seja do Legislativo, ou do Judiciário. É este princípio fundamental dodireito da responsabilidade do Estado que deve nos orientar.

3. As Obrigações Judiciais dos Estados Partes nosTratados de Direitos Humanos

No tocante às relações entre os ordenamentos jurídicos internacio-nal e nacional na proteção dos direitos humanos, um ponto recorrente é

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o do status, no direito interno, da normativa internacional de proteção.Como a posição hierárquica dos tratados no ordenamento jurídico in-terno obedece ao critério do direito constitucional de cada país, as so-luções variam de país a país. Como muitos Estados continuam - comvariações - a equiparar os tratados - inclusive, equivocadamente, os dedireitos humanos - à legislação ordinária infraconstitucional, têm surgi-do problemas na prática.

O mais grave deles configura-se em virtude da aplicação do princípiolex posteriori derogat priori: se aos tratados é dada a mesma hierarquiadas leis, poderiam teoricamente uns e outras revogar-se mutuamente (e.g.,uma lei posterior alterando uma disposição convencional), por força dosimples critério cronológico. Trata-se de uma posição insustentável, e,sem sombra de dúvida, absurda, no campo da proteção internacional dosdireitos humanos. Como assinala a jurisprudência internacional, os trata-dos de direitos humanos, diferentemente dos tratados clássicos que regu-lamentam interesses recíprocos entre as Partes, consagram interesses co-muns superiores, consubstanciados em última análise na proteção do serhumano. Como tais, requerem interpretação e aplicação próprias, dota-dos que são, ademais, de mecanismos de supervisão próprios.

Assim sendo, como sustentar que a um Estado Parte seria dado“derrogar” ou “revogar” por uma lei um tratado de direitos humanos? Talentendimento se chocaria frontalmente com a própria noção de garantiacoletiva, subjacente a todos os tratados de direitos humanos. Neste con-texto de proteção, já não mais se justifica que o direito internacional e odireito interno continuem sendo abordados de forma estanque oucompartimentalizada, como o foram no passado. Ao criarem obrigaçõespara os Estados vis-à-vis os seres humanos sob sua jurisdição, as normasdos tratados de direitos humanos aplicam-se não só na ação conjunta(exercício da garantia coletiva) dos Estados Partes na realização do pro-pósito comum de proteção, mas também e sobretudo no âmbito doordenamento jurídico interno de cada um deles.

O cumprimento das obrigações internacionais de proteção requer oconcurso dos órgãos internos dos Estados, e estes são chamados a apli-car as normas internacionais. É este o traço distintivo e talvez o maismarcante dos tratados de direitos humanos, dotados de especificidadeprópria e, permito-me insistir neste ponto, a requererem uma interpreta-ção própria guiada pelos valores comuns superiores que abrigam, diferen-temente dos tratados clássicos que se limitam a regulamentar os interes-

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ses recíprocos entre as Partes. Com a interação entre o direito internaci-onal e o direito interno no presente contexto, os grandes beneficiários sãoas pessoas protegidas. Resulta, assim, claríssimo que leis posteriores nãopodem revogar normas convencionais que vinculam o Estado, sobretudono presente domínio de proteção.

As sentenças dos tribunais nacionais devem tomar em devida contaas disposições convencionais dos tratados de direitos humanos que vin-culam o país em questão. No sistema europeu de proteção, por exemplo,no tocante à determinação da compatibilidade ou não de decisões detribunais nacionais com a normativa internacional dos derechos huma-nos, é histórica a sentença da Corte Européia de Direitos Humanos de26.04.1979 no caso Sunday Times versus Reino Unido, célebre locusclassicus da liberdade de expressão e do direito à informação sob aConvenção Européia; em decisão até então sem precedentes, a CorteEuropéia de fato “reverteu”, por assim dizer, uma decisão em sentidocontrário da House of Lords britânica. Para recordar outro exemplo, assentenças da Corte Européia nos casos Le Compte, Van Leuven e DeMeyere versus Bélgica (1981) e Albert e Le Compte versus Bélgica(1983), sobre procedimento disciplinar da “Ordre des médecins” belga,tiveram o efeito de reverter inteiramente la jurisprudence constanteda Cour de cassation belga.

A persistência de lacunas ou obstáculos ou insuficiências do direitointerno implica descumprimento das obrigações convencionais de prote-ção. Por exemplo, por força dos artigos 25, 1(1) e 2 da Convenção Ameri-cana sobre Direitos Humanos, os Estados Partes estão obrigados a estabe-lecer um sistema de recursos simples e rápidos, e a dar aplicação efetivaaos mesmos. O direito a um recurso simples, rápido e efetivo ante os juízesou tribunais nacionais competentes (artigo 25 da Convenção America-na) representa um dos pilares básicos do próprio Estado de Direito emuma sociedade democrática (no sentido da Convenção), - como assinala-do pela Corte Interamericana em casos recentes42 .

42. Este obiter dictum da Corte se encontra em suas recentes sentenças quanto ao mérito nos casos CastilloPáez versus Peru (1997), Suárez Rosero versus Equador (1997), Paniagua Morales e Outros versusGuatemala (1998), e Blake versus Guatemala (1998); a origem deste obiter dictum na jurisprudênciarecente da Corte se encontra no Voto Dissidente do Juiz A.A. Cançado Trindade no caso Genie Lacayoversus Nicarágua (resolução sobre recurso de revisão de sentença, de 13.09.1997), em que a maioria daCorte tomou posição distinta da seguida nos casos supracitados, sobre o ponto em apreço.

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Esta garantia judicial - de origem latino-americana43 - não pode serminimizada, porquanto sua correta aplicação tem o sentido de aperfeiço-ar a administração da justiça em nível nacional. Tal garantia no âmbitoda proteção judicial (artigos 25 e 8 da Convenção Americana) é muitomais importante do que parece haver-se imaginado até o presente, e re-quer considerável desenvolvimento jurisprudencial. Em matéria de pro-teção e garantias judiciais, o direito interno dos Estados se aperfeiçoarána medida em que incorporar os padrões de proteção requeridos pelostratados de direitos humanos. Para a realização deste propósito - a plenavigência dos direitos humanos - foram concebidos os instrumentos inter-nacionais de proteção. As jurisdições internacional e nacional são co-partícipes nesse labor, e, a fortiori, na construção de um meio social maisjusto e melhor para todos. A clara compreensão desta identidade funda-mental de propósito, e de suas conseqüências jurídicas, requer, nãoobstante, uma mudança fundamental de mentalidade.

A disposição do artigo 5(2) da Constituição Brasileira vigente, de 1988,segundo a qual os direitos e garantias nesta expressos não excluem outrosdecorrentes dos tratados internacionais em que o Brasil é Parte, repre-senta, a meu ver, um grande avanço para a proteção dos direitos humanosem nosso país. Por meio deste dispositivo constitucional, os direitos con-sagrados em tratados de direitos humanos em que o Brasil seja Parte in-corporam-se ipso jure ao elenco dos direitos constitucionalmente consa-grados. Ademais, por força do artigo 5(1) da Constituição, têm aplicaçãoimediata. A intangibilidade dos direitos e garantias individuais é deter-minada pela própria Constituição Federal, que inclusive proíbe expressa-mente até mesmo qualquer emenda tendente a aboli-los (artigo60(4)(IV)). A especificidade e o caráter especial dos tratados de direitoshumanos encontram-se, assim, devidamente reconhecidos pela Consti-tuição Brasileira vigente.

43. Tal garantia foi originalmente consagrada na Declaração Americana sobre Direitos e Deveres do Homem(de abril de 1948), no momento em que, paralelamente, a Comissão de Direitos Humanos das NaçõesUnidas ainda preparava o Projeto de Declaração Universal (de maio de 1947 até junho de 1948). É o querelata, em um fragmento de memória, o rapporteur da Comissão (René Cassin), agregando que a inserçãoda disposição sobre o direito a um recurso efetivo ante as jurisdições nacionais na Declaração Universal(artigo 8), inspirado na disposição correspondente da Declaração Americana (artigo XVIII), efectuou-senos debates subseqüentes (de 1948) da III Comissão da Assembléia Geral das Nações Unidas. Cf. R.Cassin, “Quelques souvenirs sur la Déclaration Universelle de 1948”, 15 Revue de droit contemporain(1968) n. 1, p. 10.

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Se, para os tratados internacionais em geral, tem-se exigido aintermediação pelo Poder Legislativo de ato com força de lei de modo aoutorgar a suas disposições vigência ou obrigatoriedade no plano doordenamento jurídico interno, distintamente, no tocante aos tratados dedireitos humanos em que o Brasil é Parte, os direitos fundamentais nelesgarantidos passam, consoante os parágrafos 2 e 1 do artigo 5 da Constitui-ção Brasileira de 1988, pela primeira vez entre nós a integrar o elenco dosdireitos constitucionalmente consagrados e direta e imediatamenteexigíveis no plano de nosso ordenamento jurídico interno. Por conseguin-te, mostra-se inteiramente infundada, no tocante em particular aos tra-tados de direitos humanos, a tese clássica - ainda seguida em nossa práti-ca constitucional - da paridade entre os tratados internacionais e a legis-lação infraconstitucional.

Foi esta a motivação que me levou a propor à Assembléia NacionalConstituinte, na condição de então Consultor Jurídico do Itamaraty, naaudiência pública de 29 de abril de 1987 da Subcomissão dos Direitos eGarantias Individuais, a inserção em nossa Constituição Federal - comoveio a ocorrer no ano seguinte - da cláusula que hoje é o artigo 5(2)44 .Minha esperança, na época, era no sentido de que esta disposição cons-titucional fosse consagrada concomitantemente com a pronta adesãodo Brasil aos dois Pactos de Direitos Humanos das Nações Unidas e àConvenção Americana sobre Direitos Humanos, o que só se concreti-zou em 1992.

É esta a interpretação correta do artigo 5(2) da Constituição Brasilei-ra vigente, que abre um campo amplo e fértil para avanços nesta área,ainda lamentavelmente e em grande parte desperdiçado. Com efeito, nãoé razoável dar aos tratados de proteção de direitos do ser humano (acomeçar pelo direito fundamental à vida) o mesmo tratamento dispensa-do, por exemplo, a um acordo comercial de exportação de laranjas ousapatos, ou a um acordo de isenção de vistos para turistas estrangeiros. Àhierarquia de valores, deve corresponder uma hierarquia de normas, nosplanos tanto nacional quanto internacional, a ser interpretadas e aplica-das mediante critérios apropriados. Os tratados de direitos humanos têmum caráter especial, e devem ser tidos como tais. Se maiores avanços nãose têm logrado até o presente neste domínio de proteção, não tem sido em

44. Cf. A.A. Cançado Trindade, “Direitos e Garantias Individuais no Plano Internacional”, in AssembléiaNacional Constituinte - Atas das Comissões, vol. I, n. 66 (supl.), Brasília, 27.05.1987, pp. 108-116.

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razão de obstáculos jurídicos, - que na verdade não existem, - mas antesda falta de compreensão da matéria e da vontade de dar real efetividadeàqueles tratados no plano do direito interno.

O propósito do disposto nos parágrafos 2 e 1 do artigo 5 da Constitui-ção não é outro que o de assegurar a aplicabilidade direta pelo PoderJudiciário nacional da normativa internacional de proteção, alçada a ní-vel constitucional. Os juízes e tribunais nacionais que assim o têm enten-dido têm, a meu ver, atuado conforme o direito. Infelizmente, tem-setentado circundar de incertezas tais disposições tão claras, e condicionara aplicação direta das normas internacionais de proteção, elevadas a ní-vel constitucional, a uma emenda constitucional, alterando o disposto noartigo 5(2). Como a Constituição de um país não é um menu, de onde sepossa escolher que disposições aplicar e que disposições deixar de lado eignorar, tal atitude implica em descumprimento da disposição constituci-onal em questão por omissão, na medida em que adia a um amanhã inde-finido a aplicação direta, em nosso direito interno, da normas internacio-nais de proteção dos direitos humanos que vinculam o Brasil.

Desde a promulgação da atual Constituição, a normativa dos tratadosde direitos humanos em que o Brasil é Parte tem efetivamente nível cons-titucional, e entendimento em contrário requer demonstração. A tese daequiparação dos tratados de direitos humanos à legislaçãoinfraconstitucional - tal como ainda seguida por alguns setores em nossaprática judiciária, - não só representa um apego sem reflexão a uma teseanacrônica, já abandonada em alguns países, mas também contraria odisposto no artigo 5(2) da Constituição Federal Brasileira.

Se se encontrar uma formulação mais adequada - e com omesmo propósito - do disposto no artigo 5(2) da Consti-tuição Federal, tanto melhor. Mas enquanto não for en-contrada, nem por isso está o Poder Judiciário eximido deaplicar o artigo 5(2) de nossa Constituição. Muito ao con-trário, se alguma incerteza houver, está no dever de dar-lhea interpretação correta, para assegurar sua aplicação ime-diata. Não se pode deixar de aplicar uma disposição cons-titucional sob o pretexto de que não parece clara. O pro-blema - permito-me insistir - não reside na referida dispo-sição constitucional, a meu ver claríssima em seu texto epropósito, mas sim na falta de vontade de setores do Poder

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Judiciário de dar aplicação direta, no plano de nosso direi-to interno, às normas internacionais de proteção dos direi-tos humanos que vinculam o Brasil. Não se trata de pro-blema de direito, senão de vontade (animus).

Ademais, o artigo 5(2) da Constituição Brasileira tem o grande méritode não se restringir expressamente a determinados tratados de direitoshumanos, como o faz, por exemplo, o artigo 75(22) da Constituição Ar-gentina vigente após a reforma constitucional de 1994, - lembrado comopossível modelo para uma eventual reforma do artigo 5(2) de nossa Cons-tituição. Entendo que a fórmula do artigo 5(2) da Constituição Brasileiraé bem mais abrangente, e assegura, - ou deve assegurar, - em combinaçãocom o artigo 5(1), a pronta aplicação direta, por nossos juízes e tribunais,de toda a normativa internacional de proteção que vincula o país, eleva-da que se encontra a nível constitucional.

Não surpreende que os próprios juristas argentinos venham recente-mente apontando as insuficiências do disposto no artigo 75(22) de suaConstituição45 , nela inserido naturalmente com a melhor das intenções.Têm observado, por exemplo, que há uma certa incoerência em reconhe-cer a alguns tratados hierarquia constitucional e a outros tão somentenível infraconstitucional.

Não há qualquer explicação, e tampouco indicação de qualquer cri-tério, por que certos tratados de direitos humanos foram, por assim dizer,“constitucionalizados” e outros não. O esquema continua sendo herméti-co, intra-hierárquico, deixando de impedir que futuras reformas consti-tucionais venham a contrariar os tratados de proteção. A seguir-se a mes-ma lógica, nada obstaria a que se tivesse elevado tais tratados a nívelsupraconstitucional.

Como se o anterior não bastasse, outro inconveniente ou limitaçãoreside na necessidade de prever um determinado procedimento legislativopara atribuir hierarquia constitucional a outros tratados de direitos hu-manos, que não tenham encontrado expressão na Constituição. É o queteve que prever a Constituição Argentina, requerendo para tal a aprova-ção congressual (de dois terços da totalidade dos membros de cada Câ-

45. Cf., inter alia: [Vários Autores,] La Aplicación de los Tratados sobre Derechos Humanos por losTribunales Locales (eds. M. Abregú e Ch. Courtis), Buenos Aires, CELS, 1997, pp. 3-649.

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mara). Que ocorreria se o Congresso, por qualquer razão, ainda que deforça maior, não tomasse esta providência? Assim, a Argentina é hojeParte em diversos tratados de direitos humanos, inclusive outros que osque foram “constitucionalizados”, e que estão a requerer o procedimentoprevisto em sua Constituição reformada.

Por que então buscar inspiração nas formulações constitucionais deoutros países, se a nossa - o artigo 5(2) da Constituição Brasileira - é maisabrangente e não apresenta os inconvenientes apontados? O disposto noartigo 5(2) da Constituição Brasileira concede um tratamento especialou diferenciado aos tratados de direitos humanos, do que não pode restardúvida, situada que se encontra aquela disposição constitucional no ca-pítulo I, “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”, do título II,“Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, da Constituição. Ademais, odisposto no artigo 5(2) da Constituição Brasileira não padece dos riscosda invocação indevida do inclusio unius est exclusio alterius: ao contrá-rio, encontra-se aberto a todos os tratados de direitos humanos que vin-culam o Brasil, abarcando-os todos. Mais do que isto, o disposto no artigo5(2) da Constituição Brasileira tampouco se limita aos tratados de direi-tos humanos stricto sensu, alcançando igualmente os tratados de direitointernacional humanitário e de direito internacional dos refugiados quevinculam o Brasil46 . Modificá-lo, para adaptá-lo - melhor dizendo,aprisioná-lo - à tese hermética e positivista da “constitucionalização” dostratados, implicaria a meu ver um retrocesso conceitual em nosso paísneste particular. Há que ir mais além da “constitucionalização” estáticados tratados de direitos humanos.

Aqui, novamente, se impõe uma mudança fundamental de mentali-dade, uma melhor compreensão da matéria. Não se pode continuar pen-sando dentro de categorias e esquemas jurídicos construídos há váriasdécadas, ante a realidade de um mundo que já não existe. A ociosa polê-mica secular entre monistas e dualistas continua a fascinar muitos denossos círculos jurídicos ainda hoje. De suas amarras ainda não conse-guiu se liberar grande parte do pensamento jurídico e da jurisprudêncianacionais. O mesmo ocorre com a fantasia desagregadora das chamadasgerações de direitos, historicamente incorreta e juridicamente infunda-

46. Cf., a respeito: A.A. Cançado Trindade, G. Peytrignet e J. Ruiz de Santiago, As Três Vertentes daProteção Internacional dos Direitos da Pessoa Humana (Direitos Humanos, Direito Humanitário,Direito dos Refugiados), San José da Costa Rica/Brasília, IIDH/CICV/ACNUR, 1996, pp. 13-286.

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da, que tem prestado um desserviço à promoção da visão holística dosdireitos humanos, da interrelação e integralidade necessárias de todos osdireitos humanos (civis, políticos, econômicos, sociais e culturais).

Recorde-se que, antes mesmo da reforma constitucional argentina de1994, a jurisprudência argentina deu uma guinada em favor da hierar-quia superior das normas de direitos humanos em relação às leis internas(a partir da decisão da Corte Suprema de Justiça no caso Ekmedjian em199247 ); lá, a mudança jurisprudencial precedeu a reforma constitucio-nal nesse sentido. Por que razão no Brasil setores do Poder Judiciárioresistem a avançar no mesmo sentido, ainda mais quando a Constituiçãode nosso país o permite expressamente e, mais do que isto, o determina?O problema não é de direito, mas sim de vontade, e, para resolvê-lo,requer-se sobretudo uma nova mentalidade.

V. CONCLUSÕES

À luz do anteriormente exposto, permito-me passar a minhas conclu-sões:

Primeira: Nas últimas décadas, a operação regular dos tratados e ins-trumentos internacionais de direitos humanos tem demonstrado sobeja-mente que podem estes beneficiar diretamente os indivíduos. Na verda-de, é este o seu propósito último; ao criarem obrigações para os EstadosPartes vis-à-vis os seres humanos sob sua jurisdição, as normas dos trata-dos de direitos humanos aplicam-se não só na ação conjunta (exercíciode garantia coletiva) dos Estados Partes na realização do propósito co-mum de proteção, mas também e sobretudo no âmbito do ordenamentointerno de cada um deles (nas relações entre o poder público e os indiví-duos), onde devem produzir efeitos.

Segunda: Os tratados de direitos humanos são dotados de especificidadeprópria e requerem uma interpretação guiada pelos valores comuns supe-riores que abrigam e em que se inspiram, no que se diferenciam dos trata-dos clássicos que se limitam a regulamentar os interesses recíprocos entre

47. Relativo à aplicabilidade direta, no direito interno (argentino), do artigo 14(1) (direito de retificação ouresposta) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

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as Partes. O caráter especial dos tratados de direitos humanos acarretaconseqüências jurídicas nos planos tanto do direito internacional quantodo direito público interno. Os tratados de direitos humanos partem daspremissas da anterioridade dos direitos que precedem a toda organizaçãopolítica e social (inerentes que são ao ser humano) e de que a ação deproteção de tais direitos não se esgota - não pode se esgotar - na ação doEstado. A noção de garantia coletiva é subjacente à aplicação dos trata-dos de direitos humanos, e o cumprimento das obrigações internacionaisde proteção requer o concurso dos órgãos internos dos Estados, chamadosque são a aplicar as normas internacionais.

Terceira: Decorridas cinco décadas de experiência acumulada desdea adoção das Declarações Universal e Americana de Direitos Humanos,não mais se justifica que não se aceitem as cláusulas e instrumentos fa-cultativos dos tratados de direitos humanos. Por conseguinte, deve serintegral a aceitação dos tratados de direitos humanos, incluindo a acei-tação da competência obrigatória dos órgãos de proteção internacional.Não é razoável aceitar somente as normas convencionais substantivas,sem os correspondentes mecanismos processuais para a vindicação e pro-teção dos direitos consagrados. No tocante a um órgão judicial internaci-onal como a Corte Interamericana de Direitos Humanos, a par da aceita-ção incondicional de sua jurisdição em matéria contenciosa, cabe adici-onalmente fazer amplo uso de sua função consultiva.

Quarta: Decorridas cinco décadas de experiência acumulada desde aadoção das Declarações Universal e Americana de Direitos Humanos,não mais se justifica que se busque evitar ou negar o acesso direto dassupostas vítimas aos tribunais internacionais de direitos humanos (CortesEuropéia e Interamericana de Direitos Humanos). Cabe afastar definiti-vamente as tentações de politização dos procedimentos de proteção; ajurisdicionalização destes últimos equivale à forma mais evoluída de pro-teção dos direitos humanos. A representação direta (locus standi) dassupostas vítimas deve conduzir a seu acesso direto (jus standi) aos tribu-nais internacionais (Cortes Européia e Interamericana) de direitos hu-manos. Só assim se logrará o reconhecimento e a cristalização da persona-lidade e capacidade jurídicas internacionais plenas do ser humano.

Quinta: Diversas Constituições nacionais contemporâneas, referindo-se expressamente aos tratados de direitos humanos, concedem um trata-mento especial ou diferenciado também no plano do direito interno aosdireitos humanos internacionalmente consagrados, alçando-os a nível

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constitucional. Os tratados de direitos humanos indicam vias decompatibilização dos dispositivos convencionais e dos de direito internode modo a prevenir conflitos entre as jurisdições internacional e nacionalno presente domínio de proteção; impõem aos Estados Partes o dever deprovimento de recursos de direito interno eficazes, e por vezes o compro-misso de desenvolvimento das “possibilidades de recurso judicial”; prevê-em a adoção pelos Estados Partes de medidas legislativas, judiciais, admi-nistrativas ou outras, para a realização de seu objeto e propósito. Em suma,contam com o concurso dos órgãos e procedimentos do direito públicointerno. Há, assim, uma interpenetração entre as jurisdições internacio-nal e nacional no âmbito da proteção dos direitos humanos. Com ainteração entre o direito internacional e o direito interno no presentecontexto, os grandes beneficiários são as pessoas protegidas.

Sexta: O chamado princípio da subsidiariedade dos instrumentos in-ternacionais diz respeito tão somente à operação dos procedimentos oumecanismos de proteção, porquanto o corpus juris substantivo do direitointernacional e do direito interno no tocante à proteção dos direitos hu-manos forma um todo harmônico, um verdadeiro sistema de proteção48 .Assim, na solução de casos concretos, aplica-se, como o indicam expres-samente os próprios tratados de direitos humanos, o critério da primaziada norma mais favorável às supostas vítimas, seja ela norma de origeminternacional ou de origem nacional.

Sétima: Afastada em nossos dias a compartimentalização estática dadoutrina clássica entre o direito internacional e o direito interno, com ainteração dinâmica entre um e outro no presente domínio de proteção, éo próprio Direito que se enriquece - e se justifica, - na medida em quecumpre a sua missão última de fazer justiça. No presente contexto, odireito internacional e o direito interno interagem e se auxiliam mutua-mente no processo de expansão e fortalecimento do direito de proteçãodo ser humano. É alentador constatar, nestes anos derradeiros a conduzir-nos ao final do século, que o direito internacional e o direito internocaminham juntos e apontam na mesma direção, coincidindo no propósitobásico comum e último da proteção do ser humano.

Oitava: Os tratados de direitos humanos vinculam não só os Gover-

48. Tomo por sistema, no presente contexto, um conjunto coerente de princípios e normas, metodicamenteorganizados, formando o substratum de um pensamento, dotado de um propósito comum de proteção doser humano, e operando sob uma determinada forma de controle exercido por órgãos próprios de supervi-são, constituindo um todo integral e orgânico.

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nos, mas os próprios Estados (Partes). Em um sistema integrado e coesocomo o da proteção dos direitos humanos, aos órgãos convencionais deproteção cabe determinar a compatibilidade ou não com os respectivostratados de direitos humanos de atos ou omissões de quaisquer poderes,órgãos ou agentes do Estado, independentemente do nível hierárquico.As normas internacionais, ao consagrarem e definirem claramente umdireito individual, passível de vindicação ante um tribunal ou juiz nacio-nal, são diretamente aplicáveis no plano do direito interno.

Nona: As obrigações internacionais de proteção, ao vincularem con-juntamente todos os poderes do Estado, têm um amplo alcance. A par dasobrigações atinentes especificamente a cada um dos direitos protegidos,os tratados de direitos humanos consagram as obrigações gerais de asse-gurar o livre e pleno exercício desses direitos, e de adequar o direitointerno às normas convencionais de proteção. O descumprimento dessasobrigações engaja prontamente a responsabilidade internacional do Esta-do, por atos ou omissões, seja do Poder Executivo, seja do Legislativo, sejado Judiciário. Se maiores avanços não se têm logrado até o presente nestedomínio de proteção, não tem sido em razão de obstáculos jurídicos, - quena verdade não existem, - mas antes da falta de vontade do poder públicode promover e assegurar uma proteção mais eficaz dos direitos humanos.

Décima: Para lograr avanços no presente domínio de proteção, re-quer-se hoje, sobretudo, uma mudança fundamental de mentalidade. Nãose pode continuar a pensar no universo conceitual dos dogmas e das ca-tegorias jurídicas do passado. É pouco o que os órgãos internacionais enacionais de proteção podem fazer em prol da plena vigência dos direitoshumanos sem uma nova mentalidade. As necessidades continuadas e novasde proteção do ser humano requerem uma renovação do pensamento ju-rídico.

Uma nova mentalidade emergirá, sobretudo nas novas gerações, a partirda compreensão das novas realidades: no tocante ao Poder Executivo, apartir da compreensão de que a aceitação da jurisdição obrigatória de umtribunal internacional como a Corte Interamericana de Direitos Huma-nos é algo bom para o país, e sobretudo para seus habitantes, que passama contar, a par das instâncias nacionais, com o concurso de uma instânciainternacional para a proteção de seus direitos; no tocante ao PoderLegislativo, a partir da compreensão de que a harmonização do direitointerno com a normativa internacional de proteção dos direitos humanosé algo bom para o país, e sobretudo para seus habitantes, porquanto vem

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atender à identidade de propósito entre o direito internacional e o direi-to público interno quanto à proteção daqueles direitos; e no tocante aoPoder Judiciário, a partir da compreensão de que a aplicação direta dasnormas internacionais de proteção dos direitos humanos é algo bom parao país, e sobretudo para seus habitantes, e que, ao invés de se apegar aconstruções e silogismos jurídico-formais e a um normativismo herméti-co, o que verdadeiramente se impõe é proceder à correta interpretaçãodas normas internacionais e nacionais de modo a realizar a proteção doser humano (pro victima), sejam tais normas de origem internacional ounacional.

A nova mentalidade que daí surgirá, haverá de manifestar-se, commaior vigor, no seio de uma sociedade mais integrada e imbuída de umforte sentimento de solidariedade humana, sem a qual pouco logra avan-çar o Direito. Este o memorial em prol de uma nova mentalidade quantoà proteção dos direitos humanos nos planos internacional e nacional, queme permito apresentar a esta III Conferência Nacional de Direitos Hu-manos, como contribuição, de um brasileiro preocupado com o futuro deseu país, ao debate nacional sobre a matéria. Confio em que, imbuídos deuma nova mentalidade, continuaremos, todos juntos, nas instituiçõespúblicas nacionais e no seio da sociedade civil brasileira, assim como nosórgãos internacionais de supervisão, a buscar a plenitude da proteção dosdireitos humanos nos planos internacional e nacional. O que todos alme-jamos, em última análise, é deixar um Brasil mais justo a nossos filhos.Que esta III Conferência Nacional de Direitos Humanos se converta emuma data marcante, em um divisor de águas, na realização deste singelopropósito.

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Notas introdutórias sobre afundamentação dos direitos

humanosUma breve análise sobre os direitos humanos,

a cidadania e as práticas d’emocráticas

JOÃO RICARDO W. DORNELLES1

“... o problema grave de nosso tempo, com relação aosdireitos do homem, não era mais o de fundamentá-los, esim o de protegê-los.”2

RESUMO

Este artigo analisa os direitos humanos em perspectiva histórica, enquanto di-reitos de liberdade, igualdade e solidariedade, examinando textos de autoresclássicos e modernos, defendendo o direito a viver numa sociedade democráti-ca como um direito fundamental, para o que se faz necessária a progressivainternacionalização dos direitos humanos.Palavras-chave: Direitos humanos, cidadania, democracia

ABSTRACT

This article examines human rights from a historical perspective, as freedom,equality and solidarity rights, on the basis of texts from classical and contempo-

1. O artigo reproduz texto apresentado como Exame de Qualificação para o Doutorado da Escola de ServiçoSocial da UFRJ. Orientador: Prof. José Maria Gómez.

2. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Editora Campus, Rio de janeiro, 1992. pag. 25.

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rary authors, advancing the right to live in a democratic society as a fundamen-tal right, which will be established by the progressive incorporation of humanrights into international law.Key words: Human rights, citizenship, democracy

Do ponto de vista histórico, o reconhecimento de direitos fundamen-tais dos seres humanos é o resultado de grandes convulsões políticas esociais. Nenhuma das conquistas históricas foi resultado do consentimentodos poderosos. Sempre representaram lutas intensas que demandaram oreconhecimento de direitos e liberdades anteriormente inexistentes. Aslutas dos povos pela emancipação foram o motor que possibilitou os espa-ços de libertação humana subvertendo ordens injustas, alienantes edesumanizadoras. Nesta perspectiva, é que a promulgação da DeclaraçãoUniversal dos Direitos Humanos, em 10 de dezembro de 1948, constituium marco no caminho que a humanidade percorreu para se libertar dojugo dos preconceitos, da superstição, da exploração e da opressão.

O conceito de Direitos Humanos apresenta uma série de interpreta-ções, que dependem da orientação jurídica que se tenha sobre o fenôme-no jurídico, a sociedade e as relações de poder. Dessa maneira, o conteú-do dos Direitos Humanos é marcadamente político e ideológico.

Por outro lado, não existe uma uniformidade conceitual sobre o tema.Diferentes denominações chegaram a tratar do mesmo assunto em con-textos históricos-culturais diversos: direitos naturais, direitos do homem,direitos do cidadão, direitos civis, liberdades públicas, direitos funda-mentais, garantias individuais, etc. Os autores utilizaram uma ou outradenominação, de acordo com o seu posicionamento tanto no campo jurí-dico, quanto no campo político-ideológico.

O autor espanhol Enrique Pedro Haba3, por exemplo, distingue trêsmomentos distintos em sua classificação: Direitos Humanos, como a ex-pressão axiológica que serve como base para a sua positivação jurídica, ouseja, o direito como valor, como o conjunto de princípios norteadores dalei; Direitos Fundamentais, como a expressão positivada, em textos legais,

3. Ver Antologia Básica do Curso Interdisciplinário en Derechos Humanos, IIDH, texto de Sonia Picado S.,intitulado Apuntes sobre los Fundamentos Filosóficos de los Derechos Humanos, San José, Costa Rica,página 13.

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daquela dimensão valorativa original; Liberdades Individuais, como umacategoria referente às liberdades que se concretizam nas relações sociais,a manifestação fática dos direitos previstos legalmente, o exercício práti-co dos direitos reconhecidos como fundamentais.

Outro autor, Gregório Peces-Barba4, não faz a distinção que vimos aci-ma. Parte de uma única definição de Direitos Fundamentais, afirmandoque todos os direitos são humanos visto que apenas o ser humano é sujei-to de direito capaz, portanto, de exercer a sua personalidade jurídica.Assim, para Peces-Barba, a preocupação é em estabelecer, dentre todos osdireitos que são humanos, aqueles que serão considerados essenciais.

A fundamentação dos Direitos Humanos, assim, passa por inúmerasdefinições. Seja entendendo-os como valores, seja apenas como direitosque se tornam fundamentais pela força legal. O que importa é que, após1948, com a Declaração Universal da ONU, tornou-se mais usual a atualdenominação Direitos Humanos, pela sua importância simbólica e de valor,que expressa um caráter de universalidade para todos os seres humanos.

Podemos observar que a discussão sobre os fundamentos dos DireitosHumanos também recebeu tratamento de Norberto Bobbio5 em publica-ção que reuniu uma série de seus artigos sobre o tema. Para o jurisfilósofoitaliano, é uma ilusão atribuir um fundamento absoluto aos Direitos Hu-manos, uma vez que são direitos historicamente relativos. E, por outrolado, Bobbio afirma que existem várias perspectivas para o tratamento daquestão dos direitos humanos: a filosófica, ética, política, histórica, cul-tural, etc. Existe, sem dúvida, uma vinculação entre cada uma dessasperspctivas.

Os direitos e valores considerados fundamentais variam, assim, deacordo com o modo de organização da vida social e o contexto histórico.Dessa maneira, é que se torna impossível determinar um único funda-mento absoluto dos Direitos Humanos. Ao contrário, podemos partir detrês concepções diferentes no campo da sua fundamentação jurídica efilosófica: a). concepções idealistas; b). concepções racionalistas-positivistas; c). concepções crítico-materialistas.

4. Ibidem. pag. 13.

5. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Editora Campus. Ver especialmente os capítulos da Primeira Partedo livro, principalmente das páginas 15 a 24.

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A concepção idealista nos remete ao campo do modelo jusnaturalistae busca a sua base de fundamentação em uma visão abstrata, ideal, iden-tificando os direitos humanos aos valores informados por uma ordem su-perior metafísica, de conteúdo transcendente, que se expressa com ante-rioridade à sociedade e à existência do Estado político, tendo como fun-damento a razão natural do indivíduo. Os direitos, no campo dojusnaturalismo moderno, seriam inerentes ao indivíduo, portanto seriamDireitos Naturais.

As concepções racionalista-positivistas, partindo da filosofia positivista,e de sua expressão no positivismo jurídico, entendem os Direitos Huma-nos como Direitos Fundamentais, e não como valores suprapositivos, des-de que reconhecidos formalmente pela ordem jurídica positiva. Assim, afundamentação dos Direitos Humanos, e a sua legítima existência, seprende a um reconhecimento por parte do Estado, através da sua elabora-ção legislativa. Os direitos considerados fundamentais para o ser huma-no, portanto, seriam apenas aqueles que emanam do Estado.

Por fim, temos a concepção crítico-materialista, de caráter histórico-estrutural, que se desenvolveu a partir do século XIX através, principal-mente, da contribuição de Karl Marx expressa em “A Questão Judaica”,de 1844. Por essa concepção, o reconhecimento de direitos e garantiasresultam de um processo histórico marcado por contingências políticas,econômicas e ideológicas, e que se expressa através de uma conquista dahistória social.

1. DIREITOS DA LIBERDADE: OS DIREITOSINDIVIDUAIS

Apesar de as expressões Direitos Humanos e Direitos Fundamentaisterem aparecido na França durante o século XVIII, e a sua formulaçãojurídico-positiva no plano do reconhecimento constitucional datar doséculo XIX, as origens de sua fundamentação filosófica remontam aosprimórdios da civilização humana.

No mundo antigo, diferentes princípios embasavam sistemas de prote-ção aos valores humanos, marcados pelo humanismo ocidental e pelohumanismo oriental. Assim, distintos ordenamentos jurídicos da Anti-

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güidade, como o Código de Hamurabi, ou os Dez Mandamentos, previamprincípios de proteção de valores humanos através de uma concepçãoético-religiosa.

Durante a chamada Idade Média européia, se constituiu ojusnaturalismo cristão, cuja fonte principal foi o pensamento de SãoTomás de Aquino. A lei humana e as instituições políticas estavamsubordinadas ao direito divino, onde a proteção dos seres humanosseria uma dádiva de Deus, expressa nas ações do soberano em seuexercício absoluto do poder. Os valores considerados fundamentaispara os seres humanos tinham como fonte de legitimidade a vontadedivina em sociedades fechadas, onde o espaço dos interesses privadosse identificava - podemos mesmo dizer que se confundiam - com oespaço de interesse público. Tratava-se de sociedades onde não exis-tia a noção de igualdade formal entre as pessoas, mas sim de relaçõesbaseadas nos privilégios - leis privadas - de cada classe social organiza-das dentro de uma estrutura rígida onde praticamente inexistia a mo-bilidade social.

Tal sociedade tem por base uma formação sócio-política-econômia -Cristandade - fundada sobre argumentos de encantamento e mistificaçãoda realidade, onde a Igreja Católica não apenas serve de referência espi-ritual, mas também é a fonte do poder político proveniente do domíniosobre a terra. Neste modelo social o conhecimento científico é considera-do uma ameaça, as relações econômicas sofrem restrições e, ao invés danoção de cidadania-direito, existe a noção de soberania-súdito-privilé-gio. Dessa maneira, é uma sociedade que tira a sua legitimidade davontade divina e a noção de proteção das pessoas se restringe ao âmbitoda igualdade cristã perante Deus.

Foi somente a partir da passagem do século XV para os séculos XVI eXVII que surgiram as condições objetivas e subjetivas que possibilitarama modificação das referências de conhecimento, com o desenvolvimentode novos paradigmas sócio-culturais, éticos, estéticos, que se expressa-ram através do Renascimento e da Reforma Protestante, onde a valoriza-ção do indivíduo e o desenvolvimento da noção de livre arbítrio abriu ocaminho para a posterior constituição do modelo jusnaturalista moderno.

Portanto, o processo que levou à constituição da noção de Indivíduo-Pessoa Humana como valor-fonte de ordenamento da vida social, se apre-sentou formalmente a partir do jusnaturalismo moderno com a elaboração

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da noção de direitos inatos, como verdade evidente, medida da comunida-de política, mas dela mantendo-se independente. Tal processo marca apassagem para uma nova era, o Projeto Civilizatório da Modernidade, quetem como principais elementos fundantes os conceitos de universalidade,individualidade e autonomia. É, portanto, desta matriz civilizatória que seconstitui a referência-valor dos Direitos Fundamentais do Ser Humano.

“A passagem das prerrogativas estamentais para os direi-tos do homem encontra na Reforma, que assinala a pre-sença do individualismo no campo da salvação, um mo-mento importante de ruptura com uma concepção hierár-quica de vida no plano religioso, pois a Reforma trouxe apreocupação com o sucesso no mundo como sinal da sal-vação individual.” 6

Partindo da ruptura dos referenciais sócio-culturais do medievo, a noçãode direito natural se laiciza - primeiramente com Grócio mas, sem dúvidanenhuma, principalmente a partir de Hobbes. 7

Ou seja, a partir do século XVI - e mais precisamente do séculoXVII - se formulou a moderna doutrina sobre os direitos naturais, pre-parando o terreno ideológico e político para a transição do feudalismopara a sociedade burguesa. Tratava-se não mais dos direitos naturaisfundados no direito divino, mas sim de propor a razão como o funda-mento do direito.

Foi, principalmente a partir do século XVII, com o pensador inglêsThomas Hobbes, que se desenvolveu o chamado modelo jusnaturalistamoderno, onde a fundação do Estado Político seria resultado de umaação racional através da manifestação da livre vontade dos indivíduos.Inicia-se um tipo de formulação que passou a influenciar o pensamentofilosófico-político, levando à constituição do modelo liberal da socieda-de e do Estado.

Com outro pensador inglês, John Locke, já no final do século XVII,

6. LAFER, Celso. A reconstrução dos Direitos Humanos. Um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt.Companhia das Letras. São Paulo, 1988. pag. 121.

7. Ver BOBBIO, Norberto e BOVERO, Michelangelo. Sociedade e Estado na Filosofia Política Moderna. EditoraBrasiliense, São Paulo. 2ª Edição.

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desenvolveu-se a teoria da liberdade para proteger a propriedade comovalor fundamental.8

Assim, para Locke, a condição prévia para o pleno exercício da liber-dade seria a garantia do direito à propriedade. Dessa concepção indivi-dualista burguesa, que marca o pensamento lockeano, nasceu a modernaidéia do cidadão, e de uma relação contratual entre indivíduos, onde apropriedade, a livre iniciativa econômica, e uma relativa margem de li-berdades políticas e de segurança pessoal seriam garantidas pelo PoderPúblico.

Locke, portanto, apontava a propriedade como o direito natural fun-damental e inalienável do ser humano, o direito-fonte, do qual decorremos demais direitos dos indivíduos. A proteção ao direito natural da propri-edade seria, então, o motivo pela qual cada indivíduo cede parcelas desuas liberdades e direitos para a formação da instância que protegerá aexistência desse direito, ou seja, o Estado-Governo.

A noção jusnaturalista do Contrato Social, como gênese do Estado, foidifundida durante o século XVIII, dando origem à concepçãocontratualista do direito e da sociedade. O contratualismo, tendo porbase a igualdade jurídica, aparece como forma de superação do direitobaseado em privilégios - fundado no “status” - e a constituição de umdireito baseado na vontade individual. O indivíduo passa a ser entendidocomo valor-fonte do direito.

No contexto do século XVIII, caracterizado pela Filosofia Iluminista,e por uma radicalização do confronto anti-absolutista, foram apresenta-das as idéias de pensadores como Jean-Jacques Rousseau (1712-1778)que inspiraram os movimentos revolucionários na França e na América. Éo período que preparava as grandes transformações sociais e políticas quelevaram à elaboração da Declaração de Direitos de Virgínia, em 1776, e

8. É importante notar que Locke utiliza a noção de propriedade com dois sentidos: a). o primeiro, mais amplo,como o conjunto das capacidades e potencialidades do indivíduo para a manutenção da própria existênciae da sua liberdade. Trata-se da noção de propriedade enquanto particularidade humana de autodetermi-nação; b). o segundo sentido, restrito, seria entendido como o resultado do exercício da propriedade quecada ser humano tem de determinar a própria existência através de sua relação com a natureza eutilizando a sua potencialidade e criatividade através do trabalho. O resultado é a constituição dapropriedade material, produto do trabalho humano individual, no exercício de um direito inalienável deautodeterminação e auto-suficiência humana.

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da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada pela As-sembléia Nacional francesa, em agosto de 1789.

O pensamento de Rousseau desenvolveu-se afirmando a existênciade uma condição natural humana de felicidade, virtude e liberdade. Aocontrário de Locke, entendia que é a civilização que limita as condiçõesnaturais de felicidade humana. Assim, Rousseau afirmou que o “homemnasce livre, e por toda a parte encontra-se a ferros”.9

Para Rousseau, a propriedade era a fonte da desigualdade humana e,como tal, da perda da liberdade. Os indivíduos através de um pacto iní-quo, iludidos, teriam formado a sociedade civil, onde tornaram-se desi-guais e prisioneiros. Presos à uma ordem desigual, visto que alguns teriamse apropriado de forma fraudulenta dos bens da natureza que a todospertencem. O resgate da condição natural de liberdade e igualdade so-mente seria possível com um novo pacto, dessa vez racional, com base navontade livre e consciente de cada indivíduo e objetivando a constitui-ção da República, como patamar superior das condições do Estado deNatureza. Através do Contrato Social os indivíduos recuperariam a suaigualdade, como condição primeira para o exercício do direito da liber-dade. Assim, os indivíduos não deveriam abrir mão de sua soberania.

É interessante notar que o pensamento de Rousseau ultrapassa as limi-tações elitistas do liberalismo clássico, introduzindo uma concepção radi-cal-democrática que se coaduna com as condições históricas da França doséculo XVIII, onde a burguesia aparecia no cenário político-social comouma classe revolucionária em luta contra o absolutismo feudal, aglutinandoem torno de seus projetos um enorme contingente de setores, possibilitandoo amadurecimento das condições subjetivas que levaram à derrocada doAntigo Regime e a instauração da nova ordem burguesa.

Foi a partir dessas lutas travadas pela burguesia européia contra o Es-tado Absolutista que se criaram as condições para a instituição formal deum elenco de direitos que passariam a ser considerados fundamentaispara a totalidade dos seres humanos. E esse elenco de direitos coincidiacom as aspirações de amplas massas populares em sua luta contra os privi-légios da aristocracia. No entanto, em última instância, eram direitosque primeiramente satisfaziam os interesses da burguesia, dentro do pro-

9. ROUSSEAU, J.J. Do Contrato Social. Os Pensadores. Abril Cultural. São Paulo, 1973. pag. 28.

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cesso de constituição do mercado livre (direitos da liberdade expressan-do-se como livre iniciativa econômica, livre manifestação da vontade,livre cambismo, liberdade de pensamento, opinião e expressão, liberdadereligiosa, liberdade de ir e vir, mercado de trabalho livre, etc.) e conse-qüentemente criando as condições para a consolidação do modo de pro-dução capitalista. Para isso, foi fundamental a formação do Estado Liberale o reconhecimento constitucional de direitos dos indivíduos.

Sob a inspiração da Constituição dos Estados Unidos da América, osdemais países das Américas, recém independentes, passaram por um pro-cesso de constitucionalização dos Direitos Humanos, através da positivaçãodos direitos individuais, agregando um capítulo específico sobre o temaem suas Cartas Magnas. Estas constituições, restringem-se, assim, ao re-conhecimento das garantias individuais, ou melhor, os direitos de cadaindivíduo perante o Poder Público.

Dessa maneira, os Direitos Humanos, em seu primeiro momento mo-derno, ou em sua primeira geração, são a expressão das lutas da burguesiarevolucionária, com base na filosofia iluminista e na tradição liberal, con-tra o despotismo dos antigos Estados Absolutistas. Se materializam comoDireitos Civis e Políticos, ou como Direitos Individuais atribuídos - se-gundo a tradição jusnaturalista - a uma pretensa condição natural do serhumano. São a expressão formal de necessidades individuais que, naque-le momento de luta anti-absolutista, requerem a abstenção do Estadopara a garantia de seu pleno e livre exercício. O legado do jusnaturalismonos proporciona direitos que não devem ser invadidos pelo Estado, e quepor este devem ser protegidos contra a ação de terceiros. 10

2. OS DIREITOS DA IGUALDADE: DIREITOSCOLETIVOS OU DIREITOS ECONÔMICOS,SOCIAIS E CULTURAIS

A segunda metade do século XVIII assistiu a grandes transformaçõesna sociedade capitalista liberal, ganhando um desenho mais definido napassagem para o século XIX. Assim, os primeiros setenta anos do século

10. Ver BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. Editora Brasiliense. São Paulo. 1988. 2ª Edição.

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XIX marcaram a consolidação do Estado Liberal e o fenomenal desenvol-vimento da economia capitalista urbano industrial. Por outro lado, a li-berdade do mercado, a necessidade de desenvolvimento no processo pro-dutivo para fazer frente à competição, a consolidação dos mercados naci-onais nas sociedades da Europa Ocidental - principalmente na Inglaterra-, a formação do proletariado urbano, a progressiva concentração do capi-tal, entre outras coisas, passaram a apresentar os primeiros sinais de criseda nova sociedade capitalista.

Após o período denominado de “Era das Revoluções” pelo historiadoringlês Eric Hobsbawn, temos já formado o Estado Liberal burguês, umaeconomia capitalista de mercado com base industrial, um ordenamentojurídico adequado ao funcionamento de instituições de uma sociedadeburguesa. É o início da “Era do Capital”, que se desenvolveu e levou, nodecorrer do século XIX, ao surgimento de contradições no seio do própriosistema.

O novo quadro do capitalismo faz com que a ideologia liberal sejainadequada para dar resposta às constantes crises, aos conflitos e contra-dições sociais. A ideologia liberal passa a ser questionada pelo movimen-to operário e pelo pensamento socialista. Por outro lado, procurará seredefinir através do processo de valorização científica, influenciado pelafilosofia positivista, que marcou o século XIX. O positivismo surge bus-cando explicar a realidade social visando a manutenção da ordem bur-guesa. É dentro desse marco que surgem as “Ciências do Homem” comoum conjunto de disciplinas pretensamente científicas que explicariam osproblemas sociais existentes na sociedade burguesa-industrial, legitiman-do suas práticas discriminatórias, racistas, etnocêntricas e marginalizadorasde grandes contingentes populacionais.

A Revolução Industrial, ao mesmo tempo que elevou a patamares nuncavistos na história humana a capacidade de produção e a produtividadedo trabalho, destruiu violentamente o modo de vida tradicional dos tra-balhadores e introduziu a rígida disciplina do sistema fabril. As condiçõesda vida dos trabalhadores eram deploráveis, com jornadas de trabalho -inclusive de crianças e mulheres - de cerca de 15 horas diárias, sem leissociais, trabalhistas ou previdenciárias protetoras, sob condições de com-pleta insegurança. As condições de vida nas cidades também eram terrí-veis, no que se refere à moradia, ao saneamento básico e à infra-estruturanecessária para a garantia de condições dignas de vida. O resultado erauma legião de desempregados, miseráveis, e diversos problemas sociais

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como a mendicância, o alcoolismo, a prostituição, o banditismo, a loucu-ra, etc.11 O positivismo identificava esses problemas sociais como “resquí-cios do passado”, onde o modelo capitalista seria isento de responsabili-dade.

Nesse contexto, os Direitos Humanos serão entendidos não mais comoum produto normativo do Estado ou uma garantia de reconhecimento dedireitos àqueles indivíduos adequados aos valores da sociedade burguesa.

Do ponto de vista do pensamento socialista, o marxismo apresentou-secomo a crítica mais contundente à referência liberal. Observamos queKarl Marx, em “ A Questão Judaica”, de 1844, analisa a concepção deDireitos Humanos como princípios de caráter individualista-burguês,marcados pela ideologia liberal. Dessa maneira, a pretensão a um caráteruniversal desses direitos não afastaria a sua verdadeira natureza liberal-burguesa. Ao contrário, a sua universalidade aparece exatamente quan-do a burguesia revolucionária do século XVIII conseguiu encarnar, comoconquista sua, as demandas e interesses de amplos segmentos humanos eque puderam ser generalizados na luta contra o poder despótico do abso-lutismo. Por outro lado, para Marx, as declarações formais de DireitosHumanos não faziam nada mais do que formalizar as condições reais dasociedade burguesa, com uma separação entre os espaços público e priva-do. Essa dicotomia público-privado se materializa com a distinção entreas esferas de atuação do ser humano. Uma clara separação entre o “Ho-mem” e o “Cidadão”. Dessa maneira, os Direitos Humanos seriam os di-reitos que se estabelecem na esfera privada, o que remeteria às condiçõesdo mercado, ou o posicionamento de cada indivíduo na sua distinçãocom os outros humanos (cristãos e judeus; nacionais e estrangeiros; ope-rários e patrões; homens e mulheres; etc.). Seriam direitos do ser humanoegoísta, individualista, motivado apenas pelos seus interesses particula-res. A ética do Homem Burguês.

Enquanto isso, a esfera do “Cidadão” seria aquela de cada ser humanona sua relação com a coletividade, sua esfera pública. No fundo o “Cida-dão” da sociedade burguesa, para Marx, seria uma figura de retórica, umente abstrato de igualdade pública que pouco ou nada representava noespaço real da existência que seria o espaço privado, ou o mercado, onde

11. Ver HUNT, E.K. História do Pensamento Econômico: Uma Perspectiva Crítica. Editora Campus. Rio de Janeiro.1982; HUNT E.K. & SHERMAN, H.J. História do Pensamento Econômico. Editora Vozes. Petrópolis. 1978.

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na prática se reproduziriam as diferenças, as desigualdades, a opressão e aexploração, com base nessas diferenças.

As obras posteriores de Marx mantiveram a concepção de que os Di-reitos Humanos proclamados em documentos liberais apenas concretiza-va uma divisão entre “Homem-Indivíduo” da sociedade civil-mercado eo “Cidadão”. E os direitos reconhecidos seriam os direitos daquele “Ho-mem-Indivíduo”, egoísta, separado do espaço público. Essa concepçãoacompanha a típica dicotomia das sociedades burguesas entre os espaçospúblico e privado.

Claude Lefort, no livro “A Invenção Democrática: Os Limites do To-talitarismo” 12, de 1981, questiona alguns pontos referentes às observa-ções de Marx, principalmente a sua omissão em relação aos artigos daDeclaração de Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa,que dispõem sobre a liberdade de pensamento, de expressão política ereligiosa e de comunicação, enquanto direitos de clara repercussão cole-tiva. Recoloca-se a questão partindo das experiências totalitárias do sé-culo XX (nazi-fascismo e estalinismo) e das experiências dos RegimesBurocrático-Autoritários de corte militar da América Latina. Ao partirdessas realidades podemos rever alguns dos conceitos trabalhados porMarx, principalmente no que se refere ao direito de opinião e de expres-são, e a sua dimensão coletiva. E foi exatamente nas experiências do nazi-fascismo e do estalinismo que os seres humanos foram transformados emindivíduos isolados, dissolvendo a individualidade em um coletivo decontrole absoluto. Nessas experiências o coletivo não chegava a ser aexpressão do público, não ocupava o espaço público como sujeito socialautônomo com consciência e projeto definidor de sua prática social, aocontrário, o coletivo era o espaço de dissolução da individualidade numamassa amorfa, sem definição, sem consciência de classe ou de uma capa-cidade própria de intervenção direta no espaço de sociedade.

No entanto, o que o pensamento socialista e a prática do movimentooperário do século XIX questionava era a existência de uma enorme con-tradição entre os enunciados da doutrina liberal da burguesia revolucio-nária anti-absolutista, formalmente divulgados nas declarações de direi-tos, e a realidade vivida quotidianamente por uma ampla maioria do povo.

12. Ver LEFORT, Claude. A Invenção Democrática: Os Limites do Totalitarismo. Editora Brasiliense. São Paulo.2ª Edição.

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Os trabalhadores encontravam-se submetidos às mais duras condições deexistência. A lógica de existência e funcionamento do Estado Liberal nãoadmitia a hipótese da intervenção pública na questão social. Dessa ma-neira, estava descartada a possibilidade de regulamentação do mercadode trabalho, da existência de uma legislação social protetora e de umapolítica previdenciária. Todas essas questões sociais referentes às rela-ções entre capital e trabalho deveriam ser reguladas pelo mercado livre.Com isso, o desemprego era grande, a remuneração insuficiente para ga-rantir uma vida digna, a jornada diária de trabalho - como vimos antes -poderia chegar a 16 horas, o trabalho infantil era utilizado sem limita-ções, as trabalhadoras não tinham direitos reconhecidos de acordo com asua condição específica de mulher, a salubridade e as condições de segu-rança no trabalho não eram garantidas, etc. No que se refere às condi-ções gerais de vida, outros problemas apareciam, como o desemprego, afalta de moradia, a inexistência de serviços públicos de saúde, a falta deacesso à educação, etc.

Existia, portanto, um verdadeiro fosso entre o enunciado das declara-ções de igualdade de direitos, de liberdades para todos os seres humanos, ea vida real dos trabalhadores urbanos. E isso representava o mais radicalquestionamento aos princípios liberais dos Direitos Humanos ou, pelo me-nos, demonstrava as limitações de uma concepção meramente formal edeclaratória de direitos, que era insuficiente para a garantia do efetivoexercício dos mesmos. Ter formalmente expresso em um dispositivo consti-tucional o direito à vida, ou à propriedade, não garantiria necessariamenteque todos viveriam ou seriam proprietários. Uma das características do ca-pitalismo é exatamente a concentração da propriedade dos meios de pro-dução nas mãos de poucos proprietários privados. Ou ainda, num planoabstrato, a idéia de que se trata de uma sociedade de proprietários: poucossão proprietários de meios de produção e a imensa maioria proprietária dasua força-de-trabalho. Dessa maneira, da mesma maneira que princípiosabstratos de igualdade formal, de liberdade individual como requisitos ne-cessários para a felicidade humana não garantiriam nem a igualdade mate-rial, nem a liberdade real, e muito menos a felicidade.

Se por um lado essas declarações de princípios tiveram um papel im-portante e civilizatório no empenho revolucionário da burguesia dos sé-culos XVII e XVIII contra o despotismo, o obscurantismo, a superstiçãodo “ancién régime”, por outro, no decorrer do século XIX, confrontadoscom uma realidade de contradições antagônicas no seio da ordem capita-

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lista, onde a própria burguesia já era outra - agora conservadora - taisprincípios caem no vazio, deixam de ter sentido apenas declaratório epassam a fazer parte das pautas de reivindicação do movimento operário edos demais movimentos populares da cidade e do campo. Os movimentossociais passam a exigir que a noção de liberdade se materialize na liber-dade de associação sindical, na livre participação política, obrigando àampliação do Estado e a socialização da política através da adoção dosufrágio universal e do surgimento dos primeiros partidos políticos de tra-balhadores; exigindo, também, que a noção de igualdade não se restrinjaa uma declaração formal dos enunciados legais, mas que se materializeem políticas públicas do Estado visando garantir efetivas melhorias nascondições de trabalho dos trabalhadores e nas condições gerais de vidade toda a população pobre; exigem que a noção de propriedade se con-cretize como o verdadeiro direito a ser proprietário dos meios de produ-ção, principalmente apontando as formas de propriedade coletiva e o acessoà propriedade fundiária através da reforma agrária, visto que os temposheróicos das revoluções burguesas aliadas ao campesinato já tinham fica-do para trás.

As opressivas condições de vida impostas aos trabalhadores europeusdurante o século XIX levaram os sindicatos e os partidos socialistas areivindicarem a intervenção do Estado na vida econômica e social, visan-do a regulamentação do mercado de trabalho.

Por outro lado, o próprio capitalismo encontrava-se em transformação.O capitalismo não era mais o simples sistema produtivo da livre concor-rência, como no século XVIII e na primeira metade do XIX. Principal-mente a partir dos anos setenta do século passado já se anunciava a fasemonopolista do capitalismo, organizado com base em grandes conglome-rados econômicos. Essa nova etapa do desenvolvimento capitalista re-queria uma organização econômica baseada numa nova divisão interna-cional do trabalho - o imperialismo clássico desempenhou um papel im-portante nesse processo - e uma nova lógica que obrigou a uma redefiniçãoda ideologia liberal clássica e do papel do Estado. Este, gradativamente,deixa de ser o “árbitro” da sociedade e passa a assumir o seu papelinterventor nas atividades econômicas e sociais.

A crítica do pensamento socialista e as lutas operárias e popularescolocaram como necessários os Direitos Coletivos, ou Direitos Econômi-cos, Sociais e Culturais. A situação de crise e desigualdade social, soma-da à concentração do capital, tornou insuficiente a interpretação liberal

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sobre os Direitos Humanos, entendidos como supra-estatais, inerentes àuma razão natural do ser humano, independente dos condicionamentossociais, históricos, culturais, das contradições de classe, etc.

Se, para a concepção liberal, a garantia dos direitos necessitaria de umaabstenção do Estado, deixando aos indivíduos a melhor maneira de exerceros seus direitos individuais, as lutas sociais reivindicavam a presença efetivado Estado através de políticas públicas e leis que promovessem os DireitosEconômicos, Sociais e Culturais.

Como dissemos antes, o movimento operário e as lutas populares base-ados no pensamento socialista foram os elementos que possibilitaram tor-nar conseqüentes os direitos humanos ampliando seu campo de atuação eintegrando a noção dos chamados direitos individuais com os direitoscoletivos. Não basta ser cidadão individual, com uma participação formalnas decisões políticas, por exemplo. É necessário a presença pública ga-rantindo o exercício dos direitos individuais e a proteção igualitária nocampo social, exigindo uma ação positiva do Estado, criando condiçõesinstitucionais para o seu efetivo exercício.

A partir da conscientização do proletariado, tornando-se classe parasi, do aparecimento dos primeiros partidos socialistas de massa, da atua-ção dos trabalhadores no âmbito da política institucional e as conseqüen-tes conquistas populares, garantindo a ampliação do conteúdo de Direi-tos Humanos, a Igreja Católica se vê obrigada a formular a sua modernadoutrina social apresentando a Encíclica Papal “Rerum Novarum”, de 1891.

Durante as primeiras duas décadas do século XX, a Constituição Me-xicana de 1917; a Revolução Russa de 1917 com o início da formação doprimeiro Estado Socialista e a primeira Constituição Soviética ; a Consti-tuição da República de Weimar, na Alemanha, de 1919; e a criação daOrganização Internacional do Trabalho (OIT), ampliaram a abrangênciados Direitos Humanos, possibilitando dar os contornos jurídicos regula-dores das condições de trabalho e das demais condições sociais. Assim, aampliação da concepção dos Direitos Humanos, entendidos não maisapenas como os clássicos direitos da primeira geração, mas também incor-porando os chamados direitos da segunda geração (Direitos Econômicos,Sociais e Culturais), direitos que exigem a ação positiva do Estado, criacondições institucionais para o seu efetivo exercício.

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3. OS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE:DIREITOS DOS POVOS, NOVOS DIREITOS OUDIREITOS DE TODA A HUMANIDADE

A ampliação do conteúdo dos Direitos Humanos seguiu o caminhoaberto pelas reivindicações sociais e pelas transformações econômicas epolíticas que marcaram as sociedades nos últimos três séculos, possibili-tando importantes conquistas civilizatórias para a humanidade. Esse pro-cesso de ampliação de direitos passou a encarnar as demandas levantadaspelas lutas democráticas e populares que historicamente passaram a ex-pressar os anseios de toda a humanidade. Assim, foi com as lutas sociaiscontra o absolutismo feudal durante os séculos XVII e XVIII e nas lutascontra a exploração do trabalho, e por novos espaços de liberdade coleti-va e igualdade material que garantissem as condições de viabilização daexistência digna dos seres humanos.

Durante o século XX, após grandes conflitos sociais, novas reivindica-ções humanas, de caráter individual, social e estatal, passaram a fazer parteda cena internacional e do imaginário social das sociedades contemporâ-neas. As condições para a ampliação do conteúdo dos Direitos Humanos seapresentavam através de novas contradições e confrontos que exigiam res-postas no sentido da garantia e proteção das liberdades e da vida.

O contexto histórico inaugurado com o final da Segunda GuerraMundial abriu para a humanidade uma nova era. A luta contra os mode-los totalitários de Estado revelou ao mundo uma série de crimes contra ahumanidade cometidos por regimes de orientação fascista. Por outro ladoa experiência totalitária do estalinismo, desvirtuando os ideais do socia-lismo, colocou o chamado socialismo real no campo do totalitarismo.

A realidade após o conflito mundial tornou-se mais complexa. Junto coma valorização de um ideal abstrato de democracia, o mundo do pós-guerranasceu dividido em blocos, sob a direção político-ideológico-militar das duasgrandes potências emergentes do conflito - Estados Unidos e União Soviética-, marcado pelo signo da “guerra fria”. Iniciava-se a era nuclear, que demons-trou que a ciência, a tecnologia, o conhecimento humano podem ser utiliza-dos para a destruição e para o exercício ilimitado do poder. Com o fim daguerra, a humanidade passou a conviver com a ameaça da destruição total.

Por outro lado, as novas relações internacionais do pós-45 apresenta-

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vam novos atores nascidos do processo de descolonização da Ásia e daÁfrica, com o surgimento de novos Estados Nacionais, como também denovos conflitos regionalizados.

O final da guerra deu início a um novo ciclo de acumulação econômi-ca do capital a partir de uma nova divisão internacional do trabalho,através do modelo da transnacionalização do capital. Iniciava-se a “Eradas Multinacionais”. O período que vai de 1945 até fins da década dos 60foi marcado por um grande impulso econômico com base no capitalmonopolista internacionalizado. O processo de desenvolvimento econô-mico do capitalismo internacional, vivendo um ciclo expansivo, teve comoconseqüência imediata a ampliação do uso intensivo das fontes de ener-gia e recursos naturais de todas as regiões do planeta. Tal modelo dedesenvolvimento ampliou consideravelmente a destruição ambiental, jáiniciada desde as primeiras etapas do desenvolvimento industrial, afetan-do principalmente os países do chamado “terceiro mundo”.

Toda essa nova e complexa realidade nascida com o pós-guerra, colo-cou na ordem do dia uma série de novos anseios e demandas dos novosmovimentos sociais.

Surgem os chamados Direitos dos Povos, Direitos de toda a Humani-dade, ou Direitos da Solidariedade, considerados por alguns como a ter-ceira geração dos Direitos Humanos. São ao mesmo tempo direitos indi-viduais e coletivos, interessando à toda a humanidade e aos próprios Es-tados. São, portanto, direitos a serem garantidos com o esforço conjuntodo Estado, dos indivíduos, dos diferentes segmentos das sociedades e dasdiferentes nações.

“Estos derechos se caracterizan por tres factores: En primerlugar, son reclamables frente al Estado, pero su titular tambiénpuede ser el Estado. En segundo lugar, estos derechos requierende prestaciones positivas y negativas de toda la comunidadinternacional. Finalmente, estos derechos se involucran en elconcepto de paz en un sentido amplio, no solamente comoausencia de guerra sino, fundamentalmente, como laposibilidade de una paz integral del ser humano”.13

13. PICADO, Sonia. Apuntes sobre los fundamentos filosóficos de los derechos humanos. Antologia Básica. IIDH-CAPEL. San José, Costa Rica. 1990. pag. 45.

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Entre esses novos direitos podemos citar o Direito à Paz, o Direito aoDesenvolvimento, o Direito à Autodeterminação dos Povos, o Direito aoMeio Ambiente Saudável e Ecologicamente Equilibrado, o Direito aoPatrimônio Comum da Humanidade, o Direito à Informação.

4. A INTERNACIONALIZAÇÃO DOS DIREITOSHUMANOS

O que vai caracterizar a evolução dos Direitos Humanos, durante oséculo XX, particularmente no pós-guerra, é a sua progressiva incorporaçãono plano internacional, enquanto o século anterior presenciou o seu reco-nhecimento constitucional.

A ampliação da proteção dos Direitos Humanos para o plano interna-cional elaborou instrumentos como a Declaração Americana de Direitose Deveres do Homem, de abril de 1948; a Declaração Universal dos Di-reitos Humanos, da ONU, de dezembro de 1948; o Pacto Internacionalde Direitos Civis e Políticos, de 1966; o Pacto Internacional de DireitosEconômicos, Sociais e Culturais, de 1966; a Convenção Européia de Di-reitos Humanos, de 1950; a Convenção Americana de Direitos Humanos(Pacto de San José), de 1969; a Convenção contra a Tortura e outrosTratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, de 1984; aConvenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Ra-cial, de 1965; a Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1989; a Con-venção Interamericana par Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contraa Mulher, de 1994; etc.

Por fim, cabe ressaltar que todo o processo de fundamentação filosóficados Direitos Humanos, como a ampliação do seu conteúdo, é marcado porlutas e conquistas através da história dos povos, chegando-se a uma situaçãoem que é impossível falarmos de Direitos Humanos sem os entendermos demaneira tão ampla que inclua não apenas o reconhecimento formal das liber-dades, como também inclua os mecanismos - políticos, jurídicos, culturais eeconômicos - de sua efetivação, dentro de um contexto de compreensão dasformas de organização das sociedades e da questão democrática.

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5. DIREITO À DEMOCRACIA: DIREITO A VIVERNUMA SOCIEDADE DEMOCRÁTICA

A rigor não existe no campo da reflexão acadêmica sobre os DireitosHumanos uma sistematização em relação à democracia como direito fun-damental. No entanto alguns autores tem levantado essa questão desdefins dos anos 70. Autores como Claude Lefort e Norberto Bobbio14, entreoutros, enfretaram a questão das práticas sócio-políticas democráticas e,mais do que isso, de uma existência e uma cultura democrática comorequisitos para a efetivação dos Direitos Humanos. É verdade que Bobbiotratou o tema mais no campo institucional, ou seja, a democracia comouma forma de governo, um regime onde estão definidas as regras do jogoinstitucional democrático e as condições básicas para a garantiainstitucional dos direitos fundamentais.

A partir de tais reflexões podemos, a título de explicação sobre a ampli-ação conceitual, definir o direito à democracia como a 4ª Geração dosDireitos Humanos. O constitucionalista Paulo Bonavides chegou a afirmarexplicitamente, em artigo publicado no Jornal do Brasil 15, que os direitosdas gerações anteriores, a saber os da liberdade, os da igualdade e os dasolidariedade, formam uma pirâmide cujo ápice é o direito à democracia,como ponto culminante dos direitos antecedentes. Conclui que, ao contrá-rio dos direitos da primeira geração que devem ser interpretados, os direi-tos das gerações subseqüentes são concretos, não se bastam pelo seu enun-ciado formal. Enquanto os direitos da liberdade, as liberdades civis e políti-cas, dependem de uma abstenção do Estado, e apresentam uma força sim-bólica a partir de sua enunciação formal, os direitos das demais geraçõesdependem diretamente de sua concretização, de uma ação efetiva. No quediz respeito aos direitos econômicos, sociais e culturais, dependendo deuma ação positiva direta do Estado, a materialização de tais direitos se dácom a existência de leis e de políticas públicas distributivas. No que serefere aos direitos da solidariedade a sua concretização se dá não apenascom a participação ativa do Estado, como também de órgãos internacio-

14. Para tratar do tema da democracia e a sua relação com os direitos humanos ver os livros de Claude Lefort,A Invenção Democrática: Os Limites do Totalitarismo. Editora Brasiliense. São Paulo e Pensando o Político:Ensaios sobre Democracia, Revolução e Liberdade. Editora Paz e Terra. Rio de Janeiro, 1991; de NorbertoBobbio ver O Futuro da Democracia. São Paulo, Paz e Terra, 1984 e A Era dos Direitos. Editora Campus, Riode Janeiro, 1992.

15. Paulo Bonavides, “A Globalização que interessa”, Jornal do Brasil, 16/01/96.

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nais, organizações não-governamentais, movimentos sociais, etc. E no casodo direito à democracia, o papel da sociedade civil é fundamental, desdeque nosso entendimento não seja restrito e, ao contrário, a identifiquecomo resultado das práticas sócio-políticas e culturais. No entanto, nãopodemos perder de vista o potencial revolucionário e transformador da de-mocracia onde a noção de cidadania individual deixa de ser passiva, comona tradição liberal, e aparece como uma força simbólica capaz de liberarenergias sociais de luta capazes de criar as condições para conquistas nocampo da cidadania coletiva.

Sem dúvida, existem questões que se entrelaçam nesse campo. Por umlado, as questões relacionadas ao Estado Democrático em contraste comas inúmeras formas burocrático-autoritárias e, principalmente, com o Po-der Totalitário. Por outro lado, questões referentes ao exercício da cida-dania.

É neste campo que se coloca o anseio de uma vida democrática, ou daexistência social num ambiente democrático como uma reivindicação ouuma demanda humana, individual e coletiva, onde a existência de umEstado Democrático de Direito aparece como o resultado das práticas doscidadãos e do respeito aos direitos fundamentais. Trata-se, dessa manei-ra, de entender a democracia não como simples regime político, ou comoforma de governo, mas sim como forma social, como prática sócio-políticaque se expressa no espaço cultural.

Uma das questões mais importantes colocadas é sobre a capacidadedos direitos humanos serem meio de luta que tem contribuído para aemergência e a consolidação democrática.

Se no decorrer do século XIX, principalmente na sua primeira meta-de, o Estado Liberal se apresentava como “guardião” das liberdades ci-vis, embora assegurando a proteção de interesses dominantes, as lutassociais e as modificações do capitalismo e do próprio Estado possibilita-ram a ampliação do espaço político marcando o advento da sociedadeliberal-democrática com a conquista do sufrágio universal masculino(as limitações dos direitos da cidadania permaneceram por longo tempopara as mulheres), a liberdade de opinião, a liberdade de associaçãopara os trabalhadores, o direito de greve, etc. Trata-se, portanto, detransformações impulsionadas não apenas pelas lutas dos trabalhadorese pela influência dos pensamentos socialista e libertário, mas tambémpela própria mutação dos padrões de acumulação capitalista que ampli-

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aram os espaços de mercado interno incorporando, como consumidores-contribuintes, amplos contingentes sociais subalternos. É assim que acompreensão do sentido dos direitos humanos no quadro dos Estados deBem-Estar Social requer uma análise do significado histórico e das trans-formações ocorridas no Estado Liberal e a própria consolidação de práti-cas democráticas.

Na sua caracterização do Estado Democrático de Direito, Lefort 16

faz o contraponto com o Estado Totalitário. Parte da noção do totalita-rismo não como regime, mas como forma de sociedade, onde o núcleode poder se fundamenta em nome da verdade absoluta, ou do saber, ouda ciência, ou da história. O poder totalitário faz coincidir absoluta-mente a esfera pública com a esfera estatal e esta se confunde com oprivado, não deixando espaço de autonomia para o desenvolvimentodas liberdades civis e políticas. Já a democracia implica afirmar uma“fala”, que é distinta do próprio poder do Estado. O poder totalitárioignora essa “fala”, e só reconhece a “fala” que esteja dentro de suaórbita de influência direta. O discurso totalitário do poder basta por si.Falta, assim, autonomia para a sociedade civil. Os indivíduos não sãotratados como cidadãos e aquilo que seria considerado direito não pas-sa de um disfarce para as práticas assistenciais do Estado. Seria, portan-to, a existência das liberdades civis e políticas a condição indissociávele geradora do debate democrático.

Para Lefort, portanto, não existem direitos numa sociedade totalitária,visto que a lógica da sua existência não é o bem-estar. A lógica que preva-lece numa sociedade totalitária é do poder do Estado, do Partido-Estado.

Desta análise, Lefort parte para a compreensão da democracia comoforma de sociedade. As liberdades civis e políticas são os requisitos paraexistência de um debate público que se expressa como debate democrá-tico. Ou seja, sem as liberdades democráticas, mesmo quando apenasexpressas em enunciados formais, não é possível existir democracia. Sãotais liberdades, inclusive, que garantem as condições de reivindicação,protesto e demanda para o reconhecimento de direitos econômicos, so-ciais e culturais.

Devemos perceber o caráter radical e subversivo da democracia no

16. Ver LEFORT, Claude. Os Direitos do Homem e o Estado-Providência. In Pensando o Político: Ensaios sobreDemocracia, Revolução e Liberdade. Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1991.

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sentido da ampliação das liberdades, e do potencial que abre para asforças sociais se expressarem e ocuparem o espaço público com autono-mia, independência e formas próprias de participação e organização, comum objetivo transformador. Portanto, o projeto de autonomia individual ecoletiva está na base de uma sociedade democrática e os Direitos Huma-nos, mesmo quando individuais, têm uma natureza social e política por-que supõem uma dinâmica no campo das relações sociais.

Assim, os Direitos Humanos são substanciais a uma sociedade demo-crática. E é em nome de tais direitos que se possibilita o debate público-democrático, a contestação, a democracia, a luta e o conflito democráti-co, constituindo o espaço público, de “fala” e ação, possibilitando o exer-cício, individual e coletivo, da cidadania.

Dessa forma, enquanto para a tradição liberal a ênfase é na cidadaniapassiva, que emana do poder do Estado, enquanto direitos reconhecidos(e a tradição marxista tradicionalmente deu ênfase ao processo de lutassociais e de direitos como conquista de uma cidadania ativa), Lefort ampliaseu entendimento incorporando a dimensão simbólica da democracia comoexpressão transformadora radical e subversiva. O que se evoca é que ademocracia é uma forma de relação social onde todos podem participar,produto do conflito social. Assim, o projeto de uma democracia radical éfundamentalmente revolucionário e uma idéia altamente subversiva paraqualquer tipo de poder.

O reconhecimento da democracia no campo dos direitos fundamen-tais, ou como condição básica para a garantia dos demais direitos huma-nos, nos coloca perante um debate sobre a questão da relação entre osDireitos Humanos, a Cidadania e o Estado Democrático.

6. CIDADANIA, DIREITOS HUMANOS EDEMOCRACIA

As teorias da cidadania moderna partem da existência do Estado-Na-ção. Define, portanto, aqueles que são membros de uma sociedade comum,de uma coletividade. Assim, o sua natureza política está presente.

Primeiramente, é necessário observar a existência de um ponto detensão entre o conceito de Cidadania e a noção de Direitos Humanos,

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pois se restringimos a Cidadania aos nacionais, aos membros de um comu-nidade nacional ou de uma sociedade comum, passa a existir umdistanciamento relativamente à concepção mais ampla de Direitos Hu-manos, estes últimos gerais, universais, não diretamente vinculados à ins-tância nacional.

Diferentes autores trataram o tema, mas devemos partir de uma aná-lise crítica da obra do autor inglês T. H. Marshall, “Cidadania e ClasseSocial”, do ano de 1950. Para o autor, a plena expressão da cidadaniarequer a existência de um Estado de Bem-Estar Social Liberal-Demo-crático. Dessa maneira, Marshall trabalha com a noção de integraçãosocial, dentro de uma perspectiva liberal-reformista keynesiana. O au-tor centra a sua análise na natureza da cidadania na Inglaterra do pós-guerra. É uma concepção de “cidadania passiva” ou “privada”, visto queo exercício dos direitos não implica numa obrigação social de participa-ção na vida pública, dependendo apenas da capacidade assistencial doEstado.17

Marshall parte da noção de status. A cidadania seria um “status conce-dido àqueles que são membros de uma comunidade”. Se a noção da cida-dania é incompatível com a desigualdade formal fundada no sistema deprivilégios das sociedades feudais pré-burguesas, requer, portanto, a igual-dade formal jurídica, a existência de uma medida única de valor jurídi-co, um direito único igual para todos.

A teoria de Marshall leva a um rompimento com a tradição liberal decidadania das Revoluções Burguesas, ligada apenas aos direitos políticos,ampliando-a com os direitos civis e sociais.

Assim, Marshall conceitua a cidadania partindo de seus três elemen-tos constitutivos, direitos civis, direitos políticos e direitos sociais, fazendouma análise das relações entre a cidadania, a sociedade e os órgãosinstitucionais que garantem o seu exercício. Portanto, parte de uma rela-ção instrumental entre cidadania, poder político e Estado.

17. Os autores canadenses Will Kymlicka e Wayne Norman denominaram essa concepção de Teoria Ortodoxado Pós-Guerra. Ver destes autores o artigo El Retorno del Ciudadano: Una revisión de la producción reciente enteoría de la ciudadanía. In Cuadernos del CLAEH, nº 75, Montevidéo, Uruguay, 1996.

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ELEMENTOS DA CIDADANIA

CIDADANIA Direitos Civis Direitos Políticos Direitos SociaisCaracterística Liberdade Liberdades Direitos

Individual Públicas Coletivos

Instituição Justiça Parlamento Serviços SociaisCivil Representação Educação

Estado (papel) Negativo Negativo Positivo

Forma Estado Estado Estado Socialde Estado de Direito Democrático

Referência Tradição Tradição Tradiçãoteórica Liberal Democrático Socialista

-Republicana

Para a teoria marshalliana, a existência de um suporte institucionalestatal através de políticas públicas de serviços sociais e educacionais éfundamental para a existência da cidadania ampliada. Do contrário, nãopassaria de um enunciado formal vazio, sem essência. Portanto, paraMarshall, mesmo os direitos civis e políticos dependem do Estado. Comose poderiam efetivar os direitos civis sem a instituição de uma JustiçaCivil e os procedimentos de acesso à Justiça como meio para garantir aigualdade de todos perante a lei? Ou, como garantir o direito político departicipação e representação sem uma instituição como o Parlamento?Assim, são as instituições do Estado - com políticas sociais e instituiçõespúblicas - que efetivam os direitos civis, políticos e sociais.

Portanto, o autor inglês estabelece um corte importante com a noçãoliberal de cidadania, ligada apenas aos direitos políticos, e amplia a suanoção com os direitos civis e sociais.

Indica, ademais, que o desenvolvimento de um Estado Social conduzà evolução e ampliação da cidadania, deixando de ser um sistema dedireitos que se originam nas relações de mercado para se transformar emum sistema de direitos que são, em parte, antagônicos a esse sistema demercado e à desigualdade de classes sociais - embora considere a desi-gualdade das classes, desde que não excessiva, como necessária e funci-onal ao sistema, pois estimularia o esforço pessoal e determinaria a rela-ção de poder. A questão se coloca pela constatação da ampliação da ci-dadania e, ao mesmo tempo, pela manutenção da desigualdade atravésdo sistema de classes nas sociedades capitalistas do século XX, o que,

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para Marshall, não se trata de uma contradição.

Em última instância, Marshall buscou demonstrar como a cidadaniatem alterado o padrão de desigualdade social. No entanto, permanece acontradição entre os direitos sociais e o valor do mercado. Existiriam de-sigualdades permitidas ou moldadas pela cidadania. Assim, as desigual-dades podem ser toleradas no seio de uma sociedade considerada iguali-tária, desde que dentro de limites precisos, devendo tais desigualdadesser dinâmicas, oferecendo estímulo para a mudança e aperfeiçoamento,de modo a possibilitar a diminuição dessa desigualdade existente. Dessamaneira, Marshall, acredita que a cidadania social possibilita umestreitamento na distância da desigualdade.

Marshall trabalha pela ótica do Estado instituído, representado peloEstado de Bem-Estar Social, e não do instituinte, ou seja, uma ótica dasociedade civil, que se expressaria nos movimentos sociais. Com Marshallexiste, portanto, uma reificação da experiência inglesa do Estado Social,como um modelo que se universaliza. Sua concepção se dá no contextohistórico dos anos 50, em plena “guerra fria”, onde uma definição no cam-po da social-democracia européia passava a ser fundamental como umcontraponto social alternativo de combate ao modelo socialista.

Como Marshall trabalha com uma idéia de evolucionismo, a cidada-nia seria sempre ascendente. Assim, sua teoria aparece como o próprio“fim da cidadania”, o seu alcance superior sob uma institucionalidade do“Welfare State”.

A partir do final dos anos 80 há uma reabilitação de Marshall. A crisedos modelos de Estado Social - seja na sua versão liberal-reformista doEstado de Bem-Estar, seja na sua versão socialista - possibilita a hegemonianeoliberal e retrocessos profundos no campo dos direitos sociais. Apesarde ser um autor liberal-reformista, que se baseia no keynesianismo,Marshall, ao incluir os direitos sociais e o papel do Estado no conceito decidadania, passa a receber duras críticas dos neoliberais. Para oneoliberalismo, o Estado de Bem-Estar Social, com suas políticas sociais,gera a crise fiscal, a inflação e encarna a figura do mal, um agente doparasitismo social financiado pelo Estado, um agente da corrupção, dafalta de caráter moral, pois não estimularia o esforço pessoal e a acumula-ção competitiva, mas sim a acomodação. Toda a ofensiva neoliberal vaino sentido de afirmar que os direitos da cidadania são apenas os direitosindividuais, os direitos civis e políticos, enquanto enunciados formais,

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18. Ver BARBALET, J.M. A Cidadania. Temas de Ciências Sociais, Editorial Estampa, Lisboa, Portugal, 1989

reduzidos a uma identidade do cidadão como proprietário-consumidor-contribuinte.

Assim, se nas décadas de 50, 60 e 70, Marshall não estaria no campoprogressista da esquerda socialista, a partir do final dos anos 80 sua teo-ria, em parte, é resgatada na luta contra o neoliberalismo. E é Barbalet 18

um dos autores que consideram a atualidade de Marshall, apesar de afir-mar que não chega a existir uma teoria acabada sobre a cidadania.

A consideração sobre a atualidade de Marshall está no quadro dastransformações ocorridas no capitalismo com a crise do modelo fordista,que só foi possível - no que se refere à uma política distributivista - noquadro de “guerra fria”, o que levou aos compromissos de incorporação,aliança e cooptação das classes subalternas e da promoção dos direitossociais com taxas altíssimas de acumulação de capital.

Como, para Marshall, a cidadania é sempre ascendente a partir de ummínimo que a caracteriza, a crise do final do século XX e as ameaças doneoliberalismo à cidadania social têm levado a uma diminuição dessemínimo de direitos. E o minimalismo de defesa, nesse contexto dehegemonia neoliberal, coloca como objetivo dos segmentos da esquerda abusca da manutenção de um mínimo de presença estatal necessária paragarantir as tarefas sociais.

Ao contrário de Marshall, o pensador italiano Bobbio afirma que osdireitos da cidadania são históricos, não tendo um fim, e não sendo ne-cessariamente ascendentes. E, sendo históricos, são direitos que expres-sam as lutas entre diferentes atores sociais. Por outro lado, Bobbio não serestringe apenas aos direitos da cidadania, mas trata dos Direitos Huma-nos que, sem a garantia institucional do Estado, não se materializam, nãotêm efetividade e não podem ser garantidos.

Bobbio abre espaço, com sua reflexão, para uma noção ampliada eglobal da cidadania ao perceber o processo de internacionalização euniversalização dos Direitos Humanos, que possibilita a idéia de umacidadania do mundo, que não se restrinja à clássica concepção baseadano Estado-Nação.

O campo da tradição marxista, por outro lado, entende que o Estado

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de Bem-Estar Social é o patamar mais avançado que o capitalismo pode-ria almejar na garantia de direitos sociais e de uma igualdade relativa,superando a desigualdade absoluta. Ao mesmo tempo que garante direi-tos, no entanto, cria uma heteronomia, onde as classes subalternas sãomenos cidadãs e mais clientela do sistema de bem-estar social.

No decorrer dos anos 90, no entanto, houve um pronunciado desloca-mento das originais referências de Marshall sobre diferentes questões re-lacionadas à cidadania. Novas identidades, que não se relacionam uni-camente com a noção do Estado-Nação, diferentes clivagens na dinâmi-ca conflitiva das sociedades contemporâneas, que são geradoras de direi-tos, demandas individuais e coletivas, inclusão e exclusão social. Assim,o crescimento da exclusão social e da miséria, com as políticas de ajusteestrutural realizadas a partir dos anos 80, fez crescer o debate sobre acidadania e os Direitos Humanos.

Dessa forma, sob a interpelação da nova direita neoliberal, o debatecontemporâneo obrigou a uma redefinição do campo progressista, ampli-ando-se e mostrando em que medida existe um tensionamento em socie-dades cada vez mais complexas, plurais, diversificadas e conflitivas. Porum lado, a exigência de relações societais democráticas - um alto grau dedemocracia - para dar conta desses múltiplos conflitos, complexidade ediversidade. Por outro lado, a colocação em cheque da própriainstitucionalidade democrática. E isso abre todo um campo de reflexãosobre os sujeitos sociais, a democracia e os direitos humanos como práticasócio-política.

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O Estado do futuroO Estado do futuroO Estado do futuroO Estado do futuroO Estado do futuroe o futuro do Estadoe o futuro do Estadoe o futuro do Estadoe o futuro do Estadoe o futuro do Estado

MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO

Professor Titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da USP. Doutor em Direito honoris causapela Universidade de Lisboa. Doutor em Direito pela Universidade de Paris. Professor Visitante da Universidade deAix-en-Provence (França). Membro da Comissão Executiva da Associação Internacional de Direito Constitucio-

nal. Presidente do Instituto “Pimenta Bueno” — Associação Brasileira dos Constitucionalistas.Reitor da Universidade Guarulhos.

RESUMO

Este artigo analisa o que entende possa ser o futuro do Estado, a partir doselementos históricos presentes, dentre os quais ressalta a provável superaçãodos Estados-nação e o surgimento de “Comunidades de Estados”, coincidentescom as grandes culturas mundiais, o que impede a formação de um “Estadouniversal”. Destaca, ainda, a provável prevalência da democracia na cultura“ocidental” , embora constate, nesta, a ameaça, a médio prazo, aos direitossociais.Palavras-chave: Estado-nação, democracia, direitos sociais

ABSTRACT

This article deals with the future of the State, taking into account the historicalelements, such as the probable end of the nation-State and the emergence ofthe “Community of States”, in accordance with the great world cultures, whichoppose the formation of a “universal State”. It highlights the probable predomi-nance of democracy in the western culture, although it sees in this culture a risk,in the medium range, to social rights.Key words: Nations-State, democracy, social rights

Direito e Democracia Canoas vol.1, n.1 1º sem. 2000 p.81-94

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I. OBSERVAÇÕES INICIAIS

1. A sabedoria popular adverte: “O futuro a Deus pertence”. Isto, naverdade, deve servir de lição àqueles - como eu - que ousam perscrutar ofuturo, ainda que não pretendendo formular predições, mas simplesmen-te assinalar tendências ou rumos. De fato, a probabilidade de erro é mui-to superior à de acerto.

Claro está ser possível identificar numa realidade tendências, rumosde evolução que, não contrariadas ou não corrigidas, levarão a um prová-vel quadro futuro. Muito difícil, todavia, é fazê-lo, tanto pelas limitaçõesdo saber e da inteligência, como pelas deficiências de informação, de quenão escapa homem algum.

Ademais, a melhor das análises racionais é sempre ameaçada, sejapela ocorrência súbita de fatos improváveis: descobertas inesperadas, even-tos imprevisíveis (como o contacto com alienígenas). Para não se falar nosefeitos catastróficos que pode ter a loucura humana quando se apossa dopoder.

Ciente de tudo isso, com humildade, com temor mesmo, aceito o de-safio de perquirir o futuro do Estado, não no próximo milênio - pois minhacoragem não chega a esse ponto - mas no próximo século XXI.

Não vou senão levantar hipóteses, chamar a atenção para alguns pon-tos, provocar a discussão que certamente levará à reformulação das men-cionadas hipóteses iniciais, substituídas por antecipações mais lógicas.Quem sabe conseguirei levantar teses que sejam úteis, fugindo às gene-ralidades “genéricas”, ou “politicamente corretas” que em geral rechei-am este tipo de exposição.

E, se tiver muito êxito - o que não é de esperar - escaparei de, numfuturo não longínquo, ser objeto de mofa dos mais sábios, por não tererrado de muito o alvo.

II. A GLOBALIZAÇÃO

2. O ponto de partida de minhas observações é o quadro presente - omundo de hoje - tal qual o vejo com meus olhos que não são de lince...

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Este “mundo” é descrito - no jargão da moda - como “globalizado”.Caracterizado, portanto, pelo fenômeno da globalização, termo essencialde todo trabalho up to date. Isto significa que, no mundo hodierno, asrelações políticas, econômicas e sociais, envolvem (praticamente) todosos povos, todos os Estados do globo terrestre.

Com efeito, o jogo político não deixa de lado qualquer Estado, porinsignificante que seja, os afrontamentos mais remotos se refletem emtoda parte, bem como os meios de guerra não deixam em segurança pontoalgum do planeta.

Igualmente as relações econômicas formam uma rede de apertadaslinhas, estreitamente integradas. As grandes empresas são multinacionais,o capital não respeita fronteiras - o problema cambial da Tailândia sereflete na bolsa de São Paulo. A produção de uma manufatura - umacamisa, por exemplo - combina atividades de diferentes Estados: flanelaportuguesa, costura no Sri Lanka, para venda nos Estados Unidos. Astecnologias transmitem-se sem fronteiras, pois se poucos inventam, mui-tos, logo, as aplicam, todos copiam. Basta ver o que se passa com os “ti-gres” asiáticos.

Por outro lado, tirando a camada dos marginalizados - e quand même...- graças ao mundo “mágico” das comunicações, todos vivem os mesmosacontecimentos, em direto: da guerra “videogâmica” ao futebol, dos es-petáculos aos enterros. Por esses meios audiovisuais, passam informações,imagens, revelam-se culturas, modificam-se usos e costumes, a próprialíngua: é o “tchau” transmitido aos portugueses pelas novelas brasileiras,aos jeans, mac donalds, hamburgers e cocas-colas dos Estados Unidos parao mundo inteiro.

Sem dúvida, isto “unifica” o mundo, pois difunde uma “cultura” dita“moderna”: o consumismo, uma determinada moda, padrões de costumes(que os moralistas verberam inutilmente). Transmitem por toda partecertas idéias generosas, “politicamente corretas”: a democracia, os direi-tos fundamentais, o ambientalismo, o feminismo, o anti-racismo... Masninguém negará que também espalham um modelo de violência, licenci-osidade, egoísmo...

Até que ponto, porém, essa “unificação” altera as culturas tradicio-nais que convivem tolerante ou intolerantemente no globo? Os mesmosmeios de comunicação de massa revelam os contrastes culturais: o bikini e

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o tchador, a cirurgia transexual e a ablação do clitóris, a humanização dasprisões (não evidentemente no Brasil) e as penas corporais - chibatadas edecapitação; o trabalhador de 35 horas semanais e o de 12 horas diárias,etc. E também os ódios da intolerância: o terrorismo, os atentados, osmorticínios, as guerras étnicas e religiosas.

Deste contexto, descrito com traços largos, é que se deve partir parauma indagação sobre o Estado no século vindouro.

III. A SUPERAÇÃO DO ESTADO-NAÇÃO

3. Ainda prevalece, nos dias que correm, o modelo do Estado-nação,juridicamente e politicamente construído com base na idéia de sobera-nia. Sem embargo da denúncia dos juristas mais alertas, embora contrari-ada pela realidade vivida, os Estados contemporâneos ainda se preten-dem soberanos. É o caso do Brasil, do qual um dos fundamentos, o primei-ro, segundo a Constituição de 1988, art. 1º, I, é a “soberania”.

Este modelo, surgido no final da Idade Média, está, certamente, comseus dias contados. Dois fatos incontestáveis se combinam para torná-loinadequado aos tempos modernos. Realmente, afetam eles, profunda eradicalmente, tanto a sua base sócio-econômica, como a sua viabilidadepolítico-jurídica.

4. A base desse tipo de Estado é exatamente a nação. Quer dizer, umacomunidade humana, apoiada numa mesma etnia, língua e cultura, nãoraro numa mesma história e religião.

Certamente há Estados que não exprimem nação alguma, e, por isso,são artificiais e passageiros; há excepcionalmente Estados multinacionaisque, em razão de uma história, superaram as antinomias dos grupos que ocompõem; existem Estados que constróem num melting pot novas nações;mas a regra é a cada nação corresponder um Estado. É o famoso princípiodas nacionalidades. E se esse fundamento apareceu no mundo europeuocidental, hoje ele está consagrado em toda parte, na Ásia, na África, naOceania, na América.

É preciso, todavia, observar que, se a nação assumiu a posição de fun-

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damento da organização política que se conhece como Estado (no senti-do exato do termo), há uma razão para isto. Trata-se do fato de que demodo geral a nação é, na escala dos grupos sociais, a dimensão que serevelou adequada às crucial decisions - como diz Robert Dahl - sendo sufi-cientemente numerosa e unida para ter significação no contexto das re-lações políticas e econômicas num mundo não globalizado. Tal dimensão,aliás, condiciona a viabilidade dos Estados que nela se apoiam, de talsorte que nações pequeninas não raro se viram absorvidas, ainda que nãoextintas, no seio de outras maiores, de que partilham elementos, comolíngua e história.

Tal base é insuficiente num mundo globalizado. De fato, para acentu-ar um aspecto - o mais importante - a maior parte das nações, e por isso osEstados-nação, salvo exceções, não são base suficiente para uma econo-mia construída em vista da economia de escala. E isto foi apercebido porEstados com longa história de inimizades e afrontamentos, com alto nívelde desenvolvimento, com numerosa população. É o caso da Europa oci-dental que, desde o Tratado de Roma, de 1957, promoveram umaintegração econômica - o Mercado Comum - que evoluiu - em menos dequarenta anos - para uma comunidade política: a Comunidade Européia.

E a situação tende a repetir-se, na América do Sul, com o Mercosul,na do Norte, com o Nafta.

5. Impulso agregador vem também da inviabilidade de uma real sobe-rania em favor dos Estados-nação existentes.

Soberania significa um poder que não reconhece outro a ele superior,seja no plano interestatal (independência), seja no plano interno (supre-macia). Os monarcas europeus que a conquistaram, fizeram-no, libertan-do-se, por um lado, da subordinação ao Imperador, ou ao Papa, por outro,impondo subordinação a todos os senhores feudais que se lhes antepu-nham.

Evidentemente, não no plano do Direito mas sim no das realidades,tal soberania pressupõe uma superioridade de força. Ou, ao menos, umaforça suficiente para dissuadir as pretensões estrangeiras, para impor-se aqualquer grupo interno rival.

Ora, se esta supremacia interna é conservada pelos Estados-nação -

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embora muitos sejam ameaçados por grupos revolucionários, como as guer-rilhas marxisantes ou religiosas - no plano externo ela desapareceu, salvoquiçá para os Estados Unidos. Assim, o imperativo de segurança obriga osEstados-nação a agregarem-se em unidades maiores, mais fortes, inclusi-ve para assegurarem a própria sobrevivência. De novo são exemplo distoos Estados-nação europeus.

Por tudo isto, parece previsível a superação dos Estados-nação. Nãodesaparecerão, mas virão a associar-se (ou integrar-se) formando entenovo.

IV. A “COMUNIDADE” DE ESTADOS

6. Qual será esse ente novo?

É provável que uma nova figura de federalismo, como já sugere o exem-plo europeu, o único que hoje se possui. Realmente, dos modelosinstitucionais conhecidos é o federalismo o que parece mais adequadopara a integração dos atuais Estados-nação em unidades políticas maio-res, proporcionadas ao novo nível de crucial decisions. Mas certamentenão seguirão esses novos entes, seja a figura da Confederação, seja a doEstado Federal. Aquela vincula insuficientemente os Estados, esta os su-jeita a uma dependência, a um poder central que as orgulhosas nações,de longa história, não aceitariam.

Essa nova figura - se seguido o exemplo europeu - seria uma forma defederalismo que combina elementos da Confederação com outros do Es-tado Federal. É a “Comunidade”, à falta de nome melhor.

Da Confederação tem ela o caráter de associação de Estados indepen-dentes que aceitam a condução em comum de certos interesses, con-quanto não de todos os de que cuida o Estado. Seus órgãos e serviços sãomantidos por meio de contribuição dos Estados (e não por tributação di-reta dos cidadãos). A execução das decisões de seus órgãos faz-se porintermédio da máquina administrativa de cada Estado.

Entretanto, do Estado Federal adota a deliberação por maioria, o co-mando (inclusive legiferação) independentemente do consentimento dosassociados, a sujeição dos litígios à Corte judicial da Comunidade, e,

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também, o acesso direto de todos os cidadãos a tal Corte, para a defesa deseus direitos individuais.

Esta Comunidade tem como lei suprema não uma Constituição, masum Tratado, adotado de acordo com as regras do direito internacional esomente alterável de conformidade com estas. Isto, sem excluir uma De-claração de Direitos e Garantias diretamente aplicável pela Corte com-petente.

V. A IMPROBABILIDADE DO “ESTADO UNIVERSAL”

7. Uma objeção certamente já veio à mente de todos. Por que os Esta-dos-nação cederiam lugar a uma pluralidade de “Comunidades” e não aum “Estado universal”? Este não teria na ONU o seu esboço?

A meu ver, apesar da falada globalização, o mundo contemporâneonão está maduro para tal unificação. Falta um substrato sócio-histórico-cultural para tanto.

Os Estados atuais vinculam-se a grandes “culturas” ou “civilizações”(“ocidental” - com pelo menos três variantes, a anglo-saxônica, a latina ea “bizantina” - islâmica, budista, confucionista), em cujo cerne estão di-ferentes crenças religiosas, diferentes “filosofias” de vida, diferentes ma-neiras de conceber a vida e o mundo, o que se reflete numa diversidadede práticas, de usos e costumes. Ora, como demonstrou o fracasso depolíticas colonialistas, difícil é estabelecer o convívio pacífico dessas cul-turas debaixo de um mesmo poder.

Mais. Segundo estudiosos, como Huntington (O choque de Civiliza-ções), as grandes culturas (ou civilizações existentes) não estão em pro-cesso evanescente, cedendo terreno à cultura dita “ocidental”, que ins-pira a globalização. Ao contrário, algumas, como a islâmica, estão emprocesso de (re)fortalecimento. Todas as outras ressentem-se da preten-dida superioridade da cultura “ocidental”, em face da qual procuramreafirmar-se e à qual buscam repelir, conquanto não deixem de receberdela muitos elementos, particularmente no plano científico-tecnológico.

Ademais, são elas tão arraigadas que rapidamente “reaparecem” quan-do a menor tolerância para com elas ocorre. Veja-se o que se passou nos

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últimos tempos da URSS. E esta era baseada numa filosofia universalistaque com mão pesada procurou impor durante mais de meio século.

Note-se ademais a fúria com que essas civilizações se entrechocamnas áreas em que estão obrigadas a coexistir, como a Bósnia, por exemplo.

Mais provável é servirem essas culturas de critério de aglutinação paraas referidas “Comunidades”. Consequentemente, o futuro veria em lugardos quase duzentos Estados hoje existentes cerca de uma dezena de “Co-munidades”.

VI. O REVIGORAMENTO DOS PARTICULARISMOS

8. Em contraste com esse processo de integração dos Estados-naçãoem ente mais amplo, assiste-se no seio dos Estados atuais um renascimento,ou uma revivescência dos particularismos.

Em toda parte, minorias nacionais de há muito sujeitas a outra, predo-minante, ou supostamente absorvidas por esta, reerguem a cabeça, rei-vindicando estatuto particular para seus membros. Isto quando não visamà independência, ou pelo menos a uma autonomia.

Isto é bem visível na Europa ocidental. Veja-se o caso da Bélgica,onde o choque entre valões (de língua francesa) e flamengos (de línguaholandesa) - que partilham largamente do mesmo universo cultural - le-vou em 1993 à institucionalização de um Estado federal, com base nessas“nacionalidades”. Na Espanha, mesmo pondo-se de parte o irridentismobasco, reafirmam-se hoje os particularismos da Galícia, da Andaluzia, daCatalunha, etc.

Parece isto ser um efeito indireto e inesperado do processo de agrega-ção dos Estados existentes. No curso deste, tais Estados enfatizaram suasdiferenças - porque o que têm em comum era óbvio e evidente - paraobter melhores condições de acesso ao Mercado Comum. Ora, tais dife-renças, conquanto esmaecidas por séculos de sujeição, não deixaram deexistir no plano interno. O exemplo as fez reerguer-se.

Por outro lado, o princípio de divisão de tarefas numa Comunidade háde ser o princípio de subsidiariedade. O Tratado de Maastricht o afirma.Ora, se a menor unidade social capaz de cuidar de uma questão é que

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deve receber a incumbência de dela cuidar, os grupos particularistas sevêem em posição de reclamar uma faixa de ação, que haviam perdido nosEstados-nação unitários, como o eram, em geral, os europeus.

Mas, se este fenômeno é claro na Europa, ele ocorre certamente poroutras razões que as apontadas, em toda parte. É o que assinala o já cita-do Huntington.

VII. A SORTE DA DEMOCRACIA

9. Aprofundando a análise, cabe indagar se a globalização traz, por umlado, a generalização da democracia.

Na aparência isto ocorre. De fato, o desaparecimento da URSS, atransformação por que passou o seu núcleo central, a Rússia, o mesmoocorrendo em relação aos seus antigos satélites, paralelamente ao fim dosregimes autoritários da América e da Ásia, sugere o prevalecimento ab-soluto da democracia. Onde ela não se estabeleceu mais nitidamente,como nos países islâmicos e africanos, de modo geral, instituições demo-cráticas e, sobretudo, um linguajar político democrático parecem deno-tar o próximo êxito dessas formas de governo no mundo inteiro.

Mas as aparências enganam.

10. Seguramente, ainda hoje, a maioria dos Estados existentes não éverdadeiramente democrática, embora possa ter Constituição nominal-mente democrática. É, na melhor das hipóteses, governada autoritaria-mente.

Evoluirão esses Estados nominalmente democráticos para uma demo-cracia real?

Aqui, de novo, o componente cultural deve ser auscultado. Disto re-sulta uma observação pessimista: a democracia não combina com as cultu-ras não-ocidentais. Ela não se ajusta à cultura islâmica, baseada na supe-rioridade da revelação maometana. De fato, democracia pressupõe neu-tralidade em face das crenças, ou pelo menos tolerância em face delas, eo islamismo não aceita essa tolerância. Não se ajusta à cultura chinesa,

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tipicamente elitista, em que o saber e a experiência - o mandarim - de-vem prevalecer na tomada das decisões, o que repele a igualdade noprocesso político. Etc.

Não é provável, portanto, que a democracia seja consagrada em todaparte. Mas é muito provável que ela se arraigue nos Estados-nação vincu-lados à cultura ocidental. É o que se está vendo.

Entretanto, neles mesmo as reivindicações particularistas lançam som-bras. Com efeito, as minorias reclamam direitos contra a maioria, o queexige formulações institucionais pouco adequadas à democracia.

11. Nas “Comunidades” - por uma razão análoga, pois nelas as naçõesminoritárias é que reclamam salvaguardas - não parece viável a democra-cia. Quer dizer, o povo da “Comunidade” elegendo seus dirigentes.

O equilíbrio entre as nações vai - por muito tempo - reclamar “freios econtrapesos” que impedirão o one man one vote. Assim, as “Comunidades”associarão Estados democráticos, mas terão governo “aristocrático”, nosentido de que nele prevalecerá a elite tecnocrática. Evidentemente sobo controle imediato dos governos dos Estados integrados.

VIII. O FUTURO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

12. Semelhante será o quadro no concernente aos direitos fundamen-tais.

Apesar de sua pretensão universalista, a doutrina dos direitos funda-mentais reflete uma visão do homem e uma constelação de valores que étipicamente “ocidental”. Traduz uma orientação proveniente da filosofiahelênica, passando pelos estóicos em Roma, que o pensamento europeudesenvolveu, com Tomás de Aquino na Idade Média, com Grócio noRenascimento, e que a grande Declaração dos Direitos do Homem e doCidadão, repetida e ampliada pela Declaração Universal de 1948, consa-grou irreversivelmente.

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13. Tal doutrina ajusta-se mal a outras culturas.

Observa Jorge Miranda, com a acurácia de sempre, no seu Manual deDireito Constitucional (tomo IV, 1988, Coimbra Ed., p. 33 e s.), a grandediferença de concepções sobre direitos e deveres do ser humano, sobre asua própria liberdade, que existe entre as grandes culturas.

A hindu, por exemplo, põe em paralelo cinco liberdades e cinco virtu-des. As liberdades: a liberdade frente à violência, a liberdade frente ànecessidade, a liberdade frente à exploração, a liberdade frente à deson-ra, a liberdade frente à morte e à doença; a elas correspondem as virtu-des: a ausência de intolerância, a compaixão ou solidariedade, a sabedo-ria, o império da consciência, a ausência do medo.

O confucionismo - ainda preponderante na China - enfatiza deverespara com os “vizinhos”, o “companheirismo”, o respeito aos mais idosos,presumidamente mais sábios.

14. Considere-se a cultura islâmica. Esta, tão combativa e em visívelexpansão pelo mundo, recusa frontalmente a concepção “ocidental”. Estáisto bem claro nas leis fundamentais de Estados que adotam como reli-gião oficial a muçulmana (Arábia Saudita, Argélia, Irã...). Note-se que oprimeiro se recusou a aderir à Declaração de 1948.

Na verdade, a discordância levou ao ponto de ser difundida uma De-claração Islâmica dos Direitos do Homem, publicada em 1981 pelo Con-selho Islâmico, órgão não-oficial mas oficioso do mundo muçulmano.

É preciso ter presente que os muçulmanos consideram que o direitoestá contido no Corão e subsidiariamente na Suna (narrações e gestos)de Maomé. Tem ele, assim, um caráter religioso que bloqueia, ou, aomenos, dificulta uma evolução que o compatibilize com a concepção “oci-dental”.

Ora, o islamismo não aceita, por exemplo, o princípio da igualdadeentre fiéis e infiéis, entre homens e mulheres, obstáculo dificilmentetransponível para a universalização dos direitos fundamentais. Recusa,também, a liberdade de crença, não aceitando que o muçulmano aban-done a religião islâmica. Na verdade, deve ele ser morto, se o fizer. Nãoaceita, para o homem a liberdade de contrair casamento com pessoas de

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determinadas religiões, tolerando o matrimônio com mulheres cuja reli-gião tenha livros reconhecidos (é o caso do cristianismo); para a mulher,proíbe rigorosamente o casamento com não muçulmano. Reserva os direi-tos políticos aos muçulmanos. Não tolera, sequer, o princípio da igualda-de de acesso a cargos públicos: a função de juiz há de ser de muçulmano.Seu direito penal consagra penas que, na opinião dos “ocidentais”, seri-am intoleráveis, cruéis, desmedidas: o apedrejamento da adúltera, a am-putação de membros dos culpados de certos crimes: da mão do ladrão, asmarcas infamantes, etc.

E ninguém esqueça que abençoa a poligamia, e, na prática, tolera aescravidão.

Deve-se convir, com Sami A. Aldeeb Abu-Salieh, de cujo trabalho“La définition internationale des droits de l´Homme et l´Islam” forne-ceu as informações citadas, haver um fosso entre a concepção islâmica eaquela que prevalece na Declaração dita universal, de 1948 (p. 706).

15. Com relação aos direitos sociais, a perspectiva é mais pessimista.Na maioria das culturas não ocidentais existe, arraigada até pelas dificul-dades da pobreza, uma dedicação integral ao trabalho que não secompactua com as limitações e condicionamentos que tais direitos, tam-bém francamente de inspiração “ocidental”, determinam.

Ora, a globalizaçao da economia põe em concorrência a produção vin-da dessas áreas de cultura com a “ocidental”. Surge, então, o problemada produtividade, que pode levar a uma regressão relativamente aos di-reitos de que goza o trabalhador ocidental. Este, hoje, já está ameaçadopelo desemprego.

É verdade que, se os profetas do “fim do trabalho” estiverem certos, oproblema acima apontado não chegará a ser grave.

16. Por isso, a universalização dos direitos fundamentais é, e será nofuturo previsível, muito relativa. Dominará, sem dúvida, cada vez mais oOcidente, entretanto, não serão sagrados esses direitos para outras cultu-ras.

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IX. SÍNTESE CONCLUSIVA

17. Parece útil resumir os pontos avançados mais acima, à guisa deconclusão.

O primeiro deles é a provável superação do Estados-nação. Os Estadosexistentes não desaparecerão mas terão de associar-se (ou integrar-se)em entes políticos maiores, de caráter federalista. Ou seja, em “Comuni-dades de Estados”.

Estas “Comunidades” tenderão a coincidir com as grandes culturasque dividem o mundo. Estas, apesar da globalização que as aproxima,demonstram vitalidade e longe estão de se fundirem, ou mesmo de per-derem importância no quadro histórico. Na verdade, é de se temer, até, aluta entre essas culturas, pelo menos entre as mais agressivas delas.

Haverá, portanto, uma pluralidade de “Comunidades”, não um “Esta-do universal”. Exatamente a persistência das grandes culturas consistenum óbice, atualmente impossível de superar, para essa unificação.

Paradoxalmente ocorrerá, no seio das “Comunidades”, umarevivescência e um fortalecimento dos particularismos. Os Estados asso-ciados às Comunidades terão, por isso, de aceitar uma autonomia emfavor de regiões ou minorias.

A democracia, sem dúvida, prevalecerá no campo da cultura “ociden-tal”. Duvidosa, porém, será a sua adoção plena na própria “Comunidade”(ou nas próprias “Comunidades” que se erguerão na sua área). De fato,neste plano superior, as exigências de salvaguarda das nações históricasexigirão freios e contrapesos que terão o efeito de temperá-la com ele-mentos provavelmente tecnocráticos.

Fora da área de cultura “ocidental”, é improvável o prevalecimentoda democracia, salvo, talvez, nalguma “Comunidade” por ela muito in-fluenciada. As culturas não ocidentais tendem a não aceitar, seja a sepa-ração do poder religioso e do poder temporal, seja a plena igualdade dosseres humanos, negando, pois, importantes fundamentos da democracia.Para nem se falar na visão confuciana de que o poder deve corresponderà capacidade.

Análoga será a situação dos direitos fundamentais. Certamente naárea cultural “ocidental” ganharão eles, de mais em mais, efetividade.

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Noutras, isto não é provável, não por decorrência de um espírito hostil àdignidade humana, mas sim em razão de outra visão filosófico-religiosa,que tende a não valorizar esse “ocidentalismo”.

Já os direitos sociais - a menos que a tecnologia leve ao “fim do traba-lho” - se nas culturas não ocidentais longe estão de serem consagrados,na “ocidental “ estão ameaçados a médio prazo. É isto resultante daglobalização econômica, que põe em concorrência o produto dos traba-lhadores de 35 horas e o dos atuais “servos da gleba” que trabalham maisde 12 horas por dia.

Mas será esse o futuro do Estado no próximo século? Embora assim oveja, como não sou profeta, é improvável que esteja certo nas minhasespeculações. Elas, todavia, não são arbitrárias, fundam-se em fatos etendências que estão diante de nossos olhos.

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Os princípios reguladoresda autonomia privada: autonomia

da vontade e boa-fé

GERSON LUIZ CARLOS BRANCO

Professor de Direito Civil- ULBRA/RS e Mestre e Doutorando em Direito - UFRGS

RESUMO

Este artigo trata da autonomia da vontade como uma das manifestaçõesda autonomia privada. Convivem como instrumentos da autonomia priva-da não só o princípio da vontade, mas também o princípio da boa-fé, tendoeste último um papel integrativo importante, cuja finalidade é a preserva-ção da eticidade no contrato e também da preservação da teleologia doprocesso obrigacional, que consiste na busca do adimplemento.Palavras-chave: Autonomia da vontade, autonomia privada, princípio daboa-fé

ABSTRACT

This paper deals with the autonomy of the will as an expression of privateautonomy. The autonomy of the will and the principle of good faith are struc-tural principles of private autonomy. Good faith plays an important integra-tive role, which is the preservation of ethics in the agreement and the preser-vation of teleology of the obligational process, that is payment.Key words: Autonomy of will, private autonomy, good faith principle

Direito e Democracia Canoas vol.1, n.1 1º sem. 2000 p.95-112

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INTRODUÇÃO

Os Códigos Oitocentistas foram feitos pela ideologia liberal, con-sagrando a propriedade privada e a liberdade de iniciativa, que noDireito das Obrigações se concretiza através da autonomia da vonta-de. Todo o sistema de divisão ou atribuição de riscos e a forma decriação das relações obrigatórias foram concebidas neste molde. Po-rém tais relações eram singulares e não de massa, como hoje. Assimcomo a produção desindividualizou-se, tornando-se em série, tambémos adquirentes destes produtos não são mais sujeitos facilmenteidentificáveis, pois, em geral, o consumidor é anônimo.1

Uma nova concepção sobre o fenômeno contratual implica um re-dimensionamento dos principais efeitos das relações jurídicas, em es-pecial dos deveres. Porém, este redimensionamento não é um fenôme-no simplesmente jurídico.

Os princípios da boa-fé e da autonomia da vontade são a principalbase sobre a qual se estrutura a malha contratual moderna em suas trans-formações. Tais princípios, embora jurídicos, são também princípios deum determinado ordenamento moral que é vigente no meio social.

A nova sociedade em que vivemos não se afastou significativamentedos seus dogmas, mas deu-lhes nova cor, nova feição.

Se, por um lado, o ideal liberal de construção de uma esfera priva-da, livre de intervenção estatal, como forma de emancipação econô-mica e social, não foi bem sucedido no âmbito da sociedade, por ou-tro, a sociedade moderna criou o Shopping Center, imitando este ide-al, embora dirigido a uma parcela restrita da sociedade, que tem se-gurança, liberdade e sofre pouco a intervenção do Estado.

1. Sobre o papel do consumidor, relação de consumo no mercado, artigos tipificados e os utentes anônimos veja-se. LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros — As Relações de Consumo e o Crédito ao Consumidor —Revista de Direito Mercantil, n. 82, p. 13 e ss. Cita como exemplo a compra e venda, na qual o Direito prevêuma relação individualizada e não em série. Permite a lei uma grande liberdade na estipulação do conteúdodo contrato, mas não prevê tipos diferenciados de contatos “conforme se relacionem com a aquisição de bensde produção ou de consumo” (p. 14). É irrelevante na compra e venda a relação de consumo subjacente,tratamento formal igualitário da ordem liberal que conduz a discriminações em virtude da desigualdade daspartes contratantes, notadamente pelo poder econômico de uma. Por outro lado, reduziu-se o controle dorevendedor sobre os produtos, que são prontos e acabados na fábrica. Por isso se impõe uma “relação jurídicadireta, que ultrapasse o nexo vendedor-comprador e que vincule o fabricante e dito adquirente, de formaapta a responsabilizá-lo, caso ocorram eventualmente lesões no consumidor, causadas pelo produto” (p.14).

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Como uma nação não é constituída somente de consumidores, mas fun-damentalmente de cidadãos que são potencialmente consumidores, é quesurge a necessidade de um direito do consumidor, adequado a uma socie-dade cujos entes econômicos pretendem transformá-la num imensoShopping Center onde só há lugar para consumidores e não para cidadãos.

Nesse ponto reside, fundamentalmente, a transformação social do con-trato. Deixou de ser um mero instrumento de exercício da liberdade eco-nômica, para ser um meio eficiente para a construção de uma sociedadede consumo, na qual o indivíduo não é somente e propriamente o sujeitode direito, mas fundamentalmente um consumidor.

A malha contratual que sustenta a sociedade contemporânea é regidapor princípios cuja feição externa continua a mesma do século passado, masseus efeitos sobre os velhos problemas produzem novas conseqüências.

Assim, ao lado da autonomia da vontade, ganha espaço e relevância, nateoria geral dos contratos, o princípio da boa-fé, que tradicionalmente sótinha lugar quando se tratasse de interpretação dos contratos, mas que, as-sumem uma nova funcionalidade jurídica, como se verá nos tópicos a seguir.

I. A AUTONOMIA PRIVADA COMO ESPAÇOPRIVILEGIADO PARA MANIFESTAÇÃO DAVONTADE

Para compreender a incidência da autonomia da vontade e a boa-fé, nos contratos modernos, tratar-se-á de distinguir e caracterizar duasfiguras distintas: a autonomia privada e autonomia da vontade, nãoobstante sejam tratadas como sinônimos.

À esfera pública burguesa, constituída com o advento da RevoluçãoAmericana e Francesa, foi atribuído o papel de ser o princípio organizativodos Estados de Direito burgueses, com base em governos parlamentares.2

Porém, o pressuposto do Estado de Direito burguês é um mercado livre da

2. Sobre o tema ver NOVAIS, Jorge Reis - Contributo para uma Teoria do Estado de Direito - Coimbra:Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, 1987; HABERMAS, Jürgen - Mudança Estrutural na EsferaPública - Rio de janeiro: Tempo brasileiro, 1984; TIGAR, Michael E. e LEVY, Madaleine R. — O Direitoe a Ascenção do Capitalismo — 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, entre outros.

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intervenção estatal, um mercado destinado à regulamentação privada eàs próprias leis de mercado, no qual houvesse a livre disposição da propri-edade.

A base do direito privado será justamente esta, com o contrato (for-mado pela livre manifestação de vontades) copiado dos processos de tro-ca de mercadorias na livre concorrência.3

Isto faz nascer uma nova concepção de política, que antes era só atri-buto da esfera pública, pois os sujeitos privados podem normatizar atravésde sua declaração de vontade. Se a política é sempre processo de criaçãodo direito4, o particular passa a agir politicamente sobre a normatividadeatravés de sua vontade.

Uma concessão positiva para sistematização de interesses individuais,contribuindo, segundo seus formuladores, para a possibilidade do bemcomum, pois a liberdade de contrato não é um fim, mas um meio, comoafirma Galgano.5 A esta idéia da liberdade de iniciativa econômica asso-cia-se a idéia de que o egoísmo privado produz resultados sociais.

Junto com tal concepção, segue um processo, de cunho histórico eideológico, que aponta no sentido inverso, que é o de despolitizar o direi-to, eliminando sua teleologia, transformando o jurista num técnico neu-tro.6 As figuras jurídicas utilizadas neste processo, são justamente aquelasque incorporam de forma mais profunda o dogma da ‘vontade’: o sujeito

3. “A concepção de negócio jurídico como um contrato à base da livre declaração de vontades é copiado doprocesso de troca entre donos de mercadorias na livre-concorrência. Ao mesmo tempo, um sistema deDireito privado que, por princípio, reduz as relações das pessoas privadas entre si a contratos privados,pressupõe como modelares as relações de troca que se estabelecem segundo leis do mercado livre detrocas”. HABERMAS, Ob. Cit., p. 94.

4. Fontes genéticas, segundo NEVES, Castanheira — Fontes do Direito - Contributo para Revisão de SeuProblema — Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, p. 172 e ss.

5. A autonomia privada é poder normativo e o negócio jurídico é fonte do direito, reconduzidos à unidade dosistema estatal, que aposta na “virtú sociali dell’individuo, capace di affirmarsi al legislatore na riconstituzioned’un nuova polis aristotelica”. GALGANO, Francesco — Autonomia Privata, Creazione Del Diritto eConcetto di Política — Rivista di Diritto Civile, 1959, Padova: Cedam, p. 338.

6. “Galgano sostiene che il problema del negozio giuridico è un problema di política della construzionegiuridica, e che la teoria dello stesso negozio giuridico, elaborata dalla pandettistica tedesca e culminatanel BGB., corrispose a una scelta di política della construzione giuridica, basata sulla presunzione di potersoddisfare e coordinare tra loro, nell’ambito di una categoria giuridica unitaria, gli interessi più diversi oaddirittura contrapposti, astraendo, peraltro, dalla reale tipologia storico-sociale…”. DE CUPIS, Adriano— Postilla sul problema del Negozio Giuridico — Rivista del diritto Commerciale e del Dirito GeneraleDelle Obligazioni, Milano, n. 3-4, 1976, p. 85.

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de direito, o negócio jurídico e o direito subjetivo.7

Por outro lado, o fundamento da autonomia da vontade está na con-cepção de que o homem, por ser dotado de inteligência, é livre, diferen-temente dos animais que são presos aos seus instintos, motivo pelo qual asações daquele não são meramente impulsos, mas atos de decisão tomadosapós reflexão. Esta liberdade para decidir implica no homem a responsa-bilidade de cumprir os pactos que fizer.8 É a concepção Kantiana de von-tade, fonte de obrigações jurídicas, e por si só de justiça: “qui ditcontractuel, dit juste.”9

Se, durante o feudalismo, os homens eram qualificados pela sua posi-ção social, por ser senhor ou servo, com a construção da figura do ‘sujeitode direito’ as pessoas deixam de ser identificadas pelo que são, mas peloque têm para trocar.

O direito, tendo como centro a propriedade e o contrato, transforma-senum corpo abstrato de normas, afirmando a igualdade, ao menos sob oponto de vista jurídico, condição para que toda e qualquer declaração devontade tenha o mesmo valor.

Esta concepção, forjada pelo jusracionalismo e positivada com acodificação, traz junto de si a noção de que a justiça é inerente e naturalao contrato, por exigência da livre concorrência, e qualquer interven-ção, a qualquer pretexto (de uma imaginária eqüidade),10 provocará in-justiça.

7. “L’individualità del suggetto di diritto, com tutti gli attributi proprii della sua unità logica, rappresenta lanota differenziale del sistema, così che la teoria dei diritti soggettivi, degli atti giuridici e del negoziogiuridico, sono, indefinitiva, aspetti diversi di una medesima realtà.Del resto anche nela parte generale delle trattazioni sistematiche della scienza del diritto si rinviene lostesso procedimento logico di costruzione del sistema, per cui, posto quale centro l’individualità, il sistemagiuridico viene edificato su quella misura. La teoria del soggeto di diritto indica i predicati del soggettoindividuale, la teoria dei diritti soggettivi le attribuzioni connesse, ed, infine, gli atti giuridici le sueattività”. GABRIELLI, Enrico - Appunti su Diritti Soggettivi, Interessi Legittimi, Interessi Colletivi -Rivista del Diritto e Procedura Civile, outubro-dezembro de 1984, n. 4, p. 974.

8. A partir das construções de Grotius é que se concebe o princípio da autonomia da vontade, cuja essênciaestá na liberdade e igualdade dos homens que não recebem comandos de outras vontades, resultando numprincípio fundamental do direito positivo : “pacta sunt servanda”. GUESTIN, Jacques — L’utile et le Justedans les Contrats — Archives de Philosophie du Droit, Paris, 1981, tomo 26, p. 36.

9. Idem, ibidem, p. 36.

10. Idem, ibidem, p. 37.

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Pela justiça inerente e natural, o contrato é colocado ao lado da lei,11 tãoobrigatório quanto ela, nas suas essenciais características: consensualidadee efeitos relativos. Mas tal concepção revela apenas uma igualdade formal,pois as desigualdades econômicas nas relações sociais aumentam, e a possibi-lidade de negociação efetiva e de declaração de vontade diminuem ao passoem que ocorre a massificação das relações sociais.

Se o contrato é declaração de vontades, no plural, a elaboração unila-teral do regulamento contratual começa a suscitar aos juristas e parasociedade como um todo que a desigualdade gera injustiça, pois os maisfortes protegem seus interesses em detrimento do geral, principalmentequando os mais fortes são alguns poucos membros da sociedade.12

Tais desigualdades sempre existiram, mas ficaram flagrantes quando oprocesso de industrialização trouxe à baila questões relativas à fixação desalários, locação de habitações, contratos de adesão e de elaboração uni-lateral.

O clamor geral pela justiça que se generalizou no período compreen-dido entre as grandes guerras deste século, além de mudanças na esferapública, atingiu diretamente o contrato.

A conseqüência foi a interferência estatal na esfera privada, ‘limitan-do’ a chamada liberdade contratual em dois aspectos: liberdade de con-tratar13 e liberdade de estipulação do conteúdo do contrato14. O estadointervém para proteger agricultores, consumidores, trabalhadores, loca-

11. “…a vontade como a lei, pode criar direito”. AMARAL NETO, Francisco dos Santos — A AutonomiaPrivada Como Princípio Fundamental da Ordem Jurídica. Perspectivas Estrutural e Funcional —Revista de Direito Civil, n. 46, p. 14.

12. “…Sin enbargo la realidad nos muestra otra faceta, y es que los hombres viven en condiciones de enormedesigualdad económica y social que obviamente limitan la libertad de poder ligarse jurídicamente”.WEINGARTEN, Célia — La Prevalencia de los Contratos de Adhesion — Capítulo do livro GUERSI,Carlos A., Org, Contratos 2, Problemática Moderna. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Cuyo, 1996, p. 38.

13. A liberdade de contratar foi restringida pela diminuição do poder de autoregulação de interesses. Exem-plos desta limitação foi o surgimento de contratos ditados (telefone, energia elétrica, etc.), o estabeleci-mento de deveres funcionais a determinadas atividades profissionais (médicos, advogados, etc.), obrigato-riedade de seguros, inclusive seguridade social, sem contar o aumento da eficácia horizontal dos direitosconstitucionais, antes só impostos ao Estado.

14. Clausular livremente é outro poder que foi restringido, protegendo-se certos bens, considerados indispo-níveis, bem como pela criação do entendimento de que certas estipulações por serem violação do equilíbriocontratual são inválidas, principalmente se integrantes de contratos de adesão ou contratos submetidos acondições gerais dos negócios

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tários e outros injustiçados pelo mercado, restabelecendo a estas catego-rias sociais a possibilidade da igualdade, em função do interesse social detais grupos. Porém tal intervenção, se constitui em limite aos particulares,não pode ser considerada um limite à ‘autonomia da vontade’.

Assim, os textos, discussões e contrapontos que problematizam o temaautonomia da vontade, têm como ponto forte a afirmação de que a ten-dência legislativa brasileira dos últimos 50 anos, culminando com o adven-to do Código do Consumidor, reduziu o espaço da chamada ‘autonomia davontade’, pela ingerência estatal na autonomia privada, reduzindo a possi-bilidade dos indivíduos administrarem por si só os seus interesses.

Porém, o Código de Defesa do Consumidor, bem como todo um con-junto de estatutos promulgados a partir da década de 30, regulamentan-do as relações de família, habitação, trabalho, meio ambiente, agrárias,dentre outros tantos estatutos por muitos denominados ‘microssistemas’,não visam reduzir a liberdade dos cidadãos, mas, pelo contrário, aumentá-la,15 como forma de garantir a própria liberdade de iniciativa econômicagarantida constitucionalmente.16

Se, por um lado, a legislação consumerista tutela os indivíduos, impe-dindo que certas operações sejam realizadas validamente e até penalizandooutras ações, que no regime do Código Civil eram plenamente livres, poroutro lado há um notório aumento da autonomia do consumidor.

Busca-se a manutenção do equilíbrio contratual através da interven-ção na liberdade, em virtude da concepção de que há justiça quandocada um defende seus interesses. Há livre defesa dos interesses quando avontade é livre de vícios e não quando há equilíbrio entre as prestaçõesou entre as posições econômicas dos co-contratantes.17

Uma vontade livre para o legislador contemporâneo continua sendouma vontade independente, não subjugada à outra.

15. Como prefere a professora Célia Weingarten, “en rigor de verdad, no se trata de igualdad, sino deigualación, es decir, en el de otorgar un tratamiento a las relaciones jurídicas, valorando previamente aquienes deben ser igualdados”. Op. Cit., p. 38.

16. “Galgano sostiene che l’autonomia contrattuale devrà essere reinterpretata, a livello costituzionale, comolibertà di iniziativa economica privata (…) ‘con tutte le implicazioni costituzionali che questa operazionecomporta’”. DE CUPIS, Adriano, Op. Cit., p. 94-95.

17. A justiça contratual não é compreendida como atribuição de vantagens em função de justas causas dedesigualdade (justiça distribuitiva), mas de manter ou restabelecer um estado de coisas preexistente entrecredor e devedor sobre uma base de igualdade. GUESTIN, J. Ob. Cit., p. 47.

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Se é certo que o desequilíbrio das prestações, ou uma postura anti-ética das partes contratantes são motivos relevantes para a incidência deregras sancionadoras, protetoras do consumidor, não é verdade que sepretenda eliminar o papel da autonomia da vontade, mas apenas adequá-la a novos tempos.

Numa sociedade massificada, em que a concorrência é algo que nãosai dos discursos, com efeitos restritos, prevalecendo o monopólio, a açãodaqueles que põem os produtos no mercado é dirigida, planificada. Ofornecedor, nestes casos, é um agente econômico que, além de expressaruma vontade ‘jurídica’, exercita uma estratégia econômica através demecanismos contratuais, geralmente em áreas carentes de regulamenta-ção, com a conseqüência de que um regulamento privado, pelo alcancederivado da massificação, acaba transformando-se num regulamento comlargo alcance social.

Assim, se num contrato de adesão não existe espaço nenhum para oconsumidor negociar, este espaço também é restrito para o próprio forne-cedor, que age por meio de representantes, sem poderes para realizar umaalteração contratual, que é possível somente na presença de planejamen-to e de certas condições econômicas.

Nesta circunstância, a incidência do Código de Defesa do Consumi-dor tem o papel de garantir aquilo que as legislações liberais se propuse-ram, mas não conseguiram: a liberdade e a igualdade (nem se fale dafraternidade).

As regras estabelecidas no Código de Defesa do Consumidor, embora bus-quem alcançar os mesmos objetivos, encaram o contrato numa outra ótica,distinta daquela fixada para o Código Civil. No novo regime, não é exceçãoo contrato ser por adesão, ou submetido a condições gerais, mas sim a regra.

Não existe somente aquele esquema contratual fundado na tratativae na negociação do consenso. Por sinal, um esquema raro que cedeulugar para um novo modelo,18 mais ágil e hábil para regulamentação das

18. “Qui intendiamo subito enunciare il nostro pensiero, anticipando che non è affatto vero che il «prototipoideale» di contratto sia quello schema nel quale sussite la trattativa o la contrattualità effetiva; comunque,non è da escludere che a questo rango di dignità possa aspirare anche il contrapposto modelo delle condizionigenerali di contratto, soprattutto se sarà ritoccato con regole normative più soddisfacenti per gli interessi ingioco”. CESÀRO, Ob. Cit., p. 58. No mesmo sentido afirma que o contrato submetido a condições gerais nãoé um desvio do modelo geral e central do sistema contratual, porque ”non esiste, a nostro avviso, unacategoria normativa generale di contratto, né tantomeno un sistema unitario”. Idem, p. 59.

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relações de massa. Porém se, por um lado, tal contrato facilitou as rela-ções econômicas, por outro, trouxe uma série de restrições jurídicas àliberdade e à igualdade.

Sabe-se que tanto a liberdade como a igualdade são problemas jurídi-co-filosóficos que consomem muito tempo e atenção, tanto de juristascomo de filósofos em torno de sua melhor definição. Mas, se não há umconsenso absoluto, é certo que existem algumas distinções mínimas quepodem ser aproveitadas juridicamente, que são as noções de liberdade eigualdade formal e material.

Formalmente, no regime da liberdade contratual do nosso Código Ci-vil, supõe-se que todos os indivíduos são livres e iguais, porém é sabidoque materialmente não existem condições mínimas para que um consu-midor se oponha a conglomerados financeiros para discutir cláusulascontratuais em condições de igualdade.

É justamente neste sentido que a legislação de proteção ao consumi-dor exerce ingerência sobre as relações privadas. Resgata para as relaçõesde consumo a idéia de que devem prevalecer alguns princípios ético-jurídicos,19 em função de preservar os elos mais fracos da corrente social.

O novo estatuto trouxe algumas inovações (regras) importantes, queincidem sobre os contratos, restringindo a capacidade normativa do for-necedor e permitindo ao consumidor uma autonomia maior, principal-mente pela sumária nulidade de cláusulas contratuais que impliquem arenúncia de certos direitos. Autonomia esta, que também é dilatada pelacriação de ações, para garantia das promessas, realizadas através da pu-blicidade e dos contratos.

Isto implica garantir uma mínima igualdade de condições para que oadimplemento obrigacional seja realizado de acordo com a boa-fé.

19. “A aplicação de princípios éticos, no campo dos contratos, passou a ser, assim, uma das características danossa época.

Quando a doutrina e a jurisprudência encontram no ordenamento jurídico uma disposição normativa quelhes possa servir de apoio, a criação jurídica possui, desde logo, a base para se desenvolver de modosistemático. Por vezes, o legislador tarda em acudir a essa exigência da dogmática jurídica, deixando deregular a espécie por dilatado espaço de tempo”. SILVA, Clóvis do Couto e — O Princípio da Boa-fé eas Condições Gerais dos Negócios — Condições Gerais dos Contratos Bancários e a Ordem PúblicaEconômica. Curitiba: Ed. Juruá, 1988, p. 31.

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II. O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ NO DIREITOCONTRATUAL

Tradicionalmente, a incidência do princípio da boa-fé nos contratos évista como um limitador da autonomia da vontade. Porém, se entendermosa autonomia da vontade como um dogma construído a partir de que osindivíduos podem decidir sobre sua própria vida, auto-regulamentando suasrelações privadas no contexto social, dentro de uma sociedade constituí-da de cidadãos, a melhor leitura é outra.

A autonomia da vontade tem, da mesma forma que o princípio da boa-fé, uma origem ética, cujo modelo é um sujeito moral auto-responsável. Eé justamente em virtude da responsabilidade social de cada indivíduo,que somente se pode vislumbrar a autonomia da vontade ao lado da boa-fé, ambos dentro de uma esfera privada, reservada para as relaçõesintersubjetivas. Fora deste paralelo, o sistema de responsabilidades e ris-cos derivados do convívio social, das relações de trabalho, consumo, cir-culação e acumulação de riquezas não é assumido eqüitativamente, sen-do transferido de forma desigual sobre grupos sociais distintos.

O princípio da boa-fé objetiva, cuja aplicação encontra espaço no di-reito das obrigações (sejam civis, comerciais ou de consumo), foi positivadono direito brasileiro, pela primeira vez, no art. 131, 1, do Código Comerci-al de 1850, ditando regra para interpretação dos contratos.20

No Código Civil a boa-fé objetiva, regra de conduta, não teve espa-ço político, não existindo artigo que lhe faça referência, em razão de que,pela forte influência do positivismo legalista da Escola da Exegese france-sa, no direito brasileiro, estigmatizava-se a possibilidade de que regrascomo a da boa-fé objetiva outorgassem poderes excessivos ao juiz.

Predominava a idéia de que o juiz é a ‘boca da lei’, com papel mera-mente instrumental frente ao direito. Negava-se que a jurisprudênciafosse fonte autônoma de normas jurídicas, motivo pelo qual uma regrasemelhante ao §242 do Código Civil Alemão foi rejeitada.

20. “Art. 131. Sendo necessário interpretar as cláusulas do contrato, a interpretação, além das regras sobreditas,será regulada sobre as seguintes bases: 1. A inteligência simples e adequada, que for mais conforme à boa-fé e ao verdadeiro espírito e natureza do contrato, deverá sempre prevalecer à rigorosa e restrita significa-ção das palavras”.

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O legislador admitiu apenas a figura da boa-fé subjetiva, ligada àposse e à proteção de certas situações de ‘aparência’, que criam confiançaindevida. Em geral, o princípio nesta formulação tem aplicação para per-quirir a consciência ou não, por parte de um adquirente, da ilicitude dacoisa adquirida. Por esta razão, é subjetiva.

Ao contrário, a boa-fé objetiva é regra de conduta, segundo a qualtodos devem se comportar com lealdade e de forma cooperativa, preser-vando a confiança alheia, nas suas relações sociais, principalmente noscontratos e nos ‘contatos sociais’ juridicamente relevantes:

“modelo de conduta social, arquétipo ou standard jurídico, segundo oqual ‘cada pessoa deve ajustar a própria conduta a esse arquétipo, obran-do como obraria um homem reto: com honestidade, lealdade, probidade.Por este modelo objetivo de conduta levam-se em consideração os fatoresconcretos do caso, tais como o status pessoal e cultural dos envolvidos,não se admitindo uma aplicação mecânica do standard, de tipo mera-mente subsuntivo.”21

Apesar da regra do Código Comercial, a boa-fé objetiva teve histori-camente estreita aplicação no direito brasileiro, dificilmente citada comoregra.

Verdadeiramente a positivação da boa-fé objetiva no direito brasileirodeu-se com o advento do Código de Defesa do Consumidor, não obstanteexista posição doutrinária de que sempre esteve presente no direito brasi-leiro, na interpretação, limitando o exercício de direitos na formação ena execução dos contratos22.

O professor Clóvis do Couto e Silva, em quase todos os seus textos,afirmou que o princípio da boa-fé teve papel harmonizador e conciliadordo rigor lógico-dedutivo do sistema, muitas vezes consagrando posiçõesnem sempre explicitadas como incidência da boa-fé, mas fundados naidéia de ‘homem médio’, bom pai de família, e de bons costumes.

21. MARTINS COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.

22. Apesar disso, mesmo antes do advento do Código de Defesa do Consumidor, foram proferidas algumasdecisões aplicando diretamente o princípio da boa-fé, como, por exemplo, as transcritas no artigo deMARTINS-COSTA, O Princípio da Boa-Fé — Ajuris, v. 50, p. 207 -227, Porto Alegre, 1992, todos delavra do então Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, hoje Ministro do SuperiorTribunal de Justiça Ruy Rosado do Aguiar Júnior.

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Porém, mesmo no Código de Defesa do Consumidor, o legislador foitímido ao consagrar o princípio da boa-fé, elencando-o ao lado da eqüi-dade, como causa de nulidade de cláusula contratual e dentro da políti-ca nacional de consumo, de uma forma periférica.

Foi pela forte influência da doutrina, que já conhecia este instituto doDireito Civil português, alemão e italiano, que ganhou relevo o princípioda boa-fé no contexto do Código de Defesa do Consumidor, com grandesreflexos sobre a jurisprudência pátria.

Exemplo da tardia consagração deste princípio, pode-se ver no textodo acórdão abaixo transcrito, que julgou inválida cláusula de mandatoinserida em contrato de adesão:

“A respeito pertine ressaltar, como o fez o eminente Prof. eDes. Galeno Lacerda, que o mandato caracteriza-se peladefesa e administração de interesse alheio, (…) jamais deinteresse do mandatário. (…). Essa é a essência jurídica emoral do instituto . (…)

Jurídica porque é da essência do mandato que o mandatá-rio defenda estritamente os interesses do mandante. Mo-ral, porque o mandato, volta-se a dizer, funda-se, se esteia,no elemento confiança que deve imperar entre mandantee mandatário (…)”23

No trecho do acórdão acima citado, pode-se perceber que a situaçãode ‘confiança’ tem um cunho eminentemente moral, auxiliando supleti-vamente na tomada da decisão, enquanto que, com a positivação da boa-fé, as situações de confiança são de forma expressa, tuteladas juridica-mente.

Com o advento do Código de Defesa do Consumidor, a juridificaçãodo princípio permitiu decisões fundadas somente na proteção da confian-ça e de outras situações protegidas pela boa-fé, que adquiriu posição su-ficientemente forte para dotar direitos secundários e paralelos deexigibilidade.

23. TARGS, Ap. Civ. N. 188 094 122, 1ª C.Civ., Rel. Juiz Osvaldo Stefanello, j. em 13.12.88.

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O princípio da boa-fé tem o papel, justamente, de proteger as situa-ções de ‘confiança’, que não são fortes ao ponto de constituírem-se emcontrato, mas fortes suficientes para gerar danos, se frustradas, gerandoresponsabilidade.24

O princípio imputa deveres de informação, de lealdade, de coopera-ção, entre duas pessoas com proximidade social, situações de relaciona-mento específico, contratuais, reservando-se a cláusula dos bons costu-mes para disciplinar o relacionamento de pessoas estranhas.

Para as concepções legalistas, o papel da boa-fé está fundamentalmen-te na interpretação do contrato, restringindo-se a ser reforço às proposi-ções estritas, regra para impor veracidade e lealdade nas relaçõesintersubjetivas, reforçando o poder das declarações negociais no seu sen-tido habitual. Para esta concepção a boa-fé tem papel secundário na in-terpretação, que continua predominantemente a ser regida pela regra doart. 85 do Código Civil.

Para as concepções que tendem ao jusnaturalismo, o princípio da boa-fé é forma de realizar a justiça contratual, condicionada historicamente ecircunstancialmente à realidade da conclusão e execução do contrato,dentro de um ideal social. A regra de que ‘as partes devem proceder deboa-fé’ é diferente dos comandos normativos comuns, pois a sua concreçãoé mais difícil, sem subsunção imediata, constituindo-se em chamadaconstante do julgador para o sistema.

Sem dúvida, embora seja um instrumento para garantir o ‘equilíbrioeconômico’ do contrato, para não se falar em justiça, é no campo da inter-pretação que a boa-fé objetiva tem grande campo de atuação, delimitan-do obrigações, deveres e prestações contratadas. Sua atuação se estendepor todo o processo da contratação, desde a fase pré-contratual (respon-sabilidade pré-contratual), no curso do desenvolvimento dos deverescontratuais (em especial na violação positiva do contrato) e após a extinçãodas obrigações contratuais principais (culpa pos pactum finitum, ou res-ponsabilidade pós-contratual).

24. A diferença básica, no âmbito do Direito Civil, de um dever moral e de um dever jurídico, está no fato deque no primeiro há reconhecimento da existência de um comando, um imperativo que impõe um padrãode conduta, mas o direito correspectivo não é dotado de pretensão, nem ação, enquanto o direito quecorresponde ao dever jurídico é dotado de pretensão e/ou ação.Ressalve-se que os direitos potestativos não são dotados de pretensão, e, em algumas vezes, sequer de ação,pelo fato de que a um direito potestativo corresponde um estado de sujeição e não um dever.

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Este princípio não tem um conteúdo definido, mas definível no casoespecífico.25 É cláusula geral que impõe deveres secundários de conduta,acessórios ao contrato, com a conseqüente limitação no exercício dosdireitos. Inclusive, preenchendo os vazios da elaboração do contrato, fi-xando preceito ausente da declaração de vontade, conforme os usos dotráfico e as situações de confiança criadas no caso concreto.

Os deveres que surgem diretamente da boa-fé passam pelo contratocomo se ele fosse um mero fato em sentido estrito, criando deveres aces-sórios. Outros deveres pertencem ao conteúdo do contrato, cujo real sig-nificado é descoberto através da interpretação, conduzindo o contrato deacordo com sua finalidade e utilidade econômica. Tanto num caso comono outro, além da interpretação propriamente dita, há atividadeintegradora, justamente pela ausência de um conteúdo próprio e pré-definido do princípio, o que outorga um vasto poder para o julgador inter-ferir no conteúdo do contrato, fato que ensejou sua rejeição quando daelaboração do Código Civil.

Ressalve-se, porém, que no âmbito do direito do consumidor, o art. 47da Lei n. 8.078/9026 não trata de interpretação conforme a boa-fé, mas simtrata-se de intervenção do Estado na esfera privada, para garantir o equi-líbrio, proteger a parte mais débil, presumidamente confiante na ação dofornecedor, superior economicamente e intelectualmente. É regra quecria critério de interpretação objetiva do contrato, mas de outro tipo,assim como os recursos aos bons costumes, a iniqüidade das cláusulas e adesproporcionalidade excessiva: a boa-fé contribui, mas já não se tratameramente de interpretação.

A positivação do princípio da boa-fé parte do pressuposto de que aspessoas devem se comportar de acordo com padrões histórico-culturais.Como tem conteúdo vago e impreciso, a ser determinado, atribui ao juizum papel importante na criação e descoberta de deveres acessórios, apartir das necessidades das relações negociais, impostas por normas deconotação ética que protegem situações de confiança, e que dificilmentesão disciplinadas previamente pelas partes.

25. Conceitos indeterminados, cláusulas gerais, conceitos normativos, normalmente possuem um núcleo deconsenso, mas uma área periférica que a partir do elemento volitivo jamais se descobrirá seu alcance,motivo pelo qual deve-se apelar para a boa-fé. LARENZ, Karl. Derecho Civil. Parte General. Madrid:Editorial Revista de Derecho Privado, 1978, p. 88 e 91.

26. “Art. 47. As cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor”.

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27. CORDEIRO, Antônio Manuel da Rocha e Menezes, Op. Cit., p. 646.

28. MARTINS-COSTA, As Cláusulas Gerais como Fatores de Flexibilização do Sistema jurídico — Revistade Informação Legislativa do Senado Federal, v. 112, p. 13 - 32, Brasília, 1992.

A boa-fé não é fonte de obrigações, mas apenas norma que regulacertos fatos, que são fontes de obrigações. Sua atuação se dá, através donegócio jurídico, determinando que “as pessoas não se desviem dos pro-pósitos que, em ponderação social, venham a emergir da situação emque se achem colocadas: não devem assumir comportamentos que acontradigam — deveres de lealdade — nem calar ou falsear a actividadeintelectual externa que informa a convivência humana — deveres deinformação.”27

Constitui-se, também, em ponto de mobilidade do sistema jurídico,28

outorgando à autoridade judicial poder para normatizar e intervir na or-dem privada. Por isso, deve-se ressaltar que a boa-fé nunca atua sozinha,pela vaguidão material de seu conteúdo, dependendo de sub-princípios,conceitos periféricos ou diretivas, que sob sua unidade resultam em al-cance sobre o problema, como ‘situações de confiança’, ‘usos de tráfego’,‘bons costumes’, ‘agir como um bom pai de família (homem médio), pro-tegendo o próprio contrato, sua continuidade, em direção aoadimplemento das prestações pendentes, buscando neste processo a pre-servação do equilíbrio entre as partes.

CONCLUSÃO

Os princípios da autonomia da vontade e da boa-fé se interligam e sãoessenciais ao contrato.

Sem uma declaração de vontade o contrato não nasce, pois a declara-ção de vontade é gênese do regulamento contratual. Sem que as partesajam de boa-fé o contrato não resulta em adimplemento, que é a finalida-de do nascimento do próprio vínculo obrigacional.

É primordial, portanto, que o princípio da boa-fé, seja visto não comolimite externo ao princípio da autonomia da vontade, mas sim como umprincípio estruturante do direito contratual, que consiste na normatizaçãonecessária para uma inflexão ética do direito civil.

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29. LARENZ, K. Op. Cit., p. 91.

Tal inflexão ética é indispensável para a preservação do ‘equilíbrioeconômico’ do contrato, delimitando obrigações, deveres e prestaçõescontratadas, com o objetivo de que seja alcançada a finalidade do pró-prio contrato, que é o adimplemento.

Embora com um núcleo certo, mas com uma “zona marginal”29 sem umconteúdo prévio definido, mas definível no caso específico a boa-fé impõedeveres secundários de conduta, acessórios ao contrato, com a conse-qüente limitação no exercício dos direitos. Inclusive, preenchendo osvazios da elaboração do contrato, fixando preceito ausente da declara-ção de vontade, conforme os usos do tráfico e as situações de confiançacriadas no caso concreto.

Por outro lado, a visualização da autonomia da vontade dentro daperspectiva da autonomia privada, associada às operações econômicasque o contrato visa formalizar, é necessária para que se possa compreen-der a constante intervenção estatal no contrato, mesmo naqueles consi-derados atípicos, por meio da interpretação e integração judicial, sempreno sentido maior do próprio processo obrigacional: o adimplemento.

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Direito e Democracia 113

O modelo das regras e o modelo dosprincípios na colisão de direitos

fundamentais

LUÍS AFONSO HECK

Professor Titular do Curso de Pós-Graduação- Mestrado em Direito da ULBRA; Prof. do curso de Pós-Graduação-Mestrado em Direito da UFRGS; Doutor em Direito-UFMG.

RESUMO

O artigo procura, primeiro, diferenciar entre direitos humanos e direitos funda-mentais; depois demonstrar a vinculatividade dos direitos fundamentais; a se-guir, apresentar o modelo das regras e o modelo dos princípios e, por fim,analisar qual o modelo mais adequado para a solução da colisão de direitosfundamentais.Palavras-chave: Direitos humanos, direitos fundamentais, modelos jurídicos

ABSTRACT

This article tries, first of all, to distinguish between human rights and funda-mental rights; then, to demonstrate the binding of fundamental rights, afterthat, to show the models of rules and principles, and finally to analise whichmodel is the most appropriate to solve the collision of fundamental rights.Key words: Human rights, fundamental rights, legal models

INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 contém os direitos fundamentais emseu título II (artigo 5º até 17), precedido pelo título I (artigo 1º até 4º),

Direito e Democracia Canoas vol.1, n.1 1º sem. 2000 p.113-122

114 Direito e Democracia

que trata dos princípios fundamentais. Com isso, ela acolheu a formaestrutural das constituições européias do pós-guerra em geral no sentidode localizar os direitos fundamentais, se não nos artigos de entrada, pelomenos nos que lhes seguem. Desta atitude do poder constituinte resultouque os direitos fundamentais ganharam em importância e nela colocam asua pretensão de realização. Esta, por sua vez, requer, fundamentalmen-te, a proteção por meio do próprio Estado. No âmbito da atividade deproteção estatal surge a pergunta sobre os critérios empregados, por exem-plo, na colisão de direitos fundamentais. A palestra está orientada poreste sentido e pelas questões que com ele se colocam e, por conseqüên-cia, será desenvolvida da forma como segue: primeiro será tratada a ques-tão relativa aos direitos humanos/direitos fundamentais; depois se cuida-rá da vinculatividade dos direitos fundamentais; em seguida será consi-derado o modelo das regras, depois o modelo dos princípios e, por fim, aatenção estará dirigida para os critérios de solução empregados nos casosde colisão de direitos fundamentais, seguindo-se uma conclusão.

I. DIREITOS HUMANOS/DIREITOSFUNDAMENTAIS

As expressões direitos humanos/direitos fundamentais indicam duasformas de abordagem, ou seja, uma abstrata e, outra, concreta.1

Na forma abstrata, correspondente à expressão “direitos humanos”,trata-se, fundamentalmente, das questões sobre a sua origem histórica,os seus fundamentos e como se configuram teoricamente. Em conjunto, aforma abstrata gira em torno da filosofia destes direitos. Vista historica-mente, ela se vincula à declaração francesa dos direitos humanos e civisde 26.08 - 03.11.1789 e, nesta situação, ela também se torna compreensí-vel. A característica desta declaração encontra sua expressão em umaigualdade social diante de um regime feudo-estamental, ou seja, situar o

1. Este artigo é o resultado de uma palestra proferida na ULBRA, no dia 28 de outubro de 1999, quando serealizou o seminário intitulado “Os desafios do Estado de direito democrático na contemporaneidade”,promovido pelo C’urso de Pós-Graduação em Direito desta Universidade e coordenado pelo autor doartigo e pelo prof. Dr. Plauto Faraco de Azevedo.

Sigo, aqui, no essencial, STERN, K. Idee der Menchenrechte und Positivität der Grundrechte, in:ISENSEE, J., KIRCHHOF, P. (herg.) Handbuch des Staatsrechts der Bundesrepublik Deutschland, Bd. V,Heidelberg, 1992, § 108, Rdn. 13 ff.

Direito e Democracia 115

cidadão, que substitui o súdito, diante do Estado, mas não só. Ela tam-bém visava a uma igualdade social entre os cidadãos, isto é, à eliminaçãode privilégios estamentais e clericais que sustentavam prerrogativas nodireito privado. Esta característica estava vinculada a um programa quenão foi convertido para o plano normativo, de natureza jurídico-constitutiva. O mérito da declaração francesa, sem dúvida, consiste nauniversalização dos direitos nela inscritos. Resta, todavia, a pergunta:que papel estava reservado a estes direitos como meio jurídico ou comofundamento de uma sentença? Essa indagação leva à segunda forma.

A forma concreta, correspondente à expressão “direitos fundamen-tais”, cuida, sobretudo, da sua configuração no caso concreto, em outraspalavras, quando são considerados juridicamente. Ela também tem comoponto de partida histórico uma declaração, o Bill of Rights de Virgínia, de12.06.1776, que serviu de modelo a várias outras declarações estaduais e,assim também aos dez artigos complementares à Constituição Federalamericana, que nela, dois anos após o nascimento do Estado federal ame-ricano, em 04.03.1787, introduziram direitos fundamentais. De acordocom eles, o indivíduo é sujeito de direitos não por meio do Estado, masdeve, por sua natureza, ser respeitado pelo Estado. Ele possui direitosinalienáveis, invioláveis, que lhe conferem uma posição de direito e deliberdade dirigida para uma atuação determinada, porque é especial econcreta juridicamente. Com isso, o Estado deixa de ser absoluto, pois élimitado pela própria constituição, criada pelo povo com a qualidade dasupremacia. Assim, cada um tem a possibilidade de opor estes direitosfundamentais diante do poder estatal como normas jurídicas que valempositivamente, ou seja, têm força jurídica. Nessa situação, o Estado cons-titucional ganha realidade, porque no plano constitucional americano osdireitos fundamentais têm a sua base na natureza do homem e, como tal,são naturais, inatos e inalienáveis e, por isso, põem limites ao poder doEstado que tem o seu fundamento e razão de ser na própria constituição.2

2. Essa concepção de direitos fundamentais, mais precisamente, as suas conseqüências jurídico-constituci-onais, corresponde à da Lei Fundamental. Seu artigo 1º, alínea 1, prescreve: “A dignidade da pessoa éinviolável. Considerá-la e protegê-la é obrigação de todo o poder estatal.” O fundo dessa afirmaçãoconstitucional remonta a Kant, ou seja, a dignidade humana não tem preço e nem equivalente (Grundlegungzur Metaphysik der Sitten, Hamburg, 1965, NdRr. 434.) e, nesse sentido, isso significa para o Estado quenenhuma de suas atuações pode justificar-se pondo um preço ou equivalente à dignidade humana paraalcançar os seus objetivos. Dito de outra forma: a dignidade humana coloca limites intransponíveis àatuação estatal. Esse pensamento também pode valer para o Estado brasileiro que, como república,constituída em Estado democrático de direito [Estado de direito democrático] tem como um dos funda-mentos a dignidade humana (Constituição Federal, artigo 1º, inciso III).

116 Direito e Democracia

II. A FORÇA VINCULATIVA DOS DIREITOSFUNDAMENTAIS

Um dos aspectos mais importantes para um elenco de direitos funda-mentais, portanto, está no fato de ele se apresentar como juridicamentevinculativo. Em uma ordem jurídico-constitucional que reconhece o po-der judiciário como terceiro poder, a vinculatividade dos direitos funda-mentais, ao fim e ao cabo, está em poderem ser apresentados no planojurídico quando violados. Caso contrário, sua vinculatividade resta, tal-vez, no plano moral ou político. Dito em outras palavras: quando a esferajurídico-fundamentalmente protegida for violada pela atuação estatal3 oresultado desta atuação deve poder ser apresentado juridicamente paraque sobre ele também se decida da mesma forma. Isso requer não apenasum tribunal para a decisão mas também uma via processual adequada.Nesse sentido, também se fala que a vinculatividade dos direitos funda-mentais se manifesta quando a violação, decorrente da atividade estatal,é verificada judicialmente, ou seja, quando os direitos fundamentais sãojusticiáveis, quando se pode fazê-los valer na prática pela via judicial. Oideal é a existência de um tribunal constitucional para esta verificação.

Deste contexto, a idéia do Estado constitucional ganha e manifesta suaforça. Os direitos fundamentais estão situados no âmbito da constituição.Esta, todavia, em uma perspectiva jurídico-continental, não dispõe de meiosjurídicos de proteção semelhantes aos existentes em outros setores jurídi-cos, por exemplo, o civil.4 Ocorre, no entanto, que a atividade estatal podeestar conforme à lei mas não de acordo com a constituição.5 Nisto pode ser

3. No quadro desta palestra não é possível discutir a vinculatividade dos direitos fundamentais entreprivados. Para isso, ver: HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal daAlemanha. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1999, número demargem 351 e seguintes. Tradução de: Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland;HECK, Luís Afonso. Direitos fundamentais e sua influência no direito civil. Revista do Direito do Consumi-dor 29, jan./mar., 1999, página 40 e seguintes.

4. Não é possível a um titular de direitos fundamentais fazer valer judicialmente um direito fundamentalviolado pelos titulares do poder estatal por meio de uma ação inominada diretamente diante do SupremoTribunal Federal.

5. Como exemplo, pode-se citar o setor do direito administrativo e o do penal, mas também o do direito civil.Quanto a este, antes da decisão do Tribunal Constitucional Federal alemão (BVerfGE 89, 214 ff.) era possívelsustentar a opinião de que alguns tribunais, ao decidirem sobre contratos de fiança, atuavam conforme a lei.Restava, contudo, a questão de se a sua atuação era sustentável diante de certos direitos fundamentais daLei Fundamental, que foi respondido negativamente pelo Tribunal Constitucional Federal na decisãomencionada. Para mais detalhes sobre isso, ver HECK, Luís Afonso (nota 3), página 50 e seguintes.

Direito e Democracia 117

situada a diferença entre o Estado de direito e o Estado constitucional efica mais clara aquela entre direitos humanos e direitos fundamentais.Diante disso, deixa-se dizer que quanto mais está consolidado, em umaordem jurídico-constitucional, tanto um tribunal, ou seja, uma instânciajudicial-constitucional, como uma via processual adequada, isto é, ummeio processual à disposição do titular dos direitos fundamentais paraque o mesmo tenha a possibilidade de poder fazê-los valer quando viola-dos pelo poder público diante deste tribunal, tanto mais se converte emrealidade, e, portanto, passível de experiência pelo cidadão, o Estadoconstitucional. Nessa conexão o Estado constitucional também encontrao seu coroamento.

Aqui é importante deter-se, mesmo que brevemente, na Constitui-ção Federal, porque algumas questões se colocam. Primeira: via proces-sual adequada e instância judicial-constitucional.6 No artigo 102, I,letra d, da Constituição Federal, cabe ao Supremo Tribunal Federalprocessar e julgar originariamente o habeas corpus, o mandado de segu-rança e o habeas data. Na letra i, do mesmo inciso e artigo, cabe-lhenovamente a competência para o julgamento do habeas corpus. Estasvias processuais, no entanto, não cobrem todos os titulares do exercíciodo poder estatal e nem estão à disposição de todos os titulares de direi-tos fundamentais, embora, nestes casos, o Supremo Tribunal Federalesteja dotado formalmente dos meios para o exercício da guarda daConstituição sob o aspecto dos direitos fundamentais que são objeto deproteção destas vias processuais. Uma via processual que compreendetodos os titulares do exercício do poder estatal e está à disposição detodos os titulares de direitos fundamentais é, por exemplo, o recursoconstitucional alemão,7 sendo o Tribunal Constitucional Federal a ins-

6. Deve ser lembrado que a própria Constituição Federal, no caput do artigo 102, incumbiu ao SupremoTribunal Federal a tarefa de ser, precipuamente, o guarda da Constituição.

7. O recurso constitucional não é um recurso suplementar para o procedimento relativo aos tribunaisespecializados. Se assim fosse, o Tribunal Constitucional Federal seria uma instância de revisão daaplicação, pelos tribunais especializados, do direito ordinário. De modo simples, pode-se dizer que aatividade corretiva do Tribunal Constitucional entra quando o resultado interpretativo do tribunalespecializado é incompatível com o significado e o alcance do direito fundamental ou quando é insusten-tável, portanto, arbitrário. Isso não significa, todavia, que os tribunais especializados não tenham comotarefa proteger e realizar os direitos fundamentais quando violados por decisões judiciais ou administra-tivas, provocados pelas vias processuais judiciais disponíveis no ordenamento jurídico. Contra decisãolegislativa, isto é, lei em sentido formal, não existe via processual judicial disponível neste sentido. Versobre isso, com mais detalhes, HECK, Luís Afonso. O recurso constitucional na sistemática jurisdicional-constitucional alemã. Revista de Informação Legislativa, n. 124, out./dez., 1994, página 115 e seguintes.

118 Direito e Democracia

tância judicial-constitucional para o seu julgamento.8 Segunda: man-damento jurídico-constitucional de vinculatividade. A ConstituiçãoFederal o contém no artigo 5º, § 1º (As normas definidoras dos direitose garantias fundamentais têm aplicação imediata). De forma semelhan-te, a Lei Fundamental, em seu artigo 1º, alínea 3 (Os direitos funda-mentais seguintes vinculam legislação, poder executivo e judiciário comodireito diretamente vigente).

III. O MODELO DAS REGRAS

Segundo o modelo das regras, normas jurídicas têm somente a carac-terística de regras, ou seja, elas valem ou não valem. Toda vez que o seutipo ocorrer a sua conseqüência jurídica deve ser aceita. Regras são nor-mas que exigem que algo seja feito dentro das condições fáticas e jurídi-cas dadas. Elas são mandamentos definitivos.9

O conflito entre regras pode ser resolvido de duas formas:10 ou se in-troduz uma cláusula de exceção dentro da regra, que elimina o conflito,ou se declara, pelo menos, uma regra como inválida. Exemplo do primeirocaso: o conflito de regras existente entre a proibição de abandonar o re-cinto antes do sinal sonoro e o mandamento de abandoná-lo no caso dealarme de fogo. Se o sinal sonoro ainda não tocou mas foi dado alarme defogo essas regras apresentam um dever-ser concreto contraditório. O con-flito disso resultante é solucionado pelo fato de, no caso de alarme defogo, ser introduzida uma exceção na primeira regra.

Se a introdução de uma cláusula de exceção não entra em conta vem,então, o segundo caso, ou seja, pelo menos, uma regra deve ser declaradacomo inválida. Para a solução deste tipo de conflito existem os meios se-guintes: a lei posterior derroga a lei anterior, a lei especial derroga a leigeral.

8. As prescrições relativas à decisão sobre o recurso constitucional encontram-se no § 95 da Lei sobre oTribunal Constitucional Federal (esta lei foi traduzida pelo autor deste artigo e está publicada na Revistade Informação Legislativa, n. 127, jul./set., 1995, página 241 e seguintes) e as relativas ao efeito das decisõesdo Tribunal Constitucional Federal situam-se no § 31 da lei mencionada.

9. Para isso, com mais detalhes, SIECKMANN, Jan-Reinard. Regelmodelle und Prinzipienmodelle des Rechtssystems,Baden-Baden, 1990, S. 89 ff.

10. Para o seguinte, ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte. 2. Aufl., Frankfurt am Main, 1994, S. 77 f.

Direito e Democracia 119

O modelo das regras é sustentado por aquele que vê as normas dedireitos fundamentais, embora, possivelmente, carentes de complemen-to, mas já aplicáveis sem ponderação.11

IV. O MODELO DOS PRINCÍPIOS

De acordo com o modelo dos princípios, normas jurídicas têm so-mente a característica de princípios, ou seja, a pergunta sobre suavalidade depende de ponderação. Princípios são normas que pedemque algo seja feito dentro das possibilidades fáticas e jurídicas emuma medida tão ampla quanto possível. Eles são mandamentos deotimização.12

Dois princípios podem colidir. Esse é o caso, por exemplo, quando,segundo um princípio, algo é proibido e, segundo um outro, é permiti-do. Nessa situação, um princípio deve retroceder. Isso, todavia, aocontrário do modelo das regras, não significa que no princípio queretrocede deva ser inserida uma cláusula de exceção ou que ele devaser declarado como inválido. Antes, sob determinadas circunstâncias,um princípio precede ao outro, e, em outras circunstâncias, pode dar-se o contrário. Com isso, quer-se dizer que princípios têm pesos dife-rentes no caso concreto e que o de maior peso tem precedência. Con-flito de regras se resolvem no plano da validade, colisão de princípiosno plano do peso.13

Com isso, se coloca a questão sobre como se chega à determinaçãodo peso. Este se determina, no caso concreto, por meio da ponderação,que corresponde ao terceiro princípio parcial do princípio daproporcionalidade do Direito Constitucional alemão, ou seja, o da

11. Ver ALEXY, R. (nota 8), S. 106. De acordo com a definição do modelo das regras, a um sistema jurídicopertencem exclusivamente normas válidas, independente de ponderação. Em nenhum caso, portanto, avalidade de uma norma pode ser fundamentada em uma ponderação de princípios. Na medida em queem um sistema jurídico devem ser tomadas decisões de ponderação, trata-se, então, de decisõespolítico-morais, não de decisões sobre a base de normas jurídicas válidas. Esse modelo pode, porexemplo, ser encontrado nas teorias de Kelsen e Hart. Ver sobre isso, com mais detalhes, SIECKMANN,J.-R. (nota 7), S. 247 ff.

12. Para isso, com mais detalhes, SIECKMANN, J.-R. (nota 7), S. 141 ff.

13. Ver ALEXY, R. (nota 8), S. 78 f.

120 Direito e Democracia

proporcionalidade em sentido estrito.14 O primeiro princípio parcial é oda idoneidade do meio utilizado para alcançar o resultado com ele pre-tendido; o segundo princípio parcial é o da necessidade desse meio,que não é necessário quando existe um outro mais ameno, menos inci-sivo.15

V. CRITÉRIOS DE SOLUÇÃO PARA A COLISÃO DEDIREITOS FUNDAMENTAIS

Os critérios de solução empregados na colisão de direitos fundamen-tais estão vinculados à concepção das normas de direitos fundamentais.Se se parte da concepção de que elas são regras, então os critérios desolução que se oferecem são aqueles contidos no modelo das regras, em-pregados para resolver o conflito de regras. Se, ao contrário, se parte daconcepção de que as normas de direitos fundamentais são princípios, en-tão o critério de solução disponível é aquele compreendido no modelodos princípios, utilizado para a solução da colisão de princípios.

Os meios contidos no modelo das regras e empregados para a soluçãode conflito de regras mostram-se insatisfatórios para resolver colisões dedireitos fundamentais. Senão vejamos:

a) o emprego do meio da inserção da cláusula de exceção ocorre sema ponderação desta exceção. Com isso, todavia, pode resultar outracolisão que carece de ponderação para ser resolvida, como, por

14. Em relação aos direitos fundamentais, o princípio da proporcionalidade em sentido estrito deixa-seformular como uma lei de ponderação, de forma simples, assim enunciada: quanto mais intensiva é umaintervenção em um direito fundamental tanto mais graves devem ser as razões que a justificam. De acordocom a lei da ponderação, a ponderação deve suceder em três fases. Na primeira, deve ser determinada aintensidade da intervenção. Na segunda, cuida-se da importância das razões que justificam a interven-ção. E, na terceira fase, ocorre, então, a ponderação no sentido estrito e próprio. Ver, sobre isso, ALEXY,R. Colisão de direitos fundamentais e realização de direitos fundamentais no estado de direito democrá-tico (item 2. II, c). Tradução de Luís Afonso Heck (no prelo).

15. Ver ALEXY, R. (nota 12), item 2. II., c, e HESSE, K. (nota 3), número de margem 318. O modelo dosprincípios é definido pelo aspecto de que o conteúdo normativo de um sistema jurídico é determinadosomente por princípios e pelos fatos relevantes para a sua aplicação. Potencialmente cada decisão judicialno modelo dos princípios, por conseguinte, deve ser fundamentada em uma ponderação de princípios. Versobre isso, com mais detalhes, SIECKMANN, J.-R. (nota 7), S. 249 ff.

Direito e Democracia 121

exemplo, a resultante pela limitação, introduzida por exceção, nocaso do artigo 5º, inciso XIII, da Constituição Federal;16

b) o meio, segundo o qual a lei posterior derroga a lei anterior,também não é apropriado para a solução, porque a colisão dedireitos fundamentais sempre se dá no âmbito de uma mesmaconstituição; e,

c) pelo meio, segundo o qual a lei especial derroga a lei geral,igualmente não se avança, porque ele vale para leis de mesmograu hierárquico e direitos fundamentais colidem na dimensãoda constituição.

O meio oferecido pelo modelo dos princípios, utilizado para a solu-ção de colisão de princípios é, ao contrário, adequado para resoluçãode colisões de direitos fundamentais. Este meio consiste na pondera-ção. Primeiro, porque a validade é conferida como qualidade a todos osdireitos fundamentais; segundo, porque no caso concreto não é estaqualidade o critério de solução, mas sim, o peso do direito fundamen-tal, verificado segundo as circunstâncias presentes no caso concretopelo princípio da proporcionalidade em sentido estrito, e, terceiro, omodelo dos princípios permite, ainda, a produção da concordância prá-tica. A tarefa dela é coordenar proporcionalmente direitos fundamen-tais e bens jurídicos que limitam direitos fundamentais.17 Trata-se, comela, de deixar chegar tanto o direito fundamental como o bem jurídicolimitador à eficácia ótima, ou seja, uma determinação proporcional quenão deve ser realizada em uma forma que prive uma garantia de direitofundamental mais do que o necessário, ou até completamente, de suaeficácia na vida da coletividade.18

16. É pensável, por exemplo, que o legislador determine, por lei, como qualificação para determinada profissão,o serviço militar com armas. Esta qualificação, introduzida por exceção como limitação, todavia, colidecom a objeção de consciência, prevista no artigo 5º, inciso VIII, da Constituição Federal.

17. Como exemplo, pode-se citar a colisão entre o direito fundamental da propriedade e o bem jurídico comoa qualidade da água. Na BVerfGE 58, 300 (318 ff), o Tribunal Constitucional Federal cuidou da questãode como e em qual proporção o legislador pode proibir aproveitamentos para o proprietário de seu terrenoque prejudiquem a água subterrânea.

18. Ver sobre isso, com mais detalhes, HESSE, K. (nota 3), número de margem 72, 317 e seguinte.

122 Direito e Democracia

19. Ver ALEXY, R. (nota 12), item II, 2.a.

20. Ver SIECKMANN, J.-R. (nota 7), S. 254 f.; ALEXY, R. (nota 8), S. 117 ff. Nesta palestra, o modelo dasregras e o modelo dos princípios foram sucintamente apresentados na perspectiva da solução de colisão dedireitos fundamentais. Naturalmente, eles, considerados em si, envolvem ainda outras questões e contamcom objeções. Ver para isso, SIECKMANN, J.-R. (nota 7), S. 89 e S. 141, respectivamente.

CONCLUSÃO

Pelo modelo das regras, uma das normas de direitos fundamentais, nocaso de conflito, vale ou não vale. Pelo modelo dos princípios, as normas dedireitos fundamentais, no caso de colisão, são ponderadas para verificarqual delas tem precedência, sem que sua validade entre em consideração.Este modelo tem a vantagem de oferecer uma flexibilidade à constituiçãoe, com isso, uma resposta intermediária à vinculação. Assim, as normas dedireitos fundamentais livram-se da questão de se valem ou não valem, dese são programáticas ou não, e ganham em vinculatividade sem exigir oimpossível. Em uma Constituição como a brasileira, onde o artigo 174 pres-creve a tarefa ao Estado, na qualidade de agente normativo e regularizadorda atividade econômica, as funções de fiscalização, incentivo e planeja-mento, o modelo dos princípios permite até a transformação do impossívelem possível diante da realidade dada e, assim, também ganham em signifi-cado os direitos fundamentais não-clássicos, previstos no artigo 6º da Cons-tituição Federal, que prescrevem prestações positivas ao Estado, cuja exe-cução depende, em grande medida, da situação econômica que, de início,se apresenta como condição fática. Em outras palavras: os limites entre opossível e o impossível sempre estão condicionados, nunca caem do céuazul. Isso significa que, perante a presença desses limites, o Estado nãopode simplesmente quedar imóvel, senão que requer dele um tornar-seativo para cumprir esta tarefa constitucional.

Dando fim a esta palestra, deve ser sublinhado, ainda, que o modelodos princípios não exclui regras. Assim, pelo modelo dos princípios não sediz que elencos de direitos fundamentais não contêm absolutamente re-gras, portanto, absolutamente determinações. Por meio dele se reconhe-ce que elencos de direitos fundamentais, na medida em que estabelecemdeterminações definitivas, tem uma estrutura de regras e que o plano dasregras precede prima facie o plano dos princípios. Fundamental nele é queatrás e ao lado das regras estão princípios.19 Por isso, fala-se de um modeloregra/princípio combinado.20

Direito e Democracia 123

O conflito armado entre a Otan e aIugoslávia (1999): algumas

considerações sobre o uso da forçanas relações internacionais

IELBO MARCUS LOBO DE SOUZA

PhD (Univ. of London). Professor de Direito Internacional na ULBRA.

RESUMO

O conflito armado ocorrido em 1999, entre a OTAN (Organização do Trata-do do Atlântico Norte) e a República Federal da Iugoslávia, tem suscitadodiversas questões sobre a eficácia do sistema de segurança coletiva estabelecidopela Carta da ONU, o papel das organizações regionais dentro desse sistema,e a legalidade da ação militar tomada pela OTAN à luz do direito internacio-nal. A resposta a estas questões ajudará a entender possíveis mudanças nosistema internacional, decorrentes da chamada “nova ordem mundial”.Palavras-chave: Ordem mundial, relações internacionais, direito internacional

ABSTRACT

The armed conflict which took place in 1999, between NATO (North AtlanticTreaty Organization) and the Federal Republic of Yugoslavia, has raised manyquestions on the efficacy of the system of collective security established by theUnited Nations Charter, the role of regional organizations within this system, andthe legality of the armed action taken by NATO under international law. Ananswer to those questions will help understand possible changes in the interna-tional system resulting from the so-called “new world order”.Key words: World order, international relationships, international law

Direito e Democracia Canoas vol.1, n.1 1º sem. 2000 p.123-147

124 Direito e Democracia

Em 24 de março de 1999, a Organização do Tratado do Atlântico Nor-te (OTAN) iniciou uma ação militar contra a República Federal da Iu-goslávia (Iugoslávia), que só teve fim em 10 de junho de 1999, com aassinatura de um acordo entre a Iugoslávia e a OTAN.

A legalidade da ação militar da OTAN contra a Iugoslávia tem sidoobjeto de um crescente debate doutrinário, e está sendo questionadaperante a Corte Internacional de Justiça, em ação proposta pela Iugoslá-via contra 10 Estados membros da OTAN1. O conflito é ainda muito re-cente, e não existe muito material disponível para um exame mais exaus-tivo. Ainda assim, vale a pena apresentar uma contribuição preliminarpara o debate acadêmico que o assunto tem gerado.

Este estudo propõe-se a examinar, sob a ótica do direito internacionalvigente, as justificativas apresentadas pela OTAN para a ação militarque empreendeu contra a Iugoslávia no primeiro semestre de 1999. Oestudo está dividido em três partes. Primeiramente, dedica-se uma seçãoàs normas gerais de direito internacional que regulam a ameaça ou usoda força nas relações internacionais. A segunda parte do estudo apresen-tará as justificativas aduzidas pela OTAN para a sua ação militar. Final-mente, estas justificativas serão examinadas à luz das regras de direitointernacional que regem a matéria.

Tendo em vista o objetivo limitado do estudo, questões outras relati-vas ao conflito armado entre a OTAN e a Iugoslávia, tais como as possí-veis razões estratégicas ou políticas para o conflito, ou a aplicação dodireito internacional humanitário durante o conflito, embora relevantes,não serão aqui abordadas.

I. O USO DA FORÇA NAS RELAÇÕESINTERNACIONAIS E O DIREITO INTERNACIONAL

O direito internacional contemporâneo proíbe a ameaça ou o uso da forçanas relações internacionais. O artigo 2(4) da Carta da ONU assim dispõe:

1. Cf. Legality of Use of Force (1999). A Iugoslávia propôs ações individuais contra a Alemanha, Bélgica,Canadá, Estados Unidos, Espanha, França, Itália, Países Baixos, Portugal, e Reino Unido. Das 10 ações,02 foram extintas sem julgamento de mérito e arquivadas (as propostas contra os Estados Unidos eEspanha), pois a Corte entendeu que não tinha jurisdição sobre os casos.

Direito e Democracia 125

Todos os membros deverão evitar em suas relações inter-nacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridadeterritorial ou a independência política de qualquer Estado,ou qualquer outra ação incompatível com os Propósitosdas Nações Unidas.

Esta disposição é complementada pelo art. 2(3) da Carta da ONU,que estipula para os Estados a obrigação de resolverem suas controvérsiasinternacionais somente por meios pacíficos:

Todos os membros deverão resolver suas controvérsias in-ternacionais por meios pacíficos, de modo que não sejamameaçadas a paz, a segurança e a justiça internacionais.

O princípio que proíbe o uso ou ameaça do uso da força nas relaçõesinternacionais, insculpido no art. 2(4) da Carta da ONU, também estáincorporado ao direito costumeiro internacional (ou ao direito internaci-onal geral), o que significa que se aplica mesmo àqueles Estados que nãosão partes da Carta. A doutrina e a jurisprudência internacional tambémtêm reconhecido o caráter especial da norma enunciada no art. 2(4) daCarta da ONU: ela tem a natureza de jus cogens, i.e., constitui uma nor-ma imperativa de direito internacional geral da qual nenhuma derrogaçãoé permitida, e que só pode ser modificada por nova norma de direitointernacional da mesma natureza, conforme a definição contida no artigo53 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados2.

A norma contida no art. 2(4) da Carta da ONU usa o termo “força”para designar o uso da força armada num contexto bem mais amplo doque o da guerra. A norma abrange não apenas a guerra - no sentidojurídico-formal - mas também o recurso a represálias armadas e outrasformas de uso da força que não configuram a guerra3. A Declaração sobre

2. Veja, inter alia, Pastor Ridruejo, José A. Curso de Derecho Internacional Publico y OrganizacionesInternacionales. Madrid: Technos, 1992, p.648. Veja também a posição do Juiz Nagendra Singh a respeito,em sua Opinião Separada no caso Nicarágua, Military and Paramilitary Activities in and against Nicaragua(Nicaragua v. United States of America), Merits, Judgement, ICJ Reports 1986, p. 152. Em igual sentidomanifestou-se a Comissão de Direito Internacional da ONU, cf. International Law Commisssion Yearbook,1966-II, p.247.

3. Veja Rousseau, Charles. Derecho Internacional Publico. Barcelona: Ariel, 1966, p.475.

126 Direito e Democracia

os Princípios do Direito Internacional relativos às Relações Amistosas e àCooperação entre Estados de Acordo com a Carta das Nações Unidas,contida na Resolução 2625 (XXV), de 24 de outubro de 1970, da Assem-bléia Geral da ONU, ao descrever o conteúdo da norma proibitiva do usoda força nas relações internacionais, afirma que os Estados “...têm o de-ver de evitar atos de represália que envolvam o uso da força”4.

Pela abrangência da norma proibitiva, a Carta da ONU teria ido alémdo que previa o pretérito Pacto da Liga das Nações (1919), e o direitoaplicado e reconhecido pelos Tribunais Militares de Nuremberg e de Tó-quio, introduzindo uma verdadeira inovação no direito internacional5.

O art. 2(4) da Carta da ONU espelha com fidelidade os desenvolvi-mentos na prática dos Estados após a I Guerra Mundial. A prática dosEstados demonstra que os Estados têm participado de conflitos armadosinternacionais sem a declaração formal de guerra, ou o reconhecimentoformal de um estado de guerra. Uma norma de direito internacional queproibisse a “guerra” entre Estados, certamente não abarcaria a maior par-te dos conflitos internacionais armados contemporâneos. A norma conti-da no art. 2(4) da Carta da ONU, tal qual está redigida, proíbe qualqueruso da força armada, mesmo limitado do ponto de vista geográfico ou empequena proporção, e mesmo sem a declaração formal de guerra.

A proibição geral da ameaça ou uso da força nas relações internacio-nais objetiva reduzir ao máximo a possibilidade de que, através de confli-tos armados de menor envergadura e localizados, ou de represálias arma-das, um conflito maior possa agravar-se perigosamente, inclusive a pontode atrair o envolvimento de vários Estados, colocando em risco a paz esegurança internacionais e a própria sobrevivência da humanidade.

Definido o campo geral de aplicação da norma, cumpre agora estabele-cer o seu sentido. O termo “força”, utilizado no art. 2(4) da Carta da ONU,refere-se à força armada, e compreende todo tipo de ação ou atividademilitar6. Excluída estaria, em princípio, uma ação coercitiva de natureza

4. Para o texto completo da Declaração, veja Brownlie, Ian. Basic Documents in International Law. Oxford:Clarendon Press, 1988, pp.35-44.

5. Esta posição foi ratificada pelo Juiz Jennings, em sua Opinião Dissidente, pp.530-531, e pelo Juiz NagendraSingh, em sua Opinião Separada, p.151, ambas no caso Nicarágua, op. cit. supra n. 3.

6. Veja Oppenheim, L. International Law. London: Longmans, Green and Co. Ltd., 1952, Vol II, p.153.

Direito e Democracia 127

econômica, embora ela possa ser enquadrada em outra norma proibitiva dedireito internacional (e.g., o princípio da não intervenção). O uso da forçamais facilmente enquadrado como ilícito é aquele que corresponderia auma agressão armada ou um ataque armado7. A idéia básica e indiscutívelde ataque armado é o uso de forças armadas regulares de um Estado, atra-vés de uma fronteira internacional, contra um outro Estado. Para entendermelhor a extensão do conceito de ataque armado, entretanto, cumpre fa-zer referência ao art. 3º da Res. 3314 (XXIX) da Assembléia Geral daONU, que contém uma Definição de Agressão. De acordo com este artigo,os seguintes atos caracterizam a prática de agressão armada:

a)a invasão ou ataque pelas forças armadas de um Estado contra oterritório de outro Estado, ou qualquer ocupação militar, embo-ra temporária, que resulte dessa invasão ou ataque, ou qual-quer anexação, pelo uso da força, do território de outro Estadoou parte dele;

b)o bombardeio do território de um outro Estado pelas forças arma-das de um Estado, ou o uso de quaisquer armas por um Estadocontra o território de um outro Estado;

c)o bloqueio dos portos ou das costas de um Estado pelas forçasarmadas de um outro Estado;

d)um ataque das forças armadas de um Estado contra as forçasterrestres, navais ou aéreas, ou contra as frotas aéreas ou mer-cantes de um outro Estado;

......

g)o envio por um Estado, ou em seu nome, de bandos armados,grupos irregulares ou mercenários que executem atos de forçaarmada contra um outro Estado, de tal gravidade que sejamequiparáveis aos atos enumerados acima, ou sua participaçãosubstancial nos ditos atos.

A prática de quaisquer desses atos caracterizaria um ataque armadoe, portanto, o uso da força compreendido pela proibição do art. 2(4) daCarta da ONU.

7. Veja Brownlie, Ian. International Law and the Use of Force by States. Oxford: Clarendon Press, 1963,pp.361-362.

128 Direito e Democracia

Ao lado do ataque armado, porém, que seria a forma mais grave douso da força, existiriam outras formas menos graves que também esta-riam previstas pelo princípio que proíbe o uso da força nas relaçõesinternacionais. A Corte Internacional de Justiça, no caso Nicarágua(1986), refere-se à Declaração sobre os Princípios do Direito Interna-cional relativos às Relações Amistosas e à Cooperação entre Estadosde acordo com a Carta das Nações Unidas (1970) para demonstrar aexistência de formas menos graves de uso da força que estariam pre-vistas pelo princípio que proíbe o uso da força nas relações internaci-onais, e que seriam as seguintes:

Todo Estado tem o dever de evitar a ameaça ou uso daforça para violar as fronteiras internacionais existentes dequalquer Estado ou como meio de resolver disputas inter-nacionais, inclusive disputas territoriais e problemas relati-vos às fronteiras dos Estados.

Os Estados têm o dever de evitar atos de represália que envolvam ouso da força.

Todo Estado tem o dever de evitar organizar ou encorajar a organiza-ção de forças irregulares ou bandos armados, incluindo mercenários, paraincursão no território de outro Estado.

Todo Estado tem o dever de evitar organizar, instigar, apoi-ar ou participar de atos de guerra civil ou atos terroristasem outro Estado ou consentir em atividades organizadasdentro do seu território dirigidas para a prática de tais atos,quando os atos referidos nesse parágrafo envolvem a ame-aça ou uso da força8.

A norma contida no art. 2(4) da Carta da ONU proíbe também a ameaçado uso da força. Cuida-se aqui de evitar que Estados possam compelir outrosEstados a fazer ou deixar de fazer algo sob uma ameaça clara e direta de usoda força. Quando a norma contida no art. 2(4) da Carta da ONU vincula aameaça do uso da força à “independência política” de outro Estado, o que

8. Cf. caso Nicarágua, op. cit. supra n.2, p.101, par.191.

Direito e Democracia 129

está a dizer é que se proíbe a coerção militar para direcionar ou restringir aindependência do Estado em escolher e gerir seu próprio sistema político,social, cultural e econômico, bem como sua política externa.

Há hipóteses nas quais a ameaça do uso da força seria claramenteuma violação do princípio enunciado. Quando um Estado, e.g., exige aentrega de um território em disputa sob a ameaça do uso da força, aviolação do princípio parece ser óbvia. A prática dos Estados, no entanto,revela casos mais complexos, onde a ameaça de força é velada e feita paraforçar um Estado a aceitar uma determinada proposta de solução negoci-ada (cf. infra).

O art. 2(4) da Carta da ONU proíbe a ameaça ou uso da força contraa integridade territorial dos Estados. A expressa referência à integridadeterritorial justifica-se pelo fato de que a maioria dos grandes conflitosarmados internacionais contemporâneos tem suas origens em disputasterritoriais ou fronteiriças. A Declaração sobre os Princípios do DireitoInternacional relativos às Relações Amistosas e à Cooperação entre Esta-dos de acordo com a Carta das Nações Unidas (1970), ao enunciar oprincípio do não uso da força, dedica alguns parágrafos à aplicação doprincípio à integridade territorial dos Estados e à aquisição de território.Como decorrência do referido princípio, a Declaração dispõe:

Todo Estado tem também o dever de evitar a ameaça ouuso da força para violar linhas internacionais de demarca-ção tais como linhas de armistício, estabelecidas por ou emcumprimento de um acordo internacional do qual é parteou a que está obrigado a respeitar. Nada deverá ser inter-pretado como afetando as posições das partes respectivascom relação ao status e efeitos de tais linhas sob seus regi-mes especiais ou seu caráter temporário.

Dessa forma, o direito internacional não reconhece a aquisição deterritório mediante a ameaça ou uso ilícito da força. Existem inúmeroscasos em que a ocupação ou anexação de territórios não foi reconhecidapelos demais Estados ou pelas Nações Unidas. As Colinas de Golã, porexemplo, pertencentes à Síria e ocupadas por Israel após a Guerra dosSeis Dias (1967), jamais foram reconhecidas pela ONU como territóriode Israel. Cite-se, a propósito, a Resolução 497, de 17 de dezembro de1981, do Conselho de Segurança da ONU, onde este órgão resolveu que

130 Direito e Democracia

“a decisão de Israel de impor suas leis, jurisdição e administração nascolinas de Golã ocupadas é nula e sem efeito jurídico internacional”. Nopreâmbulo, a Resolução reafirmou que “a aquisição de território pela for-ça é inadmissível, de acordo com a Carta das Nações Unidas, os princípi-os de direito internacional, e as resoluções relevantes do Conselho deSegurança”9.

O art. 2(4) da Carta da ONU, após proscrever o uso da força nasrelações internacionais, contém uma expressão final que é muito signifi-cativa: “...ou qualquer outra ação incompatível com os Propósitos dasNações Unidas”. Esta expressão deve ser interpretada e aplicada de acor-do com as demais disposições da Carta da ONU, e a Carta só autoriza ouso da força, sem que o art. 2(4) seja violado, no caso de legítima defesaindividual ou coletiva, ou em cumprimento de decisão do órgão compe-tente das Nações Unidas. Qualquer outro uso da força seria “incompatí-vel com os Propósitos das Nações Unidas”. A posição da doutrina em talsentido é unânime10. Afora, portanto, a exceção do uso da força no exer-cício de legítima defesa – medida também prevista nos sistemas jurídicosnacionais – a força armada somente poderia ser usada com a autorizaçãodo Conselho de Segurança da ONU ou sob sua determinação. Estas duaspossibilidades serão agora brevemente examinadas.

A primeira exceção à regra da proibição da ameaça ou uso da força éo uso da força no exercício de legítima defesa individual ou coletiva. Estaexceção está expressa no art. 51 da Carta da ONU, nos seguintes termos:

Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente delegítima defesa individual ou coletiva, no caso de ocorrerum ataque armado contra um membro das Nações Uni-das, até que o Conselho de Segurança tenha tomado asmedidas necessárias para a manutenção da paz e seguran-ça internacionais. As medidas tomadas pelos Membros noexercício desse direito de legítima defesa serão comunicadas

9. Cf. UN Security Council Doc. S/RES/487 (1981), de 17 de dezembro de 1981.

10. Veja, inter alia, Schwebel, Stephen M. Aggression, Intervention and Self-Defence. Recueil des cours del’académie de droit international, vol II, p.473, 1972; Ruda, José Maria. Panorama del Derecho Interna-cional Publico Contemporaneo. Washington: Comitê Jurídico Interamericano, 1984, p.62; Waldock,Humphrey, The Regulation of the Use of Force by Individual States in International Law. Recueil descours de l’académie de droit international, vol.106, p. 492, 1952-II.

Direito e Democracia 131

imediatamente ao Conselho de Segurança e não deverãode modo algum, atingir a autoridade e a responsabilidadeque a presente Carta atribui ao Conselho para levar aefeito, em qualquer tempo, a ação que julgar necessária àmanutenção ou ao restabelecimento da paz e da seguran-ça internacionais.

O direito de legítima defesa é considerado, no art. 51 da Carta daONU, como um direito inerente, o que significaria que ele é um direitonatural e fundamental do Estado, do qual depende a própria preservaçãodo Estado.

O direito de legítima defesa individual será exercido de forma regular elegítima quando determinadas condições estiverem presentes. O art. 51 daCarta da ONU menciona uma das condições, qual seja, a ocorrência de umataque armado contra o Estado. O conceito de ataque armado já foi definidoacima. Sem a existência de um ataque armado, não há lugar para o exercíciodo direito de legítima defesa11. Por esta razão, sempre que um Estado alegaestar usando do direito de legítima defesa individual, cabe perguntar se elefoi vítima de um ataque armado. Além da ocorrência de um ataque armado,são requisitos para o exercício do direito de legítima defesa a necessidade e aproporcionalidade, i.e., a resposta armada deve ser imperiosa para o Estadovítima da agressão e proporcional aos meios usados pelo Estado agressor12.

A legítima defesa poderá ser individual ou coletiva. A legítima defesacoletiva está prevista na Carta da ONU para cobrir os acordos de defesamútua firmados desde antes da criação da ONU. Atualmente, estão emvigor diversos acordos internacionais de defesa mútua, que prevêem oexercício do direito de defesa coletiva pelos Estados partes quando umdeles é vítima de um ataque armado13.

A segunda exceção à regra proibitiva do uso da força refere-se à

11. Esta é a interpretação da maioria dos autores a respeito. Veja, e.g., Bronwlie, Ian. The Use of Force in Self-Defence. The British Year Book of International Law, vol. 37, pp.266-267, 1962. Há, entretanto, aquelesque advogam possibilidade da chamada autodefesa preventiva, i.e., o Estado exerce o direito de autode-fesa sem a efetiva ocorrência prévia do ataque armado, mas na iminência de um ataque armado.

12. Schachter, Oscar. International Law in Theory and Practice. Recueil des cours de l’académie de droitinternational, vol. 178, pp.152-156, 1982.

13. Veja, e.g., o art. 3º do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca - TIAR (1947).

132 Direito e Democracia

operação do sistema universal de segurança coletiva introduzido pelaCarta de ONU (1945). Após afirmar, preambularmente, que os povosdas Nações Unidas estão resolvidos a “preservar as gerações vindourasdo flagelo da guerra”, a Carta fixou como um dos propósitos da Organi-zação o de “manter a paz e segurança internacionais e, para esse fim:tomar coletivamente, medidas efetivas para evitar ameaças à paz ereprimir os atos de agressão ou qualquer ruptura da paz...”. O siste-ma universal de segurança coletiva criado proíbe o uso ou ameaça douso da força pelos Estados, impõe-lhes o dever de resolver suas contro-vérsias internacionais por meios pacíficos, e instituiu a ONU, atravésde seus órgãos, como a entidade que zelará pela manutenção da paz esegurança internacionais, exercendo ou autorizando o uso da força ar-mada, quando necessário para o cumprimento desse fim. Cabe aos ór-gãos da ONU, em particular ao Conselho de Segurança, o exercíciodeste monopólio para a manutenção da paz e segurança internacionais,e para a proteção da integridade territorial, soberania e independênciapolítica de cada Estado. Nesse sentido, o artigo 24(1) da Carta da ONUassim dispõe:

A fim de assegurar pronta e eficaz ação por parte dasNações Unidas, seus membros conferem ao Conselhode Segurança a principal responsabilidade na manuten-ção da paz e da segurança internacionais, e concordamem que, no cumprimento dos deveres impostos por essaresponsabilidade, o Conselho de Segurança aja em nomedeles.

O Capítulo VII da Carta concede ao Conselho de Segurança poderespara, diante de um ato de agressão armada ou da violação da paz interna-cional, autorizar ou determinar o uso da força contra o Estado agressorpara a restauração da paz e segurança internacionais. Sem a autorizaçãodo Conselho de Segurança, e tal autorização raramente ocorreu na práti-ca desse órgão, os Estados somente podem recorrer ao artigo 51 da Cartapara justificar o uso da força armada. Por esta razão, o artigo 51 tem sidoinvocado com muita freqüência por Estados envolvidos num conflito ar-mado, e normalmente os dois lados se dizem vítima de agressão, o quegera um problema sobre a identificação do Estado agressor num determi-nado caso.

Direito e Democracia 133

Dito isto, cumpre agora descrever, para depois examinar, as justificati-vas apresentadas pela OTAN para a ação militar que desencadeou14.

II. JUSTIFICATIVAS APRESENTADAS PELA OTAN

A OTAN afirmou reiteradas vezes, de forma oficial, que a ação militarera necessária e justificada para evitar uma catástrofe humanitária naregião de Kosovo, envolvendo especialmente a população local de etnia/origem albanesa, embora detentora da nacionalidade da Iugoslávia.

Por exemplo, no dia 30 de Janeiro de 1999, a OTAN emitiu um Comu-nicado Oficial de Imprensa, no qual afirmava que estava pronta paratomar todas as medidas necessárias “...para evitar uma catástrofe huma-nitária...”15. A mesma justificativa foi repetida em outros comunicadosoficiais à imprensa, emitidos inclusive depois que o conflito teve início16.

A OTAN também procurou fundamentar sua ação nas Resoluções emiti-das pelo Conselho de Segurança da ONU sobre a situação no Kosovo. EmComunicado Oficial à Imprensa, datado de 30 da Janeiro de 1999, deixouclaro que “...está pronta para agir e não descarta nenhuma opção para asse-gurar o... cumprimento de todas as resoluções relevantes do Conselho deSegurança, especialmente as disposições das Resoluções 1160, 1199 e 1203”17.

Em terceiro lugar, a OTAN justificou sua ação militar tendo em vistaa recusa do Governo da Iugoslávia em atender as “exigências da Comu-nidade Internacional”, entre as quais estaria a aceitação do acordo polí-tico interino que foi negociado em Rambouillet18.

14. As justificativas foram extraídas de comunicados oficiais à imprensa emitidos pela OTAN. Deve-seressalvar, no entanto, que os Estados membros da OTAN, que são partes da ação movida perante a CorteInternacional de Justiça pela Iugoslávia, certamente apresentarão argumentos legais mais elaborados ecomplexos. No entanto, a referida ação está num estágio inicial e tais argumentos ainda não foramapresentados, o que impede a sua análise nesse trabalho.

15. Press Release (99)12.

16. Veja, inter alia, Press Release (1999)040, de 23/03/99, e Press Release (1999)042, de 25/03/99. Nesta última,o Secretário-Geral afirma :”Permita-me reiterar que estamos determinados a continuar até que tenhamosalcançado nossos objetivos: interromper a violência e impedir uma catástrofe humanitária adicional”.

17. Press Release (99)12, de 30/01/99.

18. Press Release (1999)040, de 23/03/99.

134 Direito e Democracia

Por fim, a OTAN afirmou que tinha o dever de agir para trazer estabi-lidade à região, ou impedir que a instabilidade se estendesse na região19.Em vários Comunicados Oficiais, a OTAN classificou a crise de Kosovocomo uma ameaça à paz e segurança na região20.

III. A LEGALIDADE DA AÇÃO MILITAR DA OTAN

1) A Legalidade da Ação Militar da OTAN comoOrganização Regional

A ação militar da OTAN foi justificada com base na necessidade dedevolver a estabilidade (política) à região. O argumento invoca, implici-tamente, a condição da OTAN de organização regional de caráter políti-co, que, como tal, tem o propósito de promover ou assegurar a paz e segu-rança regionais.

A posição das organizações regionais dentro do sistema de segurançacoletivo estabelecido pela Carta do ONU está disciplinada no Cap. VIIIda Carta, intitulado “Arranjos Regionais”. O art. 52 da Carta, parte doCap. VIII, reconhece a existência e importância dos organismos regionaispara a manutenção da paz e segurança internacionais naquilo que sejaapropriado para uma ação regional, e estabelece que os Estados membrosda ONU devem procurar resolver de forma pacífica suas disputas locais,através destes arranjos regionais, antes de submetê-los ao Conselho deSegurança.

O envolvimento do Grupo de Contato (mecanismo informal de solu-ção criado e composto por determinados Estados Europeus), da UniãoEuropéia, da OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação naEuropa), e da própria OTAN, para a solução pacífica do conflito de Kosovo,não parece contrariar o que dispõe o artigo 52 da Carta da ONU. Pelocontrário, a ação regional para a solução pacífica de uma situação ouconflito de âmbito regional é incentivada pela Carta da ONU. O pará-

19. Press Release (1999)040, de 23/03/99.

20. Press Release (99)12, de 30/01/99; e Press Release (99)020, de 19/02/99.

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grafo 3º do art. 52 da Carta da ONU deixa claro que o Conselho deSegurança deverá estimular “...o desenvolvimento da solução pacífica decontrovérsias locais mediante os referidos acordos ou entidades regio-nais, por iniciativa dos Estados interessados ou a instância do próprioConselho de Segurança”.

A OTAN, no entanto, a partir de determinado momento, passou a ado-tar uma conduta cuja legalidade é questionável. Em seu esforço para pro-mover e apoiar uma solução negociada para o conflito, a OTAN começou afazer abertamente uma ameaça de uso da força contra a parte que nãocumprisse as “exigências da comunidade internacional”, em particular casoum acordo não fosse negociado no prazo convencionado pelo Grupo deContato. Veja os seguintes excertos de Comunicados Oficiais à Imprensa:

Se estes passos não forem dados, a OTAN está pronta atomar quaisquer medidas necessárias, tendo em vista o cum-primento de ambas as partes com os compromissos inter-nacionais e exigências...compelindo ao cumprimento dasdemandas da comunidade internacional e a consecução deum acordo político. O Conselho, portanto, concordou hojeque o Secretário-Geral da OTAN pode autorizar ataquesaéreos contra alvos no território da Iugoslávia21.

Como colocado claramente na Declaração do Conselhodo Atlântico Norte de 30 de Janeiro, e se nenhum acordofor alcançado até a data fixada pelo Grupo de Contato, aOTAN está pronta a tomar quaisquer medidas necessári-as.... Estas (medidas) incluem o uso de ataques aéreosbem como outras medidas apropriadas22.

Nossa posição de colocar a ameaça da força a serviço dadiplomacia ajudou a criar as condições para que as con-versações de Rambouillet tenham progresso23.

21. Press Release (99)12, de 30/01/99.

22. Press Release (99)020, de 19/02/99.

23. Press Release (99)21, de 23/02/99.

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Estes comunicados datam de janeiro e fevereiro de 1999, mas a OTANjá havia tomado semelhante posição em outubro de 1998. Veja o seguinteComunicado Oficial de Imprensa:

...há poucos momentos atrás, o Conselho do AtlânticoNorte decidiu emitir ordens de ativação – ACTORDS –para ataques aéreos limitados e uma campanha aéreaescalonada na Iugoslávia, cuja execução começará emaproximadamente 96 horas.

Tomamos esta decisão depois de um reexame completo dasituação em Kosovo. A República Federal da Iugosláviaainda não cumpriu integralmente a RCSNU 1199 e o tempoestá se esgotando24.

A conduta da OTAN suscita a seguinte questão: o direito internacio-nal atual permite que um Estado ou grupo de Estados, ou uma organizaçãoregional, ameace um outro Estado ou Estados para que cheguem a umasolução negociada dentro de um determinado prazo estabelecido não pelaspartes em conflito, mas por terceiros?

Como visto acima, o direito internacional impõe, às partes envolvidasem um conflito, a obrigação de resolver o conflito apenas por meios pacífi-cos. Inexiste regra de direito internacional que estabeleça uma obrigaçãode resultado em prazo determinado. O direito internacional apenas estipu-la a forma de solução para o conflito (pacífica), e deixa às partes a escolhados meios e o resultado da operação do meio. A Iugoslávia e os represen-tantes de Kosovo estavam negociando em Rambouillet uma saída negocia-da para a crise. Outros Estados ou organizações regionais, portanto, nãopoderiam impor uma data limite para a solução negociada, sob ameaça douso da força, por contrariar os arts. 33, 2(3) e 2(4), todos da Carta da ONU.Recorde-se que o art. 2(4) proíbe expressamente, e sem exceções, a ame-aça do uso da força nas relações internacionais, e o artigo 33 deixa às partesa livre escolha dos meios pacíficos a serem adotados para a solução de umadisputa, não lhes impondo uma obrigação de resultado.

A OTAN acabou exigindo também a aceitação integral, pela Iugoslá-

24. Statement to the Press ,by the Secretary General, NATO HQ, 13 de outubro de 1998.

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via, do plano de Paz apresentado pelo Grupo de Contato. Esta posiçãodescaracterizou o aspecto negocial da solução. A Iugoslávia alegava quea solução para o conflito estava sendo, na verdade, imposta. Com efeito,é possível que a posição da OTAN tenha influenciado a própria posiçãodos representantes de Kosovo, e contribuído, em última análise, para queas negociações fossem frustadas.

Um outro aspecto a ser examinado, não menos importante, é se a açãomilitar da OTAN estaria de conformidade com a Carta da ONU, especi-almente o Cap. VIII da Carta.

O art. 53 da Carta, parte integrante do Cap. VIII, assim dispõe:

1. O Conselho de Segurança utilizará, quando for ocaso, tais acordos e entidades regionais para umaação coercitiva sob a sua própria autoridade. Ne-nhuma ação coercitiva será, no entanto, levada a efei-to de conformidade com acordos ou entidades regi-onais sem autorização do Conselho de Segurançacom exceção das medidas contra um Estado inimigo, comoestá definido no parágrafo 2º deste artigo, que forem de-terminadas em conseqüência do art. 107 ou em acordosregionais destinados a impedir a renovação de uma políti-ca agressiva por parte de qualquer desses Estados, até omomento em que a Organização possa, a pedido dos Go-vernos interessados, ser incumbida de impedir toda novaagressão por parte de tal Estado. (ênfase acrescida)

O art. 53 proíbe, portanto, que entidades ou acordos regionais possamefetuar qualquer ação coercitiva sem a devida autorização do Conselhode Segurança. A expressão “ação coercitiva” tem sido interpretada comocompreendendo todo tipo de ação militar, ou o uso da força armada. Aação militar da OTAN não foi, em momento algum, expressamente auto-rizada pelo Conselho de Segurança. É verdade que o Conselho de Segu-rança, na Resolução 1160 (1998), de 31 de março de 1998, afirmou quepoderia considerar “outras medidas adicionais” caso não houvesse um“progresso construtivo para a resolução pacífica da situação em Kosovo”25.

25. UN Security Council Doc. S/RES/1160 (1998), de 31 de março de 1998.

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Por igual modo, o Conselho de Segurança afirmou, na Resolução 1199(1998), de 23 de setembro de 1998, que consideraria “medidas adicio-nais” para manter ou restaurar a paz e estabilidade na região, caso asmedidas concretas exigidas naquela Resolução e na Resolução 1160 (1998)não fossem tomadas26. No entanto, o Conselho de Segurança jamais auto-rizou expressamente o uso da força pela OTAN ou pelos Estados membrosda OTAN. A prática do Conselho mostra que Estados só usaram da forçaarmada sob autorização expressa do Conselho de Segurança, como ilustraa Res. 660 (1990), que autorizou os Estados a usarem “todos os meiosnecessários” à restauração da paz e segurança na área e ao cumprimentoda Resolução 660 (1990) e outras resoluções subsequentes27.

Seria difícil alegar a autorização implícita do Conselho de Segurançapara a ação militar da OTAN para o caso, vez que, durante o conflito,dois membros permanentes (Rússia e China) expressamente condenarama ação militar, e a India, Russia e Belarus chegaram a propor um projetode Resolução que afirmava a ilegalidade da ação28. Lembre-se que o art.27(3) da Carta da ONU requer o voto concorrente de todos os membrospermanentes para decisões de natureza não procedimental, tal qual aque autoriza o uso da força armada em determinada situação. Portanto, éde se supor que em momento algum teria o Conselho de Segurança osvotos necessários para a decisão que autorizaria o uso da força por parteda OTAN ou de seus membros. Com efeito, os Estados membros da OTANque compõem o Conselho de Segurança da ONU (Estados Unidos, ReinoUnido, e França) deixaram de submeter formalmente um projeto de reso-lução em tal sentido.

Em conclusão, a ação militar da OTAN contra a Iugoslávia não pare-ce estar de conformidade com o Cap. VIII da Carta da ONU, especial-mente com o disposto no artigo 53.

Deve-se notar, também, que a ação militar da OTAN representariaum desvio de sua finalidade original, tal como prevista no tratado que aconstituiu. O Tratado de Washington (1949), no seu artigo 5º, assimdispõe:

26. UN Security Council Doc. S/RES/1199 (1998), de 23 de setembro de 1998.

27. UN Security Council Doc. S/RES/678, de 29 de novembro de 1990.

28. UN Security Council Doc. S/1999/328 (o projeto não foi aprovado).

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As Partes concordam em que um ataque armado contrauma ou várias delas na Europa ou na América do Norteserá considerado um ataque a todas, e, consequentemente,concordam em que, se um tal ataque armado se verificar,cada uma, no exercício do direito de legítima defesa, indivi-dual ou coletiva, reconhecido pelo artigo 51º da Carta dasNações Unidas, prestará assistência à Parte ou Partes assimatacadas, praticando sem demora, individualmente e de acor-do com as restantes Partes, a ação que considerar necessá-ria, inclusive o emprego da força armada, para restaurar egarantir a segurança na região do Atlântico Norte.

O Tratado de Washington (1949) instituiu, portanto, um sistema regi-onal de segurança coletiva para ser acionado no caso de atos de agressãoarmada praticados contra um dos Estados partes do Tratado. Em outraspalavras, a OTAN foi criada com fins defensivos e não ofensivos. Ao sub-meter o tratado ao exame do Senado, tanto o Secretário de Estado comoo Secretário de Defesa norte-americano reiteraram o caráter puramentedefensivo da aliança perante o Comitê de Relações Exteriores do Sena-do29. Nesse sentido, a ação militar não se enquadraria no tipo clássico deuma resposta coletiva a uma agressão armada perpetrada contra um dosmembros da OTAN. Os fatos do caso não autorizariam a invocação dajustificativa do exercício de legítima defesa coletiva, pois a Iugoslávianão praticou qualquer ato de agressão armada contra qualquer Estadomembro da OTAN antes da ação militar. A OTAN e os Estados membrosda OTAN sabem disso, pois em nenhum momento procuraram justificarsua atitude com base no direito de legítima defesa coletiva ou individual,mesmo na sua contestada versão antecipatória.

Se um caso de legítima defesa coletiva estivesse caracterizado, a açãomilitar da OTAN poderia estar em harmonia com a Carta da ONU, tendoem vista o que prescreve o art. 51 da Carta (cf. supra). Obviamente, osdemais requisitos para o exercício de tal direito deveriam ser atendidos.

Deve-se notar, contudo, que os Estados partes da OTAN têm procu-rado reinterpretar os termos do Tratado de Washington (1949) à luz de

29. Veja Kissinger, Henry. Diplomacy. New York: Touchstone, 1994, pp.458-460.

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uma reavaliação dos objetivos e finalidades da Organização. Estareavaliação tem sido efetuada desde o fim da guerra fria, em decorrênciados novos desafios e perigos que a OTAN tem identificado no mundoglobalizado atual. Na recente Reunião do Conselho do Atlântico Norte,ocorrida em Washington, em abril de 1999, os Estados membros da OTANemitiram a Declaração de Washington. Nesta Declaração, os Estados re-afirmaram que a defesa coletiva “permanece sendo o propósito básico daOTAN”, e que estavam determinados a enfrentar aqueles que “violamdireitos humanos, realizam a guerra ou conquistam território”, bem comoa proteger-se contra o “terrorismo”30. Em outro documento emitido após aReunião, o Comunicado do Encontro de Washington, a OTAN acrescen-ta que está determinada a “realizar novas missões, incluindo contribuirpara a prevenção efetiva de conflito e engajar-se ativamente no gerenci-amento de crises, incluindo operações em resposta à crises”31. Estas posi-ções demonstram que a OTAN está alargando consideravelmente o seucampo de ação institucional para novas áreas, como a dos direitos huma-nos, e também está deixando de ser uma entidade com atuação defensivapassiva para buscar ativamente, inclusive em ações preventivas, o cumpri-mento de suas finalidades. Sob este aspecto, a ação militar da OTANestaria compreendida, na opinião dos Estados membros da Organização,dentro das finalidades e objetivos estabelecidos pelo Tratado.

Mesmo se considerada a compatibilidade da nova missão institucional daOTAN com o seu tratado constitutivo, a questão persiste sobre a adequaçãoda ação militar da OTAN com a Carta da ONU. Esta questão é relevanteporque a Carta da ONU, no seu artigo 103, estabelece a prevalência dasobrigações impostas pela Carta sobre qualquer outra. Reza o artigo 103:

No caso de um conflito entre as obrigações dos membrosdas Nações Unidas sob a presente Carta e suas obriga-ções sob qualquer outro acordo internacional, suas obriga-ções sob a presente Carta prevalecerão.

Demais, o próprio Tratado de Washington (1949) estabelece (art. 7º)que as suas disposições não afetam as obrigações assumidas pelas partessob a Carta da ONU:

30. Cf. Press Release NAC-S(99)63, de 23 de abril de 1999.

31. Cf. Press Release NAC-S(99)64, de 24 de abril de 1999.

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O presente Tratado não afeta e não será interpretado comoafetando de qualquer forma os direitos e obrigações decor-rentes da Carta, pelo que respeita às partes que são mem-bros das Nações Unidas, ou a responsabilidade primordialdo Conselho de Segurança na manutenção da paz e segu-rança internacionais.

Na hipótese de conflito entre as obrigações assumidas sob o Tratadode Washington (1949) e a Carta da ONU, claro está que os Estados par-tes da OTAN devem dar prioridade à Carta da ONU. Esta prevalência émais marcante no caso do uso da força nas relações internacionais, tendoem vista o que o Tratado de Washington (1949) dispõe, no seu art. 1º, oque segue:

As partes comprometem-se, de acordo com o estabelecidona Carta das Nações Unidas, a regular por meios pacífi-cos todas as divergências internacionais em que possamencontrar-se envolvidas, de forma que não coloquem emrisco a paz e segurança internacionais, assim como a justi-ça, e a não recorrer, nas relações internacionais, a amea-ças ou ao emprego da força de qualquer forma incompatí-vel com os fins das Nações Unidas.

Portanto, é possível que a Organização e seus membros estejam violan-do os dispositivos da Carta da ONU e, dessa forma, praticando um ilícitointernacional, mesmo se a ação militar da OTAN estiver em consonânciacom o seu tratado constitutivo.

2) A Legalidade da Ação Militar da OTAN sob aJustificativa de Intervenção por RazõesHumanitárias

A grande questão que o conflito de Kosovo tem suscitado atualmenteé se o direito internacional contemporâneo admite o uso da força nasrelações internacionais por parte de um Estado ou Estados contra umoutro Estado por razões humanitárias. No plano da prática dos Estados,existem numerosos exemplos em que os Estados usaram da força contra

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32. Brownlie, Ian. General Course on Public International Law. Recueil des cours de l’académie de droitinternational, vol. 255 p.207, 1995.

um outro Estado sob a alegação de proteger os seus nacionais residentesou situados no território do outro Estado. O direito de intervenção arma-da do Estado em favor de nacionais seus que estão no território de outroEstado tem sido objeto de antigo debate doutrinário, de tal forma quenão se pode concluir com segurança pela sua existência. O receio dealguns é que Estados mais poderosos usem, como teria ocorrido no passa-do em numerosas ocasiões, a justificativa da proteção de seus nacionaisno exterior para encobrir verdadeiras intervenções armadas com objeti-vos políticos, econômicos ou estratégicos. Vale citar a posição do Prof.Brownlie a respeito:

As ocasiões em que Estados invocaram considerações hu-manitárias para justificar o uso da força dentro e contraum outro Estado não inspiram confiança na nova doutri-na. Tais intervenções são comumente baseadas numa agen-da política colateral e envolvem uma perda considerável devidas, cuja existência é obscurecida pela manipulação damídia32.

A experiência de Kosovo, no entanto, é ainda mais controversa e com-plexa, pois os supostos beneficiados pela ação armada são nacionais doEstado vítima da ação armada, embora possuam etnia diferenciada. Cui-da-se, pois, não de intervenção armada do Estado em favor de nacionaisseus que estão no território de outro Estado, mas do uso da força por partede Estados contra um Estado e em favor dos nacionais desse Estado queestá sendo vítima da ação militar. A questão que se coloca é se o direitointernacional atual reconheceria aos Estados uma espécie de direito deação armada contra um Estado quando este viola (talvez de forma grave)os direitos humanos de seus nacionais.

Se examinada a questão sob o ponto de vista do direito convencional,em especial da Carta da ONU, fica claro que a regra proibitiva e as exce-ções à regra lá previstas não abarcam expressamente a hipótese de uso daforça por razões humanitárias. Indaga-se, então, se no plano costumeiro,haveria uma norma costumeira que reconhecesse ou outorgasse este di-reito aos Estados.

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A Corte Internacional de Justiça emitiu pronunciamento geral a res-peito da matéria por ocasião do julgamento do caso Nicarágua (1986).Neste caso, os Estados Unidos invocaram, inter alia, como base para assuas ações contra a Nicarágua, a descoberta, por parte do Congresso nor-te-americano, de que a Nicarágua estava violando os direitos humanosde seus próprios nacionais. A Corte assim se manifestou sobre a alegação:

Em todo caso, enquanto os Estados Unidos podem fazersua própria avaliação da situação quanto ao respeito aosdireitos humanos na Nicarágua, o uso da força não pode-ria ser o método apropriado para monitorar ou assegurartal respeito. Com relação aos passos realmente dados, aproteção dos direitos humanos, um objetivo estritamentehumanitário, não pode ser compatível com a minagem dosportos, a destruição das instalações petrolíferas, ou nova-mente com o treinamento, ou o fornecimento de armas eequipamentos aos contras. A Corte conclui que o argu-mento derivado da preservação dos direitos humanos naNicarágua não pode fornecer uma justificativa legal paraa conduta dos Estados Unidos, e não pode em qualquercaso ser reconciliado com a estratégia legal do Réu, queestá baseada no direito de autodefesa coletiva33.

O entendimento manifestado pela Corte em nenhum momento refe-re-se à Carta da ONU, o que indicaria que esta posição teria feito refe-rência ao direito internacional geral (ou direito costumeiro internacio-nal)34. Ao lado da posição da Corte, um respeitável grupo de autoridadesdoutrinárias assevera também que o direito internacional não reconheceum direito de intervenção armada ou razões humanitárias. Mencione-sea opinião do Prof. Schachter:

A relutância dos Governos em legitimar a invasão estran-geira no interesse do humanitarismo é compreensível à luz

33. Cf. caso Nicarágua, op. cit. supra n.3, pp.134-135, par. 268.

34. A Corte estava impedida de julgar o caso com base em tratados multilaterais, por força da reservaformulada pelos Estados Unidos na sua declaração de aceitação da jurisdição da Corte. Tal reserva excluíada jurisdição da Corte os mais relevantes tratados multilaterais, entre os quais a própria Carta da ONU.Seu julgamento, portanto, apoiou-se explicitamente no direito costumeiro internacional.

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dos abusos passados por Estados poderosos. Estados for-tes o suficiente para intervir e suficientemente interessadosem fazê-lo tendem a ter uma solução política no seu pró-prio interesse nacional. A maioria dos Governos está atu-almente sensível a esse perigo e não mostra disposição emabrir o Artigo 2(4) a uma exceção ampla para interven-ção humanitária através da força armada35.

A possibilidade do abuso de um tal direito de intervenção armada porrazões humanitárias seria, de fato, considerável. Demais, poderia ter oefeito não desejado de desestimular os Estados, de uma forma geral, atornarem-se partes de instrumentos internacionais de proteção aos direi-tos e liberdades fundamentais do homem.

Se admitida, a possibilidade de uma intervenção armada por razões hu-manitárias deveria estar compreendida dentro do sistema das Nações Uni-das, sendo prévia e expressamente autorizada ou determinada pelo Conse-lho de Segurança da ONU. Para tal fim, o Conselho faria uma determina-ção no sentido de que a situação humanitária dentro de um Estado estácolocando em risco a paz e segurança internacionais, autorizando, combase no Cap. VII da Carta, o uso da força contra o Estado que insistisse emdescumprir decisões prévias do Conselho sobre a situação. Com efeito, atu-almente já se defende a relação entre o respeito aos direitos humanos e apaz e segurança internacionais. A Conferência Mundial de Viena sobreDireitos Humanos (1993), por exemplo, afirmou o vínculo entre o respeitoaos direitos humanos e a paz e segurança internacionais, nos seguintes ter-mos: “Os esforços do sistema das Nações Unidas para o respeito universal eobservância dos direitos humanos e liberdades fundamentais para todos,contribuem para a estabilidade e o bem-estar necessários para as relaçõesamistosas e pacíficas entre as nações, e para melhorar as condições para apaz e segurança, bem como o desenvolvimento econômico e social, de con-formidade com a Carta das Nações Unidas”36.

No caso da situação de Kosovo, o Conselho de Segurança realmenteadotou várias resoluções sobre a questão humanitária. De especial rele-vância foi a Resolução 1199 (1998), na qual o Conselho manifestou pre-

35. Schachter, Oscar, op. cit. supra n.13, p.144.

36. Cf. A/CONF.157/23, de 12/07/1993.

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ocupação com a “iminente catástrofe humanitária em Kosovo” e com os“relatórios de crescentes violações de direitos humanos e do direito hu-manitário”, e, afirmando que a deterioração da situação em Kosovo “cons-titui uma ameaça à paz e segurança na região”, tomou decisões com baseno Cap. VII da Carta, que são obrigatórias a todos os Estados. Como jásublinhado acima, a citada Resolução afirmou, ao final, que “medidasadicionais” para manter ou restaurar a paz e estabilidade na região seriamconsideradas, caso as medidas concretas exigidas naquela Resolução ena Resolução 1160 (1998) não fossem tomadas. Esta Resolução 1199(1998), portanto, apresentou quase todos os requisitos para um primeiro eautêntico caso de intervenção humanitária sob os auspícios da ONU.Faltava apenas um: a autorização ou determinação expressa do Conselhode Segurança, que poderia ser dada numa outra resolução. Tal, entretan-to, não ocorreu, pois não havia o consenso dos membros permanentes doConselho.

Cumpre fazer um comentário sobre o fato da OTAN ter falado oficial-mente, em numerosas ocasiões, em nome da “comunidade internacional”,indicando que a comunidade internacional havia lhe outorgado um man-dato para propor determinada solução para a questão ou resolvê-la por qual-quer meio. Durante os debates no Conselho de Segurança em torno daproposta de resolução que condenava a ação militar da OTAN, o represen-tante da Índia fez a seguinte observação a respeito:

Aqueles que continuaram a atacar a Iugoslávia professa-ram fazê-lo em favor da comunidade internacional e combase em razões humanitárias. Eles disseram que estavamagindo em nome da humanidade. Poucos membros da co-munidade internacional falaram nos debates de hoje, masmesmo entre aqueles que tinham falado, a OTAN terianotado que a China, Rússia e Índia tinham feito oposição àviolência que eles tinham perpetrado. “A comunidade inter-nacional” não poderia ter endossado suas ações, quandorepresentantes de metade da humanidade tinham dito queeles não concordavam com o que a OTAN havia feito37.

37. UN Security Council Doc., Press Release SC/6659 3989th Meeting, 26 de março de 1999.

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38. UN Security Council Doc. S/RES/1244 (1999), de 10 de junho de 1999.

Com a conclusão de um acordo entre a OTAN e a Iugoslávia, o Con-selho de Segurança, através da Resolução 1244 (1999) endossou os prin-cípios gerais de uma solução política para a crise de Kosovo, elaboradospelo Grupo dos Oito Países, e autorizou os Estados membros e organiza-ções internacionais relevantes (leia-se: OTAN) a estabelecerem uma forçade segurança internacional em Kosovo para assegurar o cumprimento dostermos da Resolução, que prevê, entre outras, medidas de caráter huma-nitário para a região38. A operação das forças da OTAN em territórioiugoslavo tem, a partir de então, o respaldo do Conselho de Segurança daONU. Nesse sentido, a operação atual da OTAN e demais países envolvi-dos conforma-se com a prática mais recente da ONU no campo humani-tário. Desde o início da década de 90, várias operações de manutençãoda paz da ONU têm previsto ações no campo dos direitos humanos. Cite-se a missão de El Salvador (1990), Camboja, e Haiti (1993). O AltoComissariado das Nações Unidas para os direitos humanos também en-viou missões humanitárias para Burundi, Ruanda, Iugoslávia, e Congo.Não será surpresa se amanhã, a OTAN e/ou os Estados membros da OTANreportarem-se aos termos da Resolução 1244 (1999) para demonstrar quehouve uma ratificação ou endosso ex post facto da ação militar da OTANpor parte do Conselho de Segurança, caracterizando-se, dessa forma, alegalidade da ação da OTAN.

IV. CONCLUSÃO

O conflito entre a OTAN e a Iugoslávia colocou em discussão doisgrandes valores: de um lado, a operação e eficácia de todo o sistema desegurança coletiva estabelecido pela Carta da ONU, e de outro, o respei-to aos direitos e liberdades fundamentais do homem e sua importânciapara a paz e segurança internacionais. Não se podia, obviamente, ficarindiferente às graves violações de direitos humanos que estavam ocor-rendo no território da Iugoslávia. Por outro lado, se a ação militar daOTAN realizou-se à margem do sistema de segurança coletiva das Na-ções Unidas, e em desrespeito à Carta da ONU e ao direito internacionalgeral, criou-se um grave precedente para a futura conduta dos Estados eorganizações regionais no plano internacional. Se os Estados, individual

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ou coletivamente, sentirem-se livres para recorrer ao uso da força quan-do o Conselho de Segurança tornar-se inoperante pela falta de consensoentre os membros permanentes, a paz e segurança internacionais estarãosujeitas a grave risco. Quando menos, os Estados fracos poderão ser víti-mas de graves agressões ou intervenções sob a justificativa da defesa dosdireitos humanos.

O direito internacional contemporâneo não parece reconhecer o di-reito de intervenção armada contra um Estado por razões humanitárias. Épossível que a recente prática dos Estados membros da OTAN, contudo,venha a provocar uma mudança no direito internacional geral a respeito,mas certamente será preciso mais do que um caso isolado para que estanova regra venha a ser formada.

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A responsabilidadedos prefeitos em juízo

VLADIMIR GIACOMUZZI

Professor Titular de Direito Penal da PUC/RS;Desembargador-Tribunal de Justiça/RS.

RESUMO

Este artigo trata da responsabilidade jurídica stricto sensu e da responsabi-lidade política do Prefeito, a primeira decorrente da prática de ilícitocaracterizável como “improbidade administrativa”, definida na lei 8429/92,ou em razão da prática de “crime funcional”, definido no artigo 1º do De-creto-lei 201/67, e a segunda, em razão de infração político-administrati-va, definida na Lei Orgânica Municipal, ou supletivamente, no art. 4º doDecreto-lei 201/67.Palavras-chave: Prefeitos, responsabilidade jurídica, ilícito

ABSTRACT

This article deals with the legal (stricto sensu) and political responsability ofa Mayor. The first type of responsibility arises from an illicit act which can beclassified as “administrative improbity”, as defined by Law 8429/92, or froma “functional crime”, as defined by article 1 of Decree-Law 201/67. Thesecond one results from a “political and administrative violation”, as definedby the Organic Municipal Law or, supplementarly, by article 4 of the Decree-law 201/67.Key words: Mayors, juridical responsability, illicitness

Direito e Democracia Canoas vol.1, n.1 1º sem. 2000 p.149-162

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1 - O MUNICÍPIO NA ESTRUTURA POLÍTICA DOESTADO

É o Município uma entidade administrativa e política, formando, coma União, os Estados e o Distrito Federal, a República Federativa do Brasil.

O Município é integrado por dois órgãos ou poderes: o executivo, comfunções administrativas e de governo, e o parlamentar. Este último comfunções legislativas e de fiscalização da administração.

As funções pertinentes ao executivo municipal são exercidas pelo Pre-feito, eleito pelos cidadãos residentes no Município para um mandatocerto de quatro anos, mediante sufrágio direto, secreto e universal.

As funções pertinentes ao parlamento municipal são exercidas pela Câ-mara Municipal, integrada por Vereadores eleitos pelos cidadãos residen-tes no Município, para um mandato de quatro anos, mediante sufrágiodireto, secreto e proporcional.

2 - O PREFEITO COMO AGENTE POLÍTICO

É o Prefeito, conseqüentemente, um agente político. Espécie do gêne-ro agente público. Um funcionário público para efeitos penais.

Como é próprio às coisas da república, detêm os governantes, respon-sabilidade por sua gestão administrativa, sendo que “ a disciplina da res-ponsabilidade do governo converteu-se, na república, num dos problemasbásicos da organização estatal, não faltando mesmo quem visse na possi-bilidade de aplicar-se aos governantes o princípio da responsabilidade otraço distintivo do Estado moderno” (Paulo Brossard, in “OImpeachment”).

Objetiva-se, neste trabalho, indicar as causas e os efeitos decorrentesdessa responsabilidade, em razão do exercício de suas funções pelo Pre-feito, de acordo com nosso ordenamento jurídico e o entendimento quelhe dá a doutrina e a jurisprudência nacional.

Antes, porém, é preciso lembrar que a pessoa investida no cargo dePrefeito Municipal, não demite de si a condição de cidadão, sujeito às

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normas éticas, morais, religiosas, econômicas e jurídicas que a todos en-volvem e governam. Na condição de homem ou mulher,concomitantemente ao exercício das funções próprias do mandato eletivo,responde o homem ou a mulher como se não fosse Prefeito, podendo, ounão, a conseqüência ética, moral, econômica ou jurídica de seus atosrefletir-se em sua vida funcional, como veremos.

3 - A RESPONSABILIDADE JURÍDICA DOPREFEITO NAS DIVERSAS ESFERAS DODIREITO

Entendendo-se por responsabilidade jurídica a possibilidade de sujei-tar alguém a uma sanção legal, como conseqüência da prática de atodeterminador de algum dano juridicamente apreciável, qual seria a res-ponsabilidade jurídica dos Prefeitos em razão do exercício de suas fun-ções nas diversas esferas do direito passível de ser verificada em juízo?

A resposta a essa indagação deve ser precedida da observação de queo Prefeito, na chefia do Município, pode conduzir-se de forma incompatí-vel com o bom exercício da função que lhe confiou o povo de sua cidade,a juízo dos representantes dos que o elegeram, os Vereadores.

Conduzir-se de forma incompatível com o bom exercício da funçãosignifica praticar “infração político-administrativa”, como indicado naConstituição Federal e nas leis especiais quando se referem ao Presidenteda República, Ministros de Estado, Governadores do Estado e outros al-tos agentes políticos.

Estas ”infrações político-administrativas” hão de estar previstas na LeiOrgânica do Município. Quando a Lei Orgânica nada dispuser a respei-to, pode-se invocar, supletivamente, o art. 4º do DL 201/67.

Na caracterização da “infração político-administrativa” tem singularpresença a vida privada, funcional, política, ética e moral do Prefeito, deacordo com os hábitos e costumes de sua comunidade.

A sanção jurídica prevista para esta espécie de infração é política econsiste no afastamento do Prefeito do cargo.

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Deve-se assim destacar essa responsabilidade das demais, em razão deseu contorno e de suas características especiais.

Examinemos agora o que é comum a todo administrador municipal.

Pode o Prefeito, por ação ou por omissão, praticar ato ilegal, lesivo aopatrimônio público municipal, à moralidade administrativa, ao meio am-biente ou ao patrimônio histórico e cultural do Município.

Caso assim proceda, legitimado estará todo e qualquer cidadão a in-tentar contra o Município uma “ação popular”, visando a corrigir a ativi-dade administrativa ou a suprir a inatividade do administrador omisso.

Este direito público subjetivo está consagrado na Constituição Fede-ral, art. 5º, inc. LXXIII e regulado na Lei nº 4717/65.

Por ação ou omissão funcional, pode o Prefeito, também, atentar con-tra o patrimônio público e social do Município, seu meio ambiente ououtros interesses difusos e coletivos, tais como bens e direitos de valorartístico, estético, histórico, turístico ou paisagístico.

Como conseqüência dessa ilegal atuação funcional, poderão os legiti-mados, e sempre o Ministério Público, intentar contra o Município uma“ação civil pública” visando a impedir a efetivação do mal ou a obrigar odemandado a restaurar o dano praticado, de acordo com o previsto naConstituição Federal, art. 129, inc. III e regulado na Lei 7347/85.

Realce-se que em se cuidando de dano determinado ao meio ambien-te, como previsto na Lei 6938/81, a responsabilidade do ente político éobjetiva, isto é, não há necessidade de se demonstrar tenha o responsávelobrado com dolo ou culpa, sem embargo da responsabilidade jurídica sub-sidiária da pessoa natural do Prefeito, esta sim, necessariamente movidapor conduta dolosa ou culposa.

Esta era a situação até o advento da Constituição Federal de 1998,quando o constituinte erigiu novos princípios a serem observados pelosagentes públicos em geral, permitindo que o legislador ordinário se mos-trasse com os mesmos mais exigente, em termos de moralidade e cuidadoscom as coisas do povo.

Foi assim editada a Lei 8429/92 instituidora da figura jurídica do “atode improbidade administrativa”, o qual uma vez perpetrado pelo agentepúblico, pode sujeitá-lo por via da “ação civil pública” intentada pelos

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legitimados e sempre pelo Ministério Público, a uma sanção jurídica se-vera, ainda que não penal.

A figura jurídica do “ato de improbidade administrativa” caracteriza-se pelo enriquecimento ilícito dos agentes públicos ou de terceiros, peladeterminação de prejuízo ao erário municipal e pelo desrespeito aos prin-cípios básicos da administração pública.

A prática de ato de imbrobidade administrativa se dá através da rea-lização de ações vinculadas, minudentemente descritas na lei, dentre asquais destacamos o recebimento de qualquer vantagem patrimonialindevida, a permissão de uso indevido de veículo, máquina, equipamen-to ou material de qualquer natureza do Município em obra ou serviçoparticular ou o retardamento da prática de atos de ofício.

Finalmente poderá o Prefeito, quando de sua atuação funcional, vir arealizar uma conduta caracterizável como “crime funcional”, que o sujeita-rá a uma sanção criminal. A mais grave e a mais severa das sanções legaisprevistas ou estabelecidas em todo e qualquer ordenamento jurídico.

Os crimes funcionais estão, todos eles, definidos em leis penais e sãoapuráveis mediante ação penal pública intentada pelo Ministério Público.

A sanção jurídica cominada nessas leis é sempre pessoal, envolvendodiretamente a liberdade do agente, pela determinação de sua prisão e,indiretamente, a perda do cargo, como conseqüência da condenação.

Os denominados “crimes funcionais” dos Prefeitos estão definidos, ba-sicamente, no art. 1º do DL 201/67, recepcionado pela Constituição Fe-deral de 1988, de acordo com jurisprudência consolidada do SupremoTribunal Federal (Súmula 496).

Nessa lei especial, o delito é denominado de “crime de responsabilida-de” e assim referido na doutrina especializada.

Por mais de duas décadas, em razão de desvio de compreensão e deaplicação de princípios, entendeu-se que os crimes funcionais previstosexclusivamente no art. 1º do DL 201/67, só poderiam sujeitar o Prefeito àação penal enquanto estivesse ele no exercício do cargo. De acordo coma jurisprudência do Pretório Excelso, seu afastamento definitivo do car-go, por qualquer razão, impedia a instauração da ação penal, criando-se,assim, por via oblíqua, uma causa extintiva da punibilidade dos fatos na-

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quele diploma legal incriminados. Essa orientação e entendimento foi, noentanto, alterada em 1994, a partir, principalmente, do julgamento doHC 70.671-1, do Piauí.

Mas não apenas nesse diploma penal vamos encontrar a relação dosdelitos que podem vir a ser praticados pelos chefes do executivo municipal.

No Código Penal, todo Título XI – artigos 312 a 359 – é aplicável aosPrefeitos, desde que não colidente com o estabelecido no mencionadoDL 201/67. Inúmeras leis penais especiais são também invocáveis, desta-cando-se dentre elas, as Leis 6766/79, 8666/93, 8212/91 e 9605/98.

Pode outrossim, acontecer que um mesmo fato seja considerado crimi-noso no Código Penal e no DL 201/67. Tal circunstância significa quemencionado delito não é especial e privativo de determinado agente pú-blico. Tomo como exemplo o crime de peculato, previsto no art. 312 daLei Penal Fundamental e no inc. I do art. 1º do DL 201/67. Com pequenavariação na descrição fática da conduta punível, a sanção penal cominadaem ambas as leis penais é idêntica. Nesse caso incide a lei especial emdetrimento da lei geral, como é sabido. Outras vezes, no afã de conferirmelhor proteção penal a um mesmo interesse, a lei penal especial é maisabrangente e mais rigorosa do que a lei penal comum, como acontececom o crime descrito no art. 315 do Código Penal e nos incisos III e IV doart. 1º do DL 201/67.

Situações existem, outrossim, que só a lei penal especial criminaliza aconduta do agente público, como acontece com o delito de “peculato deuso”, previsto no inc. II do art. 1º do DL 201/67.

Pode também acontecer que este aparente conflito se estabeleça en-tre duas leis penais especiais. Seria o caso da criminalização da condutado administrador público que desatende ao princípio constitucional daobrigatória utilização do processo de licitação pública nos contratos decompra e alienação de bens e serviços, inscrito no inc. XXI do art. 37 daConstituição Federal e penalizando no inc. XI do DL 201/67 e no art. 89da Lei 8666/93.

Nosso Tribunal de Justiça entendeu, inicialmente, que a Lei 8666/93,nessa parte, não se aplicava aos chefes dos executivos municipais, sujei-tos apenas ao crime previsto no DL 201/67. Posteriormente, porém, quan-do do exame e julgamento de outros casos, o entendimento do Tribunalmudou, sob o fundamento de que a nova lei penal regula inteiramente e

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de forma mais abrangente a matéria de que tratava a lei anterior, bemcomo porque, na tarefa pertinente à escolha de qual a norma incidente,a lei posterior e a anterior devem ser consideradas separadamente, cadaqual no conjunto de suas normas aplicáveis ao fato, segundo preconizadopor Nelson Hungria e entendimento seguido pelo Pretório Excelso.

Noutras situações o Tribunal de Justiça local entendeu nula e inaplicávela lei penal especial. Porque inconstitucional, em razão de ofensa ou desres-peito à exigência da “determinação taxativa” contida no princípio da “reser-va legal”, escrito no art. 5º, inc. XXXIX, primeira parte, da ConstituiçãoFederal. Essa seria a hipótese do inciso XI, 1ª parte, do art. 1º, do DL 201/67por não descrever qual o fato que o agente deve realizar ou não praticar paraque se configure o atentado ao bem jurídico protegido pela norma penal.

4 - AS CONSEQÜÊNCIAS DECORRENTES DORECONHECIMENTO DA RESPONSABILIDADEJURÍDICA DO PREFEITO

Vejamos agora as conseqüências decorrentes das diversas infrações.

O reconhecimento ou a aceitação da acusação da prática de ilícitopolítico-administrativo – crime de responsabilidade – esgota-se com oafastamento do Prefeito do cargo, pela cassação do seu mandato.

Cuida-se, nesse caso, de decisão política, adotada por órgão político,com a utilização de critérios políticos.

Já na “ação popular”, o objetivo do processo é a correção do rumo daatividade administrativa desviada da legalidade, podendo o acolhimentoda demanda produzir reflexos de responsabilidade pessoal em relação aoPrefeito.

Com a “ação civil pública”, o autor busca compelir o administradorimprobo a fazer o que a lei lhe impõe ou a deixar de fazer o que a lei lheproíbe, bem como a ressarcir pessoalmente os danos causados por sua atu-ação ilegal ou abusiva.

Aqui reside a grande inovação trazida pela Lei de Improbidade Admi-nistrativa.

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Com efeito, diante da ineficiência do processo de “impeachment” eda pouca operacionalidade e alcance da “ação popular”, instrumentalizadopela ação civil pública, pode hoje o Ministério Público dar efetividadeaos princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidadee publicidade na administração das coisas do povo, tendo por apoio a leide improbidade administrativa.

Para justificar e fundamentar sua atuação, pode o Ministério Públicoinstaurar o inquérito civil, presidi-lo e instruí-lo até final, utilizando-o,após, como prova e elemento de convicção para a obtenção em juízo demedida cautelar, que poderá consistir inclusive no afastamento liminardo Prefeito do cargo. Com apoio no que foi apurado no inquérito, poderáo Ministério Público pleitear em juízo a antecipação da tutela ou simples-mente deduzir a ação civil pública.

Procedente a ação, condenado será o Município a cumprir o determi-nado na decisão e o Prefeito a restituir os bens ou valores ilicitamenteacrescidos ao seu patrimônio, a ressarcir integralmente os danos causadosao Município, ao pagamento de multa civil, à perda do cargo, com asuspensão de seus direitos políticos pelo prazo de até dez anos.

Legitimado para titular a ação civil pública não está apenas o MinistérioPúblico. De todos, no entanto, ele se destaca, por se caracterizar comoinstituição permanente, dotada de autonomia funcional e administrativa,sendo que seus agentes são detentores de garantias individuais idênticas àsdos membros do Judiciário, incumbindo-lhe, a Constituição, a defesa daordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individu-ais indisponíveis, bem como zelar pelo respeito, de parte dos poderes públi-cos e dos serviços de relevância pública, dos direitos na Constituição asse-gurados e bem assim à proteção do patrimônio público e social, do meioambiente e de outros interesses difusos e sociais (CF, arts 127 e 129).

As conseqüências jurídicas até aqui nomeadas não são decorrentes dacondenação pela prática de crime.

Em se tratando de prática de “crime funcional”, a conseqüência de-corrente da condenação será a imposição de pena privativa de liberdadebalizada entre três meses a três anos de detenção ou entre dois a dozeanos de reclusão, basicamente.

Por exemplo, para o crime de peculato de uso, é prevista a pena dedois a doze anos de reclusão (DL 201/67, art. 1º, inc. II); para o crime de

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ilegal dispensa de licitação, detenção de três a cinco anos e multa (Lei8666/93, art. 89) e para a nomeação, admissão ou designação de servidorcontra expressa disposição da lei, três meses a três anos de detenção (DL201/67, art. 1º, inc. XII).

Como conseqüência decorrente da condenação à pena privativa deliberdade, pode o Prefeito perder o cargo ocupado e ver-se inabilitadopara, no futuro, vir a prover outro cargo, emprego ou função pública peloprazo de cinco anos (DL 201/67, art. 1º, § 2º).

Outra conseqüência resulta sempre da condenação criminal definiti-va: a suspensão de seus direitos políticos, pelo prazo que durarem os efei-tos da decisão condenatória, isto é, até sua reabilitação criminal (Consti-tuição Federal, art. 15, inc. III).

Observe-se que essa conseqüência penal se opera mesmo que aocondenado tenha sido conferido a suspensão da execução da pena pri-vativa de liberdade aplicada, visto que o sursis funciona atualmentecomo “medida restritiva de liberdade” e não como incidente da execu-ção (Rene A. Dotti – Código Penal Atualizado – p. 20 – Ed. Forense,1980), regulado na Lei de Execução Penal no capítulo pertinente às“penas restritivas de liberdade”, não mais se exigindo que o precitadopreceito constitucional seja regulamentado por lei complementar, comoexpressamente dispunha a Carta anterior (Damásio de Jesus – Penasalternativas – p. 173-174 – Ed. Saraiva, 1999 e RE 179.505 – SP, Rel.Min. Moreira Alves, 1995).

Importa notar que essa conseqüência penal não necessita ser mencio-nada ou justificada na decisão condenatória e nem depende, sua execu-ção, de deliberação do parlamento local, visto que aos Prefeitos não seestende o privilégio conferido aos Senadores e Deputados Federais con-denados criminalmente pela justiça comum (Constituição Federal, art.55, § 3º e RE 225.019 – GO – Rel. Min. Nelson Jobim, 1999).

Prevê a lei penal fundamental também como conseqüência decorren-te da condenação do Prefeito à pena privativa de liberdade por tempoigual ou superior a um ano, a perda do cargo, contanto que o crime tenhasido praticado com abuso de poder ou violação de dever para com a admi-nistração pública, ou quando a condenação, por crime comum, impuser-lhe pena privativa de liberdade superior a quatro anos (Código Penal –art. 92, parágrafo único).

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É certo que nada impede que aos Prefeitos condenados criminalmen-te apliquem-se as normas legais reguladoras do sistema de substituiçãoda pena privativa de liberdade aplicada por penas restritivas de direitosou multa.

Assim, por exemplo, poderá o Prefeito condenado a três anos de reclu-são por haver praticado crime funcional, ter sua pena substituída por “pres-tação de serviços à comunidade ou a entidade pública”, por três anos.

Consistirá, essa pena substituída, na atribuição ao condenado detarefa gratuita junto a entidades assistenciais, hospitais, escolas, orfa-natos e estabelecimentos congêneres, em programas comunitários ouestatais. Essa substituição será possível, sempre que o condenado nãoseja reincidente no mesmo delito, sua culpabilidade, antecedentes,conduta social e as circunstâncias em que o ilícito foi praticado con-vencerem o julgador de que essa providência mostrar-se-á suficienteà reprovação e à prevenção do crime (Código Penal – arts. 43, V e 44e 46).

O Prefeito condenado nessas circunstâncias não será recolhido à pri-são, caso cumpra com os encargos inerentes à execução da pena substitu-ída. Mas estará necessariamente afastado da vida pública, em razão dasuspensão de seus direitos políticos, conseqüência penal prevista na pró-pria Constituição Federal (art. 15, inc. III).

5 – A COMPETÊNCIA PARA VERIFICAÇÃO DARESPONSABILIDADE JURÍDICA DO PREFEITO

Examino agora a questão relacionada com a competência para proces-sar e julgar as diversas pretensões que podem ser deduzidas contra osPrefeitos.

Competente para processar e julgar o Prefeito acusado da prática deilícito político-administrativo, ou “crime de responsabilidade”, é a Câma-ra Municipal (DL 201/67, art. 4º).

Ao Judiciário compete, apenas, assegurar-lhe o direito ao respeito aosprincípios constitucionais do devido processo legal e da ampla defesa.

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O Judiciário não pode rever o mérito da decisão adotada em sede de“impeachment” pelos representantes do povo contra seu Prefeito.

Essa não é, portanto, uma responsabilidade jurídica verificável em juízo.

Concernentemente às “ações populares” e à “ação civil pública”, com-petente é o juízo da comarca a que pertence o Município administradopelo Prefeito, conforme dispuser a Lei de Organização Judiciária do Esta-do (Leis 4715/65 – art. 5º e 7347 – arts. 2º e 4º), ou o Juiz Federal dacircunscrição judiciária pertinente, quando o ato praticado ou o danoperpetrado se relacionar com interesse da União, autarquia ou empresafederal.

No momento está sendo questionada a competência do juízo civil de1º grau, estadual ou federal, para conhecer de “ação civil pública” inten-tada contra o Prefeito com base na lei de improbidade administrativa(Lei 8429/92).

O Tribunal de Justiça do Estado decidiu que as sanções previstas noart. 12 da Lei 8429/92 possuem caráter eminentemente penal e por essarazão somente poderão ser aplicadas aos Prefeitos pelo Tribunal de Justi-ça, em face da regra inscrita no art. 29, inciso X, da Constituição Federal.

No foro civil da comarca, no entanto, devem ser processadas as “açõescivis públicas” de reparação de dano e de execução do decreto deperdimento de bens ilicitamente havidos pelo Prefeito no exercício domandato, segundo este mesmo precedente.

Dessa decisão recorreu o Ministério Público, tendo, no entanto, o Su-perior Tribunal de Justiça não conhecido do recurso especial, sob o fun-damento de que a matéria continha tema de exegese constitucional, pró-prio do recurso extraordinário, de competência do Supremo Tribunal Fe-deral (Resp. 15.329 – RS – REG 97.70510-2 – Rel. Min. Vicente Leal).

Esse mesmo tema foi confiado à deliberação do Superior Tribunal deJustiça em sede de reclamação apresentada por Juízes integrantes do Tri-bunal Regional do Trabalho de São Paulo acionados na Justiça Federal deprimeiro grau com base na mencionada lei de improbidade administrati-va (Reclamação 591 – SP – 98/0074203 – 4 – Rel. Min. Nilson Naves),estando a reclamação pendente de julgamento.

Penso que a regra inscrita no art. 29, inciso X, da Constituição Fede-

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ral, inobstante a falta de técnica com que foi redigida, regula matériaexclusivamente penal. Essa é a tradição de nosso direito constitucionalquando estabelece a competência de determinados órgãos judiciais paraprocessar e julgar pessoas que exercem elevada função pública. Ademais,os ilícitos sancionados na Lei 8429/92 não possuem natureza criminal,data venia, posto que a própria lei, em seu art. 12, ressalva a possibilidadede sujeitar os responsáveis à sanção penal, cumulativamente com aquelasna mesma lei cominadas. De outra parte, nenhuma das sanções ali previs-tas podem ser reduzidas à pena privativa de liberdade, indicativo porexcelência da distinção entre ilícito penal e ilícito não penal.

Por último, duas palavras sobre a competência para conhecer e julgarmatéria penal, objeto de ação intentada contra os Prefeitos.

Estando o Prefeito no exercício do cargo, essa competência é reserva-da ao Tribunal de Justiça, pelo órgão que seu Regimento Interno estabe-lecer, em se tratando de ilícito penal da competência da Justiça Estadual(Constituição Federal – art. 29, X – STF HC 71.429-3 – SC – 73.231-1 –GO – 73.917-2 – MG).

Inclusive nos crimes dolosos contra a vida (RE 162.966 – RS – Pleno –RTJ 152/627).

Nos crimes eleitorais, no entanto, estando o Prefeito no exercício docargo, a competência originária passa ao Tribunal Regional Eleitoral (STFHC 69.503 – MG – RTJ 146/603) e ao Tribunal Regional Federal quandose tratar de crime político ou quando o delito for praticado em detrimen-to de interesse, bens ou serviços da União, suas entidades autárquicas ouempresas públicas (STF – Pleno Ree. Crim. 141.021 – SP – RTJ 146/660).

Durante algum tempo, o Superior Tribunal de Justiça, com apoio emartigo precedente do antigo Tribunal Federal de Recursos, entendia quenos casos de verbas federais repassadas aos Municípios e, no destino,malversadas, a verificação da responsabilidade criminal competia à justi-ça estadual, sob o fundamento de que, com o recebimento da verba, estase incorporava ao patrimônio municipal, constituindo-se o crime em aten-tado ao interesse municipal.

Atualmente a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é diver-sa, estando consolidada nas Súmulas 208 e 209, do seguinte teor: 208 –“Compete à Justiça Federal processar e julgar Prefeito Municipal por des-vio de verba sujeita a prestação de contas perante órgão federal” e 209 –

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“Compete à Justiça Estadual processar e julgar prefeito por desvio de ver-ba transferida e incorporada ao patrimônio municipal”.

Como exemplo de crime federal, pode-se indicar o de apropriaçãoindébita de contribuição previdenciária, descrito no art. 86 da Lei 3807/60 e na letra “d” do art. 95 da Lei 8212/91.

Com base nessas leis e em razão desses crimes, muitos Prefeitos foramcondenados pelos Tribunais Regionais Federais, livrando-se, porém, dassanções que lhes foram aplicadas em razão da anistia que lhes conferiu aLei 9639/98.

Ainda recentemente o Pretório Excelso proclamou que é da compe-tência da Justiça Federal processar e julgar Secretário de Estado acusadoda prática de peculato relativamente a desvio de recursos oriundos deconvênio com o Sistema Único de Saúde (Emb. Decl. RE 196.982-2 – PR– Pleno – RT 753-536), orientação perfeitamente aplicável aos PrefeitosMunicipais que eventualmente vierem proceder da mesma forma.

Outra questão atual em matéria de competência é a relacionada como enunciado no art. 29, inc. X, da Constituição Federal.

A Súmula 394 do STF dispunha que “cometido o crime durante oexercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativade função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após acessação daquele exercício”.

Ocorre que referida norma jurisprudencial foi cancelada recentementepelo Pretório Excelso (Inq. 687-4 – Rel. Min. Sydney Sanches – Pleno –decisão de 25-08-99).

Como conseqüência desse entendimento, o ex-Prefeito deve ser pro-cessado criminalmente no juízo local.

Na hipótese de o processo criminal ter sido iniciado perante o Tribu-nal, o definitivo afastamento do Prefeito do cargo determinará a remessados autos ao juízo de 1º grau, estadual ou federal, para que ali se prossigacomo de direito, com o aproveitamento dos atos processuais já praticados.

Na reforma da Constituição Federal relativa ao Poder Judiciário, atu-almente em tramitação no Congresso Nacional, esse entendimento é oque se projeta transformar em preceito constitucional.

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6 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

De tudo que se viu, ainda que rapidamente, pode-se concluir queatualmente nosso ordenamento jurídico, a par de estabelecer preceitosmuito claros sobre condutas que os Prefeitos, na administração pública,não podem exercitar, põe à disposição dos políticos, do cidadão e dasinstituições que indica, instrumentos de defesa dos princípios básicos efundamentais da administração pública.

Não haverá de ser por falta de mecanismos de cobrança de uma admi-nistração municipal adstrita às prescrições legais que o povo terá de su-portar os desmandos dos maus administradores.

Essa teia de normas constitucionais e legais que converteu as adminis-trações municipais nas mais fiscalizadas da Federação não sufoca ou im-pede os Prefeitos de bem exercerem sua nobilitante função social.

Pelo contrário. Essas rigorosas exigências objetivam permitir distinguiros bons dos maus administradores, para que se possa exaltar os probos,sempre em maior número, e a responsabilizar em juízo os aproveitadores.

Cumpre à classe política, às universidades, às lideranças sociais e àimprensa nacional incrementar e divulgar essa cultura no seio do povo.

Uma vez realizada essa tarefa, estaremos contribuindo para melhorar asofrida situação do povo brasileiro.

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Globalização e direito do trabalho

ALDACY RACHID COUTINHO

Advogada. Procuradora do Estado. Professora Adjunta de Direito do Trabalho da Universidade Federal doParaná. Mestre e Doutora pela Universidade Federal do Paraná.

“A globalização é um mito conveniente a um mundo semilusões, mas é também um mito que rouba a esperança”Paul Hirst e Grahame Thompson.

RESUMO

O direito do trabalho, diante o fenômeno da globalização, acentua a con-centração de capital e péssima distribuição de renda e, em uma suposta-mente integrada economia mundial, mantém a exclusão e pobreza, apon-tando para um destino único e único pensamento, sob o discurso da sedu-ção do consumo. A luta pelo direito do trabalho é a tentativa de reconhe-cimento e efetivação de políticas sociais e pela exigibilidade dos direitossociais fundamentais. Há uma crise do simbólico, do Estado como o espa-ço aglutinador de interesses e depositário da confiança dos indivíduos quecede ao Estado fomentador da empresa, em discurso economicista de apo-logia ao espaço privado de trocas. A não-canalização dos sentimentos deopressão e angústia , acoplados com a retração de mecanismos de açãopública e com o desgaste de instituições de coesão sociais ou movimentosorganizados, como sindicatos, leis trabalhistas e Poder Judiciário Traba-lhista, induzem à violência individualizada e levam a uma postura de des-caso com o desmonte do próprio Estado, abrindo sem controle o espaço domercado.Palavras-chave: Direito do trabalho, globalização, direitos sociais

Direito e Democracia Canoas vol.1, n.1 1º sem. 2000 p.163-176

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ABSTRACT

Labour Law, before the globalization phenomenon, accent capital concentra-tion and a bad rent distribution and in a supposed integrated global economy,keep social exclusion and poverty, pointing to a unique destiny and thought,under the persuasive argument of the sedution of consumption. A struggle forthe labour law is an attempt for the recognization and efficiency of the publicsocial policies and requirement of human rights. There is a crisis of the sym-bolic, changing form the State as a gathering space of comum interests and as adepository of peoples faith to a State that stimulates the firms, adopting a eco-nomic speech and an apology of a private space of exchanges. The impossibiliyof establishing a channel for the oppression and anguish feelings, toghetherwith the reduction of the state public actions and the deterioration of the insti-tutions and organized mouvements as trade unions, labour laws, Judiciary ,take to an individual violence and indifference to the collapse of the State, open-ing the space of the market wtihout any kind of control.Key words: Labour Law, globalization, social rights

1. Paira no ar uma certa inquietude. Diante de reflexões fin-de-siècle,o futuro carrega em si a imagem hiperdimensionada das condições dopresente. O passado é sempre revelado como se fora um esboço imperfeitoe rudimentar, superado num constante evoluir histórico, que permitiriaaos descendentes usufruir o avanço inelutável da ciência e de suas con-quistas tecnológicas. Opor-se à dita “evolução” e apegar-se ao antigo, aoultrapassado, ao conservador, seria como pretender negar ao homem amelhoria das suas condições de vida.

Em 1995, no Hotel Fairmont, em São Francisco, na California, MikhailGorbachev, ao recepcionar a elite mundial, questionou a respeito da socie-dade do século XXI, tomando o Brasil como paradigma: “Será que o mundotodo se transformará num imenso Brasil, em países cheios de desigualdadese com guetos para as elites ricas? “ (Martin & Schumann, 1997, p. 229)

Diz-se que o “desenvolvimento” é inevitável e repudiá-lo uma atitudeinócua, um falar no vazio. O procedimento básico seria acreditar na pós-modernidade e seguir sua racionalidade que no futuro todos os problemasserão resolvidos (Peluso, 1994, p.15). Opor-se à marcha do tempo é postrar-se diante da história, imaginando que o tempo poderia deixar de fluir. Oespectro do avanço não deixa espaço para discussão.

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2. Compreender o direito do trabalho, isto é, os direitos sociais funda-mentais dos trabalhadores, ante o fenômeno da globalização é, antes demais nada, ter de rejeitar a idéia preconcebida de que mudanças históri-cas são fatais e que somente determinam desenvolvimentos que retratamavanços e benefícios representativos de melhoria das condições de vidade todos.

A atitude não implica preconizar o retorno ao passado, emitindo vozesnostálgicas que pregam “os velhos e bons tempos”, senão questionar, an-tes de tudo, a forma exagerada e apologética da apresentação da“inevitabilidade do processo de mundialização e da reforma da legislaçãotrabalhista” e, ainda, perquirir se o “custo” da “globalização” a ser absor-vido deve ser o aumento dos excluídos, o descaso com a fome, a depen-dência, a alienação e a opressão.

Falar-se em globalização é identificar um processo de reestruturaçãocapitalista ou, como aponta Luiz Gonzaga Belluzzo, um período de sub-versão e reorganização das relações entre a lógica econômica capitalistae os valores e as aspirações dos cidadãos que vão presidir o futuro (Belluzzo,1998, p.21).

Não se pode aceitar a tese evolucionista do “progresso”. Deve-se sa-ber que há efetiva possibilidade de um retrocesso nos direitos sociais e,como asseverou Perry Anderson (1996, p. 197) diante do neoliberalismo,não ter medo de estar absolutamente contra a corrente política, de nãoser fashion, na defesa de valores ainda que venham de encontro aos inte-resses econômicos de um capitalismo incontrolado. Mesmo porque, comolembra François Chesnais (1996, p. 18), antes do crash de Wall Street edo sucessivo desmoronamento do sistema bancário, os mercados financei-ros todo-poderosos, sobretudo as Bolsas e sua capacidade de orientar aeconomia, também pareciam irreversíveis.

Paul Hirst e Grahame Thompson (1998, p. 13ss), mantendo uma pos-tura de certo modo otimista a respeito das possibilidades de controle daeconomia internacional aberta e da viabilidade de estratégias de políti-cas sociais, alertam que a globalização, expressão representativa das últi-mas décadas, constitui-se em um mito invocado a paralisar as políticaspúblicas nacionais, determinando uma postura de aceitação de suainviabilidade diante do processo de mundialização da economia e do do-mínio das forças do mercado.

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A dimensão valorativa da sociedade fica restrita exclusivamente àquestão econômica, em uma perspectiva puramente mercantilista, emque a questão da dignidade humana está “esvaziada de conteúdo inten-cional” sujeita à lógica e automatismo do mercado (Assman, p.240). Noimaginário social (Belluzzo, 1998, p.25), o homo oeconomicus1 é o ser soci-al submetido às determinações de realização dos seus desejos por via deuma racionalidade que toma os meios pela adequação aos fins, segundoleis naturais e impessoais do mercado, locus de troca, de coordenação ede negociação dos interesses egoísticos dos indivíduos, na correspondên-cia com o seu poder aquisitivo. Nessa lógica, somente o mercado é apre-sentado como o espaço para conquista dos ideais de Liberdade, da Igual-dade e da Justiça.

Assim, a tratativa dos direitos sociais passa por avaliações das condi-ções econômicas do Estado2, porquanto ao contrário dos direitos civis epolíticos, esses direitos determinariam o nascimento de obrigações positi-vas que, na maioria dos casos, dependem da previsão de recursos do erá-rio público. O Estado gerencial, por sua vez, garantiria apenas a realiza-ção da Justiça ( enquanto instituição), da Segurança e da Defesa e ofuncionamento de um mercado livre. A ineficácia da gestão pública sus-tenta, com o argumento da competitividade, da eficiência e produtivida-de, a privatização do espaço público e de instituições governamentaisdestinadas à educação, saúde, transportes. É a advertência de PierreBourdieu de que o Estado está se retraindo e abandonando políticas soci-ais que eram sua incumbência, para assumir somente seu perfil penal(Bourdieu, 1998).

Os Estados Unidos não somente fomentam a criação de macjobs mas,ainda, conforme tem sido denunciado por autores como Luttwak (1996,p. 58) e Belluzzo (1998, p. 22), respaldados em texto publicado no LeMonde Diplomatique, promovem um Estado Prisional e uma política detolerância zero, excluindo da população economicamente ativa jovensnegros ou chicanos, uma substancial força de trabalho americana que é

1. “E quem é esse homo oeconomicus? É aquele estranho ser, inventado pelos neoclássicos, a quem não se lhereconhecem quaisquer necessidades (needs), e que é definido unicamente por suas preferências (wants). É oconsumidor soberano, que sempre tem razão, se tiver poder de compra. Se não o tiver, deixa de existir comoagente econômico.” ASSMAN, Hugo. Exterioridade e dignidade humana..., p. 240.

2. Contra tal postura, propugnando a exigibilidade dos direitos sociais, ver: ABRAMOVICH, Victor eCOURTIS, Christian (1997, p. 3 e ss).

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retirada dos índices de desemprego e que fornecem nas prisões mão-de-obra a custo baixo e sem garantias sociais.

Acrescente-se a idéia de que no capitalismo haveria vencedores eperdedores e que, numa disputa no mercado competitivo e concorrencialnão regulado ou controlado, apenas os mais fortes e melhor preparadosvencerão. Determina a globalização, no Primeiro Mundo, uma “espéciede ‘terceiromundização”, como querem Jacinto Coutinho (1998, p.244) eOctavio Ianni (1998, p.28), e enfraquece a governabilidade nacional,mantendo a hegemonia dos que aumentam os fluxos de comércio e inves-timentos de capital e que, durante todo esse século dominaram, a saber,EUA, Itália, Alemanha, Japão, Grã-Bretanha, França e Canadá (que subs-tituiu a posição anteriormente ocupada pela Austria-Hungria).

Afinal, que globalização é esta que somente acentua a concentraçãode capital e a péssima distribuição de renda e que, numa supostamenteintegrada economia mundial mantém a África, a América do Sul e o sulda Ásia na exclusão e pobreza ? (Kornis, 1998, p.95)

A globalização é o modo de mascarar e compensar o desamparo dahumanidade diante do poder, a alta concentração de renda e incrementaro exército de reserva; um discurso para dizer aos pobres e excluídos quedevem aceitar o que lhes resta quando suas vidas e esperanças foremsacrificados no altar da competitividade internacional (Hirst & Thompson,1998, p.338).

É apresentada como a certeza do futuro do capitalismo, impregnadade determinantes sedutoras que em um quadro atual de insegurança,desalento e pessimismo, aponta para um destino único, a integração glo-bal em um único mercado e único pensamento, consolidando a prosperi-dade e permitindo o acesso de todos aos bens de consumo (Kornis, 1998,p. 95). É a sedução da sociedade de produção e de consumo de massaabsorvida no egoísmo da ânsia de ser proprietário.

A luta pelo direito do trabalho num ambiente de globalização é a brigapelo reconhecimento e efetivação de políticas sociais e pela exigibilidadedos direitos sociais fundamentais. Adquire, portanto, uma extraordináriaatualidade diante da corrosão neoliberal e da prevalência do individua-lismo proprietário. Não se pode transigir em idéias, aceitar diluição deprincípios e nem imaginar que alguma instituição possa permanecer comoimutável.

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3.O direito do trabalho vivencia historicamente fluxos e refluxos.Gérard Lyon-Caen (1980, p.258-9) tem razão ao negar-lhe o caráter ex-clusivamente progressista, porquanto as melhoras no estatuto dos traba-lhadores jamais são obtidas a título definitivo ou permanecem imunes aqualquer ataque legislativo supressor.

O direito do trabalho sempre revelou sua personalidade esquizofrênica.Por um lado suas regras se inserem, perpetuam e reproduzem o modo deprodução capitalista, desempenhando um papel regulador e, por outrolado, estabelecem os limites de atuação, garantindo conquistas e estabe-lecendo freios na ânsia de lucro, dizendo-se protecionista.

Nunca, porém, foi e será alheio à ordem econômica; ao contrário, oconstitucionalismo ocidental, com a superação do Estado liberal, não rom-peu com o modelo capitalista, senão juridicizou de uma forma peculiar oprocesso econômico.

Não é possível pensar-se em uma economia sem ordem jurídica e, porconseguinte, propugnar um mercado livre somente regido pelas suas própri-as leis não passa de uma falácia. Mesmo os cultores e ortodoxos defensoresde uma livre economia de mercado, legítimos representantes de Adam Smith,necessitam de algum espaço de regulamentação. Milton Friedman (1984,p.23), por exemplo, apregoa, literalmente, que a existência de um mercadolivre não elimina, evidentemente, a necessidade de um governo. Ao con-trário, é essencial para a determinação das regras do jogo, um árbitro ne-cessário para interpretar e pôr em vigor as regras estabelecidas.

Não obstante, a existência de uma ordem jurídica capitalista que re-gulamente a apropriação da força de trabalho não é, de per si, a garantiados trabalhadores.

Removendo a organização da atividade econômica do controle daautoridade política se permitirá que a força econômica esteja livre dopoder público coercitivo e possa, então, controlar o próprio poder político.Uma economia livre para realizar seus fins, usar seus recursos e dedicar-se às atividades destinadas a aumentar seus lucros, eis a única responsa-bilidade do capital3. O discurso da neutralidade, de um Estado minimalista

3. Nesse aspecto opõe-se Friedman àqueles que indicam a existência de uma “responsabilidade social” docapital além dos serviços que devem prestar aos acionistas ou a seus membros ou distinta da de fazer tantodinheiro quanto possível. A responsabilidade social seria exclusiva dos líderes do trabalho (Friedman, p. 122).

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e sem políticas públicas sociais está, certamente, a serviço de alguém.

A mundialização do capital traz o capital especulativo e as empresasde rating que desconhecem as nações e seus povos. A globalização docapital produtivo é apresentada como decorrência do avanço tecnológicoe apontada como o inelutável e avassalador imperativo da pós-modernidade. Necessita a empresa, entretanto, de uma reestruturaçãona sua cadeia produtiva e de uma nova concepção de contrato de traba-lho, enquanto instrumentalização jurídica das operações econômicas deapropriação de força de trabalho. A empresa, agora dita “empresa-cida-dã”, continua somente preocupada com a competitividade e eficiênciado mercado.

O trabalho, se e enquanto necessário como fator de produção, insere-se apenas como custo a ser minimizado e fator de produção a ser incenti-vado, mascaradamente. Mas não se trata de uma redução de saláriosnum quadro emergencial e, sim, um corte drástico nas conquistas sociais,muito embora a produtividade esteja sempre crescente.

Os reformadores da globalização querem mais do que um gerencia-mento da crise, querem superar o Estado de bem-estar social - que aliásnunca foi realidade nacional - , numa cilada para a democracia e para osdireitos sociais. Como ressalta Plauto Faraco de Azevedo (1999, p. 114),no processo de desmantelamento do Estado Social, a flexibilização dosdireitos sociais, apontada como indispensável para permitir o livre jogo domercado determina a perda da dignidade e solidariedade humanas, nãovista como um problema porquanto a lógica econômico-financeira nãotem compromissos éticos.

4. Acrescente-se que no Brasil jamais se permitiu um florescimento deum verdadeiro respeito à ordem constitucional estabelecida, como ressal-tou Luis Roberto Barroso (1990, p. 51) máxime diante da inflação constitu-cional, resultando a uma média de uma constituição a cada vinte anos ecrônica instabilidade verificada pela sucessão de emendas não poucas ve-zes desnaturantes. A democratização e os avanços sociais da ConstituiçãoFederal de 1988 apontavam para tentativa de consolidação de um senti-mento constitucional, criando uma consciência de respeito e efetivação,que mereceria rechaçar as críticas quanto ao inchaço constitucional leva-do ao máximo detalhismo a respeito dos direitos sociais dos trabalhadores.

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A questão da realização dos direitos sociais dos trabalhadores, previs-tos em uma quase-eficaz Consolidação das Leis do Trabalho e na Consti-tuição da República de 1988 é incompatível com a racionalidadeeconomicista, porquanto pressupõe um contra-discurso, propugnando avaloração da dignidade da pessoa humana, garantia contra a automação,valores sociais do trabalho, a erradicação da pobreza, a primazia do traba-lho sobre o capital, a garantia de emprego contra despedida arbitrária, afunção social da propriedade, a proteção do trabalhador.

Na Carta de Intenções que o Governo do Brasil encaminhou ao FundoMonetário Internacional, em 13 de novembro de 1998, consta expressa-mente que, muito embora o mercado de trabalho não esteja cercado deuma rigorosa rigidez, algumas normas que regulamentam o mercado e pro-gramas poderiam contribuir para o aumento da flexibilidade e da produtivi-dade, bem como do emprego formal. Um mercado de trabalho que é reco-nhecidamente maleável em decorrência da intensa rotatividade da mão-de-obra, voluntária ou não, especialmente dentre os menos qualificados(Cacciamali, 1999, p. 221). A urgência na reforma da legislação trabalhistadizem, entretanto, advém do crescimento recente das taxas de desempre-go, pelo que algumas medidas já foram implementadas como contratos tem-porários e a tempo parcial, flexibilidade das jornadas de trabalho com afinalidade de diminuição dos custos das horas extras. Outrossim, a Admi-nistração Federal, conforme consta na Carta de Intenções, já teria enviadoao Congresso Nacional projeto de emenda constitucional para reduzir asrestrições na organização sindical e criação de incentivos para criação deacordos coletivos diretamente entre sindicatos e empregados4.

Igualmente, consta do Tratado de Amsterdã, em seu artigo 109, N eO, que os Estados Membros e a Comunidade estabelecerão uma estraté-gia coordenada para o emprego e, em particular, promoção da qualifica-ção e formação da mão-de-obra, suscetível de se adaptar, bem como ummercado de trabalho apto a reagir rapidamente à evolução da economia,de uma maneira compatível com as grandes orientações das políticas eco-nômicas, mantendo a competitividade, segundo quatro grandes pilares:empregabilidade, adaptabilidade, iguais oportunidades e fomento a em-preendimentos. Nas conclusões do Encontro sobre Emprego, em

4. Carta de Intenções ao Fundo Monetário Internacional, firmada pelo Presidente do Banco Central,Gustavo Henrique de Barroso Franco e Ministro da Fazenda, Pedro Malan, em 13 de novembro de 1998,itens 33 e 34.

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Luxemburgo, nos dias 20 e 21 de novembro de 1997, do Conselho Euro-peu, consta que a noção de adaptabilidade (parte II, item III, item 70 e71) está diretamente ligada à modernização da organização produtiva eformas de trabalho, a qual inclui a noção de flexibilidade, redução dejornada de trabalho e de horas extras, fixação de jornadas anuais e de-senvolvimento de contratos a tempo parcial e, ainda, estudos sobre a pos-sibilidade de incorporação no direito interno dos países integrantes, denormas que regulamentem novos tipos contratuais.

O projeto de alteração e “modernização” das relações de trabalho vemmundialmente coligado ao fim do caráter unitário e homogêneo do direi-to do trabalho, com a fragmentação das relações laborais, numadesestruturação da classe operária e cooptação dos trabalhadores paramascarar o conflito entre capital e trabalho.

As medidas encetadas pelo governo Fernando Henrique Cardoso paraa modernização do mercado de trabalho, tais como a criação de um con-trato de trabalho a prazo determinado para fomento de emprego com re-dução de custos (Lei n.º 9.601/98), banco de horas anual (Medida Provi-sória n.º 1.709/98), criação de um contrato de trabalho a tempo parcialpara jornadas até 25 horas (Medida Provisória n.º 1.709/98) atendem areclamos “mundializados”, muito embora tenham sido desnecessárias, umavez que nada é mais flexível do que um regramento jurídico que nãodetém nenhuma força de coercibilidade e permite a convivência com umtrabalho precário e informal. Segundo Marcio Pochmann e Anselmo Luisdos Santos (1999, p. 288), a experiência recente, no caso do emprego,demonstra que a implementação de novas disciplinas contratuais, ao con-trário do propugnado, ao invés de servir de combate ao desemprego, per-mitem a sua elevação, tendo efeitos inexpressivos na questão dainformalidade e competitividade empresarial.

Nesse aspecto é interessante notar que o discurso jus-laboralista e go-vernamental “flexibilizante” está não poucas vezes em contradição com otestemunho dos empresários, ressaltando sua faceta ideológica. Ao esco-lher o Brasil como “campo de provas” para as indústrias automobilísticas,as montadoras como GM, Ford e VW operam dentro de uma reestruturaçãoprodutiva que trabalham com baixos estoques, numa perspectiva just intime, terceirizando a produção e flexibilizando a linha de montagem. Afir-ma-se, textualmente, que “... em nenhum outro lugar a GM terá custos tãobaixos de produção. E nem espera tanta eficiência...” e, ao contrário doimaginado, a robotização e automação vem sendo superada, pois “...Na

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maior parte dos casos, os robôs custam muito caro e parecem menos impor-tantes do que funcionários treinados e uma rede de fabricantes de autopeçasajustada...”. A fábrica da picape Dakota, em Campo Largo, no Paraná, naqual somente há um robô, para instalação do pára-brisa, é um referencialdesse novo “modelo brasileiro” a ser exportado. A explicação vem daspróprias montadoras: “isso se explica pelo custo da mão-de-obra, muito maisbaixo do que na Alemanha ou nos Estados Unidos, por exemplo. Mas tambémpela confiabilidade do trabalho humano...”5.

Nota-se, em primeiro lugar, a crescente desestruturação da classe ope-rária e sua substituição pela noção de “mercado” de trabalho, determi-nando uma única preocupação, com a adaptabilidade e produtividade dotrabalhador, descurando qualquer indagação a respeito da sua qualidadede vida.

O direito do trabalho não mais é revelado na sua Consolidação dasLeis do Trabalho como um código de conquistas senão enquanto um con-junto de regras garantidoras da acessibilidade e manutenção da mão-de-obra, enquanto e se necessária. Desaparece o sujeito para emergir tão-sóa mão-de-obra contratada. Cada um por si, no mercado, disputando se-gundo suas capacidades e habilidades e assumindo a culpa de não ser umvencedor.

Em segundo lugar, ocorre uma perda do padrão universal no âmbitotrabalhista, pensado tradicionalmente para uma relação direta com umúnico protótipo de empregado, subordinado. A constante fragmentaçãodas relações jurídicas determina uma preponderância da variabilidadedo trabalho sobre unicidade do emprego, com o esvaziamento do própriodireito do trabalho. Diante do apregoado desaparecimento de uma socie-dade de trabalho, todo e qualquer incentivo vem para as propostas deempreendimentos, ainda que o custo da mão-de-obra seja inferior ao daautomação e mais flexível aos interesses da economia.

Os que prestam trabalho permanecem ora ligados diretamente à em-presa, ostentando uma pluralidade de situações jurídicas, desde o tradi-cional contrato de trabalho a prazo indeterminado ou a prazo determina-do para situações de transitoriedade ou, ainda, com redução de direitos,como nas férias em um contrato a tempo parcial, contrato a prazo deter-

5. Jornal Gazeta Mercantil. Caderno Empresas e Carreiras. 11 de agosto de 1999, p. C-1.

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minado para fomento, muito embora regidos pelo direito do trabalho. Exis-tem, ainda, os temporários, os subcontratados, os terceirizados, os autô-nomos, os eventuais, os avulsos.... A dificuldade se torna crescente naidentificação dos trabalhadores como integrantes de uma classe.

Uma terceira situação reflete a cooptação do trabalho pelo capital,mascarando o conflito capital-trabalho e a luta de classes. Inicialmente,porquanto situa todos os trabalhadores diante da fragmentação da regu-lamentação jurídica, numa disputa interna entre trabalhadores, na buscade uma situação mais privilegiada. Outrossim, eis que oculta o conflitoque residia na relação empregado/empregador, indicando estarem supos-tamente em uma única e idêntica situação de comunhão de interesses,voltados à preservação do posto de trabalho e, assim, da própria empresa.

A remuneração pactuada é variável, baseada na produção apresenta-da no paradigma da eficiência e, não mais no tempo, de forma a quesomente perceba valores na dimensão da própria inserção do trabalhoproduzido na atividade econômica.

No processo de desestruturação do trabalho, a remuneração flexíveldetermina um esgarçar dos vínculos de solidariedade entre os trabalha-dores, alocando o resultado final num processo de competitividade inter-na dissimulada, sob a roupagem das emergências da globalização.

Todo dia é dia de trabalho: não mais pensar em dias úteis e no domin-go como dia destinado ao descanso a final, em prol do aumento do consu-mo, toda hora é propícia às operações econômicas.

Seu horário e jornada são flexíveis, para melhor assegurar os interessesflutuantes das demandas do mercado e permitir uma adequação aos inte-resses individuais dos trabalhadores; empregados mais satisfeitos traba-lham mais e melhor. Junto com as reduções de jornada está um processoconstante de intensificação do trabalho; trabalhamos mais e melhor emmenor jornada, demonstrando a falácia da argumentação em prol de po-líticas de combate ao desemprego.

Sua vida é dimensionada ao mesmo tempo pelo trabalho, se tiver parapreservá-lo e pelo não-trabalho, ante o medo de perdê-lo. A exploração,que era visualizada numa relação de subordinação, desaparece pela coor-denação e assunção de interesses alheios. O empregado deve manter-sesempre qualificado, ter habilidade para o trabalho e aceitar as responsa-bilidades diante da produção, num controle de qualidade.

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Sem qualquer alteração no direito positivo, o empregado foi cooptadoe o processo de globalização vem servindo de mecanismo retórico de alte-ração do direito do trabalho. Prescinde, assim, da própria necessidade daproteção e, ainda, debilita o poder sindical.

Há uma crise do simbólico, do Estado como o espaço aglutinador deinteresses e depositário da confiança dos indivíduos, que cede ao Estadofomentador da empresa, em discurso economicista de apologia ao espaçoprivado de trocas. A reação vem traduzida por Pierre Bourdieu (1998, pp.9-13) ao vislumbrar o cidadão, que sentindo-se repelido para fora do es-paço público, acaba por repelir o próprio Estado, como se fora um terceiro,estranho, que utiliza na medida dos seus próprios interesses, dentro deuma cultura individualista. Ocorre ainda que, como alertado por LIMAE FEIGUIN 6, a não-canalização dos sentimentos de opressão e angústiadecorrentes da pauperização, acirramento da concentração de renda edesemprego crescente, acoplados com a retração de mecanismos de açãopública e com o desgaste de instituições de coesão sociais ou movimentosorganizados, como sindicatos, leis trabalhistas e Poder Judiciário Traba-lhista, induzem à violência individualizada e levam a uma postura dedescaso com o desmonte do próprio Estado, abrindo sem controle o espa-ço do mercado.

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6. Citado por CACCIAMALI, Maria Cristina. Desgaste na legislação laboral e ajustamento do mercado detrabalho. In : Abertura e ajuste do mercado do trabalho no Brasil : políticas para conciliar os desafios de empregoe competitividade. Brasília : OIT e TEM; São Paulo : Ed. 34, 1999, p. 221.

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Déclaration des Droits de I’Hommeet du Citoyen du 26 août 17891.

Les représentants du peuple français, constitués en ASSEMBLEENATIONALE, considérant que l’ignorance, l’oubli ou le mépris des droitsde l’homme sont les seules causes des malheurs publics et de la corruptiondes Gouvernements , ont résolu d’exposer, dans une déclaration solennelle,les Droits naturels, inaliénables et sacrés de l’homme, afin que cettedéclaration, constamment présente à tous les membres du corps social,leur rappelle sans cesse leurs droits et leurs devoirs; afin que les actes duPouvoir législatif et ceux du Pouvoir exécutif, pouvant être à chaqueinstant comparés avec le but de toute institution politique, en soient plusrespectés; afin que les réclamations des citoyens, fondées désormais surdes principes simples et incontestables, tournent toujours au maintien dela Constitution et au bonheur de tous. – En conséquence, 1’ASSEMBLÉENATIONALE reconnaît et déclare, en présence et sous les auspices del’Etre Suprême, les droits suivants de l’Homme et du Citoyen.

Article Premier – Les hommes naissent et demeurent libres et égauxen droits. Les distinctions sociales ne peuvent être fondées que sur l’utilitécommune.

Art. 2. – Le but de toute association politique est la conservation desdroits naturels et imprescriptibles de l’homme. Ces Droits sont la liberté,la propriété, la sûreté, et la résistance à l’oppression.

Art. 3. – Le principe de toute souveraineté réside essentiellementdans la Nation. Nul corps, nul individu ne peut exercer d’autorité quin’en émane expressément.

Art. 4. – La liberté consiste à pouvoir faire tout ce qui ne nuit pas àautrui : ainsi, l’exercice des droits naturels de chaque homme n’a debornes que celles qui assurent aux autres membres de la société la

1. Duverger, Maurice. Constitution et documents politiques. 4.éd. Paris: Presses Universitaires de France,1966. p. 3-4. Tradução do Editor.

Documentos

Direito e Democracia Canoas vol.1, n.1 1º sem. 2000 p.177-181

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jouissance de ces mêmes droits. Ces bornes ne peuvent être déterminéesque par la Loi.

Art. 5. – La Loi n’a le droit de défendre que les actions nuisibles à lasociété. Tout ce qui n’est pas défendu par la Loi ne peut être empêché, etnul ne peut être contraint à faire ce qu’elle n’ordonne pas.

Art. 6. – La Loi est l’expression de la volonté générale. Tous les citoyensont droit de concourir personnellement, ou par leur représentants, à saformation. Elle doit être la même pour tous, soit qu’elle protège, soit qu’ellepunisse. Tous les citoyens étant égaux à ses yeux, sont égalementadmissibles à toutes dignités, places et emplois publics, selon leur capacité,et sans autre distinction que celle de leurs vertus et de leurs talents.

Art. 7. – Nul homme ne peut être accusé, arrêté ni détenu que dansles cas déterminés par la Loi, et selon les formes qu’elle a prescrites. Ceuxqui sollicitent, expédient, exécutent ou font exécuter des ordres arbitraires,doivent être punis; mais tout citoyen appelé ou saisi en vertu de la Loi,doit obéir à l’instant : il se rend coupable par la résistance.

Art. 8. – La Loi ne doit établir que des peines strictement etévidemment nécessaires, et nul ne peut être puni qu’en vertu d’une loiétablie et promulguée antérieurement au délit, et légalement appliquée.

Art. 9. – Tout homme étant présumé innocent jusqu’à ce qu’il ait étédeclaré coupable, s’il est jugé indispensable de l’arrêter, toute rigueur quine serait pas nécessaire pour s’assurer de sa personne, doit être sévèrementréprimée par la Loi.

Art.10. – Nul ne doit être inquiété pour ses opinions, même religieuses,pourvu que leur manifestation ne trouble pas l’ordre public établi par laLoi.

Art. 11. – La libre communication des pensées et des opinions est undes droits les plus précieux de l’homme; tout citoyen peut donc parler,écrire, imprimer librement, sauf à répondre de l’abus de cette liberté dansles cas déterminés par la Loi.

Art. 12. – La garantie des droits de l’Homme et du Citoyen nécessiteune force publique; cette force est donc instituée pour l’avantage de tous,et non pour l’utilité particulière de ceux auxquels elle est confiée.

Art. 13. – Pour l’entretien de la force publique, et pour les dépenses

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d’administration, une contribution commune est indispensable : elle doitêtre également répartie entre tous les citoyens, en raison de leurs facultés.

Art. 14. – Tous les citoyens ont le droit de constater, par eux-mêmesou par leurs représentants, la nécessité de la contribution publique, de laconsentir librement, d’en suivre l’emploi, et d’en déterminer la quotité,l’assiette, le recouvrement et la durée.

Art. 15. – La société a le droit de demander compte à tout agentpublic de son administration.

Art. 16. – Toute société dans laquelle la garantie des droits n’est pasassurée, ni la séparation des pouvoirs déterminée, n’a point de constitution.

Art. 17. – La propriété étant un droit inviolable et sacré, nul ne peuten être privé, si ce n’est lorsque la nécessité publique, légalementconstatée, l’exige évidemment, et sous la condition d’une juste et préalableindemnité.

DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DOCIDADÃO, DE 26 DE AGOSTO DE 1789.

Os representantes do povo francês, constituídos em Assembléia Naci-onal, considerando que a ignorância, o esquecimento ou o menosprezodos direitos do homem são as únicas causas das desgraças públicas e dacorrupção dos governos, resolveram expor, em uma declaração solene, osDireitos Naturais, inalienáveis e sagrados do homem, a fim de que, estan-do esta declaração constantemente presente em todos os membros docorpo social, lhes lembre, incessantemente, seus direitos e deveres; a fimde que os atos do Poder Legislativo e os do Poder Executivo, podendo serem cada momento comparados com o fim de toda instituição política,sejam, em decorrência disto, mais respeitados; a fim de que as reclama-ções dos cidadãos, fundadas doravante sobre princípios simples e incon-testáveis, sirvam sempre à manutenção da Constituição e à felicidade detodos.- Em conseqüência, a Assembléia Nacional reconhece e declara,em presença e sob os auspícios do Ser Supremo, os seguintes direitos doHomem e do Cidadão:

Art.1º. Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos.

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As distinções sociais não podem ser fundadas senão na utilidade comum.

Art. 2º. A finalidade de cada associação política é a conservação dosdireitos naturais e imprescritíveis do homem. Estes direitos são a liberda-de, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão.

Art. 3º. O princípio de toda soberania reside essencialmente na Na-ção. Nenhuma corporação, nenhum indivíduo pode exercer autoridadeque daquela não emane expressamente.

Art. 4º. A liberdade consiste em poder fazer tudo o que não prejudicaa outrem: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem só tempor limites os que asseguram aos outros membros da sociedade o gozodestes mesmos direitos. Estes limites só podem ser determinados pela lei.

Art. 5º. A lei não pode proibir senão as ações prejudiciais à sociedade.Tudo o que não é proibido pela lei não pode ser impedido, e ninguémpode ser obrigado a fazer o que ela não ordene.

Art. 6º. A lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têmdireito de concorrer à sua formação, pessoalmente ou por seus represen-tantes. Ela deve ser a mesma para todos, quer quando proteja, quer quandopuna. Todos os cidadãos, sendo iguais a seus olhos, são igualmenteadmissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, segundosua capacidade, e sem outra distinção além daquela de suas virtudes etalentos.

Art. 7º. Nenhum homem pode ser acusado, preso ou detido a não sernos casos determinados pela lei, e segundo as formas por ela prescritas.Aqueles que solicitam, expedem, executam ou mandam executar ordensarbitrárias devem ser punidos; mas, qualquer cidadão convocado ou de-tido em virtude da lei, deve imediatamente obedecer, sob pena de tor-nar-se culpável de resistência.

Art. 8º. A lei só pode estabelecer penas estrita e evidentemente neces-sárias, e ninguém pode ser punido senão em virtude de uma lei estabelecidae promulgada anteriormente ao delito e legalmente aplicada.

Art. 9º. Presumindo-se a inocência de todo homem até que tenhasido declarado culpado, se for julgado indispensável detê-lo, todo o rigordesnecessário à sua detenção deve ser severamente reprimido pela lei.

Art. 10. Ninguém pode ser molestado por suas opiniões, inclusive re-

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ligiosas, à condição que sua manifestação não perturbe a ordem públicaestabelecida pela lei.

Art. 11. A livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é umdos direitos mais preciosos do homem; todo o cidadão pode, portanto,falar, escrever, imprimir livremente, respondendo pelo abuso desta liber-dade nos casos previstos em lei.

Art. 12. A garantia dos direitos do Homem e do Cidadão carece deuma força pública; esta força é, portanto, instituída tendo em vista oproveito de todos, e não a utilidade particular daqueles aos quais ela éconfiada.

Art. 13. Para a manutenção da força pública e para as despesas daadministração, é indispensável uma contribuição comum: ela deve serigualmente repartida entre todos os cidadãos, de acordo com as suas pos-sibilidades.

Art. 14. Todos os cidadãos têm o direito de constatar, pessoalmenteou por meio de seus representantes, a necessidade da contribuição públi-ca, de consenti-la livremente, de fiscalizar-lhe a utilização, de determi-nar-lhe a quota-parte, a repartição, a cobrança e a duração.

Art. 15. A sociedade tem o direito de pedir contas de sua administra-ção a todo agente público.

Art. 16. Toda a sociedade, na qual a garantia dos direitos não é asse-gurada nem a separação dos poderes estabelecida, não tem Constituição.

Art. 17. Sendo a propriedade um direito inviolável e sagrado, nin-guém dela pode ser privado, exceto quando a necessidade pública, legal-mente comprovada, evidentemente o exigir, e sob a condição de umajusta e prévia indenização.

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