direito do comum em canudos - scielo.br · antigas formas de pensar as relações sociais e...

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Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, Vol. 9, N. 2, 2018, p. 890-927. Ziel Ferreira Lopes e Danilo Pereira Lima. DOI: 10.1590/2179-8966/2017/26642| ISSN: 2179-8966 890 Direito do comum em Canudos Law of the common in Canudos Ziel Ferreira Lopes Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: [email protected] Danilo Pereira Lima Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: [email protected] Artigo recebido em 16/12/2016 e aceito em 16/05/2017. This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License

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Page 1: Direito do comum em Canudos - scielo.br · antigas formas de pensar as relações sociais e políticas. Contra isso, o Direito do Comum ... a auto-organização de um vilarejo no

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DireitodocomumemCanudosLawofthecommoninCanudos

ZielFerreiraLopes

Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail:[email protected]

DaniloPereiraLima

Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail:[email protected]/12/2016eaceitoem16/05/2017.

ThisworkislicensedunderaCreativeCommonsAttribution4.0InternationalLicense

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Resumo

EsteartigoobjetivaanalisaraexperiênciadeCanudosapartirdoreferencialdoDireito

doComum.Procedeaumaabordagemgenealógica,desencavandooquefoisoterrado

por suas representações tradicionais como mero “fanatismo religioso” ou “rebeldia

primitiva”.Comoresultado,foipossívelidentificarelementosdesuagestãocomunitária,

capazdeconstituirsentidopróprioeumarranjoinstitucionalalternativo.

Palavras-chave:DireitodoComum;Canudos;Cercamento.

Abstract

ThisarticleaimstoanalyzetheexperienceofCanudosfromthetheoricalframeworkof

thelawofcommom.Itproceedstoagenealogicalapproach,unravelingwhatwasburied

by its traditional missrepresentations as mere "religious fanaticism" or "primitive

rebellion." As a result, it was possible to identify the elements of its community

management, capable of constitute its own meaning and an alternative institutional

arrangement.

Keywords:LawoftheCommon;Canudos;Enclosurement.

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1.Introdução

A crise política brasileira, sentida com grande intensidade nos Poderes Executivo e

Legislativo, vem expondo os limites das estruturas de poder para a ampliação da

democracia.O tradicional sistema representativo, baseadoessencialmentena atuação

dospartidos,temsemostradoresistenteaoutrasformasdeparticipaçãopolítica,como

éocasodoscoletivos.Dessemodo,novasformasde“autoridadecomum”esbarramnas

antigasformasdepensarasrelaçõessociaisepolíticas.Contraisso,oDireitodoComum

é um projeto político radical, pois procura voltar-se contra a “raiz” mesma das

concepções liberais de poder e sociedade. Christian Laval e Pierre Dardot fazem um

longo esforço para tanto em Común: ensayo sobre la revolución em el siglo XXI1.

Mostram como a lógica exclusiva do sujeito proprietário está longe de ser universal.

Laval-Dardot recuperam o conceito de Comum, exemplificam-no historicamente e

reconstroem-no, para, afinal, apresentar algumas propostas de ruptura com a ordem

liberal.

A partir dessa leitura, é possível observar como a ideia de propriedade foi

concebida como uma projeção natural do sujeito, e como o Estado foi apresentado

como uma projeção institucional deste. Mas vemos também que houve diferentes

arranjos, coisas públicas que não eram estatais e coisas privadas que não eram

particulares.

O Brasil tornou-se um dos casos emblemáticos de crise institucional neste

começodeséculo.Aocorrênciademanifestaçõespopularesdesde2013,oacirramento

do jogopolítico,osescândalosdecorrupçãoenvolvendopartidosegrandesempresas

financiadoras do sistema e financiadas por ele, remetem aum sistema fechado, que

media normativamente a sociedade, mas se autonomiza em relação a ela e passa a

gerenciarsuasprópriasdemandas.

A organização autoritária do Estado brasileiro2, que durante amaior parte da

históriarepublicanaprocurouse imporcomodemiurgodasociedade–natentativade

sufocar a atuação dos movimentos sociais –, não foi eliminada totalmente após a

1DARDOT,Pierre;LAVAL,Christian.Común:ensayosobrelarevoluciónemelsigloXXI.TraduçãodeAlfonsoDiez.Paris:Gediza,2014.2ParaumaanálisedecomoaorganizaçãoautoritáriadoEstadobrasileiroserviucomoumsérioobstáculoàconstruçãodacidadania,ver:CARVALHO,JoséMurilo.CidadanianoBrasil:olongocaminho.RiodeJaneiro:CivilizaçãoBrasileira,2014.

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redemocratização.Essasituaçãoéresponsávelpelodéficitdecidadaniaaindapresente

nasociedadebrasileira,que,nocaso,mesmoapósaredemocratizaçãoeapromulgação

da Constituição de 1988, ainda encontra dificuldades para fazer com que suas

reivindicaçõessejamouvidaspelasestruturasdepoderdoEstado.Osistemapolíticose

encontrablindadoemrelaçãoaosmovimentosqueocorremnasruas,aodistanciarcada

vezmaisosrepresentantespolíticosdaspessoascomuns3.

Segundo Octavio Ianni, “modernizam-se a economia e o aparelho estatal.

Simultaneamente,osproblemassociaiseasconquistaspolíticasrevelam-sedefasados.

[...] Amesma nação industrializada,moderna, conta com situações sociais, políticas e

culturaisdesencontradas”4.Umdesencontrointencionalque,aindasegundoaspalavras

de Ianni,pertenceaoprópriomodelodemodernizaçãocapitalista seguidopeloBrasil,

quecontribuiuparacristalizaromodoconservadordelidarcomosconflitossociais.

Qual a alternativa? O apego à mera reforma desse sistema pode bloquear a

imaginação. Como visto em Laval-Dardot, a busca de alternativas hoje pode se

beneficiarcomreleiturashistóricas.

Partindo dessa hipótese, interessa retomar a genealogia do comum num

episódiomarcantenahistóriabrasileira:aauto-organizaçãodeumvilarejonosertãoda

Bahia do final século XIX, seu funcionamento apesar de todas as dificuldades, sua

resistência aos poderes Constituídos, e, afinal, sua repressão militar pela recém-

proclamadaRepública.

AGuerra de Canudos é umdos episódiosmais descaracterizados das revoltas

populares no Brasil. Lido à direita como “fanatismo religioso” e à esquerda como

espéciederebeldiaprimitiva,ascategoriastradicionaisdeanálisenãolhefazemjustiça.

Parece haver nisso um juízo depreciativo segundo alguma escala exterior de “razão”. 3 Essa situação foi observadaporMarcosNobre em seu livro Imobilismo emmovimento , ao utilizar umnovo conceito para compreender omodus operandi do sistema político brasileiro. Segundo ele, após aredemocratização o sistema passou a operar de forma autônoma em relação à sociedade, buscandoarrefecer os conflitos sociais e as disputas políticas que ocorrem naturalmente numa democracia. Essefenômeno foi denominado por Nobre como “peemedebismo”. Nesse ambiente dominado pelopeemedebismo,aspautasreivindicatóriasdesetoresmarginalizadosdasociedadebrasileiranãoencontramespaçonoParlamento.Sãosufocadasprematuramenteporgruposdepressãoquealcançammaioriaentreosparlamentares,eimpedemqueasminoriasconsigamdebatersuasposições.Ouseja,aredemocratizaçãonãofoicapazdeabrirporcompletoasinstituiçõespolíticasbrasileiras,poismanteveumgrausignificativodeblindagemdosistemapolíticoemrelaçãoàsociedade.ApesardesseconceitofazerreferênciaaoPMDB,Nobredestacaqueofenômenodopeemedebismonãosereduzsomenteaestaorganizaçãopartidária,masé utilizado em sua obra para explicar o funcionamento do sistema político brasileiro. (NOBRE, Marcos.ImobilismoemMovimento:daaberturademocráticaaogovernoDilma.SãoPaulo.CompanhiadasLetras,2013.)4IANNI,Otavio.PensamentoSocialnoBrasil.Bauru,SP:Edusc,2004.pp.120-121.

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Afinal,segundoquemtaisexpressõesreligiosasseriamfanáticasemrelaçãoàsoutras?

Segundoquemseriamrebeldes?Segundoquemseriamprimitivos?Faltacompreender

seusentidoapartirda suaprópriadinâmica,as fontesde integraçãosocial,oelãque

sustentou esta comunidade durante tanto tempo, em meio a tantas circunstâncias

adversas,cominstituiçõesrelativamentefuncionais.Eisoproblemaaserenfrentado.

Para tanto, o referencial dos common studies pode contribuir para lançar luz

sobre um aspecto pouco considerado de Canudos: a dinâmica de auto-gestão desses

grupos,suapotênciaconstituinte,maisdoqueosimplesvácuodeautoridadeemquese

encontravam.

Comesteobjetivo,procederemosdaseguintemaneiranesteartigo:partimosde

uma introdução aos estudos do Comum, expondo as dificuldades das instituições

contemporâneas e o bloqueio das suas categorias tradicionais de análise frente às

movimentações sociais (2); justificada essa abordagem do problema, especificamos

nossoreferencialteórico-metodológiconoDireitodoComum,numabrevereconstrução

do pensamento de Christian Laval e Pierre Dardot (2.1); paramostrar a aplicação do

Comum,retomamosexemplosconcretosda lutacampesinacitadosporLavaleDardot

— mostrando bens e espaços que pertenciam à gestão comum funcional, que de

repenteseviram“cercados”(enclosured)—,tirandoalgumasconclusõesparciaissobre

oComumqueorientarãonossaanálise(2.1.1);feitasascargasteóricas,expomosalguns

eventos centrais da Guerra de Canudos a partir da obra de Euclides da Cunha, sem

buscar novidades historiográficas, destacando apenas o que foi soterrado por outras

realidades institucionais (3); para discutir os bloqueios nas leituras de Canudos, à

esquerda e à direita, aproveitamos a polêmica iniciada com intelectuais marxistas

brasileiros sobreo livroAguerrado fimdomundo,doescritorperuanoMarioVargas

Llosa(4);abertaessabrechanosdogmatismos,discutimosumabrevealusãoaCanudos

feitaporAntonioNegrieGiuseppeCocco,comavisãopropostapeloDireitodoComum

(5); e, por fim, costuramos todas essas pontas, nos perguntandooqueo exemplodo

arraial baiano tem a agregar às discussões contemporâneas sobre a crise do Estado,

“modernização” autoritária emovimentações sociais (6). Vamos do campo teórico do

ComumaocasodeCanudos,efazemosocaminhodevolta.

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2.Commomstudies

Qualosentidodesefalaremcomumhoje?Nãovivemoso“fimdahistória”profetizado

por Fukuyama5, em que se articulam definitivamente, sob uma economia capitalista,

Estados que mediam a vida em sociedade? Temos toda a atividade política que se

poderia almejar, com sistemas representativos e algumas brechas domesticadas para

participaçãodireta?Faltariaapenasmelhoraraaplicaçãodessemodelo?

Ocorre que a malha significativa que sustentava isso tudo vem mostrando

rupturas. Há vários eventos observáveis no mundo todo que qualificam a crise: as

dificuldades de continuar gerindo economias de exclusão e políticas públicas de

inclusão6; as crises dos sistemas financeiros, com grandes players tendo que ser

socorridospeloEstadocomdinheirodoscontribuintes;adificuldadedecoordenaresses

players de modo sustentável na exploração de recursos escassos; o aumento das

desigualdades a picos inéditos nos últimos séculos; as dificuldades de se efetivar

participações políticas diretas; o fechamento dos sistemas representativos nos

representantes, em parcerias dos partidos com empresas (depois contratadas para

prestação de serviços públicos) que financiam campanhas eleitorais cada vez mais

midiatizadas e massificadas; os desequilíbrios geopolíticos, em que situações de

dominação local globalmente acomodadas tornam-se instáveis, afetando tabelas de

preçosinternacionaiseforçandograndesfluxosmigratórios.

Atravessandoissotudo,háumaconstante:umaforçadedesestabilizaçãoouao

menosdecontestaçãodomodelo.Elanãoaparecenostermosdesubjetividadepolítica

a que estamos habituados. Não são eleitores, partidos, frequentemente nem são

reconhecidoscomocidadãos(imigrantesilegais),nãosãomovimentossociaiscomuma

só sigla e uma estrutura hierarquizada. São muito mais “movimentações sociais”, na

expressãodeJoséBolzandeMorais7.

5FUKUYAMA,Francis.Ofimdahistóriaeoúltimohomem.RiodeJaneiro:Rocco,1992.6BOLZANDEMORAIS, José Luiz.OEstadoe seus limites: reflexões iniciais sobreaprofanaçãodoestadosocial e a dessacralização damodernidade. In: Francisco José R. de O. Neto; Jacinto N. deM. Coutinho;OridesMezzaroba;PaulodeT.Brandão(Orgs.)ConstituiçãoeEstadoSocial:OsobstáculosàconcretizaçãodaConstituição.Coimbra:Coimbra2008.7BOLZANDEMORAIS,JoséLuiz.REPE&C20–OEstadodeDireitonãosobrevivecomsujeitosmediatizados.EmpóriodoDireito.Florianópolis,23mar.2016.Disponívelem:http://emporiododireito.com.br/repec-20-o-estado-de-direito-nao-sobrevive-com-sujeitos-mediatizados/.Acessoem:01mai.2017.

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Para usar um vocabulário da Teoria Critica8: temos visto energias sociais que

fluemforadostrilhosdeumagirinstrumental,deestratégiastraçadascalculandocustos

ebenefícios,meiosefins,poragentesensimesmados,queabordamunsaosoutroscom

enfoque objetificador. Elas fogem aos diagnósticos pessimistas da modernidade, de

reificaçãoealienaçãodabasedapirâmidesocial.

Por outro lado, essas energias nem sempre se apresentam de uma maneira

reconduzívelaosistemadequeescapam.Nemsemprepodemsercanalizadaspelasvias

institucionaisparalegitimaroEstado.Suainstitucionalizaçãopodemutilá-las,achatá-las,

despotenciá-las.Ésignificativoolostintranslationaqui.

Enfim,essasenergiasnemsemprepoderãosertrabalhadascomoracionalidades

comunicativas (como quer Jürgen Habermas9). Nisso ainda há uma concepção

modernizadoradesociedade.Muitasvezeselasseexpressamcomoafetos,encontros,

comovidaquenãosedeixacodificar.

NegrieHardt10falamnumaoutrasubjetividadepolítica,aMultidão.Distinguem-

nadaconcepçãoclássicade“povo”,umcorpopolíticounificado,sintetizadonumsuper-

sujeito, comuma vontade própria, distinta da de seusmembros, emnomeda qual o

soberano(edepoisosrepresentantes)legitimamsuasações.Distinguem-natambémda

“massa”, sombra moderna de um sujeito político, sem unidade, porém uniforme,

achatado,semvontadespróprias,queprecisadeumavanguardaquelhesirvadecentro

nervosoedeumaestruturaçãopartidáriaquelhedêespinha.

Nessa linhademetáforas,amultidãonãoseriaumcorpopolíticounitárionem

uniforme,masumacarnesocial,umtecidovivoempurapotência.Concretamente,ela

se refere amovimentações sem líder nem hierarquias que se espalham pelomundo,

comoas váriasOccupy, as Jornadasde Junhode2013, a praça Tahir, as colaborações

entrehackerseetc.Todassãoexpressõespolíticasmultitudináriasdeumasociabilidade

comum,que“sobra”diantedasrepresentaçõestradicionais.

8 Em especial, referimo-nos ao vocabulário de JürgenHabermas, conjugando expressões deMaxWeber,KarlMaxetantosoutros.HABERMAS,Jürgen.DireitoeDemocracia:entrefacticidadeevalidade.TraduçãodeFlavioBenoSiebeneichler.RiodeJaneiro:TempoBrasileiro,1997.v.IeII.9Fazemosessa referência, sempretensãodeaprofundarestediálogoaqui,por julgá-la representativadeumaconcepção“reformista”.10NEGRI,Antonio;HARDT,Michael.Multidão:guerraedemocracianaeradoImpério.2.ed.RiodeJaneiro:Record,2012.

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No referencial dos common studies, a Multidão é referida como expressão

corpórea do comum.Mas, afinal, o que é esse comum no qual se centram? Negri e

Hardtrespondem:

[...] Em suma, o comum assinala uma nova forma de soberania, umasoberaniademocrática (ou,maisprecisamente)umaformadeorganizaçãosocialquedeslocaasoberania)naqualassingularidadessociaiscontrolamatravés de sua própria atividade biopolítica aqueles bens e serviços quepermitemareproduçãodaprópriamultidão.EstahaveriadeconstituirumapassagemdaRes-publicaparaaRes-communis.11

Sobessaalcunha,DardoteLavaltentamfalardeoutrarelaçãoentrepessoase

coisas,tudoaquiloqueésufocadonapolarizaçãoentreestataleparticular.Emúltima

análise, estas duas categorias são expressões da mesma lógica de um sujeito

proprietário.ApropriedadedosoberanofoisucedidapeloEstadomoderno,masherdou

dele todas as suas condições de sujeito, servindo de espelho das subjetividades

particulares. Dizer que algumbemé público não é dizer que seja comum,mas que é

propriedadedestesuper-sujeito.

Contudo, essa polarização não é universal nem natural; é um constructo

relativamente recente e nem sempre verificável em todos os lugares. Observa-se em

váriosmomentoshistóricoseemváriassociedadesaconcepçãodealgoquenãoénem

propriedade pública nem privada, mas simplesmente inapropriável e compartilhado

desdesempreportodososseusmembros.

ChirstianLavalePierreDardotsededicamaumaamplaeprofundareleiturado

comum.Tentammostrarascontingênciaspolíticasnaformaçãodessasrelaçõesentreas

coisaseaspessoas,sempretensãoderomantizá-lasoudeacharantesdelasumcomum

originário, essencial,mito fundador do comunismo primitivo. Não se trata de achar a

verdadeiranaturezahumanaouaformanaturaldeviveremsociedade,masjustamente

dedesnaturalizarasformasatuais,trazendoàtonaoutrosexemplosquefuncionaram,e

liberando a imaginação para outras possibilidades. Outro mundo é possível (Negri-

Hardt); na verdade, outros mundos já existiram e existem à sombra de narrativas

oficiais.

11NEGRI,Antonio;HARDT,Michael.Multidão:guerraedemocracianaeradoImpério.2.ed.RiodeJaneiro:Record,2012,p268.

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2.1.Direitodocomum

Comovisto,aideiadoComumpedepassagemparaoutromundo.Nãosetrata

demobilizaroComumpontualmente,e,naáreajurídica,defalarnumdireitodocomum

em contraposição ao direito conhecido. Trata-se de um princípio constitutivo de um

novo Direito, em outra relação entre pessoas e coisas. Situa-se para além das

tradicionaisbipolarizações:entreapropriedadepúblicaeprivada,elesesituaparaalém

dapróprialógicaproprietária;entreodireitoestatutárioeoCommonLaw,elesesitua

paraalémdanormaçãomediadapelosjuristas.

Dardot e Laval revelam que outro mundo é possível ao questionarem a

“necessidade” dessemundo atual. Aproveitam, para tanto, a crítica de Aristóteles à

comunidadeplatônicadosbensnaRepública.Oargumentoaristotélicoéqueocuidado

do que é comum seria muito confuso. O erro de Platão teria sido confundir “viver

juntos”e“viveremcomum”.Umacidadenãopodeteraunidadedeumafamília,por

isso é preferível combinar a “propriedade privada” dos bens com seu “uso comum”.

Para Aristóteles devem-se distinguir duas formas de “pôr em comum”: 1) o pôr em

comumde todososbens,queaté comprometeou impedeocomumpolíticodeviver

juntos; e, 2) o pôr em comum das palavras, dos pensamentos e das ações que, pelo

contrário,constituemessemesmocomumnoquetemdeirredutível.

Adiferençacentraléqueasegundaformanãodálugaraumaapropriação.Não

podehaveruma“propriedadecomum”daspalavras. Jácomrelaçãoàprimeiraforma,

podeatéhaveruma“propriedadecomum”,masestaseriaatéprejudicialàcidadeeao

quesebuscaaquicomocomum.

Nesse aparente “liberalismo” de Aristóteles parece haver uma perspectiva

interessante a ser explorada: a preocupação com o “pôr em comum”, para além do

simples “viver juntos”. Não é a comunidade política que faz a atividade posta em

comum,masaatividadepostaemcomumquecriaocomumpolítico.

O Comum político não é capturável por uma propriedade. Por sinal, em

determinadafasedoDireitoRomanoaideiadecomumsedesencaminhariadevezpara

a“naturezadacoisa”quenãopodeser“privatizada”,sumindonoobjeto.

Na outra ponta, o Comum também não se identifica com um sujeito

individuado,numdireitocontrapostoàpráxissocial.

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Porque no hay y no puede haber sujeto de lo común. Em efecto,aunque el uso de un común como práctica colectiva produce susujeto,estesujetonoeselsujetodelcomúnemcuestión,porqueesteúltimonopreexisteadichapráctica.Nohaypusmododeoponerunbuen sujeto, el del uso colectivo, a um mal sujeto, el del dominio-propiredad. Para entenderlo, hay que aceptar reconsiderar el viejoconcepto tancriticadodeadministración,paraarticularlo comeldeuso, del que hasta ahora hemos tratado ampliamente: entoces seobtendría el concepto de un uso administrativo, incluso de un usoadminsitrativo común, que permitiria, no desplazar sino, másradicalmente,superarlasubjetividadabstractadelatitularidadsobrelascosas12.

Dardot-LavalentendemoComumpolíticopela“actividadsustenidaycontínua

depuestaencomún”ea“actualizacióndelacapacidadnaturaldelapuestaencomún”.

Trata-se do inapropriável, pela própria afetação comum de sujeitos reciprocamente

referidos.

E o direito do Comum se trata de uma coprodução de normas jurídicas [não

estatais]queobrigamatodososcoprodutoresnocumprimentodesuatarefa.Nele,as

pessoas e as coisas já se acham imersas emoutra relaçãode dever-ser, nãomediada

pelosjuristas.Elereinventaanoçãodeautoridadeporquepartedeoutrasociabilidade.

Trata-se do acesso ao comum, que não é simplesmente o acesso à distribuição

equitativa da propriedade, não é simplesmente o cumprimento da função social da

propriedade,nãoéacessoàcoisapública...

Algunsexemplosconcretospodemajudaravisualizá-lomelhor.

2.1.1. Exemplos privilegiados: a luta campesina contra o “cercamento”

(enclosurement)

Há algumas batalhas em curso pelos chamados “common goods”, bens

tradicionalmente aceitos como “não-privatizáveis”, e que, agora, frente à elevaçãodo

consumo pelo desenvolvimento industrial, revelam-se numa característica inédita:

escassez.Aáguaéoexemploporexcelência.Emdeterminadoscenários,éprecisouma

gestão sustentável, do contrário todos osplayers envolvidos entram num dilema que

12DARDOT,Pierre;LAVAL,Christian.Común:ensayosobrelarevoluciónemelsigloXXI.TraduçãodeAlfonsoDiez.Paris:Gediza,2014.p.303.

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asseguraadestruiçãomútua.Enãohácomo“legislartemperança”, jáadverdiaGarret

HardinnoclássicoThetragedyofCommons13.

DardoteLavalvãoparaalémdatragédiadoscommons.Revelamainsuficiência

dasaídapormediaçãoestatal.Eatémesmodaaçãocoordenadadosagentesprivados,

viaTeoriadosJogos.Todasaindaestãonalógicada“não-privatização”,masqueadmite

apropriação, seja pelo Estado ou por consórcios. Somos bombardeados por eles com

exemplosquemostrambenseespaçosquepertenciamàgestãocomumfuncional,que

derepenteseviram“cercados”(enclosured).

FoiassimcomospastoscomunaisnaInglaterramedieval,anexadospelaselites

aos seus castelos através da CartaMagna de 1215. Tais espaços de uso comum não

erampropriedadedeumapessoa,originadosnadistinçãoentreodireitodosenhorao

solo e o direito ao pasto dos commmoners. A Carta de 1215 veio a restituir essa

propriedade,acabandocomoscommonsemfavordapropriedadeprivadaancestral.A

Carta de 1225 (Carta da Floresta) até chega a reinscrever esses direitos aos pastos

comunais e estende garantias sobre uma série de outros direitos relacionados dos

commons.Contudo,emúltimaanálise,sualógicatambémerasenhorial,tambémestava

numquadromaisamplodeafirmaçãodosdireitosproprietários.Muito tempodepois,

no século XVII, quando o Parlamento tomaria medidas contra os enclosures, a Carta

Magna seria usada em defesa desses direitos de propriedade. O suposto símbolo de

liberdadepopularcontraoarbítrio,nãonosesqueçamos,eraadocumentaçãodeuma

vitória dos proprietários de terra contra a nobreza não-proprietária. Quem sobrava

nessearranjoeramosplebeusnão-proprietários,que tiveramdecomeçarapagaraté

para caçar ou cortar lenha nas florestas. Em motins violentos contra a restrição, os

camponesescomeçaramapintarosrostosdenegroesequestrarnobreseseusguardas-

florestais. A repressão veio noBlackAct, instituindopenademorte para aqueles que

fossem pegos com os rostos pintados. OCommon Law se volta contra as comunas e

contrapõe-lhes os enclosures, numa jurisprudência cada vez mais ligada à lógica

proprietáriaeseusdireitoscorrelatos.

UmabatalhasimilarsepassounaAlemanha,quandodaediçãodachamadaLei

Sobre o Furto de Madeira (1840), penalizando os camponeses que fossem pegos

catandoassobrasdelenhacortadasnasflorestas.Apossibilidadejurídicadecataressas

13 HARDIN,Garret. The Tragedy of the Commons.Science: Vol. 162, Issue 3859, 13Dec 1968. pp. 1243-1248.Disponívelem:http://science.sciencemag.org/content/162/3859/1243.Acessoem29jul.2016.

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sobrasjáeraumcostume,esuaproibiçãolevouaagitaçõessociais,inclusivelevandoàs

primeiraspublicaçõesemjornaldojovemMarx.

Apesar disso, nem sempre a leitura da dupla do comum coincide com a

marxista.SegundoMarx,apropriedadecomumeraaformaoriginaldepropriedadeem

váriospovos.Essevirouomitodealgumasesquerdas:ocomunismoprimitivo,oestado

decomunhãooriginalaserrestaurado.

Aprofundandoestaideia,DardoteLarvalentramnacomparaçãomarxianaentre

forma romanae formagermânicadepropriedade: 1)nos germanosoagerpublicus é

visto como um simples complemento da propriedade individual; 2) ao contrário, nos

romanos, o domínio público figura como existência econômica particular do Estado

juntoaproprietáriosprivados.

EmRomao ricoproprietárioexclui todososdemaiseestámesmoprivadodo

acesso comum. Na Germânia o proprietário individual tem acesso ao comum como

proprietário individual.Assim,os germanos tinhamalgopúblicoquenãoeraestatal e

algo privado que não era individual, o que teria se mostrado bastante atrativo para

Marx.

Contudo,talveznãotenhamsidolevadossuficientementeemcontaporMarxos

pressupostossociaisgermânicos,oquearelaçãocomascoisassignificavadentrodesses

pressupostos. Existiram comunidades que não reconheciam o rentismo imobiliário. A

propriedadeerasempre“usufundada”.Hojenóstemosapropriedadefundiária,relativa

aos fonds (bens imóveis), que independem conceitualmente do trabalho. De fato, a

propriedade nos germanos eramesmo usufundada. Só que a noção de “propriedade

usufundada”nãoseconfundecom“propriedadecoletiva”.Muitomenoscomocomum,

queéinapropriável.Elanãopossibilitaumsistemamuitocomplexodeexploração(com

classessociaiseetc.),masaindapossibilitaadesigualdade,apartirdoacúmulodeforça

detrabalho. Istoparanãofalarqueháoutros fatoresdedesigualdadesocialalémdas

baseadasnaexploraçãoderecursosnaturais.

Então, estamos diante de uma sociedade profundamente desigual que não é,

contudo, uma sociedade de classes no sentido de Marx, uma sociedade em que os

trabalhadores estão separados dos meios de produção convertidos em propriedade

exclusivadosnão-trabalhadores.Oexemplodosantigosgermanospassamuitolongedo

comum.Seébemcertoquehaviaumcomumnãoestatal,nãoeraodaterra,senãoo

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encarnado por sua assembleia, na medida em que esta não era propriedade de

ninguém, não podia ser confiscada por nenhum chefe e implicava certa forma de

igualdadeemparticipar.

Desses exemplos e contra-exemplos, podemos concluir o seguinte: o comum

não pode ser instituído como apropriável, ele é uma práxis instituinte, uma dinâmica

comunitária;abuscapelocomumnãopodecairnamistificação;nãobastaaocomum

uma noção diferente de propriedade se ainda há desigualdade, como na acumulação

germânica sobre o “uso”; o direito do comumpassa por uma coprodução normativa,

nãodependentedamediaçãoporumaclassedejuristas;por isso,odireitodocomum

certamentenãopoderiaserumdireitolegislado,oquenãoquerdizerqueseidentifique

comoCommonLaw,emqueaindahámediaçãopor juristas,eapropriaçãododireito

pelosjuízesquemuitasvezesconstroemocostumesobopretextodeestarrestaurando

umcostumemaisantigo.

3.Canudosparaalémdoconselheiro...

É frequenteacuriosidadepelasguerrasdesiguais,emqueo ladomais fracoconsegue

combaterum inimigomuitomaispoderoso.Nessa linha, tornou-se famosanoBrasil a

históriadaGuerradeCanudos14.

Ocorrequeacomplexidadenãocostumacabernaanedota.Ou,paradizercom

VargasLlosa:“oapelido,umavezconhecido,apagaonomeporessasbandas”15.Nesse

caso, a perspectiva do vencedor ainda dita bastante a narrativa. Canudos ainda é

lembradocomoumepisódiocuriosodefanatismomessiânico.

Nãoseestáquerendorecusardecisivamenteestascaracterísticas,nemmesmo

menosprezando-as. Apenas quer-se lançar luz neste momento sobre outras

características.Quer-severCanudosalémdoConselheiro,nosencontrosdosescravos

libertos, indígenas, beatos, prostitutas, lavradores, vaqueiros, cangaceiros, artistas de

circo,pessoasmarginalizadasequesemarginalizavamentresi,quederepentelargam 14 Ricamente registrada em: CUNHA, Euclides da. Os sertões: campanha de canudos. São Paulo: AbrilCultural,1979.Parasuafortunacríticaenotassobreasváriasalteraçõesqueoautorfeznotexto,veja-se:CUNHA,Euclides.OsSertões:ediçãocrítica.EdiçãoelaboradaporWalniceNogueiraGalvãoetal.SãoPaulo:Sesc/Ubu,2016.15VARGASLLOSA,Mario.Aguerranofimdomundo.TraduçãodePaulinaWachAriRoitiman.RiodeJaneiro:Objetiva,2010.

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tudo para se engajar num outro mundo. Na entrada, doavam seus bens à caixa

comunitária.

Nadaqueriamdestavida.Poristoapropriedadetornou-se-lhesumaformaexageradadocoletivismotribaldosbeduínos:aapropriaçãopessoalapenasde objetos móveis e das casas, comunidade absoluta da terra, daspastagens,dosrebanhosedosescassosprodutosdasculturas,cujosdonosrecebiam exígua quota parte, revertendo o resto para a companhia. Osrecém-vindosentregavamaoConselheironoventaenoveporcentodoquetraziam,incluindoossantosdestinadosaosantuáriocomum[...]16.

Maisàfrente:

O certo é que abria aos desventurados os celeiros fartos pelas esmolas eprodutosdotrabalhocomum.Compreendiaqueaquelamassa,naaparênciainútil, era o cerne vigorosodo arraial. Formavam-naos eleitos, felizes porterem aos ombros os frangalhos imundos, esfiapados sambenitos de umapenitência,que lhes foraaprópria vida;bem-aventuradosporqueopassotrôpego, remoradopelasmuletasepelasanquiloses, lheseraa celeridademáxima,noavançarparaafelicidadeeterna17.

Além de outros cronistas-testemunhas, ainda o atestam depoimentos de

descendentesdossobreviventesdaguerra:

Eles [os conselheiristas] trabalhavam em conjunto. Ninguém tinha nada.Todomundo fazia roça, todomundo trabalhava.Colheu... Colheu. Tomaoseu...Tomaoseu.Ninguémficavacommenosoucommais(sic).(ADONELRÉGIS MATOS, canudense, 1932, depoimento dado em Canudos, 4 defevereirode1995)

Vamostrabalhareseunir.Aqui todossão iguais.Eu [AntônioConselheiro]sou igualavocês (sic). (ZEFINHA,canudense,1916,depoimentoconcedidoemCanudos,6defevereirode1995)Ascasinhaseramde taipa;construídasnosmutirões.Oarraial cresceuemquatro anos porque tinha ajuda de uns aos outros (sic). (JOÃO DE RÉGIS,canudense,1907,depoimentoemCanudos,4defevereirode1995)O povo aqui era todo demutirão. Fazia as coisas ... Tudo... Ninguém nãoganhavadinheironão(sic).(MADALENAANTÔNIADOSSANTOS,canudense,1950,sobrinhadeManezão-afilhadodeAntônioConselheiro-,Canudos,4defevereirode1995)[AntônioConselheiro]reuniaaspessoasparadecidirsobreavidadoarraial.Conselheiro combinava tudo com o seu grupo e partia para a ação (sic).(ZEFINHA,Canudos,6defevereirode1995)18

16CUNHA,Euclidesda.Ossertões:campanhadecanudos.SãoPaulo:AbrilCultural,1979.p.160.17CUNHA,Euclidesda.Ossertões:campanhadecanudos.SãoPaulo:AbrilCultural,1979.p.165.18MARTINS, Paulo EmílioMatos. Canudos: organização, poder eoprocessode institucionalizaçãodeummodelo de governança comunitária. Cad. EBAPE.BR, Rio de Janeiro , v. 5, n. 4, p. 08, Dec. 2007.

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Voluntariavam-separa trabalhar segundo suas capacidades e receber segundo

suas necessidades19. Passavam a cuidar umas das outras e até se irmanavam a ex-

inimigos.

Cabe esclarecer que adotamos como fonte principal aqui a obra Os Sertões

(campanha de Canudos) de Euclides da Cunha, com enriquecimentos pontuais. Nosso

esforçonãoéodetrazernovidadeshistoriográficas20,masapenasdesencavar,naquilo

mesmo que se sabia, o que foi soterrado por outras realidades institucionais, numa

genealogiaàmodadeDardoteLaval.

Canudos21 foi um arraial que cresceu no pequeno vilarejo de Belo Monte, a

partirdachegadadeumBeato,umperegrinoquevagavapelossertõesdandoconselhos

religiosos e reformando igrejas e cemitérios. Como passou a juntar umamultidão de

seguidores, estabeleceu-se em 1893 neste lugar no interior da Bahia, às margens da

fazenda Canudos (propriedade do Barão de Jeremoabo, importante figura política

baiana).Passouaatraircadavezmaisseguidores,equatroanosdepoisolugarchegoua

ter25milhabitantes.

Eram tempos de grande seca e miséria. Boa parte dos sertanejos vivia sob

formassemi-feudaisdetrabalho,servindoalgumnobre,coronel,ou“padrinho”,quando

obatismosacralizavaumarelaçãodeservidãoeproteção.Aagriculturaeraaprincipal

força da economia, e a forma predominante era o latifúndio, com arrendamento de

pequenas porções de terra aos apadrinhados, protegidas por jagunços, pequenos

exércitosparticularesdosgrandesfazendeiros.

Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-39512007000400005&lng=en&nrm=iso>.Acessoem:29abr.2017.19CUNHA,Euclidesda.Ossertões:campanhadecanudos.SãoPaulo:AbrilCultural,1979.p.160,165,264.20 Sobre o modelo historiográfico do próprio Euclides da Cunha e como ele se relaciona na história dadisciplina, veja-se: BERNUCCI, LeopoldoM. Pressupostos historiográficos para uma leitura deOs Sertões.REVISTA USP, São Paulo, n.54, p. 6-15, junho/agosto, 2002. Disponível em:http://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/35140/37867. Acesso em: 01 mai. 2017. Destaca-se oesforçodeEuclidesparase libertardochamadomodelodecrônicaque imperavaaqui,segundoBernuccireferenap. 15: “Noplanoargumentativo,paradar aOs Sertões vidahistoriográfica,o autor trabalhaoargumentodahistóriadeCanudosdemodoquesejapercebidacomotragédia.Armaoseuargumentoemtornodahecatombefinaleimprime-lheumcrescendoqueanimaessadestruição.Aforçaexplicativa,eleirábuscá-lanasciênciasenascorrentesfilosóficasdesuaépoca,fortementecaracterizadaspelasanálisesdecausa e efeito dos fatos, o que, inevitavelmente, confere ao livro um esquema mecanicista, porquantotambémestecriaumsentidometafóricoparaanarração:asanáliseshistóricasesociológicassãofeitascombaseemrepetiçõesoucasosjápresenciadosaolongodaslutaspolítico-religiosasdomundoocidental”.Porsinal,Os Sertões divide-se em três grandes partes: A Terra, O Homem e A Luta, em que tenta articulardeterministicamenteessestrêselementosnasuanarrativa.21Chamava-seassimporcausadeumaplantalocal,quecrescianaformadecanudos.

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Nesse momento, mudanças iniciadas em lugares distantes viriam a agitar o

imaginário sertanejo. A escravidão fora abolida há pouco. Mudavam certas práticas

escravagistas,mas amão-de-obra precarizada era reabsorvida em condições análogas

de trabalho pelo sistema do latifúndio. A República era proclamada, destronando-se

DomPedro II.O Estado vinha se desvinculandoda Igreja Católica. Representasse algo

bomoumau,anotíciadesseseventoschegavasemvantagenspráticas imediataspara

os sertanejos. A vida política ainda se passava nas Capitais, onde disputavam

monarquistasadeptosdarestauraçãoerepublicanos(militaristasoucivislatifundiários).

Lá estavam os jornais e círculos intelectuais. No interior havia sujeição aos poderes

constituídos(Igreja,polícia,coronéis,cobradoresdeimpostos),quefuncionavamparaa

manutençãodaordem.

Nas brechas dessa autoridade, surgiam movimentos de banditismo social, os

cangaceiros que saqueavam cidades e fazendas pouco protegidas. Para enfrentá-los,

além dos jagunços pagos diretamente pelos coronéis, o Estado recrutava milícias

populares,asvolantes.

De outro lado, passaram a surgir por todo sertão várias comunas auto-

organizadas. Canudos não foi o único ajuntamento espontâneo a ser reprimido, foi

apenasomaioremaisfamoso22.Seuelãfoiseconstituindonosconselhosecaridades

do Beato Antônio. Lembrado muitas vezes de modo caricatural, seu discurso ativava

sensibilidades dos sertanejos pobres. Merece ser compreendido em sua coerência

interna.

Aestranhaprofecia“osertãovaivirarmareomarvaivirarsertão”deixava-se

entender mundanamente como subversão das relações entre interior e capital (no

litoral)23. A república era o Anti-Cristo porque queria se desgarrar da Igreja, única

referênciade solidariedade conhecidanaquelemundo.Aliás, qual seria a legitimidade

dessa tal República proclamada numa terra distante? Pela tradição, os sertanejos

conseguiamserelacionarcomomonarquismo,aindaembebidonopressupostodireito

divino de governar deDomPedro II.Mas essa formamoderna não parecia lhes dizer

nada.Orepublicanismoaconteciaemoutromundo,noqualnãosesentiambem-vindos. 22CUNHA,Euclidesda.Ossertões:campanhadecanudos.SãoPaulo:AbrilCultural,1979.p.119.23EnfatizandoadialéticaentreolitoraleosertãonanarrativadeEuclidesdaCunha:MARTINS,PauloEmílioMatos. Canudos: organização, poder e o processo de institucionalização de um modelo de governançacomunitária. Cad. EBAPE.BR, Rio de Janeiro , v. 5, n. 4, p. 2, Dec. 2007 . Disponível em:<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-39512007000400005&lng=en&nrm=iso>.Acessoem:29abr.2017.

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Arepúblicatraziacobradoresdeimpostosparaconfiscarascriaçõesdeanimais.

Trazia o tal censo demográfico, que, segundo boatos, viria descobrir quem era

descendente de escravos para restabelecer a escravidão. Criticava-se até mesmo a

implantaçãodosistemadecimal.Vê-sequeestáemjogomaisdoqueumamudançana

formadegoverno;estáemjogoadesapropriaçãodeumjeitodeviver,dedarsentidoàs

coisas.

As representações sociais eram no sentido do progresso dos industriais, das

capitais,contraoarcaísmodointerior,representadodemodopejorativo,comorepleto

de ignorantes, fanáticos e submissos à dominação. Vejam-se os jornais da época,

moldando a opinião pública24. Revoltosos, quando noticiados, eram sob pesadas

caricaturas.Asrepressões,pormaisviolentasquefossem,envolvessemdecapitaçõese

até o (pouco noticiado) uso de aviaçãomilitar contra seus próprios cidadãos25, eram

celebradascomotriunfosdoprogresso.

Por tudo isso, compreende-se porque Canudos se tornou um refúgio para os

pobressertanejos,atraindogentedeváriosestadosvizinhosalémdaBahia.Funcionou

semmaioresincidentesaté1896.

Os conflitos começam quando a comunidade tenta fazer uma compra de

madeiranacidadedeJuazeiro/BA,paraerguerumaigreja.Ovalorteriasidopago,masa

mercadorianãofoientregue.ComeçaramacorrerboatosdequeCanudosviriatomara

madeiraàforça,levandoojuizlocalaoficiarjuntoaoExércitoumaexpediçãomilitarao

arraial, que estaria ameaçando amanutenção da ordem. A dar ouvidos a Euclides da

Cunha,asrazõesdo juizeramnada“republicanas”.Odistratonamadeira foi tramado

porele,paragerarumareaçãodoscanudensesquejustificasseaexpediçãomilitar.Isso

tudo como vingança, por ter sido coagido a deixar a comarca de Bom Conselho/BA

depoisdeumainvasãodecanudensesemprotestoviolentocontraocasamentocivil26.

24 O próprio Euclides era correspondente de um jornal e cita várias reportagens ao longo de sua obra.Registraasrelaçõesentreosjornaiseaopiniãopúblicaduranteacampanha,desdereportagensmoldandoaopiniãopúblicacontraCanudos(CUNHA,Euclidesda.Ossertões:campanhadecanudos.SãoPaulo:AbrilCultural, 1979, p. 298 e 301), até o empastelamento de jornaismonarquistas depois da derrota de umaexpedição(p.119).Paraumconsagrado“corpusdasreportagenssobreaguerradeCanudos”,subdivididasem galhofeiras, sensacionalistas e ponderadas, veja-se: GALVÃO,Walnice Nogueira.No calor da hora: aguerradecanudosnosjornais,4ªexpedição.2.ed.SãoPaulo:Ática,1977.25CasodocontroversomassacredeCaldeirãodaSantaCruzdoDesertoem1937.FACÓ,Rui.Cangaceirosefanáticos:gêneseelutas.RiodeJaneiro:CivilizaçãoBrasileira,1963.p.192.26CUNHA,Euclidesda.Ossertões:campanhadecanudos.SãoPaulo:AbrilCultural,1979.p.189.

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Aexpediçãomilitarfoiderrotadaaindalongedoarraial,emUauá/BA,quandoo

quepareciaumaprocissãopacíficadecanudensesderepenteatacouossoldadoscom

paus,pedras,foiceseenxadas.Algunsromeirosselançavamsobreossoldadoscomas

mãos nuas, levando boa parte destes a fugir ao cenário de horror abandonando as

armas.

Foiorganizadaumasegundaexpedição,agoracomseiscentoshomens.Contudo,

encontraramresistênciaorganizada,fortalecidacomalgumasarmasabandonadaspelos

soldadosdaprimeiraexpedição.FoiderrotadajáàsportasdeBeloMonte.Aviolênciae

ohorroraumentavam.Cadáveresdesoldadosforampenduradosàbeiradaestrada.

Então, uma intervenção federal é aprovada. No comando, o Coronel Moreira

César (conhecido como“o corta-cabeças”), heróidaguerranoParaguai e responsável

pela repressão de movimentos insurgentes no sul do Brasil. Era o nome que os

republicanosditatoriaisesperavam fortalecerparaapresidência,ora sucedidaporum

civil,PrudentedeMorais,queestavadoenteeeravistocomofracoporcertossetores

republicanos que temiam a restauração monarquista. Canudos devia ser feita de

exemplo. O presidente ordenou sua destruição total. Os fanáticos deviam ser

massacrados.OConselheirodeveriasertrazidoenjauladoparaaCapital,expostocomo

maltrapilho fanático para ridicularizar a causa monarquista. Cogitava-se até que a

organizaçãodoarraialnãopoderiaserobradestessimplórios.

Parafugirdestasleituras,éimportanteatentarparaorelatohistóricofeitopor

EuclidesdaCunha,engenheirodoexércitoqueserviutambémcomocorrespondentede

guerra na ocasião. Partiu do Rio de Janeiro esperando achar em Canudos um reduto

monarquista. Acreditava que seu apego a essas formas tradicionais eram fruto de

fanatismo religioso e ignorância, de uma raça fraca, submissa que se degenerou pela

miscigenaçãoemiséria.

Ao chegar em Canudos, ele muda totalmente de ideia, e o registro de seu

espantoterminagerandoOsSertões:campanhadecanudos27,publicadoem1901,uma

dasobras-primasda literaturabrasileira.Agora se convencedequeCanudosnão tem

nadaaver comapolarizaçãoentremonarquiae repúblicavividanacapital. Eraoutra

coisa, impressionante, inominável. Até sua tese racista vira de cabeça para baixo: “o

27CUNHA,Euclidesda.Ossertões:campanhadecanudos.SãoPaulo:AbrilCultural,1979.

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sertanejo é, antes de tudo, um forte”, dirá28. E o fanatismo lhe aparece também na

obsessãomodernizadoradosrepublicanos.

Naverdade,Canudosatraíaaantipatiatantodosrepublicanosprogressistasda

Capital quanto dos monarquistas locais. Os monarquistas baianos lamentavam o

episódio, por ter dado a justificativa para uma intervenção federal a que tanto se

opuseram. O Barão de Jeremoabo, cujo título nobiliárquico era ameaçado pela

República, torna-se um dos “coiteiros” do Exército nas suas expedições, para dar

exemplodecivismo.Osdemaiscoronéisfazemomesmo.Lamentamafugadamão-de-

obra para o arraial. Trabalhadores vão embora levando colheitas e criações para se

juntaraCanudos.Algumasfazendassãosaqueadaseincendiadaspara“purificação”dos

pecados.

A terceira expedição militar a Canudos foi organizada com guias e coiteiros

locais, canhões e fuzis importados e soldados vindos de quase todos os estados da

federação. Seus uniformes de pano grosso e muitos botões transitando na caatinga

simbolizambemainadequaçãodamáquinaestatalnaquelesrincões29.Canudosmontou

seu pequeno exército, chamado de guarda-católica. Liderada por cangaceiros, trazia

tambémmulheres e crianças. Além das armas, usavam balestras rudimentares feitas

originalmenteparacaçarpassarinhos.

A expedição foi um desastre administrativo. Os soldados se viram famintos,

sedentos,semmunição,exaustos,evitimadosporestratégiasmilitaresarrogantes.Foi

derrotada,inclusivecombaixasdosseuscomandantes.

Uma quarte expedição foimontada, agora com 6 brigadasmilitares, divididas

emduascolunas.Noprimeiroataque,umadascolunasésalvapelaoutra.Maisdemil

baixas. Da imprudência, passa-se à covardia. Faz-se um cerco, atirando de longe nas

mulheres do arraial que iam buscar água no rio e bombardeando-o dia e noite com

canhões. Põe-se abaixo inclusive a igreja. Depois, jogava-se dinamite nas trincheiras.

Executadoohinonacionalehasteadaabandeiraàssuasportas,Canudosfoidestruídae

milharesdesobreviventesforamdegolados.

28Emboranãodeixedeserracista,mesmoemsuastentativasdeelogioaossertanejos.CUNHA,Euclidesda.Ossertões:campanhadecanudos.SãoPaulo:AbrilCultural,1979.p.89-103.29MetáforasugeridaporLenioLuizStreckem:STRECK,LenioLuiz;ROSENFIELD,Denis;PAIXÃO,Cristiano.Direito&Literatura:Aguerradofimdomundo,doescritorperuanoMarioVargasLlosa.SãoLeopoldo:TVUnisinos,27jun.2014.ProgramadeTV.(27min).Disponívelem:<https://vimeo.com/32530111>.Acessoem:26jun2016.

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Oextermínionãoalavancoua transformação;apenasmanteveas coisas como

estavam. A monarquia não voltaria, mas o Estado moderno também não se

estabeleceria por aquelas bandas. Os Barões e Coronéis seguiriam, sem títulos

nobiliárquicos ou patentes compradas, traduzidos democraticamente no voto de

cabresto. Segue o latifúndio e trabalho análogo à escravidão. Na verdade, tudo foi

achandoseusucedâneo.Outrascomunasmenoressurgiriam,masseriamrapidamente

reprimidasporforçaslocais,espelhadasnoexemplodeCanudos.

Pouco depois de Canudos, cresceria a alternativa do banditismo social,

chegandoaoaugedocangaçocomLampiãoeoutrostantos.Algunsseriamatéaliciados

pelo Estado para combater a Coluna Prestes. Outras vezes, sobre movimentações

parecidasaCanudosviriaentãoapechadecomunista,oinimigoexternodavezdepois

domonarquismoinglês.

4.AlgunsproblemascomasleiturasrevolucionáriasdeCanudosatéaqui

Tornou-se comum durante a ditadura brasileira uma releitura revolucionária de

Canudos,queaviacomoumaespéciedeproto-socialismo.Suacomplexidadereligiosa,

culturalesocial,serianaverdadeumamontoadodeelementosacidentaisnarevolução,

ou atémesmomanipulações dos sertanejos pelo Conselheiro, ganhando sua simpatia

paraessefim.Agrandequestãoseria,nofundo,alutadeclasses.

Encantado pela história após a leitura do clássico de Euclides da Cunha, o

escritor peruanoMario Vargas Llosa vem à Bahia realizar pesquisas para escrever um

romancesobreCanudos.FoirecebidoeacompanhadoporRenatoFerraz,antropólogoe

sertanista, além de vários outros intelectuais brasileiros. Andou pelos vários vilarejos

porondeoConselheiropassou,entrevistousobreviventeseseusdescendentes,foiaos

arquivosdogovernonoRiodeJaneiro.

TentarecontarOsSertões,eoresultadofoiapublicaçãoemBarcelona,noano

de1981,deAguerranofimdoMundo.Olivrofoisucessointernacionaldevendaede

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crítica,atraindoosolhosdetodosparaestaepopeiasertaneja.Osprincipaisjornaisdo

mundopublicaramnotasarespeito30.

Á sua época, Euclides esteve às voltas com seu próprio modernismo,

republicanismo, cientificismo e racismo em seu relato. Na revisitação de Llosa

(conhecido pela guinada política à direita), ele se depara com a leitura de esquerda

muito difundida. Para satirizá-la, cria o personagem Galileo Gal, um revolucionário

internacional de passagem pelo Brasil que se sente atraído por Canudos. Escreve a

jornaiseuropeusrevolucionáriosqueestáemcursoalgoextraordinárionaquelelugar,e

tenta de todamaneira se integrar ao “movimento”. Termina criandomais problemas

paratodoseparasimesmodoqueajudandoalguém.ConstantementeGalsequeixada

inaplicabilidade de suas categorias de pensamento para refletir sobre o que acontece

ali. Quase apanha ao tentar se apresentar como vanguarda para aqueles que supõe

serem rebeldes primitivos. Esse vanguardismo parece ser inteiramente diluído no

método geral do livro, que reconstrói os acontecimentos num discurso polifônico31,

dandovozaosváriosatoresenvolvidos.

Contudo,o livrodeLlosa foiduramentecriticadopeloshistoriadoresmarxistas

brasileiros. Edmundo Moniz diz que a literatura não lhe dava liberdades para o que

consideraaadulteraçãodefatoscentraisdahistória,sobretudonaimportânciadadaao

elemento monarquista dos canudenses. Llosa responde ironicamente que a obra

científicadeMoniz[GuerraSocialemCanudos]émaisnovelescadoquesuanovela,com

acaracterizaçãodoConselheirocomoumLênindoSertão32.

30GUIMARÃES LEITE, Leonardo.A guerrado fimdomundo chegaaoBrasil: interpretaçõesedisputasdememória em torno de Antônio Conselheiro e Canudos. In: III encontro baiano de estudos em Cultura.Disponível em: http://www3.ufrb.edu.br/ebecult/wp-content/uploads/2012/04/A-guerra-do-fim-do-mundo-chega-a-o-Brasil-interpretac%C3%83%C3%9Fo%C3%83%C3%89es-e-disputas-dememo%C3%83%C3%85ria-em-torno-de-Anto%C3%83%C3%87nio-Conselheiro-e-Canudos.pdf>. Acessoem:27jul2016.31GUIMARÃES LEITE, Leonardo.A guerrado fimdomundo chegaaoBrasil: interpretaçõesedisputasdememória em torno de Antônio Conselheiro e Canudos. In: III encontro baiano de estudos em Cultura.Disponível em: http://www3.ufrb.edu.br/ebecult/wp-content/uploads/2012/04/A-guerra-do-fim-do-mundo-chega-a-o-Brasil-interpretac%C3%83%C3%9Fo%C3%83%C3%89es-e-disputas-dememo%C3%83%C3%85ria-em-torno-de-Anto%C3%83%C3%87nio-Conselheiro-e-Canudos.pdf>. Acessoem:27jul2016.32GUIMARÃES LEITE, Leonardo.A guerrado fimdomundo chegaaoBrasil: interpretaçõesedisputasdememória em torno de Antônio Conselheiro e Canudos. In: III encontro baiano de estudos em Cultura.Disponível em: http://www3.ufrb.edu.br/ebecult/wp-content/uploads/2012/04/A-guerra-do-fim-do-mundo-chega-a-o-Brasil-interpretac%C3%83%C3%9Fo%C3%83%C3%89es-e-disputas-dememo%C3%83%C3%85ria-em-torno-de-Anto%C3%83%C3%87nio-Conselheiro-e-Canudos.pdf>. Acessoem:27jul2016.TentandosituarCanudosnalinhadasutopias(proto)socialistas,EdmundoMonizchegariaadizer: “[...] queAntônio Conselheiro teria buscadonaUtopia (1516?) de ThomasMoreomodelo teóricopara seuprojeto social. Essa afirmativapolêmica tem suscitadoa indignaçãodealgunshistoriadores. Em

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Semadentrarnoméritoartístico/historiográficodadiscussão,apolêmicaserve

paraalertarsobreleiturassociaisquereduzemossentidosemjogoparaadequá-laaum

esquema teórico prévio. Assim como os contemporâneos de Euclides leram Canudos

como um atraso a ser vencido pelamodernização republicana, também soa redutora

suareleituraproto-socialista.

Mesmoa tesemais sofisticadadequeCanudos teria sidodesarmadaporuma

“revolução democrática burguesa”, que realizasse a reforma agrária, é questionável.

Talvezacriaçãodeumaclassedepequenosproprietáriosinterferissenumdosprincipais

fatoresda formaçãodeCanudos.Talveznão.Emtodocaso, issonãoexplicao tipode

integração desenvolvido em Canudos, que não era o de pequenos proprietários,

tampoucoeraumsocialismo.

Talvez estivesse se expressando em Canudos justamente uma sociabilidade

alternativaàproprietária,quenãopoderiaserredirecionadaparaessearranjodaFrança

do século XVIII. Talvez, ainda, isso não representasse um evento da escatologia

comunista, uma necessidade histórica em curso, mas apenas uma possibilidade

observável em outros lugares emomentos da história, emuito observável na cultura

sertaneja, onde até hoje são fortes as criações compartilhadas, o compáscuo e etc33.

ComoobservaPauloEmílioMatosMartins:

Resumindo, omodelo de trabalho cooperativo de ajudamútua, origináriodomeioruralepresente,comovimos,nostrêsvetoresdeformaçãoculturaldenossopovo,sincretizaria-se,nossertõesbrasileiros,nasformasregionaisdo adjunto ou adjutório cearense (experiência social do, também trágico,episódiodoCaldeirão),nasarreliasdaParaíba,nasfaxinasdoRioGrandedoNorte,nas tapagens (fechamentodeumbraçodorioparapescacoletiva),nas juntaspernambucanas,nobatalhãoouadjunto,na traiçãoou rouboenosbois-roubados(essasduasúltimasdenominaçõesdevidasaosentidode

umadasentrevistasqueaqueleprofessor(hojefalecido)concedeuaestepesquisador,quandointerpeladosobreoassunto,Monizdestacouque,aotempodeAntônioConselheiro,ograndeclássicodopensamentoutópico, escrito originalmente em latim, já fora traduzido para o francês; que o beato-peregrino haviaestudado esses dois idiomas na sua infância em Quixeramobim; que, tendo sido o autor da Utopiacanonizado, era muito provável que a mesma fosse acessível ao pregador sertanejo, entre os textossagradosexistentesnasprelaziasporondeperegrinoue, finalmente,queodemiurgodo sertão,emsuasprédicas,refere-se,textualmente,aopensadoringlês,aoincluí-loentreos"varõessábioseprudentes",cujodestino "era encher as religiões, povoar os desertos, deixar as riquezas e desprezar o mundo" (MONIZ,1987, p.100)” MARTINS, Paulo Emílio Matos. Canudos: organização, poder e o processo deinstitucionalizaçãodeummodelodegovernançacomunitária.Cad.EBAPE.BR,RiodeJaneiro,v.5,n.4,p.5, Dec. 2007 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-39512007000400005&lng=en&nrm=iso>.Acessoem:29abr.2017.33“Estasolidariedadedeesforçosevidencia-semelhornavaquejada, trabalhoconsistindoessencialmentenoreunir,ediscriminardepois,osgadosdediferentesfazendasconvizinhasqueporalivivememcomum,demistura,emumcompáscuoúnicoeenorme,semcercasesemvalos”.CUNHA,Euclidesda.Ossertões:campanhadecanudos.SãoPaulo:AbrilCultural,1979.p.103.

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surpresa que esses modelos de ajuda mútua assumem), largamenteempregados na região da caatinga, conforme Caldeira (1956). Em outraspalavras, são esses os traços ideológicos que processaram a semiose doreferenteestudonacomunidadeconselheirista,aqualsedesenvolveriacoma prática disseminada domodelomutualista de produção, o que equivaledizer: Canudos foi um grande mutirão e Antônio Conselheiro seuorganizadoregestor34.

Porsinal,jáhaviaváriascomunidadesdessetipobemantesdeCanudosedepois

dela,comoaPedradoReino,noanode1830,emSãoJosédoBelmonte/PEeCaldeirão

daSantaCruzdoDeserto,noanode1937,noCrato/CE. Istodesprendeessaformade

vidadadefesadomonarquismo.Pelomesmomotivo,adesprendedeserapenasuma

contraposiçãoaorepublicanismo,quenãoeraumproblemaàépoca.

Contudo, respeitadas todas essas particularidades, chama atenção aqui uma

característica, sufocada por muitos esquemas teóricos, mas que o comum pode

relacionar com outras experiências: em Canudos não havia lógica proprietária estrita,

nãohaviaumacomunhãodetudootempotodo,sóquehaviaumpôremcomum,uma

atividadecontínuadecoprodução (paradizerno léxicodeDardoteLaval).O trabalho

tinha mais a ver com as relações vivas entre as pessoas, com a interação de suas

capacidadesenecessidades,doquecomproduçãodemais-valoreacumulação.Havia

tambémumacarnavalizaçãodomundo(paradizercomBakthin35,viaNegrieHardt),em

que osmarginalizados assumiam as funções de prestígio, ex-inimigos se ajudavam, o

sertãoviravamareomarviravasertão(CunhaeLllosanosfazemsaberdetudoissoao

contaraarregimentaçãodoscanudenses,sobretudoporpersonagenscomooBeatinho,

oLeãodeNatuba,asmulheresdohospital,oscangaceirosda“GuardaCatólica”eetc...).

Nãosepodeignorarquetodaessaarticulaçãomultitudinárianãoseprocessade

umamaneiraorgânica,elaéconstitutivamentecheiadecontradiçõesviolentas,deuma

verdadeira fissão das subjetividades e seus afetos. Havia violências absurdas dos

34MARTINS, Paulo EmílioMatos. Canudos: organização, poder eoprocessode institucionalizaçãodeummodelo de governança comunitária. Cad. EBAPE.BR, Rio de Janeiro , v. 5, n. 4, p. 05, Dec. 2007 .Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-39512007000400005&lng=en&nrm=iso>.Acessoem:29abr.2017.35Alémdessa associaçãoque fazemos viaNegri eHardt (que se apropriamda carnavalizaçãodeMikhailBakhtinemNEGRI,Antonio;HARDT,Michael.Multidão:guerraedemocracianaeradoImpério.2.ed.Riode Janeiro: Record, 2012, p. 273), vale conferir a aproximação direta entre o livro de Vargas LLosa e acarnavalizaçãodeBakhtin: BARBOSADEOLIVEIRA,Daniela. AGuerra do FimdoMundodeMarioVargasLlosaapresentaaCarnavalizaçãodeCanudos.In:AnaisdoXXVISimpósioNacionaldeHistória–ANPUH.SãoPaulo, julho 2011. Disponível em:http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300888303_ARQUIVO_TextoAnpu h.pdf. Acesso em:01mai2017.

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canudenses com os outros e entre si36. Contudo, uma pergunta resiste: por que

Canudos?Porqueassim?Mesmocomtodosostranstornos,acomunidadesemantinha

unida,apartirdedentro,deseuspróprioslaçosbiopolíticos,comascaracterísticasque

levantamos.Porquê?

Sobtaisadvertências,exploremosastrilhasabertas.

5.PensandoCanudosapartirdocomum,comNegrieCocco

UmadiferençaqueoreferencialdosCommonStudiestemaoferecerparaaanálisedo

caso é o anti-dogmatismo, umolhar para a imanência contínuadas relações sociais e

paraaconstruçãodesentidosapartirdebaixo.

Nesse sentido, Antonio Negri e Giuseppe Cocco referem-se a Canudos,

rapidamente mas com grande importância, em Glob(Al): biopoder e lutas em uma

AméricaLatinaGlobalizada37.

Constatamavontade,àépoca,deseforjarumpovoparaoBrasil38.Euclidesda

Cunha o busca longamente, e Os Sertões mostra sua reviravolta, das teses da

degeneração dos sertanejos à celebração de sua força e resistência. Aqui é preciso

romper com qualquer condescendência, para observar como o racismo colonial, o

científico-positivista,onazifascista,eatéo“mitodademocraciaracial”foramachando

lugar numa certa gestão racial, namedidanecessária àmanutençãodo (bio)Poder da

36 Segundo Euclides da Cunha, a justiça lá era administrada violentamente pelos “valentões” que sejuntavamaoarraial.Haviaumacadeia,punindo-secompenasgravesaquelesquefaltassemàsrezasouqueingerissem bebida alcóolica. Além disso, relata: “Em dilatado raio em torno de Canudos, talavam-sefazendas,saqueavam-selugarejos,conquistavam-secidades!NoBomConselho,umahordaatrevida,depoisdeseapossardavila,pô-laemestadodesítio,dispersouasautoridades,acomeçarpelojuizdacomarcae,comoentreatohilariantenarazziaescandalosa,torturouoescrivãodoscasamentosqueseviuempalposdearanhaspara impedirqueoscrentes sarcásticos lheabrissem, tosquiando-o,umacoroa larga,que lhejustificasse o invadir as atribuições sagradas do vigário” (CUNHA, Euclides da.Os sertões: campanha decanudos.SãoPaulo:AbrilCultural,1979.162-164).TambémreferindoalgunsproblemassociaisdeCanudos:MARTINS, Paulo Emílio Matos. Canudos: organização, poder e o processo de institucionalização de ummodelo de governança comunitária. Cad. EBAPE.BR, Rio de Janeiro , v. 5, n. 4, p. 8-9, Dec. 2007 .Disponível em:<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S167939512007000400005&lng=en&nrm=iso>.Acessoem:29abr.2017.37 NEGRI, Antonio; COCCO, Giuseppe. Glob(Al): biopoder e lutas em uma América Latina Globalizada.TraduçãodeElianaAguiar.RiodeJaneiro:Record,2005.38 NEGRI, Antonio; COCCO, Giuseppe. Glob(Al): biopoder e lutas em uma América Latina Globalizada.TraduçãodeElianaAguiar.RiodeJaneiro:Record,2005.p.146-147.

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época.Arecepçãodomestiçotemumefeitodomesticadordeumanovaclassecidadã

paraaRepública.

De sua parte, Negri e Hardt tentam celebrar a mestiçagem como potência

constituinte,comoproduçãobiopolíticadesujeitosemeternarecomposiçãoidentitária.

Desseesforço,assimcomodacontinuidadedasrevoltasdosescravose,emseguida e sobretudo, da mestiçagem (não mais simples mestiçagem dacarne,masaquelaqueseconstruiuatravésdotrabalho,atravésdamisériaeda pobreza combatidas lado a lado), surge a constituição de um novoterrenoderecomposiçãoapartirdebaixoedeumapossibilidadematerialdedemocracia39.

E,poraí,chegamnumdiagnósticosurpreendente:“Canudosvenceu”!

NaAméricaLatina,comoemalgunsoutrospaísesdoTerceiroMundo,existeuma situação que permite que uma espécie de antimodernidade seexpresse sob formas que a pós-modernidade pode acolher comoperspectiva eficaz – bem, este é o tema da libertação dos escravos e dosservos. A antimodernidade que o pós-moderno pode recuperar comoprogramaéaquelada“marchada liberdade”,da libertaçãodosescravosedosservos.A“comuna”deCanudos,ordenada(exterminada)emnomedoprogressodurantea“guerradofimdomundo”,reaparecehojeemtodasuapotente antecipação como alternativa irredutível à modernidade. Dentrodelaencontra-seumaoutratensão,quesepodedefinircomocosmopolita:elaatravessaomundoemquevivemosenosensinaaurgênciadelibertartodos aqueles que o biopoder restringe nas correntes de seu comando.Como dissemos, na história brasileira, há um magnífico paradigma dessedomínio continental europeu, continuado e eficientemente transfiguradoporgovernosautóctoneseburguesesherdadosdoséculoXIX.Eleconsisteemmostrar-noscomoapotênciadoêxododeCanudosvenceu,nofinaldecontas,osprojetosdocolonialismobranco(fosseeledeorigemeuropeiaoubrasileira). A potência da mestiçagem biopolítica enfrenta a gestão dosfluxosporpartedobiopoder.DiferentedetudoqueaconteceunaAméricado Norte, amultidão que troca entre a África e o Novo Continente criousobrevidanaderrota–e,mantendoforteoespíritoderebelião,constituiaforma viva do desenvolvimento. Assim, um primeiro novo elementoontológicoestánabasedarespiraçãopolíticadamultidãolatino-americanae configura-se na construção de umamestiçagempotente que liberta suaascendência (de um ponto de vista histórico) de qualquer condiçãoeurocêntrica,burguesaecapitalista[...]40.

Éimportantenãonosperdermosnaestilização.Outrasvezesjásedeclarouque

Canudos venceu, uma “vitória moral”, por combater um adversário muito mais

poderoso,por resistiratéo fim,atéasuacompletadestruição.CocoeNegriavançam

39 NEGRI, Antonio; COCCO, Giuseppe. Glob(Al): biopoder e lutas em uma América Latina Globalizada.TraduçãodeElianaAguiar.RiodeJaneiro:Record,2005.p.201.40 NEGRI, Antonio; COCCO, Giuseppe. Glob(Al): biopoder e lutas em uma América Latina Globalizada.TraduçãodeElianaAguiar.RiodeJaneiro:Record,2005.p.199-200.

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em outro sentido: Canudosmostra a própria ontologia da resistência. Ela não é só o

vaziodeautoridade,afaltadarevoluçãoburguesaoucomunista,acarestia;qualificada

no“aquieagora”,elatrazsuaprópriariquezaepositividade,quefazsentirseusefeitos

atémesmonanarrativaoficialdovencedor.

Mesmo com a repressão militar, Canudos conformou biopoliticamente a

República. A mestiçagem da carne e das instituições se impôs como condição de

dominação,eanarrativadoBrasiloficialtevequeseserecompormuitoparaencobrir

essasmanifestações.

Podemos fazer carga nessa leitura com a perspectiva mais “institucional” de

Dardot-Laval.Nota-seaquiaarticulaçãodeumadeterminada formacomunitária,uma

cooperaçãoprodutivaenormativa.

Outrospensadores jávêmchamandoatençãoparao fenômenoorganizacional

diferenciado que foi Canudos, de certamaneira, convergindo como que trabalhamos

aqui.NodiagnósticodePauloEmílioMatosMartins,talsociedadepareciaconhecer...

[...] os três níveis clássicos de estruturação do poder dos sistemas sociaiscomplexos, isto é, o estratégico ou institucional, o tático ou gerencial e ooperacional,e,nasuadimensãodepartamental,umjáconsiderávelgraudeespecialização/funcionalizaçãonadistribuiçãodastarefasdegestãodavidacomunitária”41.

Martins destaca a “práxis do modelo produtivo mutualista” e o “sistema

colegiado-participativo de processo decisório” de Canudos. Para conciliar essas

características com sua sustentação nos mesmos laços de compadrio dos coronéis,

cunhaaexpressão“coronelismopeloavesso”.

Talvez o Comum venha agregar emnível político-filosófico a esse diagnóstico,

colocando experiências particulares como essa num sentido mais amplo de práxis

instituintes—sem,contudo,achatá-las sobopesodealgumadogmáticadeesquerda

oudedireita.

41MARTINS, Paulo EmílioMatos. Canudos: organização, poder eoprocessode institucionalizaçãodeummodelo de governança comunitária. Cad. EBAPE.BR, Rio de Janeiro , v. 5, n. 4, p. 12, Dec. 2007 .Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-39512007000400005&lng=en&nrm=iso>.Acessoem:29abr.2017.

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6. Repercussões institucionais: pensando a crise do estado brasileiro a partir de

Canudos

Em A guerra do fim do mundo, de Llosa, o caráter autoritário da modernização do

Estado brasileiro é muito bem descrito pelo escritor peruano, ao demonstrar alguns

traços marcantes de uma das maiores tragédias ocorridas após a proclamação da

República, que foi a guerra de Canudos. Ummovimentomal compreendido, formado

por pessoas que viviamàmargemda sociedade e que sofriam cotidianamente coma

secaecomaviolência,oradopolicial(osvolantes),oradobanditismolocal(ocangaçoe

os jagunços a serviço do latifúndio), é duramente sufocado pelo Exército brasileiro. A

partirdessatragédia,oromanceretrataalgunselementosfundamentaisnaorganização

da jovem República e na implementação de um projeto autoritário de construção da

nação, percebidos no idealismo militar do Coronel Moreira Cesar e, também, na

presença do poder tradicional e personalista de personagens como o “Barão de

Canabrava”(personagemdeVargasLlosainspiradonoBarãodeJeremoabo42),líderdos

monarquistas, e de Epaminondas Gonçalves, principal representante do partido

republicano.Senoprimeirocasotemosumrepresentantedoprojetopositivistadeuma

ditaduramilitar–tantoqueMoreiraCesarfoiumgrandealiadodeFlorianoPeixoto–,os

dois últimos personagens representam o velho estilo com que as elites brasileiras

sempre procuram sequestrar a agenda política, ao tratar os assuntos públicos como

questões pertencentes à esfera doméstica. Pois foi nesse sentido que o Barão e

Epaminondas Gonçalves, antigos adversários políticos, organizaram a “nova” ordem

políticanaBahiaduranteo conflito comCanudos.Numdiálogo imaginadoporVargas

Llosa,diriaoBarão,“[...]Éhoradefazeraspazes,Epaminondas.Esqueçaasdivergências

42“OromancedeLlosapreservaoesquematemporalpresenteemOssertões.OssucessosdasexpediçõesmilitaressãonarradoscomcertafidelidadeaorelatodeEuclides.Éainclusãodepersonagensfictícioseatroca de nomes de alguns personagens históricos – como o barão de Canabrava, protótipo do barão deJeremoabo–quedemonstramaoperaçãodedesconstruçãodolivrovingador[...]”NOVAISFILHO,JoaquimAntônio.A reconstruçãodamemóriadecanudosnoromancerealista-fantástico. In:Anaisdo IVEncontroEstadual de História - ANPUH-BA História: Sujeitos, Saberes e Práticas. Vitória da Conquista, 2008. p. 3.Disponível em:http://www.uesb.br/anpuhba/anais_eletronicos/Joaquim%20Antonio%20de%20Novais%20Filho.pdf.Acessoem:01mai2015.

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jacobinas [...]. Assuma o governo e defendamos juntos, nesta hecatombe, a ordem

civil”43.

Apredominânciadessemodelopersonalistaetradicionaldedominaçãopolítica,

somadocomaatividadeconstantedoExércitonosassuntosenasdisputaspolíticas–já

que, após o fim do Império, esta instituição foi elevada a uma espécie de poder

moderadorentreospartidos–,explicamosfundamentosautoritáriosdaconstruçãodo

Estadonacionalbrasileiro.Suaorganizaçãoestábaseadanamarginalizaçãoerepressão

de setores significativos da sociedade, que sempre são impedidos de participarem

efetivamente dos debates e das discussões que influenciam as principais decisões

políticas. É uma maneira de excluir a sociedade civil de qualquer participação mais

destacada dentro do sistema político. Assim, essa concepção autoritária de

modernização do Estado segue omesmo sentido do que foi propugnado por autores

importantesdopensamentopolíticobrasileiro, como sãoos casosdeOliveiraVianae

Francisco Campos. Ambos depositavam toda sua confiança numa espécie de Estado

demiurgoque,aosesobreporàsociedade,seriaoúnicoresponsávelpelaconstruçãoda

nação.Ouseja,arecepçãodepadrõesmaismodernosdeorganizaçãosocial,presentes

em países pertencentes ao centro do capitalismo, não deveria vir acompanhada de

reformasdemocráticas.

Essa situação ajuda a compreender como se dá a construção da cidadania no

Brasil. O caráter estatalista da afirmação histórica dos direitos fundamentais, bem

observadoporJoséMurilodeCarvalho,fazcomqueelasejapercebidamuitomaiscomo

concessãodoEstado,doquepropriamentecomoumaconquistapolíticaalcançadapor

meiodaslutassociais44.Nessaperspectiva,paraanalisaraexperiênciabrasileiraMurilo

deCarvalho invertea leituraqueT.H.Marshall fezsobreaafirmaçãodacidadaniana

Inglaterra. De acordo com este autor, a afirmação dos direitos e a construção da

cidadania no contexto inglês teria seguido o seguinte sentido: a) no século XVIII

primeiramente teria absorvido os direitos civis, fruto das revoluções liberais contra o

despotismo monárquico, já que nesse momento setores oriundos da burguesia

buscavamumamaiorproteçãoemrelaçãoàsintervençõesindevidasdoLeviatãnavida

dosindivíduos;b)maistarde,noséculoXIX,teriaassimiladoosdireitospolíticos,apartir 43VARGASLLOSA,Mario.Aguerranofimdomundo.TraduçãodePaulinaWachAriRoitiman.RiodeJaneiro:Objetiva,2010.p.378.44 CARVALHO, José Murilo. Cidadania no Brasil. O longo Caminho. 3ª ed. Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira,2002.

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do fortalecimento domovimento sindical e da ampliação da participação política dos

trabalhadorespormeiodoPartidoTrabalhista;c)porfim,jánoséculoXX,aampliação

daparticipaçãonoprocessopolíticofezcomqueostrabalhadoresinglesesalcançassem

o reconhecimento dos direitos sociais45. Assim, a estrutura oferecida por Marshall

apresenta a cidadania a partir da existência simultânea desses três tipos de direitos,

que,nocaso, correspondemrespectivamenteà limitaçãodopoderpolíticoeàdefesa

dosdireitosindividuais;àparticipaçãodaspessoasnaordempolíticadacomunidade;e

àparticipaçãodoconjuntodacomunidadenariquezaproduzidapelamesma.

Ao se apoiar no modelo introduzido por Marshall, a análise de Murilo de

Carvalho joga luz na problemática construção da cidadania emumpaísmarcado pela

modernizaçãoautoritária.Deacordocomele,oBrasilprimeiramenteteriarecepcionado

alguns direitos sociais emplenaDitaduraVargas, como foi o caso do reconhecimento

dos direitos trabalhistas; depois, o surgimento dos direitos políticos, em momentos

marcados por grave instabilidade institucional, fez com que a participação política

ficassemarcadaporumgravedéficitdemocrático;porfim,adificuldadeemfazercom

queosdireitos civis alcancemmaioreficáciaperanteoEstado sempre foiumenorme

problema para a sociedade brasileira, principalmente para os setores marginalizados

quesofremcomaviolênciapolicialemseucotidiano46.Certamenteissotemdificultado

a construção da cidadania enquanto mecanismo de inclusão social do conjunto da

comunidadeefavorecidoapresençadesubintegradosesobreintegradosnasociedade

brasileira47.

Isso corrobora a análise que Florestan Fernandes faz sobre a ausência de um

caráterdemocráticonarevoluçãoburguesabrasileira,que,apósrompercomoestatuto

colonial, não consegue superardiversos aspectospresentesnadominação senhorial e

acaba por gerar ummodelo dependente de desenvolvimento capitalista48. De acordo

com ele, o peso da escravidão e do poder exercido pela casa-grande atravessa o

processo de independência e, por meio de novas roupagens, não menos violentas e

segregacionistas que aquelas que estavam presentes no Brasil colônia, continuam a

45MARSHALL,ThomasHumphrey.Cidadania,classesocialestatus.RiodeJaneiro:Zahar,1967.46 CARVALHO, José Murilo. Cidadania no Brasil. O longo Caminho. 3ª ed. Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira,2002.47NEVES,Marcelo.EntreTêmiseLeviatã:umarelaçãodifícil.2.ed.SãoPaulo:MartinsFontes,2008.48FERNANDES,Florestan;MARTINS,JosédeSouza.ArevoluçãoburguesanoBrasil:ensaiodeinterpretaçãosociológica.5.ed.SãoPaulo:Globo,2006.

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deixar de fora uma camada significativa da população brasileira, formada

majoritariamentepornegrosepobresquenãotêmacessoaosdireitosdecidadania.

A permanência de formas tradicionais de dominação numa ordem social que,

emtese,deveriarepresentarummomentoderupturacomaestruturapolíticaanterior,

também é apresentado por outros nomes do pensamento social brasileiro, como é o

casodeRaymundoFaoro,emseuOsdonosdopoder49.Oseulongoensaio,quecomeça

na Revolução de Avis, em Portugal, e depois atravessa todo o período colonial e o

Império,atéchegaràRepúblicaeterminarem1930,naditaduraVargas,éumateseque

demonstraa longapermanênciadeumadominação tradicionalnoBrasil.Pormeiode

umestamentopatrimonialistaquesecolocaacimadasclassessociaisede instituições

políticas instrumentalizadas por pessoas que se arrogam na condição de donos do

poder.Ouseja,osassuntosdoEstadosãovistoscomoquestõespertencentesàesfera

privada,causandoadeturpaçãodaordemconstitucional.Nessesentido,ainterpretação

de Faoro toma como traço dominante da história do Brasil a tutela autoritária da

sociedade pelo Estado. Dessa forma, o Estado brasileiro é visto comouma instituição

política dominadapor umestamentopatrimonialista, capaz de se amoldar a todos os

momentosde transiçãoeperpetuarumadominaçãoondeoexercíciodopodernãoé

consideradocomoumafunçãopública,massimplesmentecomoobjetodeapropriação

porinteressesmeramenteprivados.

Nesse sentido, depois da incursão por Canudos devemos fazer o caminho de

volta e nos perguntar o que o arraial baiano tem a agregar às discussões

contemporâneassobreacrisedoEstado.Sintetizandoaspreocupaçõescomestafigura,

notempoenoespaço,BolzandeMoraisnoslembra:

[...] esta instituição jurídico-política (o Estado) tem como uma de suasreferências a história. É uma instituição "histórica". Tem origem, umdesenrolar e...um fim(?), sem que isso possa, por óbvio, ser entendidomaniqueisticamente ou que se esteja, aqui, adotando uma perspectiva dahistória como um desenrolar “evolutivo” e sequencial de fatos eacontecimentos.Oquesequerdemarcarcomissoéocaráter“nãonatural”desta instituição, o seu sentido instrumental e, correlatamente,contingencial.Há,também,queseterpresenteque,deoutro lado,estaé,também,umainstituição“geográfica”,sejaporsuasorigens,oquenoslevaa ter presente seu fator colonial(ista), seja por sua pretensão àuniversalidade, seja, por fim, à sua demarcação geográfica, comoterritorialidadeoquetambémservecomodelimitadordapotênciaestatal–

49 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 5. ed. São Paulo:BibliotecaAzul,2012.

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soberania -, tanto quanto à sua superioridade interna, quanto na suaigualdade externa. Ou seja, havemos de reconhecer que o Estado nãoestevesempreno“entrenós”,sequerestápresenteemtodosos“recantos”do planeta Terra, apesar do “sucesso” e da força atrativa que estainstituiçãocarregaconsigo50.

MascomopensarnessaformadevidacomunitáriadeCanudosnumcontextode

complexidadeeglobalização?

NosexemplosdeDardoteLavalsobreoComum,hátambémalimitaçãodessas

experiênciasquasede“clã”.Suasoluçãoépensaraarticulaçãolocalsubindoatéonível

de uma federação dos comuns, o que Negri maldiz como “associativismo”51. De sua

parte,NegrieHardtnãosearriscammuitopropositivamentesobreoComum,deixando-

oàexperiênciaconcretamultitudinária.

Contudo, se o associativismo pode despotenciar o Comum, a falta de

incubadoras pode levar à dispersão dessas potências, como se têm visto nos vários

exemploscelebradoscomociclodelutasglobais.

Certamente,Canudosnãodariaumafórmulaprontaparaoquefazerhoje.Na

sua própria época, passava longe de uma sociedade ideal. Mas uma lição que deixa,

tantonaviaDardot-LavalquantonaNegri-Hardt,éanecessidadedeolhardebaixopara

cima,devoltaràsbasesnapráxis instituinte. Issoseguesendoverdadeemsociedades

complexaseglobalizadas.

Mesmo soluções teóricas elegantes e sofisticadas, concebidasnesses cenários,

sãoforçadasaquestionarradicalmenteseuspressupostos.Nessesentido,retomemosa

tragédiadoscommons,paraveracríticaquefazemDardot-Laval.

O século XXI começa marcado por várias crises sociais, sobretudo no que se

refereaoarranjodasinstituições.Aradicalizaçãodasformasmodernasdeconvivênciae

produção,comapotencializaçãodocapitalismopelasnovastecnologias,podecumprir

uma antiga profecia: o esgotamento dos recursos naturais por conta de demandas

geradaspeloprópriosistema.Esta tragédiaanunciada,agrandecrise, jánãopodeser

contornadapelasimplesalternância(oucombinação)entreEstadoeMercado.Nelanão

há mais economia para remediar, mas colapso da própria sociedade. Garret Hardin

pergunta:Qualosentidodeapelarà“consciênciasocial”dosagenteseconômicospara 50BOLZANDEMORAIS, Jose Luis.A importânciade se compreenderoEstadoe suas circunstâncias....Noprelo,2016.51 NEGRI, Antonio. Comum, entre Marx e Proudhon. UniNômade Brasil, 21 jul. 2014. Disponível em:http://uninomade.net/tenda/comum-entre-marx-e-proudhon/.Acessoem:30jul.2016.

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quediminuamoritmoprodutivodiantedaescassezderecursos,quandodelesseespera

justamente a busca individual pelo lucro? Condenaríamos quem não lutasse pelo

máximode“pirão”dianteda“farinhapouca”.Mesmoqueissoacabassecomafarinha

deumavezportodas.

A abordagem de viés econômico aos common studies, na linha de Elianore

Ostrom, veria uma saída criativa: incentivos institucionais aos comportamentos

cooperativos para a preservação desses recursos. A rigor, trata-se de sofisticar as

sançõesestataisjáexistentes,tantonasuaversãopunitivaquantopremial.Ocorreque

isto pode não ser o suficiente para barrar o avanço de determinados agentes

aventureiros. Além de aumentar os custos com fiscalização, a tributação, a

administração pública, e, com mais burocracia, mais desafios democráticos, mais

dificuldadesdeparticipaçãopopular,derepresentaçãopolíticaeetc.Enfim,terminanão

se superando o dilema de Hardin, voltando o desafio da auto-organização de uma

gestão racional coletiva. Apesar de Ostrom romper com os postulados econômicos

neoclássicos, Dardot e Larval a criticam por não chegar a colocar o comum como o

princípiogeraldereorganizaçãodasociedade.Elanãoteriavislumbradoissojustamente

pelo tipode racionalidadeaqueseapega: “segunOstrom, son los indivíduosegoístas

racionaleslosquecreanlosmercados,apelanalEstadooconstruyenloscomunespara

responder mejor a situaciones distintas”52. Poder-se ia dizer que sua gestão racional

coletiva não passa de racionalidades individuais agregadas. Assim, sua opção pela

gestão dos common goods ainda parte de um indivíduo egoísta, que apenas inclui a

possibilidade de ações coordenadas como meio de maximização dos seus próprios

resultados.Alémdisso,“permaneceprisioneradelpostuladosegúnelcuallaformayel

marcodelaproduccióndelosbienesdebemdependerdelascualidadesintrínsecasde

los próprios bienes”53. Haveria os common goods e os não common por natureza.

Costurandoessasduaspontas:trata-sedeumaracionalidademoderna,dependentede

umsujeitoquedominaumobjeto.

AsaídaqueDardot-LarvalvislumbramnãoestariarestritaàTeoriadosJogos,a

um sujeito que apenas inclui outros sujeitos no cálculo. Haveria de se discutir os

próprios pressupostos que transformam a sociedade no Dilema do Prisioneiro: “Lo 52DARDOT,Pierre;LAVAL,Christian.Común:ensayosobrelarevoluciónemelsigloXXI.TraduçãodeAlfonsoDiez.Paris:Gediza,2014.p.177.53DARDOT,Pierre;LAVAL,Christian.Común:ensayosobrelarevoluciónemelsigloXXI.TraduçãodeAlfonsoDiez.Paris:Gediza,2014.p.178.

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comúnno sedecretadesdeelexterior,ni es resultadodeumagregadodedecisiones

individuales tomadas aisladamente, sino que depende em realidade de um processo

socialquetienesulógicaprópria”.

No impulso que recebem de Antonio Negri e Michael Hardt, vai ser

incontornável falar de outra subjetividade política. E de outra relação com as coisas

alémdalógicaproprietária,sejaelapúblicaouprivada.Ou,pelomenos,deumpúblico

que não é estatal e de um privado que não é individual. Essas outras lógicas sociais

teriamsidoencobertaspelasinstituiçõesmodernas,queseachamnaturalizadas,como

se tratassem do único mundo possível. Daí o recurso de Dardot-Larval a desencavar

outrossentidosde“comum”emoutros limiaresepistemológicos, semcairnomitodo

comunismo primitivo, como se houvesse um comum originário, essencial, a ser

resgatado.Houvediferentesarranjosquenãoestequetemoshoje.Háapossibilidadee

anecessidadedeoutroarranjoquenãoeste,atal“revoluçãonoséculoXXI”.

TalvezNegri-Hardtsecontentassemcomfavoreceressecomum,identificarsuas

condições e cultivá-las, sem que se pudesse conduzi-las ativamente por novas vias

institucionais. Dardot-Larval parecem ousar mais, arrisca-se dizer: desnaturalizar este

arranjo e relembrar outros pode trazer novas perspectivas sobre a emergência do

comum,parasereorganizarasociedadesegundoesse“pôremcomum”.Emtodocaso,

semumolhardebaixoparacimanãohájeito.Osertãojáoprovou.

Mais de um século depois de Canudos, as políticas de assentamento e de

irrigação continuam tendo problemas por trazerem projetos externos, desenhados

numaprancheta,muitasvezesinsensíveisàsnecessidadeseaosdesejosdessamultidão

sertaneja. A gestão comunitária nem sempre faz sentido para o Estado ou para o

Mercado. A vontade de estar juntos ocupando um determinado lugar, colaborando e

vivendodeumadeterminadamaneira,muitas vezespassaao largodas conveniências

administrativasoudolucro.Eistoéumaforçareal,palpável,capazlevaraspessoasase

arriscaremnomeiodonada,edificaremcidadesinteirassemajuda,mesmoàreveliados

PoderesConstituídos,eresistiràsuarepressãoviolenta.

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7.Consideraçõesfinais

ODireitodoComumtraz recursos reflexivosquedesafiamdogmatismossociais, tanto

osreacionáriosquantoosrevolucionários.Oolharparaagestãocomunitáriacomouma

atividadepostaemcomum,adimensãoafetivadotrabalho,oinvestimentodesentido

nas redes colaborativas, tudo isso evita as armadilhas de se impor àsmovimentações

sociais juízossegundoumaescalaexteriorderazão,comoaquerepresentouCanudos

comoseitafanáticaourebeldiaprimitiva.

Os exemplos da luta campesina contra o “cercamento”, dados por Dardot e

Laval, são importantes para desnaturalizar os direitos fundiários, violentamente

construídos e impostos aos pobres com a mediação normalizadora dos juristas. Os

contra-exemplosquedãoàteoriamarxistadesnaturalizamtambémosmitosdocomum

originário,mostrandoos riscosdaacumulaçãodapropriedadeusufundada,paraalém

dorentismoimobiliário.

Tudo issoadvertecontraaapropriaçãodamovimentação,porumateoria,por

umavanguarda,pelos juristas,poruma instituição formatadaapartirde fora.Negrie

Hardtsinalizarãonosentidodeperceberaanomaliaquebrotanessemundo,cultivá-lae

deixá-lafrutificar.DardoteLavaltalvezsejammaisotimistasquantoàpossibilidadede

conduzirativamenteamudançaporentreasvias institucionais,emboradependamde

umaltoníveldeassociativismoparacosturarocomumdesdebaixo,subindoatéonível

das federações de comuns, sem perder a característica genuína da coprodução

normativa.

Contudo, o exemplo de Canudos é encorajador. A vontade de estar juntos

ocupandoumdeterminadolugar,colaborandoevivendodeumadeterminadamaneira,

semostracomoumaforçareal,palpável,capazlevaraspessoasasearriscaremnomeio

do nada, edificarem cidades inteiras sem ajuda, mesmo à revelia dos Poderes

Constituídos,eresistiràsuarepressãoviolenta.

Não se podem esquecer todas as outras dimensões de Canudos, sua

complexidade religiosae cultural,que sãoelementoscentraisdoelã canudense.Além

disso,mesmoenfocandoaanálisenasuagestãocomunitária,nãosepodemesqueceras

suasdificuldadesinternas,suasambiguidades,violênciasedisfuncionalidades.

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Em todo caso, umapergunta ainda resiste: por que Canudos? Por que assim?

Mesmocomtodosostranstornos,acomunidadesemantinhaunida,apartirdedentro,

deseuspróprioslaçosbiopolíticos,comascaracterísticasquelevantamos.Porquê?

Como resultado desta pesquisa, conclui-se que analisar Canudos a partir do

Direito do Comum permite o descobrimento de traços invisibilizados no seu arranjo

sócio-institucional:não foi sóa faltadeEstadoqueproduziuCanudos. Issoaindaseria

reproduzir a narrativa determinista que muitos tentaram lhe impor. Não foi pura

causalidadequeaedificou,masumamovimentaçãosocialcapazde“constituir”sentido

próprio e um arranjo institucional alternativo, baseado numa gestão comunitária. E,

mesmocomtodososseusproblemaseambiguidades,oarraialdeCanudosteveforça

suficiente para mudar o projeto republicano, passando-se a tentar incluir potenciais

insurgentes em posições controláveis, ao invés de pagar o preço de combatê-los. Da

inferiorização da mestiçagem passa-se ao mito da democracia racial. E da crítica aos

mitos,crescemasdemandasporumademocraciaefetiva.Afinal,Canudosmostracomo

osavançosdemocráticosnãosurgemdeconcessõesespontâneasdaselites,mascomo

conquistasdelutashistóricas.

NovocabuláriodoComum:Canudosnãoésóovaziodeautoridade,afaltada

revolução burguesa ou comunista, a carestia; qualificada no “aqui e agora”, Canudos

traz suaprópria riquezaepositividade, suapotência constituinte.Negri eCoccodirão

até que Canudos venceu, na sua mestiçagem da carne e das instituições, na sua

conformaçãobiopolíticadoprojetohomogeinizadordosrepublicanos.

Nesse sentido, um retorno às bases da articulação da multidão, à práxis

instituinte,aolocalqueatravessaoglobal,é incontornável.Mesmoteoriasconcebidas

para dar conta desses grandes players são forçadas a voltar aos pressupostos das

relações entre pessoas e coisas, à raiz da lógica proprietária e das subjetividades

políticaslegadaspelamodernidade.

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SobreosautoresZielFerreiraLopesDoutorandoeMestreemDireitoPúblicopelaUnisinos/RS.BolsistaCnpq.MembrodoGrupo “Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos” (Unisinos). E-mail:[email protected] e Mestre em Direito Público pela Unisinos/RS. Bolsista Capes/Prosup.Membro do Grupo “Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos” (Unisinos). E-mail:[email protected]íramigualmenteparaaredaçãodoartigo.