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  • 7/27/2019 Direito Constitucional e Teoria Da Constituicao-JJGCanotilho

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    Direito Constitucional e Teoria da Constituio Jos Joaquim Gomes Canotilho

    Captulo 1 Direito Constitucional e Teoria da Constituio

    Jos Joaquim Gomes Canotilho

    Constitucionalismo Antigo e Constitucionalismo ModernoSUMRIO

    A Constituio e Constitucionalismo

    I - Movimentos constitucionais e constitucionalismo

    Il - Constituio moderna e constituio histrica

    B. Modelos de Compreenso

    l - Modelo historicista: o tempo longo dos jura et libertates"

    II - Modelo individualista: os momentos fractais da Revoluo

    III - "Ns, o povo" e os usos da histria:

    a tcnica americana da liberdade

    A. Constituio e ConstitucionalismoI Movimentos constitucionais e constitucionalismo

    A categoria jurdico-poltica da constituio vai ter centralidade cientficaneste trabalho. No entanto, para se compreender o direito constitucional necessrio,em primeiro lugar, aludir aos grandes problemas jurdico-polticos a que o movimentoconstitucional moderno procurou dar resposta. Por isso, e antes de procedermos aoestudo sistemtico das estruturas fundamentais do direito constitucional portugus (oque ser feito na Parte Segunda), impe-se uma reflexo em torno dos ciclos longos edos momentos fractais da idia constitucional.

    O movimento constitucional gerador da constituio em sentido moderno temvrias razes localizadas em horizontes temporais diacrnicos e em espaos histricos

    geogrficos e culturais diferenciados. Em termos rigorosos, no h umconstitucionalismo mas vrios constitucionalismos (o constitucionalismo ingls, oconstitucionalismo americano, o constitucionalismo francs). Ser prefervel dizer queexistem diversos movimentos constitucionais com coraes nacionais mas tambm comalguns momentos de aproximao entre si, fornecendo uma complexa tessiturahistrico-cultural. E dizemos ser mais rigoroso falar de vrios movimentosconstitucionais do que de vrios constitucionalismos porque isso permite recortar desde

    j uma noo bsica de constitucionalismo. Constitucionalismo a teoria (ou ideologia)que ergue o princpio do governo limitado indispensvel garantia dos direitos emdimenso estruturante da organizao poltico-social de uma comunidade. Nestesentido, o constitucionalismo moderno representar uma tcnica especfica de limitao

    do poder com fins garantsticos1. O conceito de constitucionalismo transporta, assim,

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    um claro juzo e valor. , no fundo, uma teoria normativa da poltica, tal como a teoriada democracia ou a teoria do liberalismo.

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    1 Cfr. N. MATTEUCI, La Costituzione statunitense ed il moderno costituzionalismo,in Costituzione Statunitense e il suo significato odierno, Bologna, II Mulino, 1989.Veja-se, tambm, WALTER MURPHY "Constitutions, Constitutionalism andDemocracy", in DOUGLAS GREENBERG, DYALLEY N. KATZA, MELANIEBETH OLIVIERO, and STEVEN C. WHEATLEY (coord), Constitutionalism andDemocracy, New York, Oxford University Press, 1995.

    Numa outra acepo - histrico-descritiva - fala-se em constitucionalismo modernopara designar o movimento poltico, social e cultural que, sobretudo a partir de meadosdo sculo XVIII, questiona nos planos poltico, filosfico e jurdico os esquemastradicionais de domnio poltico, sugerindo, ao mesmo tempo, a inveno de uma nova

    forma de ordenao e fundamentao do poder poltico. Este constitucionalismo, comoo prprio nome indica, pretende opor-se ao chamado constitucionalismo antigo, isto , oconjunto de princpios escritos ou consuetudinrios aliceradores da existncia dedireitos estamentais perante o monarca e simultaneamente limitadores do seu poder.Estes princpios ter-se-iam sedimentado num tempo longo - desde os fins da IdadeMdia at ao sculo XVIII2.

    II - Constituio moderna e constituio histrica

    O constitucionalismo moderno legitimou o aparecimento da chamada constituiomoderna. Por constituio moderna entende-se a ordenao sistemtica e racional dacomunidade poltica atravs de um documento escrito no qual se declaram as liberdadese os direitos e se fixam os limites do poder poltico. Podemos desdobrar este conceito deforma a captarmos as dimenses fundamentais que ele incorpora: (1) ordenao

    jurdico-poltica plasmada num documento escrito; (2) declarao, nessa carta escrita,de um conjunto de direitos fundamentais e do respectivo modo de garantia; (3)organizao do poder poltico segundo esquemas tendentes a torn-lo um poder limitadoe moderado. Este conceito de constituio converteu-se progressivamente num dos

    pressupostos bsicos da cultura jurdica ocidental, a ponto de se ter j chamado"conceito ocidental de constituio" (Rogrio Soares) 3. Trata-se, porm, de umconceito ideal que no corresponde sequer - como a seguir se demonstrar - a nenhum

    dos modelos histricos de constitucionalismo. Assim, um Englishman sentir-se-arrepiado ao falar-se de "ordenao sistemtica e racional da comunidade atravs de umdocumento escrito". Para ele a constituio - The English Constitution - ser asedimentao histrica dos direitos adquiridos pelos "ingleses" e o aliceramento,tambm histrico, de um governo balanceado e moderado (the balanced constitution). Aum Founding Father (e a um qualquer americano) no

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    2 Por vezes designa-se constitucionalismo antigo todo o esquema de organizaopoltico-jurdica que precedeu o constitucionalismo moderno. Caberiam neste conceito

    amplo o "constitucionalismo grego" e o "constitucionalismo romano". Cfr., por ltimo,

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    MARIO DOCLIANI, Introduzione al Diritto Costituzionale, Il Mulino, 1994, Bologna,p. 152.

    3 Cfr. ROGRIO SOARES, "O Conceito Ocidental de Constituio", in RLJ, 119, pp.36 e ss.

    repugnaria a idia de uma carta escrita garantidora de direitos e reguladora de umgoverno com "freios" e "contrapesos" feita por um poder constituinte, mas j no seidentificar com qualquer sugesto de uma cultura projectante traduzida na

    programao racional e sistemtica da comunidade. Aos olhos de um citoyenrevolucionrio ou de um "vintista exaltado" portugus a constituio teria de transportarnecessariamente um momento de ruptura e um momento construtivista. Momento deruptura com a "ordem histrico-natural das coisas" que outra coisa no era seno os

    privilges do ancien rgime. Momento construtivista porque a constituio, feita por umnovo poder - o poder constituinte -, teria de definir os esquemas ou projectos deordenao de uma ordem racionalmente construda.

    As consideraes anteriores justificaro ainda hoje a indispensabilidade de umconceito histrico de Constituio. Por constituio em sentido histrico entender-se- oconjunto de regras (escritas ou consuetudinrias) e de estruturas institucionaisconformadoras de uma dada ordem jurdico-poltica num determinado sistema

    poltico-social4. Este conceito - utilizado sobretudo por historiadores - serve tambmpara nos pr de sobreaviso relativamente a interpretaes retroactivas de organizaespolticas e sociais de outras pocas em que vigoravam instituies, regras, princpios ecategorias jurdico-polticas radicalmente diferentes dos conceitos e das categorias damodernidade poltica5. Mas no s isto: entre o "constitucionalismo antigo" e o"constitucionalismo moderno" vo-se desenvolvendo perspectivas polticas, religiosas e

    jurdico-filosficas sem o conhecimento das quais no possvel compreender o prpriofenmeno da modernidade constitucional. Mencionemos apenas alguns exemplos. difcil compreender a idia moderna de contrato social sem conhecermos o filo da

    politologia humanista neoaristotlica centrado na idia de bem comum. A progressivaaceitao de "pactos de domnio" entre governantes e governados como forma delimitao do poder ganha fora poltica atravs da crena religiosa do calvinismo numacomunidade humana dirigida por um poder limitado por leis e radicado no povo6. Aidia

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    4 Cfr, precisamente, DIETMAR WILLOWEIT, Deutsche Verfassungsgeschichte, 2a.ed., Verlag C. H. Beck, Mnchen, 1992, p. 2.

    5 Eis alguns exemplos do perigo da "explicao retroactiva": a categoria moderna"Estado" no corresponde categoria medieval de "domnio"; o conceito "soberaniaterritorial" no se identifica com a categoria "poder e territrio" da Idade Mdia; a ideiade "Nao" no se equipara ideia de "povo" ou "povos" dos esquemas polticosmedievais; a "jurisdictio" real entendida como prerrogativa real (o "rei-juiz") medievalnada tem a ver com a jurisdictio modernamente concebida como funo jurisdicionalexercida por um poder jurisdicional separado dos outros poderes do Estado. Cfr.

    ANTNI0 MANUEL HESPANHA (org.), Poder e Instituituies na Europa do AntigoRegime, Fundao Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1984.

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    6 Veja-se o excelente livro de BRIAN TERNEY, Religion, Law and the Growth of theConstitutional Thought (1150-1650), Cambridge University Press, 1982 (utilizamos atraduo francesa: Religion et Droit dans le Dveloppement de la PenseConstitutionnelle, Puf, Paris, 1993).

    moderna de "Repblica" ter de associar-se categoria de res publica mista, comseparao da majestas realis e da majestas personalis, que informou o modeloconstitucional da Paz de Westflia. Quem quiser uma compreenso de algumas"palavras viajantes" da modernidade poltica, como soberania, poder, unidade do Estadoe lei no poder ignorar o relevantssimo papel de autores como Bodin e da sua obra LesSix Livres de la Rpublique (1576) ou Hobbes e o seu famoso livro The Leviathan(1651). Mesmo os maitre penseurs do constitucionalismo moderno - Locke,Montesquieu e Rousseau - transportam, nalguns casos, "modos de pensar" antigos e scompreenderemos as suas propostas no contexto do saber e das "estratgias do saber"das escolas jurdicas seiscentistas e setecentistas - jusnaturalismo, jusracionalismo,

    individualismo e contratualismo - e dos seus respectivos mestres (Francisco Vitoria eFrancisco Suarez, para o jusnaturalismo peninsular, Grcio, para o jusnaturalismoindividualista, Hobbes para a teoria dos direitos subjectivos)7. Esta advertncia servetambm para salientar que o "conceito liberal de constituio" agitado a partir dos scs.XVII e XVIII, pressupe uma profunda transmutao semntica de alguns dos conceitosestruturantes da teoria clssica das formas de estado (doutrina aristotlica das formas deestado). o caso, precisamente, do conceito grego de politeia que s nos fins do sc.XVIII e no sc. XIX passou a entender-se como "constituio" (constitutio) enquantoanteriormente ela era traduzida atravs de conceitos como "policie", "government" e"Commonwealth" (tambm como "commonwealths ou government" ou "policy orgovernment"). Por sua vez, governo ("government") significava a organizao eexerccio do poder poltico, de modo algum se identificando com o poder executivocomo veio a suceder nas doutrinas modernas da diviso de poderes.8

    B Modelos de CompreensoA constituio em sentido moderno pretendeu, como vimos, radicar duas ideias

    bsicas: (1) ordenar, fundar e limitar o poder poltico; (2) reconhecer e

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    7 indispensvel a consulta dos livros dedicados histria do direito. Cfr, por

    exemplo: M. J. ALMEIDA COSTA, Histria do Direito Portugus, 3.a ed., Almedina,Coimbra, 1996; NUNO ESPINOSA GOMES DA SILVA, Histria do Direito, I, Fontes,Lisboa, 2.a ed., 1991; ANTONIO MANUEL HESPANHA, Manual de histriainstitucional moderna, Lisboa, Universidade Aberta, 1993; idem, Panorama Histrico daCultura Jurdica Europeia, Lisboa, 1997; FRANCISCO TOMAZ Y VALIENTE,Manual de Historia del Derecho Espaol, Madrid, 1980-1982.

    8 Cfr., por todos, GERALD STOURZH, "Vom aristotelischem zum liberalenVerfassungsbegriff", in Wege zur Grundrechtsdemokratie Studien zur Begrifts-undInstitutionengeschichte des liberalen Verfassungsstaates, Bhlau Verlag, Wien-Kln,1989, p. 7.

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    garantir os direitos e liberdades do indivduo. Os temas centrais do constitucionalismoso, pois, a fundao e legitimao do poder poltico e a constitucionalizao dasliberdades. Procuremos captar estes temas atravs de modelos tericos - o modelohistoricista, o modelo individualista e o modelo estadualista9. Alguma coisa do queatrs foi dito sobre o constitucionalismo antigo e sobre a constituio em sentido

    histrico vai estar subjacente nas consideraes posteriores. O que se pretende agora fornecer modelos de compreenso das palavras e das coisas que esto na gnese doconstitucionalismo moderno. Se o constitucionalismo uma teoria normativa dogoverno limitado e das garantias individuais, parece aceitvel a abordagem desta teoriaatravs de modelos, isto , estruturas tericas capazes de explicar o desenvolvimento daideia constitucional.

    I - Modelo historicista: o tempo longo dos jura et libertates'As "palavras-chave" do modelo historicista encontram-se no constitucionalismo ingls.Quais as dimenses histrico-constitucionais decisivamente caracterizadoras destemodelo histrico? Quais as cristalizaes jurdico-constitucionais deste modelo que

    passaram a fazer parte do patrimnio da "constituio ocidental"?

    As respostas primeira interrogao podem sintetizar-se em trs tpicos: (1)garantia de direitos adquiridos fundamentalmente traduzida na garantia do "binmiosubjectivo" liberty and property; (2) estruturao corporativa dos direitos, pois eles

    pertenciam (pelo menos numa primeira fase) aos indivduos enquanto membros de umestamento; (3) regulao destes direitos e desta estruturao atravs de contratos dedomnio (Herrschaftsvertrge) do tipo da Magna Charta. A evoluo destes momentosconstitucionais - eis a resposta segunda interrogao - desde a Magna Charta, de 1215, Petition of Rights, de 1628, do Habeas Corpus Act, de 1679, ao Bill of Rights, de1689, conduzir sedimentao de algumas dimenses estruturantes da "constituioocidental". Em primeiro lugar, a liberdade radicou-se subjectivamente como liberdade

    pessoal de todos os ingleses e como segurana da pessoa e dos bens de que se proprietrio no sentido j indiciado pelo artigo 39. da Magna Charta. Em segundolugar, a garantia da liberdade e da segurana imps a criao de um processo justoregulado por lei (due

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    9. Fontes de inspirao e ensinamento mais directa: MAURIZIO FIORAVANTI,Appunti di Storia delle Costituzione Moderne, G. Giappichelli Editore, 2a. ed., Torino,

    1995; TERENCE BALL/J. G. A. POCOCK, Conceptual Change and the Constitution,University Press of Kansas, Lawrence Ka, 1988.

    process of law), onde se estabelecessem as regras disciplinadoras da privao daliberdade e da propriedade. Em terceiro lugar, as leis do pas (laws of the land)reguladoras da tutela das liberdades so dinamicamente interpretadas e reveladas pelos

    juzes - e no pelo legislador! - que assim vo cimentando o chamado direito comum(common law) de todos os ingleses. Em quarto lugar, sobretudo a partir da GloriousRevolution (1688-89), ganha estatuto constitucional a ideia de representao e soberania

    parlamentar indispensvel estruturao de um governo moderado. O rei, os comuns eos lordes (King in Parliament, Commons and Lords) formavam uma espcie de

    "soberania colegial" ainda no desvinculada de idias medievais. De qualquer modo, obalanceamento de foras polticas e sociais permite agora inventar a categoria poltica

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    de representao e soberania parlamentar. Um corpo social dotado de identidade e queconseguiu obter a entrada no Parlamento (Members of Parliament) passa a exigirrespeito e capacidade de agir. Numa palavra: passa a estar representado 10.Acrescente-se ainda: a soberania parlamentar afirma-se como elemento estruturante daconstituio mista, pois uma constituio mista aquela em que o poder no est

    concentrado nas mos de um monarca, antes partilhado por ele e por outros rgos dogoverno (rei e Parlamento). A "soberania do parlamento" exprimir tambm a ideia deque o "poder supremo" deveria exercer-se atravs da forma de lei do parlamento. Estaideia estar na gnese de um princpio bsico do constitucionalismo: the rule of law11.

    II - Modelo individualista: os momentos fractais da Revoluo

    A narrativa historicista explica como se chegou British Constitution12. Nofornece um esquema interpretativo do constitucionalismo revolucionrio continentalcujo paradigma o constitucionalismo francs.

    Uma primeira interrogao ser esta: como e porqu a formao de uma tradioconstitucional francesa (ou portuguesa) no tem os mesmos traos do evolucionismo

    britnico? Por outras palavras: como se explica o aparecimento de

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    10. Cfr. precisamente, a entrada "Representao" a cargo de FERNANDO GIL naEnciclopdia Einaudi, Vol. XI, Lisboa, 1992; JOHN WIEDHOFFT GOUGH, L de deLoi Fondamentale dans l histoire Constitutionnelle Anglaise, pp. 89 e ss.

    11 DICEY, in Introduction to the Study of the Law of the Constitution (1885), p. 107,ps claramente em relevo esta ideia.

    12. Estamos a insinuar uma referncia ao ttulo do livro clssico do constitucionalismoingls de WALTER BAGEHOT, The English Constitution, Fontana Press, 1993 (a 1a.edio de 1867).

    categorias polticas novas, expressas em Kampfparole ("palavras de combate") - estado,nao, poder constituinte, soberania nacional, constituio escrita13 para dar respostaa algumas das questes j resolvidas pelo constitucionalismo britnico? Como j sereferiu, estas categorias s podem ser compreendidas se as localizarmos no terreno das

    fracturas epocais, ou seja, no campo das rupturas revolucionrias ocorridas no sculoXVIII. Isto permitir compreender vrias coisas. Em primeiro lugar, a sedimentaohistrica de tipo ingls no rompera totalmente com os esquemas tardo-medievais dos"direitos dos estamentos". Ora, a Revoluo Francesa procurava edificar uma novaordem sobre os direitos naturais dos indivduos - eis o primeiro momento individualista- e no com base em posies subjectivas dos indivduos enquanto membrosintegradores de uma qualquer ordem jurdica estamentall4. Os direitos do homem eramindividuais: todos os homens nasciam livres e iguais em direitos e no "naturalmentedesiguais" por integrao, segundo a "ordem natural das coisas", num dado estamento.A defesa dos direitos, para alm da defesa da liberty and property perante o poder

    poltico, era tambm um gesto de revolta contra os privilgios do senhor juiz", do

    senhor meirinho", do senhor almoxarife", do senhor lorde". A expresso pstuma15- ancien rgime - mostra claramente isto: a "ruptura" com o "antigo regime" e a criao

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    de um "novo regime" significa uma nova ordem social e no apenas uma adaptaopoltico-social ou ajustamento prudencial da histria16.

    Em segundo lugar, o momento fractal do individualismo repercute-se nalegitimao/fundao do novo poder poltico. O governo limitado e moderado da

    Inglaterra - a sua constituio mista - acabou por deixar na sombra (embora isso tivessesido discutido) uma questo fundamental da modernidade poltica: como podem oshomens livres e iguais dar a si prprios uma lei fundamental? A ordem dos homens uma ordem artificial (como o demonstrara Hobbes), "constitui-se", "inventa-se" ou"reinventa-se" por acordo entre os homens17. Numa palavra:

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    13 Alerte-se j para o facto de certos autores elevarem hoje algumas destas categorias aalavancas ideolgico-filosficas do totalitarismo moderno. Cfr, por exemplo, HANNAHARENDT, The Human Condition, The University of Chicago Press, Chicago e London,

    1958.

    14 Por ordem jurdica estamental entende-se um tipo especfico de ordem comunitria -tpica da Idade Mdia -, em que os direitos e deveres so atribudos aos sujeitos segundoa sua integrao num determinado estamento. Cfr. PIERANGELO SCHIERA."Sociedade de estados', de ordens' ou corporativa", in A. HESPANHA, Poder eInstituies na Europa do Antigo Regime, cit., pp. 143 e ss.; Lus SOUSA DAFBRICA, "A representao no Estado Corporativo Medieval", in Estado e Direito,12/1993, p. 69 e ss.

    15 Cfr., precisamente, MARCEL MORABITO/DANIEL BOURNAUD, HistoireConstitutionnelle et Politigue de Ia France (1789-1958), 3a. ed., Montchrestien, Paris,1993, p. 33.

    16 Cfr. M. FIORAVANTTI, Appunti, cit., p. 31.

    17 Cfr. REINHOLD ZIPPELIUS, Allgemeine Staatslehre, 12a. ed., Verlag C. H. Beck,Mnchen, 1994, p. 121.

    a ordem poltica querida e conformada atravs de um contrato social assente nasvontades individuais (tal como o defendiam as doutrinas contratualistas).

    A imbricao destes dois momentos fractais - o da afirmao de direitos naturaisindividuais e da "artificializao-contratualizao" da ordem poltica explica uma outracaracterstica do constitucionalismo revolucionrio - o construtivismo

    poltico-constitucional. A arquitectura poltica precisava de um "plano escrito", de umaconstituio que, simultaneamente, garantisse direitos e conformasse o poder poltico.Em suma: tornava-se indispensvel uma constituio. Feita por quem? Surge, aqui,

    precisamente uma das categorias mais "modernas" do constitucionalismo - a categoriado poder constituinte - no sentido de um poder originrio pertencente Nao, o nicoque, de forma autnoma e independente, poderia criar a lei superior, isto , aconstituio18.

    III - "Ns, o povo" e os usos da histria: a tcnica americana da liberdade

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    A epgrafe sugere aquilo que, na realidade, marcou o constitucionalismoamericano: um povo (mas no uma "nao") que reclamou19, como na Frana, o direitode escrever uma lei bsica e na qual ele fez diferentes usos da histria20.

    Fez diferentes usos da histria sob vrios pontos de vista. Atravs da Revoluo,os americanos pretenderam reafirmar os Rights, na tradio britnica medieval e daGlorious Revolution. No se tratava, porm, de um movimento reestruturador dosantigos direitos e liberdades21 e da English Constitution, porque, entretanto, no corpusda constituio britnica, se tinha alojado um tirano - o parlamento soberano que impeimpostos sem representao (taxation without representation). Contra esta"omnipotncia do legislador" a constituio era ou devia ser inspirada por princpiosdiferentes da ancient constitution. Ela devia garantir os cidados, em jeito de leisuperior, contra as leis do legislador parlamentar soberano. Aqui vem entroncar omomento We the People, ou seja, o momento em que o povo toma decises. Aos olhosdos colonos americanos ganhava contornos a ideia de democracia que um autor recente

    designou por

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    18 No captulo seguinte desenvolver-se- este ponto.

    19. Cfr. B. ACKERMAN, We the people, Foundation, The Belknap Press of HarvardUniversity Press, Cambridge, Massachussetts, London, 1991.

    20 Cfr. tambm o ttulo do conhecido livro de CHARLES A. MILLER, The SupremeCourt and the Uses of History, Harvard University Press, 1969.

    21 Veja-se, porm, J. P REID, The Concept of Liberty in The Age of the AmericanRevolution, Chicago, 1988.

    democracia dualista22. Existem decises - raras - tomadas pelo povo; existem decises -freqentes - tomadas pelo governo (government). As primeiras -as decises do povo -so tpicas dos "momentos constitucionais". Eis uma decisiva diferena relativamenteao historicismo britnico e uma importante aproximao ao modelo doconstitucionalismo francs. Em momentos raros e sob condies especiais o povodecide atravs do exerccio de um poder constituinte: a Constituio de 1787 a

    manifestao-deciso do povo no sentido acabado de referir. Ver-se-, porm, nocaptulo dedicado ao poder constituinte, que este poder surgiu na gramtica polticaamericana da poca com um telos diferente do da Revoluo Francesa. No se pretendiatanto reinventar um soberano omnipotente (a Nao), mas permitir ao corpo constituintedo povo fixar num texto escrito as regras disciplinadoras e domesticadoras do poder,oponveis, se necessrio, aos governantes que actuassem em violao da constituio,concebida como lei superior23. Se a constituio nos esquemas revolucionriosfranceses terminou na legitimao do estado legicntrico, ou, por outras palavras, dos"representantes legislativos", na cultura revolucionria americana ela serviu para"constituir" uma ordem poltica informada pelo princpio do "governo limitado" (limitedgovernment)24. Por outras palavras: o modelo americano de constituio assenta na

    ideia da limitao normativa do domnio poltico atravs de uma lei escrita. Esta"limitao normativa" postulava, pois, a edio de uma "bblia poltica do estado"

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    condensadora dos princpios fundamentais da comunidade poltica e dos direitos dosparticulares. Neste sentido, a constituio no um contrato entre governantes egovernados mas um acordo celebrado pelo povo e no seio do povo a fim de se criar econstituir um "governo" vinculado lei fundamental. Poder-se- dizer, deste modo, queos Framers (os "pais da constituio americana") procuraram revelar numa lei

    fundamental escrita determinados direitos e princpios fundamentais que, em virtude dasua racionalidade intrnseca e da dimenso evidente da verdade neles transportada,ficam fora da disposio de uma "possible tyranny of the majority"25. A conseqncialgica do entendimento da constituio como higher law ainda a elevao da leiconstitucional a paramount law, isto , uma lei superior que torna nula (void) qualquer

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    22 Cfr. BRUCE ACKERMAN, We the People, cit., p. 6. Entre ns, cfr. JONATASMACHADO, "Povo", in Dicionrio Jurdico da Administrao Pblica, Vol. VI, pp.419 e ss.

    23 Cfr. CH. H. MC ILWAIN, Constitutionalism Ancient and Modern, 3a. ed., Ithaca,New York, 1966, pp. 21 e ss.

    24. Veja-se, especialmente, C. J. FRIEDERICH, Limited Government A Comparison,Englewood Cliffs, 1974.

    25 Por ultimo, cfr. E. S. MORGAN, Inventing the People: The Rise of PopularSovereignty in England and America, W W Norton and Company, New York/London,1988.

    "lei" de nvel inferior, incluindo as leis ordinrias do legislador, se estas infringirem ospreceitos constitucionais26. Diferentemente do que sucedeu no constitucionalismoingls e no constitucionalismo francs, o conceito de "lei proeminente" (constituio)

    justificar a elevao do poder judicial a verdadeiro defensor da constituio e guardiodos direitos e liberdades. Atravs da fiscalizao da constitucionalidade (judicialreview) feita pelo juiz transpunha-se definitivamente o paradoxo formulado por JohnLocke em 1689: inter legislatorem et populum nullus in terris est judex (entre olegislador e o povo ningum na terra juiz). O povo americano deu a resposta

    pergunta de Locke: quis erit inter eos judex? Os juzes so competentes para medir asleis segundo a medida da consttuio. Eles so os "juzes" entre o povo e o legislador.

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    26 Sobre este "paramount character of the constitution vis-a-vis the legislative", vide,por ltimo, GERALD STOURZH, "Constitution: Changing Meanings of the Term fromthe Early Seventeenth to the late Eighteenth Century", in TERENCE BALL/J. G. A.POCOCK, Conceptual Change and the Constitution, University Press of Kansas,Lawrence, 1988, p. 47.

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    CAPTULO 2

    Modernidade Constitucional e Poder ConstituinteSumrio

    A. Aproximao problemtica do poder constituinte

    1. Quatro perguntas

    2. Pluralidade de abordagens

    B. A dimenso gentica: revelar; dizer ou criar uma lei fundamental

    I - Problemtica do poder constituinte e experincias constituintes

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    II -Revelar; dizer e criar a Constituio

    1. Revelar a norma - a desconfiana perante um poder constituinte.

    A Magna Charta e os contratos de domnio medievais

    2. Dizer a norma - o poder constituinte e a criao de um corpo de regras superiores einviolveis no exemplo americano

    3. Criar a norma - o poder constituinte como frmula fractal e projectante no modelofrancs

    c. A dimenso teortico-constitucional: as teorias sobre o poder constituinte

    1. John Locke e o 'supreme power'

    2. Sieys e o 'pouvoir constituant'

    3. Teoria do poder constituinte e constitucionalismo

    D. O titular do poder constituinte

    E. O procedimento constituinte

    I - Fenomenologia do procedimento constituinte

    1. Decises pr-constituintes

    2. Decises constituintes - o acto procedimental constituinte

    2.1. Assemblia Constituinte - Procedimento Constituinte representativo

    a) Assemblia Constituinte soberana

    b) Assemblia Constituinte no soberana

    c) Assemblia Constituinte e Convenes do povo2.2. Referendo constituinte e procedimento constituinte directo

    F. Vinculao jurdica do poder constituinte

    A. Aproximao Problemtica do Poder Constituinte

    I. Quatro perguntasO poder constituinte surgiu no Captulo Primeiro como uma das categorias polticasmais importantes do constitucionalismo moderno. Justifica-se esta centralidade poltica.

    Atravs de quatro perguntas fundamentais possvel intuir que a problemtica do poderconstituinte envolve outras questes complexas e controvertidas da teoria poltica, da

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    filosofia, da cincia poltica, da teoria da constituio e do direito constitucional. Qual ento o "catlogo de perguntas"?1 Resumidamente este:

    I. O que o poder constituinte?

    2. Quem o titular desse poder?

    3. Qual o procedimento e forma do seu exerccio?

    4. Existem ou no limites jurdicos e polticos quanto ao exerccio desse poder?

    A primeira pergunta conduzir-nos- a uma aproximao caracterizadora do poderconstituinte. E, perante a multiplicidade de conceitos e definies, veremos que, nofundo, o poder constituinte se revela sempre como uma questo de "poder", de "fora"ou de "autoridade" poltica que est em condies de, numa determinada situaoconcreta, criar, garantir ou eliminar uma Constituio entendida como lei fundamental

    da comunidade poltica.

    A interrogativa formulada em segundo lugar transporta-nos a este complexoproblemtico: quem o sujeito, quem o titular, qual a "grandeza poltica" capaz demobilizar a fora ordenadora do povo no sentido de instituir uma lei fundamental.Veremos que, hoje, o titular do poder constituinte s pode ser o povo e que o povo, naactualidade, se entende como uma grandeza pluralstica formada por indivduos,associaes, grupos, igrejas, comunidades, personalidades, instituies, veiculadores deinteresses, idias, crenas e valores, plurais, convergentes ou conflituantes.

    A terceira pergunta coloca-nos perante a questo do procedimento de elaborao eaprovao de uma constituio. De um modo especfico discutir-se-, aqui, o modo

    procedimental de actuar do poder constituinte. Dever ser um procedimento legislativo-constituinte desenvolvido no seio de uma Assemblia constituinte expressa eexclusivamente eleita para proceder feitura de uma constituio? Dever, antes, serum procedimento referendrio-plebiscitrio mediante o qual o povo, atravs dereferendo ou plebiscito, "decide" a aprovao como lei fundamental de um texto que,

    para esse fim, foi submetido sua aprovao?

    A interrogao formulada em quarto lugar aproxima-nos da complexa problemtica docontedo e legitimidade de uma constituio e dos limites do poder constituinte.

    Adiante ser explicitada a seguinte tese: o poder constituinte, embora se afirme comopoder originrio, no se exerce num vcuo histrico-cultural. Ele "no parte do nada e,por isso, existem certos princpios - dignidade da pessoa, justia, liberdade, igualdade -atravs dos quais poderemos aferir da bondade ou maldade intrnseca de umaconstituio.

    ------------------

    1 Esta metodologia retrica pode ver-se tambm em PETER HBERLE, "DieVerfassunggebende Gewalt des Volkes im Verfassungsstaat", in AR, 112 (1987);JOHN ELSTER, "Constitution Making in Eastern Europe: Rebuilding the Boat in the

    Open Sea", in Public Administration, Vol. 71 (1993), pp. 167-217.

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    2. Pluralidade de abordagens

    As perguntas acabadas de formular serviro como um roteiro dos tpicos bsicos dotema do poder constituinte: conceito, sujeito, procedimento, limites do poderconstituinte. Estes tpicos convocam formas de abordagem diversas. Assim, sob o

    ponto de vista histrico-gentico, as preocupaes centram-se na gnese e origemhistrica do poder constituinte. Em termos jurdico-filosficos e teortico-jurdicos, osmomentos reflexivos mais importantes incidem sobre o fundamento da validade ou

    pretenso de validade, bem como sobre a dignidade de reconhecimento de umaconstituio como lei materialmente justa (problema da legitimidade da constituio) .Auma perspectiva teortico-constitucional interessam sobretudo os problemas das forasou instncias ordenadoras do "povo", "nao" ou "estado" presentes no momentoimpulsivo (inicial) do aparecimento do poder constituinte e no momento constitutivo dafeitura de uma lei fundamental. Estar aqui em foco o tema da legitimao de umaconstituio: por que que certas "grandezas polticas" (partidos, grupos, associaes,foras militares) se auto-afirmam e se "autolegitimam como poder criador ou

    reestruturador da organizao fundamental de uma comunidade poltica? O poderconstituinte suscita ainda intrincados problemas de natureza dogmtico-constitucionalque comeam na debatida questo (tambm jurdico-filosfica e teortico-constitucional) de saber se o poder constituinte um "poder jurdico" ou um "poder defacto" e termina nos tpicos, no menos debatidos, da "reserva de constituio" (osassuntos que devem ser tratados por uma lei bsica), da reviso ou alterao da leiconstitucional e da identificao de um "ncleo duro irrevisvel" de normas e princpios.A simples enumerao de temas e perspectivas indicia tambm que, afinal,

    problemtica do poder constituinte esto associados outros problemas, desde semprediscutidos em qualquer "tratado de poltica, como os da soberania, do contrato social,da revoluo, do direito de resistncia, da ascenso e queda de regimes polticos. Da aafirmao de um autor: o poder constituinte do povo um conceito limite do direitoconstitucional2. A ideia de "conceito limite" alicera-se ainda numa outra ordem deconsideraes e que tem a ver com a impossibilidade de ele ser pensvel como conceitoou categoria jurdica. O poder constituinte seria, em rigor, no uma competncia oufaculdade juridicamente regulada mas sim uma fora extrajurdica, um "puro facto" forado direito. A posio que aqui ser assumida orienta-se em sentido diverso. Mesmoquando o poder constituinte no seja concebvel em termos realsticos como um poder

    juridicamente regulado, nem por isso ele deixa de ser poltica e juridicamente relevante.No plano poltico, o modo de revelao de um poder constituinte conexiona-se com opressuposto democrtico da autodeterminao e auto-organizao de uma colectividade.

    Sob o ponto de vista jurdico, o poder constituinte convoca irrecusavelmente a "forabruta que constitui uma ordem jurdica para o terreno problemtico da legitimao elegitimidade. As perguntas so ento inevitveis: qual o valor da "fora constituinte"como parte de um direito justo? Como que

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    2 Cfr. E. W: BCKENFRDE, "Die Verfassunggebende des Volkes - Ein Grenzbegriffdes Verfassungsrechts", in E. W. BCKENFRDE, Staat, Verfassung, Demokratie.Studien zur Verfassungstheorie und Verfassungsrecht, Suhrkamp, Frankfurt/M, 1991,

    pp. 90 e ss.

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    essa fora institui um quadro normativo de princpios e regras jurdicas que se reclamamde validade jurdica?3

    Nos tempos mais recentes o poder constituinte surge ainda como "conceito limite" dodireito constitucional nacional. O processo de integrao europia tem suscitado a

    questo de saber se possvel erguer-se uma ordem comunitria supraconstitucionalassente num "poder constituinte europeu" ou, pelo menos, no exerccio do poderconstituinte originrio dos estados soberanos4. Qualquer que seja a resposta, o problemaest posto: ou no poltica e juridicamente concebvel um poder constituinteinterdependente ou ps-soberano assente no exerccio em comum do poder constituinteoriginrio dos povos?

    B. A Dimenso Gentica: Revelar; Dizer ou Criar uma Lei Fundamental I -Problemtica do poder constituinte e experincias constituintesEm livros anteriores a problemtica da gnese do poder constituinte era abordada tendosobretudo em vista o chamado paradigma do "pouvoir constituant" da Revoluo

    Francesa. Hoje, deve reconhecer-se que este ponto de partida era redutor porqueesquecia dois outros momentos de gestao das normas bsicas: o constitucionalismoingls e o constitucionalismo americano. Os "modelos constitucionais" analisados noCaptulo Primeiro insinuavam j esta mudana de perspectiva. Vejamos agora osmomentos fundamentais das experincias constituintes. Antes disso, precisemos osentido da perspectiva histrico-gentica. A constituio pensa-se como um texto

    juridico que, ao mesmo tempo, fixa a constituio politica de um estado. Mas precisoexplicar um fenmeno intrigante da evoluo da semntica constitucional, a saber: areunio das concepes poltica e jurdica da constituio. Trata-se, como disse umsocilogo contemporneo5, de explicar como na constituio criada pelo poderconstituinte se produz uma nova fixao jurdica de uma ordem poltica e,simultaneamente, se compreende a ordem poltica como uma ordem jurdica. O"fenmeno evolucionista" da constituio justifica, assim, um breve aceno ao processogentico do poder constituinte. Trs palavras resumiro os traos caracterizadores detrs experincias histrico-constituintes: os ingleses compreendem o poder constituintecomo um processo histrico de revelao da "constituio de Inglaterra; os americanosdizem num texto escrito, produzido por um poder constituinte "the fundamental and

    paramount law of the nation"; os franceses criam uma

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    3 Cfr. MIGUEL GALVO TELES, A Revoluo Portuguesa e as Fontes de Direito",in M. BAPTISTA COELHO, (org.), Portugal e o Sistema Poltico e Constitucional,Lisboa, 1989, pp. 575 e ss.

    4 Cfr., por ex., G. BEARAUD, "La souverainet de I'tat, le pouvoir constituant et leTrait de Maastricht", in RFDA, 1993, p. 1050.

    5 Referimo-nos a NIKLAS LUHMANN, "Verfassung als evolutionre Errungenschaft",in Rechtshistorisches Journal, 1990, p. 178.

    nova ordem jurdico-poltica atravs da "destruio" do antigo e da "construo do

    novo", traando a arquitectura da nova "cidade poltica num texto escrito - a

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    constituio. Revelar; dizer e criar uma constituio so os modi operandi das trsexperincias constituintes.

    II -Revelar; dizer e criar a ConstituioI. Revelar a norma - a desconfiana perante um poder constituinte. A Magna Charta e os

    contratos de domnio medievais

    A ideia de um "poder constituinte" criador de uma lei bsica mereceria srias suspeitasaos "homens livres" da Idade Mdia. O modo especfico e prprio de garantir os direitose liberdades (jura et libertates) e estabelecer limites ao poder (aos poderes de imperium)no era o de criar uma lei fundamental mas sim o de confirmar a existncia de"privilgios e liberdades" radicados em "velhas leis" de direito ("the good old laws"), ouseja, num corpus costumeiro de normas e num reduzido nmero de documentosescritos. Por isso, as leis bsicas eram concebidas como "direito no querido". Mesmoos chamados "contratos de domnio" (Herrschftsvertrge) que se desenvolveram naEuropa a partir do sculo XIII so um complexo de normas que se destinam

    fundamentalmente a regular as relaes entre as vrias ordens, estamentos, forascorporativamente organizadas num determinado territrio e entre os homens activos nosespaos citadinos e urbanos. O sentido no , pois, o de um simples statement of law,mas o de estabelecer um equilbrio entre os "poderes medievais" de forma a garantir"restaurativamente" os direitos e liberdades (os "direitos radicados no tempo") e aassegurar um governo moderado, no qual gravitassem os pesos e contrapesos dasdiversas foras polticas e sociais.

    Das anteriores consideraes pode retirar-se uma ideia fundamental: s "magnas cartas" estranha a dimenso projectante de uma nova ordem poltica criada por um actorabstracto ("povo", "nao"). Inerente "ordem natural das coisas"6 estava, pois, aindisponibilidade da ordem poltica, a incapacidade de querer, de construir e de

    projectar uma "ordem nova, bem como a rejeio de qualquer corte radical com asestruturas polticas tradicionais.

    Neste sentido se pode afirmar que ao "constitucionalismo histrico" repugna a ideia deum "poder" constituinte com fora e competncia para, por si mesmo, desenhar e

    planificar o modelo poltico de um povo.

    2. Dizer a norma - o poder constituinte e a criao de um corpo de regras superiores einviolveis no exemplo americano

    Diferentemente do que acontecia com o modelo historicstico ingls, no ordenamentopoltico norte-americano adquire centralidade poltica a ideia de um poder constituinte.A conhecida frmula preambular " We the People" indicia com clareza uma dimenso

    bsica do poder constituinte: criar uma constituio. Criar uma constituio para qu?

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    6 Cfr. J. C. HOLTE, Magna Charta, 2a. ed., Cambridge University Press, Cambridge,1992.

    Para "registar" num documento escrito um conjunto de regras inviolveis onde seafirmasse: (1) a ideia de "povo" dos Estados Unidos como autoridade ou poder poltico

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    superior; (2) subordinao do legislador e das leis que ele produz s normas daconstituio; (3) inexistncia de poderes "supremos" ou "absolutos", sobretudo de um

    poder soberano supremo, e afirmao de poderes constitudos e autorizados pelaconstituio colocados numa posio equiordenada e equilibrada ("checks and

    balances"); (4) garantia, de modo estvel, de um conjunto de direitos plasmados em

    normas constitucionais, que podem opor-se e ser invocados perante o arbtrio dolegislador e dos outros poderes constitudos. Dos tpicos anteriores pode reter-se estaideia: o poder constituinte, no figurino norte americano, transporta uma filosofiagarantstica. A constituio no fundamentalmente um projecto para o futuro, umaforma de garantir direitos e de limitar poderes. O prprio poder constituinte no temautonomia: serve para criar um corpo rgido de regras garantidoras de direitos elimitadoras de poderes. Se, como veremos, na Revoluo Francesa o poder constituinteassume o carcter de um "poder supremo" com um titular ("povo", "nao"), naRevoluo Americana o poder constituinte o instrumento funcional para redefinir a"Higher Law" e estabelecer as regras de jogo entre os poderes constitudos e asociedade, segundo os parmetros poltico-religiosos contratualistas de algumas

    correntes calvinistas e das teorias contratualistas lockeanas. Numa palavra: o poderconstituinte serve para fazer uma constituio oponvel aos representantes do povo eno apenas uma constituio querida pelo povo soberano7. Mas no s isso: o princpiorepublicano do povo no tolerava a ideia de "centro poltico", de "concentraounitarizante" do poder. O povo dos Estados Unidos era um "povo alargado" - people-at-large -, que no se reduzia ao "corpo eleitor" ou aos representantes das Assembliaslegislativas. Isto justificar o cuidado dos "federalistas" em seguir as sugestes dos"antifederalistas": articular o poder constituinte do povo que faz uma constituiofederal com a autonomia dos "Estados" e dos seus povos, ou seja, estabelecer umaconcordncia poltico-prtica entre as vantagens da "unio" de uma lei constitucionalunitria e os sentimentos republicanos dos Estados da federao8. Neste sentido seafirmou j que o princpio legitimador da constituio americana de 1787 foi "muitomais a ideia federativa do que a ideia democrtica9.

    Por todos os motivos acabados de referir, pode dizer-se que a teoria do poderconstituinte corresponde, no fundo, ao objectivo central (core

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    7 Assim, precisamente, MAURIZIO FIORAVANTI, Stato e Costituzione, GiappichelliEditore, Torino, 1993, p. 230.

    8 Foi HAMILTON que particularmente se fez eco desta ars inveniendi de um poderconstituinte a actuar num esquema poltico federal. Cfr. KELLY-HARBISON-BELZ,The American Constitution. Its Origins and Developments, 6a. ed., W W Norton.Company, New York/London, 1983, p. 105.

    9 Assim, precisamente, FABIO KONDER KOMPARATO, Direito Pblico, EditoraSaraiva, So Paulo, 1996, p. 33.

    objective) do constitucionalismo: a primeira funo de uma ordem poltico-constitucional foi e continua sendo realizada atravs de um sistema de limites impostos

    queles que exercem o poder poltico10.

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    3. Criar a norma - o poder constituinte como frmula fractal e projectante no modelofrancs

    A Revoluo Francesa transporta dimenses completamente novas quanto ao tema quenos ocupa. Referimo-nos s ideias de poder constituinte e de Assemblia constituinte.

    Surge agora com centralidade poltica a nao, titular do poder constituinte. A naono se reconduz ideia de sociedade civil inglesa. Ela passa a deter um poderconstituinte que se permite querer e criar uma nova ordem poltica e social,

    prescritivamente dirigida ao futuro mas, simultaneamente, de ruptura com o "ancienregime". No pensamento e prtica da Frana revolucionria a imagem e representaodo poder vigorosamente expressa pelo abade E. Sieys esta: o poder constituinte temum titular - Ia Nation - e caracteriza- se por ser um poder originrio, autnomo eomnipotente. Um constitucionalista francs do sculo passado resumia bem a concepocriacionista da Revoluo: "a constituio um acto imperativo da nao, tirado donada e organizando a hierarquia dos poderes"11.

    Este "acto tirado do nada s poderia ser criado por um poder para o qual se transferematributos divinos: potestas constituens, norma normans, creatio ex nihilo. O sentido datransmutao de conceitos teolgicos em conceitos polticos foi, basicamente, o deconferir ao povo (nao) a qualidade de sujeito-titular constituinte dotado de poder dedisposio da ordem poltico-social12. Deste modo, a "descoberta da Nao" permitiuao "Estado-Nao" resolver trs problemas polticos: (1) modo de legitimao do poder

    poltico; (2) catalisar a transformao do "estado moderno" em "repblica democrtica;(3) criar uma nova solidariedade entre os cidados politicamente activos na construo eintegrao da nova ordem social.

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    10 Assim, precisamente, C. J. FRIEDERICH, Transcendent Justice, Durham, DukeUniversity Press, 1964, p. 15.

    11 Referimo-nos a EMIL BOUTMY, tudes de droit constitutionnel, France,Angleterrre, tats-Unis, 1885, 3a. ed., Plon, p. 241.

    12 Cfr. BCKENFRDE. "Die Verfassunggebende ...", cit., p. 62.

    C. A Dimenso Teortico-Constitucional: As Teorias sobre o Poder Constituinte

    O poder constituinte entendido como soberania constituinte do povo13, ou seja, o poderde o povo, atravs de um acto constituinte, criar uma lei superior juridicamenteordenadora da ordem poltica, parece hoje uma evidncia. No entanto, a distino claraentre um poder constituinte que faz as leis fundamentais e um poder legislativo que fazas leis no fundamentais"14 foi precedida de uma laboriosa construo terica.Assinalaremos os passos mais importantes desta formao da teoria do poderconstituinte.

    1. John Locke e o "supreme power"

    No complexo contexto das dissidncias polticas e religiosas em que se gera oradicalismo poltico ingls (1681-1683) , a formulao terica do "direito de

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    resistncia e do "direito revoluo" pressupunha um esforo analtico no sentido dedar contornos precisos ao chamado "corpo do povo". Este "corpo do povo" erasistematicamente identificado pelos tories com a "populaa, a "multido", "as pessoassem propriedade". Embora a expresso "poder constituinte" no surja de forma clara naobra de John Locke, considera-se que este sugeriu a distino entre poder constituinte

    do povo reconduzvel ao poder de o povo alcanar uma nova "forma de governo" e opoder ordinrio do governo e do

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    13 Trata-se de uma das primeiras formulaes claras da distino e que se reconduz aVATTEL (Droit des Gens, I, 3, 22, p. 153). Cfr. OLIVIER BEAUD, La Puissance del'tat, Puf, Paris, 1994, p. 206.

    14 Cfr. VOSSLER, Federative Power' und 'Consent' in der Staatslehre John Lockes,in Geist und Geschichte, 1964, p. 43.

    legislativo encarregados de prover a feitura e a aplicao das leis15. Os pressupostostericos da sugesto de um supreme power identificados pela doutrina como poderconstituinte so resumidamente estes: (1) o estado de natureza (state of nature) decarcter social; (2) neste estado de natureza os indivduos tm uma esfera de direitosnaturais (property) antecedentes ou preexistentes formao de qualquer governo; (3) o

    poder supremo conferido sociedade ou comunidade e no a qualquer soberano; (4) ocontrato social, atravs do qual o povo "consente o poder supremo do legislador, noconfere a este um poder geral mas um poder limitado e especfico e, sobretudo, noarbitrrio; (5) s o corpo poltico (body politic) reunido no povo tem autoridade poltica

    para estabelecer a constituio poltica da sociedade.

    2. Sieys e o "pouvoir constituant"

    Se em Locke a sugesto de um poder constituinte aparecia associada ao direito deresistncia reclamado pelo radicalismo whig, em Sieys a frmula pouvoirconstituant16 surge estreitamente associada luta contra a monarquia absoluta.

    Os momentos fundamentais da teoria do poder constituinte de Sieys so os seguintes:(1) recorte de um poder constituinte da nao entendido como poder originrio esoberano; (2) plena liberdade da nao para criar uma constituio, pois a nao ao

    "fazer uma obra constituinte", no est sujeita a formas, limites ou condiespreexistentes. Os autores modernos17 salientam que, no fundo, a teoria do poderconstituinte de Sieys , simultaneamente, desconstituinte e reconstituinte. O poderconstituinte antes de ser constituinte desconstituinte porque dirigido contra a "formamonrquica" ou "poder constitudo pela monarquia". Uma vez abolido o podermonrquico, impe-se uma "reorganizao", um dar "forma", uma reconstruo daordem jurdico-poltica. O poder constituinte da Nao entende-se agora como poderreconstituinte informado pela ideia criadora e projectante da instaurao de uma novaordem poltica plasmada numa constituio. Os poderes conformados e regulados poresta constituio criada pelo poder constituinte (inclusive o poder de rever ou emendar aconstituio - poder de reviso) seriam poderes constitudos.

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    15 Cfr. sobretudo, a obra de J, LOCKE, Two Treatises of Government, ed, Peter Laslett,Cambridge University Press, 2a. ed. Cambridge, 1967.

    16 Cfr, E. SIEYS, Qu'est ce te Tiers tat? Col, de R, Zapperi, Geneve, 1975.

    17 Cfr. por exemplo, OLIVIER BEAUD, La Puissance de I' tat, Puf, Paris, 1994, p,224.

    3. Teoria do poder constituinte e constitucionalismo

    Aparentemente, a teoria do poder constituinte, tal como foi desenvolvida pelas teoriassetecentistas, estabelece uma relao lgica entre "criador" e "criatura, ou seja, entre

    poder constituinte e constituio. Nada de menos exacto se com isto pretendermos dizerque no existem momentos de tenso entre um poder incondicionado, permanente eirrepetvel - o poder constituinte - e um "poder constitudo" pela constituio (ou "poder

    legislativo constitudo") caracterizado pela estabilidade e vinculao a formas. Radicamesmo aqui um dos mais complexos temas da teoria poltica e da teoria constitucionalque levou logo os autores de The Federalist, sobretudo Madison, a assinalar a distinoentre constitutional politics destinada a estabelecer os esquemas fundadores de umaordem constitucional, e normal politics, desenvolvida normalmente com base nas regrase princpios estabelecidos na lei superior e fundamental. A constitutional politics teria,

    pois, um carcter excepcional, extraordinrio, tpico dos momentos de elevada"conscincia poltica e de mobilizao popular. O mesmo problema preocupou tambmSieys. Por um lado, o poder constituinte "no est previa- mente submetido a qualquerconstituio"; por outro lado, e segundo as suas prprias palavras, "uma constituio um corpo de leis obrigatrio ou no nada. Esta tenso entre poder constituinteincondicionado e obrigatoriedade jurdica da constituio justificar a introduo doconceito de poder constituinte derivado ou poder de reviso constitucional a quemcompete alterar, nos termos da constituio, as normas ou princpios por esta fixados. O"poder constituinte revolucionrio" equivalia, aos olhos de Sieys (j na sua faseconservadora) a um factor de instabilidade. Mais valia "um freio [limites do poder dereviso] do que uma insurreio permanente".

    A domesticao jurdica do poder constituinte veiculada pelo estabelecimento de limitesao poder constituinte derivado ou poder de reviso originar, por sua vez, outrosmomentos de perplexidade jurdica e poltica. Referimo-nos ao chamado paradoxo da

    democracia 18: como pode um poder estabelecer limites s geraes futuras? Comopode uma constituio colocar-nos perante um dilema contramaioritrio ao dificultardeliberadamente a "vontade das geraes futuras" na mudana das suas leis? Revelar-se-, assim, o constitucionalismo de uma antidemocraticidade bsica impondo soberania do povo "cadeias para o futuro" (Rousseau)? Voltaremos a este tema aoabordarmos os limites do poder de reviso.

    -----------------------------

    10 Cfr., por todos, STEPHEN HOLMES, "Pre-commitment and the Paradox ofDemocracy", in JOHN ELSTER/RUNE SLAGSTADT (org.), Constitutionalism and

    Democracy, Cambridge University Press, New York, 1993, pp. 195 e ss.

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    D. O Titular do Poder Consttuinte

    O problema do titular do poder constituinte s pode ter hoje uma resposta democrtica.S o povo entendido como um sujeito constitudo por pessoas - mulheres e homens -

    pode "decidir" ou deliberar sobre a conformao da sua ordem poltico-social. Poder

    constituinte significa, assim, poder constituinte do povo19. Como j atrs foi referido, opovo, nas democracias actuais, concebe-se como uma "grandeza pluralstica" (P.Hberle), ou seja, como uma pluralidade de foras culturais, sociais e polticas taiscomo partidos, grupos, igrejas, associaes, personalidades, decisivamenteinfluenciadoras da formao de "opinies", "vontades", "correntes" ou "sensibilidades"

    polticas nos momentos preconstituintes e nos procedimentos constituintes.

    Assim caracterizado - o povo como "grandeza pluralstica" -, o conceito actual de povoest muito longe do povo no sentido de "cidados activos" quer no sentido jacobinoquer no sentido liberal-conservador. Com efeito, povo no apenas a facorevolucionria capaz de levar a revoluo at ao fim como pensavam os jacobinos. To

    pouco o conjunto de "cidados proprietrios" como pretendiam os liberais defensoresdo sufrgio censitrio. Povo no tambm a "classe do proletariado", ou seja, a classeautoproclamada em maioria revolucionria dotada da misso histrica de transformaoda sociedade numa sociedade de classes. O povo concebe-se como povo em sentido

    poltico, isto , grupos de pessoas que agem segundo ideias, interesses e representaesde natureza poltica. Afasta-se, assim, um conceito naturalista, tnico ou rcico de povocaracterizado por origem, lngua e/ ou cultura comum.

    Ao falar-se de povo poltico como titular do poder constituinte e de povo como"grandeza pluralstica" pretende-se tambm insinuar o abandono de um mito queacompanhou quase sempre a teoria da titularidade do poder constituinte: o mito dasubjectividade originria20 (povo, nao, Estado). Se se quiser encontrar um sujeito

    para este poder teremos de o localizar naquele complexo de foras polticas plurais - eda a pluri-subjectividade do poder constituinte - capazes de definir, propor e defenderideias, padres de conduta e modelos organizativos, susceptveis de servir de base constituio jurdico-formal.

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    19 Cfr.. E. W: BCKENFRDE, Die verfassunggebung des Volkes, cit., p. 63; PETERHABERLE, "Das Grundgesetz und die Herausforderung der Zukunft. Wer gestaltet

    unsere Verfassungsordnung", in Das Akzeptierte Grundgesetz. Festschrift fr GuntherDurig, Verlag C. H. Beck, Mnchen, 1990, pp. 26 e ss.

    20 Cfr. FIORAVANTI, "Potere Costituente e Diritto Pubblico", in Stato e Costituzione,G. Giappichelli Editore, Torino, 1993, p. 233.

    O conceito de povo poltico no se reconduz idia de povo activo no sentido deminorias activistas autoproclamadas em representantes do povo e agindo por"consentimento tcito" deste (concepo realista" de povo). 0 povo plural tambm nose identifica ainda com o "corpo eleitoral" ou o "povo participante nos sufrgios" talcomo definido pelas leis (designadamente leis eleitorais) e pela constituio. Este

    conceito acabado de referir - conceito normativo de povo - parte da ideia de que "o povono pode decidir sobre 'coisas polticas' enquanto no se disser juridicamente quem o

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    povo". 0 povo seria, assim, heterodefinido por uma norma jurdica ou por uma decisoexterior a ele mesmo. Confunde-se, deste modo, o povo com os "titulares" de direito desufrgio ou com "eleitores", sendo certo que na grandeza pluralstica de povo cabemoutros elementos individuais no enquadrveis no povo eleitor. Pense-se num sistemarestritivo quanto idade de sufrgio (exemplo: direito de voto apenas aos maiores de 25

    anos) para compreendermos a reduo do povo operada por um conceito normativo.

    0 povo poltico diferencia-se do povo maioritrio. Em termos mais rigorosos: o povomaioritrio pertence ao povo poltico mas no o esgota. 0 facto de as decises polticasserem na generalidade dos casos tomadas por maioria e valerem como deciso do povo,no deve fazer esquecer-nos que as minorias que votaram contra, se abstiveram ou nocompareceram ao sufrgio continuam a ser povo poltico.

    Em concluso: s o povo real - concebido como comunidade aberta de sujeitosconstituintes que entre si "contratualizam", "pactuam" e consentem o modo de governoda cidade -, tem o poder de disposio e conformao da ordem poltico-social.

    E. O Procedimento Constituinte

    No nmero anterior respondeu-se questo do sujeito constituinte - quem faz aconstituio? Agora a questo reconduz-se a esta pergunta: como se faz umaconstituio? 0 problema a esclarecer , por conseguinte, o do procedimentoconstituinte, tambm conhecido como problema das formas de exerccio do poderconstituinte.

    0 problema do procedimento constituinte importante porque, como se ir ver, oprocedimento constituinte uma dimenso bsica e estruturante da prpria legitimidadeda constituio. 0 relevo teortico-constitucional e jurdico-constitucional compreende-se tambm sem dificuldade: o procedimento constituinte que inicia a cadeia

    procedimental de legitimao democrtica e d fundamento a formas derivadas delegitimao, designadamente legitimao do exerccio do poder poltico.

    I -Fenomenologia do procedimento constituinte

    1. Decises pr-constituintes

    O desencadeamento de procedimentos constituintes tendentes elaborao de

    constituies anda geralmente associado a momentos constitucionais extraordinrios(revoluo, nascimento de novos estados, transies constitucionais, golpes de Estado,"quedas de muros"). Nestes factos complexos, situados ainda a montante do

    procedimento constituinte propriamente dito, vo geralmente implcitas "decises" denatureza pr-constituinte. Estas decises reconduzem-se em geral a dois tipos: (1)deciso poltica de elaborar uma lei fundamental - constituio; (2) edio de leisconstitucionais provisrias destinadas a dar uma primeira forma jurdica ao "novoestado de coisas" e a definir as linhas orientadoras (procedimento constituinte

    propriamente dito). Retenha-se, portanto, esta distino entre decises formais(Murswiek) ou decises pr-constituintes (Beaud)21 e decises materiais ouconstituintes: as primeiras contm a "vontade poltica de criar uma nova constituio e

    de regular o procedimento constituinte adequado a tal finalidade; as segundastransportam os momentos procedimentais - iniciativa, discusso, votao, promulgao,

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    ratificao, publicao - conducentes adopo de uma nova constituio.Compreende-se que nesta fase pr-constituinte se estabeleam apenas as condiesmnimas e as regras indispensveis para a feitura de uma constituio legtima. Bastaum rpido bosquejo da nossa histria constitucional contempornea para confirmarmoso que se acaba de dizer. Logo no primeiro comunicado da Junta de Salvao Nacional

    emergente do Movimento das Foras Armadas em 25 de Abril de 1974 (26-4-1974)assumia-se o compromisso de promover a consciencializao dos portugueses, ...emordem a acelerar a constituio de associaes cvicas que ho de polarizar tendncias afacilitar a livre eleio, por sufrgio directo, de uma Assemblia NacionalConstituinte. .. e ainda abster-se de qualquer atitude poltica que possa condicionar aliberdade de aco e a tarefa da futura Assemblia Constituinte. No mesmo sentido, naLei Constitucional Provisria decretada

    -----------------

    21Cfr. BEAUD, La Puissance de l'tat, cit. p, 265.

    pela Junta de Salvao Nacional (14-5-1974) dispunha-se (artigo 3o./1) que "Assemblia Constituinte caber elaborar e aprovar a nova Constituio", devendo estaAssemblia aprovar a nova no prazo de noventa dias, a partir da data de verificao dos

    poderes dos seus membros ..." (artigo 3o./2), dissolvendo-se "automaticamente uma vezaprovada a nova Constituio" (artigo 3o./3). Ainda como deciso pr-constituinte, estamesma lei constitucional transitria estabelecia que a "Assemblia Constituinte sereleita por sufrgio universal, directo e secreto", devendo o procedimento de eleio serregulado em proposta lei eleitoral a elaborar pelo Governo Provisrio e a submeter aprovao do Conselho de Estado ..." (artigo 4.0). Em sntese: depois de um primeiromomento desconstituinte traduzido, em geral, na revogao total ou parcial daconstituio anterior (cfr., por exemplo, Lei Constitucional Provisria de 14-5-74, artigo1.0), as decises pr-constituintes reconduzem-se a: (1) decises de iniciativa deelaborao e aprovao de uma nova constituio; (2) deciso atributiva do poderconstituinte (a uma Assemblia Constituinte, por exemplo) e definio do procedimento

    jurdico de elaborao da nova constituio; (3) leis constitucionais transitriasenquanto no for aprovada uma nova Constituio.

    2. Decises constituintes -o acto procedimental constituinte

    2.1. Assemblia Constituinte - Procedimento Constituinte representativo

    Em rigor, o primeiro acto constituinte situa-se ainda no terreno pr-constituinte, pois aoacto de atribuio constituinte pertence decidir como que o povo vai adoptar uma novalei fundamental - se atravs de uma Assemblia constituinte, se atravs de um referendoconstituinte. Pode mesmo dar-se o caso de haver uma combinao de procedimentos.

    a) Assemblia Constituinte soberana

    Designa-se procedimento constituinte representativo a tcnica de elaborao de uma leiconstitucional atravs de uma Assemblia especial - a Assemblia Constituinte. Naforma representativa pura cabe Assemblia Constituinte elaborar e aprovar a

    constituio, excluindo-se qualquer interveno directa do povo atravs de referendo ouplebiscito. Fala-se, neste caso, de assemblia constituinte soberana. o procedimento

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    que se pode considerar clssico na experincia constitucional portuguesa (cfr.Constituio de 1822, Constituio de 1838, Constituio de 1911 e Constituio de1976).

    b) Assemblia Constituinte no soberana

    Existe um procedimento constituinte representativo desenvolvido por uma Assembliaconstituinte no soberana quando esta competente apenas para elaborar e discutir o(s)

    projecto(s) de constituio, competindo depois ao povo, atravs de referendo, aprovar oprojecto elaborado pela Assemblia constituinte. Os motivos desta soluo prendem-secom as teorias da soberania, considerando algumas delas a representao constituinte,na senda da teoria da soberania popular de Rousseau, como uma fico, pois identifica o

    povo com os seus representantes, confunde mandatrio (representantes) e mandantes(povo), considera delegvel o que no possvel delegar (a soberania). Ora, j que no

    possvel, por razes prticas, o povo deliberar e aprovar (sistema rousseauniano puro)ao menos que se adopte uma soluo minimamente democrtica (sugerida por

    Condorcet). O princpio bsico seria este: o povo no delega o poder de aprovar ou derejeitar uma constituio. Por razes polticas, o povo no delega o poder de aprovar oude rejeitar uma constituio, de fazer intervir o povo soberano na aprovao ratificatria(ou no) do projecto elaborado pela assemblia constituinte (tese do poder do povo deratificar a constituio, tese da sano constituinte popular). Neste sentido diz-se que otexto aprovado por uma assembleia constituinte uma proposta de constituioenquanto que o voto do povo uma sano constituinte. No fundo, existem aqui "dois

    povos": o povo (Povo 1) que elegeu os seus representantes confiando-lhes a elaboraode um texto constitucional e o povo (Povo 11) que sanciona a proposta podendo "vetar"o texto que lhe submetido a ratificao. A experincia constitucional comparadademonstra que no se trata de mera hiptese terica, pois no referendo francs de 5 deMaio de 1946, o "povo ratificador" votou contra o projecto de constituio elaborado

    pelos "representantes do povo"22 em Assemblia Constituinte.

    c) Assemblia Constituinte e Convenes do Povo

    ldia semelhante anterior fornecida pela articulao, no procedimento constituinterepresentativo, da feitura de uma constituio por uma Assemblia Constituinte com aratificao popular, feita no atravs de referendo mas mediante convenes do povoreunidas em diversos centros territoriais. a conhecida tcnica norte-americanaadoptada para a Constituio de 1787. Os delegados constituintes elaboraram na

    Conveno de Filadlfia um projecto de-----------------------

    22 Vide, por exemplo, OLIVIER DUHAMEL, Droit Constitutionnel et Politique,ditions du Seuil, Paris, 1994, p. 743.

    constituio que depois foi submetido ao consentimento do povo exercido emconventions expressamente reunidas para este efeito nos vrios estados da unioamericana. "Ns o povo" americano comporta aqui tambm o Povo I, o povo reunidoem conveno constituinte, e o Povo II representado em constitutional conventions

    especificamente convocadas para o efeito23. As constitutional conventionsconfiguravam-se, assim, como substituio perfeita for the people themselves24.

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    2.2. Referendo constituinte e Procedimento constituinte directo

    Designa-se procedimento constituinte directo a aprovao pelo povo de um projecto deconstituio sem mediao de quaisquer representantes. Este procedimento constituinte

    comporta tambm modalidades diversas. Nuns casos submetido "sano popular"numa proposta de constituio (ou de reviso da constituio) elaborada pordeterminados rgos polticos (exemplo: Assemblia legislativa, governo) ou por umnmero determinado de cidados (iniciativa popular). Fala-se aqui do referendoconstituinte no sentido de aprovao de uma constituio mediante livre deciso popularexercida atravs de um procedimento referendrio justo. Esta ltima preciso -

    procedimento referendrio justo - serve para distinguir o referendo constituinte dochamado plebiscito constituinte. Embora a distino entre referendo e plebiscito noseja clara e tenha havido mesmo, num perodo inicial, a utilizao indiscriminada dosdois termos, o plebiscito passou a designar a votao popular de um projecto deconstituio unilateralmente fabricado pelos titulares do poder e dirigido a alterar em

    termos de duvidosa legalidade a ordem constitucional vigente (plebiscitosnapolenicos). Na histria constitucional portuguesa aproximou-se desta figura o

    plebiscito de aprovao da Constituio de 1933, em que as prprias abstenes foramcontadas como votos a favor25.

    F. Vinculao Jurdica do Poder ConstituinteFoi j referido que na teoria clssica do poder constituinte - pelo menos no seu figurinofrancs - este era considerado como um poder autnomo,

    ------------------------

    23 Cfr., por todos, BRUCE ACKERMAN, We the Peop!e, Foundations, cit., pp. 138 ess.

    24 Cfr. BRUCE ACKERMAN, We the People, Foundations, cit., pp. 177 e 178.

    25 Cfr. mais indicaes em JORGE MlRANDA, Manual, I, 5a. ed., p. 296.

    incondicionado e livre. Em toda a sua radicalidade, o poder constituinte concebia-secomo poder juridicamente desvinculado, podendo fazer tudo como se partisse do nada

    poltico, jurdico e social (omnipotncia do poder constituinte). Tudo isto estaria na

    lgica da "teologia poltica que envolveu a sua caracterizao na Europa da RevoluoFrancesa (1789). Ao poder constituinte foram reconhecidos atributos divinos: potestasconstituens, norma normans, creatio ex nihilo, ou seja o poder de constituir, o poder deeditar normas, o poder de criao a partir do nada26. A associao de poder soberano a

    poder constituinte - "soberano aquele que decide sobre a constituio" - concorria parao aliceramento da idia de omnipotncia constituinte.

    A doutrina actual rejeita esta compreenso. Desde logo, se o poder constituinte sedestina a criar uma constituio concebida como organizao e limitao do poder, nose v como esta "vontade de constituio" pode deixar de condicionar a vontade docriador. Por outro lado, este criador, este sujeito constituinte, este povo ou nao,

    estruturado e obedece a padres e modelos de conduta espirituais, culturais, ticos esociais radicados na conscincia jurdica geral da comunidade e, nesta medida,

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    considerados como "vontade do povo". Alm disto, as experincias humanas vorevelando a indispensabilidade de observncia de certos princpios de justia que,independentemente da sua configurao (como princpios suprapositivos ou como

    princpios supralegais mas intra-jurdicos) so compreendidos como limites da liberdadee omnipotncia do poder constituinte. Acresce que um sistema jurdico interno

    (nacional, estadual) no pode hoje estar out da comunidade internacional. Encontra-sevinculado a princpios de direito internacional (princpio da independncia, princpio daautodeterminao, princpio da observncia de direitos humanos)27.

    Esta ideia de vinculao jurdica conduz uma parte da doutrina mais recente a falar dajurisdicizao" e do carcter evolutivo do poder constituinte. Se continua a serindiscutvel que o exerccio de um poder constituinte anda geralmente associado amomentos fractais ou de ruptura constitucional (revoluo, autodeterminao de povos,quedas de regime, transies constitucionais), tambm certo que o poder constituintenunca surge num vcuo histrico-cultural. Trata-se, antes, de um poder que, de formademocraticamente regulada, procede s alteraes incidentes sobre a estrutura jurdico-

    poltica

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    26 Cfr. as referncias de BCKENFRDE, Die Verfassunggebung des Volkes, cit., p.62; TH. WRTENBERGER, Zeitgeist und Recht, Mohr, Tubingen, 2a. ed. 1991.

    27 Entre ns, com amplos desenvolvimentos, LUZIA CABRAL PINTO, Constituio eTeoria dos Limites Materiais do Poder Constituinte, Coimbra, 1995; MIGUEL

    NOGUEIRA DE BRITO, Sobre o Poder de Reviso, Vol, II, pp. 106 e ss.

    bsica de uma comunidade (P. Haberle, Baldassare). De resto, as recentes transiesconstitucionais, que comearam em Portugal (1974) e terminaram na transformao dosestados ex-comunistas, parecem mesmo apontar para a ideia de que o poder constituinteexercido segundo um procedimento justo e movido por intenes de conformao deuma ordem jurdico-poltica justamente ordenada, serve hoje como uma tcnicaexperimentada de solues de crises e rupturas polticas que em momentosextraordinrios surgem no seio da comunidade. No fundo, a instabilidade, aanarquia, o poder na rua, a confrontao ideolgica das pocas de transiotendem a serenar no momento em que o poder constituinte democraticamentelegitimado fixa normativamente em pactos ou constituies os valores bsicos

    reclamados pelas foras constituintes28.

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    28 Cfr. PETER HBERLE, "Die Verfassunggebende ...", cit., p. 27; BALDASSARE,"II referendum Costituzionale" in Quad. Cost., 1994; PABLO LUCAS VERDU,"Dimension axioIogica de Ia Constitucin Portuguesa, in JORGE MIRANDA (org.),Perspectivas Constitucionais, 1, pp. e 89 ss.

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